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Momentos Íntimos

Amar, meu pecado


(Spinster’s song)
Parris Afton Bonds
Momentos Íntimos n° 05

Eles se consomem no mesmo fogo, derretem-se no mesmo desejo


Um desejo incontrolável brilha nos olhos castanhos de Rafe Anaya. Indefesa naquele fim de
mundo, Mary Margulies não tem a quem apelar...
Ela é virgem. Nenhum homem jamais a tocou como faz agora esse fazendeiro diabólico: Rafe
retira-lhe o vestido, a minúscula calcinha... Mary tem consciência de que sua intimidade vai ser
invadida!
Excitada, ela não pensa em mais nada. Rafe que a mate de prazer, agora!

Digitalização e Revisão: Nelma


CAPITULO I

Os dois homens estavam debaixo de um toldo de lona ao lado de uma tienda cor de
mostarda, uma pequena barraca que vendia mantimentos. Observaram quando um Mustang
passou pela rua principal de Kingdom Cone. Embora ainda não fossem dez horas da manhã,
o calor forte de junho distorcia as imagens refletidas nas vidraças das lojas espalhadas ao
longo das calçadas.
O mais baixo dos dois homens que estavam sob o toldo comentou com o outro:
— A doutora és uma soltera, Rafe.
Rafe era alto, bronzeado, com um rosto de feições fortes e másculas, revelando sua
descendência espanhola. Seus olhos eram de um tom incomum, castanho-escuros, raiados
de dourado. Seu bigode alourado refletia o sol matinal daquela região no oeste do Texas; um
sol vermelho e ainda baixo no horizonte.
As mesmas superstições de sempre a superar, pensou Rafe, desanimado. O tempo
não havia mudado seu povo, e o progresso parecia algo distante dali.
O fato do novo médico local ser uma mulher não afetava tanto as pessoas quanto o
fato dela não ser casada. Una soltera. A doutora encontraria dificuldades em se firmar
profissionalmente em Kingdom Come, e o futuro promissor que o Serviço de Assistência de
Longo Alcance esperava levar às fazendas e chácaras daquela região talvez ainda
demorasse.
— Verei a doutora mais tarde, Vicente.
— Eu sei que você vai, Rafe. Você não é do tipo que deixa de lado una bonita mujer,
eh, comprade?
Então a doutora não era apenas solteira, mas bonita também. Com uma ponta
crescente de interesse, Rafe ajeitou melhor seu chapéu. Ele era um homem louco por
mulher. E isso às vezes lhe causava problemas. Mas, com Bárbara Sue, com quem Rafe
passara a noite anterior fazendo amor, não havia por que se preocupar. Ela era diferente; só
queria carinho e não exigia fidelidade.
— Droga!
Mary Margulies lembrou-se de que deixara a porta de tela trancada a chave. Olhou
indecisa para a pequena banheira cheia de água. Água fria, uma vez que o aquecedor não
estava funcionando. Se bem que um banho frio viria a calhar para o seu corpo suado e
cansado de carregar enormes caixas durante a mudança.
Mas o leiteiro prometera deixar duas garrafas de leite em sua geladeira naquela tarde.
Se ele encontrasse a porta fechada, deixaria o leite do lado de fora e este azedaria devido ao
calor sufocante. Com relutância, Mary renunciou ao banho imediato, enrolou-se numa
minúscula toalha e dirigiu-se para a porta de tela.
Caixas vazias de papelão atulhavam o chão da cozinha estreita. Além das caixas, a
cozinha estava abarrotada de panelas, frigideiras, louças e talheres que, empilhados,
chegavam quase até as pesadas traves de madeira no teto, chamadas de vigas. Abrindo
caminho por entre a bagunça geral, Mary destrancou a porta de tela.
Lá fora, a claridade do sol machucava os olhos, e os gafanhotos zumbiam sua
interminável canção de verão. Nuvens de poeira levantavam-se da estrada de terra e
desapareciam pelos canais de irrigação que serpenteavam pelo vale até sumirem de vista
junto às montanhas da Sierra del Hueso, no lado mexicano do Rio Grande. A paisagem era
sempre a mesma, até onde os olhos alcançavam.
Mary não estava segura de conseguir passar seis longos e solitários meses num lugar
tão deserto e empoeirado. Mas, de um jeito ou de outro, teria que conseguir. O Serviço
Nacional de Saúde jamais permitiria que alguém deixasse de cumprir o estágio de dois anos
em pagamento às bolsas de estudo. Este estágio consistia em mandar o bolsista para áreas
que tinham falta de assistência médica, geralmente comunidades pobres e em regiões
distantes dos grandes centros. Graças ao seu interesse na área de nutrição de mulheres
grávidas, Mary passara um ano e meio fazendo pesquisas a esse respeito no Hospital Militar
Walter Reed.
Mas a meia-noite chegara para a Cinderela. Ela teria que servir seus últimos seis
meses na fronteira do Texas, num lugar quente, árido e vazio. A fronteira lhe lembrava os
campos de petróleo do Novo México, onde ela passara a infância; aliás, uma infância não
muito agradável.
Seu consolo era saber que poderia ter sido mandada para estagiar no dispensado de
uma prisão ou em alguma clínica de doenças do pulmão nos Apalaches. Pelo menos, em
Kingdom Come, Mary supunha que as mulheres teriam filhos, e o milagre do nascimento
era algo que sempre a emocionava e comovia.
Kingdom Come parecia ter sido abandonada entre duas escarpas íngremes das
montanhas. A cidade, de apenas cinco mil habitantes, se localizava num estreito vale isolado
e fértil, criado pelo Rio Grande.
A maioria dos moradores de Kingdom Come eram de origem mexicana e, por
timidez, evitavam encarar a doutora. Desde sua chegada à cidade, Mary só conversara com
o obeso espanhol que possuía o cargo de agente postal de uma tienda, de onde a
correspondência era distribuída. Ele lhe havia indicado a direção da antiga Hacienda
Encantada e o alojamento do capataz, que a médica pretendia alugar. E num gesto de
camaradagem, Vicente se ofereceu também para mandar o leiteiro até lá mais tarde.
Mary havia atravessado a ponte de pedra, arqueada sobre um canal de irrigação e que
levava à Hacienda Encantada. Depois, descera a estrada de terra para estacionar seu
Mustang sob uma das velhas árvores próximas ao pequeno alojamento, feito de tijolo cru.
Por um longo e desalentador instante, ela ficara parada ao sol, apenas observando a
construção meio rachada pelo calor, com suas paredes rosadas e janelas azul-turquesa.
No fim da estradinha de terra ficava a casa principal, uma construção pintada de rosa-
claro, mas meio suja por causa da poeira. Era uma casa grande e imponente. Mary esperara
que o dono da hacienda fosse estar lá para recepcioná-la, ou talvez alguém do Serviço das
Missões Católicas, mas ninguém apareceu.
A Missão Santo Tomás, uma das mais antigas dos Estados Unidos, havia pedido ao
Serviço Nacional de Saúde que mandasse um médico para a comunidade rural de Kingdom
Come. O Serviço das Missões Católicas concordara tanto em arranjar uma casa que ela
pudesse alugar, quanto em reformar a abandonada instalação do curtume local, que serviria
de consultório.
O Serviço Nacional de Saúde esperava que Mary se afeiçoasse à região e aos seus
moradores e continuasse a clinicar lá permanentemente.
Mas a médica tinha outros planos. Mandara seu currículo para o Complexo Médico
Scott-Waggoner, uma instituição de prestígio em Washington D.C. Uma carta do diretor do
Departamento Pessoal do Complexo Médico a informara de que ela era uma das médicas
sob consideração final de admissão, dependendo apenas do sucesso de seus últimos seis
meses de estágio. Se conseguisse esse emprego, Mary passaria a receber um excelente
salário para uma médica recém-formada. Salário alto o suficiente para terminar de pagar os
estudos de sua irmã e irmão mais novos, que há muito tempo dependiam dela.
Será que Amy já estava namorando? Idade para isso ela possuía, pois era uma moça
de dezoito anos. Mas Amy, que resolvera seguir os passos da irmã mais velha e estudar, na
certa não se envolveria com o amor antes de terminar o colégio. A garota pretendia estudar
medicina também e ajudar a acabar com a ignorância e as doenças dos menos privilegiados.
E Billy, por que não escrevia com mais freqüência? Embora fosse um ano mais velho
que Amy, não parecia tão certo a respeito do que gostaria de fazer no futuro. E se o rapaz se
envolvesse com drogas, assim como Sam, o mais velho dos irmãos? Todos os conselhos
dados por Mary ao irmão não haviam sido capazes de evitar a morte dele por uma dose fatal
de tóxico. E havia Michael, que estava na prisão por homicídio e, oh Deus, os outros... os
irmãos e irmãs que haviam morrido cedo por causa de desnutrição ou então enviados para
lares adotivos.
Ao todo haviam sido nove irmãos. Uma família órfã de pai e que perdera a mãe
quando Mary tinha apenas dezesseis anos.
O barulho de um veículo se aproximando afastou Mary de suas tristes lembranças. O
automóvel parou e alguém abriu a porta para descer.
"O leiteiro!", imaginou ela.
Passando por cima das caixas espalhadas pelo chão, Mary procurou se esconder no
primeiro abrigo à vista: no quartinho do aquecedor de água. Prendendo a respiração, ela se
sentiu uma tola. Quem confiaria a própria saúde aos cuidados de uma mulher que se
escondia seminua num quartinho escuro?
As dobradiças da porta de tela rangeram, e uma voz masculina forte e grave com
ligeiro sotaque mexicano chamou-a:
— Dra. Margulies?
Mary mordeu os lábios. Tentou enxergar seus pés na escuridão do pequeno quarto,
enquanto pedia em silêncio: "Por favor, ponha o leite na geladeira e vá embora!”
De repente, a porta de onde ela estava escondida se abriu. Horrorizada, ergueu seus
olhos acinzentados, bem devagar, e deparou com um rosto viril e muito, muito atraente.
Uma paralisia total tomou conta de seu corpo. Uma mecha ruiva e encaracolada de
seu cabelo escapou do coque e caiu-lhe sobre o nariz pequeno e delicado, que ainda
conservava algumas sardas da infância. Mary agarrou a toalha com toda a força e soprou a
mecha de cabelo para o lado.
Acima de um bigode de bandido, os olhos do homem brilhavam como as areias do
Texas banhadas pelos raios do sol, estupefatos.
Depois de se estudarem por alguns minutos, ambos chocados, o homem pareceu
recuperar o dom da fala:
— Dra. Margulies? Bem... Olá.
Suas palavras soaram zombeteiras e divertidas, tanto quanto o seu olhar.
Ao se sentir observada no estado em que estava, quase nua, Mary arrepiou-se. O
homem era tão alto e forte que ocupava quase toda a abertura da porta.
— O que... O que você está fazendo aqui? — perguntou ela com voz trêmula.
— Eu vim consertar o aquecedor de água.
— Eu estava esperando o leiteiro.
— Claro. Eu voltarei numa hora mais oportuna — disse o homem com polidez, mas
sem esconder um sorriso por debaixo do bigode.
Ele fechou a porta do quartinho com firmeza e, após alguns segundos, a encabulada
doutora ouviu a porta de tela ser fechada e um carro se afastar. Os joelhos dela tremeram e o
suor escorreu por suas costas.
— Droga! Como é que isso foi acontecer comigo; logo eu que prezo tanto a
dignidade? Droga!
CAPITULO II

O padre John, um homem expressivo e alegre, parado em frente às altas portas de


madeira entalhada da Missão, apontou na direção do curtume reformado. Lá seria a futura
clínica.
O sol queimava sem piedade a cabeça de Mary, dando-lhe a impressão de estar
derretendo, de tanto calor. Depois de um ano e meio em Washington D.C., ela já havia
esquecido como o deserto podia ser inclemente, tornando difícil até mesmo o ato de
respirar. E o pior do verão ainda estava por vir, uma vez que ainda era o mês de junho.
Numa decisão acertada, Mary prendera o cabelo num rabo-de-cavalo, mas algumas
mechas úmidas de suor já haviam se soltado. Para enfrentar o calor, ela vestira uma saia e
blusa amarelo-claro.
Na certa o padre John devia estar torrando dentro da sua batina preta e de colarinho
alto e justo. Mas, sob uma nuvem de cabelos brancos, o padre de rosto enrugado sorria com
jovialidade, como se o calor não o afetasse.
Será que o humilhante incidente da tarde anterior já circulara pela cidade? Não
causaria boa impressão aos cidadãos de Kingdom Come saber que a médica fora vista nua,
escondida no quartinho do aquecedor. Só de pensar no acontecido Mary sentiu-se corar.
— Vai levar algum tempo até você se acostumar com o clima do deserto, minha filha
— disse o padre John, julgando que ela ficara vermelha por causa da alta temperatura local.
— Rafael Anaya já deve ter consertado o refrigerador de ar do curtume, e você poderá sair
deste sol escaldante. Eu gostaria de lhe poder ser mais útil, mas a idéia de entrar em contato
com o Serviço Nacional de Saúde para trazer um médico para Kingdom Come foi de Rafael.
Por isso eu estou deixando que ele se ocupe de todos os detalhes. Mas acho que ninguém,
muito menos Rafael, esperava por um médico do sexo feminino.
O curtume ficava numa rua secundária e empoeirada, um pouco anti-higiênico para
uma clínica. As mimosas rosadas e os salgueiros graciosos formavam uma espécie de
barreira de proteção contra as ocasionais tempestades de areia da região. O interior do
curtume, vazio de móveis, exceto por uma velha mesa de recepção, estava limpíssimo.
Mary não sentiu cheiro de desinfetantes e ficou contente, pois sabia que o odor forte
desses produtos incomodava os pacientes. Em vez disso, a sala de recepção rescendia a
couro e a cal.
Dos fundos do curtume vinha o som de alguém a martelar, e ela seguiu o barulho até
chegar a uma enorme sala. Ali estava um homem, de costas, ocupado em bater um prego
num tapume de madeira que dividiria a sala em duas.
Ele estava sem camisa, e o suor escorria por seus ombros fortes. Mary não sabia se o
lindo tom bronzeado da pele do homem era devido ao sol ou à herança hispânica. O cabelo
aloirado e encaracolado descia-lhe pela nuca.
— Sr. Anaya?
O som do martelo encobriu a voz suave de Mary, que resolveu aproximar-se mais
para se fazer ouvir. Quando ele parou o que fazia para pegar mais um prego, os saltos dos
sapatos de Mary bateram no chão e o barulho ecoou na sala vazia. O homem olhou por
sobre seus ombros e ela ficou estarrecida ao ver os olhos raiados de dourado naquele rosto
viril.
— Não pode ser! — exclamou Mary.
Era o mesmo sujeito que a encontrara escondida no quartinho do aquecedor! Ele não
deu mostras de reconhecê-la, pelo que ela se sentiu muito grata. Rafe deu um sorriso
sensual, ao mesmo tempo que a observava de alto a baixo e dizia:
— Você é a Dra. Margulies.
— Sim, sou. É... você quem está coordenando o programa do Serviço Nacional de
Saúde aqui?
Ele afastou algumas mechas de cabelo suado e passou a mão sobre o bigode, antes de
responder:
— Isso é o que o padre John gosta de dizer por aí.
Como se essa frase explicasse tudo, ele apanhou sua camisa azul desbotada que
estava em cima de um serrote e vestiu-a.
— Desculpe por eu ainda não ter terminado a reforma na sua clínica, doutora, mas é
que o S.N.S. não nos informou a data exata da sua chegada.
Mary, num estado de estupefação completa, não conseguiu assimilar tudo o que ele
lhe dizia e apenas acenou afirmativamente com a cabeça quando o ouviu acrescentar:
— Que tal uma xícara de café? Eu lhe contarei algo sobre a cidade e seus habitantes
enquanto esperamos que o refrigerador de ar abaixe a temperatura deste "ex-curtume".
Quando Rafe a pegou pelo braço, Mary percebeu que a sua temperatura é que
precisava ser abaixada. Ela não tinha certeza se sua reação era causada pelo fato dele tê-la
visto nua ou simplesmente por ele ser um homem tão atraente.
Incrível! Mary se sentia como uma colegial entrando em contato com o primeiro
rapaz da sua vida. Ela não podia perder a cabeça e o coração por um homem justo quando
sua carreira estava começando! Lembrou-se da mãe trabalhando como uma louca para
manter a família unida, até o dia de sua morte. Lembrou-se também de que precisava ganhar
dinheiro para ajudar Billy e Amy... pois os outros seis irmãos já estavam perdidos.
O Oásis Restaurant era uma cabana do tempo da Segunda Guerra Mundial,
reformada, cercada de palmeiras e iucás eriçadas. Embora não fosse hora do almoço,
vaqueiros, desordeiros e ferroviários lotavam o recinto. Rafe encontrou um lugar para dois
no canto mais sossegado do salão, cujas paredes eram cobertas por cascas de árvores.
Cascas de coco cortadas ao meio serviam de castiçais e enfeitavam as mesas. A iluminação
ambiente, puxando para o escurinho, deixava perceber que as toalhas azuis estavam limpas e
engomadas.
Rafe acenou para uma garçonete adolescente e gorducha, que se aproximou do casal.
Ele pediu chá quente para si mesmo, o que surpreendeu Mary. Com aquele chapéu surrado e
bigode de bandido, ele parecia mais o tipo "cerveja gelada" dos comerciais de televisão.
Assim que a garçonete se foi, Rafe tirou um maço de cigarros do bolso e ofereceu um a
Mary, que recusou com delicadeza.
Em lugar de um cigarro, bem que ela preferiria um comprimido antiácido. Engraçado
como depois de tantos anos seu estômago voltava a incomodá-la. O homem sentado à sua
frente, com certeza, era um fator que contribuía para sua azia. Mary tentou calcular a idade
dele. No mínimo uns trinta anos, ou mais, se seus olhos servissem como indicação. Em suas
profundezas douradas brilhava uma vasta experiência, na qual provavelmente haveria muita
participação feminina...
Desdobrando o guardanapo em seu colo, Mary quebrou o silêncio, comentando:
— Não consigo imaginá-lo trabalhando para uma igreja.
— Eu não trabalho. Mas já fui um dos coroinhas.do padre John.
— Isso é algo difícil de imaginar.
— Talvez porque eu não tenha um ar angelical.
— Mas você está ajudando o padre John. Por quê?
— Depois de lutar no Vietnã e em outros países, eu me cansei de tudo que havia
visto... e feito. Eu queria a paz e o anonimato de um lugar tranqüilo, outra vez. Padre John
me ajudou quando voltei para cá, e agora estou retribuindo. E posso afirmar que o padre
depende de mim mais do que deveria.
— Mas se não trabalha para a Missão, posso saber o que você faz?
— Digamos que sou um agricultor. Planto algodão. Aliás, sou o proprietário do lugar
que está alugando, Dra. Margulies.
— Então é por isso que foi até lá ontem, consertar o aquecedor?
— Exato! E você, sempre se veste daquele jeito para esperar o leiteiro? — perguntou
Rafe, rindo.
— Por que quer saber uma coisa tão indiscreta?
— Bem, você estava vestida de modo muito "indiscreto".
— Por favor, não precisa ficar me lembrando. Eu reagi de maneira infantil a uma
situação embaraçosa. Posso assegurar que aquilo não acontecerá de novo.
— Acho bom. Nós não poderíamos mesmo continuar nos encontrando daquele jeito,
Dra. Margulies.
Mary conscientizou-se de repente de que era uma mulher, fato que reprimira por
tanto tempo que até se esquecera da sensação de ser cortejada. Uma sensação perigosa como
o homem que lhe fazia companhia naquele restaurante...
Aproveitando a chegada da garçonete, ela se recompôs e procurou mudar de assunto,
enquanto adoçava seu café com um produto dietético. Aos trinta e cinco anos, manter
cinqüenta e dois quilos não era uma tarefa fácil.
— Fale-me sobre Kingdom Come, sr. Anaya.
— Você apreciará o clima daqui quando se acostumar. As noites são frescas e a baixa
umidade do ar modera o calor durante o dia. Os invernos são breves e o sol deixou de
brilhar apenas trinta e nove dos últimos 6.586 dias.
Mary não pôde evitar um sorriso. O homem tinha senso de humor, afinal. E mãos
muito bonitas, com dedos longos e poderosos.
— Kingdom Come está a uma hora e meia de viagem de El Paso e Juarez, e a três
horas das rampas de esqui de Cloudcroft.
— Conte-me mais, Sr. Anaya.
— Seu rosto oval é lindo, doutora. Seus olhos são deslumbrantes e as suas sardas
adoráveis.
— Sabia que eu sou imune a paqueras?
— Pelo menos eu tentei, não?
— Que tal voltarmos a falar de Kingdom Come?
Rafe suspirou, resignado, e continuou com sua conversa de guia turístico.
— A comunidade, originalmente, fazia parte de uma missão espanhola. Mas, quando
o Rio Grande teve seu curso mudado, ela passou a pertencer ao Texas. Os aventureiros em
busca de ouro, os jogadores e as "damas da noite" a caminho da Califórnia, os fazendeiros
americanos e criadores de gado que vieram junto com a estrada de ferro chamaram este
lugar de Kingdom Come porque...
— Porque se parecia com o fim do mundo, estou certa?
— Certíssima. — concordou Rafe, rindo.
— E as pessoas daqui? Como são?
— Como eu ia dizendo: fazendeiros, agricultores, alguns desordeiros e biscateiros.
Mas a maioria é composta de trabalhadores migrantes.
— Então a minha clínica terá bastante movimento.
— Receio que não.
— Mas... Por quê?
— Você vai enfrentar uma barreira de preconceitos, Dra. Margulies. Os habitantes de
Kingdom Come procuram a curandera para tratar das suas doenças.
— Curandera?
— Sim. Ela cura as pessoas através da fé, simpatias e ervas. Há americanos, claro,
que estão aqui desde os velhos tempos. Mesmo os mais jovens vêm de famílias que se
estabeleceram aqui no fim da Guerra Civil. Você, Dra. Margulies, é uma forasteira, uma
intrusa nesta cidade. Além de ser mulher. Ninguém vai considerá-la uma médica "de
verdade". Quando ficarem doentes, os cidadãos de Kingdom Come irão procurar a
curandera ou os médicos de El Paso.
— Duvido que deixem de me procurar numa emergência, Sr. Anaya.
— Não afirme o que não sabe. Você está na cidade há apenas vinte e quatro horas. E
eu gostaria de avisá-la de que está sendo chamada de la soltera por aí... solteirona...
Mary arregalou os olhos, surpresa. Uma solteirona e provavelmente fofoqueira; era
isso o que pensavam dela? Uma velha?
— Eu sou solteira por opção, Sr. Anaya.
— Não discordo, doutora.
Ela não precisou acrescentar que havia tido muitas oportunidades de mudar seu
estado civil. Modéstia à parte, sabia que era uma mulher bonita e atraente. Mas não gostava
de namoricos. Preferia se dedicar aos seus pacientes e ser querida por sua inteligência,
honestidade e capacidade profissional.
Durante o curso de medicina, Mary fora muito requisitada e cortejada por colegas e
professores. Sua aura de orgulho, no entanto, desagradara os seus pretendentes, que a
consideravam uma esnobe. Ela achava isso divertido. Mary Margulies, a pobretona, uma
esnobe!
— Venho tomando conta de mim mesma há muito tempo. Desde os seis anos, para
ser exata. No verão em que fiz dez, lutei com um moleque de rua pelo direito de entregar
jornais nas casas. Eu lhe asseguro que sou capaz de lidar com situações difíceis, Sr. Anaya.
CAPÍTULO III

La Jean Dodson deu um passo para trás e examinou a parede recém-pintada,


comentando:
— Uma obra de arte, eu diria.
Mary limpou as mãos sujas de tinta na sua calça jeans manchada. Apesar dos
psicólogos dizerem que verde-claro, por seus efeitos calmantes, era a cor ideal para
hospitais e clínicas, ela não partilhava da mesma opinião. Achava o verde-claro um pouco
deprimente, por isso escolhera azul-celeste para pintar seu consultório.
— Você deve estar vendo alguma coisa que eu não vejo, La Jean. — disse a médica,
sorrindo para a sua recepcionista.
Na semana anterior Mary colocara um anúncio no jornal local, uma pequena edição
semanal, e se desesperara ao pensar que ninguém responderia. E então apareceu La Jean
Dodson, uma mulher alta, de peito chato e cabelo alaranjado em estilo "afro". Essa mulher
de trinta e cinco anos havia se mudado de El Paso para Kingdom Come há três anos porque
achara melhor criar seus dois filhos numa cidade menor.
Através de La Jean, Mary descobrira que na região existia uma diminuta comunidade
de classe média; uma comunidade repleta de times infantis de beisebol e casas confortáveis.
— Quando vi o seu anúncio no jornal, eu imediatamente pedi demissão do meu
emprego no "Orgulhoso Solitário", onde servia as mesas. Portanto você não pode me
rejeitar, a não ser que não se importe de ver as minhas crianças morrerem de fome —
dissera a mulher de cabelo "afro", sorrindo.
Nem por um minuto Mary pensara em recusá-la. Gostara de La Jean à primeira vista.
E, além do mais, ela também já trabalhara servindo mesas, e sabia o quanto aquele serviço
podia ser desagradável.
Embora o problema de arrumar uma recepcionista estivesse resolvido, outras
preocupações começaram a encher a cabeça de Mary: como pagar o salário da recepcionista,
a instalação dos equipamentos para a clínica? Isto sem falar no pagamento das prestações do
Mustang, nas contas de gás, água, luz, mais o dinheiro que teria de mandar para Amy e Bill.
Duas semanas haviam se passado desde que Mary abrira a clínica, mas nenhum
doente aparecera para se tratar. A perspectiva de manter um consultório particular pelos
próximos seis meses era desanimadora. Por sorte, o Serviço de Assistência de Longo
Alcance iria contribuir todos os meses com uma taxa mínima de subsídio.
— Muito bem, La Jean, temos uma clínica e nenhum paciente. Você tem alguma
sugestão?
— Nós poderíamos importar a peste bubônica. Ela está fazendo sucesso no Novo
México.
— As pessoas daqui com certeza prefeririam morrer no meio da rua do que vir nos
procurar — argumentou Mary, enquanto erguia uma pesada caixa de medicamentos para
levar para a outra sala.
— Não, doutora, a maioria iria atrás dos remédios de Josefita, a curandera. Os ricos
iriam para El Paso.
— Foi isso o que o Sr. Anaya me disse.
— Isso significa que você já se encontrou com o solteirão mais cobiçado de
Kingdom Come! Não há uma mulher por aqui capaz de resistir aos encantos dele, ou que
queira resistir, devo acrescentar. Rafe é um sujeito danado de bonito, não?
— Eu estava tão cansada a semana passada que nem reparei. O Sr. Anaya poderia ser
irmão gêmeo do Paul Newman que eu não notaria.
— Com o charme que tem, mesmo se ele fosse corcunda as mulheres continuariam a
se sentir atraídas! Inclusive eu.
Mary surpreendeu-se, pois sabia que La Jean estava saindo com um dos patrulheiros
da fronteira, Eddie Williams; um homem que, segundo a recepcionista, era um presente dos
deuses para o gênero feminino.
— De qualquer modo — continuou La Jean —, se Rafe tem uma corcunda
escondida, Christina Anderson não está reclamando. Talvez ela até mesmo goste...
— De Rafe ou da corcunda?
— Dos dois! Você sabe como são essas garotas ricas e mimadas.
— Não, não sei. Nunca tive muito contato com os "privilegiados da vida". E quem é
Christina Anderson?
— Ufa! Pensei que você não fosse perguntar nunca. Bem, o pai dela é um magnata,
nada em dinheiro. Possui um jornal, é presidente de um banco, e tem várias fazendas
espalhadas pelo vale.
— E Christina?
— Ela tem vinte anos, mas se envolve com homens desde os treze: é muito bonita,
uma beleza escandinava. Quanto a Rafe, desistiu da carreira militar e voltou a Kingdom
Come e à sua Hacienda Encantada.
Um soldado! Isso explicava a aura misteriosa que envolvia o homem. Mary já sabia
que Rafe não era um mero fazendeiro de algodão. A Hacienda Encantada fazia parte de
uma fazenda de mil e duzentos hectares. Mas uma coisa intrigava Mary: durante a semana
ela vira o homem loiro trabalhando nos campos, junto com os chicanos de pele morena.
Por que ele se misturava aos trabalhadores comuns se, obviamente, era um homem
importante dentro da comunidade? Que sujeito estranho; era ao mesmo tempo um playboy e
um trabalhador. Um ex-soldado que virará fazendeiro. Um homem arrogante e charmoso.
"Chega de pensar em Rafe", decidiu Mary, juntando seus apetrechos médicos e
dirigindo-se para a porta.
— Vou até em casa trocar de roupa, La Jean. E se a montanha não vai a Maomé,
Maomé vai à montanha.
— O que é que você está querendo dizer com isso, Mary?
— Que eu vou cuidar das pessoas deste vale, quer elas queiram, quer não.
— Não vão querer.
— Não faz mal. E atenda o telefone para mim, está bem?
— Se ele tocar...
— Ora, muito obrigada pelo seu otimismo!
— Foi só uma brincadeira. E cuidado com a Patrulha da Fronteira!

O sol queimava suas costas e suas pernas doíam por causa da posição incômoda,
agachada, que o fazia lembrar-se da cela de bambu que ocupara por três semanas em Dnem
Nou, Vietnã. Ele se levantou e esfregou o pescoço suado, enquanto os fazendeiros e os
trabalhadores esperavam que a "aula" continuasse.
Rafe não sabia por que se oferecera para ensinar aos agricultores métodos de plantio
de algodão. Talvez fosse uma forma de aliviar um pouco a miséria humana que vira em
tantos países subdesenvolvidos do terceiro mundo.
Agachando-se de novo, ele pegou uma muda de algodoeiro e mostrou aos homens
como fixá-la ao solo sem danificar as raízes, dando as explicações em castelhano, por causa
da maioria mexicana dos trabalhadores.
Quinze minutos mais tarde, quando Eddie estacionou o jipe da Patrulha da Fronteira
no acostamento da estrada, Rafe resolveu que já trabalhara demais. Dispensou os homens e
foi encontrar-se com o seu amigo. Eddie era tão alto quanto ele, mas tinha cabelos lisos e
castanhos e olhos de um azul profundo.
— Ei, Rafe, você está com cara de quem precisa de uma cerveja gelada ou de uma
mulher quente. Talvez os dois.
Pensando em Mary Margulies, que não parecia ser nada "quente", Rafe riu baixinho.
— Eu disse algo engraçado?
— Não, Eddie. É que me lembrei de uma piada particular. Vamos nos encontrar no
"Orgulhoso Solitário", daqui a meia hora?
— Não posso, sinto muito. O chefe quer que eu siga uns rastros lá perto do rio ainda
hoje.
Um Mustang passou por eles, levantando uma nuvem de poeira e tomando direção
desconhecida.
— Viu quem passou, Rafe? A doutora solteira! Me disseram que ela é bonita como
um gatinho e fria como um urso polar.
As palavras de Eddie tinham um tom de pergunta, uma vez que as melhores
informações sobre mulheres partiam do seu amigo. Mas este ficou quieto.
— Como é, a médica está na cidade há duas semanas e você ainda não encostou um
dedo nela, amigão?
— Não, e se depender da Dra. Margulies, nem vou, seu patrulheiro fajuto!
"Pelo menos por enquanto", pensou Rafe consigo mesmo, depois de responder ao
outro.

