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Boletim do Instituto de Saúde

Volume 18 – nO 2 – Dezembro 2017


ISSN 1518-1812 / On Line: 1809-7529

Boletim do Instituto de Saúde | BIS | Volume 18 | nO 2

Educação, Comunicação
SECRETARIA
INSTITUTO
DE SAÚDE DA SAÚDE e Participação em Saúde
BIS – números já editados
Instituto de Saúde Boletim do Instituto de Saúde – BIS
Rua Santo Antonio, 590 – Bela Vista Volume 18– Nº2 – Dezembro 2017
São Paulo-SP – CEP 01314-000 ISSN 1518-1812 / On Line 1809-7529
Tel: (11) 3116-8500 / Fax: (11) 3105-2772 Publicação semestral do Instituto de Saúde Boletim do Instituto de Saúde

www.isaude.sp.gov.br Tiragem: 2000 exemplares


Volume 18 – nO 1 – Julho 2017
ISSN 1518-1812 / On Line: 1809-7529

boletim@isaude.sp.gov.br Rua Santo Antonio, 590 – Bela Vista

Boletim do Instituto de Saúde | BIS | Volume 18 | nO 1


São Paulo-SP – CEP 01314-000
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo Tel: (11) 3116-8500 / Fax: (11) 3105-2772
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David Everson Uip
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Instituto de Saúde Editor
Diretora do Instituto de Saúde Márcio Derbli
Luiza Sterman Heimann
Editores científicos INSTITUTO
DE SAÚDE
SECRETARIA
DA SAÚDE

Regina Figueiredo
Vice-Diretora do Instituto de Saúde
Sandra Greger Tavares
Sônia I. Venâncio 47038001 capaVinho2.indd 1

(v. 18 - nº 01) / 2017


09/10/2017 18:06:37

(v. 17 - suplemento) / 2016 (v. 17 - nº 02) / 2016


Ausonia Favorido Donato
Diretora do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para o SUS-SP Drogas, saúde & VI Prêmio David Capistrano Saúde e direitos
Núcleo de Comunicação Técnico-Científica
Silvia Regina Dias Médici Saldiva
Camila Garcia Tosetti Pejão
contemporaneidade de Experiências Exitosas sexuais e reprodutivos
Diretora do Centro de Tecnologias de Saúde para o SUS-SP dos Municípios Paulistas
Administração
Tereza Setsuko Toma
Bianca de Mattos Santos
Diretor do Centro de Apoio Técnico-Científico
Capa
Márcio Derbli
Lilia Perrone – Pastel sobre papel
Diretora do Centro de Gerenciamento Administrativo Boletim do Instituto de Saúde
Volume 17 – nº 1 – Julho 2016

Revisão ISSN 1518-1812 / On Line: 1809-7529

Bianca de Mattos Santos


Regina Figueiredo

Boletim do Instituto de Saúde | BIS | Volume 17 | nº 1


Márcio Derbli Políticas de saúde
Sandra Greger informadas Por evidências
Diagramação
Fernanda Buccelli
Editoração, CTP, Impressão e Acabamento
Imprensa Oficial do Estado S/A – IMESP

SECRETARIA
SECRETARIA
DA SAÚDE
DA SAÚDE

46042001 capa.indd 1 17/11/2016 16:16:08

(v. 17 - nº 01) / 2016 (v. 16 - suplemento) / 2015 (v. 16 - nº 02) / 2015


Políticas de Saúde V Prêmio David Capistrano A contribuição das bases de
Conselho editorial
informadas por evidências de Experiências Exitosas dados demográficos e dos
Alberto Pellegrini Filho – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz) – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Alexandre Kalache – The New York Academy of Medicine – Nova York – EUA na Área da Saúde 2015 Sistemas de Informação em
Camila Garcia Tosetti Pejão – Instituto de Saúde (IS) - São Paulo-SP – Brasil Saúde para a gestão do SUS
Carlos Tato Cortizo – Instituto de Saúde (IS) - São Paulo-SP – Brasil
Ernesto Báscolo – Instituto de la Salud Juan Lazarte - Universidad Nacional de Rosario - Rosario - Argentina
Fernando Szklo – Instituto Ciência Hoje (ICH) – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Francisco de Assis Accurcio – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte-MG – Brasil
Ingo Sarlet – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) – Porto Alegre-RS – Brasil Boletim do Instituto de Saúde
Volume 15 – nº 2 – Dezembro 2014

José da Rocha Carvalheiro – Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) - Rio de Janeiro-RJ – Brasil
ISSN 1518-1812 / On Line: 1809-7529

Katia Cibelle Machado Pirotta – Instituto de Saúde (IS) - São Paulo-SP – Brasil

Boletim do Instituto de Saúde | BIS | Volume 15 | nº 2


Luiza Stermann Heimann – Instituto de Saúde (IS) - São Paulo-SP – Brasil
Márcio Derbli – Instituto de Saúde (IS) - São Paulo-SP – Brasil
Marco Meneguzzo – Università di Roma Tor Vergata – Roma – Itália
Maria Beatriz Miranda de Marias – Instituto de Saúde (IS) - São Paulo-SP – Brasil
Maria Lúcia Magalhães Bosi – Universidade Federal do Ceará (UFC) – Fortaleza-CE – Brasil
Nelson Rodrigues dos Santos – Universidade de São Paulo (USP) – São Paulo-SP – Brasil
Monique Borba Cerqueira – Instituto de Saúde (IS) - São Paulo-SP – Brasil
Nelson Rodrigues dos Santos – Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo-SP – Brasil
Raul Borges Guimarães – Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Presidente Prudente-SP – Brasil SECRETARIA
DA SAÚDE
Os desafios do trabalho
Samuel Antenor – Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo - Unicamp - Campinas -SP – Brasil na atenção básica
Sílvia Regina Dias Médici Saldiva – Instituto de Saúde (IS) - São Paulo-SP – Brasil
Sonia Isoyama Venancio – Instituto de Saúde (IS) - São Paulo-SP – Brasil (v. 16 - nº 01) / 2015 (v. 15 - suplemento) / 2014 (v. 15 - nº 02) / 2014
Tereza Setsuko Toma – Instituto de Saúde (IS) - São Paulo-SP – Brasil
Estratégias para alcançar Mestrado Profissional Os desafios do trabalho
um desenvolvimento em Saúde Coletiva na atenção básica
integral na primeira Infância
Edições disponíveis no site www.isaude.sp.gov.br
Sumário
Editorial..................................................................................................................................... 3

O âmbito da Saúde Coletiva como uma arena discursiva: questões simbólicas e dialógicas nas
trocas comunicacionais
Ricardo Barreto........................................................................................................................... 5

Retomando teorias e entendendo casos de Comunicação em Saúde


Regina Figueiredo...................................................................................................................... 13

Comunicação e Saúde na prática educativa


Ausonia Favorido Donato............................................................................................................ 23
A saúde como produto tecnológico de consumo e comunicação anti-SUS na televisão:
o caso do Jornal Nacional
Eduardo Caron.......................................................................................................................... 30

Novos discursos e modelagens do envelhecimento contemporâneo


Monique Borba Cerqueira................................................................................................................................. 41

Campanhas de Educação em Saúde e reforço de estigmas


Regina Figueiredo, Letícia de Almeida Lopes Cândido.................................................................. 49

Retratos falados - experiências de produção de recursos educacionais para a população


usuária de serviços públicos de saúde
Ana Luisa Zaniboni Gomes......................................................................................................... 62

Parteiras e médicos: paradigmas existenciais opostos


Janaína de Alencar Ribeiro......................................................................................................... 70

Educação pré-natal com utilização de Recursos Expressivos: conceitos, estratégias e


transposição para atenção primária
Maria Augusta Silvestre de Melo, Silvia Helena Bastos de Paula,
Siomara Roberta de Siqueira, Nilza Maria de Souza Corbani, Ana Cristina Cordeiro Santiago.......... 82

Técnica de “Depuração” em estudos de caso:


visando facilitar a discussão da assistência à saúde de adolescentes
Adriana Maria do Nascimento, Isabella Fontes Monteiro, Rebeca Rodrigues de Lima,
Samanta Ribeiro Oliveira da Silva, Regina Figueiredo, Fernanda Luz Gonzaga da Silva,
Danilo Milev, Vanessa Matias da RochaI .................................................................................... 95

Formação profissional em Saúde: do conhecimento instrumental


ao trabalho como princípio educativo
Rosilda Mendes, Daniele Pompei Sacardo................................................................................. 108
Educação Permanente para o controle social:
uma ferramenta para a gestão participativa e compartilhada
Maria do Carmo Sales Monteiro, Teresa Cristina Lara de Moraes................................................ 119
A estratégia de educação permanente para a produção de redes de cuidado na atenção à
saúde da pessoa em situação de violência na cidade de São Paulo
Fátima Madalena de Campos Lico, Suely Yuriko Miyashiro Tápias,
Elaine Aparecida Lorenzato, Maria Lucia Aparecida Scalco, Nelson Figueira Junior....................... 128

Educação para o SUS: avaliação de um Programa de Aprimoramento Profissional


em Saúde Coletiva na perspectiva de seus egressos
Luiza Sterman Heimann, Márcio DerbliI, Aparecida Natália Rodrigues.......................................... 139

Participação social em saúde no Brasil: elementos para compreensão de sua dinâmica


Virgílio Cézar da Silva e Oliveira, Tania Margarete Mezzomo Keinert,
Adilio Renê Almeida Miranda, Silvia Ferreira Caproni Gonçalves.................................................. 153

Participação social e regionalização: a construção de um diálogo territorializado


Sandra Greger Tavaresi, Eda Terezinha de Oliveira Tassara......................................................... 162

Sustentabilidade: desdobramentos face a uma busca emancipatória


Mariana Malvezzi.................................................................................................................... 174

Possibilidades de enfrentamento do genocídio em São Paulo


Marisa Feffermann, Sandra Quixada, Valter Henrique da Silva Junior,
Silvia Bastos, Geany Magalhães da Silva.................................................................................. 185
Editorial

E
m meio à exacerbação da crise política no fundamental para estimular a aprendizagem sig-
cenário brasileiro e global e da constante nificativa e permitir o diálogo e alargar a escuta e
ameaça de retrocesso às conquistas so- a atenção às necessidades da população.
ciais, faz-se necessário o exercício da reflexão A Comunicação em Saúde preconiza a ado-
sobre o direcionamento imputado à planificação ção de formas dialógicas de interação social e
técnica dos princípios norteadores das políticas para tanto seus métodos, instrumentos e meios
públicas do SUS – Sistema Único de Saúde, in- correspondem a um projeto de inclusão social e
cluindo suas formas de operacionalização na rea- promoção da igualdade e cidadania para a efe-
lidade socioambiental. tivação do SUS. É imprescindível que o diálogo
Desde sua constituição, o SUS é pautado caracterize a comunicação entre os diversos ato-
em princípios que almejam promover, fundamen- res sociais de modo contínuo e horizontal, preser-
talmente, igualdade e universalidade no acesso vando e respeitando a autonomia e voz de cada
e na atenção à saúde. Como eixos estratégicos sujeito e a vivacidade e multiplicidade das pers-
para a organização de suas políticas destacam- pectivas de discursos, seja no âmbito do planeja-
-se: a Educação, a Comunicação e a Participa- mento, da educação, da promoção, da assistên-
ção em saúde. cia e do controle social em saúde.
A Participação Social, por meio de instân- É justamente a promoção dessa horizontali-
cias, como os conselhos e as conferências de dade que se pretende nessa edição do BIS, reu-
saúde, visa garantir a inclusão da sociedade civil nindo autores com abordagens teóricas e técni-
e suas demandas nas decisões políticas e pro- cas diversas e que atuam em cenários locais e
mover mecanismos de controle social para a efe- globais, nos âmbitos da educação, comunicação
tivação das mesmas. e participação social em saúde.
A Educação em Saúde, transversal à formu- Ao leitor deixamos o convite para que se de-
lação e consecução das políticas do SUS, objeti- safie no sentido de estabelecer pontes entre as
va disseminar não apenas conteúdos e estraté- discussões aqui propostas...
gias de promoção e reabilitação de saúde e de
prevenção a agravos de saúde, mas fomentar
a democratização e qualificação das ações de Regina Figueiredo
saúde. Nesse sentido, a reflexão sobre uma edu- Sandra Greger
cação que se queira inclusiva e participativa é Ausonia Donato

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

O âmbito da Saúde Coletiva como uma arena discursiva:


questões simbólicas e dialógicas nas trocas comunicacionais
The scope of Public Health as an arena for discourse: symbolic and dialogic questions within communi-
cational exchanges

Ricardo BarretoI

Resumo Abstract

A proposta do presente artigo é revisitar alguns conceitos relacio- The proposal of this article is to revisit some concepts related to
nados à Comunicação em Saúde com o intuito de problematizar health Communication in order to discuss communicative schema-
modelos comunicativos esquemáticos marcados por uma pers- tic models marked by a pragmatic and utilitarian perspective of
pectiva pragmática e utilitarista da linguagem. A hipótese central language. The central hypothesis of this text presents as starting
deste texto parte de uma premissa segundo a qual várias das re- points a premise under which several of the reflections on commu-
flexões sobre as interações comunicacionais no campo da Saúde nicative interactions in the field of public health oriented, due to
Coletiva privilegiam, em razão de suas escolhas teóricas, uma fun- their theoretical choices, a rationale that few times incorporates
damentação que, muitas vezes, pouco incorpora algumas dimen- some decisive dimensions of the communicational process beyond
sões fundamentais do processo comunicacional que ultrapassem a linear sense of transmission in favor of a more responsive un-
um sentido linear de transmissão em favor de uma compreensão derstanding on mutual influence between the subjects.
mais responsiva na influência mútua entre os sujeitos.
Keywords: Discourse; Public Health; Communication.
Palavras-chave: Discurso; Saúde; Comunicação.

I
Ricardo Barreto (ricardogbarreto@terra.com.br) é Mestre e Doutor em Letras
pela Faculdade Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH/USP) e atua como Consultor em Educação.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução não se evidenciam facilmente quando esses ter-

A
mos são observados com maior empenho analí-
s interfaces e articulações entre comuni-
tico: há modos de definirmos comunicação que
cação e saúde dependem, em primeiro lu-
não podem ser resumidos, como muitas vezes
gar, do que entendemos sobre esses dois
acontece, a esquemas, da mesma maneira que
termos, observando com isso tanto a teorias do
o conceito de saúde não se limita a um estado
conhecimento quanto a ações políticas que jus-
determinado por um olhar patológico.
tificam sua aproximação. Enquanto temas para
os estudiosos e trabalhadores do âmbito da Saú- Tanto em suas dimensões conceituais quan-
de, esses dois termos talvez pareçam até certo to em seu entendimento como práticas que en-
ponto definidos, assim como suas possíveis re- volvem pessoas, comunicação e saúde devem
lações. O senso comum nos dá pistas do que ser definidos como instâncias do mundo social,
vem a ser a comunicação, ou o ato de comuni- variando, por essa razão, no tempo e no espaço.
car, algo tão presente no cotidiano das pessoas Essa variação ocorre de grupo para grupo, de co-
que se confunde com as próprias atividades de munidade para comunidade, de perspectiva teó-
interação social em geral. Também no campo do rico-científica para perspectiva teórico-científica.
senso comum, a ideia de ser “saudável” induz Assim como não se pode imaginar uma socieda-
a uma compreensão básica expressa na fórmula de sem transformação, não se pode considerar
“ausência da doença”. dois dos elementos centrais da vida social, co-
Distanciando-se, porém, do entendimento municação e saúde, como dimensões estáticas
mais imediato do que vem a ser a comunicação e portadoras de significados que não se alteram
e a saúde, podemos dizer que há aspectos que ou que não apresentem conflitos ou desajustes.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Nesse sentido, um primeiro aspecto rele- comunicação e de saúde que estejam em jogo.
vante a ser discutido a propósito da relação entre Nesse sentido, não se pode afirmar que realmen-
comunicação e saúde se refere à dinamicidade te ocorra uma compreensão única sobre as inte-
que cada um desses termos possui, ou seja, que rações entre esses dois camposII. Daí podermos
representações da vida social incorporam quan- formular uma segunda hipótese: a depender do
do passam a cumprir uma função política. Inte- modo como conceituamos comunicação e/ou
gradas a um projeto amplo que se configura em saúde, alguns níveis de interação entre esses
resposta a um conjunto de necessidades de uma conceitos não apontam para a possibilidade de
população, comunicação e saúde deixam de ser formulação de uma política para o setor Saúde
puros conceitos para se transformarem em es- que envolva trocas comunicacionais efetivas.
paços vivos e políticos. Isso significa dizer que A ineficiência de determinadas iniciativas na
qualquer modificação na correlação de visões de mobilização de alguns grupos sociais e de seu
mundo vigente na sociedade civil tem como con- engajamento em ações de política de saúde se-
trapartida transformações nos modos de enten- riam, ao menos em parte, não o resultado da es-
der e interpretar o que é saúde e como esta deve colha de meios inadequados de comunicação,
ser “traduzida”, comunicada à e pela sociedade. mas sim, da ausência de sintonia entre concep-
Afinal, os agentes sociais envolvidos nas agên- ções de saúde e de comunicação que são mo-
cias da sociedade civil e da sociedade política bilizados (e nem sempre explicitados), apontan-
não se referem à indivíduos ou grupos sociais do para fundamentos dissemelhantes, visões de
em abstrato, inscritas magicamente em um Es- mundo que não dialogam.
tado etéreo. O vasto e complexo tecido de rela- Para além da função de “comunicar algo”,
ções pressuposto nos campos da Comunicação
ou “informar” a população sobre determinados
e da Saúde se constrói e reconstrói no cotidiano
riscos ou atitudes que devem ter ao se deparar
de suas práticas políticas, no exercício diário de
com seus problemas de saúde, é decisivo deline-
mediação entre as possibilidades do conjunto de
ar o que se entende por comunicar, quais são os
ações que fazem parte de uma política de saúde
lugares dos sujeitos na construção do sentido de-
e as maneiras como elas são veiculadas.
corrente desse ato e quais devem ser as mudan-
Sob o olhar da História, o mundo em que
ças, planejadas previamente, dos comportamen-
vivemos renasce a cada instante, fazendo surgir
tos e das concepções de mundo que sustentam
novas narrativas que simbolizam as transforma-
os movimentos de transformação (ou conserva-
ções sociais, culturais e políticas e demandando
ção) das condições de vida população.
novas análises e novos olhares sobre a matéria
As relações entre Comunicação e Saúde en-
da “vida vivida”, ou seja, sobre as possibilidades
volvem, em suma, áreas de conhecimento que,
dialógicas concretas experimentadas pelas pes-
por si só, já são inter ou multidisciplinares (só
soas reais. Paradoxalmente, há um movimento
para ficarmos em alguns exemplos: a biologia, a
contínuo de naturalização (e não de diversidade)
que faz com que relações como as da Comunica-
ção e da Saúde se tornem banalizadas. O conceito de campo utilizado neste artigo toma seu sentido da sociologia de Pierre
II

Bourdieu3 que, em linhas gerais, o define como um microcosmo social que possui
Uma primeira hipótese pode ser sintetizada uma relativa autonomia, com leis e regras específicas, ao mesmo tempo em que é
influenciado e se relaciona a um espaço social mais amplo. No campo, trava-se uma
da seguinte forma: as interfaces entre Comuni- luta entre os agentes que o integram e que buscam manter ou alcançar determinadas
posições hierárquicas que são obtidas pela aquisição de capitais simbólicos, valoriza-
cação e Saúde dependem das concepções de dos de acordo com suas características e regras específicas.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

medicina, a epidemiologia, a geografia, a sociolo- concepção de política de saúde pautada pelo


gia, de um lado; a linguística, a semiologia, a ci- atendimento da massa de trabalhadores, que
bernética, a filosofia da linguagem, a publicidade, passa a se concentrar nas grandes cidades, pa-
de outro). Somado a essa gama de conceitos, no- ra uma visão ampliada dos conflitos que regem
ções e definições pertinentes a cada uma dessas as transformações sociais como um todo, não
áreas do conhecer, há que se pensar em dimen- encontra, nos anos da Ditadura, um ambiente
sões envolvidas no setor de planejamento, admi- favorável. Em um período no qual palavras, co-
nistração e gestão. Talvez mesmo, se possa dizer mo “social”, encontravam um encaixe ideológico
que é o “tempero” mais ou menos calibrado pelo gerador de violência e censura, o projeto hege-
conjunto de intenções que definem uma política mônico na saúde não admitia a presença efetiva
mais ampla de saúde que garante que o binômio da população como sujeito de demandas, de in-
comunicação e saúde se integre não apenas no teresses e de propostas.
sentido de uma comunicação mecânica ou pura- Quando pensamos no processo de constru-
mente midiática. ção de sentido que decorre de toda a situação
comunicacional, as informações que circulam em
um determinado contexto sócio-político encon-
Saúde: breves considerações sobre o campo
tram aquilo que poderíamos chamar de “ancora-
Para citar o caso específico da Saúde Públi-
gem da significação”. A simples omissão de um
ca no Brasil, uma visão positivista, fruto da inte-
termo como “social” em discursos sobre a saúde
ração entre Saúde e Ciência, marcou momentos
articulados ao Plano Nacional de Desenvolvimen-
que antecederam a Reforma Sanitária, no início
to (II PND), em várias ocasiõesIII, ou mesmo a es-
da década de 1970. Essa mudança de paradig-
colha seletiva pela ocultação de certas palavras,
ma, que passou a considerar as condições de
com o intuito fazer parecer que a realidade se en-
vida da população e as transformações necessá-
contra destensionada, não rompe o encadeamen-
rias para atingir a “qualidade de vida” (conceito
to de sentido existente na linguagem, base do ato
que, apesar de profuso, incorpora aspectos da
de comunicar. No caso específico da mensagem
realidade social e individual que não se limitam
propagada pelo poder público responsável pela
ao estar ou não acometido por uma doença), ul-
implementação de políticas de saúde durante o
trapassou uma matriz biologizante1 oriunda do
Período Militar, pode-se dizer que, ideologicamen-
modo de pensar a saúde em voga desde as dé-
te, o termo “social” é substituído pelo significado
cadas finais do século XIX. Inserida no contexto
“modernização”, refletindo com isso uma “leitu-
da Ditadura Militar, a Reforma Sanitária brasileira
ra” da realidade brasileira, realidade considerada
pode ser compreendida também como uma res-
posta à situação política que defendia como pro-
“Por ocasião do anúncio do II PND, o Ministro da Previdência proferiu discurso na
jeto nacional um modelo ainda curativo e centra-
III

Escola Superior de Guerra, recomendando, como medidas necessárias, a redução das


do na assistência médica e nas especialidades, desigualdades sociais e a ampliação da área de atendimento das necessidades sociais
da população em termos das escolas, da habitação, dos níveis sanitários básicos, da
tendo como referência o hospital. proteção médica e previdenciária, colocando-as como pressupostos para o processo
de distensão política”7 (p.12).
Ainda que se pudesse falar da existência No interior do plano também foram definidos os campos de atuação dos Ministérios
da Saúde e da Previdência Social, ficando o primeiro com um “caráter eminentemente
e permanência de uma medicina social como normativo, com ação executiva preferencialmente voltada para as medidas e os aten-
dimentos de interesse coletivo, inclusive vigilância sanitária, e o Ministério da Previ-
ideal desde os anos de 1940 até os “Anos de dência e Assistência Social, com atuação voltada principalmente para o atendimento
médico assistencial individualizado”7 (p.239), o que demarcava também o perfil de fi-
Chumbo”, as iniciativas para a transição de uma nanciamento governamental e das estruturas prestadoras de atenção à saúde”6 (p.12).

