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Cronica Do Passaro de Corda - Haruki Murakami
Cronica Do Passaro de Corda - Haruki Murakami
DE
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Parte I
1. Sobre o pássaro de corda de terça-
feira, os seis dedos e os quatro seios
2. Sobre a lua cheia, o eclipse solar eos
cavalos que morrem no estábulo
3. O chapéu de Malta Kanô, tons pastel,
Allen Ginsberg e a Cruzada
4. A torre mais alta, o poço mais fundo,
ou bem longe de Nomonhan
5. Viciado em bala de limão, pássaro
que não voa e poço seco
6. Sobre o nascimento de Kumiko
Okada e Noboru Wataya
7. Lavanderia da felicidade, e Creta
Kanô entra em cena
8. A longa história de Creta Kanô e
considerações sobre a dor
9. Falta absoluta de eletricidade, canal
subterrâneo e considerações de May
Kasahara sobre perucas
10. Toque mágico, morte dentro da
banheira e entregador de recordações
11. O primeiro-tenente Mamiya entra
em cena, o que surgiu de dentro do barro
morno e água-de-colônia
12. Longa história do primeiro-tenente
Mamiya — parte 1
13. Longa história do primeiro-tenente
Mamiya — parte 2
Parte II
1. Informações mais concretas
possíveis, o apetite na literatura
2. Nenhuma notícia boa neste capítulo
3. Discurso de Noboru Wataya, história
dos macacos da ilha indecente
4. Graça que se perdeu para sempre,
prostituta da consciência
5. Paisagem de uma cidade longínqua,
meia-lua eterna, escada de corda presa
com firmeza
6. Testamento, considerações sobrea
água-viva, sensação de alienação
7. Reminiscências e reflexões sobre as
gestações, estudo experimental sobre a
dor
8. Raiz do desejo, interior do quarto
208, atravessando a parede
9. Poço e estrelas, como a escada
sumiu
10. Considerações de May Kasahara
sobre a morte e a evolução do homem, o
que foi construído em outro lugar
11. Fome que dói, longa carta de
Kumiko, pássaro profeta
12. O que descobri quando fazia a
barba, o que descobri quando acordei
13. Continuação da história de Creta
Kanô
14. Nova partida para Creta Kanô
15. Nome correto, o que foi queimado
na manhã de verão junto com o óleo de
cozinha, metáfora incorreta
16. O único problema que aconteceu na
casa de May Kasahara, considerações de
May Kasahara sobre a fonte de calor
pegajosa
17. A coisa mais fácil,a vingança
sofisticada,o que tinha dentro do estojo de
violão
18. Correspondência da ilha de Creta,
as coisas que caíram da borda do mundo,
as boas notícias são transmitidas em voz
baixa
Parte III
1. Ponto de vista de May Kasahara —
parte 1
2. O mistério da casa dos enforcados
— parte 1
3. O inverno do Pássaro de Corda
4. O despertar da hibernação, mais um
cartão de visita, dinheiro não tem nome
5. Acontecimento na calada da noite
6. A compra de sapatos novos, o que
voltou para casa
7. Você vai saber se pensar bem —
Ponto de vista de May Kasahara — parte
2
8. Noz-Moscada e Canela
9. No fundo do poço
10. Ataque ao zoológico (ou um
massacre amador)