O barrio não passava de uma porção de casas espalhadas pelo leito de um. rio seco.
Ou, melhor do que casas, barracos, construídos com barro amassado, papelão, e cobertos
por chapas de metal. Os barracos eram chamados de jacales, e seus quintais estavam
cobertos de lixo, onde crianças brincavam nuas.
Mary não deveria se surpreender com as condições primitivas do local. Ela mesma
fora muito pobre e nem casa tivera. Ainda bem que os assistentes sociais apareceram e a
levaram. Então Mary fora parar num hospital para curar sua febre reumática e tomou a
decisão de se tornar médica um dia.
Ela desceu do Mustang parado em frente a um jacal quase que escondido por varais
cheios de roupas; encaminhou-se para o barraco sujo e bateu na porta de tela rasgada. Uma
mulher mal vestida atendeu-a, sem abrir a porta.
— Olá. Eu sou a Dra. Margulies. Parei aqui para ver se posso ajudá-la em alguma
coisa. Há alguém doente na sua casa?
A mulher permaneceu muda.
— Posso entrar, sra... ?
Por um momento Mary pensou que não seria recebida, até que finalmente a mexicana
abriu a porta.
— Soy la señora Ofélia Ruiz. Entre.
Dentro do barraco, havia montes de moscas e uma menina descalça. A mulher pôs as
mãos na cintura como quem diz: "O que você quer?"
Um gemidinho baixo chamou a atenção da médica para um caixote em cima de um
sofá desbotado.
— Filhotes de gato? — ela perguntou, querendo ser simpática.
Ofélia Ruiz não respondeu, e quando Mary se aproximou da caixa viu um bebê
dentro dela. A criança era pálida e magra, com certeza desnutrida. Seus olhos amarelados
indicavam, no mínimo, icterícia ou hepatite.
— Posso examinar o seu bebê, señora Ruiz?
A mulher olhou a médica com um ar suspeito.
— Está tudo bem, señora, eu só quero ajudar.
Mas assim que Mary pegou o estetoscópio, a pequena lanterna e a lâmina de baixar
línguas na maleta, Ofélia se assustou de verdade. No entanto, ficou calada até terminar o
exame do bebê.
Mary gostaria de levar a criança para a clínica para fazer um diagnóstico mais
completo, mas sabia que a mãe iria se recusar a ir ao consultório.
— Seu filho precisa se alimentar melhor, señora Ruiz. Ele necessita de comida
adequada. Trarei potes de papinha para bebês da próxima vez que eu vier, está bem?
— Si, soltera.
Soltera, e não doutora. Sentindo-se inútil e magoada, Mary partiu em visita a outros
jacales.
Dirigindo de volta para casa, a delicada médica de cabelos ruivos considerou a
enormidade do trabalho que tinha pela frente: convencer as pessoas que vira em estado
deplorável de saúde a se tratarem. E sabia que apenas com o auxílio da curandera
conseguiria atingir o povo do barrio. Sabia também que precisaria da ajuda de Rafe Anaya
para entrar em contato com a velha Josefita. Rafe era o único que parecia ser aceito tanto
pela civilização moderna quanto pela primitiva.
Assim que chegou à Hacienda Encantada, Mary nem se preocupou em trocar de
roupa. Deixou o Mustang em frente à sua casa e subiu a pé a trilha que levava à casa-sede
da fazenda. Os pedregulhos atrapalhavam seus passos, e ela decidiu tirar os sapatos de salto.
A caminhonete de Rafe não estava à vista, embora um MG branco se encontrasse na
garagem. As janelas da casa não deixavam entrever nenhuma luz acesa. Desencorajada pelo
pensamento de ter de voltar a pé novamente, Mary encostou-se no alto portão de madeira
para recuperar as forças.
No mesmo instante a caminhonete de Rafe apareceu na estrada, e no minuto seguinte
ele alcançou a entrada da fazenda. Desceu do veículo e se aproximou de Mary com uma
graça felina, que a deixou de joelhos bambos.
"É só uma questão de química que faz com que eu me sinta deste jeito", pensou ela.
"E química nenhuma vai me deixar ser atraída por este homem, juro a mim mesma!"
— Tudo bem, doutora?
O pior de tudo era a voz de Rafe: rouca, sensual, com um leve sotaque espanhol.
— Sim... tudo bem. Você pode me dedicar um pouco do seu tempo? Precisamos
conversar.
— Claro! Eu não recuso nada a uma mulher cujos cabelos cheiram a gardênia.
— Sr. Anaya, pare com isso!
— Ok, já parei. Quer entrar?
— Obrigada.
— Você é mais baixa do que eu imaginava, doutora.
— É porque estou sem sapatos. O caminho até aqui está cheio de pedras.
— Então descanse os seus pés, enquanto tomamos cerveja ou chá verde, à sua
escolha.
Acompanhando as palavras, Rafe colocou as mãos nas costas de Mary, que
estremeceu inteira. Para disfarçar sua reação tão evidente àquele toque, ela começou a falar:
— Não sou capaz de imaginá-lo tomando chá verde.
— Este chá não é gostoso, concordo, mas mata a sede melhor do que água. E depois
dos primeiros goles a gente se acostuma com o sabor, doutora.
O modo impessoal como Rafe a chamava de doutora parecia querer desafiá-la a
mostrar seu lado feminino. Neutra. Assim ela havia sido definida certa vez por um rapaz que
a convidara para sair. Após esse comentário, Mary nunca mais aceitara convites de homens,
e passara a manter uma relação platônica com o sexo oposto. De qualquer modo, conseguir
seu diploma fora mais importante na época.
Rafe abriu uma das pesadas portas entalhadas e acendeu uma luz, revelando uma
enorme sala de estar que lembrava uma vila mediterrânea. A decoração, agradável,
misturava com bom gosto o novo e o antigo. Uma parede de vidro dava para um jardim
iluminado pelas primeiras estrelas da noite. O chão de lajotas rústicas estava coberto por um
luxuoso tapete branco e fofo de lã, com as beiradas franjadas. A pintura branca das paredes
realçava o teto escuro, com vigas de madeira. Um perfeito ninho para um solteirão!
— Gostou, doutora?
— Muito. Sorte que você nunca fez nenhum voto de pobreza, ou não poderia morar
aqui.
— Esta casa é uma herança de família, está com os Anaya há uns duzentos anos.
Minha avó me fez prometer que eu nunca a venderia. E, agora, vamos ao chá.
Enquanto o seguia até a cozinha, Mary admitiu que jamais conhecera um homem tão
bonito quanto Rafe. Céus, ele parecia um fauno, um deus da fertilidade!
Os pensamentos dela foram interrompidos assim que pôs os pés na cozinha, grande
como a sala anterior.
Uma brilhante bateria de panelas e utensílios de cobre pendia de uma das vigas e
enfeitava o ambiente com charme. Uma xícara suja de café estava em cima da pia de aço
inoxidável, e envelopes e formulários espalhavam-se sobre a mesa de madeira que ocupava
todo o centro da cozinha. Mary sentou-se numa cadeira com assento de palhinha e observou
seu anfitrião preparar as folhas do chá e colocar uma chaleira com água no fogo.
— É óbvio que você não precisa de uma esposa, Sr. Anaya.
— Mas que afirmação estranha, doutora, partindo de você. Mas tem razão. Eu não
pretendo me casar.
Ela percebeu que Rafe pretendia deixar bem claras suas intenções a respeito de seu
relacionamento com as mulheres, mas não se deixou abater.
— E eu não pretendo ter um marido.
— E por que não?
— Estou feliz com o meu status de solteira.
O que era verdade. Não que ela detestasse os homens, só não os achava
indispensáveis à sua sobrevivência.
Rafe concordou, demonstrando estar satisfeito com aquela opinião. E quando ela
pensou que fosse levar uma cantada, o assunto mudou bruscamente.
— Por que você começou a clinicar tão tarde?
— Está me chamando de velha?
— Não. Mas você tem um pouco mais de idade do que os médicos que estão
começando uma carreira, reconheça.
— A pobreza me impediu de começar a estudar mais cedo. E de vez em quando eu
precisava parar a faculdade para trabalhar e ganhar dinheiro.
— Seus pais não podiam ajudá-la?
— Não tenho pais, Sr. Anaya. Meu pai aparecia e sumia de acordo com a sua boa
vontade. Minha mãe era apaixonada por ele e nunca teve forças para dar um basta na
situação. Ela era italiana, e morreu quando eu tinha dezesseis anos.
Mary poderia ter dito mais: que sua mãe quase não falava inglês, deixando a filha
mais velha se encarregar de conversar com as outras pessoas. Que sua mãe morrera jovem,
de cansaço, de falta de cuidados, de fome.
— Tenho a impressão de que você teme relações com o sexo oposto, doutora.
— Pois está enganado, Sr. Anaya.
— Você me chama de "Sr. Anaya" para se sentir segura comigo, não?
— Eu poderia dizer o mesmo de você e do seu "doutora".
— Ah! Mas se eu a chamasse pelo primeiro nome, você de imediato correria a se
esconder atrás da sua fachada fria e profissional. Pode negar isso, Mary? Viu só? Eu usei o
seu primeiro nome e você corou como uma adolescente.
— O... o chá não está pronto?
— Quer fugir da raia? Por mim, tudo bem. Aliás, como foi a sua visita ao barrio!
— Como sabe que eu visitei o barrio! — indagou ela aceitando uma xícara de chá.
— As pessoas do vale sabem de todos os passos de la soltera. Mesmo agora, é fato
sabido que você está na minha casa, sozinha comigo. Repare que com isso você pode perder
o seu status de solteira. "A eficiente doutora mostra seu outro lado"; quem sabe quais serão
os comentários maldosos?
— Deixemos de lado os fofoqueiros. Eu vim aqui justamente para falar sobre as
condições do barrio, um lugar insalubre. Muita coisa poderia ser feita para melhorar a saúde
dos seus moradores se alguém pudesse lhes ensinar medidas de higiene.
O chá de Mary esfriou enquanto ela falava. Rafe escutou com atenção e paciência,
sem dizer nada. Seus olhos estudavam, analisavam a médica, que continuou seu "discurso".
— Muitas daquelas pessoas nunca viram uma escova de dentes, que dirá um dentista.
Eu cheguei a ver uma criança tomando água de uma mamadeira que tinha lodo no fundo!
Rafe — ela usou o primeiro nome dele sem perceber —, eu sei que poderia ajudar as
pessoas do barrio se elas não morressem de medo de mim. Se você me levasse para
conversar com a curandera, a velha Josefita, quem sabe ela não me auxiliaria a conquistar a
amizade e a confiança do povo.
— Os habitantes das áreas rurais e isoladas são muito ligados à terra, Mary. Eles se
orgulham da sua auto-suficiência, e se mostram envergonhados e reticentes diante de
estranhos. Eu reconheço que alguns chegam a ser mal-educados e desrespeitosos.
— Como foram comigo, hoje...
— Entenda, eles vivem numa sociedade que valoriza a independência e que se apóia
na família para o sustento e ajuda mútuos. Estou tentando lhe dizer que você não vai
conquistar a confiança deles de um dia para o outro.
— Então por que você pediu um médico para esta região?
— Esperávamos um doutor que quisesse se estabelecer aqui em definitivo.
— E eu não quero.
— Esperávamos um homem.
— E eu sou mulher.
— E muito mulher, eu acrescentaria...
— Está ficando tarde, vou embora.
— Eu a levarei de carro.
— Não precisa. Posso voltar a pé.
— Já lhe disseram que após o entardecer as tarântulas, coiotes e lacraias gostam de
circular por aí?
— E homens lascivos, também, não esqueça. Eu cresci no sudoeste do país, Sr.
Anaya. Não sou tão forasteira quanto o senhor supõe.
— Mas você é solteira, o que muda tudo. E eu vou levá-la de qualquer jeito, por isso
não discuta.
Fora da casa, uma lua de prata brilhava, e o ar estava frio. Mary sentiu-se grata pelo
calor do carro. Sentou-se o mais longe possível de Rafe e ficou ouvindo os sinos distantes
das missões.
— Há uma lenda sobre os sinos da missão de Kingdom Come, sabia?
Apesar do luar claro, ela não conseguiu perceber se a expressão de seu acompanhante
era de gozação ou não, portanto permaneceu calada e deixou que ele continuasse a falar.
— Os mais velhos contam que um par de séculos atrás, um gachupín muito rico, um
hacendado de sangue espanhol puro, doou dinheiro para a compra dos sinos da missão, com
uma condição: o padre teria que se recusar a casar sua filha com seu amante índio. Quando a
filha do hacendado ficou a par da barganha, fugiu de casa para se encontrar com o seu
amante. Mas o pai da moça matou o índio antes do encontro.
— Essa história não vai ter final feliz, eu suponho.
— Julgue quando acabar de ouvir. Muito bem, os sinos chegaram, e o padre notou
com desgosto que eles haviam sido tão mal feitos, que seu som era horrível. O padre tirou as
cordas dos sinos para que eles não pudessem mais ser tocados. Enquanto isso, o hacendado
levou adiante seus planos de casar a filha com um hidalgo local. Desta vez a moça se
refugiou num convento na Cidade do México. Ela não fez os votos perpétuos porque se
considerava casada em alma com o seu amante índio. Anos depois ela voltou para Kingdom
Come, já velha, uma solteirona solitária.
— Não sei se gosto da sua lenda. Uma mulher solteira não é necessariamente
solitária.
Rafe parou a caminhonete em frente à casa de Mary e esticou o braço sobre o encosto
do banco.
— Ah, mas a história ainda não acabou. Por coincidência, no dia da morte da filha do
hacendado, um novo padre chegou à missão. Ele ordenou que as cordas dos sinos fossem
recolocadas. E os sinos tocaram lindamente. As pessoas que conheceram a infeliz solteirona
quando jovem juraram que os sinos cantaram porque por fim ela havia se encontrado no céu
com o seu amante índio.
Mary não sabia se Rafe estava gozando dela ou não. Não foi capaz de pensar em
nada para dizer, e acabou perguntando:
— Você me leva para conversar com a curandera?
— Você é uma mulher persistente, hein, Mary?
— Na próxima semana?
— Ah, Mary!
Rafe segurou-lhe o rosto com ambas as mãos e puxou-a para perto dele.
— Sr. Anaya, por favor...
O protesto dela foi silenciado com um beijo. Sob o bigode que raspou suavemente
em sua pele, os lábios de Rafe eram quentes, macios e suaves. As mãos dele escorregaram
para os quadris de Mary, numa carícia de enlouquecer.
— Mary, querida... Como é bom te beijar...
— Mas eu não quero beijar você.
— Tem certeza? — indagou ele, roçando o rosto contra os cabelos dela.
Quando Mary abriu a boca para responder, sentiu a língua de Rafe, doce como mel,
contra a sua. Uma sensação arrepiante tomou conta dela, que pensou estar derretendo por
dentro.
Afastando-se alguns centímetros dela, Rafe fez um convite:
— Quer jantar comigo amanhã, doçura?
— Eu.... vou estar ocupada.
— Mas para visitar o barrio vai dar? — com um suspiro resignado, Rafe soltou-a de
seu abraço. Ele saberia ser paciente e conseguir o que queria de Mary.
Só uma coisa o dono da Hacienda Encantada não entendia: por que contara a ela a
lenda dos sinos? Aquela história significava muito para ele, por que reparti-la com uma
estranha? Não fazia sentido...
Abrindo a porta da caminhonete, Rafe ajudou-a a sair, aconselhando:
— Se você quiser ser aceita pelas pessoas do barrio, vista uma roupa menos
intimidante do que o seu uniforme de médica quando for visitá-las.
CAPÍTULO IV

— Obrigada, Vicente.
— Adiós, soltera.
Mary pegou seu pacote de compras e afastou-se sorrindo. Não se ofendia mais
quando a chamavam de soltera; acabara se acostumando. No entanto, uma surpresa
desagradável a esperava ao lado do seu Mustang.
Um homem alto e mal-encarado, vestindo um uniforme verde-escuro da Patrulha da
Fronteira e portando um revólver calibre 38 na cintura, tirou o chapéu quando ela se
aproximou.
— Bom dia, "mocinha".
Mary antipatizou de imediato com o patrulheiro.
— Bom dia, senhor...
— Chefe. Chefe Joe Hanson.
— Há algo que eu possa fazer pelo senhor?
— "Mocinha", eu...
— Doutora. Dra. Margulies.
O chefe Hanson comprimiu os lábios numa clara demonstração de raiva, o que
deixou Mary satisfeita.
— Pois bem, doutora, eu represento a defesa da fronteira dos Estados Unidos nesta
região. Meu serviço é evitar que qualquer mexicano sujo imigre ilegalmente para o nosso
país.
— E o que eu tenho a ver com isso? E devo acrescentar que não acho os mexicanos
"sujos".
— Olhe aqui, os nossos rastreadores nos mostram que...
— Rastreadores?
— Sim, aparelhos que detectam pegadas e marcas de pneus de imigrantes ilegais. Até
a hora em que uma pessoa atravessou a fronteira pode ser determinada com eles. E como eu
ia dizendo, os nossos rastreadores nos mostram que a senhorita esteve dirigindo numa área
que está sob a nossa vigilância.
— Eu não sou uma imigrante ilegal... Sargento Henley.
— Chefe. Chefe Hanson. E só estou querendo avisar que é seu dever avisar a
Patrulha da Fronteira se vir algum mexicano sujo por aí, invadindo os Estados Unidos.
Além disso, comunico-lhe que está proibida de prestar assistência médica a cidadãos não-
americanos.
— O senhor se esquece que, pelo juramento de Hipócrates, é meu dever moral
auxiliar qualquer pessoa que precise de tratamento médico, onde quer que eu esteja, em que
circunstância for?
— Isso se você tivesse seu consultório particular, ou se fosse uma cidadã comum.
Mas você está trabalhando para o Serviço Nacional de Saúde, uma organização do governo.
Se eu a pegar medicando um mexicano sujo que seja, serei obrigado a prendê-la por violar a
lei. Depois não diga que eu não avisei... doutora.
Furiosa, Mary entrou no Mustang e arrancou a toda velocidade, deixando o chefe
Hanson no meio de uma nuvem de poeira.
De trás das janelas de vidro do banco, um homem alto e de bigode observava
aborrecido o bate-boca entre Hanson e a médica. Rafe apertou os lábios, com raiva. O chefe
da Patrulha era um homem grosseiro e rude. Viera trabalhar em Kingdom Come por causa
do crescente número de imigrantes ilegais, e com certeza iria implicar com Mary. Fazia
parte do caráter dele ser irritante e vingativo, sem um mínimo de sensibilidade.
O dono da Hacienda Encantada conhecera muitos homens assim no Vietnã, e temia
ter se transformado num deles. Até conhecer uma mulher doce e de cabelos ruivos. Ela
reabrira em seu coração a capacidade de sentir emoções novas. Rafe não via a hora de fazer
amor com a médica. Lembrou-se dos seios macios contra o seu peito, aquela noite na
caminhonete, e estremeceu. O mais intrigante, porém, era o fato dela não atraí-lo apenas
sexualmente. Isso o preocupava.
— O que houve, querido? Você estremeceu... — perguntou Christina, com sua voz
rouca e sussurrante.
Uma das mãos da jovem, com unhas longas e vermelhas, apoiou-se insinuante no
cinto das calças dele. Christina era bonita, sem dúvida, e excitante na cama. Mas pobre do
rapaz que caísse em suas garras mercenárias.
Rafe estava ciente de que a moça ao seu lado não o apreciava só por ser charmoso e
sexy. Se ele não possuísse uma fazenda tão grande e uma linha de ancestrais cujo nome de
família era reverenciado pelo haute monde, duvidava que fosse capaz de atrair a atenção de
Christina.
— Estou preocupado com a nova médica, Chris. Os olhos azuis da jovem brilharam
de ciúmes, e ela olhou na direção de Mary, que conversava com Hanson.
— Você acha que o chefe pode aborrecê-la, querido?
Rafe sabia que Christina era amoral, e não estava certo de gostar muito dela... fora da
cama. Seu coração às vezes sentia necessidade de uma mulher terna e amorosa, não
calculista. Como a médica, talvez. Seu beijo era doce e inocente. Rafe conhecera muitas
mulheres na vida, de todas as raças e tamanhos, mas nenhuma que o fizera se sentir tão bem,
tão cheio de alegria, quanto Mary.
Os seis meses em que a doutora ficaria na cidade prometiam momentos interessantes.
Uma mulher que beijava gostoso como ela não podia escapar impune de Rafael Anaya...
— Chris, esqueça o chefe Hanson e me fale sobre a festa beneficente que você
pretende dar.
A jovem encostou seu corpo perfeito no do seu acompanhante. Seu pai queria que ela
se casasse logo, e qual seria a melhor opção senão aquele homem, rico e poderoso?
— Bem, querido, seria uma festa destinada a angariar fundos para a clínica. E me
ocorreu que poderíamos ser os anfitriões, uma vez que a idéia de trazer um médico para cá
foi sua. A festa seria na minha casa, para dar destaque ao nome da família Anderson. Bjorn
me contou que a pobre clínica não tem nem um aparelho de raio-X e...
— Seu irmão se consultou com a Dra. Margulies?
— Claro que não. Se ele adoecesse, iria procurar alguém qualificado.
— A Dra. Margulies não é qualificada?
— Oh, Rafe, você entendeu o que eu quis dizer!
— Entendi mesmo?
Christina Anderson não gostava quando Rafe agia daquela maneira arrogante. Mas o
que fazer com um homem tão independente e seguro de si? Se a jovem pretendia conquistá-
lo, o melhor era não o contrariar. Este era o único meio de um dia chegar a ser a Sra. Anaya.

— Mas que sujeito cretino! Bem que Eddie diz que ele não passa de um lixo
humano! Maldito chefe Hanson!
— Esqueça esse homem, La Jean. É perda de tempo pensar num sujeito mesquinho
como ele. O que me irrita de verdade é não ter como explicar às pessoas que uma garganta
inflamada pode ter graves conseqüências se não for tratada. E que elas podem economizar
dinheiro cuidando das suas doenças no início, em vez de pagar altas contas de hospital mais
tarde.
— As pessoas pensam que economizam mais ainda com a velha Josefita, este é o
problema, Mary.
— E como Josefita cuida de casos de câncer ou anomalias cerebrais?
— Pergunte a ela.
— É o que farei, espere para ver!
— Quando você...
As palavras de La Jean ficaram suspensas no ar, no instante em que a porta da clínica
se abriu e uma garota índia entrou. Ela não parecia assustada, mas cautelosa.
Seus pés calçavam sandálias grosseiras, combinando com sua saia florida e
desengonçada. Mary dirigiu-se com delicadeza à jovem.
— Oi, eu sou a Dra. Margulies. Posso ajudá-la?
A menina olhou com desconfiança para La Jean e permaneceu calada.
— Não se preocupe, ela trabalha para mim — explicou Mary.
— Estoy encinta.
— O quê?!
— Encinta. Esperando um bebê.
— Oh, entendo. Vamos passar para a outra sala para que eu a examine, enquanto
você me conta tudo.
Mary, notando a vergonha da moça, deixou-a sozinha na sala para tirar a roupa e
vestir a camisola que facilitaria o exame.
O útero da garota estava levemente maior do que o normal, confirmando a gravidez;
os ovários estavam em bom estado. Apenas o quadril era estreito demais, podendo dificultar
o parto.
— Você está bem, mocinha. E pode pôr as roupas enquanto preencho a sua ficha,
certo? Qual o seu nome e idade, por favor?
— Me chamo Hermalinda Maria Dolores Hernandéz. Tenho dezesseis anos.
— Por que você veio me ver em vez de procurar Josefita?
A jovem encarou Mary como se estivesse medindo suas possibilidades de ser sincera.
Por fim, disse num inglês truncado:
— Eu moro do outro lado do Rio Bravo. Rio Grande, vocês o chamam. Em El
Porvenir. Procurei você porque quero que o meu bebê seja cidadão americano. Josefita não
pode fazer isso. Você sim, uma médica com diploma na parede, pode trazer meu bebê à luz
e provar depois que ele é americano.
Mary sabia que, como funcionária do governo, corria o risco de perder sua licença
para clinicar, além de ser processada por ministrar atendimento a uma estrangeira ilegal.
Pelo menos, fora o que lhe dissera o chefe da Patrulha. E mesmo que ela não perdesse a
licença, um escândalo envolvendo seu nome atrapalharia suas chances de se empregar no
Scott-Waggoner.
Se bem que a mera assistência a uma estrangeira grávida não apresentava perigo
excessivo. Hanson teria que apanhá-la fazendo o parto da jovem para prendê-la. E o parto
ela não faria. Não seria tola a ponto de jogar fora uma promissora carreira numa clínica de
prestígio. Sorrindo para a menina feia à sua frente, Mary disse:
— Seu bebê vai nascer dentro de uns seis meses ou mais. Quero que você venha
todos os meses para que eu a examine, está bem? E quero que tome umas pílulas que vou
lhe dar, para que seu filho se desenvolva sadiamente, entendeu?
O rosto da garota se iluminou de alegria, até que Mary acrescentou:
— Mas eu não vou trazer o seu bebê ao mundo, Hermalinda.
— Vai sim, señora. Vejo nos seus olhos que você tem coração mole e vai ceder à
minha vontade.
— Não conte com o que vê nos meus olhos. Sei ser dura quando uma situação como
esta se apresenta.
— Vamos ver. O futuro a Díos pertence, não é? Num gesto inesperado, Hermalinda
pegou as mãos da médica, beijou-as e saiu do consultório apressada, murmurando:
— Gracias... soltera.
Sem pacientes, e sem paciência, Mary deixou a clínica às quatro horas para terminar
de desempacotar sua mudança. Usando um short cor-de-rosa e uma camiseta decotada, ela
estava pronta para tirar das caixas e pôr nos armários uma série de toalhas de banho, panos
de prato e lençóis.
Enquanto executava o serviço, conversava animada com suas plantas, espalhadas em
vasos pela casa. Mary adorava samambaias e avencas, que davam um ar aconchegante ao
ambiente.
— Plantinhas, eu quase me acostumei por completo a morar aqui, sabem? Claro que
há escorpiões e tarântulas, mas em compensação há buganvílias e árvores frutíferas no
jardim!
Ela descobrira que a região da fronteira do Texas se assemelhava a uma caixa de
surpresas; uma área deserta que, bem irrigada, se tornava florida e produtiva.
— Se importa se eu atrapalhar um pouco?
Mary quase caiu de costas ao som daquela voz com sotaque espanhol. Virou-se para
a porta e deu de cara com Rafe, encostado no batente e sorrindo.
— Ei, você me assustou!
— Posso entrar ou não?
O instinto dela aconselhou-a a não o deixar entrar. Ele era um homem diferente de
todos os que já conhecera. Seu beijo mudara algo dentro dela, algo indefinível, que a fazia
sentir-se vulnerável e desprotegida. Mas Mary capitulou e disse:
— Bem, entre, então.
Rafe vestia jeans marrom e camisa creme, que realçavam a cor de seu bigode
castanho-dourado. Seus olhos brilhavam sensualmente, passeando pelo corpo cheio de
curvas de Mary.
— Desculpe a curiosidade, mas... com quem você estava conversando?
— Com as minhas plantas. É bom para a saúde delas.
— Você fala como médica, certo?
— Certo.
Mary começou a ressentir-se ante o olhar insistente do fazendeiro. Encabulada, corou
desde o V formado pelo espaço entre os seus seios até as orelhas. Ela não ignorava que
excitava Rafe. E como poderia? O homem parecia despi-la em pensamento.
— Você quer alguma coisa? — indagou ela.
— Por acaso você tem chá em casa, doutora?
O que Mary tinha era azia. Seu estômago queimava. Não possuía experiência para
julgar a atração sexual entre duas pessoas; para ela, aquilo não tinha nenhuma explicação
lógica. Nem seu corpo, nem sua mente virginais haviam sido tocados pelo amor ou pela
paixão, ainda. Talvez esse fosse o motivo do seu pânico, da sua vontade de fugir.
— Tenho chá preto, serve?
— Eu preferiria chá verde, mas não faz mal. No caminho da casa de Josefita
podemos passar na barraca do Vicente e comprar um pacote. Ele sempre guarda chá verde
para mim.
— Você vai me levar à curandera!
— Contra os meus desejos, mas vou.
— Deixe-me trocar de roupa, então. Me apronto num minuto.
Durante o trajeto até a casa de Josefita, Rafe contou-lhe o que sabia sobre
curanderas.
— Elas vêem a doença através de um prisma religioso e social, quase que oposto à
visão científica. As curanderas confiam em ervas e poções. E seus rituais provavelmente
auxiliam no tratamento psicológico, criando um equilíbrio entre o lado mental e físico dos
seus pacientes.
— Rituais? Ora, você está falando de feitiçaria.
— Claro que não. Embora eu reconheça que as curanderas tratem de pessoas
embrujadas, ou enfeitiçadas. Uma curandera põe grande fé em Deus e na sua contribuição
na cura de doenças. Elas acreditam em milagres.
— Eu também acredito, mas ao mesmo tempo sei como e quando pedir testes de
laboratório e analisar os seus resultados, coisa que elas não sabem.
— Como médica, você deveria estar ciente de que muitos remédios usados na
alopatia são feitos à base de ervas, misturadas a produtos químicos. Muitas vezes estes
produtos químicos não são naturais e prejudicam o organismo. Estou errado?
— Não. E eu começo a perceber o seu lado primitivo.
— Não somos todos um pouco primitivos, sempre?
Mary estava gostando da troca de idéias, algo que não acreditara ser possível na
companhia do playboy de Kingdom Come. Estudando o perfil de Rafe, seus músculos
fortes, suas mãos bem-feitas controlando a direção do veículo, ela sentiu a urgência
selvagem de abandonar suas reservas e de se atirar nos braços dele. Abraçá-lo apertado e
beijá-lo. Para combater esta sensação louca, resolveu continuar a discussão:
— Deixe-me lhe contar um caso que presenciei numa das casas do barrio. Um
remédio caseiro, uma bebida feita com banha de carneiro, foi dado a uma criança, cuja mãe
acreditava que ela tivesse urticária. Uma vez que a criança era alérgica à bebida, acabou
tendo realmente urticária. O que me diz disso?
— Não se esqueça de que todas as moedas possuem duas faces. Um sujeito que mora
em El Paso sofria de malária, e só sarou depois de um ano, tratando-se com ervas
preparadas por uma curandera. Os remédios dos médicos formados não foram capazes de
curá-lo.
A discussão terminou com a chegada à casa de Josefita.
Mary desceu rápido da caminhonete, antes que Rafe pudesse ajudá-la. Ela não
suportaria o toque das mãos daquele homem em seu corpo.
Uma mulher magra e curvada, usando um vestido azul e uma malha preta, apareceu
na porta da casinha para recebê-los. Seu rosto guardava a imagem da passagem dos anos,
pois era todo cheio de rugas. No entanto seus olhos inteligentes chegavam a ser bonitos.
— Josefita, apresento-lhe a Dra. Mary Margulies.
A velha mulher fez um gesto com a cabeça na direção da médica.
— Eu já esperava por uma visita sua, doutora.
— É um prazer conhecê-la, Josefita.
Os três entraram na cabana da curandera. Pôsters antigos serviam de papel de
parede, e um linóleo em más condições cobria o chão. A mobília era velha e barata de pinho
escurecido. Mas a casa estava limpa, embora cheirasse a repolho cozido, peixe, e outros
odores indecifráveis.
A curandera acomodou-se numa cadeira de balanço. Neste instante uma mulher
esbelta e de pele morena surgiu na porta da cozinha. A camisa vermelha, folgada, e a saia
florida não escondiam sua beleza. Antes de serem apresentadas, Mary achou por instinto
que ela devia ser filha de Josefita.
A mulher, de nome Carmelita, cumprimentou Rafe em espanhol, que disse algo na
mesma língua e sorriu afetuosamente.
Por trás de Carmelita, um garoto de cinco ou seis anos pôs a cabeça na sala, curioso
por causa das visitas. O menino era estrábico.
— Este é meu neto, Lucero — anunciou Josefita.
Rafe sentou-se num banco e Mary seguiu seu exemplo, dizendo:
— Eu gostaria de ajudar o seu povo, Josefita. Sou treinada em métodos modernos
para a cura das doenças.
— Nossos métodos são suficientemente bons, doutora. Minha mãe passou-os a mim.
Eu vou passá-los à minha filha. É assim que manda a tradição.
— Mas eu poderia lhe ensinar coisas novas e eficazes. Ou... você tem medo de que
eu lhe roube os pacientes?
— Eles sabem que não cuidarei mais deles se procurarem por você.
Mary esforçou-se para manter a calma. A visita se transformara num desastre. Que
velha teimosa!
— Bem, Josefita, o futuro dirá qual de nós tem razão.
A curandera ergueu-se da cadeira de balanço e fuzilou a médica com os olhos. Rafe
colocou-se no meio das duas para evitar a briga iminente.
— Nós vamos indo, Josefita. Adiós — disse ele já na porta.
— Rafael? — chamou a curandera.
— Si?
A velha disse algumas palavras num castelhano ligeiro e riu alto.
— O que ela lhe falou? — quis saber Mary, quando estavam no carro.
— Que você deveria tomar chá de yerba buena para a sua azia.
— E como Josefita sabe que tenho problemas de estômago?
— Não é difícil imaginar. Todos os doutores super ocupados têm.
— Com a exceção de que eu não sou "super ocupada". Pelo contrário.
— Então que tal jantarmos fora hoje?
— Não posso. Vou... estar ocupada.
— Mas você acabou de dizer que...
— Ouça, preciso terminar de arrumar a minha mudança. Desculpe.
— Você não lê as colunas sociais? Sou o solteirão mais cobiçado destas bandas.
— É mesmo?
Rafe deu uma freada brusca em frente à casa de Mary, que desceu correndo da
caminhonete, como se corresse perigo de vida.
O que faria o dono da Hacienda Encantada com o resto da tarde? Iria para casa, se
enfiar na cama? Ele poderia ir ao "Orgulhoso Solitário" e arrumar companhia feminina. Mas
naquele momento nenhuma outra mulher lhe apetecia. Tinha que ser Mary, com seu corpo
delicado e cheio de curvas; com seu rosto sardento e infantil; seus lábios macios e sedutores.
Rafe gemeu baixinho, obrigado a reconhecer sua "queda" pela Dra. Mary Margulies.
CAPITULO V