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

pelas elites como “atrasada” (oposta ao “moder- crescentes da indústria farmacêutica e dos equi-
no”) e, consequentemente, não saudável. pamentos médicos, que pode ser interpretado
No contexto brasileiro, o Estado ainda des- como uma reação burguesa ao aprofundamento
dobrava, nos anos de 1970, uma política atre- do capitalismo no contexto nacional.
lada ao desenvolvimentismo orientado pelas O papel do Estado redimensiona a implanta-
ideias da Comissão Econômica para a América ção de políticas sociais em vários campos, com
Latina e o Caribe (CEPAL), vinculada a Organi- destaque para a Saúde e a Educação. Uma si-
zação das Nações Unidas (ONU), tendo como tuação global marcada pela superprodução de
pressuposto da ação política o planejamento de bens, em contraponto ao desemprego gerado
intervenções, cujas prioridades eram determina- pelas inovações técnicas, acompanha a retração
das de maneira centralizada. A saúde foi consi- do comércio mundial e a elevação de preços das
derada, portanto, como mais um fator de impul- matérias-primas, gerando inflação e recessão em
so econômico, juntamente com outras políticas, países periféricos como o Brasil. O sentimento de
correlacionada ao controle estatal subordinador estagnação impacta diretamente as políticas pú-
e ao bom andamento da economia: manter a po- blicas de um modo geral, conduzidas pelo Estado
pulação com saúde significava manter o traba- ditatorial através de um regime cujo modelo de
lhador apto para produzirIV. desenvolvimento se mostra inoperante.
Enfim, se o período pré-Ditadura (cuja am-
plitude temporal se prolonga, a grosso modo, de
Comunicação: atravessamentos
1945 a 1964) foi marcado por grandes mudan-
Para chegar à concepção da saúde como
ças na área da Saúde no país, a partir da influên-
um processo que não pode ser entendido como
cia norte-americana que levou o Brasil a adotar o
um fenômeno biológico ou biomédico, mas sim
modelo de saúde baseado em grandes hospitais,
como uma espécie de superposição de cama-
colocando em segundo ou terceiro planos a cons-
das que espelham a complexidade da vida social
tituição contínua de uma rede de Atenção Básica
(como se vive e morre; os valores relacionados
com baixo custo; no período posterior (1964 a
ao viver ou não dignamente; as experiências do
1988) observa-se um avanço parcial com a inicia-
universo do trabalho; as interações entre o indi-
tiva de políticas sociais que fomentaram a rede-
víduo e o meio social e ambiental; os sentidos
mocratização da SaúdeV. Paralelamente, dois ou
vários de qualidade de vida etc.), torna-se funda-
mais movimentos foram tomando corpo nos anos
mental destacar dois campos de conhecimento
que antecederam o surgimento do Sistema Único
que passaram a se associar cada vez mais com
de Saúde (SUS). De um lado, a estruturação e
os novos modos de pensar a Saúde: a Educação
o funcionamento dos grandes hospitais cada vez
e a Comunicação.
mais atende aos interesses e às necessidades
Tratando especificamente da Comunicação,
não é demais dizer que esse campo não se limita
IV
É interessante o paralelo aqui entre a política de Saúde e a de Educação nesse perío- a uma área do conhecimento. Comunicar pode
do, especialmente a proposta de formação da massa trabalhadora pelo projeto do Mo-
bral: alfabetizar para que os trabalhadores sejam capazes de ler manuais de operação ser entendido como um conjunto de ações que
de máquinas. A Educação se voltava para o trabalho, assim como em parte a Saúde.
V
“Dessa forma, a fase que se estende por cerca de quinze anos, e que denomino perpassa todos campos de atividade humanas e
de “pré-saúde coletiva”, foi marcada pela instauração do ‘projeto preventivista’. A
segunda fase, até o final dos anos 70, não isola os ideais preventivista, mas reforça a sociais. Nesse sentido, comunicar algo nunca po-
perspectiva de uma ‘medicina social’, e, a partir de 80 até a atualidade, vai se estru-
turando o campo da Saúde Coletiva”5 (p.5). de ser entendido como um objeto isolado de um

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

meio em que outras ações comunicativas estão for o espaço social em que isso ocorra, transmi-
ocorrendo em um campo social. Sinteticamente, te-se também um modo como um conjunto de
poderíamos afirmar quer uma ação comunicativa informações deve ser compreendido. Os desvios
sempre se coloca em relação a outra ação comu- existentes entre a intenção inicial do que se deve
nicativa que, de modo explícito ou não, lhe confe- informar e como essa informação deve ser “de-
re não apenas o contexto em que essa ação se cifrada” e como ela deve ser efetivamente com-
“encaixa”, mas também quais os possíveis senti- preendida (aquilo que os comunicólogos chamam
dos que ela carrega e produz. de “ruído”) correspondem ao trânsito próprio do
O percurso da Saúde, que brevemente indi- processo comunicacional. Muitas vezes, o ruído
camos há alguns parágrafos atrás, nos permite não é um efeito de uma má decisão daquele que
entender o alcance das ideias sobre o processo necessita comunicar (muitos insistem em acredi-
comunicacional de forma bastante didática. A tar que, para dialogar com a população, o traba-
opção por um modelo de Saúde Pública hospita- lhador da Saúde deve “facilitar” a exposição dos
locêntrico, cujo valor maior é depositado no co- conceitos, promovendo inclusive uma “tradução”
nhecimento hiperespecializado, em detrimento de termos técnicos para seus correspondentes
do atendimento na Atenção Básica, “comunica” “populares”, infantilizando os sujeitos para lhes
por si só uma série de elementos que passam a sonegar um contato efetivo com sua própria situ-
compor as formas a partir das quais situações ação de saúde).
comunicativas institucionais passam a ser “de- Propor simplesmente um diálogo com a po-
codificadas”, ou seja, valoradas e significadas pulação, sem considerar as assimetrias existen-
pela população. tes entre senso comum e conhecimento cientí-
As construções dos conceitos de saúde que fico, por exemplo, não necessariamente garante
desempenharam funções hegemônicas ao longo que ocorra um nível desejável de compreensão
de vários períodos de nossa história nacional en- que acarrete em alguma mudança de comporta-
contraram, em maior ou menor escala, níveis de mento que venha a solucionar problemas relacio-
entendimento que permitiram comunicar à popu- nados à saúde em indivíduos ou em uma coleti-
lação (nem sempre de modo claro, é bem verda- vidade. Isso a própria experiência tem mostrado.
de) o que se considerava possuir ou não saúde, As estratégias que pressupõem conversas, tro-
tanto individual quanto coletivamente. Sempre cas e compartilhamentos, baseados em arranjos
esteve em jogo uma série de conhecimentos e descentralizados ou horizontalizados, mas que
noções sobre os conceitos de saúde e doença não levam em consideração a natureza própria da
que orientava não apenas as tomadas de deci- linguagem e de seu aspecto comunicacional, der-
são sobre quais seriam as ações políticas mais rapam em problemas muitas vezes difíceis de di-
adequadas ou desejadas, como também, quais mensionar. Nesses casos, onde se localizam os
seriam, em uma dimensão mais elementar, as in- problemas? Ou ainda, como tornar mais efetiva,
formações que deveriam ser veiculadas para “tor- democrática e interessada uma ação comunicati-
nar pública” a ação política levada a termo, edu- va que esteja vinculada a uma política de Saúde?
cando com isso a população para que ela pudes- Não nos propomos, neste texto cujo objetivo
se se “adequar” ao modelo de saúde em curso. é apenas introdutório, a resolver essas questões.
Ou seja, comunicar nunca foi somente trans- Contudo, algumas pistas podem fazer pensar os
mitir informações. Ao comunicar algo, seja qual limites de algumas estratégias comunicacionais

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

(e, por extensão, educacionais) que circulam em Cabe à ação comunicacional partir do pressupos-
cursos de formação e capacitação de trabalhado- to de que o outro, como diz Bakhtin2, constitui,
res da Saúde. Como afirma Bakhtin2, com aquilo que é para ele comunicado, uma re-
“Aquilo que nós falamos é apenas o conteúdo lação de troca discursiva que é maior do que um
do discurso, o tema de nossas palavras. Um simples tema, por mais relevante que ele seja. Ao
exemplo de um tema que é apenas um tema contrário do que se pensa, não basta apenas co-
seria, por exemplo, “a natureza”, o “homem”, municar; para que ocorra de fato um impacto nos
“a oração subordinada” (um dos temas da modos de ser de uma população em relação a
sintaxe). Mas o discurso de outrem constitui sua situação de saúde, a informação deve signi-
mais do que o tema do discurso...” (p.144). ficar algo cujo valor produza um “ressignificar” de
posturas tidas como verdadeiras e/ou cotidianas.
Uma informação, ou “conteúdo do discur-
so”, não atinge o outro/interlocutor apenas em
seu significado determinado a partir de uma in- Considerações finais
tenção inicial daquele que a originou. Uma infor- O ponto de partida para a formulação de es-
mação não se limita a uma simples codificação tratégias relacionadas à Comunicação em Saúde
e decodificação mecânica entre emissor e recep- deve ser, portanto, não o que se quer ou se deve
tor, o que põe por terra a crença em certos mode- informar, mas sim o que se quer ou que pode trans-
los mecanicistas que embasam o ato comunica- formar o modo de vida das pessoas. Para tanto,
cional. Trata-se de um processo mais complexo admitir as assimetrias e os conflitos que permitem
no qual é possível destacar a existência implícita a tomada de consciência dos limites existentes
de pressuposições, ambiguidades e indetermina- entre o que se comunica e o que é efetivamente
ções que influenciam na produção dos sentidos e comunicado é o (talvez difícil) passo inicial.
significações dos sujeitos que circulam pelo cam-
po da Saúde.
Podemos dimensionar, ao menos, duas for-
mas de análise referente à recepção de uma in-
Referências
formação: uma que reduz o seu significado ao ní-
1. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a
vel de compreensão, referindo-se a um encaixe
compreensão e crítica da medicina preventiva. [Tese de
dessa informação em uma estrutura “pronta”, e Doutorado]. Faculdade de Ciências Médicas. Universidade
outra, que relaciona o uso e significado do ter- Estadual de Campinas. Campinas; 1975.
mo ao nível interpretativo, referindo-se à constru- 2. Bakhtin M. Marxismo e filosofia da linguagem. 4ª edição.
ção de sentido em relação ao conteúdo de algo São Paulo: Hucitec; 1988.
enunciado em que a informação signifique. Para 3. Bourdieu P. A gênese dos conceitos de habitus e de cam-
que alguém possa, de fato, se apropriar de algo po. In: Bourdieu P. O poder simbólico. Lisboa: Difel; 1989.
p.59-73.
que ressignifique seu comportamento, o acesso
4. Donato AF. Trançando redes de comunicação: releitura
à informação não pode ser mecânico. Por essa
de uma práxis da educação no contexto da saúde. [tese de
razão, o investimento em estratégia de comunica- Doutoramento]. Faculdade de Saúde Pública. Universidade
ção que faça parte de uma política de saúde não de São Paulo. São Paulo; 2000.
pode ser implementado sem considerar como as 5. Nunes ED. Saúde Coletiva: história de uma ideia e um
pessoas significam a realidade em que vivem. conceito. Saúde e Sociedade. 1994; 3(2):5-21.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

6. Nunes TCM. As políticas de saúde e o ensino da Saúde Pú- 7. Oliveira J, Fleury S. Clímax da crise: Transparência da
blica no Brasil de 1970 a 1989. In: A especialização em saú- Estrutura de Poder (1980-1983). In: (Im) Previdência Social.
de pública e os serviços de saúde no Brasil de 1970 a 1989. 60 anos da Previdência Social no Brasil.. Rio de Janeiro:
[tese de Doutoramento]. Escola Nacional de Saúde Pública. Vozes, ABRASCO;1986. pp. 269-335
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro; 1998. p.12-20.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Retomando teorias e entendendo casos de Comunicação em


SaúdeI

Resuming theories and understanding cases of Communication in Health

Regina FigueiredoII

Resumo Abstract

O artigo aborda os elementos envolvidos no processo de comuni- This article approaches the elements involved in communication
cação para a análise de casos de comunicação entre trabalhado- processes for the analysis of cases of communication between
res e gestores de saúde com seu público, a partir da perspectiva health workers and managers with their public, from the perspec-
da Semiótica e da Antropologia da Saúde, salientando a noção da tives of Semiotics and Health Anthropology, emphasizing the no-
comunicação como troca de códigos culturais. Aponta a importân- tion of communication as an exchange of cultural values. It points
cia do cuidado em sua elaboração para haver efetividade de obje- to the importance of being careful when elaborating it, as to be
tivos e troca de conteúdos e orientações em saúde. effective with the objectives and exchanges of content and health
orientations.
Palavras-chaves: Comunicação em saúde; Antropologia da saúde;
representações sociais.III Keywords: Communication in health; Health anthropology; Social
representations.

I
Texto aprovado para publicação em 2012 e utilizado como exercício no curso
de Aprimoramentos em Saúde Coletiva do Instituto de Saúde, nas disciplinas
de Ciências Sociais em Saúde e/ou Antropologia da Saúde, desde 2013.
II
Regina Figueiredo (reginafigueiredo@isaude.sp.gov.br) é socióloga, Mestre
em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas
da Universidade (FFLCH/USP), Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de
Saúde Pública (FSP/USP) e Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde da
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução - elementos contidos na comunicação implantar desejos e demandas, com objetivo de


Por muito tempo, as teorias sociais2 foca- “dominar”/”domesticar” à população receptora,
lizavam o processo de comunicação como com- tornado-a massa consumidora.
posto por três elementos clássicos: Nos anos 60, McLuhan12 irá fazer uma ressal-
va nessas concepções, ao realçar o grande papel
EMISSOR → MEIO → MENSAGEM
do meio utilizado para a expressão como funda-
Essa disposição aponta o foco principal nas mental sobre a mesma. Ou seja, o meio/mídia de
disposições do comunicador e sua intenção de transmissão da mensagem é um elemento deter-
transmissão de conteúdos, demonstrando que o minante na comunicação dos conteúdos (“o meio
papel do receptor da comunicação era visto pre- é a mensagem”12). Contrariando a ideia deste ele-
dominantemente como passivo, de alguém que mento como neutro na passagem dos conteúdos
receberia e seria contagiado pelo teor da men- comunicativos veiculados, o autor aponta o poder
sagem. O meio seria apenas o caminho utilizado do meio em si mesmo. Assim, por exemplo, uma
pelo emissor para atingir receptor(es). mensagem proferida oralmente ou por escrito, ou
Não à toa, a produção de membros da transmitida pela rádio ou pela televisão têm per-
Escola de Frankfurt, em especial Adorno1 e cepções distintas pelo receptor, desencadeando
Horkheimer8, procurou explicitar e substituir o diferentes mecanismos de compreensão que po-
conceito de “cultura de massa” adotada no sé- dem adicionar ou retirar contornos e tonalidades
culo XX, pelo de “indústria cultural”, designan- e dar diferentes significados à própria mensagem.
do forte intenção dos produtores de mercado- Realmente, sabemos a relevância do
rias culturais do capitalismo em desenvolver e meio/mídia no processo de comunicação e na

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

transmissão de informações. É consenso que Nesse sentido, o papel do “outro”, do(s)


materiais ilustrativos têm potencial de facilitar interlocutor(es) da comunicação passa a ser vi-
a compreensão de um determinado assunto; ao sualizado mais amplamente e tomando cada vez
mesmo tempo em que é certo que o acesso a de- mais importância, fazendo com que, cada vez
terminado meio será prioritário para o recebimen- mais, a comunicação seja definida como um con-
to da mensagem, ou seja, quem não possui com- tato entre ser(es) individual(ais), portanto com
putador ou não sabe manuseá-lo, por exemplo, subjetividades, tal como se preocupou a Escola
de Palo Alto nos anos 807, e capacidades inter-
não poderá adentrar nos conteúdos da internet,
pretativas formadas a partir de um determinado
assim como uma pessoa com surdez perderá in-
ambiente social e uma determinada cultura.
formação veiculada pela televisão – a menos que
Autores da Antropologia, como Novaes13, já
saiba ler lábios ou que a transmissão seja acom-
ressaltavam que a comunicação, enquanto um fe-
panhada da linguagem de libras. Por isso, por si
nômeno de “contato”, nada mais é do que uma
só, o meio escolhido diz muito e até possibilita
troca. Tal troca não ocorre, obviamente, sempre
ou impossibilita o acesso, o tempo de presença entre iguais, visto que pode haver verticalidade
e o apelo da mensagem, determinando se sua de poderes entre ambos os envolvidos em sua
percepção será visual, auditiva, etc. mediação, como no caso da manipulação e o uso
Mas, há exagero em dizer que o meio deter- da tecnologia pelo emissor frente a um receptor
mina plenamente o conteúdo comunicado, como com desnível sócio-econômico (fenômeno muito
podemos verificar com o meio/mídia TV ou com a li- comum na comunicação de massa). No entanto,
teratura impressa, que têm potencial de comunicar apesar de poder haver desigualdades verticais,
tão diferentes e qualitativas, positivas ou negativas o ato comunicativo em si concebe uma horizon-
mensagens. Mas o certo é que McLuhan, indepen- talidade no processo que agora se institui como:
dente de priorizar o meio, terminou por apresentar
EMISSOR → MENSAGEM → MEIO → INTERLOCUTOR
para análise um elemento importantíssimo da co- (aquele que (o conteúdo (o veículo (a pessoa que
municação: o papel do receptor e, consequente- concebe a ser utilizado receberá a
algo a ser comunicado) para mensagem a
mente, a sua percepção, inferindo a idéia, não ape- comunicado) expressar a partir de um
mensagem) universo próprio
nas que este não é um mero espectador de conteú- de compreensão
que afeta na
dos, mas alguém que irá perceber e compreender a receptividade)
mensagem. Ou seja, lhe atribui ações, o sugerindo
Contatar o interlocutor e seu universo sim-
pela primeira vez como sujeito ativo.
bólico torna-se imprescindível para que se esta-
Esse autor sugere a abrangência, de certa
beleça a comunicação, senão este processo não
forma, ao papel do receptor, recompondo o uni- se efetiva, não existe. A própria origem da pala-
verso comunicativo e midiático numa nova fórmu- vra comunicar/comunicação, do latim communis
la com quatro elementos: designa a idéia de comum e também sua origem
içar significa difundir, espalhar4, indicando que pa-
EMISSOR → MENSAGEM → MEIO → RECEPTOR
(aquele que (o que é (o veículo (a pessoa alvo
ra haver comunicação é necessário que o diálogo
concebe comunicado) utilizado da mensagem) contenha pontos entre o emissor e interlocutor,
algo a ser para
comunicado) expressar a de forma que este último participe da compre-
mensagem)
ensão do significado da mensagem emitida pelo

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

primeiro. Constata-se assim, que a comunicação é se estabeleça, mas principalmente a forma co-
intrinsecamente uma relação social entre dois ou mo essas mensagens são passadas, ou seja,
mais pessoas onde, apesar das desigualdades so- a linguagem e códigos que foram utilizados. Tal
ciais que possam existir entre seus participantes linguagem não se resume ao idioma adotado no
do processo comunicativo, prescinde de uma hori- território ou país, mas também a todos os signos
zontalidade e igual participação no domínio de có- utilizados no conjunto da linguagem, que preci-
digos lingüísticos entre as partes, senão se cons- sam estar compatíveis com o universo simbólico
titui apenas como tentativa truncada de diálogo. do usuário de saúde para que se estabeleça efe-
Toda vez que o insucesso comunicativo ocorre dá tivamente o diálogo. Como diz Martin-Barbero11,
margem a decodificações e compreensões impre- na comunicação há uma mediação de tramas e
visíveis por parte do interlocutor que interpretará sentidos que podem fazer o deslocamento de
as mensagens a partir de seu próprio repertório6. significados no processo comunicativo.
Assim, relevar o papel do interlocutor (e não É importante salientar que visões positivistas
mais apenas do emissor e do meio utilizado), co- comuns, que partem do princípio que a linguagem
mo participante do processo de comunicação, re- escrita ou falada pelos profissionais de saúde ou
mete à compreensão sobre a importância de rele- gestores seria mais correta que as demais - priori-
var também seu universo lógico e simbólico. Toda zando uma visão de mundo imperativa, como diria
a construção abstrata do pensamento humano Jullien9 - é cair no erro de desconsiderar o papel do
parte da forma de codificação e classificação do outro/usuário na comunicação e de seu poder de
mundo e do estabelecimento de relações entre interlocução. Na Saúde Pública tal problema se faz
as coisas que o compões. Como demonstrou Lé- visível e prioritário porque põe em contato profis-
vi-Strauss10 existem várias formas de “enxergar” sionais normalmente de classe média, formados
e, portanto, de nomear, classificar e pensar o re- em capitais, portanto com status, junto a um públi-
al. A forma de raciocínio e explicação que a cul- co de nível sócio-econômico mais baixo e vindo de
tura adota será dada a partir desta classificação. várias regiões do Brasil, incluindo o interior, com
culturas totalmente distintas e sem status.
Por isso é fundamental igualar o papel do
Comunicação em Saúde - interação de códigos interlocutor na relação comunicativa, além de
Mas o que isso tem a ver com Saúde? Tudo, considerar compreender o papel dos signos uti-
na medida em que a saúde põe em contato pelo lizados para compor a linguagem utilizada na co-
menos dois personagens fundamentais: um pro- municação das mensagens.
fissional executor (mesmo que gerencial ou admi- Conforme a Semiótica3, a linguagem é for-
nistrativamente) e sujeito (s) que receberá (rão) a mada por signos de comunicação que podem ser
orientação preventiva, o tratamento ou interven- classificados sinteticamente por: ícones, índices
ção visando a cura. ou símbolos descritos. De acordo com Pierce13:
Por isso, não apenas os veículos/meios .ícones: são os signos que retratam o re-
que são escolhidos para transmitir mensagens al explicitamente, com representação ipsis litteris
da área de saúde (orientações de consultório, do objeto do qual se está referindo, como, por
atividades de grupo, materiais educativos, pro- exemplo, um desenho de um homem e uma mu-
gramas de TV, campanhas, etc) serão funda- lher. Por representar similarmente o real têm am-
mentais para que efetiva comunicação de saúde pla compreensão universal:

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

.índices: seriam os signos que retratam o


real de forma simplificada, procurando sugeri-lo
por semelhanças, como por exemplo, a imagem
simplificada do homem e da mulher muito utili-
zada em banheiros, também os ideogramas que
compõem certos idiomas. Por isso, nem sempre
é compreendido universalmente, pois pode ha-
ver pessoas ou culturas não habituadas a esta
associação rápida. No exemplo, sabemos qual Expressões:
representa a mulher porque associamos o uso “Estou cansada de
de vestido a esta. engolir sapo”

A linguagem escrita ou oral, portanto, a for-


ma como se expressa e dialoga, nada mais é do
que a utilização desses diversos tipos de signos,
em sons, palavras, construção de expressões ou
figuras de linguagem, articulados com determina-
da lógica de pensamento. Porém, a nossa cultu-
Fonte: Imagens livres retiradas da internet.
ra científica-ocidental, normalmente, não nos faz
.símbolos: são signos que retratam a percebê-la como “construções”, mas como for-
idéia apenas por associações totalmente defi- mas óbvias de reprodução do real, fazendo com
nidas pela cultura. Ou seja, extrapolam comple- que acreditemos que nossa cultura e nossa for-
tamente o real, criando representações que só ma de ver o mundo, como diria François Jullien9 é
quem domina aquele código cultural irá enten- mais lógica que as demais.
der. Como, por exemplo, o uso na entrada de
banheiros de uma cartola e uma sombrinha. Es-
Descrição de casos de não-comunicação em
tes, só seriam entendidos como masculino e fe-
Saúde
minino, respectivamente por quem foi criado na
Vamos verificar os princípios descritos em al-
cultura ocidental, onde tais acessórios foram
guns casos (“causos”) colhidos na área de saúde
utilizados por homens e mulheres. Também le-
em diversas situações pela autora deste artigo:
tras ou sílabas que designam sons associadas
aleatoriamente (por exemplo, por que um A tem - caso 1:
som de A para nós? – em inglês designaria ou- Um dentistaIII fazendo recomendação de hi-
tro som), ou em palavras faladas (por exemplo, gienização bucal caseira recomendou que uma
a onomatopéia “au-au” utilizada no português paciente utilizasse para bochecho Cepacol, Mal-
para o latido do cachorro, que na Alemanha é vatricim, Flogoral ou algum similar. A paciente afir-
descrita com o som de “baú-bau”), ou expres- mou que usaria Flogoral uma vez que já tinha o
sões idiomáticas, que alguém de outra cultura
jamais entenderia.
III
Relatado pelo Dentista Olindo Neto em site de “causos” ocorridos na
Odontologia.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

medicamento em sua casa. Quando voltou a con- O que este caso retrata é que, em todas as
sultar o profissional, reclamou que o medicamen- campanhas de prevenção de DST/aids e de orien-
to era amargo demais, apesar de ter feito sua uti- tação de uso de camisinha fala-se do uso correto
lização correta. Como é sabido que o medicamen- para que a camisinha não estoure, não fure, não
to não tem sabor ruim, o profissional interrogou rasgue. No universo lingüístico desta usuária o
sobre a cor do medicamento — deveria ser verde termo estourar está associado muito mais a bom-
— e, por surpresa, ouviu da paciente que era cor bas, provavelmente de festas juninas e rojões,
de rosa. A paciente havia utilizado Flogorosa para que estouram, explodem. Portanto, o sentido que
bochecho, medicamento de uso intra-vaginal feito a moça usuário vinha absorvendo de todas essas
para higiene íntima. campanhas (diálogos) foi a terrível ameaça que
O caso acima reflete a falta de comunicação a camisinha representava para seu corpo caso
em saúde, do profissional que deixou de anotar explodisse internamente. Dentro de sua compre-
o nome do medicamento de forma clara para a ensão lingüística, o signo estourar estava asso-
paciente e, ao invés disso, confiou na compreen- ciado ao simbolismo de “explodir”, portanto, ela
são e na memória desta. Não foi a usuária que está absolutamente correta em querer precaver
confundiu medicamentos, mas o profissional de e não se expor a tal perigo. Por sorte, pode ser
saúde que a levou a confundi-los, pois foi com- ouvida e entendida pela profissional que captou
ponente-emissor da confusão comunicativa ao a confusão comunicativa e refez o discurso, expli-
não ser explícito, acreditando que o universo dos cando o significado correto da expressão de uma
remédios e suas denominações são de domínio forma dialógica que essa usuária compreendes-
geral, o que não é verdade. Talvez na compreen- se a mensagem.
são dessa mulher nomes parecidos signifiquem O caso reflete uma forma de compreensão
medicamentos similares, assim como verificou Fi-
“ao pé da letra”, tal qual ocorreu em outro ca-
gueiredo5, que medicamentos com caixas iguais,
soV onde, após uma demonstração de uso de
como os antroposóficos, eram vistos como iguais
preservativo realizado por uma profissional de
por várias pessoas da população.
saúde utilizando os dedos para simular sua co-
- caso 2: locação, o usuário do serviço ficou perplexo e
Em uma orientação de prevenção às doen- interrogou se era “realmente” seria daquela for-
ças sexualmente transmissíveis (DST) e aids, rea- ma (nos dedos) que se utilizava o método. Isso
lizada no Centro de Referência e Treinamento em demonstra o perigo de fazer esse tipo de orien-
DST/Aids e Hepatites de DiademaIV, uma moça de tação sem perceber que vários usuários podem
cerca de 20 anos se mostrava bastante arredia à levá-la a sério, como ocorreu com uma mulher
idéia de usar preservativo masculino. Depois de que fez colocação do preservativo em uma vas-
muita conversa, a psicóloga, profissional do ser- soura, imitando a demonstração de uma profis-
viço, descobriu o incômodo relatado pela usuária: sional de saúde em um CRT de Santana (caso já
Ela tinha ouvido falar que a camisinha estourava relatado por Figueiredo6).
e estava com medo que essa “explosão” ferisse
seus órgãos reprodutivos internos.