11. Então, a próxima pergunta é —
Ponto de vista de May Kasahara — parte
3
12. Será que esta pá é de verdade?
Acontecimento na calada da noite — parte
2
13. Tratamento secreto de M
14. O homem que estava à espera, o
que não se pode evitar, nenhum homem é
uma ilha
15. Misteriosa língua de sinais de
Canela, oferenda musical
16. Talvez este lugar seja um beco sem
saída — Ponto de vista de May Kasahara
— parte 4
17. Fadiga e peso do mundo, lâmpada
mágica
18. Sala de ajustes, sucessor
19. Filha de rãs idiotas — Ponto de
vista de May Kasahara — parte 5
20. Labirinto subterrâneo, as duas
portas de Canela
21. História de Noz-Moscada
22. O mistério da casa dos enforcados
— parte 2
23. Águas-vivas do mundo todo, o que
estragou
24. Contar carneirinhos,o que está no
centro do círculo
25. Sinal vermelho, a mão comprida
que se estende
26. O que arruína, fruto maduro
27. Orelhas triangulares, sinos de trenó
28. Crônica do Pássaro de Corda 8 (ou
o segundo massacre amador)
29. O elo perdido de Canela
30. Não dá para confiar numa casa —
Ponto de vista de May Kasahara — parte
6
31. Nascimento de uma casa vazia,
troca de montaria
32. O rabo de Malta Kanô, Boris, o
Esfolador
33. O taco que desapareceu, La gazza
ladra que voltou
34. Trabalho de fazer os outros
imaginarem (Continuação da história de
Boris, o Esfolador)
35. Lugar perigoso, pessoas diante da
TV, homem vazio
36. Luz de vagalume, como quebrar o
feitiço, o mundo onde toca o despertador
37. Só uma faca real, a profecia que se
cumpriu
38. Sobre patos, sombra e lágrimas —
Ponto de vista de May Kasahara — parte
7
39. Duas notícias diferentes, aquilo que
desapareceu
40. Crônica do Pássaro de Corda 17
(Carta de Kumiko)
41. Adeus
Referências bibliográficas
PARTE I
La gazza ladra
De junho a julho de 1984
1.
Sobre o pássaro de corda
de terça-feira,
os seis dedos e os quatro
seios
Malta
Kanô
Malta? Virei o cartão de visita. Não
tinha nada escrito.
Enquanto eu pensava no sentido de um
cartão de visita só com um nome, o
garçom se aproximou, colocou o copo
com gelo na frente dela e despejou metade
da água tônica. Dentro do copo tinha uma
fatia de limão. Um pouco depois chegou a
garçonete com uma bandeja e um bule
prateado, colocou a xícara na minha frente
e despejou o café dentro. Em seguida,
com movimentos furtivos, como alguém
que estende para outra pessoa um papel
cheio de previsões sombrias, ela colocou
a comanda sobre a mesa e se foi.
— Não tem nada escrito — disse Malta
Kanô, ao perceber que eu ainda
observava distraído o verso do cartão de
visita. — É só o meu nome. Para mim,
telefone e endereço são desnecessários.
Ninguém liga para mim. Eu ligo para as
pessoas.
— Entendi — comentei.
Essa minha resposta sem sentido pairou
por um tempo no ar sobre a mesa, como a
ilha voadora de As viagens de Gulliver.
A mulher segurou o copo com as duas
mãos e tomou só um gole com o canudo.
Então fez uma careta e empurrou o copo
para o canto, como se tivesse perdido o
interesse.
— Malta não é o meu verdadeiro nome
— explicou a mulher. — O sobrenome é
verdadeiro, mas Malta não passa de um
codinome para o trabalho. Tirei da ilha de
Malta. O senhor já foi lá?
Respondi que não, nunca tinha ido à
ilha de Malta, nem tinha planos de ir num
futuro próximo. Nunca sequer cogitei a
possibilidade. A única coisa que conhecia
da ilha de Malta era “The Maltese
Melody” tocada por Herb Alpert e, para
ser sincero, era uma música horrível.
— Morei três anos em Malta. A água de
Malta é um pavor, mal dá para beber.
Parece água do mar. O pão da ilha é
salgado, mas não por excesso de sal, e
sim pela água que já é salgada. Apesar
disso, o sabor do pão não é ruim. Eu gosto
do pão de Malta.
Assenti com a cabeça e tomei o café.
— A água da ilha de Malta é realmente
péssima — prosseguiu ela —, mas a água
que nasce em determinado ponto da ilha é
milagrosa para o corpo. É uma água muito
especial e pode ser considerada até
mística. Só brota em um lugar específico,
a nascente fica no meio da montanha e
exige uma caminhada de horas a partir de
uma aldeia. Esse curso de água não pode
ser desviado e, quando carregado para
outro lugar, perde o efeito. Por isso, para
beber essa água, a pessoa tem que ir até o
local. Há registros na literatura desde a
época das Cruzadas, quando essa água já
era considerada milagrosa. Allen
Ginsberg foi tomar essa água. Keith
Richards também. Eu morei três anos em
Malta, na pequena aldeia que fica no sopé
da montanha. Eu cultivava hortaliças e
aprendi a tecer. Caminhava todos os dias
até a nascente para tomar a água, de 1976
a 1979. Cheguei a ficar uma semana sem
comer nada, bebendo apenas essa água.