— Cinqüenta dólares — disse Mary, dando ao caixa do banco a informação de que


ele necessitava para preencher o vale postal.
Os cinqüenta dólares eram para Billy. O rapaz escrevera à irmã em resposta ao
convite para ir passar com ela o feriado do Dia do Trabalho. Seria o primeiro fim de semana
que Billy teria livre, desde que passara a trabalhar numa companhia de petróleo. O dinheiro
pagaria sua passagem de ida e volta, visto que o calhambeque dele precisaria de reparos
antes de voltar a andar.
O Dia do Trabalho ainda estava longe, mas Mary queria ter certeza de que seu irmão
viria.
— Dra. Margulies?
Ela se virou, com o vale postal ainda na mão, e encarou um homem de boa aparência,
vestindo um terno verde-musgo. Ele devia ter mais ou menos a idade dela, e sorria
encantadoramente, enquanto lhe estendia a mão.
— Eu sou Beau Brewster, o subgerente deste banco. Mary cumprimentou-o. La Jean
já lhe falara dele como um dos "sujeitos mais atraentes da região"; e estava certa, como
sempre.
Beau viera de uma agência bancária de Dallas, onde havia subgerentes em excesso.
— O que está achando da cidade, doutora? Talvez esteja se sentindo solitária, não?
Eu sei como é, também vim para cá há pouco tempo.
Mary sorriu para o subgerente do banco. Ali parecia estar um homem que poderia
entender sua solidão naquela cidade esquecida por Deus.
— Tem razão, Beau. Aqui aprendi o significado da expressão "sozinha na multidão".
— É quase como estar de quarentena, eu suponho.
— Pior, eu diria.
— Olhe, fui convidado para a festa em benefício da sua clínica, na casa dos
Anderson. Que tal se eu passasse pela sua casa para pegá-la, vamos ver... às sete hora da
noite, amanhã? Iríamos juntos à festa.
Muito sutil o convite do homem. Mary conhecia o gênero: delicado, mas no fundo
querendo o mesmo que Rafe. Namorá-la.
— Obrigada, Beau, mas vou ter que recusar. Nem sei a que horas sairei do
consultório. Vejo você nos Anderson, está bem?

— Só porque uma comunidade é pequena, isso não significa que ela é monótona e
desinteressante — disse o padre John observando o enorme salão de festas, lotado de gente.
Para o jantar daquela noite, várias mesas haviam sido postas no salão e no pátio
enluarado. Um violinista mexicano passeava entre os convidados, tocando músicas
românticas. Garotos de camisa branca serviam vinho, champanhe e salgadinhos.
Mary sentiu-se deslocada como um toureiro gordo numa arena, assim que chegou à
festa.
Por sorte, Beau não saía do seu pé. Ela sorriu-lhe com suavidade. Por que não? Com
seu cabelo castanho e olhos azuis, ele era muito atraente, com uma vantagem sobre Rafe:
não parecia tão faminto por sexo.
Se bem que o jovem subgerente não desgrudava os olhos do colo de Mary, exposto
por um decote espetacular.
— Quer outro drinque? — perguntou ele quando o padre John se afastou com uma
mulher preocupada em salvar a alma do cunhado.
Mary fez um sinal negativo e entregou-lhe o copo vazio. Ficar embriagada não fazia
parte de seus planos. Quando Beau abriu caminho em direção a um garçom para buscar um
drinque para si mesmo, ela aproveitou para analisar as pessoas presentes.
Eram todos fazendeiros ricos, homens de negócios bem-sucedidos, mais que aptos a
contribuírem com dinheiro para a aquisição de aparelhos para a clínica. Mas não dispostos a
se consultarem com a Dra. Margulies. Uma dúzia de convidados se queixaram de problemas
de saúde e prometeram ir ao seu consultório. Uma dúzia de pessoas polidas e distantes, que
não sustentariam a clínica por seis meses.
O olhar de Mary pousou em Rafe, que conversava com Christina e seu irmão, o
nervoso Bjorn. O herdeiro dos Anderson não era nem de longe tão bonito e dinâmico quanto
a irmã. O mesmo se poderia dizer de sua esposa, Nelda, uma mulher com cachos ao estilo
Shirley Temple.
Christina vestia um deslumbrante vestido longo azul-claro, bordado com fios
prateados, que realçava sua beleza escandinava. Perto da dela, Mary considerou sua roupa
apagada e sem graça, embora fosse seu único traje social.
Rafe atraía a maioria dos olhares femininos com sua aura sensual e elegante. No
entanto, demonstrava um certo desconforto por estar ali. Sua gravata fora afrouxada e seu
colarinho aberto.
— Um homem interessante, Rafael. Concorda comigo? — perguntou o padre John,
dirigindo-se a Mary.
— Todos aqui são interessantes, padre — respondeu ela com diplomacia.
— Mas Rafael é diferente. Dá a impressão de estar sempre despreocupado, com sua
mania de rir muito e contar histórias.
— É verdade, padre John.
— E pensar que por trás desta fachada existe um homem inteligentíssimo, capaz de
lidar com negócios, fazendas, burocratas, políticos, pessoas simples... Ele preside a nossa
comunidade como o rei Salomão na sua corte.
— Mas que discurso casamenteiro, padre! Por que tanta propaganda de um homem
só?
— Ora, minha filha, quem sou eu para interferir nos desígnios de Deus?
— Interferir não digo, mas dar uns palpites...
O padre riu gostoso, e deu uma piscadela.
Christina se movia em meio aos grupos de convidados, dispensando charme a todos.
Nelda seguia seus passos, tentando imitá-la. Por fim, a jovem condescendeu em ir falar com
Mary.
— Dra. Margulies! Você está encantadora!
— Sim... encantadora — ecoou Nelda.
— Obrigada. E você... pelo jeito, se cuida bem, srta. Anderson.
— Como!?
— Do ponto de vista médico, você possui uma ótima aparência. Muito saudável
mesmo.
Christina não gostou do comentário e ia dar uma resposta atravessada, mas seu pai
apareceu na hora H para conduzir Mary ao seu lugar à mesa e iniciar o jantar.
Lars Anderson, barrigudo, dono de um tremendo otimismo e de uma risada de Papai
Noel, mostrou-se um anfitrião divertido e bem-humorado.
— Dra. Margulies, vamos lotar a sua clínica com equipamentos de primeira
qualidade — disse ele, dando um tapinha paternal na mão de Mary e recebendo, em
conseqüência, um olhar fulminante de Rafe.
— Eu preferiria ver a clínica lotada de pacientes, Sr. Anderson.
— Oh, não se deixe abater. Os pacientes aparecerão com o tempo, doutora.
Mais tarde, Mary agradeceu cortesmente aos Anderson pelo jantar, irritada por dentro
com a esnobação deles. Deixou a mansão acompanhada por outros convidados "alegres" por
causa da bebida. Beau acompanhou-a até o Mustang e abriu a porta para ela, enlaçando-a
pela cintura e tentando beijá-la. Mary conseguiu se esquivar dele e entrar no carro.
— Você não se interessa por homens, Mary? — indagou Beau, que, como os outros,
se excedera nos drinques.
— Não me interesso por sexo, se é isso que quer saber.
Uma expressão de aborrecimento passou pelo rosto do jovem subgerente que, na
certa, continuaria a cortejá-la.
No caminho de volta para a sua casa, Mary notou que um sentimento estranho de
solidão se apoderara dela. A mesma solidão que sentia quando criança, andando pelas ruas
da cidade sem ter para onde ir. E o pior é que sabia que aquela sensação era causada pela
ausência do olhar de Rafe sobre ela. A noite toda ele passara a observá-la discretamente.
E qual não foi sua surpresa quando, ao estacionar em frente da casa, os faróis de um
MG a iluminaram por trás. Rafael Anaya desceu do MG e aproximou-se do Mustang.
— Não gostou da festa, Mary?
— Claro que sim.
— O rapaz do banco beijou-a na despedida? — resmungou ele, irritado com a
possibilidade de ter um rival.
— Isso não é da sua conta! — Mas, ao lembrar-se de Christina, ela não pôde evitar
uma pergunta: — E você, divertiu-se bastante?
— Não. O tempo todo eu desejei me afastar daquelas pessoas desagradáveis e ficar a
sós com você.
— E por que iria querer ficar sozinho comigo? Eu não vou para a cama com você,
sabia?
— Sim. E não me peça explicações que não posso dar, droga!
De repente, Rafe segurou-a pelos ombros e puxou-a para si. Beijou-a com tal
suavidade e por tanto tempo, que uma sensação doce e úmida surgiu entre as pernas de
Mary. Em nenhum instante ele tentou separar-lhe os lábios e penetrá-la com a língua.
Simplesmente acariciou-a com a boca, cheio de sensualidade.
"É a primeira vez que alguém faz amor com os meus lábios", pensou Mary,
incendiada de paixão.
— Mary... Oh, não vou mentir para você. Quero levá-la para a cama. E muito...
— Então... procure outra pessoa. Eu vou permanecer em Kingdom Come por poucos
meses e não pretendo ter uma aventura passageira.
— E quem falou em aventura passageira? Eu posso fazer você feliz. Vou tolerar as
suas regras por enquanto, mas se prepare: tentarei o que estiver ao meu alcance para fazê-la
mudar de idéia.
Rafe beijou-a de novo, desta vez com mais violência, como se quisesse puni-la por
ter sido rejeitado.
Perturbada, Mary observou o MG perder-se na distância. Rafe a excitara com sua
proposta de sedução. O que faria agora com aquela sensação que permanecia entre suas
pernas?

Rafael Anaya deitou-se em diagonal na enorme cama que pertencia à família há


gerações. Ele nascera naquela cama. A cabeceira e o pé eram de madeira de lei entalhada
por artesãos mexicanos. Aliás, a mobília dos outros cinco quartos da fazenda seguia o
mesmo estilo.
Mãos cruzadas na nuca, ele mirava o teto. Na televisão, um repórter anunciava as
últimas notícias sem ser ouvido. O fazendeiro pensava em outra coisa.
Nas duas semanas anteriores, por três vezes Rafe convidara Mary para sair, sem
sucesso. Ela afirmara estar ocupada demais. Não tão ocupada, contudo, para almoçar com
Beau Brewster no "Oásis" aquela tarde. O ego do dono da Hacienda Encantada estava
ofendido.
— Droga! — exclamou ele, desligando a TV.
Levantou-se irritado e caminhou até o banheiro, tirando a calça, a camisa e a roupa
de baixo. Um banho gelado talvez diminuísse a dor do seu desejo. Um banho gelado ou uma
mulher quente. Mas ele não queria nenhuma das mulheres cujos nomes enchiam sua agenda
de telefones. Nomes sem rosto, apagados pela imagem inocente de uma médica ruiva...
Rafe ensaboou-se sob o jato de água fria, pensando em Mary Margulies. O que sabia
sobre ela?
Muito pouco: que era inteligente e trabalhava como uma formiga; que vinha de um
lar desfeito pela pobreza e nunca se casara; não era interesseira, ao contrário.
Possuía nádegas deliciosas e parecia inexperiente quanto a sexo. E devia ser uma
bruxa, para enfeitiçá-lo daquele modo com apenas alguns beijos.
— Droga! Droga! — exclamou ele outra vez, saindo do chuveiro e enxugando-se, e
depois dirigindo-se nu para a janela que dava para a casa de Mary. Uma luzinha fraca
indicou que ela continuava acordada. Uma sensação de impotência abateu-se sobre Rafe,
que não estava acostumado a não conseguir o que queria!
Na sua juventude ele experimentara tudo que a riqueza podia proporcionar: roupas
caras, uma educação superior, viagens... Mas nada que o fizesse se sentir vivo, atuante.
Cansado de monotonia, Rafe descobrira que o dinheiro apresentava um grande risco: a
tentação de se acomodar na vida sem ter feito nada de útil ou produtivo.
Por isso se alistara nas Forças Armadas Especiais. Para enfrentar desafios de alto
nível, visto que só homens em pleno poder de suas capacidades físicas e intelectuais eram
aceitos nas Forças Especiais. Uma organização de elite como aquela requeria criatividade e
autoconfiança. Ele aprendera a lidar com situações de combate não descritas nos livros, o
que o levara depois do Vietnã a lutar em vários outros países abalados por revoluções.
Cada homem das Forças Especiais se tornava especialista em algo: espionagem,
armamentos, táticas de guerrilha. Ou assassinato. Neste ponto, Rafe percebera que não seria
capaz de matar friamente. Deveria existir um meio melhor de salvar a humanidade do caos;
um meio menos violento.
Rafe ficara feliz de voltar para Kingdom Come. Ali ele poderia auxiliar as pessoas,
sem violência, ensinando-as a plantar e a cultivar a terra.
Mas, mesmo assim, faltava alguma coisa. Uma esposa? De vez em quando ele se
imaginava casado com uma das mulheres que conhecia. No entanto, eram todas tão fúteis e
vazias... Valeria a pena unir-se a uma delas?
E então Mary aparecera. Mary, com seu andar orgulhoso e queixo para cima; com
seu corpo delicado e sedutor. Uma mulher capaz de oferecer mais do que sexo.

Desolada, Mary examinou o pneu furado. Ela não sabia como trocá-lo; mas tentaria,
ao menos. Abriu o capo do Mustang, em busca do macaco, e sujou seu uniforme branco.
Com um suspiro desanimado, pegou também a chave para desapertar os parafusos da roda.
Abaixou-se ao lado do pneu e, quando ia pôr mãos à obra, foi interrompida por uma voz:
— Soltera!
Um mexicano velho e enrugado, vestindo calça e camisa parecidas com um pijama,
segurando um sombrero, oferecia ajuda.
— Quer que eu peça ao patrón para mandar socorro, soltera!
Olhando na direção que o dedo do homem apontava, Mary viu Rafe no meio de um
círculo de trabalhadores, mexendo na terra. El patrón, o velho mexicano o chamara. O
protetor. De má vontade, Mary teve que admitir que ele era exatamente isso; pelo menos
para o seu povo. O fazendeiro trabalhava lado a lado com os homens simples, orientando-os
e olhando por eles.
Engraçado, em toda a sua vida Mary protegera os outros: sua mãe, seus irmãos e
irmãs. E, agora, ter um homem como Rafe a querer protegê-la... Parecia um sonho, algo que
sua alma sempre desejara e lhe fora negado. Mas ela lembrou-se a tempo que "proteção" não
se encaixava muito bem nos planos do fazendeiro...
— Obrigada, señor, mas posso resolver o problema sozinha — disse ela ao velho
homem.
Ele concordou com um gesto de cabeça e partiu. Mary voltou a se ocupar dos
parafusos da roda, até que uma sombra caiu sobre o pára-lama do Mustang. A sombra do
homem loiro, alto, bonito e autoconfiante, que a olhava com uma expressão divertida e
admirada.
— Sei que você é uma mulher emancipada, Dra. Margulies, mas será que não posso
ajudar? Da próxima vez que eu ficar doente você pode me tratar de graça, assim ficaríamos
quites.
Ela aceitou o oferecimento, relutante, e levantou-se, limpando as mãos empoeiradas.
Rafe tirou a camisa e agachou-se ao lado do carro. O sol brilhante refletiu em seus músculos
suados, revelando uma cicatriz esbranquiçada, resto de algum ferimento antigo.
Observando-o trabalhar rápido e com eficiência, Mary sentiu uma súbita falta de ar que,
com certeza, não era apenas fruto do calor...
Depois de poucos minutos, o estepe se encontrava no lugar do pneu furado. Rafe
vestiu a camisa e enxugou o suor da testa.
— Mary, você ainda está muito ocupada para me ver?
— Claro que não, se for uma consulta profissional, lógico.
— Não quero a profissional. Quero a mulher.
— Você me acusa de não desejar estabelecer uma relação com o sexo oposto. Mas
você não quer um relacionamento permanente com o sexo oposto. Nós nos encontramos
num beco sem saída, não?
— Se é assim como você diz, por que não consolamos um ao outro?
— Não preciso de consolo. E obrigada pela sua ajuda. Adeus.
Mary entrou no Mustang e deu partida. Ao olhar pelo retrovisor, viu que Rafe
continuava parado no mesmo lugar, com um ar de frustração.
Uma hora mais tarde, quando ela entrou em seu consultório, La Jean estava
debruçada sobre fichas médicas, escrevendo.
— Não é necessário que me diga, La Jean: vieram tantos pacientes que a minha
agenda está cheia até a semana que vem.
— Não, querida. Só duas pessoas apareceram.
— Oh, não, e eu as perdi! Primeiro me fura um pneu. Depois eu deixo quebrar um
pote de comida para bebê na casa de Ofélia Ruiz. E agora isso!
— Bem, quem veio primeiro foi Hermalinda, para o seu check-up mensal.
— Droga! A garota necessita de cuidados!
— Calma, tem mais. Em seguida a Hermalinda veio uma mulher trazendo o filho
para uma consulta. Não sei qual a doença do garoto, mas a mãe dele disse que se o marido a
pegasse aqui ela iria apanhar bastante. O velho machismo, você compreende. Ela não quis
esperar a sua volta.
— La Jean, juro que vou vencer a ignorância desse povo nem que seja a última coisa
que eu faça em Kingdom Come!
— Mais provável que seja a última. Ei, aonde você vai?
— Ver Josefita. Se você não consegue lutar contra o inimigo, junte-se a ele!
A recepcionista olhou para a patroa como que duvidando de sua sanidade mental.
O mesmo fez a curandera quando a viu aparecer em sua casa. Carmelita havia saído,
mas o menino Lucero fazia companhia à avó, Mary sentou-se num banco de madeira e
pediu:
— Josefita, acho que podemos aprender muito uma com a outra. Eu gostaria que me
deixasse ir junto com você quando fosse cuidar dos seus pacientes.
— Deixarei você vir comigo, sim. Mas ouça: não interfira em momento algum,
entendeu? E não posso prometer que as pessoas permitirão a sua entrada na casa delas. Elas
a vêem como uma charlatã, uma embusteira; o mesmo que você pensa de mim...
Mary percebeu que a velha mulher esperava que a hostilidade dos moradores do
barrio desencorajasse seu interesse em permanecer em Kíngdom Come. Mas ela não perdia
a coragem com facilidade.
Josefita apanhou sua sacola com as ferramentas do ofício: amuletos protetores,
medalhas religiosas, fitas vermelhas, saquinhos com ervas e depois saiu para os jacales
acompanhada de Mary e Lucero.
No primeiro jacal, um moço se queixou de dores de cabeça, visões místicas e falta de
apetite. Josefita diagnosticou seu caso como mal ojo — mau-olhado — e receitou-lhe um
colar de coral para ser usado dia e noite no pescoço.
Em outro jacal um velho estava com cólico — cólica. A curandera esfregou-lhe o
estômago com um ovo fresco, fazendo o sinal da cruz e recitando o Credo três vezes.
Enquanto isso, a neta do homem procurava na sacola de Josefita os bebês que pensava
serem entregues pela velha mulher.
Mary notou que na maioria dos casos a curandera resolvia muito bem os casos reais
de doença. Ela distribuía ervas conhecidas e utilizadas pela medicina moderna: osha moída
para dores de dente e de cabeça; lavanda como sedativo e antisséptico; manzanilla para
problemas femininos; marroio branco para tosse; ajo, ou alho, para controlar a pressão
sangüínea.
No fim da tarde, Mary pegou o caminho de sua casa pensando em tudo o que vira e
contente por ter dado um passo em direção ao seu desejo de ser aceita pela curandera e seu
povo.
Mas sua alegria evaporou-se assim que o carro verde da Patrulha da Fronteira
ultrapassou-a, dando-lhe sinal para parar. Ela, então, dirigiu seu Mustang para o
acostamento, respirou fundo, contou até dez e esperou que Hanson se aproximasse do carro.
— Bom dia, doutora.
— Quer alguma coisa, sargento?
— Chefe, madame. C-h-e-f-e. Eu só queria lhe dizer que apanhei uma mexicanazinha
grávida hoje, logo depois que ela deixou o seu consultório.
O coração de Mary deu um pulo. La Jean a informara que, de acordo com Eddie,
Hanson era um homem cruel. Chegava às vezes a bater nos imigrantes ilegais, e muitos
desconhecidos haviam sido encontrados com tiros e ferimentos pelo corpo todo. Beau
acrescentara que o chefe obrigava as mulheres a manter relações sexuais com ele, antes de
voltarem para o México.
— Seu... seu... O que você fez com Hermalinda?
— Você não estava tratando da mexicana, estava, doutora?
— O que você fez com ela? Responda!
— Oh, nada... Apenas a interroguei e fichei. Procedimento normal. Coloquei-a num
ônibus para a prisão de El Paso, e ela vai ser deportada logo, logo. Mas se a jovem
atravessar a fronteira de novo... Não me responsabilizo.
Com ódio do chefe Hanson, um homem desprezível, Mary perguntou docemente:
— O senhor conhece esta frase: "Dê-me seu povo cansado, pobre e confuso,
ansiando por respirar livremente"?
— Bem... Não.
— Eu sabia que o senhor não era letrado o suficiente para saber que esta é a inscrição
aos pés da Estátua da Liberdade. Mas, claro, o senhor se lembra das palavras de Jesus:
"Quando eu estava faminto, você me deu de comer; quando nu, você me vestiu; quando
viajante, você me acolheu." Ou não?
Com uma risada maliciosa, a médica deu partida no carro e deixou o patrulheiro
falando sozinho.
CAPITULO VI

Mary acordou encharcada de suor. Seu primeiro pensamento foi para o chefe
Hanson, que a assombrara em pesadelos. Os lençóis grudavam em suas coxas e seios. Como
nunca dormira de pijama ou camisola quando criança, acostumara-se a ir nua para a cama.
Bem, quase nua, se se levasse em consideração a minúscula calcinha de náilon.
Sentando-se na cama, Mary soltou os cabelos úmidos presos por um elástico e
deixou-os caírem livres sobre suas costas. Eles eram compridos e nada adequados ao calor
do deserto. Mas ela os preferia assim, como uma concessão à sua feminilidade tão
reprimida.
O relógio digital no criado-mudo indicava três e vinte da manhã. E então Mary
percebeu o motivo de ter acordado: o zumbido baixo do ar-condicionado parara, o que
explicava o calor sufocante do ambiente.
Livrando-se dos lençóis, dirigiu-se à sala, evitando tropeçar na mobília mexicana de
pinho rústico. Acendeu a luz e encarou irritada o aparelho de ar condicionado defeituoso,
desafiando-a a consertá-lo.
Ela estava capacitada a realizar uma cesariana de emergência, mas não sabia nada em
se tratando de aparelhos quebrados. E o pior é que quando o sol surgisse no horizonte, com
seus raios brilhantes, a sua casinha se transformaria num forno.
Indo até a janela Mary olhou na direção da casa de Rafe, que estava às escuras. A
imagem dele dormindo enquanto ela derretia de calor aborreceu-a. Pensar no fazendeiro a
aborrecia, e ela sabia por quê. Porque morria de vontade de se abandonar nos braços dele e
ser beijada com paixão... Será que Rafe dormia de pijama? Ou nu? Mary arrepiou-se,
excitada.
Ficou tentada a ligar para o dono da Hacienda Encantada e pedir-lhe que arrumasse
o aparelho de ar condicionado. Afinal, a responsabilidade pela manutenção da casa era dele.
Mas Mary lembrou-se a tempo de que Rafe a queria em sua cama, e ela não estava
preparada para isso. Talvez mais tarde, quando já estivesse bem empregada, de preferência
no Scott-Waggoner, em Washington. Quem sabe então conseguiria se entregar a um
envolvimento amoroso.
Achava Rafe excitante e gostava da companhia dele; respeitava-o por seu interesse
pelo povo e por sua integridade; admirava-o por sua honestidade ao dizer que não queria
uma relação duradoura, mas apenas alguns momentos de sexo.
O bom senso aconselhou-a a esperar pela manhã para notificá-lo do defeito no
aparelho de ar condicionado. Seria mais seguro tê-lo por perto à luz do dia. Congratulando-
se por seu raciocínio lógico, Mary já ia apagar a luz quando ouviu uma batida forte na porta.
— Quem... quem é?
— Mary... Sou eu, Rafe. Vi a luz acesa e achei que talvez precisasse de algo. Você
está bem?
— Sim. Espere um pouco, por favor.
Ela correu até o quarto e apanhou o único roupão que tinha, um presente de Amy e
Billy. Amarrando a fita de cetim cor de champanhe na cintura, por cima do roupão de seda
da mesma cor, voltou à sala e abriu a porta. Rafe vestia calça branca e uma malha leve de
tricô. Um sorriso maroto se escondia por debaixo do bigode. Examinou-a dos pés à cabeça,
parando o olhar na curva dos seios.
— Ahhh, Mary, você parece um doce, e eu gostaria de comê-la com bastante
chantilly.
— Se quiser entrar, entre; mas não fique aí parado falando bobagens a esta hora da
noite, ou da manhã, sei lá.
— Mary, Mary, por que você me rejeita? — perguntou ele, enlaçando-a pela cintura
e beijando-lhe o rosto.
— Rafael Anaya, pare com isso!
— Parar com o que, doçura?
Para fugir dos beijos e da mão em sua cintura, Mary deu um passo para trás e caiu no
sofá.
— Ghhh, Rafe! — gemeu ela deitada, numa pose de abandono.
— Ahá! Você me deseja! Prefere que nos amemos no sofá?
Mas, quando ela gemeu de novo, Rafe notou que confundira um gemido de dor com
um gemido de prazer.
— O que foi? Onde dói?
— Aqui, na cabeça. Bati em alguma coisa...
— Deixe-me ver... Ei, você bateu num vaso de plantas.
— Oh, não! Um vaso novo! Devo tê-lo esquecido no sofá quando comecei a ler uma
revista médica.
— Você gasta mais tempo com as suas plantas e revistas do que comigo. Não gosto
disso.
— Mas plantas e revistas são seguras, não tentam me seduzir a toda hora.
— Mas podem atacar às vezes. Basta olhar para este galo na sua cabeça. E, depois, as
suas plantas não a fazem se sentir derretendo por dentro, fazem, Dra. Margulies?
Com estas palavras Rafe debruçou-se sobre ela, beijando-a, a princípio com
delicadeza e em seguida com mais violência.
— Ahh, Mary — murmurou ele com os olhos semi-cerrados pelo desejo. — Você
não sabe o efeito que causa nas minhas boas intenções. Basta olhar para você e começo a
pensar em mil coisas gostosas que poderíamos fazer juntos. Deixe-me te amar, doçura...
— Rafe, não... Por favor... não.
Mary tentou pensar com lucidez, mas estava apavorada, cansada, preocupada.
Lágrimas subiram-lhe aos olhos.
— Mary? O que foi? Eu paro... Desculpe. Mas, por todos os santos, meu desejo é
tanto que é quase impossível evitar que...
— Não choro só por sua causa. Tudo deu errado esta semana. O aparelho de ar
condicionado quebrou; só dois pacientes apareceram na clínica e eu ainda os deixei escapar;
Hanson tem me tratado mal e...
— Aquele filho da...
— Rafe!
— Como posso não sentir vontade de xingá-lo ao vê-la em prantos? Mary, querida,
não chore. Por favor.
— Tudo bem, já estou melhor. O desabafo me acalmou. Que bom ter alguém para me
ouvir! E, se isso o consola, saiba que eu larguei Hanson falando sozinho, no meio da
estrada.
— Ei, doutora, pelo que me diz posso deduzir que Kingdom Come já está
corrompendo as suas boas maneiras.
Ele começou a beijá-la de novo, desta vez usando sua língua quente e úmida para
persuadi-la a abrir os lábios. Em seguida, beijou-a nas pálpebras, no queixo, no pescoço. A
excitação cresceu no corpo de Mary e sua respiração se tornou ofegante.
Traiçoeiramente, suas mãos começaram a acariciar as costas e os ombros de Rafe.
Ela poderia ter mordido o lábio para recuperar o autocontrole, mas estava tão envolvida
naquele abraço delicioso, sentindo as mãos fortes dele alisarem com sensualidade as suas
curvas, que voltou a sentir aquela sensação úmida entre as pernas. Estremecendo, Mary
apertou as coxas uma contra a outra, tentando evitar que seu parceiro notasse sua excitação.
Encorajado, Rafe pressionou seus quadris contra os dela, abrindo com habilidade o
robe de seda e tomando um seio rijo nas mãos. Mary sentiu-se como se seus ossos
estivessem derretendo, e pensou que fosse desmaiar de prazer quando os pêlos do bigode de
Rafe roçaram o vale entre os seus seios.
— Mary... — sussurrou ele com voz rouca. — Eu quero tanto entrar em você, possuí-
la, que até dói...
— Por favor, pare com isso. Pare... Escute, por favor!
— Ahhh, doçura... Eu vou parar. Mas admita que gosta disto, admita...
— Não. Não!
— Você... Mary, você é frígida?
Embaraçada, ela fechou o roupão com mãos trêmulas, evitando encará-lo.
— Não sou frígida. Mas... eu... ainda...
— Você é... virgem, Mary?
— Sim.
— Oh, querida. Venha cá, quero abraçá-la.
— Rafe... Oh, por que não podemos ficar só nos beijos?
— Pelo amor de Santo Antônio, Mary. Você acha que a natureza nos criou só para
beijos? É maravilhoso o encontro das nossas bocas, não nego. Mas deixe-me ensiná-la
também a fazer amor, um ato de indescritível prazer e...
— Não. Se é assim, pare de me ver.
— Muito bem, Dra. Margulies. Já que exige, seguirei as suas regras de parar nos
beijos. Mas só até convencê-la a ir mais fundo nos mistérios da paixão. Enquanto isso, temo
que os banhos gelados que precisarei tomar acabarão com a minha saúde. Culpa sua, ouviu?
Mary sorriu vivamente. Ficando nas pontas dos pés, apoiou as mãos no peito de Rafe
e deu-lhe um beijo no rosto.
— Não vou tentá-lo mais, prometo.
— Você está fazendo isso agora mesmo. Que tal pôr alguns metros de distância entre
nós e ir preparar um chá, enquanto eu conserto o aparelho de ar condicionado?
— Não tenho chá verde em casa.
— É melhor passar a ter, porque eu pretendo vir muitas vezes aqui...