V
Relatado por Domingo Nunes, aluno de Especialização em Educação Sexual
IV
Caso relatado por Psicóloga do CRT DST/Aids e Hepatites de Diadema à autora. da Universidade Salesiana – UNISAL.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

- caso 3: que estava menstruada, uma vez que entendeu


Numa orientação de Planejamento Familiar que deveria inserir a prótese com a camisinha
realizada numa unidade básica de saúde da Pre- em sua própria vagina, procurando uma descul-
feitura de São Paulo, uma usuária recebeu a in- pa para evitar o evento. Percebendo a confusão,
formação de que o diafragma é uma capa de sili- a profissional explicou que o pedido era para
cone com uma mola na borda para ser colocada realizar a demonstração de desenrolar a cami-
no colo do útero com a finalidade de evitar a gra- sinha apenas na prótese de borracha, ou seja,
videz e está disponível gratuitamente na rede de não atuou desqualificando a percepção e o mo-
saúde. A usuária não manifestou nenhuma pre- do de pensar da usuária, apenas estabeleceu
ocupação com questões sobre o funcionamento uma conexão com uma orientação mais explícita
eficácia ou praticidade do método. Essa mulher, que lhe fosse compreensível.
apenas quis saber se o diafragma faria apitar as Cabe lembrar que a utilização da lógica do
portas giratórias utilizadas em bancos, denun-
cotidiano pela população é comum em resolu-
ciando o seu uso.
ções de problema de saúde, basta pensar o ca-
O que esse caso revela em termos de comu-
so ocorrido no Mato GrossoVI, onde um paciente
nicação em saúde? Que as preocupações que nós
utilizou Durepox para fechar um buraco no den-
elegemos enquanto profissionais de saúde como
te, o que causou surpresa no profissional de
prioritárias, muitas vezes não são as mesmas que
saúde de odontologia.
imperam sobre o universo de nossos usuários. A
usuária não tem preocupações de âmbito técnico, - caso 4:
sua lógica reflete preocupações de seu universo Numa atividade arte-terapêutica do Hospi-
cotidiano, onde provavelmente não deseja expor tal Psiquiátrico Vera Cruz, localizado no bairro de
publicamente sua intimidade. Por isso, saber se Santana, São Paulo – SPVII, um paciente dese-
o diafragma fará apitar uma porta com sensor de
nhou espontaneamente a bandeira do Brasil em
metais é primordial e não uma coisa sem sentido
laranja nos traços, com preenchimento em rosa.
e nem uma ignorância. É fundamental. Neste ca-
Seu trabalho foi logo comentado por outro pa-
so, também o profissional em envolvido foi solicito
ciente, que compreendeu que o uso dessas 2 co-
e logo esclareceu que o tipo do metal do diafrag-
res fora devido à disponibilidade de tintas. Porém
ma não é detectado por portas de bancos, favo-
esse segundo paciente afirmou com veemência
recendo que a usuária possa incluir o método em
que o trabalho “não estava bom”, porque o certo
seu rol de opções preventivas para a gravidez.
seria que as cores tivessem sido utilizadas ao
Esse caso reflete uma compreensão espe-
contrário, ou seja, que os traços deveriam estar
cífica que remete à preocupação com a intimi-
em rosa e deveria haver preenchimento em laran-
dade e o tabu que o tema sexualidade traz, tal
ja que seria o preenchimento. Ambos os pacien-
como ocorreu em outro caso no Centro de Refe-
rência e Treinamento em DST/Aids e Hepatites tes sabiam claramente que as cores da bandeira
de Diadema, onde, após demonstração de co- são verde, azul e amarela.
locação da camisinha em uma prótese feita por
uma profissional, foi solicitada a repetição da Caso relatado por Eduardo Hanke em site de “causos” ocorridos na Odontologia.
VI

Caso registrado em vídeo pelo documentarista Daniel Rubio, no Vídeo-Docu-


VII

demonstração a uma usuária. Essa requisição mentário “Arte no Vera Cruz”, do Projeto de intervenção de Graffite e Música
no Hospital Psiquiátrico, desenvolvido pelo Instituto Imagem Viva-Artver.com.
deixou-a totalmente constrangida e a fez afirmar Site: artver@artver.com

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

que terminou promovendo que em diversas cida-


des da região de Ituverava as famílias também le-
vassem seus cachorros para vacinação nos pos-
tos de saúdeVIII.
Esse caso registra a importância dos códi-
gos de imagem contidos nas mensagens, mas
ressalta, sobretudo, a importância de avaliar o
significado de sua inclusão em comunicações de
saúde. O cachorro Bidu desenhado, não retrata
um cachorro real, ele é além de traços simplifi-
cados, ele é azul, portanto não é universalmente
identificado como um ícone de cão. Porém, en-
tre os brasileiros, o sucesso das tiras de jornal
e revistas desse personagem o tornaram familiar
Fonte: Imagens cedidas pelo Diretor Daniel Rubio no Hospital
Psiquiátrico Vera Cruz. entre a população, tornando-o um signo-índice de
cachorro, o que fez transmitir a mensagem errô-
O que esse caso demonstra a adaptabilida- nea que cachorros devessem ser vacinados. Tal-
de à realidade na criação – utilizou-se as cores vez se o cartaz fosse incluído numa campanha na
disponíveis - demonstrando que sua falta não se- Tailândia, ou outro país onde esse personagem é
ria impeditivo para a expressão da idéia. Fica desconhecido (inclusive porque não existem cães
demonstrado também que há uma ordenação ló- azuis parecidos com os traços desenhados pelo
gica do “caos”, onde não havia nenhuma cor que autor), apenas pessoas iriam à vacinação, iden-
compõe a bandeira realmente disponível foram tificando-se com os ícones de crianças da Turma
utilizadas outras. Porém o que este caso chama da Mônica, mais similares a perfis humanos.
mais a atenção é que apesar da lógica de subs- A imprecisão de comunicação utilizando pa-
tituição das cores reais por outras fora aceita, a lavras ou desenhos já foi abordada neste periódi-
forma de ordenação deste “caso”, a lógica classi- co7, registrando a tendência maciça de seus usos
ficatória escolhida pelo primeiro paciente, foi re- “descuidados” em mensagens. Um grande exem-
futada pelo segundo demonstrando a diversidade plo que pode ser lembrado quanto ao uso de sím-
bolos, ícones e índices foi a infeliz campanha de
de pontos de vista existentes entre as pessoas
prevenção de Doenças Sexualmente Transmissí-
para ordenar o inesperado.
veis e Aids realizada pela área de comunicação do
- caso 5: Ministério da Saúde em 2001, enviando material
Numa campanha de vacinação de varíola no de extremo mau gosto para postos de saúde de
Estado de São Paulo, em 1969, foram utilizados todo o país: folhetos onde apareciam burros tro-
cartazes de convocação à população, cedidos pe- cando seringas, que ao invés de chamar a aten-
lo conhecido desenhista-quadrinista Maurício de ção para que se evitasse o compartilhamento de
Souza, que traziam ilustrado o conjunto da “Tur-
ma da Mônica” indo ao posto de saúde se vaci-
Caso relatado por Ausônia Donato, Coordenadora da Área Técnica de Ensino
VIII

nar. A questão é que entre os personagens havia do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde durante o evento
de lançamento do livro “Walter Leser”, no auditório da Faculdade de Saúde
também o do personagem, cãozinho, “Bidu”, o Pública em 2009.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

seringas entre usuários de drogas injetáveis (ver Esse caso mostra onde o descuido da co-
imagem) com intenção a prevenção do HIV – ví- municação pode chegar, gerando efeitos contrá-
rus da aids, terminaram por sugerir a animalida- rios aos pretendidos pelo emissor (ao invés de
de desses sujeitos, reforçando sua discriminação prevenir – destratar), ao invés de chamar a aten-
como além de “marginais”, são ignorantes, uma ção (no caso dos cartazes), evitar que eles fos-
vez que este é um dos sentidos que a expressão sem expostos; além do comentário final da pro-
“burro” tem em português, o que afasta por com- fissional descrito, que demonstra que mistura
pleto todo o trabalho preventivo de compreensão de temas e imagens podem gerar associação de
desse sujeitos como pessoas com problemas de idéias totalmente imprevisíveis e comunicar “ma-
saúde mental ligados à dependência química pre- luquices” como a idéia de que usuárias de drogas
conizado pelo próprio Programa de DST/Aids do não devem usar absorventes externos, o que não
Ministério da Saúde. tem nada a ver com a prevenção.

Considerações finais
Este artigo procurou salientar a importância
da Comunicação em Saúde no fazer saúde, tan-
to em nível da prática propriamente dita, como
da organização, concepção e gerenciamento da
mesma. A expressão de mensagens e ideias pe-
lo diálogo individual ou coletivo promovido pela
Saúde Pública precisa estar amparada no conhe-
Fonte: Reprodução de folheto distribuído pelo Ministério da Saúde. cimento dos interlocutores de suas ações e men-
sagens, portanto, prescindem da compreensão
Além dos folhetos, essa “campanha de pre-
de seu universo cultural, simbólico e lingüístico.
venção/promoção de saúde” elaborou cartazes
Apresenta-se a importância de ver o exer-
onde papéis higiênicos sujos de fezes e absor-
cício gerencial, administrativo e profissional pre-
ventes íntimos sujos de menstruação eram ex-
ventivo, de tratamento ou curativo da saúde co-
postos com a frase “Se fosse seringa você usa-
mo comunicação dialógica com a população be-
va?”, que além do extremo mau gosto (tanto que
neficiária, ou seja, como diálogos onde dois ou
resolvemos não reproduzi-los nessa revista),
mais universos estão horizontalmente em conta-
provocou reações de nojo em grande parte dos
to numa troca de percepções.
trabalhadores de postos de saúde que se recu-
É fundamental abandonar atitudes discrimi-
saram a afixá-los, além de gerar um sintomático
natórias que renegam o conhecimento popular
comentário feito por uma profissional de saúde
ou das pessoas taxando-os de inábeis ou “ig-
de um desses locais: “não sabia que mulheres
norantes”, pois esses conhecimentos e lógicas
que usam drogas não devem usar modess para
que orientam suas práticas cotidianas. A ofer-
não passar aids...”IX.
ta da saúde deve ser vista como uma interação
de conhecimentos, de um lado o técnico-cien-
tífico da Medicina Ocidental, de outro, as diver-
Caso registrado pela própria autora em trabalho realizado em Diadema, na
IX

unidade de saúde do Jardim Inamar. sas técnicas saberes e suposições aprendidas

|21
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

tradicionalmente ou utilizadas pela população, Eco H. Semiótica e filosofia da linguagem. Lisboa: Instituto
que nunca devem ser desvalorizadas. Piaget; 1991.
Fernades GJM. Grande dicionário etimológico prosódico da
É possível encontrar um equilíbrio dialógico
língua portuguesa. São Paulo: Editora Brasilia; 1974.
entre as partes, de forma que o desenvolvimento
Figueiredo R. Noções de saúde, doença e cura como cons-
científico e técnico possa complementar, ampa- truções sócio-culturais. BIS – Bolet do Inst. Saúde. 2007;
rar e sugerir formas de cuidar da saúde e não 41:6-10.
tentar impor comportamentos que venham a ser Figueiredo R. Imaginário cultural, comportamentos e co-
“burlados” ou mal-compreendidos longe desse municação em Saúde. BIS – Bolet do Inst. Saúde. 2007;
setor. Nenhuma ação de caráter homogêneo e 41:11-14.
Fonsi M. Escola de Palo Alto: sua contribuição para a cultu-
vertical terá efetividade frente à diversidade de
ranálise de grupos e ação cultural. Dissertação [Mestrado].
grupos e culturas que compõem a população bra-
São Paulo: Escola de Comunicação e Artes da Universidade
sileira. Fazer saúde significa, portanto, associar- de São Paulo; 1997.
-se às Ciências Humanas para conhecer, compre- Horkheimer M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filo-
ender, decodificar e construir espaços de diálogo sóficos. Rio de Janeiro: Zahar; 1985.
com essas pessoas. Jullien F. O diálogo entre as culturas – do universal ao mul-
ticulturalismo. Rio de Janeiro: Zahar; 2009.
Lévi-Strauss C. O pensamento selvagem. São Paulo: Cia.
Editora Nacional; 1976.
Martin-Barbero J. Dos meios às mediações – comunicação,
Referências cultura e hegemonia. Rio de Jeneiro: UFRJ; 1997.
Adorno TW. A indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz McLuhan M, Fiore Q. The medium is the message: an inven-
e Terra; 2002. tory of effects. Harmondsworh: Penguin; 1967.
Adorno TW. (1962). “Crítica Cultural e Sociedade”. In: Pris- Novaes SC. Jogos de espelho: imagens da representação
mas – crítica cultural e sociedade. São Paulo: Editora Ática; de si através dos outros. São Paulo: EDUSP; 1993.
1998. p.76-90. Peirce CS. Semiótica. São Paulo: Ed. Perspectiva; 2000.

|22
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Comunicação e Saúde na prática educativa

Communication and Health in educational practice

Ausonia Favorido DonatoI

Resumo Abstract

O presente artigo terá como ponto de partida a reflexão sobre duas The present article has as its starting point the reflection on two
situações relatadas em uma oficina de trabalho junto a profissio- workshops reported situations together with health professionals,
nais de saúde, com o objetivo de analisar os impasses da dimen- aiming to analyze the impasses of the communicational dimension
são comunicacional no processo educativo. Seu desenvolvimento in the educational process. These development provides casting
prevê a problematização das ideias que foram objeto de discussão doubt on some ideias that were the object of discussion among
entre os participantes da referida oficina, com destaque para a di- the participants of this workshop, with emphasis on the communi-
mensão comunicacional como elemento constitutivo do processo cation dimension as a constituent element of the educational pro-
educativo desenvolvido pelas equipes da Estratégia de Saúde da cess developed by the Family Health Strategy teams together with
Família junto à população. A perspectiva adotada terá uma concep- the population. The adopted perspective will have a critical con-
ção crítica da educação como parâmetro, considerando as práti- ception of education as a parameter, considering communication
cas de comunicação no contexto das ações de atenção à saúde, practices in the context of health care actions, local culture bran-
das marcas da cultura local, e das interações entre os agentes de ds, and interactions between health agents and the population.
saúde e a população.
Keywords: Communication, Education, Health.
Palavras-chave: Comunicação; Educação; Saúde.

Ausonia Favorido Donato (ausonia@isaude.sp.gov.br) é educadora, Mestre e


I

Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade


de São Paulo (FSP/USP) e Diretora do Núcleo de Ensino do Instituto de Saúde
da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

|23
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução Como ilustração, apresentamos duas situa-


A exposição a seguir contém algumas das ções dentre as várias relatadas pelos participantes.
ideias que foram objeto de reflexão crítica dos Será a partir destas duas situações que se preten-
participantes na oficina, vinculadas à dimensão de organizar pressupostos que permitam uma visa-
comunicacional e sua relação constitutiva com o da reflexiva sobre o tema central deste artigo.
processo educativo. Trata-se, portanto, de um es-
- situação 1:
forço de explicitá-las e sistematizá-las. O propósi-
Em uma comunidade, diante da necessidade
to é de levantar elementos que contribuam para
de orientar a população sobre prevenção em
a continuidade da discussão sobre o lugar da Co-
DST/aids, os profissionais da saúde demons-
municação no âmbito da Saúde à luz de algumas traram o uso adequado de preservativo intro-
concepções educativas. duzindo uma camisinha num cabo de vassou-
Problematizando situações e experiências ra. Claro que tiveram o cuidado de perguntar
significativas do cotidiano de trabalho e observa- aos presentes se haviam entendido a explica-
ções oriundas da I Mostra de Produção de Saúde ção, com o sentido de se assegurar que sua
da Família de Minas Gerais1, em 2005, relacio- comunicação havia sido eficiente.
nadas ao processo de comunicação, no âmbito Seguros disso encerraram sua atividade.
da Saúde, foi-nos possível identificar alguns con- Em seu retorno ao local se surpreenderam ao
ceitos nucleadores que explicam e fundamentam tomar conhecimento de que alguns daqueles
uma perspectiva sobre a comunicação numa re- ouvintes não estavam se protegendo contra
lação educativa. aquelas doenças.

|24
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

No entanto, continuavam colocando, de forma No que interessa à concepção crítica da


correta, a camisinha no cabo de vassoura”. educação que pretende ser uma educação para
a mudança, a transformação, a conscientização,
- situação 2: a libertação, que dá suporte aos movimentos de
“Um jovem senhor com elevada taxa de coles- educação popular em saúde e entende que na
terol é orientado por um profissional de saúde, relação do profissional da saúde com a popula-
sobre a alimentação adequada. É enfatizada a ção, necessariamente ambos se modificam, por-
restrição quanto às carnes vermelhas e ressal- que ambos são percebidos como portadores e
tada a exclusividade de carnes brancas. produtores de conhecimentos distintos. A falta
No retorno do paciente se verifica grande ele- de referencial teórico metodológico relativo à co-
vação do nível de colesterol. Perguntado sobre municação faz com que assumamos de pronto
sua alimentação, em especial sobre o consu- que o que importa é fazer com que uma mensa-
mo de carnes, ele declara de forma assertiva gem, partindo de um ponto de emissão, chegue a
que “só comi carne branca. Durante esse mês um receptor, situado num contexto. A linearidade
só comi dobradinha e não aguento mais!”. desse tipo de raciocínio acaba por desconsiderar
a feição dos sujeitos históricosII que estão por
detrás desse processo.
Problematizando Ao nos basearmos nos pressupostos da te-
Entendemos que em ambas as situações oria crítica e analisarmos esses modelos de co-
as pessoas envolvidas aprenderam algo. Mas, municação - um emissor que codifica e transmite
o fizeram de forma mecânica. Ou seja, não con- uma informação, para um receptor que friamente
seguiram relacionar aquele conteúdo novo com a decodifica, necessariamente contestaremos a
sua vida e com seus saberes. Ocorreram ideias, legitimidade da transparência de esquemas abs-
símbolos e comportamentos repetidos, reprodu- tratos genéricos, binários e mecânicos que des-
zidos, mas, que nada significaram e que não ti- mobilizam o aspecto tensional da comunicação
nham sentido para aquelas pessoas. entre homens e, como já apontamos, desconsi-
Esses ruídos em nossa comunicação são dera-os como sujeitos históricos.
muito frequentes, principalmente se a particula- Com a intenção de possibilitar um aprofun-
rizarmos para a prática sanitária. Suas razões damento dessas questões, discutimos um excer-
são muitas. Uma possível está suposta em um to de artigo de Mártin-Barbero5, de 1991, e que
dos mitos da comunicação humana: pelo simples agora compartilharemos com os leitores.
fato de explicar-me muito bem, isto é, valer-me Um competente profissional da comuni-
de meios e linguagem “adequados”, o outro (seja cação, que trabalhou durante anos em famosa
quem for) irá necessariamente me entender. rede colombiana de emissoras de ação popu-
Em outras palavras, podemos dizer que o lar, contara a Martin-Barbero5 que a direção de
processo comunicativo está sustentado num mo- tal rede realizou sua primeira pesquisa entre os
delo de comunicação linear, mecânico, unidirecio-
nal e, portanto, simétrico que pode ser represen- II
Entendemos sujeitos históricos como aqueles que são atravessados pela
tado esquematicamente segundo o modelo. história, pela economia, pela política, pela cultura, pela ideologia, construindo,
no campo híbrido desses atravessamentos, sua subjetividade. A partir dessa
concepção, o entendimento de toda razão comunicativa vai muito além da
E (emissor) → M (mensagem) → R (receptor) simples razão instrumental.

|25
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

camponeses, havendo nela uma pergunta óbvia: com o meio a ser utilizado no processo de comu-
“Qual programa vocês ouvem mais, diariamen- nicação. Desta forma é que se tenta traduzir as
te?” A resposta majoritária foi: “a reza do terço”. mensagens em termos simples, claros e acessí-
Diante de tal resposta, os pesquisadores ficaram veis. Em uma análise direta do caso, podemos di-
desconcertados, pois não podiam explicar como, zer que existe um emissor comprometido (a rádio
entre tantos programas educativos e práticos de local), um receptor disponível (no caso os cam-
informação agrícola, de entretenimento etc., fora poneses), um canal adequado (o rádio), um có-
“a reza do terço”, o que obtivera a maior audiên- digo comum (a língua espanhola), mensagens de
cia. E, convencidos de que a resposta se devia à interesse coletivo (entretenimento, informações
falha da pesquisa ou dos entrevistadores, decidi- agrícolas, etc.) e, por fim, um contexto comunica-
ram refazê-la e lançá-la novamente aos campo- cional comum (que diz respeito, genericamente, à
neses. Mais uma vez, a resposta foi a mesma: o função da rádio local em transmitir certos tipos
programa preferido era “a reza do terço”. Bastan- de informação à população).
te inquieto, um dos entrevistadores aprofundou Entretanto, a comunicação não se efetiva
as razões da resposta, perguntando diretamente nos moldes previstos pelo pesquisador da rádio.
aos camponeses o porquê dessa preferência. E Podemos notar aí, que sua preocupação, reside
a resposta foi: “...porque é o único programa em centralmente na utilização da linguagem, respei-
que podemos responder aos de Bogotá; em “a re- tando-se é claro o encadeamento entre todos os
za do terço”, eles dizem uma parte da Ave Maria e, elementos da comunicação.
nós, a outra (“Santa Maria, mãe de Deus...”), é o Retomando a ideia da utilização de meios
único programa em que eles não falam sozinhos”. e linguagens adequados, nos perguntamos: O
A partir deste caso, elencamos uma série que isso – meios e linguagens mais adequados –
de indagações que se referem ao distanciamento significa? O que é ser mais adequado? Ser mais
que nós, educadores, comunicadores da saúde, adequado significa apropriar-se de um mesmo có-
estabelecemos, por vezes, com a população com digo no sentido de aproximar os dois elementos:
a qual estamos comprometidos, ao propormos emissor-receptor. Outra observação, diz respeito
desenvolver ações coletivas na direção da promo- à compreensão dos meios utilizados. Esses não
ção de saúde, da melhoria da qualidade de vida, devem ser entendidos apenas como meios técni-
na prevenção de doenças, dentre outras. Enfim, cos, de massa, meios ampliados. Podemos en-
o porquê desse distanciamento. Justifico a hipó- tender a presença de um agente de saúde, um
tese de “distanciamento entre os profissionais de agente comunitário, um educador em saúde, li-
saúde e população”, pelo fato destes e, fazendo gado mais a um determinado local, região, como
uma analogia com a história contada – “a direção meios de comunicação.
da rede de emissoras” –, manifestarem surpre- Ainda com relação à linguagem no processo
sa, decepção, “desconcerto” diante da resposta de comunicação, ilustramos com outra ideia, re-
dada pelos camponeses. lembrando pequena experiência, em que se ana-
De forma recorrente, os estudos que tomam lisavam alguns folhetos sobre diarreia. Na épo-
para si esta questão, incidem sobre as dificulda- ca, havia necessidade, por parte dos técnicos da
des do emissor ao transmitir sua mensagem aos área da educação em saúde, de reformular estes
receptores. Dificuldades, no geral, entendidas co- materiais. Consultou-se, dentre outros, um espe-
mo despreocupação com o tipo de linguagem ou cialista no assunto em questão, perguntando-lhe

|26
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

o quê da mensagem deveria ser modificado, no prescinde de “alfabetização”. Devemos dizer que
sentido de facilitar o entendimento por parte da tal ideia constitui-se em equívoco. Sabe-se que,
população. A única sugestão dada foi: Mudar o para a compreensão de um filme há necessidade
termo diarreia para “cocô mole”. de aprendizado. Pode-se até dizer que há uma
Com esse exemplo, queremos ressaltar, alfabetização cinematográfica, uma vez que a
que embora se tratasse de um discurso cien- imagem tem sua composição complexa, tem sua
tífico, dedutivo, a alteração referiu-se apenas forma de contar a experiência humana, a experi-
à terminologia. Neste caso, há uma concepção ência de vida, diferente da maneira da palavra.
morfológica da língua, isto é, trocando termos Em suma, devemos dizer que a questão da
pensa-se que mudamos a totalidade de sentido, relação de comunicação entre profissionais de
o que não é verdade necessariamente. Pode-se saúde e população tem sido objeto de várias in-
trocar o termo, mas a estrutura é mantida. É vestigações, dentro desta mesma ótica: a dificul-
preciso tomar certo cuidado, porque alterações dade do emissor no que respeita aos meios e
no plano morfológico, podem não significar mu- linguagens utilizados. Embora muitos destes tra-
danças substantivas, do ponto de vista global, balhos se revistam de sofisticação metodológica,
estrutural daquele enunciado. Como, muitas ve- permanece o referido enfoque. Certas pesquisas,
zes, não se tem o domínio da linguagem desse por exemplo, de natureza qualitativa, pretendem
elemento popular, podem-se supor esquemas apreender tal relação por meio da análise do dis-
que se acredita teoricamente serem capazes curso dos referidos profissionais. Mais uma vez,
de suprir a distância. Daí “cocô mole” e não ousamos dizer: a mesma abordagem é garantida,
“diarreia”. Ou seja, há um pressuposto de que sedimentada. Com isso, não gostaríamos que o
a recepção aceitará, ela terá maior facilidade leitor se precipitasse a concluir que a utilização
em descodificar a informação se se alterar es- deste modelo - análise centrada no emissor - le-
se nível morfológico. Portanto, se se criar uma ve, necessariamente, a não se ouvir a população,
espécie de “sinônimo”. Ressaltamos a ideia de isto é, o receptor3 .
que, muitas vezes, em nome da simplificação da Em estudos em que se criam intencional-
linguagem, enfatizamos o nosso público adulto. mente situações nas quais a população é ouvida,
Com relação ainda à questão do distancia- com objetivo de verificar o entendimento ou não
mento entre os profissionais de saúde e a po- da mensagem construída pelo emissor, as per-
pulação, explicada em termos da utilização de guntas formuladas pelo emissor já circunscrevem
meios inadequados de comunicação, gostarí- as respostas do receptor.
amos de fazer outro comentário. Muitas vezes, Justificamos estas considerações, apa-
nos deparamos, escolhendo aqueles que, no rentemente óbvias e corriqueiras, na medida
entender dos educadores, comunicadores, me- em que existem por parte dos educadores, co-
lhor se adaptam ao público visado. É comum, municadores, uma sólida crítica em relação a
por exemplo, escolhermos um filme, “pois nos- esta abordagem.
sa audiência é constituída, em sua maioria por Retomando a passagem de Mártin-Barbero5
analfabetos”. O significado de tal escolha (filme), – dos camponeses de Bogotá –, convém pergun-
parece se prender ao fato de que a linguagem tarmos: o que esse autor quer nos dizer?
do filme é mais facilmente decodificada, na medi- Barbero5 está dizendo o seguinte: duran-
da em que a imagem é percebida como algo que te muito tempo se separou demais a chamada