Precisava fazer isso. Acho que podemos
chamar de treinamento espiritual. Assim o
corpo é purificado. Foi uma experiência
realmente maravilhosa. Por isso, quando
voltei ao Japão, adotei Malta como
codinome de trabalho.
— Desculpe a indelicadeza, mas qual é
a sua profissão?
Malta Kanô balançou a cabeça
negativamente:
— Para ser franca, não é bem uma
profissão. Não cobro nada por esse
trabalho. As pessoas me consultam para
saber sobre a composição do corpo. Esse
é meu papel. Também faço pesquisas
sobre águas medicinais. Dinheiro não é
problema, porque tenho patrimônio. Meu
pai era proprietário de um hospital e
deixou ações e imóveis para mim e para a
minha irmã mais nova. O contador se
encarrega de tudo, o que nos garante uma
renda anual confortável. Também
publiquei alguns livros que geram certa
receita, ainda que bem modesta. Não
cobro pelo meu trabalho, e por isso o
cartão de visita não apresenta endereço
nem telefone. Sou sempre eu que ligo.
Assenti com a cabeça, mas apenas por
educação. Embora conseguisse entender
cada palavra dita, não fazia a menor ideia
do que o todo significava.
Composição do corpo?
Allen Ginsberg?
Fiquei cada vez mais inquieto. Não sou
do tipo que tem uma intuição muito
aguçada, mas conseguia sentir que um
novo problema pairava no ar.
— Sinto muito, mas poderia me
explicar a situação de maneira mais
ordenada? Decidi me encontrar com a
senhora para conversar sobre o gato, a
pedido da minha esposa. Para ser sincero,
até agora não entendi direito a relação dos
fatos. O que a senhora disse tem algo a
ver com o nosso gato?
— É claro. Mas antes gostaria de
contar uma coisa, sr. Okada.
Malta Kanô abriu de novo a bolsa e
retirou dela um envelope branco. Dentro
tinha uma foto, que ela me entregou,
acrescentando: “É minha irmã mais nova”.
A foto colorida apresentava duas
mulheres. Uma era Malta Kanô. Estava de
chapéu, um chapéu amarelo de tricô, que
também destoava tristemente da roupa. A
irmã mais nova usava um terno de cor
pastel, muito em moda no início da
década de 1960, e um chapéu que
combinava com o terno. Se não me
engano, as pessoas costumavam chamar
essa paleta de tons sorbet. As duas
gostam de chapéu, refleti. O penteado da
irmã de Kanô era bem parecido com o da
Jacqueline Kennedy, na época de
primeira-dama, e sugeria o uso de muito
laquê. A maquiagem parecia um pouco
carregada, mas o rosto era tão equilibrado
que poderia ser considerado belo. Ela
deveria ter entre vinte e vinte e cinco
anos. Depois de observar por um tempo,
devolvi a foto a Malta Kanô, que a
guardou no envelope, colocou na bolsa e a
fechou.
— Minha irmã é cinco anos mais nova
do que eu — informou Malta Kanô. —
Ela foi maculada pelo sr. Noboru Wataya,
violada brutalmente.
Minha nossa. Eu tinha vontade de me
levantar e sair sem dizer nada. Só que não
podia fazer isso. Retirei um lenço do
bolso do paletó, limpei a boca e devolvi
ao bolso. Também dei uma tossida.
— Não conheço os detalhes, mas
lamento que sua irmã tenha passado por
tanto sofrimento — falei. — Só gostaria
de esclarecer que não tenho nenhuma
relação de proximidade com meu
cunhado. Por isso, se por acaso…
— Não pretendo responsabilizar o
senhor — cortou Malta Kanô, incisiva. —
Se alguém merece levar a culpa, sou eu.
Não tomei as precauções necessárias. Eu
deveria ter protegido melhor a minha irmã
mais nova. Por diversos motivos, não
consegui. Veja, sr. Okada, essas coisas
acontecem. Como o senhor sabe, o mundo
é violento e caótico. E no interior dele
existe um lugar mais violento e mais
caótico ainda. Está me acompanhando? O
que passou, passou. Essa ferida vai
cicatrizar e minha irmã deixará para trás
essa mácula. Ela precisa. Por sorte, não
foi algo fatal. Eu falei para ela: poderia
ter sido pior. O que me preocupa mais é a
composição do corpo da minha irmã.
— A composição… — repeti.
Aparentemente, a composição do corpo
era um dos assuntos preferidos de Malta
Kanô.