Quando Mary viu Angelita Vargas sentada na sala de espera da clínica com seu filho
Tranquilito ao lado, esqueceu todos os seus temores relacionados a Rafe, até mesmo o fato
dele haver se aproximado dela mais que qualquer outro homem.
— Esta é a senhora que esteve aqui a semana passada mas não quis esperar pela sua
volta — explicou La Jean, comunicando com um olhar que aquela era a mesma mulher com
medo de apanhar do marido por ter ido à clínica.
Angelita aparentava um certo desconforto em seu rosto redondo e cheio. Mary
pressentiu que a mulher esperava que ela não fizesse mal ao seu filho. Tranquilito, um
garoto aparentando seis ou sete anos, parecia limpinho e vestia roupas apresentáveis. Mary
gostou da forma como Angelita cuidava da criança. O que não gostou foi de ver manchas
roxas no rosto e nos braços da pobre mulher.
Tranquilito Vargas sorriu para Mary, quando ela se abaixou para cumprimentá-lo.
— Olá. Eu sou a Dra. Margulies.
— Eu sei. Você é la soltera.
O sorriso do menino se alargou mais ainda quando viu que a médica não ficara brava
por ele tê-la chamado pelo apelido.
O cabelo castanho e encaracolado do garoto e seus olhos escuros lembraram a Mary
o seu irmão Michael quando pequeno. Pena que Michael tivesse se desviado do caminho
certo, indo parar na prisão.
Imaginando que a sala de exames assustaria o menino e sua mãe, Mary decidiu
conversar com os dois na própria sala de espera. La Jean, com discrição, desculpou-se e
saiu.
— Meu Tranquilito é um garoto muito bom. Tira boas notas da escola paroquial,
gracias a Dios, e me ajuda a tomar conta das suas irmãs menores.
O menino corou envaidecido com o elogio, mas desviou o rosto, encabulado, quando
o motivo da consulta veio à tona: molhar a cama.
— As irmãs dele dormem juntas e não molham a cama. Tranquilito possui seu
quartinho separado... e molha a cama todas as noites. De manhã, depois do café, ele vai para
a escola no ônibus que seu pai dirige. Enquanto isso, eu preciso ir ao canal buscar água para
encher a máquina de lavar, sempre de olho nas meninas. Todo dia há lençóis e um pijama
para lavar.
Mary sabia que Tranquilito poderia ser um menino normal, apenas um pouco
atrasado em desenvolver o controle da bexiga. Ela poderia tratar o problema com remédios,
mas preferiu não fazê-lo. Antes, experimentaria outros métodos naturais. Voltou sua atenção
para o garoto.
— Bem, Tranquilito, você já é um rapazinho e quer parar de molhar a cama, certo?
— Certo, soltera.
— E você, Angelíta, também quer que ele pare, não? Por que não tenta fazer o
menino levantar mais cedo, ir buscar água no canal e lavar os seus lençóis e pijamas
sozinho?
Angelita evitou encarar Mary. A mulher devia estar escondendo algo.
— Fale, Angelita, o que foi?
— Mi esposo, sabe, ele... é muito orgulhoso. Essa história de molhar a cama... isto
não é coisa de macho. Ele não queria que eu viesse aqui.
Aquilo explicava as manchas roxas em seu rosto e braços.
— Fernando, mi esposo, não admite que os outros saibam do problema do nosso
filho. Eu fazia o que a senhora me recomendou agora, mas Fernando me mandou parar antes
que alguém reparasse. E ele vai ficar furioso se descobrir que eu vim à sua clínica. Como
devo agir?
— No momento, Angelita, tente dar a Tranquilito alguma coisa salgada antes dele ir
dormir. Talvez uma tortilla ou um pedaço de carne. O sal impede que o líquido passe
livremente dos vasos sangüíneos para os rins.
— Mas o menino vai ficar com sede, soltera.
— Demora uma hora para a sede começar, e até lá ele estará dormindo. Mantenha
seu filho o maior tempo possível sem urinar durante o dia. E, claro, não o deixe beber nada
antes de ir para a cama. Volte aqui dentro de três ou quatro semanas para que eu observe o
progresso de Tranquilito, está bem?

No feriado de Quatro de Julho, Eddie resolveu dar uma festa e Mary concordou em ir
com Rafe.
Ela arrumou-se com cuidado, vestindo o seu velho companheiro de festas: o vestido
preto de chiffon, decotado e sem mangas. Durante a tarde, a perspectiva de encontrar Rafe
fizera seu sangue correr mais rápido nas veias. Mas, naquele momento, ela se arrependia de
ter aceito o convite.
Usando um terno azul-marinho com camisa azul clara, Rafe dirigia seu MG em
silêncio, um brilho zangado nos olhos castanho-dourados.
Mary sabia a causa daquele comportamento frio e distante. O dono da Hacienda
Encantada estava arrependido por ter prometido algo que não estava gostando de cumprir:
manter-se a distância das tentativas de sedução. Sem dúvida, ele se sentia como um touro
castrado.
O que acontecera às conversas inteligentes entre os dois? Será que as mulheres não
passavam de uma fonte de sexo para o másculo Rafael Anaya?
A noite estava destinada ao fracasso e ambos queriam terminá-la o mais rápido
possível.
Eddie recebeu-os à porta, brindando Mary com um olhar de admiração mal
disfarçada. Por trás dele a vitrola estéreo tocava música de discoteca e vários casais
dançavam.
— Ei, até que enfim vocês chegaram. Eu estava começando a acreditar que o meu
amigo aqui ia guardá-la só para si, Mary. Sou Eddie Williams, e deixe-me dizer que você é
encantadora!
— Chega de elogios, Eddie, você tem a sua própria namorada — disse Rafe,
aborrecido.
La Jean abriu caminho no meio dos convidados e foi cumprimentar a amiga.
— Pensei que não viesse mais, querida. Você é a estrela da noite. Todos estão loucos
para conhecê-la! Vou apresentá-la aos nossos amigos. Venha.
Eddie contrariou a namorada afirmando que ele, o dono da festa, faria as
apresentações. Mas Rafe, um homem possessivo, não confiava nem mesmo em seu amigo.
Não largou de Mary quando a levaram para uma sala onde as pessoas conversavam. Todas
as mesas e a cozinha estavam transbordantes de doces e salgadinhos, e a bebida corria solta.
Os convidados se divertiam a valer.
Eddie dava sempre festas ótimas, às quais ninguém gostava de faltar. Com uma
herança gorda para sustentá-lo, poucos compreendiam sua vontade de trabalhar como
patrulheiro.
Rafe discretamente dispensou o amigo e tomou a seu cargo a tarefa de apresentar
Mary aos outros convidados: Malom, o curador do pequeno museu da cidade; Bárbara, a
cabeleireira; Ethel, a mulher do advogado, cuja língua afiada não deixava as pessoas
pararem de rir; Big Al, um ferroviário com cara de cachorro São Bernardo.
Todos simpatizaram de imediato com Mary. Rafe, observando-a relacionar-se com as
pessoas, teve de admitir que ela era diferente de todas as outras mulheres com quem já saíra:
possuía calor humano, um espírito alegre, coragem, inteligência. Deus, Rafe estava louco
por ela!
A chegada de Beau Brewster, acompanhado por Christina Anderson, Bjorn e sua
esposa, trouxe Rafe de volta à realidade. Especialmente quando Mary cumprimentou Beau
com entusiasmo e alegria genuínos. Enciumado, o dono da Hacienda Encantada deu as
costas ao grupo que cercava Mary e desviou sua atenção para o outro lado da sala, onde W.
H. Delbert, o advogado de Kingdom Come, contava piadas.
Christina deu apenas uma olhada na direção de Mary e descartou-a de seu
pensamento, não sem antes catalogá-la como vulgar: ruiva, sardenta e cheia de curvas
insinuantes.
Sem perceber, Christina alisou com as mãos o tecido de seu elegante vestido, colado
aos quadris. Seus lábios se curvaram num sorriso e ela saiu à procura de Rafe, empenhado
numa conversa séria com um homem gordo.
Os fogos de artifício soltos em homenagem ao Quatro de Julho não tiveram graça
para Mary, que ficou ao mesmo tempo triste e zangada quando puseram um disco de música
lenta na vitrola e Christina Anderson colou seu corpo ao de Rafael Anaya numa dança
sinuosa.
Quando Rafe por fim tirou Mary para dançar, ela permaneceu dura com um pedaço
de tábua em seus braços. Tentando quebrar o clima tenso, ele procurou puxar assunto, sem
sucesso.
— Você está linda, Mary.
— Obrigada.
— Eddie faz ótimos drinques.
— Também acho.
Rafe desistiu de conversar. Afinal, não era isso o que ela queria? Ser deixada em paz,
sem avanços sexuais? "Ora, vá entender as mulheres e acabe ficando maluco", refletiu ele.
A volta para a casa de Mary foi feita em silêncio e ambos se sentiram aliviados
quando se viram sozinhos com seus pensamentos no final da noite.

Na semana seguinte a clínica recebeu uma visita inesperada e misteriosa. Por


coincidência, Mary e La Jean chegaram ao mesmo tempo ao consultório. Nenhuma das duas
trouxera à baila comentários sobre a festa de Eddie, na semana passada. Mas Mary
surpreendia às vezes um ar de curiosidade no rosto da sua recepcionista.
— Não acredito! — Foram as primeiras palavras de La Jean quando destrancou a
porta e abriu-a.
Livros e revistas, fichas, amostras de remédios... Tudo havia sido tirado das
prateleiras e da mesa e jogado no chão. Uma estátua de uma mulher embalando o filho,
presente de um amigo da faculdade, fora feita em pedaços.
La Jean abaixou-se e começou a recolher os cacos comentando:
— Algum dos seus pacientes não gostou da conta.
Mary não foi capaz de sorrir da brincadeira. Foi para a sala de exames onde a mesma
imagem se apresentou diante de seus olhos: vidros quebrados, armários revirados. Por sorte
nenhum dos equipamentos fora danificado ou roubado.
Como nada estivesse faltando na clínica, ficou claro que a desordem fora um ato de
puro vandalismo. Um ladrão não deixaria para trás vidros de drogas fortes e equipamentos
caros.
— Quem, e por que fez uma coisa destas? Por quê? — indagou La Jean, indignada,
pondo os objetos em ordem.
— Não sei. Muita gente não me quer aqui.
— Você vai notificar as autoridades?
— Não.
— Ficou doida, Mary? Da próxima vez pode não ser a clínica, mas, sim, o seu corpo
a ser encontrado neste estado!
— Não concordo. Se esse ódio fosse dirigido a mim, teriam destruído a minha casa,
não o meu consultório.
— Ou você é muito ingênua, ou muito corajosa, minha amiga.
— Ok, ok, vou apresentar queixa na delegacia. Mas pode apostar: nunca
descobriremos o autor desta bagunça.
CAPITULO VII

Quase na hora de fechar a clínica Rafe apareceu. La Jean ergueu os olhos da máquina
de escrever, onde batia algumas fichas. Apesar de apaixonada pelo simpático Eddie, ela
continuava a apreciar a beleza do fazendeiro e a sonhar com sua sensualidade máscula.
De acordo com as fofocas, ele não ligava a mínima para dinheiro. Mas, no que se
referia a sexo... Lendas de sua fantástica virilidade se espalhavam por toda a cidade.
Parado na porta do consultório, Rafe vestia jeans sujos de terra e uma camisa branca
de trabalho que acentuava o tom bronzeado de sua pele. A camisa, ligeiramente aberta,
revelava um peito musculoso. Gotas de suor brilhavam em seu cabelo caído sobre a testa.
Será que o bigode dele fazia cócegas na hora de beijar? La Jean gostaria de perguntar
isso à sua patroa, mas não tinha coragem para tanto. Mary era tão reservada, jamais
admitiria ter qualquer relacionamento mais íntimo com o dono da Hacienda Encantada. Ela
nem mesmo pronunciara uma vez o nome de Rafe depois da festa do Quatro de Julho. E, de
acordo com Eddie, o poderoso Sr. Anaya saíra frustrado de todas as visitas que fizera à
casinha da doutora.
— Boa tarde, Rafe, posso fazer alguma coisa por você?
— Mary está aí, La Jean?
A recepcionista animou-se. Talvez ele mudasse o estado civil de sua empregadora se
se esforçasse um pouco. Ou talvez não... Rafe era muito orgulhoso do seu status de playboy
garanhão para se deixar envolver nas teias do casamento assim sem mais nem menos. Com
certeza ele viera procurar a médica para tratar de negócios.
— Sinto dizer-lhe, mas Mary saiu. Foi ao rodeio... com Beau Brewster.
— E por que diabos tinha que ir ao rodeio com ele?
— Para cuidar dos feridos, quem sabe? Ouvi dizer que há animais bravíssimos este
ano, prontos a arrancarem pedaços dos cowboys.
— Mary não precisa de um bancário para ajudá-la a prestar primeiros-socorros.
La Jean deu um risinho malicioso, alimentando o evidente ciúme do fazendeiro.
— Ela me contou que nunca tinha visto um rodeio, e que estava contente por Beau
tê-la convidado para assistir a um. Beau costumava domar cavalos quando adolescente e
deve ser um cicerone interessante para uma pessoa inexperiente no assunto. Além de ser um
rapaz gentil e agradável, claro.
— Beau mais cai do cavalo do que qualquer outra coisa! Obrigado e passe bem, La
Jean — resmungou Rafe ao sair da clínica.
No caminho de volta para a sua fazenda, ele murmurou impropérios o tempo todo.
Então Mary saía com Beau ao primeiro estalar de dedos, enquanto que ele era rejeitado!
Rafe sempre se considerara terno e delicado com as mulheres, mas Mary despertara nele um
instinto sexual selvagem e a vontade de destruir algo, começando por Beau Brewster.
O orgulho dele estava ferido e sua autoconfiança abalada, além de sentir-se frustrado.
Mary se tornara uma obsessão, mas por quê? Nem ao menos fazia o seu tipo. Imagine, uma
mulher intelectualizada!
No entanto, Rafe teve que reconhecer que procurava enganar a si mesmo: Mary era
mais do que o seu tipo; era tudo o que sempre sonhara encontrar numa mulher. E ele não
conseguia controlar seu desejo por aquela ruiva encantadora.
Fora diversas vezes à casa dela consertar pequenos defeitos e uma vez para tomar
café. E nestas raras visitas não lograra roubar nem um só beijinho. Mary se mantivera a
distância, regando e podando as plantas e mudando os vasos de lugar.
Rafe odiou-se por estar praticamente implorando a atenção de uma mulher, algo que
não costumava fazer. Mas só de pensar em como ela era deliciosa, no formato sensual de
sua boca, o sangue fervia-lhe nas veias.
Seu maior desejo naquele instante era possuí-la, para ver se punha um fim à paixão
que o consumia e que acabaria por provocar-lhe uma úlcera.
Talvez uma outra mulher disposta a se entregar acalmasse sua fome de sexo... Não,
não adiantaria; ou ele possuía Mary ou enlouqueceria.
Mary combinava uma aura de sensualidade com uma inocência infantil de modo tão
perturbador que Rafe sabia que não resistiria muito tempo à tentação de procurar seduzi-la.
Mas ela parecia ter antenas invisível que a preveniam dos seus ataques. Bastava um
sinalzinho de perigo para que Mary se fechasse numa concha impedindo-o de realizar a sua
aspiração: levá-la para cama.
Irritado, Rafe trancou-se em seu escritório, disposto a trabalhar a noite inteira. Pegou
uma pasta com os papéis da contabilidade da fazenda, num esforço para afastar do
pensamento a imagem de um par de olhos acinzentados e cachos de cabelos ruivos.
Por volta das onze horas seu capataz o interrompeu. Miguel bateu à porta, nervoso, e
esperou permissão para entrar.
— Si, Manuel?
— Patrón, aconteceu um acidente.
Miguel não costumava ser tão reticente. O tal acidente devia ser algo fora do normal.
— De que tipo, Manuel? E onde?
— Um tiroteio. La migra baleou um mojado. Eu estava checando o dique no rio
quando ouvi os tiros e vi as luzes do carro da Patrulha.
— A Patrulha da Fronteira prendeu o imigrante?
— Não, patrón. La migra só riu e falou em espanhol:
“Apareça imediatamente, eu já vi você." Ninguém se moveu. Então a voz repetiu:
"Não brinque comigo, ou será pior para você, Saia do seu esconderijo agora ou eu o farei
sair a bala". Depois de uns vinte ou trinta segundos ouvi três tiros. Logo depois escutei o
mojado cair na água. La migra jogou luzes em cima dele, mas o homem já estava do outro
lado do rio. Eu me escondi e esperei la migra ir embora. Acho que o imigrante foi ferido,
patrón.
— Muito bem, vá buscar uma lanterna no celeiro. Eu vou apanhar la soltera e pego
você no caminho.
Quando Mary abriu a porta Rafe se sentiu como se tivesse dado uma trombada num
muro de tijolos. Ela vestia o roupão de seda e seus cabelos soltos a deixavam como uma
ninfa. Os bicos rijos de seus seios formavam duas ruguinhas no tecido fino do robe. Rafe
lamentou não poder aproveitar a sonolência dela e recolocá-la na cama... em sua companhia.
— Rafe? O que houve? — indagou Mary com voz enrouquecida pelo sono.
— Um tiroteio. A Patrulha da Fronteira feriu um imigrante ilegal assim que ele
atravessou o rio.
— O homem... está muito mal?
— Não sei. Ele desmaiou depois de voltar para o lado mexicano, fora da jurisdição
dos Estados Unidos.
— Vou apenas vestir uma roupa. Não demoro.
Rafe reprimiu seu primeiro impulso de segui-la e observá-la trocando de roupa.
Contentou-se em estudar a sala da casa, personalizada por toques femininos: plantas,
almofadas coloridas, livros e estatuetas.
— Estou pronta, Rafe. Vamos?
— Onde está a sua maleta?
— No porta-malas do meu carro.
— Iremos de caminhonete. O terreno na beira do rio é muito esburacado, quase
inacessível.
Ele pegou a maleta no porta-malas do Mustang e em seguida dirigiu-se à
caminhonete, onde Mary já o esperava com uma pergunta nos lábios:
— Hanson é o responsável pelos tiros?
— Suponho que sim. O procedimento usual consiste em fazer perguntas primeiro e
atirar apenas em último caso. O fato do homem ter nadado de volta para o México indica
que não foi ele quem disparou a primeira bala. E, depois, Eddie me avisou que ia sair com
La Jean hoje à noite. Portanto, só pode ser Hanson quem está de serviço.
Para dizer a verdade, Eddie convidara Rafe para sair junto, mas ele não se dispôs a
arrumar uma acompanhante através do seu caderninho de telefones. Prometera a si mesmo
fazer um voto de castidade antes de procurar Mary para sair com ele.
Miguel esperou pela caminhonete no acostamento da estrada, com uma lanterna na
mão. O fazendeiro apresentou-o à médica e não pôde evitar de zangar-se ao perceber o olhar
de admiração que seu capataz dirigiu à mulher ruiva e de pele clara. Será que ninguém
resistia aos encantos dela?
Os faróis da caminhonete iluminavam trechos de campos cobertos por cactos,
arbustos, salvas e chaparros. Mais para perto do rio, algodoeiros e chorões serviam de muro
para a fronteira. Mary precisou se agarrar ao painel do veículo para não enfiar a cara no
pára-brisa a cada solavanco. Para não se perder, Rafe seguia os sinais luminosos fincados na
margem do Rio Grande.
— Mais para lá, patrón — orientou Manuel, apontando em direção a uma elevação
do terreno, coberta de arbustos altos.
— É melhor largar a caminhonete aqui e continuarmos a pé.
A lanterna trazida por Manuel fornecia a única luz, visto que não havia luar. O
capataz começou a abrir caminho por entre os arbustos e Rafe ficou por último, mantendo
Mary entre eles. Precisavam de cautela para não pisar em nenhuma cascavel, cobra muito
comum naquela região.
Do outro lado do pequeno morro havia mais grama do que mato alto, facilitando a
caminhada. Manuel iluminou a outra margem do rio. As águas estavam calmas, e só quem
as conhecesse bem saberia que na época das cheias elas inundavam boa parte do terreno
agora seco.
— Eu poderia jurar, patrón, que el mojado atravessou bem por aqui e desmaiou lá do
outro lado. Perto daquela pedra grande.
O rio corria em linha reta naquele ponto, com quase cinqüenta metros de largura. A
maioria das travessias eram feitas em locais semelhantes, porque onde o rio faziam curvas
costumava haver buracos fundos e redemoinhos perigosos. O facho da lanterna não mostrou
nenhum homem caído, só pedras, chaparros e um pneu velho.
— Talvez o homem não tenha sido ferido, afinal — sugeriu Mary.
— Não! Lá está ele! A uns quinze metros da pedra. Vamos atravessar o rio.
— Rafe... Eu não sei nadar.
— Nunca aprendeu, Mary?
— Não, eu me ocupei em aprender coisas mais importantes em vez de freqüentar
piscinas!
Rafe percebeu que o medo a fizera responder com agressividade e não ficou
chateado. Pelo contrário, a vulnerabilidade dela despertou seu instinto de proteção. Um
instinto perigoso e que podia representar o primeiro sintoma de uma doença séria: amor.
— Mary, tire os tênis e me dê a maleta. Vamos atravessar em diagonal, seguindo a
corrente. O rio não é fundo aqui, exceto pelos últimos metros. Portanto não se preocupe.
Mas ela relutava em entrar na água escura e barrenta.
— Apavorada, la soltera?
A provocação de Rafe surtiu o efeito desejado, fazendo-a sair do seu torpor e,
segurando a mão dele, entrar no rio.
A travessia foi feita devagar, com Rafe procurando a cada passo um ponto de apoio
firme. Manuel ia na frente com a lanterna erguida sobre a sua cabeça. Em determinado
trecho a água começou a cobrir o peito do capataz, que era pelo menos trinta centímetros
mais alto que Mary. O fundo do rio tornou-se mais e mais lodoso, fazendo os pés afundarem
na lama. Rafe sentiu as unhas dela enterrarem-se na palma da sua mão. Será que Mary
entraria em pânico? Ele esperava que não.
Quando o capataz alcançou a terra firme, seu patrão chamou-o:
— Manuel!
— Si, patrón?
— Apanhe a maleta!
— Pode jogar!
O fazendeiro atirou a maleta ao mesmo tempo que ouviu um grito:
— Rafe! Socorro!
Ele virou-se rápido para trás. A água cobria Mary até o pescoço, fazendo-a perder o
equilíbrio por causa da correnteza mais forte naquele local.
— Segure-se nos meus ombros, Mary!
Com os seios dela colados às suas costas, Rafe, agarrando-se a tufos de grama,
conseguiu arrastá-la para fora da água. Exaustos, os dois ficaram deitados no chão por
alguns instantes recuperando o fôlego.
— O homem — disse ela de repente, levantando-se e seguindo o facho da lanterna de
Manuel.
O mexicano jazia deitado de bruços, nu. Ao seu lado estava um saco plástico com a
boca amarrada — um método usado para se ter roupas secas, documentos e comida depois
de atravessar o Rio Grande. O homem murmurou palavras incompreensíveis e tentou se
levantar para fugir.
— Está bien, no somos la migra — Rafe procurou acalmá-lo.
Mary ajoelhou-se ao lado do mexicano, e o capataz iluminou-o. As mãos dela
percorreram profissionalmente o corpo nu.
— Não há nenhum osso quebrado e nenhum ferimento. Virem-no de costas, por
favor. Devagar.
Manuel e Rafe viraram-no com facilidade, pois o mexicano era magro e leve.
Puderam ver, então, um ferimento em sua coxa direita.
— Agora, levantem a perna dele para mim. Não parece um ferimento sério. Se a bala
tivesse atingido a artéria femural, ele já teria morrido de hemorragia.
— E a bala, Mary?
— Deve estar alojada dentro da perna. De que calibre será?
— Se for de um revólver da Patrulha, calibre 38 com certeza. Você vai extrair o
projétil?
— Não, Rafe. Parece não haver danos neurovasculares e, como a bala não atingiu o
osso, poderá ficar onde está. O sangramento natural limpará a área internamente.
Mary desinfetou a ferida com um algodão embebido em álcool e aplicou um
torniquete para estancar a hemorragia. Colocou compressas de gaze e prendeu-as com
firmeza, usando esparadrapo largo. Em seguida, removeu o torniquete.
— Diga ao homem para, mais tarde, observar se o local ferido incha em excesso. Ele
deve permanecer com a perna erguida, com compressas de gelo, por cima, se possível.
Diga-lhe também para não remover o curativo por três ou quatro dias.
Rafe traduziu as palavras da doutora para o mexicano, que disse algumas frases em
resposta.
— Mary, ele explicou que tem um primo numa vila aqui perto e quer saber se pode
caminhar até lá.
— Creio que sim, se Manuel o ajudar. Mas avise-o de que precisará repousar
bastante nas próximas semanas.
O capataz ajudou o mexicano a levantar-se e partiu com ele, levando a lanterna.
Rafe abraçou Mary pela cintura e estudou a curva suave de seus lábios. Sentiu-se
tentado a jogá-la no chão e possuí-la ali mesmo, para comemorarem seu triunfo sobre as
forças do mal: a violência do chefe Hanson.
Se fosse qualquer outra mulher, Rafe com certeza já teria se desinteressado dela há
muito tempo. Mas aquela mulher ruiva parecia diferente, mais do que uma simples fêmea
feita para proporcionar prazer. E, quanto a ele, mais parecia um homem apaixonado
analisando seus sentimentos em relação à amada...
— Pronta para atravessar o rio de novo, doçura?
— Pronta! Mas o próximo cargo que eu aceitar será no meio de um deserto, sem nem
uma poça de água por perto!
Eles utilizaram a mesma técnica para atravessar o Rio Grande de volta: Rafe
segurando a maleta e Mary grudada às suas costas. Na outra margem, exaustos, recolocaram
seus calçados e ficaram um bom tempo sentados no interior quente da caminhonete,
descansando. Por fim, Rafe deu a partida no veículo para retornarem.
— Vou levá-la para casa e tirar essas roupas molhadas.
— Tirar as minhas roupas? Ora, acho que sou capaz de fazer isso sozinha.
— Você não vai nem me convidar para uma xícara de café, depois de eu tê-la salvo
de morrer afogada?
— Eu não estava me afogando!
— Mas eu estou, doçura. Me afogando no desejo de fazer amor com você.
Parando a caminhonete em frente à casa de Mary, Rafe tomou-a nos braços e
afundou o rosto em seus cabelos cheirando a gardênia.
— Mary... Deixe-me amá-la... Tocá-la... Você precisa me querer tanto quanto eu te
quero...
— Não, oh, não...
Mas os beijos dele em seu pescoço e a mão acariciando seus seios quase a
convenceram do contrário. Ela correspondeu ao abraço sem perceber, suspirando.
— Oh, Rafe, por que você faz isso comigo? Quinze minutos na sua companhia e o
meu estômago começa a queimar, me obrigando a tomar meio vidro de antiácidos.
— Eu não faço de propósito, querida. Mas aposto que se você se entregasse a mim,
veria a sua azia substituída por uma sensação mil vezes melhor. Aliás, da próxima vez...
— Convencido! O que o leva a pensar que haverá uma "próxima vez"?
Com um sorriso maroto, Mary desceu da caminhonete e esperou que ele a levasse até
a porta da sua casa.
— Não ganho um beijo de boa-noite, Sr. Anaya?
Rafe, furioso consigo mesmo por se deixar enfeitiçar tão facilmente, deu-lhe um
beijo na testa, só para castigá-la. Mas não resistiu e beijou-a também no pescoço e na boca,
jurando que quando fosse solicitar outro médico depois da partida de Mary especificaria
bem o sexo: um médico homem.
CAPITULO VIII

— Hermalinda está aqui — anunciou La Jean.