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

cultura erudita da cultura popular. Havia uma divi- surge, ou como dizem os seus ouvintes: “porque
são muito acentuada entre ambas. Dizia-se que a responder aquilo”. Sendo assim, as pessoas pa-
cultura popular é menos forte, menos vigorosa do ram em Bogotá para rezar.
que a cultura erudita. Diante desta nítida dicoto- Martin-Barbero5 se insurge deste episódio
mia, o autor traz uma nova contribuição, afirman- de Bogotá contra modelos de inspiração funcio-
do que essas culturas são híbridas, ou seja, há nalista. Esse autor adota uma perspectiva segun-
um fenômeno de hibridização cultural5, isto é, os do a qual a relação entre sujeito-emissor e sujei-
fluxos entre a cultura popular e a cultura erudita to-receptor tem mediações. Isto é, é mediada por
são maiores do que imaginamos, sobretudo na uma série de fatores de ordem cultural, histórica
chamada cultura de massa. e de várias naturezas que alteram esta relação.
Martin-Barbero5 defende a tese de que Assim, enquanto a mensagem – principalmente
a cultura popular é fortíssima. É tão forte que, a veiculada pela comunicação de massa – e os
inclusive, às vezes, a chamada cultura erudita, meios e comunicação representam a questão
por mais que queira se impor, não fura certo blo- central para os funcionalistas, para este autor as
queio. Ou, quando consegue, ela se hibridiza4. Po- mediações se constituem o foco de atenção. O
de-se apreender que a questão cultural é muito que se destaca aqui é a visão ampliada de Mar-
mais complexa do que os esquemas binários nos tin-Barbero, ao evidenciar o contexto social, cultu-
fazem ver. Assim é que a cultura popular se cons- ral que circunscreve e determina a relação comu-
titui com tal vigor, com tal forma, naquela realida- nicativa entre ambos os sujeitos5.
de espacial, física, social que pouco adianta os A noção de mediação é fundamental, aqui
especialistas da comunicação da referida rádio tomada, não no sentido de retomar o lugar do lí-
oferecerem informações importantes à atividade der grupal ou de opinião – visão positivista – mas,
de trabalho agrícola aos camponeses e até mes- qualificá-la no receptor, no emissor, no processo
mo de entretenimento. Em síntese, Barbero5 está grupal, social, cultural, etc.
nos dizendo que a cultura popular é riquíssima, O caso dos camponeses da Colômbia fez-
diversificadíssima, cheia de nuances, tanto é as- -nos pensar que, embora os programas de educa-
sim que tem o seu modus operandi. Neste senti- ção e comunicação social tenham muitas vezes
do, a perspectiva desse autor é o resgate desta um propósito social de libertação, de atingir real-
cultura de um lado e de outro mostrar o processo mente a população a qual se destinam (no caso,
de hibridização. as classes populares), muitas vezes, também, ao
Afinal, porque “a reza do terço”? A reza está cuidar quase que exclusivamente do conteúdo da
ligada a essa tradição de cultura popular. A reza linguagem e do meio a ser utilizado, deixam de
da Ave Maria, sendo rádio de Bogotá, sendo da investigar os códigos de percepção e reconheci-
cultura formal religiosa, está enraizada na cultu- mento, os dispositivos de enunciação do popular
ra popular, então, surge o diálogo. E, por que é que se materializam e se expressam sob a forma
o único programa apontado que deixa falar? Por de memória popular e do imaginário de massa.
que é um programa que sai de uma fonte formal, Feitas essas incursões em torno de modelos
de uma fonte cultural/formal – que está numa de comunicação, de forma sucinta, os participan-
tradição religiosa – mas como tem ecos com a tes da oficina, julgaram sua inadequação e imper-
cultura popular, isto é, como está internalizada tinência à concepção de educação e comunica-
na cultura popular, então a realização do diálogo ção, no escopo da Estratégia de Saúde da Família

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

(ESF), pois, que esse, devido suas finalidades de- prática educativa, considere as diferentes opini-
ve se orientar numa abordagem dialógica, confor- ões, os vários jeitos de ver as coisas e perce-
me pensamento de Bakhtin2. Para tanto elegemos ba que as experiências são heterogêneas porque
como um dos conceitos que melhor se adequa à são vivenciadas de modos diferentes, por diferen-
compreensão do fenômeno comunicativo no cam- tes sujeitos e em momentos históricos1.
po da educação em saúde, o de dialogismo.
Isto significa que o processo discursivo
ocorre na medida em que os agentes implicados
no ato de comunicação conseguem transcender
Referências:
a simples compreensão linguística. A base so-
1. Associação Nacional da Rede Unida. VI Congresso Nacio-
bre a qual se efetiva o processo de comunicação
nal da Rede Unida, I Mostra de Produção de Saúde da Famí-
possui um lastro histórico, do qual, o código (a lia de Minas Gerais, III Fórum Nacional de redes em Saúde,
linguagem) é resultante. Portanto, a participação Reunião de Pólos de Educação Permanente em Saúde. Belo
do “destinatário” na construção do significado da Horizonte; 2005.
mensagem é decisiva. Sem ela, o processo co- 2. Bakhtin M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6ª. Edi-
municativo não se efetiva. ção. São Paulo: Hucitec; 1992.
3. Donato AF. Traçando redes de comunicação. [Tese de
Doutorado]. Faculdade de Saúde Pública. Universidade de
Considerações finais São Paulo; 2000.

A vida é por natureza, dialógica, como diz 4. Garcia CN. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp; 2014.
5. Martin-Barbero J. De los médios a las mediaciones. co-
Bakhtin2. Assim, viver significa dialogar no e com
municación, cultura y hegemonia. Barcelona: Gustavo Gili;
o mundo. E isto o homem faz com toda a sua in-
1991.
teireza, com toda sua vida. 6. Sousa MW. Recepção e comunicação: a busca do sujei-
É fundamental que os profissionais de saú- to. In Sousa MW. (Organizador). Sujeito, o lado oculto do
de e, em especial, as equipes da ESF, em sua receptor. São Paulo: Brasiliense/ECA/USP; 1995.

|29
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

A saúde como produto tecnológico de consumo e comunicação


anti-SUS na televisão: o caso do Jornal Nacional
Health as a technological product of consumption and communication anti-SUS on television: the case
of Jornal Nacional

Eduardo CaronI

Resumo Abstract

Este artigo apresenta resultados de pesquisa sobre a saúde em This paper examines results of research on the coverage of Heal-
matérias jornalísticas veiculadas pelo Jornal Nacional da Rede Glo- th themes presented in national TV news broadcasted by Jornal
bo de Televisão durante o ano de 2012. Ao longo de 12 meses Nacional da Rede Globo de Televisão – during the year of 2012.
matérias sobre saúde foram levadas ao ar em metade de sua pro- Along twelve months, TV news about health sum up half of the to-
gramação. As categorias temáticas Hospital, Ciência & Tecnologia, tal length of the program. The following categories constitute the
Mercado, Hábitos e Comportamento, Questões Epidemiológicas, main subjects reported: Hospital, Science and Technology, Market,
Corporação Médica predominam na pauta do jornal. Discute-se a Behavior, Epidemiology, Medical Corporation. We discuss the tech-
incorporação tecnológica na produção de saúde tendo o hospital nological incorporation in health, where the Hospital is the main
como recurso assistencial e sua relação com o mercado de pro- care resource linked to the market of health services and products.
dutos e serviços de saúde. As representações do Sistema Único Representations of the SUS – Sistema Único de Saúde – are dis-
de Saúde são discutidas em matérias sobre o hospital público, cussed based on news reports about the public hospital, the pri-
a atenção básica, e em reportagens internacionais, quando com- mary care public services, and on international news that compare
parado ao sistema público de saúde britânico, o National Health SUS and NHS - National Health System.
System - NHS.
Key words: Medicalization; Media; Public health system.
Palavras-chave: Medicalização; Mídia; Sistema publico de saúde.I

Eduardo Caron (eduardo.caron@usp.br) é cineasta pela Escola de Comunicação e


I

Artes (ECAS) e psicólogo pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo


(IPUSP), Mestre e Doutorando em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e Coordenador de formações profissionais
em Educação em Saúde e Gestão Autônoma de Medicação e programas escolares de
prevenção ao abuso de álcool de drogas, ligados ao SUS.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

A pesquisa Jornal Nacional ao longo dos 12 meses de 2012,


Aprofunda-se na contemporaneidade bra- totalizando 7 horas e 15 minutos de vídeo, (dis-
sileira uma torção do direito à saúde, operada ponibilizadas no site desta emissoraII) e acessa-
no contexto da preponderância do mercado e das através da palavra-chave “saúde”. Estas in-
da saúde como bem de consumo1, das políticas serções foram apresentadas em 159 edições do
de Estado que negligenciam e desmontam ser- programa, mostrando que o tema saúde aparece
viços do Sistema Único de Saúde (SUS)8, e da em metade de todas as edições ao longo de um
produção de práticas discursivas que qualificam ano, representando 20 a 50 minutos mensais de
a saúde como artefato tecnológico2. Parte deste
programação e tema salientado como de abertu-
processo constitui a produção de regimes de ver-
ra do programa 9 edições.
dade sobre a saúde presente na mídia televisiva.
Essa análise envolveu a seleção dos temas
No cotidiano dos brasileiros nenhum outro meio
centrais dessas reportagens, segundo 6 catego-
de comunicação é mais presente ou influente do
rias temáticas definidas que somaram 87% da
que a televisão, a principal referência cultural no
amostra: (1) a categoria “hospital” inclui todas
país6. Entre 2012 e 2015, apenas o Jornal Nacio-
as matérias que têm por tema central a assis-
nal, programa jornalístico noturno da TV Globo,
tência, estrutura, recursos e procedimentos hos-
teve uma audiência média de 22 a 25 milhões de
telespectadores diários nas 14 principais regiões pitalares; a categoria (2) “ciência e tecnologia”,
metropolitanas do país7. que inclui as reportagens sobre pesquisas e
Analisamos imagens e discursos verbais
de 246 inserções sobre saúde apresentadas no Site: http://g1.globo.com/jornal-nacional/videos
II

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

desenvolvimento de novas tecnologias, realiza- Ao dar visibilidade e significado a objetos atra-


das em laboratórios ou instalações hospitalares; vés dos dispositivos, simultaneamente subjetivi-
a categoria (3) “mercado”, que agrupa as maté- dades se constituem4.
rias que tratam das questões do consumidor, re- No caso do Jornal Nacional, metade da sua
gulamentação da circulação de produtos e planos programação em saúde se ocupa da incorpora-
de serviços de assistência hospitalar e médica; ção tecnológica das ciências biomédicas na pro-
a categoria (4) “hábitos e comportamento” reúne dução de saúde, tendo o hospital como recurso
as matérias sobre alimentação, sedentarismo, ta- assistencial. Das matérias classificadas como
bagismo e drogadição; a categoria (5) “questões “ciência & tecnologia em saúde”, 82% reportam
epidemiológicas” agrupa matérias cujo foco é a novos produtos a caminho de serem disponibiliza-
prevenção e o enfrentamento público de doenças dos no mercado, sendo 43% sobre pesquisas pa-
infecciosas, ou agravos e doenças abordadas do ra a produção de fármacos, 39% de reportagens
ponto de vista populacional; (6) a categoria “cor- sobre procedimentos hospitalares, cirúrgicos ou
poração médica” agrupa reportagens que tratam biotecnológicos, materiais e equipamentos. Por
de questões sobre a formação e o exercício da sua vez, o tema da “assistência hospitalar” está
profissão médica, resoluções e regras deontoló- implicado secundariamente em outras 13 repor-
gicas e decisões do Estado em que a corporação tagens sobre pesquisas e avanços tecnológicos
médica toma parte. e em 13 matérias sobre regulação de mercado,
planos de saúde e proteção ao consumidor. Des-
Tabela 1 – Categorias Presentes na Matérias so- sa forma os eixos temáticos “hospital”, “ciência
bre Saúde Veiculadas & tecnologia” e “mercado” – que constituem 59%
No Jornal Nacional (TV Globo), em 2012 das matérias sobre saúde –, se superpõem or-
denando os sentidos de produção e acesso aos
Categorias Presença nas Matérias de
Saúde do Jornal Nacional bens de saúde. Inseparável dos processos de
“hospital” 28% reificação, essa ênfase no dispositivo médico-
“ciência e tecnologia” 20% -centrado gera a mercantilização da saúde e uma
“mercado” 11% progressiva alienação, situação em que, para ad-
“hábitos e 12% quirir saúde, o sujeito necessita consumir proce-
comportamento”
dimentos e produtos.
“questões 10%
epidemiológicas”
Completando essa visão geral dos principais
“corporação médica” 6% temas sobre saúde abordados no Jornal Nacional,
Total 87% 28% das matérias reportam 3 categorias temáti-
cas afins: “questões epidemiológicas “hábitos e
comportamento” (12%) e corporação médica (6%).
Resultados e discussão Nestas reportagens o Estado tem grande partici-
A composição temática encontrada nas pação: quando se trata de surtos de doenças in-
matérias “desenha” uma determinada forma de fecciosas, campanhas de imunização sazonais e
ver e definir a saúde, que se caracteriza pelo dis- vacinação infantil, por exemplo, os postos de saú-
positivo médico-centrado9. Os dispositivos são de pública e o Ministério da Saúde respondem pe-
invisíveis exatamente porque é através deles la informação da matéria; já a quantidade de sal
que os objetos do mundo são vistos e definidos. no pão feito na padaria é uma questão da Agência

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); o impac- como decisiva para a salvação das pessoas com
to do uso de tabaco nas contas do SUS, as ações a máxima urgência e o hospital se mostra o recur-
governamentais para o controle da obesidade nas so para quem deseja se proteger da morte:
escolas e a regulamentação da cirurgia bariátri-
“Artur hoje com 4 meses esteve entre a vida
ca para menores de idade ou o financiamento de
e a morte (...) de repente o fígado do bebê
ações contra o uso de crack são outros exemplos
parou de funcionar: Artur estava com hepa-
de temas noticiados que marcam a saúde como
tite fulminante e precisava com urgência de
questão política na vida social.
Esses são apenas alguns exemplos de uma um transplante. A doença é rara e extrema-
biopolítica5 que subjaz todas as reportagens. A mente grave, e a perspectiva dele seria muito
presença da corporação médica nas matérias jor- sombria, praticamente não teria perspectiva
nalísticas sobre saúde evidencia sua força políti- de sobrevida. Com apenas 2 meses Artur en-
ca. Por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal trou na fila para enfrentar um desafio: ser o
Federal sobre o aborto de fetos anaencéfalos ou mais novo paciente do Brasil a passar por um
a legislação sobre a ingestão de álcool antes de transplante de fígado” (Jornal Nacional, 3 de
dirigir são temas apresentados na televisão co- Julho de 2012).
mo de âmbito da competência médica. Assim, a
Entre estas 68 reportagens onde a assis-
corporação médica goza de grande prestígio na
tência hospitalar é o objeto central, destaca-se
mídia. Mesmo quando não é tema central, socie-
um conjunto de 23 matérias que apontam seus
dades médicas de especialidades são chamadas
holofotes sobre internações e tratamentos de ce-
a prestar depoimentos sobre diversos temas de
lebridades e pessoas ilustres, nas quais o hos-
saúde. No total, a corporação médica apareceu
pital de alto padrão tecnológico é caracterizado
em 11,5% da programação do Jornal Nacional em
como um ícone máximo de saúde. Nestas repor-
2012. Essa sinergia entre corporação médica e
mídia aparece também nas matérias que criticam tagens, o foco é o procedimento médico, minucio-
os programas governamentais para a ampliação samente explicado com atributos de cientificida-
do ensino de medicina no país ou de incentivo de, eficácia, precisão e rapidez: 
dado a médicos para trabalharem na Atenção Bá- “Reinaldo Gianecchini está no hospital desde
sica em regiões carentes desses profissionais. ontem e fez o Petscan: um exame que avalia
as condições dos órgãos e tecidos do pacien-
- o hospital:
te. O Petscan mostrou que a doença respon-
Nas matérias do Jornal Nacional não há ou-
deu ao tratamento, ou seja, ele tem condições
tra referência assistencial que não o hospital. Ou-
tros equipamentos aparecem associados à imu- de saúde pra fazer o autotransplante de célu-
nização e à prevenção, mas nunca à assistência las-tronco. O autotransplante deve recuperar
médica. Além das 68 matérias em que é o as- o sistema imunológico... Os médicos retiraram
sunto central, o hospital aparece no total de 104 células saudáveis da medula óssea que, de-
inserções que somam 2 horas e 55 minutos ou pois da quimioterapia, serão reinjetadas no
40% do tempo anual destinado à saúde no Jornal organismo dele, com isso a medula óssea do-
Nacional.  As doenças apresentadas são amea- ente será reconstituída com células normais”
çadoras e a intervenção hospitalar é apontada (Jornal Nacional, 5 de janeiro de 2012).

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

As reportagens exibem imagens gráficas e espera em hospitais conveniados a planos priva-


exames que enxergam o invisível através de so- dos de saúde e 3 caracterizam o hospital público
fisticada tecnologia e atesta a propriedade de um como um lugar repulsivo e arriscado.
saber que lhe confere poder. No hospital, sena- Durante o ano, 12 matérias do Jornal Nacio-
dores ou mesmo o presidente da República es- nal reportaram o sucesso de intervenções hospi-
tão às ordens deste saber médico altamente es- talares e a expertise da equipe médica de hospi-
pecializado, como vemos em reportagem de 28 tais públicos ou conveniados ao SUS; porém este
de março sobre o ex-presidente Lula e em 16 fato é ocultado e omite-se a identificação com
de abril sobre o presidente do Senado Federal e sistema público de saúde. Inversamente, as 30
também ex-presidente da República José Sarney. matérias que nomeiam explicitamente o hospital
Como ícone de eficácia em prol da salvação de público, abordam a falta de estrutura, a falta de
vidas, o hospital goza de apoio logístico da mais médicos, de vagas ou se tem como alvo crimes,
alta prioridade a serviço dessa urgência. negligência, falhas ou greves, associando-se ex-
plicitamente o SUS a esses hospitais.
“O jato com uma equipe médica e uma mini
Enquanto nas matérias que evocam o hospi-
UTI móvel decolou com destino a São Paulo
tal ideal, bebês ou pessoas ricas e famosas são
às duas da tarde e chegou ao aeroporto de
mostrados como pacientes, no hospital público
Congonhas 1 hora e meia depois. Como o es-
foca-se preferencialmente os adultos pobres. É
tado clínico de Pedro Leonardo é delicado os
estarrecedor o contraste social estampado na te-
médicos tomaram todas as precauções” (Jor-
la: o SUS reportado nestas notícias realça as de-
nal Nacional, 26 de abril de 2012).
sigualdades e caracteriza o que é público como
Tais atributos, somados a imagens luxuo- pobre e carente. As reportagens do Jornal Nacio-
sas das instalações de hospitais privados, aonde nal estudadas e que focam a carência de estru-
artistas famosos e pessoas ilustres são pacien- tura representam o hospital público como equipa-
tes, compõem um ícone altamente propagandea- mento deficiente, superlotado e sujo, utilizando
do como objeto de consumo. Por fim, embora o os seguintes termos: “morte de recém-nascidos”,
hospital seja palco de extrema tensão, o final de “situação dramática”, “degradante”, “uma tragé-
toda história é sempre feliz nessas matérias. dia na saúde pública”, “cena absurda”, “totalmen-
te desabastecido”, “restrição no atendimento”,
“Feliz desse jeito nem parece que Artur, hoje
“omissão de socorro”, “falta de orçamento”, “ele-
com 4 meses, esteve entre a vida e a morte
vadores quebrados”, “UTI improvisada”, “equipa-
... Dois meses depois Artur ganhou peso, se
mentos encostados sem uso, mofo, infiltração,
alimenta normalmente e esbanja saúde” (Jor-
ferrugem e moscas”, “o mal cheiro torna o ar pe-
nal Nacional, 3 de julho de 2012).
sado”, “ficar jogado igual bicho”, entre outros.
As manchetes de abertura das edições de- A reportagem sobre o cancelamento de pro-
senham diariamente o perfil das representações cedimentos e o sofrimento causado aos usuários
do hospital nesse programa jornalístico. O tema devido a elevadores quebrados no Hospital das
da saúde foi matéria de abertura de 9 edições Clínicas de uma grande metrópole, de 11 de ou-
durante o ano, das quais 5 são sobre assistência tubro, é emblemática da dificuldade de acesso
hospitalar, sendo que 1 reporta um caso de sal- aos bens de saúde. Há falta de vagas, o sistema
vação de um recém-nascido, 1 trata de filas de de saúde é deficitário, de modo que o usuário

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

sofre pelo fato de estar doente e sofre o desam- os enfermeiros aqui da triagem vão pelo me-
paro de não poder acessar os serviços hospita- nos olhar o soro, verificar, dar suporte, mas
lares. A falta de vagas impõe ao usuário do SUS eles não vêm aqui não” (Jornal Nacional, 31
uma espera irredutível. A morte está presente na de maio de 2012).
imagem desta espera: ou alguém não será aten-
dido e sua vida ficará em risco, ou alguém precisa - a Atenção Básica
ir a óbito para liberar uma vaga numa Unidade Fortemente associadas a postos de saúde,
de Terapia Intensiva (UTI). Em 31 de março, a re- campanhas de vacinação, inspeção domiciliar por
portagem apresenta o acompanhante prestando agentes contra a dengue, as matérias sobre imu-
depoimento em frente ao hospital: “tem que es- nização e prevenção compõem a categoria mais
perar alguém, né, falecer, pra ver se consegue frequente de representações positivas sobre a
essa vaga pra ele”. Saúde Pública, agrupadas na categoria “epide-
Nas reportagens do Jornal Nacional a “fal- miologia”, que reúne 25% das inserções que ci-
ta de médicos” é um problema crucial do SUS, tam explicitamente os serviços públicos de saú-
apontada como a causa da mortalidade de re- de. Além das ações preventivas e de imunização,
cém-nascidos, em matéria de 2 de julho, e de esta categoria também inclui matérias sobre o
intercorrências por demora no atendimento como enfrentamento de surtos, o monitoramento de
a amputação da perna de uma criança, em 24 de casos e a divulgação de dados epidemiológicos,
outubro. A falta de médicos é associada à falta sendo que em 2012 as doenças e agravos referi-
de recursos do SUS. Em 2 de julho, a reportagem dos nas reportagens sobre Saúde Pública foram:
exibe autoridades que afirmam que a dificuldade gripe, câncer, drogas, tabagismo, obesidade,
para a contratação de médicos é de ordem finan- diarreia, hepatite e sintomas respiratórios. Vale
ceira. Conflitos salariais entre médicos e governo destacar que as matérias sobre tabagismo e obe-
aparecem nas greves de médicos, exibida em 14 sidade tratam do alto custo dos tratamentos e
de março e em 28 de maio, exibidas como causa cuidados dispensados pelo SUS, inclusive com
de transtornos em hospitais públicos. métodos e programas para mudanças de hábi-
Neste contexto, um dos aspectos da deno- tos, ao mesmo tempo em que se critica o peso
minada “carência de infraestrutura do hospital excessivo destas ações no orçamento da Saúde
público” é a ênfase na condição desumanizada a Pública.
qual o usuário é submetido. O SUS é assim repre- Ao longo de ano de 2012, 13 das 21 inser-
sentado como promotor da desumanização. ções sobre a Atenção Básica reportam campa-
nhas de imunização contra a gripe, a pólio, pela
“Nestas imagens feitas com celular, pacien-
atualização das cadernetas de vacinação infantil
tes aparecem no corredor do Hospital Esta-
e sobre recomendações pontuais contra o saram-
dual Loyola e ali mesmo no corredor os pa-
po e a pneumonia. Observamos nestas matérias
cientes fazem as sessões de quimioterapia”
(Jornal Nacional, 31 de maio de 2012). o semblante sorridente dos apresentadores que
anunciam a campanha, a presença de crianças
Matéria que exibe paciente prestando bonitas e felizes, o depoimento técnico que con-
depoimento: fere confiabilidade ao procedimento, o depoimen-
“A gente tem que ficar subindo e descendo to emocional das mães, a exibição de ambientes
chamando a enfermeira, a gente pensa que limpos e confortáveis nas unidades básicas de