— Não vou entrar em detalhes do caso.
É uma história longa, com muitas pontas e,
no estágio atual, acho que o senhor teria
dificuldades para entender o verdadeiro
sentido disso. Não me leve a mal nem se
ofenda. Acontece que esse mundo é nossa
especialidade profissional. Não chamei o
senhor para me queixar. Naturalmente, o
senhor não tem nenhuma culpa. Nem é
preciso dizer. Só queria que soubesse que
a minha irmã mais nova teve a
composição temporariamente maculada
pelo sr. Wataya. De agora em diante,
talvez o senhor passe a ter algum tipo de
contato com a minha irmã. Como já devo
ter dito, ela é uma espécie de assistente
para mim. Por isso achei melhor que o
senhor soubesse o que aconteceu entre ela
e o sr. Wataya, e que entendesse que essas
coisas podem acontecer.
Durante um tempo, reinou o silêncio.
Malta Kanô permaneceu calada, com uma
fisionomia que parecia dizer: “Pense um
pouco no que acabei de dizer”. Eu tentei
pensar um pouco a respeito. Refleti sobre
a violação da irmã mais nova de Malta
Kanô e a relação disso com a composição
do corpo. E também sobre o que tudo isso
podia ter a ver com o nosso gato
desaparecido.
— Então… — comecei eu, receoso. —
A senhora e a sua irmã mais nova não
pretendem tornar esse fato público e levar
o caso à polícia?
— Claro que não — respondeu Malta
Kanô, inexpressiva. — Honestamente, não
pretendemos responsabilizar ninguém.
Apenas queremos saber o que pôde ter
levado a esse extremo. Caso a gente não
descubra e resolva o problema, algo pior
poderá acontecer.
Ao ouvir aquilo fiquei mais aliviado.
Não me importava se Noboru Wataya
seria preso e condenado por estupro, se
cumpriria pena na cadeia. Até achava que
ele merecia. No entanto, como meu
cunhado era uma pessoa conhecida, o
caso daria o que falar, e sem dúvida
Kumiko ficaria chocada. Pensando na
minha saúde mental, não queria que isso
acontecesse.
— O motivo do encontro de hoje é
apenas o gato — disse Malta Kanô. — O
sr. Wataya me procurou atrás do gato. A
sua esposa, sra. Kumiko Okada, pediu
conselhos para o sr. Wataya e ele veio me
consultar.
Agora eu estava entendendo. Malta
Kanô era vidente ou algo parecido e foi
consultada para descobrir o paradeiro do
nosso gato. A família Wataya sempre foi
supersticiosa e teve um fraco por
adivinhações, previsões e profecias.
Naturalmente, cada um tem o direito de
acreditar no que quiser. Mas por que o
irmão de Kumiko violentou a irmã mais
nova de uma conselheira espiritual? Por
que arrumou essa confusão?
— A sua especialidade é encontrar
coisas perdidas? — perguntei.
Malta Kanô me encarou com seus olhos
sem profundidade, olhos de quem observa
fixamente o interior de uma casa vazia
pela janela. Pelo seu olhar, aparentemente
ela não tinha compreendido nada da minha
pergunta.
— O senhor mora num lugar curioso —
comentou ela, ignorando a minha pergunta.
— É mesmo? Curioso em que sentido?
Malta Kanô não respondeu à pergunta e
afastou mais uns dez centímetros o copo
de água tônica, praticamente intocada.
— Além disso, os gatos são muito
sensíveis — observou ela.
Reinou um novo silêncio entre nós.
— Já entendi que moro num lugar
curioso e que os gatos são sensíveis —
falei. — Só que moramos com o gato há
muito tempo nesse lugar. Por que ele
sumiu só agora, de repente? Por que não
sumiu antes?
— Não posso garantir, mas acho que é
porque houve uma mudança de fluxo. Por
alguma razão, o fluxo foi obstruído.
— Fluxo?
— Não posso afirmar se o gato
continua vivo ou não. Mas com certeza
nesse momento ele não está perto da sua
casa. Então não vai aparecer, por mais
que o senhor procure pelas redondezas.
Apanhei a xícara e bebi mais um gole
do café, que estava morno. Pela janela de
vidro, percebi que uma chuva fina caía lá
fora. Nuvens escuras e baixas cobriam o
céu. Pessoas com ar aborrecido e guarda-
chuvas abertos subiam e desciam a
passarela de pedestres.