Mary fechou os olhos e esfregou as têmporas, desanimada.
— Mande-a esperar na sala de exames. E fique de olho na rua. Não quero ver o chefe
Hanson invadindo a minha clínica.
Mary examinou as fichas sobre a sua mesa. Apenas dezenove pacientes em um mês.
Um velho bêbado que não pagara a consulta, pessoas que ela conhecera na festa de Eddie e
outras que o padre John mandara.
Claro que numa cidade de população pequena não se podia esperar que a clínica
enchesse de gente todos os dias. Mas dezenove pacientes só... abatiam o moral de qualquer
um. Por sorte a igreja e a comunidade contribuíam com pequenas quantias, o que ajudava a
pagar as despesas.
Lembrando-se da paciente à sua espera, Mary foi para a sala de exames, relutante.
Hermalinda Hernández sempre pagava suas consultas. Mas o que aconteceria à sua carreira
de médica, se ela fosse apanhada em flagrante, cuidando da garota?
Hermalinda estava, sentada na mesa de exames, completamente vestida. Sua face
possuía a expressão suave das futuras mães, e seus dedos calejados cruzavam-se sobre a
barriga num gesto instintivo de proteção maternal.
— Buenos dias, soltera.
— Bom dia. Ouvi dizer que la migra prendeu e deportou você.
— Si. Mas eu voltei, como pode ver. Meu filho nascerá em território americano!
— Eu já lhe disse, Hermalinda, que não vou trazer o seu bebê ao mundo.
— Que será, será.
Mary conhecia a frase, e sabia qual era a esperança da garota. A mexicaninha
esperava que ela cedesse no último momento e fizesse o parto. Mas o que a moça não sabia
era que a Dra. Margulies dispunha de uma determinação férrea.
— Detesto destruir a sua fé na bondade humana, Hermalinda, mas não posso e não
vou arruinar a minha carreira fazendo o seu parto. E agora suba na balança, por favor... Meu
Deus! Você engordou mais de dois quilos! Como?
— Talvez eu carregue dos bebês... Gemelos.
— Esperemos que não. Sua bacia é estreita demais para gêmeos. Você precisaria da
assistência de um médico para o parto.
— Mas eu tenho um médico. Você.
— Apenas pelos próximos meses. E observar o desenvolvimento da sua gravidez não
indica que irei trazer o seu bebê ao mundo, entendeu?
A garota sorriu e fez um ar de tola.
— Hermalinda, vou lhe explicar de novo. Ouça: se la migra a apanhasse agora no
meu consultório, você iria para a prisão de El Paso.
— Bah! Eu cheguei. La migra está no sul daqui em patrulha.
— Não subestime a Patrulha da Fronteira, Hermalinda. Quem manda nesta área é o
chefe Hanson, e ele pode ser muito cruel.
— Este Hanson é um homem pequeno por dentro, eu acho. — Opinou a garota,
calçando suas sandálias sujas e preparando-se para ir embora.
— Bem, provavelmente você sabe como lidar com Hanson melhor do que eu. Mas
conte-me uma coisa: seu marido não se preocupa por você atravessar a fronteira, arriscando
a sua liberdade e a sua vida, para vir me ver? E arriscando a vida do filho dele, inclusive?
— Marido, soltera? Que marido? Meus pais tinham quinze filhos e eram muito
pobres. Me venderam para um bordel aos catorze anos. Aprendi inglês com os fregueses de
lá. No mês passado comprei a minha liberdade da "patroa". E, quanto ao bebê, não sei quem
é o seu pai. O que eu sei é que ele terá cidadania americana e um futuro melhor que o meu.
Vou indo. Adiós.
— Adiós, Hermalinda. E cuidado com la migra — aconselhou Mary, triste com a
história da garota.
Rafe sumira do mapa por uma semana inteira. Por que um homem e uma mulher
nunca podiam ser bons amigos? Por que simples beijos não satisfaziam os homens? Talvez
Mary fosse mesmo muito ingênua. Uma virgem ingênua de trinta e cinco anos. Uma
solteirona...

Três horas e trinta minutos. Ainda havia tempo para se arrumar antes do ônibus parar
na tienda do Vicente. Enquanto punha o vestido riscado de preto e branco, Mary fez
algumas contas de cabeça: sim, isso mesmo, há três meses não via seu irmão Billy. Quando
viera para Kingdom Come, ela passara em Midland, onde seu irmão trabalhava nos campos
de petróleo. Ela nunca ficara sem vê-lo tanto tempo, desde que começara a clinicar para o
Serviço Nacional de Saúde. Antes disso, durante os difíceis anos da época da faculdade,
Amy, Mary e Billy moravam juntos.
Havia acontecido brigas entre os três, lógico, principalmente quando os mais novos
resolviam questionar a autoridade da irmã mais velha. Eles não entendiam, por serem muito
jovens ainda, que deviam se unir por não terem mais ninguém no mundo.
E tinham passado por dificuldades financeiras: havia meses em que o dinheiro não
dava para comprar comida suficiente para todos. Tempos de dureza, quando se tornava
difícil explicar para Amy que livros de escola eram mais importantes que estojos de
maquilagem.
Mas como esquecer os instantes de alegria? O dia em que Amy e Billy fizeram um
bolo de aniversário para a irmã, um bolo com gosto de massa crua? Mary rira e chorara, pois
aquele fora o seu primeiro bolo de aniversário na vida...
O telefone interrompeu suas lembranças.
— Alô?
— Mary? Aqui fala Rafe.
— Reconheci a sua voz. O que você quer?
— Não me sinto bem. Você pode passar na minha casa para dar uma espiada em
mim? Ver o que eu tenho de errado?
— Com certeza uma ressaca.
— Não... Mary, honestamente... Me sinto super-mal. Devo estar com gripe.
— Chame Josefita. Ela pode curá-lo tão bem quanto eu.
— Mas ela não me trataria com o mesmo carinho que você.
— Rafe, desculpe. Meu irmão Billy vai chegar daqui a pouco e eu preciso esperá-lo
na tienda do Vicente.
— Você me deve uma consulta pelo pneu furado que troquei, lembra? Por favor...
Venha.
Rafe não costumava pedir nada. Seu orgulho de hidalgo não o permitiria jamais. Se
ele pedia por favor, é porque na certa estava mal de verdade.
— Muito bem, então. Deixe-me apanhar Billy e depois eu passo para vê-lo.
A caminho da porta Mary pegou sua maleta. Ela era sem dúvida uma tola por atender
ao chamado de Rafe. Mas com seu irmão do lado, Rafe saberia controlar seus avanços.
O ônibus prateado parou em frente à tienda assim que ela estacionou seu Mustang
perto da calçada. Billy desceu segurando sua mala e o coração de Mary disparou.
O que acontecera ao garotinho de nariz escorrendo, com o inevitável grilo de
estimação no bolso da calça? O rapaz que vinha em sua direção era alto, musculoso.
— Billy!
— Maninha!
Os dois se abraçaram forte, rodopiando, fazendo com que os transeuntes parassem
para olhá-los.
— Oh, como você cresceu! Meu Deus! E este bigode, é de verdade?
— Ei, eu me transformei num homem, maninha! E trabalhador, ainda por cima!
— Eu sei. Mas, nestes feriados, nada de trabalho! Vamos nos divertir. Pegue a sua
mala, quero mostrar logo a minha casinha para você.
Entretanto, durante o trajeto para a Hacienda Encantada, Mary preocupou-se. Que
tipo de divertimento ofereceria a um jovem saudável em Kingdom Come? E ainda por cima
precisava passar na fazenda para examinar Rafe. Belo modo de se começar um feriado!
Billy não fechou a boca num só minuto. Falou sobre seus amigos, sua profissão, seu
velho calhambeque. Mas a visão da casa imponente, a sede da fazenda, deixou-o mudo e
espantado.
— ...Maninha! Você mora naquela casa?!
— Não. Desculpe destruir a sua alegria, eu moro naquela casinha ali.
— Ah...
— Não desanime! Você vai conhecer a sede da fazenda. Preciso passar lá agora para
examinar o dono, que é meu... amigo.
— Jóóóia!
Um Rafe descalço, sem camisa e pálido, atendeu à porta.
— Mary, doçura... Acho que estou morrendo. Me sinto como esterco de cavalo.
Os olhos de Billy se estreitaram ao ouvir o "doçura". O rapaz ia dizer algo quando
Mary o cortou:
— Billy, este é Rafael Anaya. Rafe, este é meu irmão, Billy Margulies.
Os dois se cumprimentaram sem entusiasmo.
— Agora que as apresentações foram feitas, posso examiná-lo, Rafe?
O fazendeiro levou-os para a sala e desabou sobre um sofá de couro. Jornais velhos,
um par de botas enlameadas e vários copos sujos espalhavam-se pelo chão.
— Desculpe a bagunça... Dra. Margulies. Carmelita vem apenas duas vezes por
semana.
Claro que Rafe não necessitava de uma esposa, com Carmelita fazendo a limpeza da
casa e Christina e outras mulheres lhe proporcionando prazeres noturnos... Afastando este
pensamento da mente, Mary abriu a sua maleta. Pegou o estetoscópio e aproximou-se para
examiná-lo.
— Cuidado, doutora! Esse negócio é mais gelado do que nariz de esquimó!
— Fique quieto e ponha o termômetro na boca.
Desinteressado, Billy enfiou as mãos nos bolsos e vagueou pela sala até chegar à
parede de vidro. Mary ouviu o irmão exclamar um "uau!" entusiasmado e virou-se a tempo
de ver o rapaz boquiaberto por causa da enorme piscina. Nunca tendo entrado na sede da
fazenda de dia, ela não havia reparado que no pátio externo existia uma piscina cercada por
bambus e flores.
— Dá para pôr a frota da marinha texana nesse tanque! — comentou o rapaz.
— Pode ir nadar, se lhe der na telha — ofereceu Rafe, tossindo ao falar. — Há
calções de banho sobrando na cabaña.
— Jóóóia!
"Então você arranjou um meio de ficarmos a sós, hein, Sr. Anaya? Pois prepare-se",
pensou Mary com seus botões, enfiando-lhe a espátula de madeira na boca para abaixar-lhe
a língua.
— Aagggh! Isso é necessário, doçura?
— Sim. E vire a cabeça para que eu possa examinar o seu ouvido.
— Qual o diagnóstico, doutora? Lepra em estágio avançado?
— Gripe comum.
— Comum? Impossível!
— Bem, algum vírus de pouca importância, talvez. Prescrevo uns dois dias na cama,
aspirina a cada quatro horas e bastante líquido. Eu lhe trarei um vidro de amostra grátis lá da
clínica.
Mary levantou-se do sofá e foi chamar Billy. O rapaz se encontrava no meio de um
salto ornamental que terminou numa tremenda barrigada.
— Deixe-o nadar mais um pouco, Mary. Você pode apanhá-lo quando voltar do
consultório.
Ela seguiu a sugestão de Rafe. A clínica estava vazia, pois La Jean já havia ido
embora. Depois de pegar as aspirinas, Mary passou na tienda do Vicente e comprou duas
latas de suco de laranja concentrado. Um "presente" para a saúde do enfermo.
Quando voltou à fazenda, Billy ainda nadava, feliz como uma foca. Ela preparou um
copo de suco, separou duas aspirinas do vidro e partiu à procura de Rafe. Encontrou-o no
último quarto, decorado em tons de marrom e dourado, deitado de bruços.
Ao escutar o som dos passos, ele deitou de costas e apoiou-se nos cotovelos.
— Você não me abandonou? Que bom!
— Pare com as gracinhas e tome o suco e as aspirinas.
— Pronto, tomei. Satisfeita, Dra. Margulies?
— Não fique irritado. Eu lhe disse para chamar Josefita, no entanto você quis a mim.
— E ainda quero. Ahhh, Mary, fique aqui este fim de semana e cuide de mim... Billy
iria gostar, aposto. Passaria o dia todo na piscina.
Ela não aprovou a idéia de início, mas, ao pensar no irmão, viu que Rafe estava certo.
— Está bem, eu ficarei.
— Ótimo. — Com um suspiro de satisfação, ele fechou os olhos e adormeceu.

O menino de mais ou menos dez anos, usando um surrado chapéu de folhas de


bambu, estava parado na valeta ao lado da estrada suja. A enxurrada barrenta lhe batia na
altura dos tornozelos. Nas mãos ele segurava uma lata de refrigerante. O garoto acenou e
sorriu quando os primeiros soldados surgiram no caminho. Um sargento atirou ao pequeno
vietnamita uma barra de chocolate pela metade.
De sua posição, no segundo tanque da fila, Rafe notou que o garoto não pegou o
chocolate. Estranho. Todas as crianças e todos os adultos passavam fome naqueles dias. E,
então, num movimento rápido, o menino jogou a lata de refrigerante na direção do primeiro
tanque. Rafe tentou abrir a boca para avisar seus companheiros, mas o tanque já explodira,
em meio a chamas alaranjadas.
O pequeno vietnamita saiu correndo, em frente à linha de tiro de um soldado
apavorado. Este ergueu sua automática calibre 30 e atirou no garoto e...
— Não! — gritou Rafe, sentando-se na cama, coberto de suor.
Quase que imediatamente Mary entrou no quarto, seu roupão de seda brilhando ao
luar que invadia o cômodo.
— Rafe... Tudo bem?
Algumas vezes, mesmo quando acordado, Rafe ainda podia ver uma das sandálias do
menino voando pelos ares, quando ele foi atingido pela rajada de balas. Sabia que aquele
acontecimento fora uma das razões que o fizeram desistir de ser um soldado.
— Tudo bem, doçura. Só um pesadelo, eu acho.
Mary não lhe pediu para contar o pesadelo. Em vez disso, ela acariciou-lhe o ombro,
dizendo com voz suave:
— Vou fazer um pouco de chá verde.
Incrível como Mary podia entendê-lo.
E ele soube naquele instante que, quando ela partisse, não conseguiria mais voltar à
boa vida de solteirão playboy. Dois dias de convivência com aquela mulher ruiva e Rafe a
desejava como nunca. Ela o fazia lembrar-se de sua avó, que o tratara com o mesmo carinho
e eficiência quando, ainda menino, tivera catapora e caxumba. Claro que Mary deixara bem
entendido que não estava pronta para se apaixonar por ninguém.
Mas Rafe estava.
Se houvesse alguma mulher no mundo capaz de fazê-lo pensar em casamento, esta
mulher era a Dra. Margulies. Só que Rafe sempre fora um andarilho. Quando criança, vivera
com os pais, mudando de um país para outro. Depois entrara para as Forças Armadas, onde
o esquema continuou o mesmo: nunca parar muito tempo no mesmo lugar. Ele não
conseguia se imaginar casado para o resto da vida e morando em Kingdom Come.
Sem se importar com a sua gripe, Rafe vestiu uma calça jeans e dirigiu-se à cozinha.
Encostou-se na geladeira e observou Mary pegar as folhas de chá e acender o fogo para
esquentar a água. Gostava do modo como ela andava, das mechas ruivas em contraste com a
pele branca do pescoço. Sob aquele olhar intenso, Mary sentiu-se sem graça, mas
recuperou-se logo.
— Acho que você já sarou, Rafe. Deixe-me verificar a sua temperatura e...
— Eu estou quente, Mary. Só que a febre é por sua causa — ele a interrompeu,
puxando-a contra o seu corpo.
— Rafe, por favor, não.
— Pelo amor de Deus, Mary, pare de bancar a santa puritana. Você é uma mulher de
carne e osso, feita para o amor.
E, apesar de suas intenções de não fazer amor com ela, Rafe não resistiu. Sussurrou
palavras ternas em seus ouvidos, acariciou-lhe a nuca e beijou-lhe sensualmente os lábios
sem se importar com seus gemidos de prazer e protesto.
— A água na chaleira já ferveu.
A voz masculina vinha da porta e assustou o casal. Rafe virou-se e encarou Billy, que
tinha uma expressão zangada e aborrecida. Mantendo a calma, Rafe foi até o fogão dizendo:
— Obrigado por nos avisar, Billy. Mary, quer uma xícara de chá?
— Sim, com uma colher de açúcar. Billy, quer chá?
— Não — respondeu ele, saindo da cozinha e voltando para o seu quarto.
— Oh, Rafe, meu irmão deve estar pensando o pior de nós!
— O pior, Mary? O que significa isso? Que você é uma mulher normal, com
necessidades normais?
— Você não entende. Billy me considera como sua mãe!
— E como todo filho, precisa atravessar a fase do ciúme. Mary, apenas quando ele a
enxergar fora do papel materno poderá se transformar num homem de verdade.
— E eu que queria tanto que este fim de semana com meu irmão fosse perfeito, Rafe!
— Não se preocupe. Amanhã eu dou um jeito nesta situação, doçura.
Fraco demais para continuar sua tentativa de sedução e consciente de que estava se
envolvendo mais do que devia, ele deu um casto beijo de boa-noite em Mary e voltou para a
cama.

Rafe ajeitou o chapéu sobre os olhos e observou de esguelha o rapaz a seu lado.
Apesar de nunca ter montado, Billy controlava bem as rédeas da fogosa égua.
— O nome dela é Esmeralda. Manuel a usa para supervisionar os setores onde não dá
para chegar de carro.
Billy continuou calado, ainda ressentido com a cena da noite anterior.
— Manuel costuma consertar as bombas com defeito, mas ele foi visitar a sogra hoje.
Sorte você estar aqui para me ajudar com este problema. Sei que a sua especialidade são as
bombas de óleo, mas as bombas de água seguem o mesmo esquema, não?
Outro comentário sem resposta. Rafe resolveu acompanhar o silêncio do rapaz até
chegarem à bomba quebrada.
Billy usou as ferramentas à sua disposição com rapidez e perícia. Trocou a correia
estragada e a bomba funcionou como nova.
No caminho de volta para a sede da fazenda, Rafe conteve sua impaciência. Sabia
que o assunto precisava vir à tona, mas trazido por Billy. Continuou com sua conversa boba,
tentando atrair a atenção do rapaz.
— Mesmo aqui neste fim de mundo usamos tecnologia moderna. Vê aquele trator?
Ele usa raios laser para preparar a terra para receber as sementes.
— Sério?! — O rapaz pareceu surpreso.
— Sério — respondeu o fazendeiro, esperando...
— Você se interessa pela minha irmã?
"Até que enfim"!, pensou Rafe, antes de responder.
— Sim, me interesso.
— Vai se casar com ela?
— Acho que ainda não estamos preparados para dar um passo tão definitivo. E você?
Já encontrou a garota certa para se casar?
— Não. Preciso me fazer na vida antes. Se bem que uma das meninas que eu namoro
está louca para me levar ao altar.
— Sua irmã não está fazendo isso comigo.
— Sei... Mas tudo bem. Acho que me acostumei demais a vê-la como "mãe". Não
posso culpá-la por querer aproveitar um pouco, sem se "amarrar". Desculpe os meus maus
modos, ok? Amigos?
— Amigos!
E apertaram-se as mãos.
CAPITULO IX

Quando a clínica fechou na sexta-feira à tarde para o fim de semana, em vez de ir


direto para casa, Mary decidiu fazer uma visita ao barrio. Queria convencer as pessoas do
vale de que era uma médica capaz e qualificada.
Ela só não entendia por que a aceitação dos moradores do barrio lhe importava tanto,
se dali a poucos meses iria embora. Devia estar perdendo a cabeça por Rafe.
A sorte a ajudou. Ofélia Ruiz estava no quintal, estendendo roupas no varal. Antes
que a mulher pudesse se esconder, Mary cumprimentou-a.
— Olá, Sra. Ruiz. Como vai o seu bebê?
Ofélia esfregou as mãos no avental e deu de ombros.
— Pedro vai bem. Está ali.
"Ali" significava um cobertor estendido no chão ao pé de uma árvore. Consciente do
olhar da mulher sobre suas costas, Mary aproximou-se da criança. Os bracinhos finos do
bebê agitavam-se no ar, parecendo lutar contra um inimigo invisível; seus olhos não
estavam amarelados, indicando que havia sarado da icterícia.
— O remédio o curou! — exclamou Mary, exultando com o seu primeiro sucesso no
barrio.
— Pedro não tomou o seu remédio, soltera.
— Não?!
— La curandera o curou.
— Por que, Sra. Ruiz? Por que vocês não me dão nem uma chance?
A mágoa que Mary sentiu trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Ofélia ficou sem jeito,
estendeu uma camiseta amarela no varal e explicou:
— Soltera, você irá embora um dia. La curandera não, ela ficará sempre aqui. E,
depois dela, sua filha Carmelita ficará. E la curandera nunca mais cuidaria de nós se
aceitássemos ajuda sua.
— Eu compreendo.
Mary voltou para o Mustang e ligou a ignição, desejando dirigir até perder Kingdom
Come de vista. Mas não podia. Precisava acabar de cumprir seu estágio de qualquer forma.
Como consolo, lembrou-se que faltavam apenas quatro meses para partir.
As luzes acesas na sede da fazenda despertaram em Mary a vontade de procurar Rafe
para desabafar seus problemas. Como seria bom se ele a beijasse e dissesse que no fim tudo
daria certo... Quando chegou perto dos altos portões, ela se deu conta do que ia fazer. E se
Rafe tivesse convidados? Christina Anderson, por exemplo? Ou Carmelita?
Embaraçada por quase cometer uma bobagem, Mary deu meia-volta e dirigiu-se à
sua própria casa. O último fim de semana com Rafe fora um erro. Contudo, Billy havia ido
embora muito contente. Nadara bastante e se despedira de Rafe como um velho amigo. E
agora ela se preocupava por ter conhecido mais uma faceta da personalidade de Rafe que a
agradara mais do que devia. Só faltava se apaixonar por ele!
Rindo da idéia de se apaixonar, Mary decidiu tomar um longo banho de imersão.
Despiu-se e arrumou suas roupas com cuidado. Estudou sua imagem no espelho e não
resistiu à tentação de conversar com o seu reflexo.
— Espelho, espelho meu... Até que você não está mal para uma solteirona, hein,
Mary? Seios pequenos, mas firmes e empinados. Nenhuma marca de varizes ou vacinas. Só
o bumbum poderia ser menor, menos... voluptuoso, que tal?
Entrou na banheira e procurou relaxar. O primeiro pensamento que lhe veio à cabeça
foi a vergonha que passou quando Rafe a pegara seminua no quartinho do aquecedor. Que
cena ridícula! Mas aquilo fazia parte do passado, e o futuro importava muito mais.
O futuro... Impossível se iludir achando que poderia manter um relacionamento
platônico e seguro com o másculo fazendeiro. Ele constituía uma ameaça às suas esperanças
e planos.
A água morna e perfumada acariciou seus seios, lembrando-a dos carinhos de Rafe
no mesmo lugar. Carícias e beijos quentes, excitantes...
Abruptamente, ela saiu de sua confortável posição meio deitada e começou a esfregar
a esponja com força em seu corpo. Como não percebera antes que amava Rafe? Os sintomas
eram inconfundíveis: pensava nele o dia todo, em seu jeito de sorrir, de conversar, de andar,
de beijar... Oh, Deus, que amor sem esperanças!
Ele não queria envolvimento emocional, e Mary não queria só sexo. O que fazer?

No sábado, Mary fez faxina na casa: limpou janelas, encerou o chão, tirou pó dos
móveis, lavou e passou roupa; tudo isso antes do almoço. À tarde, deu uma passada na
tienda do Vicente para comprar mantimentos e apanhar a correspondência.
Alegrou-se ao ver uma carta de Amy em meio às contas. Sua irmã dizia estar tirando
boas notas na faculdade e que gostava muito de sua companheira de alojamento, entre outras
novidades.
Mary passou o resto do dia respondendo à carta da irmã e escrevendo também para
Billy. Colocou nos envelopes um cheque para cada um. Uma estudante universitária sempre
precisava de dinheiro para livros e um cineminha. Quanto a Billy, era óbvio que não
necessitava mais de uma mesada, mas sua mãe-irmã demoraria ainda algum tempo para
admitir que ele crescera e se tornara independente.
Quando acabou de escrever as cartas, Mary viu se inativa. Não estava com fome o
suficiente para começar a fazer o jantar, mas não queria ficar à janela olhando para a sede da
fazenda e pensando em Rafe. E então o telefone tocou, assustando-a. Ela olhou para o
aparelho, imaginando quem estaria ligando, mas terminou por atender.
— Alô?
— Mary?
— Oh, olá, Beau.
— Você estava correndo? Me parece meio sem fôlego.
— Não, não... Eu... Estava lá no quintal.
— Que sorte encontrá-la em casa. Eu tenho duas raquetes de tênis e gostaria de saber
se você quer jogar comigo amanhã na casa dos Anderson. Christina já me ofereceu a quadra
várias vezes. Topa?
— Eu não sei jogar tênis, Beau.
— Ótimo, assim posso bancar o professor. O que me diz?
A perspectiva de passar o domingo sozinha não era nada agradável, e ela acabou
aceitando o convite.
— Irei com você, Beau.
— Perfeito. Nos encontramos na missa, ok?
— Combinado.
Quem não gostou do combinado foi Rafe. Especialmente quando Beau e Mary se
encontraram na porta da igreja e sentaram-se juntos para assistir à missa. Vicente, que
acompanhava o fazendeiro, interceptou alguns de seus olhares fulminantes dirigidos ao
rival.
Usando um vestido justo, cor de pêssego, Mary pensou que Rafe parecia furioso o
bastante para estrangular Beau com o terço que repousava nas mãos de Vicente.
Do púlpito, o padre John observou sorridente a situação e fez um sermão de meia
hora sobre as virtudes do casamento.
A mansão de Christina, à luz do dia, era ainda mais imponente do que aparentara na
noite da festa beneficente. A enorme casa possuía dois andares construídos em tijolos
brancos e diversas alas separadas. Pilares elegantes sustentavam uma varanda, que ocupava
toda a frente da construção. A rica mansão parecia deslocada na paisagem desértica.
As quadras de tênis ficavam atrás da casa, perto da piscina olímpica e dos vestiários.
Christina não estava à vista, com certeza ocupada em outro tipo de jogo com Rafe.
Beau ensinou a Mary as regras do tênis e as melhores posições para sacar, o que lhe
deu a oportunidade de tocar o corpo dela diversas vezes. Depois de uma hora Mary já
conseguia devolver a bola para a quadra adversária, mas sempre fora das linhas.
— Desisto, Beau. Não consigo achar graça neste jogo. Que frustrante! — exclamou
ela, apoiando uma das mãos no quadril e com a outra tirando o cabelo suado do rosto.
— Mas Mary, querida, tênis é tão bom para manter a forma — disse Christina,
escolhendo aquele momento para aparecer, vestida num lindo maio branco.
— Então você deve jogar com freqüência, Christina, para ter um corpo esbelto como
o seu.
— Oh, não, detesto ficar toda suada. A propósito, quando terminar a partida, vá nadar
um pouco para se refrescar. Eu convidei Rafe e alguns outros amigos.
Mary se recusou a aceitar a provocação de Christina e declinou do convite.
Beau exultou ao perceber que ficaria sozinho com Mary.
— Gostaria de tomar um drinque no Oásis, Mary? — perguntou ele no caminho de
volta.
— Eu estou de short, será que não pega mal entrar assim no restaurante?
— Podemos ir para a minha casa, se você preferir.
— Bem... O Oásis é uma ótima opção. Vamos até lá.
A cerveja gelada foi como um bálsamo para a sua garganta seca. "Duvido que
Christina Anderson tome uma bebida vulgar como cerveja", refletiu ela. Na penumbra do
bar a conversa fluía fácil, e Beau e Mary falaram sobre suas respectivas carreiras; a
economia estagnada de Kingdom Come e até de usinas nucleares.
O sol já se punha quando o subgerente do banco deixou-a na porta de casa e pôs um
braço em volta de sua cintura.
— Mary, você não imagina como apreciei esta tarde na sua companhia.
Ela não gostou quando Beau lhe disse como "apreciara a tarde em sua companhia",
porque sabia que isso era o prelúdio para um beijo.
— Eu é que agradeço pêlo divertimento que você me proporcionou, Beau.
— E que tal me agradecer com um beijo de boa-noite, Mary?
— Acho melhor não.
— E por quê?
— É anti-higiênico. Nunca se sabe que tipo de germe habita a boca das pessoas.
— Oh... Tudo bem.
Desconcertado com aquela resposta travessa, Beau despediu-se sem beijos e partiu.
Assim que se viu só, ela foi para o seu quarto trocar de roupa. Estava nua quando ouviu as
batidas na porta. Voltou para a sala e perguntou:
— Quem é?
— Rafe. Brewster não demorou muito para se despedir, não? — disse ele com voz
triunfante.
"Que bandido, me espionando!", pensou ela antes de dar uma resposta atravessada.
— É que Beau faz num minuto o que os outros homens demoram horas para fazer!
— Droga, Mary, você merece uma surra! Abra a porta.
— Não posso. Estou sem roupa.
— Você vive nua, mulher? Vá se vestir enquanto eu faço chá verde. Aliás, trouxe o
meu pacote, porque sei que você não seguiu o meu conselho de estocar chá para mim.
Ela correu para o quarto e colocou sobre o corpo seu robe de seda. Da cozinha
vinham sons de Rafe preparando a amarga bebida, e Mary aproveitou para pentear os
cabelos e passar um pouco de perfume atrás da orelha e nos pulsos. Oh, como queria que o
fazendeiro gostasse dela de verdade, não só sexualmente! Calor humano, amizade,
companheirismo eram, às vezes, mais importantes do que sexo.
Na porta da cozinha Mary parou e permitiu que seus olhos se deliciassem com a
visão do homem amado, que fizera uma bagunça dos diabos em cima da pia: colheres sujas,
açúcar derramado, pedaços de toalhas de papel e folhas de chá.
Sem ligar para a desordem, ela devorou Rafe com o olhar. Suas botas o tornavam
ainda mais alto. O jeans desbotado moldava-se ao corpo dele como uma luva, realçando-lhe
os quadris estreitos e sensuais e as coxas fortes.
Sentindo-se observado, Rafe virou-se com um sorriso malicioso nos lábios.
— Mary, doçura, meus dedos coçam de tanta vontade de acariciar os seus cachos
ruivos!
— Foi para dizer isso que você veio me ver?
— Não. Ah! Eu lhe trouxe um presente, quase me esqueço.
— Presente?
— Sim, tome.
— Um vidro de comprimidos antiácido! O que significa iss...
— É para acalmar a sua azia. Anuncio neste minuto que vamos recomeçar a sair
juntos!
— Não acho uma boa idéia, Rafe, nós...
— Se você aceita convites de Beau, pode aceitar os meus.
— Mas eu me sinto segura com ele! Beau não é um... sedutor inveterado e atrevido
como você.
— Não precisamos sair sozinhos se você teme que eu a seduza. Convidaríamos Eddie
e La Jean para nos acompanharem.
— Christina Anderson não vai ficar com ciúmes? Quem costuma acompanhá-lo para
cima e para baixo é ela.
— Doçura, nenhuma mulher diz o que eu devo ou não fazer. Quero organizar meus
programas com você, Mary. Christina que se dane!
— Muito bem, concordo em sairmos juntos. Mas apenas uma vez.
Rafe deu um suspiro vitorioso por Mary ter aceito sua proposta sem brigas. Ou
quase. Estendeu o braço e afagou o rosto dela.
— Não me afague!
— Por que não, doçura?
— Porque me desarma, me deixa vulnerável.
— Não consigo evitar. Você é tão acariciável, macia ao toque... Mas não tema pela
sua "virtude". Já estou indo embora. O pacote de chá verde fica para as minhas futuras
visitas.
Ela acompanhou-o até a porta e foi abraçada de surpresa.
— Mary, por favor... Sempre que eu vier aqui, arranje outra coisa para vestir que não
este robe de seda. Um vestido largo e velho, de preferência. Senão, não me responsabilizo
por...
— Rafe!
— Por pensamentos luxuriosos — terminou ele e, depositando um beijo na ponta do
nariz de Mary, partiu, deixando-a completamente atônita.
CAPITULO X