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

saúde, e o chamado positivo do repórter para a noticiado? Durante todo o ano, apenas uma úni-
ida a esses postos de saúde. ca reportagem associa explicitamente ao SUS,
Essa representação positiva da vacina apa- os profissionais da Atenção Básica e o “posto
rece de forma dramática na busca espontânea de saúde”, em uma matéria do dia 31 de maio
da população por vacina contra a gripe frente ao sobre a ação educativa de promoção da saúde,
surto ocorrido na região sul do país, em matéria em nas ações do Dia Mundial sem Tabaco. Esse
veiculada em 10 e 17 de julho. Segundo a ma- ocultamento demonstra o desinteresse da mídia
téria, essa pressão fez com que os secretários pela Atenção Básica, tal como se apresenta na
de saúde municipais reivindicassem do governo reportagem de 1º de março sobre o índice de De-
federal centenas de milhares de doses de vacina sempenho do SUS: o foco está na avaliação do
contra a gripe. Já técnicos e gestores do Ministé- provimento de serviços hospitalares, destacando
rio da Saúde declararam ineficaz a vacinação em os seus problemas, e ignora-se a avaliação da
massa durante o surto; a argumentação técnica Atenção Básica.
amplamente divulgada na televisão parece que Outra face das representações da Atenção
não muda a configuração simbólica da população Básica se encontra associada a territórios des-
da vacina como procedimento de proteção. Essa providos de boa assistência à saúde, como al-
força simbólica é tal que levou gestores de saúde deias indígenas, municípios carentes do Norte e
proceder à imunização dos usuários independen- Nordeste do país e periferias urbanas sem sane-
temente da ineficácia técnica da ação. Assim, é amento básico, desenhando um tipo de represen-
sobre essa base simbólica que se assentam as tação da Atenção Básica afeito à imagem de um
representações positivas da Atenção Básica. SUS carente e para pobres. Essa caracterização
O SUS tende a ficar na sombra não somente adquire conotações dramáticas em reportagens
nos temas da alta complexidade hospitalar e tec- nas quais a Atenção Básica está associada à má
nologia de ponta: nas 13 matérias que noticiam gestão, violência e ilegalidade.
as campanhas de imunização não há referência Em 26 de abril, a matéria do Jornal Nacio-
explícita ao SUS. Não se associa às cenas os nal denuncia o desperdício de quantidades de re-
equipamentos e equipes da Atenção Básica ao médios vencidos nos equipamentos de saúde de
SUS. Quando se trata de vacina as matérias se Várzea Grande, no Mato Grosso, e ataca o SUS,
referem exclusivamente a “postos de saúde”. desqualificando-o com a exibição de depoimen-
Se as matérias sobre imunização fazem tos de usuários.
menção aos “postos de saúde”, a invisibilidade Em 5 de setembro, a reportagem noticia o
do sistema público de saúde é ainda maior nas homicídio de uma usuária atingida por disparos
ações de prevenção e promoção da saúde. Nas de um policial que perseguia um fugitivo dentro
reportagens sobre a campanha nacional contra de uma unidade básica de saúde, no Rio de Ja-
a obesidade infantil, exibida em 5 de março, e neiro, reforçando a representação da Atenção Bá-
sobre a prevenção da hepatite, exibida em 28 sica como provimento de serviços de saúde onde
de julho, vemos profissionais de saúde atuando há maior vulnerabilidade social. Nesse sentido, a
em ações preventivas em escolas, mas omite-se Atenção Básica é o SUS mais pobre, onde qual-
quem são eles. De onde vieram esses profissio- quer policial entra e dispara: não é um lugar res-
nais de saúde que estiveram nas 22 mil esco- peitado. O fato midiático diz que num equipamen-
las examinando 5 milhões de alunos conforme to desses a vida das pessoas tem menor valor.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

O próprio jornal é invasivo: aborda o equipamento e mostram a precariedade dos hospitais-escola


atrás da notícia policial sem reverência aos usu- onde os alunos fazem residência.
ários do lugar, sem atentar para a desvalorização Em 15 de dezembro, a Unidade de Saúde
da vida das pessoas que usam aquele espaço. da Família de Tarauacá, no Acre é apresentada
É notório o contraste com as matérias sobre in- em imagens da faixa rasgada na fachada de su-
ternações de celebridades em hospitais de luxo, as instalações modestas. Com uma trilha sono-
quando todo cuidado é tomado para proteger a ra dramática, a reportagem mostra médicos tra-
imagem pública da instituição e a privacidade balhando ilegalmente, fazendo a narrativa com
dos clientes. uso de jargões policiais: “Nessa blitz recente,
Essa representação que desqualifica o um flagrante” – representando a Atenção Bási-
usuário pobre dos serviços públicos também ca como palco de “uma situação criminosa que
pode ser vista na reportagem de 20 de janeiro vem ocorrendo”. A “blitz” reportada foi realizada
sobre o surto de diarreia em aldeias indígenas. por representantes do Conselho Regional de Me-
O caso é apresentado com uma gravidade pre- dicina (CRM), à procura de profissionais sem re-
ocupante, pois as causas são desconhecidas. gistro neste conselho. Segundo a reportagem, a
O depoimento médico expõe que os indígenas contratação ilegal de médicos sem qualificação
são mais vulneráveis aos sofrimentos e mortes profissional, isto é, sem certificação válida e sem
porque “eles casam entre eles”. Essa interpre- CRM, é uma prática corrente no SUS em lugares
tação oferece uma explicação que tranquiliza a carentes de médicos.
consciência dos “não-índios” diante do desco-
Em 27 de dezembro, a reportagem sobre o
nhecimento, ao mesmo tempo em que reforça
programa de contratação de jovens médicos pe-
o senso comum que desqualifica o usuário do
lo governo federal mostra uma aspiração da cor-
SUS, neste caso, indígenas supostamente “en-
poração médica para atuar em equipamentos de
fraquecidos” por incesto.
maior complexidade, e critica as piores condições
- a corporação médica e o SUS de trabalho nos equipamentos básicos, principal-
Apoiada sobre esse discurso que valoriza mente nas regiões mais carentes, prioritárias pa-
a cientificidade biomédica, a mercantilização da ra o programa governamental de contratação de
saúde, a assistência hospitalar e desvaloriza a médicos para o SUS.
Atenção Básica, a corporação médica entra em No mesmo mês, justificando o discurso cor-
conflito com o SUS, critica o provimento público porativo crítico ao SUS, o Jornal Nacional apre-
de assistência médica e a qualificação do profis- senta uma série de reportagens que retratam um
sional médico contratado por esse sistema para SUS mal gerido, com escassez de médicos e de
atuar nas áreas mais pobres. Em matéria de 10, recursos materiais; em 7 de dezembro denuncia
11 e 12 de dezembro, representantes dos con- a precariedade do Serviço de Atendimento Móvel
selhos médicos e gestores de conceituadas es- de Urgência (SAMU), em São Luís do Maranhão.
colas de medicina são apresentados prestando Em 3, 4, 6 e 8 de dezembro exibe filas extensas
depoimentos em reportagens que denunciam a de pacientes  doentes dormindo na calçada em
baixa qualidade do ensino das novas faculdades frente ao Instituto Nacional de Traumatologia e
inauguradas pelo programa do Ministério da Edu- Ortopedia, no Rio de Janeiro, à espera de marca-
cação para a ampliação do ensino de Medicina, ção de consultas.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Para concluir essa composição de reporta- dia de aula” (Jornal Nacional, 13 de dezem-
gens que depreciam o provimento público de as- bro de 2012)
sistência médica, em 13 de dezembro assistimos Essa justaposição cria uma ironia em rela-
uma  reportagem de 4 minutos e meio sobre a ção ao SUS pela grandiosidade com que o NHS é
excelência do NHS: representado. Em 1 de Setembro o jornal repor-
“Todos os médicos neste país quando deixam ta a internacionalização do NHS exibindo instala-
a universidade trabalham pro  NHS, sigla in- ções hospitalares na glamorosa Dubai frequen-
glesa que define o  Sistema Nacional Hospita- tada por milionários de todo o mundo e destaca
lar, o equivalente ao nosso SUS, só que o NHS o alto valor de mercado dos seus serviços para
é considerado o melhor sistema de saúde pú- estrangeiros. É uma forma negativa de represen-
blica do mundo, permite que os profissionais tar um SUS carente e pobre.
continuem estudando, se aprimorando, paga “Saúde tipo exportação. O NHS, sistema na-
bem, e o mais importante: é o mesmo salário cional de saúde britânico, equivalente ao
pra quem  trabalha aqui na capital Londres, SUS, agora não tem mais fronteiras” (...) “O
numa cidade de porte médio ou num peque- NHS, que aqui na Grã-Bretanha é gratuito pa-
no município isolado, assim há bons médicos ra os cidadãos, cobra, e cobra caro, quando
espalhados por todo o país” (Jornal Nacional, o paciente vem de fora” (Jornal Nacional, 13
13 de dezembro de 2012). de dezembro de 2012).

Por oposição ao National Health System Embora o SUS e o NHS sejam sistemas de
(NHS), sistema público de saúde do Reino Unido, saúde públicos de acesso universal, se situam
a reportagem infere que no SUS falta aprimora- em patamares totalmente distintos: o SUS cobre
mento profissional e falta de médicos porque es- 45% dos gastos totais em saúde do país, enquan-
ses profissionais são mal remunerados. Esta re- to o NHS cobre 83%10. Nessa medida o SUS está
portagem sobre o NHS valoriza a formação médi- mais próximo do perfil norte-americano cujo gas-
ca voltada para a alta complexidade e a pesquisa to público em saúde é da ordem de 47%, enquan-
to um sistema misto que coexiste com grande
biomédica. Essa composição de temas apresen-
participação de planos privados de saúde, que no
ta uma construção polarizada em que a Atenção
Brasil, ultrapassa a casa dos 50 milhões de clien-
Básica se situa num campo de baixa qualificação
tes. O contraste exibido na televisão entre as ima-
médica associada à baixa complexidade assis-
gens de hospitais privados de luxo e aquelas de
tencial, em oposição ao NHS que representa alta
hospitais públicos depreciados por políticas ou
qualificação profissional para a atuação em equi-
por gestão predatória, manipuladas pelo discurso
pamentos de alta complexidade hospitalar.
midiático, expressa uma desmesurada desigual-
“O laboratório é a sala de aula. Nenhum alu- dade de acesso evidenciada pelas diferenças de
no se forma em medicina na Grã-Bretanha oferta para o usuário exclusivo do SUS e aquele
sem fazer muita, muita pesquisa. Por isso que tem amplo acesso ao mercado privado3:
todas as universidades do país investem pe- Os gastos privados no Brasil, 55% do gasto
sado em tecnologia de ponta” (...)“faculda- total, são em grande medida destinados à assis-
des e hospitais trabalham integrados. Aqui tência médico-hospitalar consumida por 25% da
o aluno pesquisa e pratica desde o primeiro população;

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Os gastos públicos do SUS, 45% do total, biotecnológica e da bioeconomia, integrando la-


incluem todos os custos da saúde pública para boratório, hospital e mercado de capitais11.
além dos custos assistenciais; A desvalorização do SUS e da Atenção Bá-
O público usuário do provimento público sica exibida ostensivamente na mídia, tomando-
de assistência médica é da ordem de 75% da -se o exemplo do Jornal Nacional, situa-se neste
população. contexto complexo cujas variáveis estão profun-
Mas as reportagens que comparam o SUS damente imbricadas.
e o NHS não apontam as desigualdades sociais O próprio Estado estabelece políticas anti-
no acesso à saúde no Brasil. Para caracterizar -SUS , na medida em que subfinancia o sistema,
12

o NHS em contraste com o SUS, as reportagens incrementa o mercado e destitui direitos sociais.
se apoiam sobre quatro fundamentos: o conhe- Neste contexto de expansão do biopoder, os di-
cimento científico biomédico; o modelo hospita- reitos humanos de segunda geração progressiva-
lar como paradigma de assistência a saúde; o mente vêm perdendo sustentação nas socieda-
mercado de produtos tecnológicos de saúde e des contemporâneas. Paradoxalmente, à medida
de serviços médicos; e a centralidade da corpo- que racionalidade científica amplia seu poder de
ração médica. intervenção sobre os corpos e a vida, a própria
Estes fundamentos são inseparáveis. A modernidade põe em crise os seus fundamentos
biomedicina produz as tecnologias de interven- humanistas e universalistas.
ção, ordena o modelo tecnoassistencial hospita-
lar informado por essas tecnologias e promove
a comercialização de seus produtos. As repor-
tagens enunciam que, para alcançar a qualida-
de e, por conseguinte, o valor de mercado que Referências

tem os serviços do NHS, o SUS deve investir no 1. Caron E, Lefevre F, Lefevre AMC. Afinal, somos ou não
somos uma sociedade de consumo? Consequências para a
modelo hospitalar, em tecnologia de ponta e no
saúde. Rev Cien Saude Colet. 2015; 20(1):145-153.
salário do profissional médico. Ambos os siste-
2. Caron E, Lefevre F, Ianni AMZ. A saúde como ciência
mas de saúde, embora estatais, operam num e o corpo biológico como artefato: o caso do Jornal Na-
mercado que desponta como a mais promissora cional. Rev Cien Saude Colet; 2016. [acesso em: 5 ago.
área de negócios do planeta. 2017].  Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.
com.br/artigos/a-saude-como-ciencia-e-o-corpo-biologico-
-como-artefato-o-caso-do-jornal-nacional/15743.
Considerações finais 3. Caron E. A Saúde do Jornal Nacional [dissertação]. Fa-
Novos produtos e tecnologias são anuncia- culdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo.São
dos na mídia, prescritos pelos médicos e oferta- Paulo; 2014. [acesso em: 5 ago. 2017]. Disponível em:

dos no mercado, ampliando demandas de con- http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6135/tde-


28012015-072123/pt-br.php.
sumo. A incorporação de tecnologias amplia o
4. Deleuze G. ¿Que es un dispositivo? In: Deleuze G. Michel
espectro de profissionais na área da saúde, di-
Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa; 1990. p.155-161.
versifica a demanda de conhecimentos e eleva 5. Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal; 2012.
os custos dos serviços. O biopoder, ou seja, o 6. Instituto Brasileiro de Geografica e Estatística (IBGE).
poder dos discursos da área médico-biológica, PNAD – Pesquisa nacional por amostra de domicílios. Rio
tem alargado fronteiras nos campos da pesquisa de Janeiro; 2013; 33:1-133. [acesso em: 20 ago 2015].

|39
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/ 10. Organização Mundial de Saúde (OMS). World Health
periodicos/59/pnad_2013_v33_br.pdf. Statistics. Geneva; 2013. [acesso em: 20 nov 2015]. Dis-
7. Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE). ponível em: http://apps.who.int/nha/database/ViewData/
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|40
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Novos discursos e modelagens do envelhecimento


contemporâneo
New discourses and models of contemporary aging

Monique Borba CerqueiraI

Resumo Abstract

Assiste-se hoje a mudanças importantes no setor saúde, anco- Important changes are currently being witnessed in the healthca-
radas por transformações sem precedentes no âmbito das tec- re sector, anchored by unprecedented transformations in technos-
nociências. Os discursos de longevidade, bem-estar e qualidade ciences. The discourses on longevity, well-being, and quality of li-
de vida passaram a ser estreitamente conectados a uma gramá- fe are now closely connected to a grammar related to life, body,
tica relacionada à vida, ao corpo e à saúde que extrapolam as and health, extending beyond the demands of population control
exigências do controle de populações, dando lugar a poderosas and giving rise to powerful governance technologies. The body, by
tecnologias de governo. O corpo, ao despertar múltiplas inquieta- arousing multiple concerns both among the subjects that produce
ções, tanto entre os próprios sujeitos produtores de identidade, identity, resistance and suffering and among researchers who have
resistências e sofrimentos, quanto entre pesquisadores que têm explored new research configurations, emerges as an object of uni-
explorado exaustivamente novas configurações de pesquisa, sur- versal human aspiration, inscribed in all segments of society. The
ge como objeto de aspiração humana universal, inscrito em todos aging body finds its greatest preceptor in health. Health is the ins-
os segmentos da sociedade. O corpo que envelhece encontra na titution that most intercedes in the processes of human aging —
saúde a sua maior preceptora. A saúde é a instituição que mais health today “teaches” us to grow old based on a pedagogization
intercede nos processos do envelhecimento humano — a saúde of old age, a practice characterized by mechanisms of prudence
hoje ensina, constrange, monitora o envelhecer a partir de uma and smoothness.
lógica de pedagogização da velhice, prática caracterizada por me- This text seeks to show innovations, conflicts and resistances, ac-
canismos de prudência e lisura. cording to sociocultural topographies that reveal the ways of aging
Esse texto procura mostrar contextos, novidades, conflitos e resis- in contemporary times in a dialogue with model social areas such
tências, segundo topografias socioculturais que revelam modos de as Healthcare, Education, and Communication.
envelhecer na contemporaneidade em diálogo com áreas sociais
modelares como Saúde, Educação e Comunicação. Keywords: Aging; Healthy life; Contemporany ways of aging.

Palavras-Chave: Envelhecimento; Vida saudável; Modos de enve-


lhecer contemporâneos.

I
Monique Borba Cerqueira (moniqueb@terra.com.br) é cientista social pela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Sociologia pela
Universidade de Campinas (UNICAMP), Doutora em Políticas Sociais e Movi-
mentos Sociais e Pós-Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Pesquisadora Científica do Núcleo de
Práticas de Saúde do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde
de São Paulo (SES-SP).

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução Predomina a visão biológica do envelhecer. A ve-


lhice passa a ser objeto de inúmeras práticas
vinculadas ao discurso médico, desde o enve-
lhecimento saudável, até a qualidade de vida e
a terceira idade.
Atualmente, o aumento sem precedente da
expectativa de vida pode ser considerado, simul-
taneamente, o maior avanço da história recente
da humanidade e também motivo de alerta aos
governos de todo mundo. Foi dessa forma que
Cena da animação “Up - Altas Aventuras”3, em que o personagem
o processo de envelhecimento da população tor-
Carl Fredricksen, de 78 anos, está sobrevoando o espaço dentro
de sua casa içada ao ar por balões.
nou-se protagonista dos debates sociais, pauta
obrigatória na economia mundial, o que fez emer-
Prudência e vigilância marcam o acelera- gir uma realidade surpreendente e fugidia que re-
do fenômeno do envelhecimento populacional, úne elementos positivos e negativos num cenário
evidenciando uma preocupação internacional no em permanente ebulição.
âmbito da saúde, política e economia. O enve- O envelhecimento celebrado pelo aumen-
lhecimento passa a justificar a redefinição de to mundial da longevidade tornou-se uma enor-
políticas e programas que visam transformar o me conquista social, permitiu alterações estru-
perfil mundial da velhice. Surgem novas modali- turais na sociedade com impacto no mundo do
dades políticas de gestão da população idosa. mercado, do consumo e da mídia. Sobretudo, nos

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

últimos 40 anos no Brasil, envelhecer tornou-se de vida juvenizantes e hiper ocupacionais, o que
um objeto de debate privilegiado, ao repercutir no no limite pode evidenciar sofrimento, desconforto
âmbito da família, da comunidade, metamorfose- e constrangimento entre os segmentos longevos.
ando drasticamente a experiência individual. Este é um artigo de revisão que procurou
A longevidade aparece como uma grande identificar conceitos e análises, apontando ain-
revolução, uma imensa diversidade que aponta da problemas e questões essenciais que neces-
para a multiplicação indefinida de experiências, sitam de estudos no campo do envelhecimento.
criando nexos com um repertório de novos fatos Além disso, este trabalho parte do resultado de
impensáveis. Tal cenário coloca os segmentos minhas pesquisas anteriores que, ao problemati-
longevos prontos a negociar com a realidade no- zarem a velhice e o envelhecimento, evidenciam
vas inserções socioeconômicas e políticas. Mas uma série de fatores controversos na nova discur-
concomitantemente, emerge uma profusão de sividade pautada pela velhice e o envelhecimento.
recusas que atravessam as novas celebrações
identitárias do envelhecer.
Como fenômeno de massa amplamente Envelhecimento, mídia e juventude
reproduzido pelo aparato midiático, os novos
modos de envelhecer revelam condições rigi-
damente definidas quando remetidos aos com-
portamentos que se esperam desse grupo de
idade. Temos envelhecido presos ao resgate da
juventude e do rejuvenescimento como valores
dominantes, ancorados em condutas e compor-
tamentos previsíveis, irrefletidos, com espaço
para uma visão de mundo pouco crítica, com
prejuízos para a vida de quem envelhece. Nes-
se sentido, a emergência da multiplicidade co-
mo perspectiva na interpretação dos fenômenos Uma reconfiguração contemporânea da cul-
recentes que envolvem o envelhecer dá a ver tura dos grupos de idade vem determinando no-
uma maior inserção social, mas também fragili- vos enquadres corporais, novas formas de pen-
dades, novos vazios afetivos, recusas, como as sar e existir, redimensionando corpos, comporta-
provocadas pela forte presença da medicaliza- mentos e mentalidades9 (p.86).
ção — inconformidades que irrompem de todos Talvez nada tenha tanta importância hoje
os lados e, eventualmente, são apaziguadas por para pensarmos o envelhecimento contemporâ-
serviços e produtos oferecidos pela mídia. neo quanto a compreensão das transformações
Trata-se, muitas vezes, de um modelo de que vêm ocorrendo com os grupos de idade, tal
envelhecer que não admite que estejamos felizes como nós os conhecemos6 (p.14). Ao longo das
apenas por estarmos vivos, maduros e satisfeitos últimas décadas, observa-se que todos os gru-
com a nossa própria trajetória de vida. Ao contrá- pos de idade vêm sofrendo uma compressão,
rio, a realidade nos informa que a felicidade na aproximando-se dos valores da vida adulta, com
velhice vem sendo permanentemente associada forte acento num estilo de vida jovem. Esse mo-
a um conjunto de princípios normativos e estilos vimento de compressão ou constrangimento faz

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

com que características tradicionalmente aceitas Se a obsolescência do corpo já não respon-


para distinguir grupos etários estejam em muta- de à perfeição, sempre haverá alguma forma
ção. Bebês são estimulados a acessar tablets de rejuvenescer, adotando-se uma vida ativa,
e outras tecnologias (associadas à juventude), mantendo-se a boa forma, o ideal de perfei-
acelerando o desenvolvimento infantil, segundo ção e a integridade moral dos corpos sob auto-
os padrões e princípios da juventude contempo- vigilância. Até porque são muitas as formas de
rânea. A velhice vem sendo remetida à alegria, tentar deter ou moldar a velhice, não faltam
ao gozo juvenil, à ação e à aventura, associada recomendações e advertências na manuten-
ao preenchimento do tempo livre. Estimula-se a ção de um modelo de corpo obediente, saudá-
responsabilidade e maturação dos adolescen- vel, rejuvenescido — universalmente validado.
tes, de ambos os sexos, cuja iniciação sexual O fato é que as novas representações do en-
ocorre de forma cada vez mais precoce em casa, velhecimento vêm sendo consumidas velozmen-
com o estímulo e a anuência dos pais. Pode-se te. Elas demandam agilidade de quem envelhece,
afirmar que a transformação mais uniforme sofri- energia para as tarefas diárias, pois manter-se jo-
da por todos os grupos de idade é a perspectiva vem significa para muitos conservar a boa forma
modelar que projeta estilos, looks e visões de e a aparência para garantir uma melhor inserção
mundo, tendo a juventude como valor absoluto. na vida social. As marcas biológicas do tempo po-
A chamada juvenilização da sociedade é um fe- dem ser apagadas com cirurgias plásticas, inter-
nômeno que trouxe uma profunda mudança, pro- venções estéticas/cosméticas, prática de ativi-
duzindo padrões de juventude nas mais diversas dade física, alimentação saudável e muito mais.
esferas. Os valores produzidos pela cultura jo- Nessa direção, o indivíduo que envelhece hoje se
vem são arrebatadores — beleza, ousadia, sen- encontra circunscrito ao desafio social de manter
sualidade, descontração, força, alegria liberdade a juventude e a jovialidade, pois é preciso estar
e muito mais2 (p.15). Nessa direção, o indivíduo sempre pronto ao novo e, com entusiasmo, ultra-
que envelhece hoje se encontra circunscrito ao passar obstáculos e fronteiras. Estamos diante
desafio social de manter a juventude e a joviali- do alto valor social representado pela juventude,
dade, pois é necessário estar sempre pronto ao projetando estilos e visões de mundo em todos
novo e, com entusiasmo, experimentar, ousar e os grupos de idade, com forte influência sobre as
ultrapassar fronteiras, porém, não sem contra- áreas da ciência e da saúde, cujo investimento
dições. O corpo tradicionalmente como lugar do em procedimentos técnicos e terapêuticos está
sofrimento na velhice defronta-se com o corpo em conformidade com a longevidade e o rejuve-
imagem da felicidade e essa equação ameaçado- nescimento humano.
ra parece longe de solução. Ainda assim, a boa No entanto, quando ser jovem é uma me-
nova é que os estudos de geração e as relações ta de vida, ser velho passa a ser uma represen-
cultura-sociedade-Estado-mercado e mídias são tação cada vez mais negativa e angustiante do
alguns dos objetos em comum, fortemente pro- existir. O envelhecimento natural passa a ser ver-
blematizados, quanto às transformações do en- gonhoso, embaraçoso, inadequado, símbolo de
velhecimento como fenômeno multidimensional morte social. Não há lugar para a velhice assu-
que, antes isolado e desqualificado, não desper- mida, aquela que não vive o desespero de vigiar
tava o interesse investigativo de hoje. as adequações de cada detalhe do corpo, cuja