— Mostre a sua mão — pediu ela.
Eu virei e coloquei a palma da mão
direta sobre a mesa, imaginando que
Malta Kanô fosse ler a minha mão. Ao
que parece, porém, ela não tinha nenhum
interesse nisso. Ela estendeu o braço e
pôs a sua mão sobre a minha, antes de
fechar os olhos e ficar imóvel, como quem
culpasse em silêncio o cônjuge infiel. A
garçonete se aproximou e encheu de café a
minha xícara, fazendo vista grossa para
nós. As pessoas das mesas próximas
lançavam olhares furtivos. Durante o
tempo todo, desejei que não tivesse
nenhum conhecido meu ali.
— Lembre uma coisa que viu hoje,
antes de vir para cá — ordenou Malta
Kanô.
— Uma coisa só?
— Sim, uma só.
Lembrei do vestidinho floral da minha
esposa, na caixa organizadora de roupas.
Não sei por que, mas esse vestido foi a
primeira coisa que me veio à mente.
Depois ficamos por mais uns cinco
minutos assim, mão com mão, o que me
pareceu uma eternidade. Não fiquei
apenas preocupado com as pessoas que
lançavam olhares furtivos para nós. Havia
algo no toque daquela mão que me
causava desconforto. A mão de Malta
Kanô era bem pequena, nem quente nem
fria. Não passava a sensação de
intimidade como a mão de uma namorada
nem exercia uma função como a mão de
um médico. A sensação do contato
lembrava muito o olhar dela: senti como
se eu fosse uma casa vazia, do mesmo
modo como me sentia quando era
observado fixamente por ela. Uma casa
sem móveis, sem cortina e sem carpete.
Uma casca oca. Até que Malta Kanô
afastou a sua mão da minha e respirou
fundo, antes de assentir algumas vezes
com a cabeça.
— Sr. Okada — começou ela —, várias
coisas vão acontecer com o senhor de
agora em diante. Prevejo que o caso do
gato seja apenas o começo.
— Várias coisas? Coisas boas ou
ruins?
Malta Kanô inclinou um pouco a
cabeça, como se meditasse.
— Coisas boas e coisas ruins. Às
vezes, coisas boas à primeira vista podem
se revelar ruins e vice-versa.
— Parece uma afirmação genérica
demais. Não pode me passar alguma
informação mais concreta?
— O senhor sugere que minha
afirmação é genérica, mas muitas vezes a
essência das coisas só pode ser explicada
de maneira genérica — respondeu Malta
Kanô. — Gostaria que entendesse isso, sr.
Okada. Não somos videntes nem profetas.
Só podemos falar de coisas bem vagas
como essa. Muitas vezes as coisas vagas
são obviedades que nem precisariam ser
ditas de tão estereotipadas e banais, mas,
para ser sincera, só conseguimos seguir
adiante assim. É verdade que as coisas
concretas podem chamar mais atenção,
mas a maioria não passa de trivialidade,
como rodeios desnecessários, por assim
dizer. Quanto mais longe lançarmos o
olhar, mais genéricas as coisas ficam.
Eu assenti em silêncio. Naturalmente,
não entendi nada do que aquela mulher
acabava de dizer.
— Posso voltar a ligar para o senhor?
— perguntou Malta Kanô.
— Pode — concordei.
Na verdade, não queria que ninguém
mais me ligasse. Só que não tinha
alternativa a não ser responder “pode”.
Ela apanhou rapidamente o chapéu
vermelho de vinil da mesa, a bolsa
escondida debaixo e se levantou.
Permaneci sentado, sem saber o que fazer.
— Vou falar só de uma banalidade —
sentenciou Malta Kanô, ao botar o chapéu
vermelho na cabeça, olhando para mim do
alto. — O senhor vai encontrar a gravata
com bolinhas em algum lugar fora de casa.
4.
A torre mais alta, o poço
mais fundo, ou bem longe
de Nomonhan
P.S.:
Tente imaginar até a próxima carta onde
estou e o que estou fazendo, o.k.?
8.