Rafe sentia-se o maior tolo do mundo. Mary o tinha na palma da mão, direitinho.
Nenhuma mulher conseguia prender a sua atenção por mais de cinco minutos que fossem,
exceto Mary Margulies, claro.
Droga! Como fora deixar-se envolver a tal ponto pela delicada médica ruiva? Ao ser
apanhada em sua casa, ela apresentara a ele suas condições para saírem juntos.
— Comporte-se como um bom amigo apenas, Rafe. E lembre-se: nada de tentativas
de sedução.
Depois destas palavras, acrescentara ainda uma série de outras "regras" que ele
deveria seguir, mas às quais Rafe não dera ouvidos. Estivera mais preocupado em observar
como o tecido fino do vestido dela marcava com nitidez os bicos de seus seios.
E, então, sem perceber, ele aceitara todas as "regras" impostas. E tudo isso apenas
pelo privilégio de sentar-se ao lado da médica! Se não tomasse cuidado, acabaria se
transformando num cãozinho de estimação, dizia-lhe seu orgulho masculino.
Estremecendo ao pensar nas perspectivas futuras, Rafe pisou mais fundo no
acelerador, procurando apreciar o glorioso pôr-do-sol. O engraçado é que cada vez que o
seu humor começava a declinar, Mary se aconchegava mais a ele, graças a La Jean e Eddie,
espremidos na cabine da caminhonete com eles. Aquilo fazia sua crescente raiva
desaparecer por completo. A coxa de Mary junto à sua lhe provocava pensamentos eróticos,
aumentando a velocidade do sangue em suas veias.
Rafe precisava parar de inventar fantasias a respeito dela o tempo todo. Por causa de
Mary não conseguia mais se concentrar direito no trabalho. Além disso, seu último encontro
com uma mulher, apenas uma semana após a chegada da doutora na cidade, terminara de
maneira frustrante, porque ele não fora capaz de evitar que a "solteirona" ruiva ocupasse os
seus pensamentos.
— Ei, amigão, que cara enfezada! — comentou Eddie. — Nós estamos aqui rindo
feito bobos, e você fica aí dirigindo com uma expressão zangada como quem acabou de
perder a batalha do Álamo.
— Por favor, Eddie, não estrague a noitada piorando o humor de Rafe — repreendeu-
o Mary. — Principalmente porque é ele quem vai pagar a conta no "Orgulhoso Solitário"
para nós.
— Isso só porque o bonitão perdeu a aposta sobre Hanson... Rafe, você tinha a
obrigação de saber que Hanson seria capaz de tomar sete garrafas de mescal em menos de
quinze minutos!
— Hanson, aquele filho da...
— Rafe! — cortou La Jean. — Não se atreva a dizer um palavrão na nossa frente!
Todos se divertiam dentro da caminhonete. Mary cativava-os com sua conversa
alegre e inteligente, quase fazendo com que Rafe esquecesse que só queria levá-la para a
cama.
Ele sentia-se satisfeito por tê-la ao seu lado e irritado ao mesmo tempo. Irritado por
saber que ela não manteria um caso amoroso passageiro. Mas por que não?
Qual o problema em aproveitar de maneira agradável para ambos a sua temporada de
clínica em Kingdom Come? Não havia outra saída para eles além de um caso breve, lógico.
A simples menção da palavra casamento provocava calafrios em Rafe. Mas bastava olhar
para Mary e os calafrios se transformavam numa onda quente de desejo...
Rafe, então, pegou uma das mãos dela e colocou-a sobre a sua coxa.
Mary, de imediato, tirou a mão da perna dele.
Rafe tornou a pegar a mão dela e colocá-la no mesmo lugar.
— Vocês dois, querem parar com essa "briga de mãos"? — brincou La Jean.
O casal riu, sem graça a princípio, mas em seguida caiu na gargalhada, por causa do
absurdo da situação. Mary, então, piscando para o atraente sedutor, deixou que sua mão
repousasse na coxa dele.
O "Orgulhoso Solitário" não passava de uma pequena boate situada a dezenove
quilômetros de Kingdom Come. Pessoas de cidades muito mais distantes também
freqüentavam o local, por falta de outra opção nas redondezas. Uma lua crescente iluminava
o céu estrelado quando Rafe estacionou a caminhonete e todos desceram do veículo.
A boate transbordava de gente. Ferros de marcar gado, posters de "Procura-se", selas
e arreios enfeitavam as paredes. Uma nuvem de fumaça de cigarro cobria a congestionada
pista de dança. O longo balcão de madeira do bar parecia saído de um filme de faroeste
classe "B". Um conjunto de música country tocava com animação, empolgando os
dançarinos.
Diversos conhecidos cumprimentaram Rafe e Eddie à sua passagem, convidando-os a
sentarem-se às suas mesas. Rafe, contudo, não estava disposto a repartir a companhia de
Mary com ninguém, nem a correr o risco de vê-la sendo tirada para dançar por algum amigo
bêbado e inconveniente.
Eddie acabou descobrindo uma mesa desocupada em um cantinho escuro, longe da
pista de dança e do conjunto, onde ao menos poderiam conversar em sossego. A pedido de
La Jean o patrulheiro acendeu com seu isqueiro as velas de um pitoresco candelabro posto
sobre a mesa.
Uma garçonete loira e de formas exuberantes anotou seus pedidos, lançando olhares
sedutores para Rafe.
Ele, porém, considerava-se um homem de sorte por ter Mary, usando um vestido
alaranjado, como sua acompanhante. Ela parecia tão feminina e delicada com o seu decote
revelando o pequeno V formado pelo encontro dos seios, que Rafe precisou esforçar-se
bastante para afastar o impulso de tomá-la nos braços.
Enquanto esperavam que a pista de dança esvaziasse, os quatro amigos contaram
casos engraçados, fizeram comentários sobre os dançarinos mais ousados e beberam cerveja
gelada. Mary quase matou a todos de tanto rir com uma história do início de sua carreira,
quando levara um paciente para o lavatório em vez de para o laboratório.
Rafe excitava-se mais e mais a cada vez que a língua rosada de Mary lambia a
espuma da beirada do copo.
— Amigão, acho que você foi fisgado — disse Eddie quando as duas mulheres
pediram licença para ir ao toalete.
— Não sei do que você está falando, seu patrulheiro fajuto.
— Bem, você não parece mais o farrista que era há um ano. Christina e as outras
garotas têm estranhado o seu comportamento reservado das últimas semanas. E, por falar
em Christina, aí vem ela.
A bela loira atraiu o olhar da maioria dos homens presentes com seu andar ondulante,
realçado por jeans caros e justos. Beau Brewster a acompanhava.
— Olá, Eddie. Rafe, querido, como vai? Que surpresa encontrá-los aqui sozinhos! —
disse ela numa voz insinuante.
— Sozinhos não. Os bonitões nos pertencem — argumentou La Jean secamente,
voltando naquele instante para a mesa.
Christina sorriu contrafeita e, desviando os olhos de La Jean, examinou Mary da
cabeça aos pés, odiando-a. Os lábios de Mary se contraíram, num sinal de antagonismo.
Beau quebrou a tensão do grupo falando qualquer coisa gozada e Rafe aproveitou a chance
para puxar a doutora para a pista de dança. "Que o bancário e Christina façam companhia
um ao outro", pensou ele divertido.
O conjunto tocava uma música lenta e ele notou com prazer que o corpo de Mary se
encaixava com perfeição ao seu. Com as mãos fortes pressionou os quadris dela contra as
suas coxas, numa carícia sutil.
— Rafe, não faça isso.
— Isso o que, doçura?
A resposta dela foi um pisão com o salto fino da sandália no pé dele.
— Ai! Sua bruxinha!
— Aprenda a se comportar, "querido"...
Quando o casal parou de dançar e voltou para a mesa, Eddie brincava com os cabelos
de La Jean, que comentou:
— Rafe, você me parece decididamente em farrapos. Por que está mancando?
— Por causa de um castigo. Mary vai acabar me enlouquecendo.
Mary riu alto e ele passou o braço por sobre seus ombros, desafiando-a a tentar
escapar do abraço. Naquele momento tudo o que Rafe queria era que o mundo e as pessoas
desaparecessem, para que pudesse ficar a sós com a doutora.
Tomaram mais cerveja e contaram mais casos com velhos amigos que foram até a
mesa para um bate-papo rápido. Todos os homens olhavam Mary com aprovação e se
encantavam com sua voz e suas maneiras, provocando ciúmes no fazendeiro.
Depois do que pareceu uma eternidade, Rafe logrou convencê-los a irem embora e o
grupo mais uma vez se encontrou apertado na cabine da caminhonete. "Quanto mais
apertado melhor", refletiu ele, afagando um dos joelhos de Mary, que, corando, apertou os
joelhos com força para que as mãos do audacioso motorista não subissem mais.
Eddie e La Jean cantaram o caminho todo, desafinando e rindo como crianças. Mary
também ria, causando em Rafe arrepios de desejo.
O carro de Eddie fora deixado na casa de La Jean. Rafe deixou-os lá, feliz por
finalmente ter Mary só para si. Sonolenta, ela apoiou a cabeça no ombro dele e cochilou até
chegarem à sua casa. E então um milagre aconteceu. Antes de descer da caminhonete ela
sussurrou:
— Me dê um beijo de boa-noite, sim?
— O quê?! Oh, claro...
— Venha cá, doçura, deixe-me amar você...
A boca de Rafe desceu sobre a de Mary, num beijo profundo e sensual.
Ele podia ouvir sua própria respiração ofegante. Ou seria a respiração de Mary?
Encontrando uma maneira de desabotoar-lhe a parte de cima do vestido, Rafe segurou um
seio na mão, massageando o mamilo rijo com os dedos. Com a mão livre iniciou uma
jornada sensual pelas coxas dela.
— Rafe, não...
— Shhh... Você deve ter trabalhado para a Inquisição Espanhola, pois sabe como
torturar um homem...
Ele calou com mais beijos os gemidos de prazer de Mary, continuando a explorar seu
corpo até encontrar a calcinha úmida. Oh, o paraíso estava perto agora!
— Rafe... Não... Preciso ir. Você prometeu que... Por favor...
— Ahhh, Mary...
Desvencilhando-se daquele abraço, ela arrumou o vestido e desceu da caminhonete
com as pernas moles feito geléia.
O dono da Hacienda Encantada observou-a entrar na pequena casa e em seguida
ligou a caminhonete e partiu.
Raios, não poderia continuar recebendo este tratamento por muito tempo; que
homem não ficaria louco ao ter seus desejos rejeitados tão bruscamente depois de passar de
um certo ponto?
Mary jogou-se na cama. Passara a noite mais agradável de toda a sua vida. Tirou uma
sandália e jogou-a no chão. Sentia-se viva, alegre. Tirou a outra sandália e a calcinha úmida
de excitação. Rafe portara-se como um cavalheiro, parando com as carícias quando ela
pedira. Depois de tirar,o vestido, enfiou-se nua sob os lençóis.
O sono não veio. Ela rolou de um lado para o outro, deitou-se de bruços, de costas, e
nada. Arrancou os lençóis, ajeitou melhor o travesseiro e... nada. Não conseguia dormir. Um
langor estranho se apoderara do seu corpo, causando uma espécie de vazio, de sensações
incompletas, dolorosas.
Levantou-se, foi à cozinha e tomou dois comprimidos contra azia. Voltou para a
cama. Rafe era o culpado por seu estado de agitação e excitação. Oh, como ela o amava.
Mas sabia que o relacionamento deles se encontrava num impasse: ou satisfaziam o desejo
de seus corpos ou paravam de se ver. Bem, se algum homem tivesse de tirá-la de seu estado
virginal, que esse homem fosse Rafe. E agora.
Pulando da cama, Mary vestiu-se a jato, pegou as chaves do carro, entrou no
Mustang e partiu.
Só ao chegar à sede se deu conta da loucura que estava fazendo. Ia se comprometer
com um sujeito que não a amava, que não correspondia aos seus sentimentos. Decidiu ir
embora antes de bancar a tola. Tarde demais. A porta se abriu de repente e um Rafe
descalço, sem camisa, com o zíper da calça meio aberto encarou-a surpreso.
— Mary!
— Rafe, eu te amo... e... e quero que você me mostre como o amor pode ser belo e
bom — disse ela, juntando toda a sua coragem. — Fale alguma coisa, por favor... Estou tão
nervosa.
— Mary, isso não é hora de brincar. Já passa de uma da manhã.
Ela segurou a mão de Rafe com medo de que ele não a quisesse agora que resolvera
se entregar e puxou-o para dentro da casa, para o quarto.
— Mary, pare com isso. Você irá se arrepender mais tarde.
— Você tentou me seduzir desde que me conheceu. Vai mudar de idéia, depois de
me ter feito desejá-lo?
Rafe piscou, atônito, como se a doutora não passasse de uma miragem. Enfiou as
mãos nos bolsos, dizendo:
— Doçura, você não pode exigir que um homem sacie a sua fome de sexo assim,
com um estalar de dedos. Meu Deus, o que aconteceu com você?
— Não pense que estou bêbada, por favor! Oh, que vergonha! E por culpa sua!
Nunca me comportei desse jeito antes de você se intrometer na minha vida. Eu não era
insensata. Eu era prática e racional e lógica e...
Dando um passo largo e rápido, Rafe abraçou-a e beijou-a.
— Oh, querida, querida, você é tão adorável... Mary, esperei tanto por este momento
que devo estar tão nervoso quanto você. Desculpe-me.
— Desculpo, claro e...
— Calma, doçura. Não há pressa para o que vamos fazer...
— Eu sei. Mas... quão devagar iremos?
— Assim... Eu lhe mostro.
Rafe ergueu-lhe o rosto e sua boca desceu sobre a dela, num beijo
surpreendentemente terno. Ele não forçou o encontro das línguas, esperando que Mary
tomasse a iniciativa. Ela correspondeu com ardor e naturalidade, sem se importar quando as
mãos hábeis de Rafe tiraram o seu vestido.
Os dedos dele contornaram de leve as aréolas rosadas dos seios de Mary, antes que
ele abaixasse a cabeça e acariciasse com a língua quente e molhada um mamilo rijo de
excitação. Uma corrente de calor e prazer atravessou o corpo de Mary, amolecendo-lhe as
pernas.
— Rafe, por favor, agora...
— Eu também não sou capaz de esperar mais, amor.
Rafe ergueu-a nos braços e depositou-a na enorme cama, beijando-a pelo corpo todo.
Tirou a calça e deitou-se sobre ela. Sua impaciência contida excitou Mary. Então ele tomou
posição para penetrá-la. Nesse momento, um arrepio de medo percorreu-a da cabeça aos
pés.
As mãos de Rafe deslizaram sob seus quadris e acariciaram-lhe as nádegas.
— Esperei tanto por isso, Mary! Deus me ajude, mas eu não posso esperar mais. Não
posso mais me controlar.
As preliminares do ato do amor perderam todo o seu efeito erótico sobre Mary
quando ele encaixou os joelhos entre as coxas dela e a penetrou, forçando para derrubar o
obstáculo carnal e então seguindo seu caminho até o fim.
Infelizmente, a mente dela funcionava a pleno vapor, analisando de modo frio a
perda da sua virgindade: primeiro uma dorzinha aguda, que depois diminuía com o aumento
do ritmo do ato.
Parecendo vir de uma enorme distância, a voz de Rafe suspirava as palavras
apaixonadas que um homem diz a uma mulher nessas horas; palavras nunca ouvidas por
Mary.
Ela forçou suas mãos a abraçarem o corpo de Rafe. "Logo vai acabar", pensou ela,
seu desapontamento provocando-lhe náuseas. "Daí irei para casa e descansarei. Se ao menos
isso acabasse de uma vez por todas..."
Como que lendo o pensamento de sua parceira, Rafe alcançou o clímax da relação e
permaneceu dentro dela, até que percebeu-a impaciente.
— Mary, querida, eu sinto muito. Você é capaz de me perdoar? Confesso que não me
esforcei muito para lhe dar prazer.
Ela saiu da cama e pegou seu vestido do chão murmurando um "tudo bem".
— Tudo bem nada, Mary! Supõe-se que fazer amor seja uma experiência excitante!
E eu falhei com você, não fui capaz de me controlar.
— Vou embora.
— Por favor, fique. Me deixe mostrar a você como o amor pode ser gostoso. Eu me
apressei demais, para uma primeira vez. Mary, o ato sexual não é uma coisa ruim.
— O cheiro do seu suor e do seu gozo está grudado no meu corpo. Quantas mulheres
você já impregnou com este mesmo odor, Rafe?
— Muitas, reconheço. Mas você é a primeira a quem eu gostaria de proporcionar um
prazer verdadeiro. Acredita em mim?
Ela não se dignou a responder. Terminou de se vestir, calçou suas sandálias e saiu do
quarto. Rafe alcançou-a antes de chegar à porta da frente.
— Mary... Não pense que desvirginei você apenas para incluí-la numa suposta lista
de conquistas. Eu não queria fazer sexo com você; queria fazer amor. Amor, querida.
— Por favor, Rafe, solte o meu braço.
— Posso levá-la para casa, pelo menos?
— Não, obrigada. Eu estou bem. Adeus.
Dirigindo seu Mustang, Mary tentou acreditar que estava bem mesmo. Afinal,
aprendera o significado da palavra copular, na prática. E talvez agora sua paixão louca por
Rafe passasse, como passa uma doença.
Apenas o cheiro dele ficaria em sua lembrança: um cheiro adocicado, almiscarado,
que a torturaria pelo resto da vida.
Rafe passeou pelo pátio da fazenda, seu corpo nu brilhando de suor ao luar. Atirou
longe o cigarro fumado pela metade. A brasa vermelha descreveu um arco de luz e apagou-
se.
Ele disse a si mesmo que agora que possuíra o corpo de Mary sua obsessão por ela
desapareceria. Sentiu-se aliviado. Voltaria a procurar Christina, uma parceira de cama que
gemia sensualmente, e também aquela divorciada de El Paso, uma perfeita acrobata na
cama.
Droga! Rafe acendeu outro cigarro, tragou fundo e procurou raciocinar com lucidez.
Para que se enganar, achando que superara seu interesse por Mary? Para dizer a
verdade, agora que a conhecera inteira, ele podia afirmar que a amava mais do que nunca...
CAPÍTULO XI

Hermalinda ergueu a cabeça da mesa onde estava deitada e sorriu.


— Hola, soltera.
Mary fechou a porta da sala de exames e respondeu ao cumprimento com voz neutra
e profissional.
— Olá, Hermalinda.
Ela não pretendia deixar transparecer que ficara preocupada quando a mexicaninha
não aparecera por dois meses seguidos na clínica. Á garota poderia usar sua preocupação
como uma arma quando chegasse a hora de ter o bebê.
— Como se sente, Hermalinda?
— Estufada como uma piñata, soltera; pronta para ser quebrada e aberta.
A doutora segurou um sorriso. As mulheres grávidas de alta sociedade de
Washington jamais reagiriam como a garota mexicana, sempre bem-humorada. Pelo
contrário, reclamariam de mil incômodos insignificantes.
Mary tirou a pressão da garota. Em seguida partiu para o exame pélvico. O útero se
encontrava grande e distendido, mais do que o normal para o último trimestre de gravidez.
— Andou exagerando na quantidade de comida outra vez, Hermalinda?
— Um pouquinho, talvez.
— Vamos tirar a dúvida. Suba na balança. Hermalinda, você engordou sete quilos!
Precisa tomar cuidado com o seu peso. Você pode sofrer uma eclampsia ou seja, um
envenenamento tóxico.
— Envenenamento?
— Proteína demais na urina. Vou lhe dar uns remédios para tomar. Um diurético para
controlar o inchaço dos seus dedos e tornozelos. E coma alimentos sem sal.
— Ejoli. Comida sem sal?
— Isso mesmo. E mais uma coisa: há algum caso de gêmeos na sua família?
— Gêmeos? Hum... Ahh, si, mi tia Dolores, irmã de minha mãe.
— Talvez a sua brincadeira a respeito de estar esperando gêmeos seja verdade. Tudo
indica a possibilidade de mais de uma criança no seu ventre.
— Ay de mi! Fui duplamente abençoada por Deus!
Mary duvidava ser uma bênção esperar gêmeos com uma bacia tão estreita, mas não
disse nada.
Uma hora após a partida de Hermalinda, Hanson entrou na clínica.
— Pois não? — disse a médica com voz seca e fria.
O chefe da Patrulha apoiou suas enormes mãos na beirada da mesa. Por trás dele La
Jean gesticulou que não conseguira impedir a entrada do policial no consultório.
Hanson tocou na aba do chapéu num arremedo de galanteria. Gente do seu tipo não
respeitava o sexo feminino e só acreditava no poder da força bruta.
— Vim a serviço, doutora. Pela segunda vez peguei em flagrante a mexicana grávida.
Na terceira vez em que eu a apanhar, farei com que o Departamento de Imigração a deixe
um bom tempo "descansando" em La Tuna.
La Tuna era a prisão federal perto de El Paso. E o chefe Hanson costumava cumprir
suas ameaças. Mary gelou por dentro, mas não demonstrou seu medo ao policial.
— E o que o senhor quer comigo?
— Não dificulte o meu serviço, doutora. O Serviço Nacional de Saúde não gostaria
de saber que uma das suas funcionárias trata de estrangeiros ilegais.
— Eu apenas observo a garota, não trato dela.
— Eu estou apenas avisando, doutora, e não prendendo a senhora.
— Pois então já cumpriu o seu dever.
— Se eu a apanhar com "a mão na massa", doutora, fique certa de que não vai mais
nem chegar perto de um bisturi ou de um rolo de esparadrapo. Compreendeu?
— Minha clínica não foi esterilizada contra piolhos, portanto, por favor, saia daqui.
— Desculpe tê-la incomodado. Adeus.
Assim que Hanson virou as costas, Mary afundou em sua cadeira. Será que nada
dava certo com ela?
La Jean entrou rindo em sua sala, com uma lata de desinfetante na mão.
— Isto é para os piolhos, amiga!
— A visita do "piolho-chefe" acrescenta mais um ponto negativo à minha semana, La
Jean.
— O seu caso de amor enfrenta problemas, querida?
— Mais ou menos... Eddie comentou algo sobre Rafe com você?
— Apenas que Rafe reagiu como um porco-espinho bravo à simples menção de
sairmos juntos de novo, no próximo fim de semana.
Mary já esperava por aquela resposta. Provavelmente o fazendeiro nunca mais a
procuraria. E se ele fosse do tipo que contava vantagens sobre as suas conquistas? Será que
alguém sabia do que acontecera? Isso a tornaria ainda mais infeliz. Ela procurara o prazer
do amor e, em vez disso, encontrara a dor da decepção. Talvez fosse mesmo uma mulher
frígida, uma solteirona incapaz de satisfazer um homem.
— Mary, seja paciente com Rafe. Dê-lhe uma oportunidade para se acostumar com o
fato de estar apaixonado por você. — Aconselhou a recepcionista da clínica.
— Rafe? Apaixonado por mim?
— Claro! Eu não tenho diploma de médica na parede, mas reconheço um caso de
paixonite aguda de longe.
— Não disponho de tempo para crises de paixonite, La Jean!
— Ei, desculpe. Não tocarei mais no assunto.
Mary não queria mesmo tocar mais no assunto, mas não podia ocultar de si própria
que se encontrava loucamente caída de amores por Rafe. Gostava de tudo nele: de sua força
e de sua preocupação com as pessoas simples, e de suas fraquezas também. Só que não
cometeria o erro de procurá-lo de novo. Falhara uma vez, e uma vez era o suficiente.
Para esquecer suas mágoas, ela enterrou-se no trabalho, sem parar nem para almoçar.
Nos últimos dias a clínica recebera uma maré crescente de pacientes, embora a sala de
espera nunca chegasse a ficar superlotada. As pessoas que iam atrás dos serviços da doutora,
na maioria, pertenciam à pequena classe média da cidade, incluindo os conhecidos de Eddie
e Rafe: W. H. Delbert, o advogado, e Bárbara, a cabeleireira.
Depois da última consulta do dia, Mary decidiu que não iria direto para casa ficar
"mofando". Resolveu comprar um vestido novo e encontrou o que desejava numa butique
modesta: um modelo de crepe verde-água, elegante e simples.
Foi para casa, tomou banho e arrumou-se com cuidado. Como não almoçara, achou
que merecia um jantar caprichado e para tanto dirigiu-se ao Oásis.
O bar do restaurante encontrava-se cheio de gente, homens principalmente, tomando
cerveja e conversando. Ela atravessou o bar de queixo erguido, demonstrando uma
confiança que estava longe de sentir. Encontrou uma mesa vaga no restaurante, ocupado por
casais e famílias. Escolheu um prato à base de frango frito e, quando percebeu, Beau
sentara-se na cadeira em frente à sua. O subgerente do banco usava camisa xadrez, jeans e
botas, ao estilo cowboy.
— Oi, Mary. Vai jantar sozinha?
Ela ia responder que sim, mas quando viu Rafe e Eddie entrarem no bar mudou de
idéia.
— Agora não vou mais, Beau, pois você pode jantar comigo.
Com o canto do olho, Mary viu o fazendeiro sentar-se no bar, ao lado de uma loira
espetacular e de busto grande. O som da risada da mulher encheu o salão de repente,
deixando a doutora furiosa. Mary tentou prestar atenção no papo de Beau, sem sucesso.
Comeu em silêncio, sem conseguir desviar o olhar de Rafe.
O subgerente do banco interceptou o seu olhar.
— Gostaria de tomar um drinque em lugar da sobremesa, Mary?
— Sim!
Na penumbra do bar, o casal encontrou dois bancos desocupados ao longo do balcão
em forma de U, em frente a Eddie e Rafe.
— Olá, Mary — cumprimentou o fazendeiro, soltando seu braço das mãos da loira
exuberante.
— Olá, Rafe.
Eddie olhou de um para o outro sem entender nada e em seguida concentrou-se em
tomar sua cerveja.
— O que você está fazendo aqui, Mary?
— Pergunto o mesmo para você.
— Estou bebendo um pouco de álcool.
— Não gosta mais de chá verde?
— Enjoei, acho.
Beau pediu duas cervejas ao garçom, percebendo que Mary se esquecera de sua
presença. Seu orgulho masculino ofendeu-se com a situação, mas acabou conformando-se.
Afinal, ele era o acompanhante da donzela de gelo. Com paciência, quem sabe o que
poderia acontecer? Ele estalou os dedos um a um.
Quando Mary tomou um gole de cerveja e Beau limpou a espuma da bebida dos
lábios dela com um dedo, Rafe não agüentou. Deu a volta no balcão e segurou-a pelo pulso.
— Mary, vamos. Vou levá-la para casa.
— Espere um pouco. Não ouvi Mary expressando a vontade de ir embora — disse
Beau, pondo-se de pé.
— Desculpe, amigão, mas esta mulher é minha — retrucou o fazendeiro, com os
olhos dourados brilhando de ódio.
A conversa no bar cessou de repente e o ambiente tornou-se tenso. Mary, no meio
dos dois homens, não sabia como agir. Rafe era o mais alto e forte deles, mas Beau parecia
disposto a brigar mesmo assim.
— Rafe — interveio seu amigo patrulheiro —, sua bebida vai esquentar.
— Talvez você queira a ajuda de seu amigo — murmurou o subgerente do banco,
entre dentes.
Os olhos do fazendeiro se estreitaram perigosamente.
— Miserável! Vou matá-lo por isso, seu filho da...
— Rafe! — gritou Mary. — Sei tomar conta de mim mesma. Vim para cá no meu
próprio carro e voltarei nele, obrigada.
Com toda a dignidade que foi capaz de juntar no momento, ela retirou-se do bar,
deixando para trás seus estupefatos pretendentes.
No dia seguinte, um sábado, atirou-se à faxina de sua casa, começando por jogar fora
o pacote de chá verde que Rafe lhe dera.
Quando entrou na tienda de Vicente para comprar mantimentos, o homem gordo
saudou-a com entusiasmo:
— Boa tarde, soltera, veio comprar chá verde?
— Não!! Quero leite, ovos, queijo e pão. E um pacote de fertilizante para plantas.
Vicente coçou a cabeça, espantado com a rudeza da médica, sempre tão gentil com
todos.
Ao sair da tienda, Mary esbarrou em Carmelita e seu filho. Sentiu-se irritada por ver
uma criança vesga sem tratamento adequado.
— Olá, Carmelita. Olá, Lucero.
O menino não levantou os olhos do chão. Sua mãe respondeu ao "olá" da médica sem
entusiasmo. Mary observou-os afastarem-se dela, apressados, e uma sensação de desânimo
se apossou de sua mente e de seu corpo. O que estava fazendo em Kingdom Come, afinal?
Tentando convencer pessoas que não a queriam ali de que podia ser-lhes útil?
Ela voltou para sua casa com uma falta de ânimo fora do comum. Deitou-se no sofá e
seu olhar caiu sobre uma revista médica que chegara naquela mesma tarde. Uma chamada
de capa anunciava uma entrevista com o Dr. Albert Schweitzer, que combatera a ignorância,
o preconceito e as condições primitivas de vida e que servira ao povo africano por mais de
quarenta anos.
Quarenta anos! Que progressos poderia ela alcançar em meros seis meses?

Mary foi recepcionada por galinhas na sua terceira visita ao jacal da curandera.
Josefita se encontrava no quintal da frente, jogando milho às aves, amontoadas à sua volta.
Mary desceu do Mustang e aproximou-se da velha mulher.
— Posso falar com você um minuto, Josefita?
— Não há mais nada a ser dito entre nós.
— Engano seu. — Mary tirou um folheto da bolsa e mostrou-o. — Josefita, se seu
neto não for tratado agora, perderá a visão do olho estrábico. Veja este desenho. Com
óculos, ou então tapando a vista sadia e fazendo exercícios para os músculos do olho, com
um pouco de sorte Lucero poderá ficar bom sem precisar ser operado. Depois dos seis anos
de idade, contudo, uma cirurgia é quase sempre inevitável.
— Cuidarei do meu neto com os meus próprios remédios.
— E o que acontecerá se os seus remédios falharem?
— Daí eu vou rezar bastante.
— Rezar? Oh, não! Em vez de rezar, opere o olho do menino!
— Não quero os seus conselhos. Vá embora — disse a velha curandera.