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

meta é catapultar o rejuvenescimento. Nessa di- atribuem nota igual ou superior a oito na hora de
reção, envelhecer passa por diferentes graus de expressar a satisfação com o seu modo de vida.
recusa cujas implicações intensificam o sofrimen- Além disso, segundo a pesquisa: “é proibido se
to social de todo um grupo de idade. Mudanças sentir velho e não se considerar idoso, aumenta
radicais, modismos contemporâneos, vícios e pa- as chances de felicidade!”8.
tologias surgem como fatores diversos que atin- As emoções e comportamentos dos mais
gem, em cheio, os grupos longevos, influenciando velhos jamais foram uma mercadoria tão valiosa
modos de envelhecer de indivíduos, grupos e co- no universo midiático, uma vez que os meios de
letividades. Mudanças tecnológicas no setor do comunicação de massa, que tem muito mais que
consumo e nos ideais da sociedade estimulam a a “necessidade de sua ração cotidiana de assun-
produção de novas relações éticas que ainda es- tos”, torna a vida suscetível a manipulações de
tão longe de terem sido implementadas no mun- toda ordem4 (p.23).
do que envelhece.
O consumo material exaltado pelas mídias
tem nos produtos e serviços, a representação Pedagogização do envelhecer
da juventude, a partir de imagens, atitudes e Nas últimas décadas, proliferaram discur-
comportamentos, produzindo uma vigorosa di- sos enobrecedores, qualificadores da velhice,
mensão de consumo simbólico. O rápido avan- capazes de significar o envelhecimento e desig-
ço tecnológico das últimas décadas distingue-se nar o velho como sujeito de status definido, ao
muito fortemente na esfera midiática. Sabemos contrário do período anterior, em que predomi-
que o aparente processo de democratização do navam o descrédito, o desrespeito e a depre-
acesso e da veiculação da informação nas novas ciação dirigidos aos segmentos mais longevos,
plataformas de comunicação não significa maior como aponta Silva7:
afluência à democracia. As linhas editoriais que
“O surgimento da categoria terceira idade é
constituem a pauta da grande mídia têm uma
considerado pela literatura especializada, uma
intenção acentuadamente mercadológica, assu-
das maiores transformações por que passou a
mindo um papel muito importante na produção
história da velhice. De fato, a modificação da
da realidade, conforme os interesses discursivos
sensibilidade investida sobre a velhice acabou
que acabam por fabricar desejos, sem qualquer
gerando uma profunda inversão dos valores
preocupação ética com os grupos de idade. Um
a ela atribuídos: antes entendida como deca-
exemplo de como atuam as mídias sociais pode
dência física e invalidez, momento de descan-
ser observado na divulgação do “Felizômetro”, ex-
so e quietude passa a significar o momento do
travagante índice que não exibe detalhes de co-
lazer, propício à realização pessoal, à criação
mo foi criado pelo Serviço de Proteção ao Crédito
de hobbies e o cultivo de laços afetivos e amo-
(SPC Brasil) para mensurar o grau de felicidade
rosos alternativos à família” (p.161).
dos consumidores acima dos 60 anos. O índice
mostra que a maioria das pessoas da terceira Tal fato é concomitante à inauguração de
idade está satisfeita com as atuais condições de uma hábil e vigorosa disseminação na mídia
vida. De acordo com o levantamento realizado de conteúdos ligados à ideia de valorização do
com 632 idosos em todas as capitais brasilei- idoso. Hoje, indivíduos, grupos e coletividades
ras, quase oito em cada dez entrevistados (78%) produzem e compartilham enquadres que vêm

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

construindo e consolidando os sentidos de enve- (p.13) (...) passa a ser um projeto de celebração
lhecer no âmbito da política, cultura e sociedade. do rejuvenescimento que induz a uma imagem
Ensinar a envelhecer passa a ser uma tarefa da velhice associada à produtividade e a uma
afinada com processos pedagógicos, fortemente visão homogeneizante do envelhecer “excessi-
apropriados pela área da saúde e com grande vamente instrumentalizadora da vida”5 (p.86).
repercussão midiática no âmbito da cultura e dos A intensa prática pedagógica que pretende
segmentos de consumo. Tal é o papel das ins- ensinar a sociedade a envelhecer por meio de
tituições, instrutoras sociais que asseguram a modos obrigatórios de rejuvenescimento, vivaci-
adaptação e ensinam que envelhecer passa por dade e presteza faz parte do processo ressociali-
inquéritos e averiguações corporais e comporta- zante do velho cujo mote é instruir, educar, sane-
mentais. Nunca envelhecer foi objeto de tantas ar, reparar, conduzir e adaptar. Ressalta-se que,
molduras e condutas. Dessa efervescência de paralelamente às estratégias de modelagem pro-
discursos sobre o envelhecimento têm surgido postas, ocorre a emergência de grupos e indivídu-
novas visibilidades para a equação “envelhecer”, os idosos decididos a surpreender com audácia
em que se constata a construção de distintas os padrões majoritários do processo de envelhe-
imagens da velhice que não cessam de surgir. cimento. Portanto, para além dos contornos que
O envelhecimento dos corpos sugere correção. O arbitram sobre a dinâmica de envelhecer, esta-
reparo corporal mais perfeito é também compor- mos diante de um fenômeno único com um cam-
tamental. É necessário ser capaz de converter o po de possibilidades e fluxos reais baseados na
próprio corpo em juventude – independência, for- busca da autonomia, resistência e transformação
ça, energia, equilíbrio, beleza – qualidades injeto- que começam a ser exploradas por aqueles que
ras de pertencimento social indispensáveis para envelhecem em todo o mundo.
quem envelhece hoje. Evidencia-se uma produção
desmedida de molduras culturais e institucionais,
Envelhecimento e Saúde
em que o envelhecimento vem se tornando obje-
Observa-se que aquele que envelhece é por-
to de inúmeras tentativas de padronização, como
tador de um corpo de sensações, cansaços, de-
as que ocorrem a partir de todo um sistema de
sejos, contradições, vícios e virtudes acumulados
prescrições médicas, morais e comportamentais
e inscritos na representação do sujeito maduro. A
que atravessa o âmbito da cultura na atualidade.
subjetividade contemporânea vem se apropriando
O desafio contemporâneo que se distingue pelas
cada vez mais de novas representações e discur-
iniciativas de reinventar o novo tem hoje nos de-
sos recorrentes sobre o que é envelhecer. Nesse
bates sobre velhice um farto coquetel descritivo
sentido, a finitude, a dor e a morte são apagadas e
sobre quem são os velhos, o que pensam, quais afastadas do repertório de convicções da terceira
suas necessidades e como se comportam no idade, em que a existência? e a saúde cumprem
atual cenário social. a tarefa de ser autogeridas e modeladas como
O envelhecimento sob a exigência do aprimo- meta para alcançar uma vida saudável. Práticas
ramento moral e corporal tem oferecido aos de consumo, lazer, beleza e atividade física são
mais velhos uma diminuta autonomia reflexiva fortemente estimuladas, reforçando-se os laços
sobre o que representa envelhecer hoje. É as- de pertencimento social e o discurso festivo pe-
sim que a invenção do envelhecimento ativo11 la “melhor idade”, no sentido de abandonar os

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

estereótipos negativos da velhice. Proliferam mo- glamourizada, maximizada, diluída no solo cultu-
delos de verdade amplamente difundidos sobre o ral e transformada em valor exponencial do nosso
envelhecimento e a velhice, cuja reprodução entre tempo. A saúde entronizada socialmente é aque-
especialistas e autoridades competentes circula la que tem o poder de vitalizar ações individuais,
velozmente nas mídias e redes sociais. sociabilidades e práticas sociais; pode-se consi-
É assim que a Medicina regenerativa anuncia derar extraordinária a sua influência nas relações
a esperança de cura de todas as doenças fatais sociais, participando na ordenação dos padrões
que se intensificam após os 60 anos, o que faria identitários, códigos de reciprocidade e referên-
desaparecer patologias como doença de Alzheimer, cias simbólicas dos grupos de pertencimento.
diabetes, doenças cardíacas, câncer e muito mais. A extrema relevância conquistada pelo se-
Os desavisados chamam equivocadamente esse tor saúde no cenário contemporâneo aponta para
fenômeno de “cura da velhice”, numa alusão de sua influência decisiva na reconstrução dos mo-
que ser velho é “um mal passível de eliminação” e dos de envelhecer, seus imperativos técnicos e
não uma fase da vida a ser plenamente vivida. convicções baseadas na racionalidade médica,
A vida é traduzida a partir da intervenção provocando forte impacto na cultura do enve-
sobre o corpo passível de cura, aquele que tam- lhecimento que se encontra sob a regulação do
bém se submete à eliminação de falhas e re- biológico, da disciplina corporal e da tentativa de
gulação de excessos. Sob essa ótica, a velhice construção de uma vida saudável.
não é tomada como uma fase natural do ciclo A imagem do corpo na velhice, tanto aquela
vital, mas como um período indesejado, patoló- tradicionalmente destinada ao ócio e à inativida-
gico, incômodo no seu conjunto e desvalorizado de, quanto às figurações supliciadas por doenças
em sua singularidade. e limitações físicas, permanecem no imaginário
Ao longo das quatro últimas décadas, infini- social como advertência às escolhas do indivíduo
tas ordens de realidade se apresentam ao exami- ao longo da vida. A força desse discurso de res-
narmos o acontecimento “envelhecer”. A experiên- ponsabilização individual pela saúde vai marcar
cia corporal do envelhecimento pode ser percebi- não apenas as políticas de saúde e assistência
da na mudança das formas de refletir sobre si, aos idosos, como determinar o enquadre social
enunciar estratégias e visões de mundo, práticas daqueles que envelhecem.
e comparações com o outro. A memória de uma Especialistas afirmam no Brasil que a de-
vida, as percepções dos sinais de idade explicitam manda por saúde deste grupo de idade extrapo-
as alternativas a serem apreciadas por quem enve- la as condições de atendimento disponíveis no
lhece e por aquele que assiste o outro envelhecer. sistema público de saúde, não havendo recursos
Ainda que uma maior fragilidade do corpo ou infraestrutura suficiente. Portanto, propõe-se
e diminuição da capacidade física possam ate- investir na prevenção e “priorizar ações de saú-
nuar as certezas de integridade corporal daquele de voltadas para o idoso saudável...”10 (p.336).
que envelhece, a consciência por maior cuidado Logo, espera-se do idoso saudável, além da dis-
e saúde perpassa os desafios atuais da popula- posição física e bem estar, modificações de com-
ção longeva. Sob esse aspecto, a vida social se portamento capazes de torná-lo bem humorado,
rende às sentenças morais que se tornaram pró- autônomo e feliz. No entanto, a discussão so-
prias à saúde, suas convicções inabaláveis e pré- bre o número de leitos, consultas, exames, bem
-condições de felicidade. Trata-se de uma saúde como a definição de ações prioritárias para o

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

atendimento aos mais velhos no sistema público fazedores de velhos. O quanto um velho já viu, sen-
sequer passa pelas pautas políticas de governo. tiu criou; suas lembranças, seu fluxo de vida, tudo
isso surge como um manancial de experiência acu-
mulada que nos paralisa. Daí a importância de reve-
Considerações finais renciar aqueles que não temem envelhecer, não se
Aqueles que envelhecem hoje têm sido ob- esquivam da relação com a temporalidade e percor-
jeto de um bombardeio midiático, cultural, eco- rem íntegros sua trajetória de vida.
nômico, por novos padrões de rejuvenescimento,
autocuidado, adesão vertiginosa às atividades de
turismo, lazer, sendo inclusive altamente estimu-
lados a retornar ao mercado de trabalho. As no-
Referências
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uma sociedade consumista repercutem em várias na contemporaneidade. In: Freire Filho J. (Org.). Ser feliz ho-
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dade com um amplo universo capaz de gerar uma 2. De Lazzari FP. A voz e a vez do jovem: o imaginário de
nova expressividade e sensibilidade cotidiana. juventude na publicidade brasileira. (Dissertação de Mes-
Vivemos um momento único, ao experimentar- trado). Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
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o que significa acompanhar um período de incrível
Emeryville, California: Pixar Animation Studios; 2009.
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A sociedade, o mercado, a família concla- vidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia
mam aquele que envelhece a viver o agora, visan- de Freud; 2005.
do à experiência de todas as fruições possíveis, 5. Franco T, Corvino MP, Galavote HS, Lobato E. Biopolítica
pensáveis e desejáveis. Investe-se no forte apelo e cuidado de si na promoção da saúde, na saúde suplemen-
tar. In: Ribeiro CDM, Franco TB, Lima RCD, Andrade CS. (Or-
social que induz ao aproveitamento prazeroso ou
gs.). Saúde suplementar, biopolítica e Promoção da Saúde.
satisfatório de todas as coisas. Estamos diante
São Paulo: Hucitec; 2011. p.86.
de um capricho contemporâneo, em que todos 6. Motta AB. A juvenização atual das idades. Cad. Espaço
são orientados a “realizar”. Exige-se ação, ma- Femin; 2012. 25(2):11-24.
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tos devem passar pelo crivo do mundo objetivo: das identidades atreladas ao processo de envelhecimento.
viagens, projetos matrimoniais, paternidades tar- História, Ciências, Saúde, Manguinhos. 2008; 15(1):155-168.
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dias e todo aparato para uma vida longa e obri-
ra idade satisfeita. (On line). [acessado 15 jul.
gatoriamente feliz1. Em meio a esse carrossel
2017]. Disponível em: http:/www.telehelp.com.br/
de novidades e interações com a idade madura,
indice-felizometro-aponta-terceira-idade-satisfeita/.
faltam escuta, atenção à subjetividade, às reais 9. Tucherman I. Fabricando corpos: ficção e tecnologia. Co-
dimensões de conforto, à criatividade e necessi- municação Mídia e Consumo. 2008; 3(7):77-92.
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to decorre da experiência acumulada ao longo de de. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2011.
11. World Health Organization (WHO). Envelhecimento ativo:
todas as outras fases da vida. O tempo, o espaço,
uma política de saúde. Brasília: OPAS, Ministério da Saúde;
a memória, as culturas vividas — eis os grandes
2005.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Campanhas de Educação em Saúde e reforço de estigmas


Health Education Campaigns and stigma reinforcement

Regina FigueiredoI, Letícia de Almeida Lopes CândidoII

Resumo Abstract

O discurso da Educação em Saúde se apresenta como um “saber” The discourse of Health Education presents itself as “knowledge”
que deve ser levado às populações, contribuindo para a concretiza- that must be taken to the populations, contributing to the substan-
ção de um Política de Saúde do Estado. Porém, faz-se necessário tiation of a State Health Policy. However, it’s necessary to analyze
analisar esse discurso e suas condições de produção, de maneira this discourse and its conditions of production, in a way of charac-
a caracterizar sua base ideológica e seu papel político. Por meio terizing its ideological base and its political role. By using exam-
de exemplos, é discutido como algumas ferramentas discursivas ples, it’s discussed how some discursive tools present in health
presentes em materiais educativos de saúde podem ser utilizadas education materials can be used as to reinforce stigmas and re-
de maneira a reforçar estigmas e re-marginalizar determinados -marginalize determined social groups, contributing to the stigma-
grupos sociais, contribuindo para a estigmatização desses indi- tization of these individuals and configuring as institutional violen-
víduos e se configurando como violência institucional. Nesse sen- ce. In that sense it’s necessary to retrieve democratic models of
tido é necessário resgatar modelos de intervenção democráticos intervention that are based on the concept of vulnerability and that
que se baseiem no conceito de vulnerabilidade e que possibilitem allow the promotion of respect and autonomy in health care.
a promoção do respeito e da autonomia para o cuidado da saúde.
Keywords: Health education; Stigma; Marginalization; Vulnerability;
Palavras-chave: Educação em saúde; Estigma; Marginalização; Vul- Citizenship.
nerabilidade; Cidadania.

I
Regina Figueiredo (reginafigueiredo@uol.com.br) é Cientista Social, Mestre
em Antropologia Social e Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São
Paulo e Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado
da Saúde de São Paulo.
II
Letícia de Almeida Lopes Cândido (leticia.alcandido@gmail.com) faz bacha-
relado em Ciências Sociais na Fundação Escola de Sociologia e Política de
São Paulo (FESPSP) e é auxiliar de pesquisa e estagiária do Instituto de Saú-
de da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
III
Aqui entendida como sinônimo da Educação Sanitária, uma vez que nomen-
clatura educação em saúde passou a ser utiliza apenas a partir de 1967,
posteriormente à elaboração de alguns materiais educativos que serão apre-
sentados.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução Isso fez com que a Educação em Saúde, con-


A relação entre educação e saúde é com- forme comentam Silva e colegas33, se constituís-
plexa, pois não trata apenas dos diferentes con- se, por muito tempo, como uma prática que orien-
teúdos que a interligam, mas da proposição de tava comportamentos de saúde de uma “prática
diferentes modelos de educação que se utilizam, dominante”, ou seja, visavam “à manutenção da
principalmente na área da Saúde Pública. hegemonia da classe dominante” (p.2.540) – no
A Educação em Saúde se inicia, assim, caso, das elites e autoridades da Medicina, legi-
com o intuito de conscientizar as pessoas sobre timadas em políticas estatais desde a Época Mo-
práticas preventivas, embora em seu modelo ini- derna. Assim, ao se apresentar como um “saber”
cial parta do princípio de que as doenças são que deve ser levado às populações, a Educação
decorrentes não apenas do meio externo, mas em Saúde foi um dos instrumentos que contri-
também da desinformação da população a res- buiu para a concretização de uma Política de Saú-
peito dessas práticas e de sua consequência na de do Estado12.
saúde e nas doenças, bem como se opondo às Carlini-Cotrin e Pinsky 9, analisando as li-
práticas consideradas inadequadas35. Por isso, nhas educativas para a orientação preventiva
se constituía incialmente em “atividades volta- sobre drogas, identificam seis modelos de dis-
das para a publicação de livros, folhetos, catá- cursos utilizados na Educação em Saúde: o de
logos os quais eram distribuídos em empresas princípio moral, o de amedrontamento, o de co-
e escolas, porém era ineficiente já que não era nhecimento científico, o de educação afetiva, o
capaz de alcançar todas as camadas da socie- de estilo de vida saudável e o de pressão positi-
dade”21 (p. 761). va de grupo. O modelo de princípio moral utiliza

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

argumentos de ordem moral, patriótica ou reli- quando adota a orientação feita por jovens, lide-
giosa para estimular uma espécie de “sacrifício ranças, atletas ou personalidades de pressão so-
pessoal” em prol do bem comum, por isso tem cial, além de poder incluir orientações que pre-
estado em desuso em nossa sociedade atual gam o medo, como se verifica no discurso so-
de viés individualista. O modelo de amedron- bre o uso de drogas, quando se justifica que tal
tamento, reifica apenas o lado negativo e dra- consumo seria uma falta de consciência cidadã
mático dos comportamentos, desconsiderando na medida em que produziria ou sustentaria a re-
a capacidade do indivíduo ponderar e estrutu- de de tráfico – tal como faz a Polícia Militar no
rar suas escolhas, avaliando perdas e ganhos. Programa Educacional de Resistência às Drogas
O modelo de conhecimento científico ressalta o (PROERD)27, que expressa o forte posicionamen-
fornecimento de informações e dados de forma to político-ideológico dessa instituição em a favor
imparcial, crendo que ao permitir a discussão do combate e da guerra às drogas.
os indivíduos tomarão decisões racionais. O mo- Portanto, conhecer os discursos adotados
delo de educação afetiva busca estimular o de- na Educação em Saúde permite não apenas per-
senvolvimento da autoestima visando o autocui- ceber suas mensagens de saúde, mas, sobretu-
dado e às decisões individuais, de forma que o do, caracterizar sua base ideológica e, logo, seu
indivíduo possa escapar das pressões grupais. papel político12. Por isso, após várias discussões
O modelo de estilo de vida saudável é centrado e críticas acerca dos modelos educacionais de
na promoção da boa saúde e, portanto, questio- saúde com visão de intervenção vertical, duran-
na hábitos que a afetariam. Por fim, o modelo te a década de 1960 em diante, a Educação em
de pressão positiva utiliza a interação de pares Saúde ganhou um viés mais democrático, recon-
para promover na educação em saúde, de forma siderando os conhecimentos leigos da população
que a pessoa encontre em seus semelhantes e criando estratégias mais dialógicas e proporcio-
uma diretriz para guiar seus comportamentos. nais5 em sua metodologia de trabalho, produção
É importante considerar que todos esses de materiais e discursos. Passou-se a compre-
modelos podem, muitas vezes, coexistir conjun- ender o fazer saúde como uma troca entre par-
tamente nas ações e discursos de saúde. Atual- tes, diálogo que objetiva a redução das doenças
mente, por exemplo, a Educação em Saúde vem e a promoção da saúde38. Essa concepção teve
se utilizando da orientação de boa saúde, ligan- como marco de implementação política interna-
do a saúde ao desejo de retardo de doenças e cional a I Conferência Internacional sobre Promo-
do envelhecimento e a enfatizando como possi- ção da Saúde23, da Organização Mundial de Saú-
bilitadora de felicidade15; esse modelo ganha for- de (OMS), realizada em Ottawa, no Canadá em
ça na mídia comum10, fortalecendo a presença 1986, que definiu o termo “promoção da saúde”
da preocupação com a saúde na vida cotidiana como estratégia de “divulgação e informação,
não apenas na atenção em saúde dos indivíduos, educação para a saúde” (p.3).
mas também como foco de promoção ao consu- Nesse novo entendimento, a Educação em
mo, inclusive entre pessoas saudáveis e jovens, Saúde é uma importante vertente da prevenção,
gerando hábitos de uso de suplemento alimentar, por este motivo deve se preocupar com a melho-
adesão a academias de ginástica, etc. No entan- ria das condições de vida e de saúde das popula-
to, esse discurso pode se utilizar de estratégias ções como um todo, proporcionando conhecimen-
que se associam ao modelo de pressão positiva, to básico para que as pessoas possam identificar

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

e satisfazer suas necessidades e serem capazes observa: (1) a apresentação gráfica do material,
de adotar mudanças de comportamento, práticas (2) as características do discurso sintático-lexi-
e atitudes para tal melhoria, tendo à disposição cais de conteúdo que envolvem observar aspec-
meios para realizá-la – o que inclui a existência de tos gerais do texto para verificar sua complexi-
políticas públicas e ambientes apropriados, sob dade e tipo de linguagem, o tipo de interlocução
orientação adequada dos serviços de saúde30. estabelecido e busca de subjetividade por meio
Desde então, têm surgido novas aborda- de apelos emocionais e chamamentos, (3) a fun-
gens da Educação em Saúde, como o “modelo ra- ção da linguagem, verificando se atua mais sobre
dical”20, que promove a saúde como recurso para o referente ou se se concentra no sujeito (fun-
uma vida plena, por meio do diálogo e do respeito ções referencial e conativa, respectivamente), (4)
à autonomia do indivíduo. Embora represente um os “atos de fala”, que caracterizam a finalidade
avanço, no entanto, este modelo não considera do discurso, de acordo com a predominância de
as determinações sociais que poderiam afetar atos ilocucionais (transmissão de informações)
os atos e decisões dos sujeitos, ignorando condi- ou perlocucionais (objetivação de uma ação prá-
ções que impedem a adoção de hábitos de vida tica), (5) as “informações adicionais” que expres-
mais saudáveis35. sam noções vagas, frases feitas e expressões
que tem a função de validar o discurso e atuar
enquanto quadro moral, sancionando os compor-
Estigma na Educação em Saúde: marginalizantes tamentos desejados, (6) as representações ima-
X marginalizados ginárias que o locutor faz de si, do interlocutor ou
Não são poucas as análises que apontam do referente, (7) as informações outras além da
que a Educação em Saúde se posiciona enquan- análise linguística ou de imagem e que possam
to instrumento de políticas públicas que produzi- ter importância como observações gerais no con-
ram ou reforçam uma série de estigmas contra texto da Educação em Saúde.
doenças ou populações, geralmente segregadas Utilizando este roteiro, as autoras concluem
ou marginalizadas socialmente. Fernandes e co- que as concepções educativas presentes nesses
legas12, analisando materiais produzidos pela materiais expressam que os produtores do dis-
Seção de Propaganda e Educação Sanitária da curso se utilizaram de um “conjunto de técnicas e
Secretaria da Educação e Saúde Pública de São procedimentos pedagógicos que visam disciplinar
Paulo, criada, em 1938, com a finalidade de in- atitudes e comportamentos coletivos, pensando
centivar a promoção de saúde pelos mais diver- a cura e prevenção de doenças”, discursos esses
sos meios (palestras, filmes, livros, etc) e trans- que são orientados pelo saber médico-científico e
formada no Serviço de Educação de Saúde Públi- revelados numa relação discursiva desigual entre
ca, em 1969, realizaram a análise linguística dos os locutores/propositores e interlocutores/popu-
conteúdos educativos produzidos entre 1938 e lação leigaIV. Essa perspectiva está expressa não
1953 e de 1941 a 1984. apenas em textos e conteúdos, mas também nas
Para realizar essa análise, Fernandes e co- ilustrações utilizadas, que exprimem a percepção
legas , utilizaram como base o quadro teórico de
12

Osakabe, que indica a necessidade da análise


Tomamos a liberdade neste artigo de reproduzir algumas ilustrações e con-
não apenas do discurso, mas também das condi-
IV

teúdos de materiais educativos da década de 1950, analisados por essas


ções de produção, e elaboraram um roteiro que autoras, devido a excelente qualidade de seu levantamento e também da
análise que realizaram sobre os mesmo.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

que o locutor faz dos personagens utilizados co-


mo exemplos, priorizando o fortalecimento de es-
tigmas, principalmente, quando tratam de doen-
ças já estigmatizantes, na época, como a tuber-
culose, a hanseníase, as doenças sexualmente
transmissíveis e o alcoolismo12.
Dessa forma, essas autoras12 mostram que
a estigmatização é fortemente utilizada na Educa-
ção em Saúde como técnica de persuasão5, uma
vez que esses materiais tiveram grandes tiragens
e reedições e, portanto, são representativos da
concepção educativa da década de 1950. Há ca- Imagem do interior do folheto “Defenda-se das Doenças Venére-
racterização de vários doentes como “marginais”, as”, da década de 1950, produzido pela Secretaria da Educação e
inclusive em temas como doenças sexualmente Saúde Pública de São Paulo e referido por Fernandes e colegas12.

transmissíveis e alcoolismo. Diferentemente dos


Fernandes e colegas12 chamam a atenção
referenciais que se utilizam de discursos de vulne-
para os aspectos morais enfatizados nessa for-
rabilidade, indicando a importância de se conside-
ma de entender os indivíduos considerados “não-
rar os aspectos político-programáticos e sociocul-
-saudáveis” ou doentes, ressaltando que estes
turais para os comportamentos das pessoas6, as
não possuem um lugar na ordem social, mas são
autoras apontam que a estigmatização feita pelos
utilizados como modelos para ensinar aos “ou-
locutores desses materiais educativos reforça o
tros”, os que querem viver bem, as consequên-
caráter da doença ou mal como problema/culpa
cias pessoais e sociais, como “mau-final”, refor-
do indivíduo e de seu “mal” comportamento. Nes-
se sentido, esses discursos acabam contribuindo çando a ideia de que devem adotar condutas
para a diferenciação e segregação desses indiví- “normais”, as eleitas como harmônicas ao meio
duos dos demais, dos considerados “normais”12. social. Essa normatização é típica do discurso
Essa responsabilização aponta o imenso interventivo dominante e muito utilizada como
domínio dos locutores do discurso (ao ter, não estratégia em modelos que não desejam fazer
apenas legitimação, mas também, o poder de transformações sociais profundas e nem mexer
criação de discursos e a confecção de materiais no status quo de grupos dominantes.
para sua divulgação), que podem exercer este Essa estratégia de marginalização e estig-
poder, tanto sobre o público leigo saudável que ma também é muito presente na a abordagem
leria o material – a quem se deseja orientar con- de temas considerados tabus, as doenças sexu-
dutas –, mas também e principalmente sobre almente transmissíveis (DST) e o comportamen-
aquelas pessoas que já estão na situação de to sexual e o uso de álcool e drogas, frente aos
doença/“mal comportamento” definidos, ou seja, quais a sociedade já mantém discursos indutivos
os “maus elementos”, que já são marginalizados influenciados pela moralidade, inclusive religiosa.
socialmente. Isso faz com que esses discursos Nessas abordagens, conforme Fernandes e
tenham poder de “re-marginalizá-los” tanto frente colegas12, não é incomum se ver que “a doença
aos outros como para si mesmos, reforçando es- venérea assume formas e proporções sobrenatu-
tigmas que já enfrentam socialmente. rais e fantasmagóricas que ameaçam os jovens

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

casais enamorados” (p. 137), ao mesmo tempo A abordagem estigmatizante não se cir-
em que personagens sociais a elas associados, cunscreve apenas a materiais de Educação em
como a “prostituta” e o “bêbado”, são retratados Saúde produzidos no Brasil nos anos 1950, mas
com desdém e símbolo do perigo ou do estado também após própria criação do conceito de
degradante ao qual não se quer chegar. promoção de saúde no século XXI. Na década
de 2000, o Ministério da Saúde, com o objeti-
vo de incentivar o não compartilhamento de dro-
gas injetáveis, produziu material de extremo mal
gosto que utiliza o mesmo princípio: a imagem
final do material ilustra o desenho de um burro
passando uma seringa para outro burro. Essa
campanha aponta o reforço de estigmas contra
usuários de drogas, pois além de expressar aos
interlocutores não usuários de drogas injetáveis
que tenham acesso ao material que quem com-
partilha seringa é “burro” (ou seja, alguém igno-
Capa do folheto “O que se deve saber sobre alcoolismo”, produz-
ido pela Secretaria da Educação e Saúde Pública de São Paulo na rante), “re-marginalizando” os usuários de dro-
década de 1950 e referido por Fernandes e colegas12. gas que já são marginalizados como “drogados”
em nossa sociedade, os “re-marginaliza” quan-
do diz para eles próprios são “burros”, nas situ-
ações em que esses últimos se tornam leitores
do material.