Noz-Moscada e Canela
Noz-Moscada e eu conversávamos
frente a frente no restaurante de sempre,
na mesma mesa. Quem pagava a conta era
sempre ela. A parte dos fundos era
cercada por divisórias, de modo que
nossa conversa não chegava até o salão e
as conversas das mesas do salão não
chegavam até nós. Como não havia
rotatividade de fregueses na hora do
jantar, podíamos conversar com calma até
o restaurante fechar, sem sermos
incomodados. Os garçons também
procuravam não se aproximar da nossa
mesa, a não ser para servir os pratos. Ela
normalmente pedia uma garrafa de vinho
da Borgonha, de um ano específico. E
sempre deixava a metade.
— Pássaro que dá corda? — perguntei,
levantando o rosto.
— Pássaro que dá corda? — repetiu
Noz-Moscada. — Não sei do que você
está falando. O que é isso?
— Mas a senhora acabou de falar do
pássaro que dá corda.
Ela balançou a cabeça em silêncio.
— Ah, é? Não lembro. Acho que não
falei nada sobre pássaro.
Desisti. Eram sempre assim as histórias
que ela contava. Também não perguntei
nada sobre o hematoma da bochecha do
veterinário.
— Então a senhora nasceu na
Manchúria?
Ela balançou a cabeça, mais uma vez.
— Nasci em Yokohama e, aos três
anos, fui levada para a Manchúria pelos
meus pais. Meu pai era professor de uma
escola de veterinária e, quando a escola
teve que mandar alguém para assumir
como veterinário-chefe de um zoológico
que seria inaugurado em Hsinking, ele se
candidatou. Minha mãe não queria
abandonar a vida no Japão para ir a um
fim de mundo como a Manchúria, mas meu
pai insistiu. Talvez não quisesse seguir
carreira de professor no Japão, talvez
almejasse ver com os próprios olhos um
mundo mais amplo. Para mim, como eu
ainda era pequena, não fazia diferença
morar no Japão ou na Manchúria. De
qualquer maneira, eu adorava a vida no
zoológico. Meu pai vivia impregnado com
um cheiro de animais, de vários animais,
e todo dia havia pequenas variações,
como a combinação de um perfume que
mudasse todos os dias, um pouco de cada.
Quando meu pai voltava para casa, eu
sempre me sentava no colo dele para
sentir esse cheiro.
“Porém, quando o Japão começou a
ficar em desvantagem e a situação ao
redor se tornou perigosa, meu pai
resolveu mandar minha mãe e eu para o
Japão. Nós duas fomos de trem de
Hsinking à Coreia, ao lado de outras
pessoas, e embarcamos no navio
providenciado especialmente para os
civis que voltavam para o Japão. Meu pai
ficou sozinho na Manchúria. A última vez
que nos vimos foi na estação de Hsinking,
quando ele acenou para nós. Lembro que
coloquei a cabeça para fora da janela do
vagão e fiquei observando meu pai ficar
cada vez menor, até desaparecer em meio
à multidão da plataforma. Ninguém sabe o
que aconteceu com ele depois. Acho que
se tornou prisioneiro do Exército
soviético que invadiu a Manchúria, foi
levado para a Sibéria para trabalhos
forçados e morreu por lá mesmo, assim
como tantos outros japoneses. Deve ter
sido enterrado numa região fria e
desolada, sem lápide, e seus ossos
continuam enterrados lá.
“Eu me lembro como se fosse hoje do
zoológico de Hsinking, de ponta a ponta.
Consigo visualizar mentalmente cada
detalhe. Cada trilha, cada animal. A casa
onde morávamos ficava dentro do
zoológico e, como todos os funcionários
me conheciam, eu tinha passe livre para
entrar em qualquer local. Mesmo nos dias
em que o zoológico estava fechado.”
Noz-Moscada fechou os olhos de leve e
vislumbrou o zoológico mentalmente.
Permaneci calado e aguardei a
continuação da história.
— Bom, mas por algum motivo eu não
tenho certeza se, na realidade, o
zoológico era mesmo como lembro. Como
posso explicar, às vezes a lembrança me
parece vívida demais. Quanto mais a
fundo penso na questão, menos consigo
saber até onde é realidade e até onde é
fruto da minha imaginação. É como se eu
estivesse perdida num labirinto. Você já
passou por isso?
Não, nunca passei por isso.
— Esse zoológico ainda existe em
Hsinking?
— Não sei — respondeu Noz-
Moscada, tocando a ponta do brinco com
o dedo. — Ouvi dizer que o zoológico foi
desativado completamente depois da
guerra, mas não sei se essa situação ainda
persiste.
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Kafka à beira mar
Murakami, Haruki
9788579621406
576 páginas