Mary permaneceu sentada entre os algodoeiros por um longo tempo, tentando


absorver a calma dos campos e observando as águas barrentas do Rio Grande. De vez em
quando uma brisa suave agitava as folhas das árvores, lembrando que já era outono. No céu,
um avião descreveu uma curva em direção a El Paso, o sol brilhando em suas asas.
As sombras do entardecer começavam a baixar. Com um suspiro, ela levantou-se e
entrou no Mustang parado no acostamento da estrada. O tempo gasto em reflexão
finalmente dissipara a sua tristeza causada pelo frustrante encontro com Josefita.
Ao entrar em sua sala de estar, às escuras, Mary parou perto da porta. Seu sexto
sentido alertou-a de que havia alguém na sala. Os cabelos de sua nuca pareceram arrepiar-
se. Ela relembrou o ataque vândalo à sua clínica e perguntou, cautelosa:
— Quem está aí?
A luz se acendeu e iluminou o ambiente. Rafe achava-se sentado no sofá, mãos
cruzadas sobre os joelhos. Parecia triste.
— Como você entrou?
— Sou o seu senhorio, lembra-se?
— Oh, claro.
— Venha cá, Mary.
— O que... o que você quer?
— Você. E muito. Cometi um erro na nossa primeira vez e pretendo tentar de novo,
sem erros.
— Ou melhor, seu ego masculino não assimilou a sua má performance, certo?
— Mary, eu saí várias vezes depois daquela noite que você foi lá em casa. Um dia
chamei uma mulher para me fazer companhia e...
— Fez amor com ela, suponho.
— Não. Aí é que você se engana. Não pude fazer amor com ela. Tentei, lógico, mas
não aconteceu nada. Eu simplesmente não consegui amá-la. É por isso que quero você.
Preciso tê-la ao meu lado, Mary.
— Oh, Rafe... Eu o compreendo e não pense que não desejo você. Mas o que
sentimos não possui chance alguma de proporcionar algo de bom para nenhum de nós. Eu
não concordo com o seu jogo de fazer sexo indiscriminadamente!
— Eu não quero sexo indiscriminado, Mary. Quero você. Só você.
As palavras dele soaram perigosas, muito próximas a uma proposta de casamento.
Mary apavorou-se, pois sabia que Rafe não abandonaria Kingdom Come. E ela não
permaneceria na cidade.
— Você nos dará uma chance de aproveitarmos os seus últimos meses na cidade,
juntos? Eu gostaria que houvesse um compromisso entre nós dois, Mary. Não quero precisar
me controlar o tempo todo para não arrebentar cada homem que se aproxima de você.
— E quanto a Christina?
— Mary, doçura, não fui para a cama com Christina desde que você chegou a
Kingdom Come e abalou os meus sentimentos.
— E como seria o nosso... "namoro"?
— Se você ordenar que eu me comporte como um monge trapista, não reclamarei,
pode apostar. Me transformarei no homem mais feliz do mundo só de olhar para você, tocá-
la... Pararíamos nos beijos, conforme a sua vontade. Mas, oh, Mary, confesso que preferiria
bem mais do que apenas beijos!
Ela não se decidia a aceitar ou não a proposta de Rafe. Seu corpo ansiava por ser
abraçado, beijado, explorado nos recantos mais secretos, mas sua mente relutava em dizer
sim.
Como que para auxiliar Mary em sua decisão, Rafe beijou-a com ardor. Suas mãos
procuraram febrilmente o fecho do sutiã de renda, até abri-lo e libertar da prisão os seios
firmes e cheios.
— Mary... Seus seios são lindos... Lindos e gostosos... — murmurou ele com voz
rouca de paixão, mordiscando de leve os mamilos duros de prazer.
Mary apertou-lhe os ombros, apreensiva, e ele parou as carícias.
— Tudo bem, doçura. Irei com calma e deixarei a seu cargo as decisões de quão
longe posso chegar nos carinhos.
Rafe beijou um seio com gentileza e abotoou-lhe o sutiã.
Sentindo o calor da pele dele contra a sua, Mary pensou estar derretendo de prazer.
Não desejava que Rafe parasse com os carinhos, gostaria de ir até o fim... Mas, e se
experimentasse o mesmo desapontamento da vez anterior? A mesma dor, a mesma
repugnância pelo ato que não lhe dera prazer? Não seria capaz de enganar Rafe, fingindo
gozar. Ele era experiente na arte do amor.
Ou pior, se fazer amor fosse tão bom quanto Rafe prometia, seria muito mais difícil
para ela ir embora da cidade sabendo que largava para trás um mundo de paixões sensuais.
CAPÍTULO XII

O mês de novembro terminou e Rafe, aos poucos com seus beijos apaixonados e suas
carícias selvagens fez Mary sentir um tipo de frustração que ela nunca experimentara antes:
a de não completar o ato de amor após uma sessão de carinhos preliminares.
Sua azia piorava a cada dia, obrigando-a a tomar vidros de antiácidos. Quanto a Rafe,
comportava-se como um perfeito cavalheiro, embora às vezes demonstrasse que o seu
autocontrole excessivo o estava esgotando fisicamente. O casal se encontrava com
freqüência, de dia e de noite, e ambos acabavam dormindo pouco e trabalhando demais.
O namoro de Eddie e La Jean não parecia ser tão cheio de tensões quanto o
relacionamento de Mary e Rafe. Quando a recepcionista da clínica anunciou que o
patrulheiro a pedira em casamento, Mary ficou contentíssima pela amiga.
— La Jean, querida, meus parabéns! Você me contou que os seus filhos são loucos
por Eddie. Eles devem estar felizes com a idéia do seu casamento.
— Oh, as crianças estão adorando, com certeza. E eu mais ainda, claro! Sabe, você e
Rafe bem que podiam dar uma chance à instituição do casamento, também.
A palavra "instituição" trouxe a Mary lembranças da Instituição para Indigentes Lea
County, onde passara muitas noites quando menina.
— Não concordo com você, amiga. O solteirão de Kingdom Come possui seu próprio
conceito para a palavra casar, que não coincide com o conceito da maioria das pessoas.
Mary irritou-se consigo mesma por se permitir pensar em casamento. Mesmo que
Rafe tivesse vontade de se casar com ela, a médica não conseguia se imaginar passando o
resto da vida numa comunidade atrasada como Kingdom Come, sem poder exercer a
profissão para a qual estudara tanto. Naquela cidade, jamais seria capaz de provar que era
uma excelente profissional.
Tirando Rafe e o futuro da cabeça, Mary concentrou-se no trabalho. Examinou Al,
um ferroviário com artrite degenerativa nos joelhos. Ao terminar a consulta, ela prescreveu
alguns remédios e aconselhou:
— Procure não andar muito para não forçar os seus joelhos, Al. Massageie e aqueça
o local dolorido sempre que possível e evite subir escadas e...
Mary parou de falar quando Rafe entrou na clínica, batendo a porta atrás de si. Por
causa do susto que levou com tal aparição violenta, o velho ferroviário quase perdeu o que
lhe restava de força nos joelhos.
— Rafe — disse Mary —, o que significa isso?
— Arrume as suas malas, doutora. Vamos passar o dia de Ação de Graças na casa da
minha avó, em El Paso.
— Dia de Ação de Graças? — repetiu ela, atônita!
Desde que Billy escrevera avisando que ia passar o feriado caçando com alguns
amigos e Amy telefonara anunciando que fora convidada para visitar os pais da sua
companheira de alojamento, Mary praticamente se esquecera do dia de Ação de Graças.
— Pode levar Mary, Rafe. Eu fecho o consultório — avisou La Jean, solícita.
Ele levou Mary para casa e observou-a arrumar as malas, impaciente como um tigre
faminto. Ela não tinha vontade de conhecer a avó de Rafe; não queria saber da vida familiar
e particular dele; não desejava conhecê-lo mais a fundo para não tornar sua partida da
cidade mais dolorosa ainda.
— Minhas plantas, Rafe; quem vai molhar as minhas plantas?
— Mary, vamos passar apenas um dia e uma noite fora.
— Sua avó sabe que eu vou com você?
— Sabe, lógico.
— E se aparecer algum caso de emergência na clínica?
Ele perdeu a paciência com as tentativas de Mary fugir do passeio. Pegou a mala dela
e começou a dirigir-se para o carro, sugerindo:
— Será que devo pôr um anúncio no jornal com os dizeres: "Rafael Anaya raptou
temporariamente a Dra. Mary Margulies com o propósito de seduzi-la. Ela estará de volta na
sexta-feira, trabalhando no horário comercial"?
Ela acabou rindo e, quando já estavam na estrada, a bordo do MG branco, indagou:
— Você me "raptou" com o propósito de me seduzir mesmo?
Rafe tirou os olhos da estrada e passeou seu olhar sensual pelos lábios, seios e coxas
dela.
— Para dizer a verdade, não sei, Mary. Você me deixa tão confuso. Mas o que posso
fazer, se a vontade de levá-la para a cama não me sai da cabeça?
— Oh! Fazer amor comigo... na casa da sua avó?
— Qual o problema? Doçura, nunca vi pele tão macia quanto a sua. Pouco me
importa o lugar, desde que eu possa segurá-la nos meus braços e...
— Seus pais moram com a sua avó?
— Uau! Que mudança de assunto! Mas, tudo bem, vou satisfazer a sua curiosidade.
Meus pais encontram-se no momento na Espanha. Meu pai faz parte do corpo diplomático
americano na embaixada de Madri. Acho que o velho Anaya já passou por todas as
embaixadas do continente Europeu, inclusive a de Lichtenstein.
— Você sempre o acompanhou pelo mundo afora?
— Não. Algumas vezes meu pai foi mandado para pequenos países, como Dubai, que
não possuíam escolas adequadas aos meus estudos. Então eu ia morar com a minha avó na
Hacienda Encantada e freqüentava a escola de Kingdom Come. Quando atingi a idade de ir
para a universidade, minha avó mudou-se em definitivo para El Paso. Ela queria estar perto
das suas amigas e das suas obras beneficentes.
Rafe tirou uma das mãos da direção para acariciar a coxa de Mary.
— Mantenha as duas mãos no volante, Rafe, por favor.
Ele não seguiu o conselho dela. Mary achou que, se Rafe continuasse com os
carinhos em sua perna, seria obrigada a implorar para que fizessem amor ali mesmo, no
meio da estrada. Finalmente, após três tentativas, ele concordou em manter as mãos no
volante do MG.

El Paso del Norte era uma cidade de quatrocentos anos, imersa na história da região e
cercada pelas Montanhas Rochosas. A cidade sempre fora um ponto de encontro para
conquistadores e colonizadores, índios selvagens e frades devotos, caçadores, negociantes e
aventureiros em busca de ouro. Uma encruzilhada para jogadores profissionais, assaltantes,
pistoleiros e mulheres de vida fácil.
E alguma coisa na tarde outonal convenceu Mary de que também ela estava numa
encruzilhada.
Passando pelos subúrbios de Ysleta, Socorro e Tigua, ela compreendeu que aquela
região formara a personalidade de Rafe: seu orgulho, sua masculinidade, sua gentileza e
alegria.
Quando pararam para almoçar num café ao ar livre, Mary pôde observar as mesmas
características que formavam o caráter de Rafe no rosto dos passantes: na mulher que
vendia tortillas em frente à Catedral de Guadelupe; no hidalgo espanhol que se apoiava
numa bengala de marfim; nas crianças de pele escura e olhos sorridentes.
E também no rosto marcado pelo tempo da avó do fazendeiro, Ysabel Anaya. Dela,
Rafe herdara o nariz fino e os olhos dourados, embora a idade avançada tivesse diminuído o
brilho do olhar de Ysabel Anaya e branqueado seus cabelos por completo.
A velha senhora recepcionou o casal no enorme hall em estilo mourisco de sua casa
de dois andares, no antigo e aristocrático bairro de Sunset Heights. Mary tentou esconder
seu nervosismo diante da majestosa senhora. Escolhera intencionalmente um conjunto de
calça e blusa bege, roupas simples, para não dar muita ênfase ao encontro com a avó de
Rafe.
Ysabel apertou ambas as mãos de Mary com firmeza.
— Minha criança, sinto-me feliz por Rafe tê-la trazido para passar o dia de Ação de
Graças conosco. Sabe, às vezes me canso de conversar só com gente da minha idade. Uma
bela moça como você vai trazer um pouco de brilho e alegria a esta casa.
— Eu é que agradeço a oportunidade de conhecê-la, senhora.
— Meu neto é um malandrão. Nunca me põe a par das suas atividades
extracurriculares. Venha cá me dar um beijo, Rafe.
— Claro, vovó. E duvido que você aprovasse algumas das gringas com quem eu
ando. Nem todas têm o charme do Velho Mundo como você e Mary.
Rafe levou Mary até os aposentos onde ela dormiria durante a visita: um quarto
grande, decorado em azul e branco, com móveis delicados para contrabalançar as pesadas
vigas do teto.
— Que quarto lindo, Rafe!
— Você é que é linda, doçura. Eu gostaria muito de poder manter as minhas mãos
longe do seu adorável corpo.
Ele começou a beijá-la no pescoço, enquanto acariciava-lhe as curvas dos quadris.
— Rafe, sua avó pode entrar a qualquer momento e...
— Eu já contei a ela que trouxe você aqui para fazermos amor... Mas não agora.
Vamos ouvir a mulher gorda cantar, hoje.
— O quê?!
— Vovó reservou um camarote para assistirmos a Orquestra Sinfônica de El Paso
hoje à noite. Por falar nisso, nenhuma mulher gorda vai cantar, mas alguns dos músicos são
bem "cheinhos". Vista algo sexy para Mozart... e para mim.
Mary tomou um banho rápido e descobriu que o seu banheiro tinha uma ligação com
o quarto de Rafe. Ao abrir a porta do box, lá estava ele, seminu, encostado na pia.
— Vá embora! Saia daqui!
— Não posso, querida. Preciso tomar banho também. Rafe terminou de tirar a roupa
e enfiou-se debaixo do chuveiro junto com ela, encostando-a contra a parede de azulejos
molhados. Soltou-lhe os cabelos e jogou os grampos no chão.
— Mary, se você não permitir que eu faça amor com você logo, acho que morrerei de
paixão recolhida. E, se eu fizer amor com você logo, temo que nunca mais vá querer parar, e
isso me mataria de paixão do mesmo jeito...
Rafe, então, enterrou os dedos na cascata de cabelos ruivos de Mary, espalhando-os
sobre os ombros molhados. Em seguida escorregou as mãos pelo corpo dela, descendo pelas
costelas, contornando-lhe a cintura e delineando as curvas dos quadris. Beijou-a sem parar
e, quando seus dedos atingiram a delicada fenda entre as pernas dela, Mary enrijeceu-se
devido aos espasmos que se apossaram do seu corpo.
— Rafe... Não sei se posso...
— Claro que pode... Oh, Mary, você me excita tanto... Mas não vou magoá-la de
novo, querida. Só quero acariciar cada centímetro do seu adorável e delicioso corpo.
Pegando o sabonete, Rafe pressionou-a contra a parede e ensaboou-lhe a barriga e o
princípio das coxas.
— Eu já me lavei, Rafe — disse ela com voz rouca, procurando segurar a mão que se
insinuava entre suas pernas.
— Querida... Pretendo deixar-lhe uma lembrança agradável, que você não esqueça
nunca... Beije-me, Mary. Você sabe como.
Ela segurou o rosto dele entre as mãos e afagou-lhe os lábios com a língua, antes de
beijá-lo mais profundamente. Rafe, então, penetrou-a, mas se controlou e com movimentos
cadenciados, preocupou-se mais com o prazer de sua parceira.
Mary alcançou, junto com ele, o clímax da paixão, num gozo que a fez fechar os
olhos e gemer de prazer.
Após um longo momento de silêncio, Mary espreitou o rosto de Rafe por entre os
cílios semicerrados. Sentiu-se embaraçada por ser novata em matéria de sexo, ao passo que
ele se mostrava muito experiente.
— Mary? Tudo bem?
— Hum... hum. Obrigada, Rafe... Foi maravilhoso...
Ele sorriu, e as gotas de água em seu bigode brilharam contra a luz. Um sorriso de
amor? Talvez...
— Mary, querida, que tal nos aprontarmos agora? Não devemos deixar vovó
esperando. Vou permitir que você escape de mim desta vez.
— E da próxima?
— Veremos...

Guiando o Lincoln preto de sua avó, Rafe levou-as para jantar no International Club,
no alto da Torre do Banco Nacional. Uma sala privada fora reservada para a família Anaya.
As grandes janelas de vidro permitiam que se visse lá em baixo as luzes de El Paso e Juaréz.
Durante a refeição, Ysabel Anaya contou casos da infância de seu neto, um garoto
muito travesso.
— Rafe não mudou nada, Sra. Anaya. Seu neto ainda é um grande traquinas!
— E eu que pensei que o Vietnã o tivesse regenerado.
— Vamos, vocês duas, parem com isso. Ou querem que eu me sinta "bombardeado"
pelos seus comentários a meu respeito?
A Orquestra Sinfônica de El Paso tocou magnificamente bem, emocionando Mary.
Ou a emoção provinha dos carinhos que Rafe fazia na palma da sua mão? Na poltrona ao
lado da sua, a velha senhora acompanhava com os pés o ritmo da música, sorrindo para o
neto e sua convidada.
A maioria das pessoas estava vestida com luxo, como que para uma noite nos
cassinos de Monte Cario. As mulheres usavam longos, estolas e luvas; os homens, como
Rafe, trajavam black-ties elegantes. Mary usava o seu conhecido vestido de crepe preto que,
apesar de não ser luxuoso, adequou-se perfeitamente à situação.
Retornaram para Sunset Heights por volta da meia-noite. Ysabel retirou-se para o seu
quarto após tomar um copo de leite, desejando boa noite ao casal.
— Vamos... dormir, Mary? — perguntou Rafe, com uma piscada maliciosa.
— Você não vai tomar o seu chá quente, antes?
— Já estou "quente" o suficiente, doçura. O branco dos meus olhos se tornou amarelo
de tanta abstinência.
— Algo pouco comum para um homem do seu calibre, eu imagino.
Rafe segurou-lhe a mão e puxou-a para o quarto.
— Rafe, sua avó. O que... ?
Rafe levou-a para a cama e a fez deitar por cima dele.
— Querida, minha avó sabe muito bem que os seres humanos possuem desejo sexual.
Ela mesma deve ter passado pela experiência do sexo no mínimo duas vezes, para produzir
meu pai e meu tio.
— Mas dona Ysabel era casada, Rafe, e nós não somos.
— As maravilhas do sexo não existem apenas para os casados, Mary. Oh, você me
excita tanto...
Ela adorava o modo como Rafe a beijava, fazendo amor com seus lábios, sua
garganta, a parte de dentro dos seus braços, até com os seus cabelos ruivos. Querendo ter
acesso ao corpo todo de Mary, ele inverteu as posições e tentou tirar-lhe a roupa, sem
conseguir.
Rindo por causa dos esforços fracassados de Rafe, ela livrou-se do seu abraço e
levantou-se, ficando aos pés da cama. Ele cruzou os braços por debaixo da nuca e observou
com olhos brilhantes Mary tirar a roupa: primeiro a anágua de renda cor-de-rosa e depois o
vestido, permanecendo apenas com a calcinha e o sutiã pretos.
— Mary... Só de olhá-la, a minha boca fica seca como uma duna do deserto. Permite
que eu tire o resto para você?
Sem esperar pela resposta, Rafe sentou-se na beira da cama, afundando o rosto na
barriga dela e esticando os braços para abrir o fecho do sutiã. Ao sentir a pele dele contra a
sua, Mary cobriu o rosto com as mãos, tremendo involuntariamente.
— Mary, olhe para mim. Não tenha medo. Quero que você goste do que vamos fazer.
Diga que me deseja. Diga o meu nome, para que eu possa ouvi-lo dos seus lábios.
— Eu... Oh, Rafe, eu te desejo...
Encorajado pelas palavras dela, ele tirou-lhe a calcinha, com mãos trêmulas de
paixão. Seus dedos acariciaram-na na parte de trás dos joelhos e sua boca provou a pele
úmida entre as coxas.
— Mary, doçura, você é tão perfumada ali...
Ela não resistiu ao que Rafe fazia com o seu corpo. Desabotoou-lhe a camisa e abriu-
a, revelando um peito largo e peludo. Mary passou a língua sensualmente nos mamilos dele,
que gemeu de prazer mas não fez nenhum movimento para tocá-la.
Num gesto ousado, ela decidiu também tirar-lhe a calça. O desejo de Rafe mal cabia
dentro de sua minúscula cueca azul.
— Mary... Mary... Você é uma mulher diabólica, sabia?
— Rafe, seu corpo é lindo, lindo...
Ela abraçou-o e beijou-o na boca, encostando-lhe os seios macios no peito nu.
Rafe levantou-a nos braços e levou-a de novo para a cama, acariciando-a e
lambendo-lhe o umbigo para, por fim, deitar-se por cima dela.
— Mostre-me, ensine-me como agir, Rafe — murmurou Mary, querendo sentir outra
vez a embriagante sensação que experimentara no chuveiro.
Quando ele a penetrou, uma dorzinha aguda percorreu-a, causando-lhe um gemido.
Rafe parou no meio do caminho para tranqüilizá-la com palavras doces. Mary sentiu medo,
pois o membro dele parecia tão grande que ela não sabia se o comportaria inteiro.
— Mary, querida, está tudo bem. Temos todo o tempo do mundo.
Ela percebeu que Rafe não desejava machucá-la, apenas lhe dar prazer. Permaneceu
imóvel até que ele acabasse de penetrá-la. E então se esqueceu de qualquer dor, quando
Rafe a beijou e começou a fazer movimentos rítmicos, perguntando:
— Querida... Você está pronta para mim? Não posso me controlar mais...
— Sim, oh, sim...
Mary acabara de entrar num mundo sensual, erótico, jamais imaginado. Suas mãos se
cruzaram nas costas de Rafe para acompanhá-lo na louca cavalgada que o fazia entrar mais
fundo nela. Seus lábios deixavam escapar gemidos de prazer.
Mary estava a ponto de atingir o clímax. Seus gritinhos e a reação convulsiva de seu
corpo auxiliaram Rafe a alcançar o ponto máximo do gozo ao mesmo tempo que ela.
CAPÍTULO XIII

Um largo anel de fumaça azulada desprendeu-se do cigarro. Mary observou-o


dissipar-se no ar. Ela tentava identificar seus sentimentos. Talvez devesse estar sentindo
vergonha, mas não era esse o caso. Não houvera promiscuidade. Apenas um ato de amor
selvagem e bonito
Ela sabia que nunca mais passaria pela mesma experiência. Nem com Rafe nem com
nenhum outro homem. Aquele fora seu único momento de paixão antes de voltar ao seu
estado de "solteirona".
— Rafe?
— Hmmmm?
— O que você está pensando?
Ele apagou o cigarro e virou-se para Mary, estudando-lhe o rosto delicado. Seu olhar
possessivo causou nela arrepios de prazer.
— Que o seu traseirinho fofo é tão macio quanto parece, doçura. Que...
— Oh, Rafe, fale sério!
— Muito bem. Se quer mesmo saber, eu pensava em quão pouco você fala sobre o
seu passado. Gostaria de conhecê-la melhor. Conhecer tudo sobre a sua vida.
— Tudo... o quê?
— Por exemplo, por que você nunca se casou?
Ela não desejava relembrar o passado, que sempre lhe trazia lembranças
desagradáveis. Mas Rafe não a deixaria fugir das perguntas, tinha certeza, por isso esforçou-
se para responder com sinceridade.
— Nunca me casei em parte por não ter tempo disponível para me envolver com
alguém. Eu me preocupei mais em transformar a minha vida numa coisa útil. Havia meus
irmãos e irmãs que dependiam de mim, a escola para terminar. Se eu me casasse e
engravidasse, acabaria voltando ao estilo de vida que tinha levado com a minha família
quando criança.
— Que estilo de vida?
— Pobreza desumana, infelizmente.
— Continue, Mary, por favor.
— Eu... Eu não queria que meus filhos nascessem com um tempo de vida limitado
por falta de alimentação e cuidados médicos adequados. Ou pior, que eles fossem afastados
de mim por falta de recursos para criá-los. Sou a mais velha de nove irmãos, Rafe. A
maioria deles morreu cedo, e outros foram separados de mim por adoção. Um deles nasceu
retardado, porque minha mãe não se alimentou direito durante a gravidez. Outro está na
prisão por assassinato. Meu pai não parava em casa e mamãe não conseguia controlar todos
os filhos sozinha. Tentei de várias maneiras manter a família unida... E agora só restam três
de nós: eu, claro, além de Billy, que você conhece, e Amy.
— Foi por isso que você se especializou em obstetrícia e pediatria, querida?
— Suponho que sim, como um modo de estabelecer a minha própria unidade
familiar.
Rafe abraçou Mary com carinho, brincando com seus cachos ruivos.
— Posso fazer uma pergunta indiscreta, doçura?
—"Hmmm... Pode!
— E a sua virgindade? Por que você demorou tanto para dá-la a alguém? Não me
diga que é frígida, porque eu não vou acreditar, depois de tudo o que aconteceu entre nós!
Mary riu baixinho, acompanhando com os dedos a curva do bigode loiro de Rafe.
— Como eu lhe disse, querido, estava muito ocupada em construir um bom futuro
para mim como médica. Não tinha tempo para encontros e namoros. E chegou uma hora em
que resolvi não usufruir da minha sexualidade. Até que encontrei um tal de Rafael Anaya.
— Mary?
— Hmmm?
— Nada. Apenas obrigado por esta noite.
Ele beijou-a e recebeu um abraço como retribuição. Os beijos se tornaram mais
exigentes e Rafe deitou-se sobre ela, afagando-lhe os quadris. Mary sentiu o desejo tomar
conta do seu corpo mais uma vez. Ela o queria entre as suas pernas novamente. Beijou-o no
rosto sombreado pela barba por fazer, nos olhos, no nariz, na boca, nos ombros. Beijos que
pretendiam deixar claro que o amava e que o desejava.
Rafe acomodou-se entre as coxas dela, enquanto lhe sugava os seios e fazia
movimentos circulares com a língua sobre os mamilos rijos. Após um curto instante, com a
respiração ofegante de excitação, ele escorregou para dentro do corpo de Mary, deixando-a
embriagada de prazer.
— Mary, doçura, você gosta do que estou fazendo, não gosta?
— Oh, sim Rafe! Me ame... Me ame...
Ele penetrou-a mais, surpreendendo-se ao ver que ela o forçava ainda mais para
dentro.
Mary acariciou-lhe as costas e, quando pensou que ia se partir em mil pedaços, ele
diminuiu o ritmo até ficar parado por alguns minutos. Ela tentou recomeçar aqueles
movimentos alucinantes, mas seu parceiro a beijou e forçou-a a aquietar-se.
Rafe ensinou-a como lhe dar prazer, e em troca ela recebeu carícias que a
enlouqueciam. Continuaram com os carinhos para, por fim, alcançarem um doce e glorioso
êxtase.
Mary, sonolenta, já ia adormecer encaixada nos braços do seu parceiro quando este
lhe disse:
— Mary, se você acordar antes de mim, não me toque para me acordar. Vá para o seu
lado da cama e chame o meu nome, devagar e baixinho.
— Por quê?!
— Trauma de guerra, adquirido no Vietnã. De vez em quando penso que ainda estou
lá.
— Tudo bem, Rafe, eu compreendo. Boa noite.

Mary ajeitou as fatias de queijo sobre as fatias de batatas cozidas. Ao seu lado Ysabel
Anaya terminou de cortar as cebolas e colocou-as na assadeira. Mary estava feliz e
cantarolava baixinho. Nunca participara de um jantar de Ação de Graças. Da sala vinha o
som da voz do comentarista esportivo, através da televisão. Da última vez que ela fora
espiar, Rafe estava dormindo, e não prestando atenção ao futebol.
— Minha querida — disse Ysabel —, você não imagina a alegria que me deu vindo
aqui com o meu neto. Há tanto tempo espero que Rafe tome um rumo na vida, que se
estabeleça.
— Não pretendo decepcioná-la, Sra. Anaya, mas quem garante que o seu neto se
encontra pronto para se "estabelecer" na vida com alguém?
— Oh, sei que Rafe ainda não está pronto para isso. Toda a sua vida ele passou
mudando de uma casa para outra, de um apartamento para outro, de um país para outro. Foi
por isso que se alistou nas Forças Especiais, para continuar sempre em constante
movimento. Precisou que algo dramático acontecesse, não sei o que, ele nunca me contou,
para que Rafe desistisse de combater e voltasse para Kingdom Come. E acho que ele vai
precisar de outro acontecimento dramático e traumático para convencê-lo a se estabelecer
com uma única mulher.
Durante o jantar Rafe não tirou os olhos de Mary, sentada à ponta oposta da mesa.
Que tortura não poder tocá-la ali, naquele instante. Só se sentia completo ao segurá-la em
seus braços. Era uma surpresa para ele o fato de continuar a desejá-la tão intensamente. As
lembranças tomaram conta de Rafe e ele agitou-se ao recordar a maneira como Mary o
provocara durante a madrugada para fazerem amor novamente. Daquela vez, mais
desinibida e maliciosa, ela ficara por cima, seu cabelo caindo sensualmente no peito e no
rosto dele.
Rafe presumira que, quanto mais fizessem amor, mais rápido seu desejo por ela
diminuiria. Mas acontecera o oposto. Que fim levara a sua opinião de que o ato amoroso
não passava de um divertimento passageiro e que jamais deveria ser feito com a mesma
parceira muitas vezes, para não enjoar?
O fazendeiro pensara, e esperara com todas as suas forças, que após esse fim de
semana teria de volta o controle de sua vida, sem se preocupar mais com o fascínio que o
corpo de Mary exercia sobre ele. Que ilusão! Continuava a querer amá-la de novo. E de
novo. Nenhuma outra mulher o agradara tanto. A única coisa que o incomodava era saber
que ela não admitiria interferências na sua carreira e no seu futuro.
Mary passou a língua sobre os lábios num gesto inconsciente e sensual. Rafe
descontrolou-se por completo. Sentiu urgência de levá-la para a fazenda naquele instante e
fazer amor com ela até cair de exaustão.
— Um jantar maravilhoso, vovó. Excelente. Mas já está ficando tarde e Mary vai
trabalhar amanhã. Vamos embora agora.
— Rafe! — exclamou Mary. — Ainda nem comemos a sobremesa!
— Oh, Mary! Você é encantadora, minha criança! E você, Rafe, não mudou nada —
disse Ysabel Anaya, rindo.
— Mudei, sim, vovó. E como!
A velha senhora sorriu. Adoraria ter bisnetos. Mas preferia ter uma "nova" neta antes.
Rafe se conservaria solteiro, a menos que aquela adorável moça o convencesse do contrário.
Mas, e se Mary Margulies não se interessasse pelo seu neto?
— Você deve voltar a me visitar, Mary querida. E sem o meu neto. Ele não
entenderia conversinhas femininas.
E as duas trocaram piscadelas de mútuo entendimento.
Na estrada de volta para Kingdom Come, Rafe permaneceu em silêncio, dirigindo e
fumando, lançando olhares ocasionais à sua acompanhante. Como não reparara antes que
estava apaixonado a ponto de querer Mary para sempre? Para sempre. A expressão "para
sempre" o apavorava... mas não se Mary permanecesse em seus braços... para sempre.
Quando ele estacionou o MG em frente à sede da fazenda, Mary perguntou, inquieta:
— Você não vai me levar para casa, Rafe?
— Não — respondeu ele, abraçando-a.
— Rafe, deixe-me ir. Leve-me para a minha casa.
— Não.
Mary iniciou uma luta para se livrar do abraço do fazendeiro e quanto mais o
empurrava, mais ele ria.
— Rafe Anaya, solte-me! Se não quiser me levar, irei a pé para casa.
— Tente, doçura, tente!
A luta incendiou o desejo nos corpos do casal. Rafe prensou Mary contra a porta do
carro, desabotoou-lhe a blusa e tomou um seio palpitante nas mãos. E então, bruscamente,
parou de acariciá-la.
— Rafe... Por que parou?
— Doçura, eu te amo. Quero que fique em Kingdom Come. Case-se comigo.
— Não.
— Por todos os santos, Mary, como não?
— Você abandonaria a Hacienda Encantada, seu povo e o seu vale para ir comigo
para Washington?
— Kingdom Come não é um lugar bom o suficiente para você clinicar aqui para
sempre?
— Clinicar aqui? Se você mesmo me avisou que ninguém vai me aceitar! Nunca terei
chance de pôr minha profissão em prática nesta cidade.
— Sua resposta não me convence, Mary. Pensa que eu desisto facilmente? Jamais
quis algo na minha vida tanto quanto quero você. Droga! Nunca demorei tanto para
conquistar uma mulher quanto demorei para conquistá-la. Eu deveria ter desistido de você
no primeiro mês, mas o meu orgulho masculino me fez insistir, e agora...
— É isso, Rafe. Orgulho masculino. Se eu me casasse com você por causa do seu
orgulho, em um mês estaríamos separados.
— Que tal experimentar para ver o que acontece?
— Por favor, isto não é um jogo! Não torne as coisas difíceis para mim!
— Quer dizer que uma carreira de prestígio significa mais para você que o amor?
Você acaba de cair no meu conceito, Mary, como mulher e como pessoa.
— Oh, seu...! Quem é você para me julgar? Você sempre foi rico, teve tudo o que
quis na vida. O que sabe sobre a pobreza? Já ficou na rua sozinho até às quatro da manhã
por não ter um lugar para onde ir, sem uma mãe ou um pai para protegê-lo? Já passou pela
experiência de ver as pessoas que ama serem levadas pelas assistentes sociais sabe Deus
para onde? Pois eu passei por tudo isso e mais alguma coisa. Trabalhei demais, dei duro
demais para jogar fora o meu diploma numa cidade perdida no meio do deserto!
— Vou levá-la para casa, Mary. Fique com as suas plantas, sua carreira, droga!
— Rafe, procure entender...
— Oh, eu entendo muito bem. Banquei o bobo nas suas mãos. Agora chega. Existem
outras mulheres por aí, sabe? Mulheres de carne e osso, não cartões de computadores!