Interior do Folheto “Defenda-se das Doenças Venéreas”, produz-


ido pela Secretaria da Educação e Saúde Pública de São Paulo na
década de 1950 e referido por Fernandes e colegas12.

Fonte: Reprodução de folheto distribuído pelo Ministério da


Nesse sentido, não é a doença ou mal que
Saúde. Década de 2000.
é alvo da estigmatização, mas um grupo alvo,
no caso, as profissionais do sexo e os alcoolis- Várias outras campanhas também podem
tas, que passam a ser vistos como pessoas que ser citadas como se referindo a grupos social-
têm comportamentos incorretos, desregrados e mente vulneráveis de maneira a referendar a es-
degradantes12, transformando-se em pessoas tigmatização desses, diretamente explicitadas
incorretas, degradas e degradantes e, portanto, ou recorrendo indiretamente à insinuação sobre
foco de uma “higienização” social. suas condições de vida, características físicas e

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

modos de ser e viver, como demonstra Fernan- e teve seus materiais recolhidos por reclama-
des e colegas12, nesta campanha que expressa ções de setores conservadores da sociedade
de forma oculta o preconceito social, étnico e/ou em geral, debate reproduzido em fortes mídias
racial dos moradores de favelas e cortiços: na ocasião11.
“Nas cidades, vivem vida imprópria à sua
constituição... enfurnam-se em cortiços
e porões. Moléstias como a sífilis e tu-
berculose os dizimam. Vícios como o ál-
cool e a prostituição completam a obra
mortífera”1(p.137).
O grupo de profissionais do sexo, histori-
camente, foi sempre fortemente associado aos
discursos de saúde referente aos cuidados e a
prevenção das DST. Enquanto “grupo de risco”
e não enquanto vítimas dessas doenças, como
Cartaz da Campanha “Sou Feliz sendo Prostituta”, do Ministério
demonstram Aquino e colegas4, foram sempre
da Saúde, 2013.
apresentadas à sociedade como um grupo peri-
goso, reafirmando a estigmatização de sua con- Isso demonstra que a mídia comercial
dição marginal, ocultando a sua vulnerabilidade e aberta tem, no país, não apenas um papel im-
necessidades que apontam que é um grupo que portante na propagação de ideias, mas como
tem seu atendimento médico comprometido pe- agente formador de opinião e crença, podendo
la própria interferência de todo esse estigma na servir para apenas gerar debate ou defender po-
conduta dos profissionais de saúde que deveriam sições estigmatizantes ou anti-estigmatização,
atendê-las: quando deseja, adotando também discursos de
“...as doenças venéreas são o resultado de Educação em Saúde10.
uma conduta sexual irregular, sendo a pros- Há casos que esta postura da Educação em
tituição a maior fonte de contágio” (Interior Saúde que protagoniza ou elege “sujeitos culpa-
do Folheto “Defenda-se das doenças venére- dos”, está travestida de discursos de prevenção,
as produzido pela Secretaria da Educação e ocultando uma estigmatização direta a determi-
Saúde Pública de São Paulo na década de nados indivíduos, mas se utilizando de formas de
1950 e referido por Fernandes e colegas12. discurso que reportem aos leitores/interlocuto-
Esse imaginário sobre a prostituição é tão res para que não sejam ou não se comportem co-
culpabilizador dos próprios marginalizados e tão mo tal. Várias campanhas que adotam o modelo
fortemente arraigado em nossa sociedade, que de princípio moral, apontado por Carlini-Cotrim e
a corajosa campanha “Sou Feliz sendo Prostitu- Pinsky9, como as campanhas da década do pós-II
ta”, criada pelo Programa de DST/Aids do Minis- Guerra Mundial, que se utilizaram de conteúdos
tério da Saúde, em 2013, e que visava promover patrióticos na Educação em Saúde12:
a autoestima e a autonomia das profissionais “...valores considerados universais e indis-
do sexo, buscando minimizar o “autopreconcei- cutíveis como sociedade, país, descendên-
to” e sua vulnerabilidade social, foi suspensa cia degenerada, trabalho, vida normal... na

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

intenção de convencer o interlocutor da ver-


gonha, do descrédito, do impatriotismo, das
abominações que estaria sujeito caso con-
traísse tais doenças, reforçando o estigma”
(p.138).
Fernandes e colegas12 exemplifica o mesmo
recurso no folheto “Defenda-se das Doenças Ve-
néreas”, distribuído no estado de São Paulo na
década de 1950: Interior do folheto “O que se Deve Saber sobre Alcoolismo”, pro-
duzido pela Secretaria da Educação e Saúde Pública de São Paulo
“As doenças venéreas ferem igualmente a
na década de 1950 e referido por Fernandes e colegas12.
moral do indivíduo, pois o portador de
uma dessas doenças pode transmiti-la aos Esse amedrontamento não necessariamen-
seus descendentes, bem como às demais
te precisa recorrer à ideia de morte, mas pode
pessoas tornando-se por isso, um indivíduo
se utilizar de símbolos de fatalidade socialmente
nocivo à sociedade e ao país” (p.139).
compartilhados, o medo de extradição (no caso
O tom ameaçador, ou a referência de um de migrantes), ou o medo da prisão, como locali-
final com morte, com adoção do modelo de zam Fernandes e colegas12 etc.
amedrontamento também é recorrente na Edu-
“O mesmo indivíduo da capa aparece sendo
cação em Saúde, como apontam Fernandes e
conduzido por um policial à cadeia, como um
colegas12 no folheto “O que se Deve Saber so-
bre Alcoolismo”, da Secretaria da Educação e criminoso – o que é expresso no seu rosto
Saúde Pública de São Paulo e editado na déca- de “culpado”. O seu próximo destino, caso ele
da de 1950: continue com o vício, é o hospício. É pres-

“(...) As ilustrações estão presentes na ca- suposto que a simples menção dessa Insti-
pa e no interior do folheto, reforçando o tuição já produziria um efeito ameaçador, de
texto. Esse folheto é desdobrável podendo exclusão do convívio em sociedade, e de cas-
ser usado como um cartaz. A capa sugere tigo” (p.33).
o ambiente perigoso, no caso, onde se pode
adquirir o hábito de beber: o balcão de um
bar. A pessoa em destaque já é alcoólatra,
de aparência relaxada, barba por fazer, mal
se sustentando em pé e com um copo
de bebida na mão. A expressão do seu
rosto sugere uma depressão causada pelo
vício” (p.32).
Esses discursos, além de fazer uma carac-
terização desfavorável do alcoólatra, declara for-
temente o final legal indesejado, pela consequên- Capa do folheto “O que se deve saber sobre alcoolismo”, produzi-
cia do comportamento alcoolista: do pela Secretaria da Educação e Saúde Pública de São Paulo na
década de 1950 e referido por Fernandes e colegas12.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Essa mesma lógica de coerção de compor- Cabe reforçar que a argumentação por meio
tamentos pelo modelo de imposição do medo foi da ameaça vem acompanhada de uma lógica re-
utilizada em várias campanhas no início da epide- pressora, que procura punir deslizes de compor-
mia de HIV/aids no Brasil, na década de 1990, tamentos não desejados, atribuindo aos indivídu-
com jargões que viraram clichês, como apontou os que os realizam qualidades morais negativas
Paiva25, como o de “se você não se cuidar, a aids e marginalizantes e que não são efetivamente li-
vai te pegar”. Outras peças da mesma época, co- gadas à doença. São modelos de discursos inca-
mo a feita em outdoors que reproduziam a frase pazes de se ater a instruções de um locutor que
“Aids Mata”13, transmitiram fortemente à popula- oriente apenas para uma vida saudável16.
ção pânico e terror à doença, induzindo, inclusive,
a casos de suicídio frente ao diagnóstico de soro-
positividade para HIV: Discussão
De acordo com Goffman14 e Ronzani e Furta-
“A aids mata sem piedade; não permita que
do29, o estigma se caracteriza por algum sinal ou
essa seja a última viagem da sua vida” (cam-
marca que determina a condição desvalorizada
panha referida por Morais e Amorim20).
de determinado indivíduo com relação às pesso-
Conforme Morais e Amorim20, esse uso do as “normais”. Porém, essa condição desvaloriza-
amedrontamento foi intensivo nas campanhas de da não é decorrente do atributo em si, mas sim
prevenção e só começou a ser substituído quando decorrente de diferentes relações sociais, nas
surgiram as referência às relações sexuais de risco, quais estes atributos podem ou não se opor a
fazendo com que as campanhas de prevenção da uma dada “normalidade”, que assume diferentes
aids priorizassem o discurso sobre a importância características em situações distintas.
do sexo seguro, dos comportamentos e situações A estigmatização se origina da crença nega-
sexuais de risco e o estímulo ao uso de camisinha. tiva sobre uma determinada característica (que
Se pensarmos hoje, ainda há uso similar pode ser física, de caráter, ou decorrente das
da Educação em Saúde que utiliza o modelo de origens da pessoa) por parte de um grupo. Esta
amedrontamento nas obrigatórias mensagens crença influencia determinados comportamentos
anti-fumo que constam em maços e cartazes ou sentimentos para com as pessoas que car-
de cigarros, “onde são reproduzidas imagens regam tal estigma. Esse traço estigmatizante e
de cunho apelativo que mostram o processo de que, novamente, se configura como tal a depen-
definhamento e de decomposição do fumante e der do contexto, se torna o traço determinante e
sua conversão em um cadáver”16. Também na “rotulante” daquela pessoa ou grupo e obscure-
permanência de discursos, como “Droga Mata”, ce outros traços que seriam normalmente acei-
veiculados constantemente e que se mostram, tos naquela situação14. Isso torna o indivíduo al-
insuficientes do ponto de vista educacional de guém de menor valor para a sociedade e leva à
prevenção em saúde9; além de estar presente marginalização e/ou à exclusão de determinadas
fortemente no atual discurso sobre o crack, co- situações sociais.
mo demonstrou Petuco26, que corrobora e refor- A estigmatização, assim, tem sempre co-
ça o equivocado senso comum de que todo usu- mo impacto as consequências negativas para a
ário dessa droga se torna um “zumbi” desprovi- autopercepção do indivíduo estigmatizado, além
do de racionalidade34. de gerar distanciamento social e poder gerar

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

problemas de saúde e desagregação total. O in- “ transformação de uma diferença em


divíduo estigmatizado em um determinado meio desigualdade numa relação hierárquica de
ou tema, pode também ter ampliada a sua es- poder com objetivo de explorar, dominar e
tigmatização, sendo marginalizado também nos oprimir o outro que é tomado como objeto
acessos comuns e desfrutados por outros cida- de ação, tendo sua autonomia, subjetividade
dãos, inclusive na saúde, educação, emprego, e fala impedidas ou anuladas” (p.8).
moradia, etc29. A estigmatização produzida pelos discur-
Apesar das diferentes situações de produ- sos de saúde nas peças de Educação em Saú-
ção e recepção do discurso dos materiais produ- de apresentadas, reforça justamente a relação
zidos para Educação em Saúde descritos, veri- hierárquica, que interfere e anula a subjetividade
fica-se que a estigmatização predomina quando dos sujeitos alvo ou citados como modelos, mar-
há utilização de intenções e linguagens não hori- ginalizando-os, tal como ocorre em outras situa-
zontais dos locutores/autores em sua expressão, ções onde há violência institucional, verificadas
intenção e proposta educacional, junto a mode- em instituições públicas ou privadas, que refor-
los discursivos de amendrontamento, de reforço çam discriminações, seja na forma de negligen-
positivo ou não. Em diferentes períodos, a rela- ciar populações, serviços, ou atuar nas relações,
ção estabelecida entre os locutores/propositores de forma abusiva ante a uma população31. Ela faz
desses materiais com seus interlocutores/públi- com que “um outro” se sujeite, seja por neces-
co se demonstra histórica e, ainda, muitas vezes sidade ou pela legitimidade social de um poder,
imperativa e de legitimação de um saber especí- onde o outro, ou seu corpo, é visto como “objeto
de controle”1 (p.178).
fico e científico frente ao não-saber, desconheci-
Alguns autores, como Aquino3, consideram,
mento de leigos12, imputando aos últimos a falta
inclusive, que de um ponto de vista institucional
de capacidade de reflexão e, portanto, de exercer
não haveria autoridade sem o emprego de violên-
autonomia para realizar boas escolhas com rela-
cia e nem violência sem exercício de autoridade,
ção a sua saúde. A população, a pessoa a ser
afirmando ser inerente a violência nas práticas
educada, portanto, não é vista integralmente co-
institucionais que lidam com o público.
mo um sujeito de direitos, mas sim alguém que
Nesse sentido, são fundamentais propos-
necessita ser persuadido a práticas corretas, al-
tas de Educação em Saúde discutidas desde
guém que deve obedecer, ou seja, se portar co-
os anos 1980, junto às reflexões e processos
mo “paciente”37. de redemocratização brasileiro que deram ori-
Nesse sentido, esse modelo discursivo e gem ao SUS e, que portanto, defendem avan-
de Educação em Saúde se constitui enquanto ços nos direitos sociais e políticos desfrutados
uma violência institucional, na medida em que pelos brasileiros, reduzindo as desigualdades e
é produzido por instituições que, ligadas ao Es- vulnerabilidades, inclusive de saúde36. Na área
tado, se utilizam de seu poder de legitimidade, de atenção em saúde, as propostas de humani-
posição e alcance social e recursos para promo- zação de atendimento impuseram-se enquanto
ver discriminação. um “movimento contra a violência institucional
Segundo Chauí1, um evento se institui en- na área da saúde”, na medida em que valoriza
quanto violência, quando produz a os sujeitos e propõe a transformação da cultura

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

institucional por compromissos éticos e coleti- numa “Educação Popular em Saúde”, como indi-
vos para gerar uma nova forma de atenção à ca Sevalho, citando Oliveira32, onde a Educação
saúde e de gestão dos serviços32. em Saúde e toda a área de Saúde pode se apro-
No processo comunicativo, de Educação ximar das “condições e experiências de vida” da
em Saúde, da mesma forma, o material ou cam- população e a forma com que se apropriam da
panha comunicativa devem abandonar modelos realidade, permitindo que considerem a forma
estigmatizantes e marginalizadores contraprodu- que a transformam, ou seja, suas “possibilida-
centes com relação à saúde e aos direitos dos des de ação sobre ela”.
indivíduos, adotando princípios que se norteiem
pelo respeito aos Direitos Humanos, a coerência
ética e a democracia e inclusão propostas cons- Conclusão
titucionalmente e também pelo SUS. Toda a argumentação discursiva pode ser
Especificar que riscos de saúde estão cor- construída tendo em vista a disciplinarização
relacionados ao ambiente físico e sociocultural dos indivíduos, se atendo a condicionar certos
e político das pessoas e não apenas delas mes- comportamentos e ter caráter autoritário esta-
mas, tal como se considera quando se adota belecendo a desigualdade entre os locutores e
o conceito de vulnerabilidade, auxilia na efeti- propositores das campanhas e discursos. Mas
vação de estratégias de Educação em Saúde e também pode refletir sobre essa desigualdade
comunicação com o público que se façam mais e produzir modelos mais democráticos de Edu-
resolutivas e menos verticais, ao mesmo tem- cação e Comunicação em Saúde, orientando-se
po em que indicam estratégias de promoção de pelo respeito às culturas e saberes de seus inter-
cidadania, empoderamento e integração de po- locutores e as possibilidades que têm de fundir
pulações mais vulneráveis ou fragilizadas a tal e reconstruir constantemente saberes e orientar
ou qual mal e doença6, desestigmatizando-as. suas autonomias de conduta.
Assim, é possível reorientar ações que, justa- Frente ao retrocesso que as políticas públi-
mente, se oponham a qualquer estigmatização, cas vêm enfrentando no Brasil, é fundamental
segregação ou marginalização. não apenas retomar os modelos propositivos do
Como apontam Buchele, Coelho e Lindner8, fazer saúde já discutidos com a implementação
reforçando a integração de subgrupos de usuá- do SUS, mas expandir propostas dialógicas e não
rios de drogas como sujeitos de opinião, é fun- estigmatizantes do fazer Educação em Saúde e
damental a integração dos direitos dos grupos do fazer Saúde, combatendo veementemente mo-
e populações, considerando sua possibilidade delos que se encontram vinculados a discursos
de participação nas decisões e ações de saúde. conservadores e prepotentes de uma relação au-
Essa visão participativa e não estigmatizadora é toritária e vertical para com o público ou com de-
fundamental em saúde, portanto deveria estar terminados grupos sociais mais fragilizados.
presente em todas as áreas. Nesse sentido o resgate do conceito de
Esses modelos de Educação e Comunica- vulnerabilidade é indispensável para que não
ção em Saúde, que sejam orientados ou reo- haja retrocesso, mas sim avanços frente a ma-
rientados pelo respeito as pessoas, aos grupos, les que acometem esses grupos, como aqueles
suas culturas e saberes, enquanto interlocuto- que são abordados pelas estratégias de saúde
res sujeitos, orientam autonomias de conduta, como um todo, além dos que especificamente

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

são alvo de discursos educativos de temas já 10. Caron E. A Saúde do Jornal Nacional. [Dissertação de
marginalizados e que envolvem a saúde mental, Mestrado]. Faculdade Saúde Pública. Universidade de São
Paulo. São Paulo; 2014.
drogas e direitos sexuais e reprodutivos, incluin-
11. Coutinho F, Nublat J. Ministro da Saúde recua em
do profissionais do sexo e também a comunida-
campanha para prostitutas. Folha de São Paulo. 4 jun
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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Retratos falados - experiências de produção de recursos


educacionais para a população usuária de serviços públicos
de saúde
Portraits spoken - experiences of producing educational resources for the population that uses public
health services

Ana Luisa Zaniboni GomesI

Resumo Abstract

A intenção deste artigo é apresentar o histórico de duas produ- The intention of this article is to present the history of two com-
ções comunicacionais concebidas como recursos educativos e municational productions conceived as educational resources and
mobilizadores voltados à população usuária dos serviços públicos mobilizers aimed at the population that uses public health services
de saúde no estado de São Paulo. As peças aqui retratadas foram in the state of São Paulo. The pieces presented here were develo-
desenvolvidas por profissionais da Comunicação a partir de pes- ped by communication professionals from academic research and
quisas acadêmicas e artigos de profissionais da área da Saúde articles from health professionals - notably managers, doctors and
- notadamente gestores, médicos e enfermeiros. Uma vez adap- nurses. Once adapted to everyday language, they took the form
tadas à linguagem cotidiana, assumiram a forma de oficinas de of training workshops and/or educational booklets. With this text,
formação e/ou cartilhas educativas. Com este texto, reforçamos we reinforce how important it is to register experiences that pro-
o quanto é importante o registro de experiências que se mostram ve useful in challenging contexts, especially because they are li-
úteis em contextos desafiadores, especialmente porque são fa- ghthouses that illuminate possibilities, deal with solutions passive
róis que iluminam possibilidades, tratam de soluções passíveis de of being adapted or even reproduced, respond to the demands of
adaptação ou mesmo reprodução, respondem às demandas de so- socialization and popularization of knowledge and, finally, they em-
cialização e popularização do conhecimento e, por fim, ressaltam phasize the importance of institutional links of a multi, inter and
a importância dos enlaces institucionais de natureza multi, inter e transdisciplinary nature that in many ways contribute to the impro-
transdisciplinar que em muito colaboram para o aperfeiçoamento vement of praxis in the area of Health.
​​
da práxis na área da Saúde.
Keywords: Communication and health; Health education; Educatio-
Palavras-chave: Comunicação e Saúde; Educação em Saúde; Re- nal resource.
curso educativo.

