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A TRAGÉDIA DE SANTA MARIA E AS QUESTÕES SOBRE SEGURANÇA CONTRA

INCÊNDIO NO BRASIL

O incêndio na boate Kiss em Santa Maria no último dia 27 de Janeiro era uma tragédia
anunciada. Não havia data certa ou local certo, mas o incidente era previsível.
Infelizmente, ainda somos resistentes a aprender com os erros passados. Incêndios de
causas semelhantes já ocorreram no Brasil e no exterior, como já noticiado pela mídia.
Diversos membros deste Grupo já atuavam na área da segurança contra incêndio
quando ocorreram as tragédias dos edifícios Andraus (1972) e Joelma (1974). Do
último, resultou um Simpósio Nacional sobre o tema, organizado pela Câmara Federal,
e que apontou deficiências na área de segurança contra incêndio, as quais deveriam
ser equacionadas à época, para que tragédias como aquelas não mais se repetissem.
Com foco maior nos edifícios elevados, evoluíram desde então, em especial a
regulamentação pública e as normas técnicas, tornando-os mais seguros. Incêndios
anteriores e semelhantes haviam ocorrido no exterior, sem mobilizar a sociedade
brasileira. Infelizmente, houve a necessidade de dois casos de incêndio graves “em
casa” para que essa mudança ocorresse.
A recente tragédia ocorrida na boate Kiss repetiu, com grande semelhança, a ocorrida
na casa de espetáculos The Station, nos EUA, em 2003, com 100 mortes. Na Argentina,
em 2004, a danceteria Cromagñón teve incêndio iniciado da mesma forma. Foram 194
mortes. Há outros exemplos no Brasil e mundo. Mais uma vez vamos nos mobilizar
para que tragédias como essa nunca mais ocorram.
É possível evitar tragédias semelhantes? Sim. Mas não é tão simples, pois
normalmente os grandes acidentes decorrem de uma sucessão de falhas. Esse não foi
diferente. Aparentemente contribuíram para a tragédia: atitude temerária de
empregar artefato pirofórico em um ambiente confinado; rápida propagação do
incêndio (chamas e fumaça) pelo forro, constituído de material inadequado; falhas no
gerenciamento da situação de emergência; falha do equipamento de resposta ao
incêndio (extintor); existência de fluxo de saída em uma só direção; falta de percepção
do risco real pelos frequentadores; etc.
Se tantos foram os fatores que resultaram na tragédia, como se pode evita-los? A
resposta parece ser simples: reduzir a probabilidade de ocorrência de cada um desses
fatores. Porém, várias ações são necessárias para o sucesso dessa empreitada.
A posição do GSI, desde sua fundação há quase 20 anos, é a de que se deve enxergar e
atuar sobre toda a cadeia produtiva da segurança contra incêndio, para o
desenvolvimento efetivo da área visando à redução de perdas em vidas humanas e
patrimônio.
Seria oportuna, a organização de um seminário nacional sob o tema “locais de reunião
de público”, para discutir e encaminhar novas propostas para essa ocupação
específica, que é de alto risco. Tal seminário não deveria envolver só os especialistas
da área, mas também os proprietários e operadores desses locais. Porém, cabe
também lembrar a necessidade de mobilizar todo o setor e a cadeia produtiva da área
da segurança contra incêndio para dar um grande passo adiante, no estabelecimento
de políticas públicas para o setor com um todo. Por exemplo, os EUA tomaram

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conhecimento das deficiências da segurança contra incêndio com a realização de um
grande levantamento que resultou num importante relatório nacional sobre o
problema (America Burning, 1973). A situação da segurança contra incêndio no Brasil
ainda é pouco conhecida. Esforços nesse sentido são despendidos desde 2003 e
produziram uma série de informações a partir de 2006 (Projeto Brasil Sem Chamas,
FINEP/Ministério da Ciência e Tecnologia), no entanto, ainda não atingiram a etapa de
estabelecimento de políticas públicas e implementação de ações, como ocorreu nos
EUA.
Nesse sentido, dentre alguns dos aspectos que deveriam ser considerados pelas
autoridades estão:
• Uma melhor e constante avaliação dos problemas da segurança contra
incêndio requer a criação de um Observatório Nacional, que colete e divulgue
dados de incêndio, assim como, atualmente, são divulgados os dados relativos
a crimes e violência;
• Os incêndios, em especial todos aqueles que produzem vítimas, deveriam ser
objeto de competente pesquisa científica, sem fins criminais, mas apontando
os fatores determinantes do evento e extraindo o necessário aprendizado;
• Todos os profissionais que produzem o ambiente construído, mas em especial
os arquitetos, urbanistas e engenheiros, necessitam receber uma formação que
contemple os conhecimentos necessários sobre segurança contra incêndio;
• A participação da sociedade e de todos seus atores: produtores e prestadores
de serviço, consumidores, representantes neutros (poder público,
universidade) etc., na elaboração e revisão das normas técnicas deve ser
estimulada, pois a qualidade das normas decorre desse envolvimento e
participação;
• O Poder Público deve exercer a fiscalização de forma eficiente, mas a sociedade
como um todo deve se conscientizar que ele jamais possuirá a onipresença. A
sociedade também deve cumprir o seu papel, exigindo que os produtos,
sistemas e serviços oferecidos sejam seguros e exercendo o seu poder de
denúncia de irregularidades, como consumidor e cidadão.
Quanto maior o apoio e envolvimento de todos, os governos municipal, estadual,
federal, as entidades de classe, o setor produtivo, a imprensa e a sociedade em geral,
mais breve chegará o tempo em que tragédias como essa não mais se repetirão.
São Paulo, 31 de Janeiro de 2013.
O Grupo de Fomento à Segurança contra Incêndio (GSI) do Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo é uma entidade que tem como objetivo principal
promover o desenvolvimento e a divulgação da segurança contra incêndio no Brasil e seus membros são
especialistas nesta área. Membros do Conselho Consultivo do GSI: Alexandre Itiu Seito (engenheiro e
doutor pela FAU-USP), Alfonso Antonio Gill (engenheiro e oficial bombeiro da reserva PMESP), Rosaria
Ono (arquiteta e professora associada da FAU-USP), Silvio Bento da Silva (oficial bombeiro da reserva
PMESP), Ualfrido Del Carlo (engenheiro e professor titular aposentado da FAU-USP), Valdir Pignatta e
Silva (engenheiro e professor doutor da Poli-USP) e Walter Negrisolo (oficial bombeiro da reserva
PMESP e doutor pela FAUUSP).
Contato: nutaugsi@usp.br

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