Mary saiu da clínica desanimada após mais um dia infrutífero. Estacionou o Mustang
sob as árvores do jardim da sua casa, e, quando desceu do carro, alguém a chamou do meio
das folhagens.
— Psiu! Psiu! Soltera!
— Quem está aí?
— Angelita Vargas — respondeu a mulher, aparecendo.
— O que houve, Angelita, algum problema? Aconteceu algo a Tranquilito?
— Não, não. Eu vim aqui escondida do meu marido para falar com você.
— Não quer entrar um pouco e tomar uma limonada e me contar o que a aflige?
— Não, obrigada, tenho vergonha.
— Por quê?
— Soltera, quando meu marido descobriu que eu fui à sua clínica, ficou muy
enojado, furioso comigo! Naquela mesma noite ele... ele... entrou no seu consultório e...
quebrou uma porção de coisas.
— Obrigada por me contar, Angelita. Você resolveu um mistério que me preocupava.
— Aceite estes quinze dólares, por favor, soltera. Não é o suficiente para pagar os
prejuízos na clínica, eu sei, mas não consegui juntar mais dinheiro.
Mary não recusou o dinheiro, para não ofender a mulher.
— Aceito, Angelita, obrigada. Comprarei remédios com estes quinze dólares. E
Tranquilito? Parou de molhar a cama?
— Não, soltera. Fernando, meu marido, não deixa o menino lavar os lençóis. Diz que
isso é serviço de mulher.
— E os conselhos que lhe dei? Você os seguiu?
— Não. Fernando falou que se a curandera descobrisse que eu fiz o que você
recomendou, ela...
— Nunca mais cuidaria de vocês, certo?
— Si, soltera. Sinto muito. Adeus.
Mary esperou que Angelita fosse embora e então suspirou fundo. Seu trabalho em
Kingdom Come não progredira em nada. O povo não aceitaria jamais a sua presença na
cidade. Ainda bem que faltava pouco para ir embora dali.
Se ao menos não visse Rafe com tanta freqüência nas ruas... O desprezo nos olhos
dele chegava a congelar-lhe os ossos.
CAPÍTULO XIV

Rafe olhou para o telefone como se este fosse uma cascavel pronta para dar o bote.
Segurou firme a lata de cerveja na mão para não cair na tentação de usar o aparelho.
Eddie entrou no gabinete de trabalho do amigo trazendo mais duas cervejas geladas e
aconselhou:
— Vá em frente. Ligue para ela.
— Ela quem?
— Não banque o desentendido, Rafe. Falo da ruiva bonita que vimos ontem à noite
jantando no Oásis com Beau Brewster.
— Aquele cara de fuinha, aproveitador!
— Calma, amigão. Não se deixe abater, ou vai ficar com o coração em pedaços.
— Já lhe contei que Mary prefere a sua carreira a um homem. E ela vai embora no
fim deste mês.
— Convença-a de que você vale mais do que uma carreira. Mostre-lhe que as suas
intenções são sérias. Peça-a em casamento.
— Eu pedi.
— Pediu? E recebeu um não na cara? Que diabos! Uma situação péssima para um
homem. Talvez você devesse procurar um médico.
— Ou uma médica? Droga!
— Eu diria, amigão, que você se encontra num beco sem saída.
— Obrigado, "amigão", isso eu já sabia. Você tem alguma sugestão útil a fazer?
— Procure outras mulheres. Que tal irmos até Juaréz e darmos um pulo no Papa
Gallego's? Ouvi comentários de que o lugar está cheio de garotas novas.
Rafe pensou no assunto por trinta segundos, depois amassou a lata vazia de cerveja
com as mãos. Não se sentira com disposição para encontrar garotas novas desde que pusera
os olhos no corpo sensual de Mary Margulies.
— Não, Eddie, não vou a Juaréz. Eu quero Mary. Mas não vale a pena procurá-la.
O fazendeiro foi para a cozinha buscar mais bebida, a fim de se embebedar e
esquecer seus problemas. Abriu a geladeira: vazia.
— Que inferno! Parece que nada dá certo comigo! Acho que vou virar monge.
— Penso que o padre John não aprovaria a sua idéia, Rafe. Muito menos a população
feminina de Kingdom Come.
— Não me interessa a população feminina da cidade, Eddie — disse o fazendeiro
batendo a porta da geladeira. — Só me interessa Mary!

O papel de carta, fino e de bom gosto, trazia impresso no cabeçalho o título:


Complexo Médico Scott-Waggoner, Ltd. A carta estava assinada pelo diretor de
recrutamento do departamento pessoal e dizia:
"O conselho de diretores do Complexo Médico pediu-me para comunicar-lhe a
decisão unânime de aceitá-la para um cargo em nosso quadro de pessoal. Sua presença entre
nós será de inestimável valor. Esperamos ansiosos a hora de começarmos a trabalhar juntos.
Contamos com a sua colaboração."
O resto da carta trazia outros detalhes sobre o seu novo emprego: a data de sua
apresentação — 3 de janeiro do próximo ano; os termos do contrato de trabalho; o salário
inicial — uma quantia astronômica aos olhos de Mary.
Oh, quanto tempo ela esperara por tal carta! Anos! Sem perder tempo, Mary assinou
o contrato que viera junto, colocou-o num envelope selado e correu para a agência do
correio, ou seja, a tienda do Vicente.
O sol outonal parara de brilhar em Kingdom Come. Uma massa de ar frio viera do
Canadá, nublando o céu, naquela primeira semana de dezembro. Mary levantou a gola do
seu casaco grosso de lã bege e praticamente foi empurrada pelo vento para dentro da tienda.
— Hola, soltera! — cumprimentou Vicente, por detrás do balcão.
— Olá, Vicente. Preciso mandar esta carta e...
Ela perdeu a fala quando Rafe saiu de um dos corredores da tienda e aproximou-se
da caixa. Mary já o vira muitas vezes após o desastroso fim de semana que haviam passado
juntos, mas nunca tão de perto que precisasse falar com ele. Procurara evitar por todos os
modos expor-se mais uma vez ao olhar dourado do fazendeiro. E agora ali estava o homem,
bonito como sempre, parecendo ter saído de uma revista de moda masculina, colocando
sobre o balcão um pacote de chá verde e um vidro de antiácidos.
— Bem, olá, Mary.
— Olá, Rafe.
Ela entregou sua carta para Vicente, com o endereço virado para cima.
— Ei, finalmente vai trabalhar em Washington, hein, Mary? — comentou o
fazendeiro.
— Sim, finalmente. E para quem são os comprimidos? Para você? Começou a sofrer
de azia também?
— Sim. Por causa do chá verde.
— Por que não pára de tomar chá?
— Acho que viciei. Adeus, Mary.
— Adeus, Rafe.
Vicente fechou os olhos e balançou a cabeça, incapaz de compreender a conversa
sem sentido dos dois. "O mundo enlouqueceu, no mínimo", pensou o homem gordo.
Mary releu mais de uma vez a carta do Complexo Médico, mal acreditando que os
esforços de toda a sua vida haviam sido recompensados: iria trabalhar num hospital de
prestígio.
A cada releitura se convencia mais e mais de que estava tomando a decisão certa em
ir embora de Kingdom Come. O bom senso lhe dizia que ali ela era quase inútil como
profissional. Quem sabe o próximo médico que viesse não seria um homem casado,
mexicano de preferência, com mais chances de vencer o preconceito do povo da cidade?
La Jean interrompeu-lhe as reflexões:
— Mary, Manuel Ortega quer vê-la.
— Manuel Ortega? Paciente novo?
— Ele não tem ficha aqui. Diz que tem pressa de falar com você.
Mary dirigiu-se à sala de recepção e reconheceu o homem à primeira vista: Manuel, o
capataz de Rafe. Parecia nervoso e uma expressão furtiva toldava-lhe os olhos.
— Manuel... Aconteceu algo a Rafe? Ele se feriu?
— Não, soltera. Nada de errado com el patrón. Vim aqui por causa de Hermalinda
Hernandéz. Chegou a hora do parto, eu acho.
— Onde está ela?
— Encontrei-a no bosque, perto das árvores onde a Hacienda Encantada faz fundo
com o Rio Grande. Hermalinda me pediu para buscar la soltera.
Droga. Hermalinda se adiantara três semanas.
— Manuel, Josefita é partera. Uma partera muito boa. Ela pode ajudar Hermalinda.
— Não. Hermalinda insistiu que fosse você. Venha rápido. A garota me disse
"gêmeos" e que sente muita dor.
— Você não entende. Eu não posso. É contra a lei ajudar imigrantes ilegais. Perderei
a minha licença!
O mexicano não arredou pé do lugar, sem entender nada além da urgência da
situação.
Mary esfregou as mãos, indecisa. Era por uma ocasião destas que Hanson esperava.
Se o chefe a pegasse trazendo os bebês de Hermalinda ao mundo...
Mas como negar o pedido da mexicaninha e arriscar-se a vê-la — e aos gêmeos —
morrendo?
— La Jean, traga minha maleta. Manuel, iremos no meu carro.
— Si, soltera.
— Mary! Tem certeza de que tomou a decisão certa?
— Eu tenho certeza de ser uma grande tola, isso sim, La Jean. Até daqui a pouco.
Fora da clínica, o vento gelado quase jogou-a ao chão. Ela deixou que o capataz
dirigisse, uma vez que ele sabia exatamente para onde ir. O Mustang sacolejava e derrapava
na estradinha de terra que serpenteava por dentro da Hacienda Encantada e levava às
margens do Rio Grande. A médica e o capataz prestavam atenção no horizonte, temendo a
aparição do jipe da Patrulha da Fronteira.
Durante a curta viagem, Mary tentou tranqüilizar-se a respeito de Hermalinda. Não
havia razão para se preocupar. Exceto que a mexicaninha não era do tipo que reclamava de
dor. Na certa esperara até o último momento para atravessar o rio, de modo que não pudesse
ser mandada de volta para o México. Mas do rio ela poderia ter ido direto para a clínica. Por
que não fora?
Meu Deus! Mary lembrou-se então que a temperatura da água devia estar congelante!
E se a garota tivesse sofrido um choque térmico? Raios, como fora se esquecer de trazer
cobertores?
— Rápido, Manuel, rápido!
O capataz pisou fundo no acelerador, olhou pelo espelho retrovisor e murmurou um
"Oh-oh!" que assustou a médica.
— O que foi, Manuel?
— Há um carro correndo atrás de nós.
O estômago de Mary se contraiu. O capataz diminuiu a velocidade do Mustang,
avisando que estavam perto.
— Perto quanto, Manuel? E Hermalinda?
— Não me lembro direito de onde deixei a garota, soltera.
— Ora, seu...
— Ah! Ali, soltera. Deixei-a bem ali!
Mary desceu correndo do carro com sua maleta debaixo do braço. A mexicaninha
jazia em meio à grama alta. Encontrava-se nua da cintura para cima, apenas com o casaco
do capataz a cobri-la.
Aparentemente, depois de atravessar o rio, as contrações dolorosas a haviam
impedido de acabar de se vestir. Uma blusinha suja e um par de sandálias repousavam ao
lado dela, dentro de um saco plástico. Os lábios de Hermalinda estavam apertados com
força, como que para segurar os gritos de dor, e sua pele morena apresentava uma palidez
assustadora.
A médica ajoelhou-se ao lado da garota e ergueu-lhe a cabeça do chão. O suor
encharcava o rosto da mexicana e seu corpo tremia de frio.
— Soltera, é você? A dor... Os bebês... Vai dar tudo certo, não?
Mary relaxou um pouco. Embora a aparência de Hermalinda fosse péssima, ela não
parecia ter problemas para falar e coordenar seus movimentos.
— Soltera, o outro carro está chegando — alertou Manuel.
A médica rezou para que o carro não fosse o de Hanson, enquanto examinava a
garota rapidamente. Apalpou-lhe os contornos da barriga e sentiu o bumbum da criança
mais baixa. Os quadris de Hermalinda eram estreitos demais! A jovem precisaria de uma
cesariana!
— Ei, é a caminhonete do patrón! — anunciou Manuel, aliviado.
Rafe desceu correndo da caminhonete e aproximou-se deles, indagando:
— Problemas?
— Os bebês estão em má posição, Rafe! — explicou Mary.
— Temos que levar Hermalinda para a clínica agora!
— Levaremos a garota na traseira da caminhonete. O fazendeiro carregou a grávida
no colo e ajeitou-a do modo mais confortável possível, embrulhando-a num cobertor de
cavalos, sujo, porém quente. Em seguida virou-se para Mary e segurou-a pelos ombros.
— Sua maluca, sabe o que está fazendo? Comprometendo a sua carreira. É isso o que
quer?
— Rafe, não me impeça de auxiliar uma necessitada. E vamos logo, não há tempo a
perder!
Rafe dirigiu a caminhonete. Manuel e Mary foram atrás, escorando Hermalinda.
Depois do que pareceu uma eternidade chegaram à clínica, onde La Jean já os esperava com
a porta aberta.
Rafe carregou a mexicana para a mesa de operações, enquanto Mary foi lavar e
desinfetar as mãos.
Tremendo, a médica procurou nas gavetas os instrumentos-necessários para a
cirurgia e arrumou-os na ordem em que precisaria deles. Sabia que com as técnicas
cirúrgicas modernas os riscos de vida para as parturientes e os bebês quase não existiam.
Mesmo assim, as condições para a presente cesariana eram mais do que precárias.
La Jean e Manuel observavam tudo da porta.
— Eu... Eu vou esperar lá fora — disse a recepcionista, pálida.
Mary concordou com a cabeça. Teria que contar apenas com a ajuda do fazendeiro
dali para a frente.
— Rafe, apóie as pernas de Hermalinda nos estribos da mesa. E... você suportará a
visão de sangue?
— Depois de lidar com o seu gênio difícil, suponho que possa suportar qualquer
coisa.
— Ótimo. Ouça: vou aplicar uma anestesia local, que pode não atingir o propósito
desejado. Você pode segurar a garota se ela tentar se mexer?
— Posso.
— Eu não vou me mexer! — protestou a mexicaninha, sem se dar conta do que
prometia.
A médica colocou um lençol cobrindo a garota da cintura para cima. Suas mãos não
mais tremiam. Mostravam-se seguras e firmes ao injetar a anestesia e desinfetar o corpo da
jovem com um algodão embebido em antisséptico.
Alguns minutos depois testou a área a receber a incisão para ver se já estava
insensível. Diante de um resultado positivo, pegou o bisturi.
— Pronto, Rafe? Vou começar.
— Pronto.
Mary deu apenas uma olhada breve na direção do rosto de Hermalinda, transformado
numa máscara de dor, encharcado de suor. A jovem, não se sabe como, encontrou forças
para sorrir e comentar:
— Meus bebês serão cidadãos americanos. Graças a você, soltera.
A operação caminhava tranqüilamente. Uma discussão na porta da clínica captou a
tensão da médica por poucos segundos, e ela voltou a concentrar-se em sua tarefa até que a
sombra de Hanson caiu sobre o lençol que cobria a parturiente.
— Apanhei-a com a mão na massa, hein, doutora? Bem, como servidor fiel do
governo dos Estados Unidos, peço que me acompanhe. Dou-lhe voz de prisão por violar a
lei, prestando serviços médicos a uma imigrante ilegal. Vamos, doutora.
O chefe da Patrulha segurou o braço de Mary. Na mesma hora Rafe acertou-lhe um
soco que o jogou contra a parede do outro lado da sala. O fazendeiro segurou-o pelo
pescoço, furioso.
— Você não vai levar a doutora a lugar nenhum por enquanto, Hanson! Você vai
esperar até que ela termine a operação. Entendeu, seu sujo desumano?
Sem se abalar com a briga, Mary terminou a incisão no útero e enxergou as crianças
aninhadas no ventre materno. Ergueu com cuidado uma delas, uma menina, e cortou o
cordão umbilical. Deu um tapinha nas costas da garotinha, que abriu o berreiro.
— Aí está, Hermalinda. Uma cidadã americana. E ainda há mais um: um menino,
agora!
— Gracias, soltera. Mil gracias — sussurrou a mexicana, chorando.
— Feliz aniversário — disse Mary por sua vez, dirigindo-se aos bebês, e enxugando
as lágrimas que lhe corriam pelo rosto.
— Meus bebês são perfeitos?
— Perfeitíssimos, Hermalinda.
— Bravo! — elogiou Rafe, continuando a segurar Hanson pelo colarinho.
— La Jean, venha cá! — chamou Mary. A recepcionista entrou na sala, relutante.
— Quer alguma coisa?
— Sim. Pegue os bebês e lave-os.
— Eu?
— Você mesma. Preciso terminar aqui.
A médica removeu as placentas do útero, costurou o corte e limpou o sangue
espalhado sobre Hermalinda. Caminhou até a pia, lavou-se e entregou-se a Hanson.
— Eu o acompanharei agora, chefe.
O patrulheiro a pegou com brutalidade pelo braço e empurrou-a à sua frente. Mary
perdeu o equilíbrio por causa do empurrão violento e bateu a cabeça na quina do armário de
remédios.
E então a raiva de Rafe explodiu. O fazendeiro deu um soco arrasador, atingindo
Hanson no ombro. O patrulheiro reagiu depressa, acertando o estômago do fazendeiro, que
se dobrou de dor. Quando Hanson preparou-se para bater na nuca exposta do seu adversário,
este surpreendeu-o com um golpe preciso, que o pegou no queixo e o derrubou.
Mary só vira esse tipo de golpe nos filmes de Kung-fu. O fazendeiro mostrara-se um
praticante das artes marciais chinesas.
Não satisfeito por apenas derrubar o patrulheiro, Rafe montou no homem e não parou
de socá-lo até que a médica gritou:
— Rafe! Você vai matá-lo! Pare!

Um sorriso amargo aflorou aos lábios de Mary. Hermalinda vencera: conseguira ter
seus bebês em território americano.
Mary encostou-se na parede de cimento frio de sua cela. Encontrava-se na prisão de
El Paso, para onde fora levada no dia anterior. Sua blusa estava amassada e suja de sangue.
Havia duas celas na prisão: uma para homens, outra para mulheres. O único ocupante
da cela masculina era Willie, um bêbado, preso por vadiagem. O homem dormia a sono
solto, restabelecendo-se da ressaca.
Hanson a princípio tentara prender Rafe por desacato à autoridade e interrupção dos
processos da lei. Mas o fazendeiro, conhecido em toda a região, possuía contatos
importantes, o que fizera Hanson mudar de idéia no último minuto. Afinal, seu propósito
maior fora alcançado: prender a médica.
No colo de Mary, o jornal da manhã trazia na primeira página a reportagem completa
sobre a sua prisão. A mãe, Hermalinda Hernandéz, com os recém-nascidos, permanecera
detida por algumas horas em El Paso e em seguida voltara para o México. Nenhuma
autoridade quisera se arriscar a despertar a ira pública mantendo encarcerada a uma mulher
e seus dois filhos.
Mas o que aconteceria à médica? Na certa quando o Scott-Waggoner soubesse do
escândalo, iria retirar sua proposta de empregá-la.
Mary amassou as folhas do jornal e chorou.
CAPITULO XV

Um advogado de El Paso apareceu para defender Mary. Ele era um senhor de meia-
idade, que usava óculos e ternos antiquados e se apresentara como Elmo McGruder, do
escritório Brown, Harte & McGruder. Em sua primeira conversa com Mary na cela da
prisão, o advogado se mostrara um excelente profissional; mas não conseguira esconder sua
admiração pela beleza da médica.
Mary, por sua vez, surpreendera-se ao tomar conhecimento de que Rafe contratara
um advogado para o seu caso. Aparentemente, o fazendeiro não parecia mais zangado com
ela; mas será que ainda a amava?
Ao escoltar Mary da prisão para o carro dele, McGruder explicou-lhe a situação.
— A senhorita se transformou numa cause célèbre. Desde que os jornais nacionais
noticiaram o seu caso, uma chuva de manifestações a seu favor convenceu as autoridades
em El Paso de que seria melhor arquivar este episódio.
O advogado abriu a porta do seu Mercedes preto para a médica, que perguntou:
— Isso quer dizer que estou livre? Posso continuar clinicando?
— Claro que sim. E suponho que a senhorita ficará satisfeita em saber que o
comissário regional da Patrulha da Fronteira decidiu investigar a atuação do patrulheiro que
a prendeu. O chefe Hanson, se não me engano. Alguns cidadãos forneceram informações
voluntárias que depõem muito contra a carreira de Hanson
A menção da carreira do chefe da Patrulha lembrou a Mary seu próprio futuro. O
sonho de trabalhar na Scott-Waggoner não passava de cinzas agora. Quando o advogado
deu partida no Mercedes e rumou para longe da casa de detenção, Mary fechou os olhos
para não chorar.
— Ah, Dra. Margulies, quase me esqueço. Chegou um telegrama para a senhorita. —
O advogado tirou um envelope do bolso e passou-o para a médica.
O telegrama era em nome do Scott-Waggoner, cumprimentando-a por "sua ação
humana no caso da mexicana" e reiterando a oferta de trabalho.
Mary sentiu vontade de cantar, gritar, gargalhar, mas controlou-se. Afinal, estava no
carro de um estranho.
McGruder estudou a paisagem desolada que se apresentava na beira da estrada e
franziu o nariz.
— Kingdom Come parece o fim do mundo, não? Que lugar feio!
— Concordo — disse Mary, lutando para manter a voz normal numa hora de tanto
júbilo interior.
Mas, ao chegar à sua casinha, a alegria desapareceu. Ela passeou pelos cômodos
numa espécie de torpor, brincando com as plantas, arrumando as cortinas, passando as mãos
nos móveis empoeirados, abrindo e fechando a geladeira.
Mary deveria estar fazendo as malas. Deveria estar celebrando. No entanto sentia
vontade de chorar, por nunca ter sido uma mulher prática e lógica. Deu uma última olhada
no telegrama jogado em cima da mesa da cozinha, pegou o telefone e ligou para a sua
recepcionista e amiga.
— La Jean, aqui é Mary... Sim, livre. Venha comemorar comigo!... Espero, claro.
Até já.
Mary preparou uma garrafa de café para a comemoração. Na certa Vicente não teria
champanhe em sua tienda, além de ser cedo demais para bebidas alcoólicas.
Depois de cinco minutos, uma batida na porta anunciou a chegada de La Jean, mãos
enfiadas nos bolsos da calça e mascando furiosamente um chiclete.
— Mary, querida! Você poderá continuar clinicando em Kingdom Come?
— Pelas últimas três semanas, sim.
— Você pretende sair da cidade?
— Esta é outra das coisas que estou celebrando. Apesar do escândalo todo, fui aceita
para trabalhar no Complexo Médico Scott-Waggoner em Washington. Um hospital de
prestígio!
— Uau, Mary, detestarei vê-la partir, mas se for para o seu bem... Parabéns!
— Quer uma xícara de café, para fazermos um brinde?
— Não tem chá?
— Não. Joguei todo o meu estoque de chá fora, desculpe.
Ela serviu duas xícaras de café, enquanto La Jean colocava a par das fofocas que
haviam tomado conta da comunidade após a sua prisão.
Mary percebeu que sentiria saudades da amiga. E de Rafe.
— Você ficará para o meu casamento, querida?
— Eu não perderia o seu casamento por nada deste mundo, La Jean.
Mary se levantou para pegar mais café quando a campainha tocou.
— Deixe que eu atendo, Mary.
Depois de alguns segundos, Mary escutou La Jean soltar uma exclamação abafada e
resolveu ir até a porta da frente ver o que acontecia.
O jardim da casinha transbordava de gente: ali estavam todos os moradores do
barrio!
Entre a multidão, Mary reconheceu os rostos de Angelita e Tranquilito; o homem
com o braço sobre o ombro de Angelita só podia ser Fernando, seu marido. Ofélia Ruiz
trouxera sua filha e o bebê Pedro. Até mesmo Hermalinda viera, carregando um bebê em
cada braço. Garota maluca, com certeza atravessara o rio com as crianças no colo!
Josefita, de braços dados com Carmelita e Lucero liderava o enorme grupo. A velha
mulher deu um passo à frente, dizendo:
— Soltera, viemos vê-la com vergüenza no coração. Não lhe demos nenhuma chance
de nos ajudar, e nos arrependemos. Trazer os gemelos ao mundo como você fez... Oh, todos
nós estávamos errados a seu respeito. Queremos lhe pedir que não vá embora. Por favor.
Mary viu pelo brilho do olhar de Josefita que esta nunca fora tão sincera em toda a
sua vida. Emocionada, a médica sentiu seus olhos se encherem de lágrimas.
Mas na mesa da cozinha se encontrava o telegrama do Scott-Waggoner,
representando seu maior sonho.

O sol de dezembro brilhava nas paredes brancas da missão São Tomás.


O padre John coçou o queixo, num sinal de surpresa.
— Que pedido estranho, minha filha. Os sinos da missão nunca tocam, exceto nos
dias consagrados ao Senhor e nas datas religiosas.
— Eu sei, padre. Mas hoje é uma data especial, é a comemoração do dia da morte da
solteirona filha do hidalgo cruel.
— Conheço a lenda, Mary, mas acho que não há nenhum dia especial para a
comemoração da... Ahhh... Será que... Vamos ver se entendi. Eu tocaria os sinos e depois
telefonaria para Rafe lembrando-o da lenda.
— Isso mesmo. E o senhor também diria a ele que a solteirona de Kingdom Come
resolveu não partir.
Padre John foi tocar os sinos e Mary entrou na igreja. Rafe viria? Ou não? Será que
ele ainda a amava? A dúvida provocou-lhe tonturas. Na escuridão da igreja seu vestido
branco parecia ter luz própria, transformando-a numa visão fantasmagórica. Talvez o
fantasma de uma solteirona do século passado...
Meia hora se passou.
— Mary? — A voz de Rafe soou como um gemido.
Ela se virou no banco onde estava sentada. O coração do fazendeiro quase parou de
bater para em seguida disparar, num ritmo louco. Como sua amada era linda, inteligente e
doce! E pensar que poderia perdê-la para sempre... O telefonema do padre John o deixara
confuso: que história era aquela de sinos, lendas de solteironas e Mary?
Pela primeira vez desde que abandonara as Forças Especiais, Rafe sentiu-se
desprotegido e vulnerável. O amor dava poderes às pessoas; o poder de magoar. E Mary
possuía esse poder sobre ele.
Mas o amor também possuía o dom da alegria.
Com três passos largos e decididos, Rafe aproximou-se da doutora e tomou-a nos
braços, com vontade de beijá-la da cabeça aos pés. Só de imaginar que ela poderia dar seu
corpo e seu amor a outro homem, Rafe pensou que fosse desmaiar.
— Mary...
— Rafe... Eu temia que você não viesse...
— Querida, oh, meu amor. Lembra-se de quando eu fiquei doente e tive um
pesadelo?
— Lembro. Por quê?
— Foi um sonho horrível, sobre uma coisa que me aconteceu no Vietnã. Um sonho
de morte... e destruição... tudo o que me fez decidir parar de lutar e voltar para a Hacienda,
para ficar aqui para sempre. Jurei nunca mais praticar a violência. Mas ao ver Hanson
maltratando você... esqueci do meu juramento. Eu mataria por você, Mary, para protegê-la.
A médica lembrou-se das palavras de Ysabel Anaya, explicando que apenas uma
situação traumática faria seu neto se ligar a uma mulher para o resto da vida.
— Oh, Deus, Mary, eu te amo tanto... Se quiser, eu vou para Washington com você,
e então...
— Rafe, você precisa saber que, assim como a minha profissão é tudo para mim, meu
futuro jamais seria completo sem a sua presença ao meu lado. E as pessoas de Kingdom
Come são parte de você. É aqui que quero ficar. Esta cidade é o meu lar. Por fim eu tenho
um lar. E me sinto feliz.
Rafe cobriu de beijos ardentes o pescoço da delicada mulher. Delicada, mas também
forte, vulnerável, corajosa... Oh, todos os adjetivos existentes não bastariam para descrevê-
la.
— Mary, meu amor, quer se casar comigo? Agora? Só sossegarei quando o padre
John nos abençoar oficialmente. Não pretendo correr o risco de perdê-la, nunca mais...
— Rafe, querido...
Mary ergueu o rosto para que ele visse ali refletida toda a alegria que inundava o seu
coração. Uma alegria absoluta, completa, mesclada a lampejos de amor e confiança. Os
lábios de ambos se uniram num beijo ardente, selando um compromisso de amor que duraria
pela eternidade afora.
Os sinos da igreja tocaram, celebrando a união da solteirona e do solteirão. E, é claro,
outra história foi adicionada à velha lenda da filha do hidalgo. Quando forasteiros visitam a
cidade de Kingdom Come, sempre há alguém que aponta na direção da Hacienda
Encantada, comentando baixinho sobre o casal encantado que mora ali.

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