I
Ana Luisa Zaniboni Gomes (analuisagomes@obore.com) é formada em Co-
municação Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
-SP), Doutora em Ciências da Comunicação e Pós-Doutoranda pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Jornalista
Profissional e Diretora da Oboré Projetos Especiais.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

“A alegria não chega apenas no encontro do precisam ser conhecidas, reconhecidas e expan-
achado, mas faz parte do processo da busca. didas de modo a estimularem o surgimento de
E ensinar e aprender não pode dar-se fora da novas iniciativas e aumentarem as expectativas
procura, fora da boniteza e da alegria”. de resultados a curto prazo. Baseiam-se, igual-
(Paulo Freire, 1996, p.16) mente, no reconhecimento da importância da ge-
ração e socialização do conhecimento capaz de
atuar na transformação da realidade, esteja ele
assentado em ambientes formais, informais ou
Introdução
não formais e que tenha compromisso com o seu
Meu propósito neste artigo é tratar de duas
tempo social10.
experiências de formação cuja importância social
Outro conceito inspirador é o de “cultura
reside no fato de que foram concebidas para re-
científica” proposto por Vogt11,12 para também de-
lacionar demandas da área da Saúde a elemen-
signar toda e qualquer atividade de socialização
tos educativos que, com a colaboração ativa da do conhecimento. Para o autor, trata-se de um
Comunicação, tornaram-se recursos disponíveis processo essencialmente cultural, pois envolve
tanto aos serviços de saúde quanto aos usuários desde a criação, a produção, a difusão entre pa-
do Sistema Único de Saúde (SUS). res, a divulgação na sociedade, o ensino-aprendi-
Conceitualmente, as reflexões ancoram-se zagem ou, ainda, o estabelecimento das relações
na “sociologia das ausências e das emergências”, necessárias entre o cidadão e os seus valores na
de Boaventura de Souza Santos10, para quem as compreensão pública da ciência11.
inúmeras experiências no campo social que privi- Há também alguns pressupostos que es-
legiam o acesso mais equânime ao conhecimento clarecem nosso lugar de fala e de atuação

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

prático-reflexiva nas experiências aqui apresen- de seu Departamento de Medicina Preventiva,


tadas. Um deles é o fato de que a Comunicação respondeu ao chamado e apresentou a ideia de
conquistou lugar determinante no mundo contem- criar cursos que ampliassem a informação so-
porâneo. Outro é a compreensão de que os di- bre saúde disponível a esse segmento de comu-
ferentes vínculos que os processos e produtos nicadores. Construído de forma colaborativa e
comunicativos estabelecem com a Educação e dialógica, o projeto reuniu uma grande equipe de
a Saúde referem-se a formas de apreensão do profissionais, das mais variadas formações, e
mundo e, como tal, evidenciam a necessidade foi apresentado conjuntamente por técnicos da
de ampliar o diálogo com discursos gerados fora UNIFESP, Secretaria da Saúde do Estado de São
de seus respectivos espaços tradicionais. Outro Paulo, da Secretaria de Saúde do Município de
entendimento ainda é que, mesmo orientados Guarulhos e da Oboré Projetos Especiais.
ao longo do tempo por inflexões distintas, pois A metodologia de trabalho foi especialmen-
originados de diferentes realidades sociais e cul- te concebida de forma a permitir às rádios comu-
turais, tais entrosamentos multidisciplinares são nitárias serem um ponto de troca de conhecimen-
destinados a um compromisso emancipador1. tos e ações entre a comunidade e os serviços
Com esse esclarecimento inicial, passo ao de saúde. Para isso, era preciso fornecer aos co-
relato de cada uma das experiências acima refe- municadores informações técnicas sobre saúde-
ridas. Começo por rememorar um projeto de for- -doença, apresentar as diretrizes, os princípios e
mação desenvolvido em 2005 no município de objetivos do SUS e organizar com eles uma rede
Guarulhos (SP), cujo objetivo era auxiliar na cons- técnica de retaguarda para ajudar seus trabalhos
trução de diálogos entre comunicadores popula- de cobertura do assunto saúde em suas ativida-
res e os serviços de saúde a fim de estimular des cotidianas de comunicadores. A proposta,
a participação da comunidade em propostas de sobretudo, foi construir uma interação entre os
valorização das questões de saúde-doença. Em campos da Comunicação e da Saúde para que
seguida, passo a descrever e comentar o proces- os técnicos da área obtivessem alternativas de
so de construção de uma cartilha educativa, em comunicação com a comunidade e que os comu-
2008, que procura responder algumas das dúvi- nicadores populares passassem a ter fontes de
das sobre a gravidez, o parto e o pós-parto. informação técnica seguras para suas atividades
junto aos seus ouvintes.
Do ponto de vista dos coordenadores, o
Comunicação, Saúde e comunidade: a aporte do saber técnico sobre saúde, doença e a
contribuição das rádios comunitárias lógica de atuação dos serviços poderia contribuir
Em 2004, um edital do Ministério da Saú- para que mais pessoas ficassem informadas so-
de, por meio da Secretaria de Gestão Participa- bre seus direitos desde que o diálogo construído
tiva, convocou universidades brasileiras interes- respeitasse os saberes e interesses das pesso-
sadas em desenvolver alternativas de comuni- as. Nesse sentido, os comunicadores populares
cação em saúde direcionadas a rádios comuni- foram compreendidos como mediadores de infor-
tárias, à época em expansão por todo o Brasil mações nas comunidades aonde atuavam.
e mobilizadas pela definição de marcos legais Um mapeamento territorial integrou a fase
para a regulamentação do setor4. A Universi- inicial do projeto, com o propósito de fornecer
dade Federal de São Paulo (UNIFESP), através informações reais sobre quais eram as rádios

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

comunitárias existentes em Guarulhos, onde es- a permitir a avaliação das oficinas quanto aos
tavam localizadas e quais comunicadores atua- recursos materiais e humanos, a avaliação do
vam nessas pequenas emissoras. Somente a aprendizado, além da auto-avaliação dos parti-
partir dessas informações preliminares tornou-se cipantes nos grupos. A análise das respostas
possível a montagem de uma lista de radialistas indicou tratar-se de uma metodologia compatível
a serem convidados para as oficinas previstas no com os objetivos de alcançar envolvimento e de-
projeto. O mesmo foi feito em relação aos servi- senvolver parcerias entre comunicadores, servi-
dores da saúde: a partir da localização geográfi- ços de saúde e comunidade3,6.
ca das emissoras foi possível selecionar quais
serviços deveriam ser chamados a participar das
dinâmicas, já que o pressuposto era trabalhar a Celebrando a vida: construção de uma cartilha
Comunicação e a Saúde de forma territorializada. para a promoção da saúde da gestante
Para isso, foram organizadas 13 oficinas de No dia três de dezembro de 2009, o traba-
trabalho entre setembro e novembro de 2005, no lho “Celebrando a vida: Construção de uma Carti-
Centro de Formação de Educação Parque Júlio lha para a Promoção da Saúde da Gestante”II re-
Fracalanza, com a presença de 67 participantes cebeu, na categoria “mestrado”, o prêmio princi-
entre comunicadores de rádios comunitárias e re- pal Incentivo em Ciência e Tecnologia para o SUS”
presentantes dos diversos serviços de saúde do do Ministério da Saúde, em reconhecimento de
município. O objetivo foi refletir, discutir e elabo- sua metodologia inovadora que além da própria
rar ações conjuntas sobre temas de saúde. dissertação, incluiu uma cartilha educativaIII ela-
A metodologia desenvolvida articulou, além borada a partir do relato das vivências e dúvidas
de textos acadêmicos, outros tipos de lingua- mais comuns referidas pelas gestantes acompa-
gem, como pintura, música, radionovela, poesia, nhadas na pesquisa realizada no Hospital Univer-
ilustrações e charges na abordagem de assun- sitário da Universidade de São Paulo (HU-USP).
tos como: SUS, Saúde e Comunicação, saúde- A cartilha foi elaborada entre os meses de
-doença, atenção à saúde, modelos de atenção, fevereiro e outubro de 2008 a partir das transcri-
doenças sexualmente transmissíveis (DST) e ai- ções feitas nessa dissertação sobre as vivências e
ds, tuberculose, hipertensão, diabetes, vacina- dúvidas mais comuns das gestantes acompanha-
ção, gravidez na adolescência, álcool e drogas, das. Além de contextualizar o universo envolvido
e acolhimento. Durante as oficinas procurou-se na busca da promoção da saúde da gestante sob
construir espaços para as necessidades de even- a ótica do SUS e balizado por uma vasta bibliogra-
tuais correções que viabilizassem o alcance dos fia científica sobre o tema, o material apresentava
objetivos: discutiu-se o tipo de organização e os
conteúdos propostos, inclusive a presença de ou- II
Desenvolvido por Luciana Magnoni Reberte e orientado por Luiza Akiko Ko-
tras linguagens além da novela, como poemas, mura Hoga, à época coordenadora do Grupo de Pesquisa Núcleo de Assis-
tência ao AutoCuidado da Mulher (NAAM) do Departamento de Enfermagem
música e filmes. Materno Infantil e Psiquiátrico da Escola de Enfermagem da Universidade de
São Paulo (EE-USP), financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
A opinião dos participantes foi expressa Científico e Tecnológico (CNPq).
III
Tive o privilégio de atuar como especialista da área da Comunicação junto
nos grupos de discussão e nas plenárias. O pro- à equipe de validação da cartilha e como coordenadora editorial do material,
entre os meses de fevereiro e outubro de 2008. Meu papel foi sugerir os cri-
cesso de avaliação final constou de um questio- térios conceituais e técnicos que mais se adaptariam à natureza educativa da
peça, ao público prioritário – as gestantes moradoras da cidade de São Paulo
nário com questões abertas, ordenadas em três assistidas pelo SUS - e ao objetivo de colaborar na promoção da saúde da
gestante por meio do acesso a informações educativas e qualificadas sobre
núcleos de interesse, e organizado de forma gravidez, parto e pós-parto.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

o cenário real da experiência da maternidade des- a este fato, iríamos, juntos, cuidar para que esse
crito pelas próprias gestantes e seus parceiros a evento ocorresse com todo o cuidado e carinho.
partir das dúvidas, expectativas, questionamentos Entendíamos também que seria muito importante
e demandas iluminadas de forma coletiva, nos destacar o “processo de nascer” – assunto cen-
trabalhos em grupo. Evidentemente, era preciso tral da publicação – através de relatos diretos ou
selecionar e organizar as informações de manei- tipo pergunta-resposta, que poderia ser sub-divi-
ra a facilitar a leitura e compreensão de tudo por dido em fases para facilitar a leitura ou a busca
todos, inclusive esclarecendo o compromisso do do tema nas páginas da publicação. Além disso,
Estado brasileiro em garantir o acolhimento e o deveríamos acrescentar em cada temática outros
atendimento humanizado, o respeito aos direitos conteúdos sugeridos nas sessões dos grupos de
das gestantes e de todos os demais usuários dos gestantes, como por exemplo: modificações fi-
serviços públicos de saúde. siológicas da gestação, desenvolvimento fetal e
Em um primeiro momento, foram focadas gestacional, trabalho de parto e parto, parto nor-
as questões de conteúdo. Meu desafio de comu- mal e o uso do fórceps, puerpério, amamentação,
nicadora era selecionar e organizar editorialmen- desconfortos e abordagem corporal. Por fim, se-
te os muitos temas e assuntos disponíveis do ria também interessante acrescentar sugestões
relatório para transformá-los em um roteiro de de leituras complementares.
uma publicação educativa. Independentemen- Só então passamos a refletir sobre o forma-
te do formato que viesse a assumir o material, to do material e as lógicas editoriais a serem ado-
era necessário inicialmente definir a intenção e tadas, como a facilitação da leitura e a simplifica-
a lógica que permeariam o texto: quem estava ção visual. Queríamos garantir o respeito máximo
falando, para quem estávamos falando, sobre e profundo para com a futura leitora. Nesse sen-
o quê estávamos falando e porquê estávamos tido, o grande desafio dessa construção foi não
tratando daqueles temas. Mais ainda: quais as- cair no terreno movediço da infantilização da nos-
suntos iríamos priorizar, em que profundidade e sa interlocutora nem adotar um caráter simplório
em qual sequência. para o projeto. Das várias e sucessivas tentativas
Isso posto, preparamos um roteiro prelimi- para estabelecer o que viria a ser o nosso pa-
nar de conteúdos: uma apresentação referindo- drão, ressaltou-se o uso do texto em linguagem
-se ao próprio material – que tipo de instituição coloquial e popular, compreensível para a maioria
concebeu, organizou e produziu os temas, para da população, independente de classe social ou
quem foi feito e com que objetivo, como nasceu a grau de formação, em diagramação arejada e vi-
ideia da cartilha, qual o processo percorrido para sual suave e limpo, por meio de algumas regras
se chegar a ela e quais as expectativas e resulta- básicas como (1) usar letras maiores do que as
dos deste processo. Em seguida, foi desenvolvi- usuais, de boa definição e sem contrastes de co-
do um capítulo inteiro sobre o compromisso com res ao fundo; (2) utilizar ilustrações claras que
a promoção da saúde da gestante materializado remetessem efetivamente ao texto; (3) usar fra-
em um texto geral para contextualizar o tema a ses e parágrafos curtos e sintéticos que concen-
partir do compromisso público do SUS e do HU trassem uma informação de cada vez; (4) adotar
com as mulheres gestantes. espaçamento e entrelinhamento generosos que
O nosso mote foi que mais um cidadãozi- permitissem leitura em várias situações, espe-
nho ou cidadãzinha estava para nascer e frente cialmente em ônibus, trens ou metrô; (5) adotar

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

um tipo de texto capaz de convencer o leitor da radionovela criada especialmente para esse pro-
necessidade e da importância da leitura; (6) o jeto de formação.
material, além de seu cunho educativo, deveria Dentre os fatores que podem ser con-
expressar toda a responsabilidade do gestor e siderados em futuras experiências, estão a
do equipamento público de saúde no atendimen- coincidência de horário com outros vínculos
to adequado e humanizado aos usuários, dentro de trabalho dos radialistas, a falta de ajuda de
dos protocolos e padrões estabelecidos no SUS; custo para o deslocamento e receio de exposi-
(7) também deveria garantir que as observações ção – tendo em vista a perseguição, à época,
dos peritos programados para analisar as várias de fiscais da Agência Nacional de Telecomuni-
fases e versões do projeto fossem todas contem- cações (ANATEL) às emissoras em processo
pladas na versão final do material. de legalização na Grande São Paulo, especial-
Essas regras foram, passo a passo, dese- mente Guarulhos, por abrigar um aeroporto in-
nhando o formato final da cartilha, que ganhou ternacional. Dos objetivos aparentemente não
identidade ao ser validada não apenas pelos pe- atingidos e de grande importância na conquis-
ritos, mas também pelas gestantes – as efetivas ta de resultados, pode-se citar a inexistência
e futuras leitoras do nosso material. de mecanismos para a manutenção da relação
servidores-radialistas. Situações como essas
precisam de retaguarda e proteção institucio-
Reflexões e aprendizados nal (no caso dos serviços de saúde) e confian-
- reflexões sobre um projeto de integração de ça nas ações governamentais (no caso das
rádios comunitárias para a promoção da saúde: rádios comunitárias). Por isso, uma lição im-
Constatado o potencial do projeto para con- portante dessa experiência vivida foi compre-
tribuir com o processo de educação e participa- ender que o desenvolvimento e a efetividade
ção popular, entendemos que, nessa experiência, de projetos como este aqui relatado exigem o
os campos da Saúde, Comunicação e Educação compromisso dos gestores 6 (p.443).
se entrecruzaram em função do objetivo da pro-
posta e do perfil multiprofissional de sua equipe - reflexões sobre a produção da cartilha Ce-
coordenadora. Partindo de campos distintos na lebrando a vida, visando a promoção da saúde
formulação disciplinar, tudo foi desenhado e de- da gestante:
senvolvido considerando o caráter ampliado do Em artigo científico elaborado com o propó-
conceito de saúde e o potencial articulador dese- sito de avaliar, sob a ótica da área da Saúde, o
nhado pelo SUS. caminho percorrido na elaboração e produção da
A diversidade de materiais para estimular a peça educativa, Reberte, Hoga e Gomes9 (tela 6)
participação, a valorização dos relatos de experi- destacam que “a experiência realizada mediante
ências e a oportunidade de todos expressarem processo participativo, dialógico e coletivo – co-
seus pontos de vista criaram, nas oficinas, um mo preconizado nos fundamentos teóricos atuais
clima favorável às trocas, ao aprendizado e ao em termos de promoção à saúde – demonstrou
entrosamento. O diálogo, nem sempre fácil en- que o desenvolvimento desse processo é viável
tre pessoas de níveis diferentes de escolarida- e pode ser aplicado na elaboração de materiais
de, foi possível pela oportunidade de se utilizar educativos destinados à educação e promoção
a fala de “terceiros”, ou seja, os personagens da da saúde”.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

“A participação dos peritos na validação da preconceitos incluídos na representação da


cartilha possibilitou uma adequação do con- clientela, o que implica em respeitar e tentar
teúdo ao contexto de trabalho destes profis- entender a fala do outro, a fim de influenciar
sionais, permitindo abranger fatores impor- na produção de uma nova cultura do setor
tantes que não haviam sido considerados em saúde. [...] Reitera-se a importância do cuida-
sua elaboração inicial. Procedeu-se a uma do em garantir uma comunicação eficaz na
crítica construtiva a fim de atender as expec- elaboração desta cartilha, tendo em vista a
tativas dos colaboradores, que são pessoas ampla recomendação da importância do in-
que podem possuir conhecimentos e interes- vestimento na comunicação entre os profis-
ses distintos de quem elabora o material edu- sionais e a mulher, como meio de promover
cativo. [...]. O envolvimento de profissionais os direitos humanos das mulheres na gravi-
de comunicação, mediante a concepção e dez e no parto. Neste aspecto, as atividades
realização do trabalho editorial e gráfico, des- educativas realizadas durante o pré-natal de-
de o início do processo, também foi essen- vem estar estruturadas com a finalidade de
cial. Esta medida tem sido preconizada nos reduzir os desvios de comunicação, já que os
processos de produção de materiais educa- profissionais tendem a ter posturas precon-
tivos no âmbito do SUS, já que existe uma ceituosas em relação ao fornecimento de in-
crítica sobre a limitada inserção desses pro- formações às mulheres”9 (tela 6).
fissionais em apenas uma parte das etapas
Ainda segundo os autores, a principal pro-
de produção, constituídas pelo planejamento,
posta que envolveu a criação da cartilha, cuja
execução e avaliação dos materiais. Nesse
versão online está disponível ao público no site
trabalho, foi possível aliar os conhecimentos
da EEUSP, foi a de ampliar o potencial da ges-
técnicos próprios de cada categoria profis-
tante e da sua família e promover a condição de
sional no desenvolvimento de todas as fases
saúde da mulher. Trata-se de um recurso impor-
de construção da cartilha pois eram profis-
tante, “um suporte aos profissionais e às gestan-
sionais compromissados com seu propósito
tes para que superem dúvidas e dificuldades que
e com experiência consolidada no desenvol-
permeiam o processo de gestação e parto”9 (tela
vimento de cartilhas educativas voltadas à
7). Há, porém, a ressalva de que, apesar do im-
educação e promoção da saúde”9 (tela 6).
portante passo para o acesso dos leitores, não
Os autores ainda apontam que, com a ela- é suficiente para representar recurso amplamen-
boração da cartilha, pretendeu-se, sobretudo, su-
te utilizado pelos usuários do SUS. Era preciso
perar a hegemonia que se têm estabelecido na
disponibilizá-la na versão impressa para as insti-
educação em saúde.
tuições públicas de saúde.
“Essa experiência significou reconhecer as li-
mitações do próprio saber admitir e validar
um outro saber, não especializado, na identi- Considerações finais
ficação mais ampla das necessidades de saú- As experiências destacadas apresentam
de e na compreensão dos contextos de vida e propósitos e métodos transformadores, de cará-
dos recursos mobilizados pela população. Es- ter público, o que foi percebido em seus resulta-
sa prerrogativa pressupõe a superação dos dos tanto pelos coordenadores quanto por seus

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

principais beneficiários. Frente a isso, espera-se 5. Levy P. A conexão planetária: o mercado, o ciberespa-
que a Comunicação continue, cada vez mais, par- ço, a consciência. São Paulo: Editora 34; 2000.
6. Matos MR, Meneguetti LC, Gomes ALZ. Uma experiên-
ceira e colaboradora dos campos da Educação
cia em comunicação e saúde. Interface. 2009; 13(31):437-
para a Saúde com vistas a enfrentar as inúmeras
447. [acesso em: 16 ago 2017]. Disponível em: http://
e distintas questões do nosso tempo. www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
-32832009000400016&lng=en. 
7. Oboré. Comunicação, saúde e comunidade: a contri-
buição das rádios comunitárias [cartilha]. Brasília: Ministé-
rio da Saúde, Secretaria Municipal da Saúde de Guarulhos;
Referências 2005. v.1. [acesso em: 14 ago 2017]. Disponível em: ht-
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do uma nova área de conhecimento. São Paulo: Paulinas; 8. Oboré. Comunicação, Saúde e comunidade: a contri-
2011. buição das rádios comunitárias [cartilha]. Brasília: Ministé-
2. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. rio da Saúde, Secretaria Municipal da Saúde de Guarulhos;
Celebrando a vida – nosso compromisso com a promoção 2005. v.2. [acesso em: 14 ago 2017]. Disponível em: ht-
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3. Gomes ALZ, Matos MR, Meneguetti LC. Comunicação, 2012; 20(1):101-108. [acesso em: 16 ago  2017]. Dispo-
saúde e comunidade: a contribuição das rádios comunitá- nível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
rias. Anuário UNESCO/Metodista de Comunicação Regio- arttext&pid=S0104-11692012000100014&lng=en.
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4. Gomes ALZ, Peruzzo, C.; Otre, M. A. C. Dificuldades de Idéias. 2005; 3:5-6.
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Bernardo do Campo: UMESP; 2015. p.349-364. FAPESP; 2006. p.19-26.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Parteiras e médicos: paradigmas existenciais opostosI


Midwives and doctors: opposing existent paradigms

Janaína de Alencar RibeiroII

Resumo Abstract

Parteiras e médicos são guiados por paradigmas existenciais con- Midwives and doctors are guided by opposing existential paradig-
trapostos, que em seu limite, poderiam ser complementares: as ms, which in their limits could be complementary: the former gui-
primeiras guiando-se pelo conhecimento integral da mulher e os ded by the integral knowledge of women and the latter, by the limit
últimos, pelo limite da medicina científica e tecnológica. Portanto of scientific and technological medicine. Therefore midwives (non-
as parteiras (não-médicos) podem garantir o espaço do parto hu- -medical) can better guarantee the space of humanized and natu-
manizado e naturalizado, cabendo a intervenção médica somente ralized delivery, leaving medical intervention only when surgery is
quando houver necessidade de cirurgia. Porém, o que temos é a needed. However, what we have in Brazil is the marginalization of
marginalização da prática das parteiras e uma hipermedicalização the practice of midwives and a hypermedicalization of childbirth
do parto feito por médicos. by doctors.

Palavras-chaves: Parteiras; Parto; Medicina; Humanização.III Keywords: Midwife; Childbirth, Medicine; Humanization.

I
Artigo baseado na monografia “Retas Paralelas se Cruzam? Fragmentos e
Retalhos: um ensaio sobre a prática de parteira e sustentabilidade na Ama-
zônia”20, para obtenção do título de Bacharel em Sociologia e Política pela
Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP), sob orientação
de Ronaldo Rômulo de Almeida e Artionka Capiberibe, a quem agradeço por
terem apoiado incondicionalmente esta pesquisa.
II
Janaína de Alencar Ribeiro (najavabr@yahoo.com) é Cientista Social pela
Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP) e Mestranda
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidad de
Buenos Aires (UBA).

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução no Cairo, em 199426, que consagrou, após longas


Parteiras e médicos são guiados por para- negociações e articulações, a concepção de saú-
digmas existenciais contrapostos, que em seu de reprodutiva como um direito humano e a ideia
limite, poderiam ser complementares: as primei- de que a reprodução não pode ser tratada isola-
ras, guiando-se pelo conhecimento integral da damente, mas sim, ser abordada no contexto de
mulher que possuem, e os últimos, pelo limite políticas de desenvolvimento. No Brasil, o marco
da medicina científica e tecnológica que seguem. foi desta proposta, com relação ao parto foi o
Dessa forma, parteiras (não-médicas) têm mais lançamento da Política de Humanização no Pré-
tradição em garantir espaço ao parto humaniza- -natal e Nascimento, Parto, Aborto e Puerpério9,
do e naturalizado, deixando a intervenção médica produzida pelo Ministério da Saúde em 2001,
somente para quando há necessidade. Porém, o que introduziu a iniciativa mais abrangente para
que temos no Brasil, é a marginalização da prá- a humanização do atendimento à mulher partu-
tica das parteiras e uma hipermedicalização do riente e seu bebê.
parto feito por médicos. Essas recomendações ou programas, po-
Movimentos de humanização do parto são rém, raramente geram a reinserção das parteiras,
impulsionados por deliberações de organismos com exceção de algumas iniciativas, como a do
internacionais como a II Conferência Internacio- Amapá, que em 1995, implementou o Programa
nal de Direitos Humanos, realizada em Viena, em Resgate e Valorização das Parteiras Tradicionais
199325, que enfatizou que os direitos das mulhe- dentro do Programa de Desenvolvimento Susten-
res são direitos humanos e a Conferência Interna- tável (PDSA)1, visando, como afirma Barroso22, “o
cional de População e Desenvolvimento, realizada reconhecimento e valorização dessas mulheres,

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

tirando-as do anonimato e profissionalizando-as. O atual modelo de assistência ao parto é,


Esse projeto enfatiza a regulamentação da práti- assim, cada vez mais tecnológico e centrado no
ca do parto tradicional, sem modificar o estilo de médico e a recorrentemente tentativa de reintro-
fazer parto domiciliar” (p.13). dução da parteira ao trabalho de parto, quando
De restante, o sistema moderno de atendi- proposta, se faz no sentido de diminuir a sobre-
mento na área de Obstetrícia é composto por pro- carga do médico e não apenas visando à humani-
fissionais da medicina (médicos, obstetras, en- zação deste evento propriamente dito.
fermeiros, cirurgiões, anestesistas, etc), que se Outro aspecto relevante que não é conside-
distribuem em hospitais e unidades/postos de rado é a liderança exercida pelas parteiras junto
saúde e exercem o monopólio dessa atenção e, a sua clientela, que se mostra como elemento
consequentemente, sobre a saúde das mulheres fundamental para dinamizar a organização das
gestantes. Seus conhecimentos são produto da populações onde vivem quando a suas reivindica-
tradição europeia e ocidental da ciência moderna. ções por melhores níveis de saúde, de assistên-
Dada a precariedade e a violência do aten- cia e qualidade de vida.
dimento à mulher referida por diversos autores e
presente até hoje16, quando se observa como as
“coisas de mulheres” são tratadas desde o sur- O parto na história ocidental: emergência “a ferro
gimento da medicina ocidental, pode-se afirmar e fogo” de um saber masculino
que esta vem sendo deveras agressiva, principal- O histórico de mudanças quanto às técni-
mente no que diz respeito ao parto. cas do parir pode ser apresentado por dois fato-
Se analisarmos como se deu o uso indis- res principais: o crescimento do parto feito por
criminável do fórceps (também conhecido como médicos, principalmente através de cesarianas,
“mão de ferro”), verificamos que o uso deste apa- e, ao mesmo tempo, a crescente desumaniza-
relho está vinculado ao detrimento do trabalho ção da assistência. Desde século XIX e até os
das parteiras e o favorecimento do conhecimen- dias de hoje, a assistência ao parto vem sendo
to técnico dos médicos17. Também a realização feita a partir de uma visão centralizada na figura
indiscriminada de cesáreas no Brasil que já al- do médico, situação em que as parteiras (não-
cançam índices absurdos de cerca de 80 % dos -médicas) são consideradas charlatãs ou só têm
partos cirúrgicos e que a Organização Mundial sua atuação justificada por insuficiência de aten-
de Saúde (OMS) recomenda que seja realizado dimento médico, como ocorre nas regiões Norte
procedimento cirúrgico em até 15% dos partos25, e Nordeste do país.
apontada por muitos como “a melhor forma de Na Europa, a participação masculina no par-
parir” devido a uma suposta “segurança” do par- to foi pouco frequente até o século XVII18, pois
to e “sem dor”, percebe-se até onde o mau uso obstáculos da ordem moral impediam a entrada
da técnica pode chegar, fazendo parte dos itens de homens nos aposentos das parturientes. Co-
que ressaltam a desumanização da assistência à mo o ato de “dar a luz”, o parto era encarado
gestante que, hoje, vem sendo denominada “vio- como um evento fisiológico e manteve por sécu-
lência obstétrica”16 e que atinge principalmente los os homens afastados da parturição. Em algu-
mulheres das classes desfavorecidas em hospi- mas situações em que havia intervenções, estas
tais públicos e, até, em hospitais-escolas de trei- aconteciam em situações específicas e dramáti-
namento de residentes. cas, uma vez que os médicos pouco conheciam

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

da fisiologia feminina e tinham habilidade apenas dava, literalmente, por baixo dos panos. Como as
para a hemostasia (cessão sangramentos), por mulheres não tinham conhecimento do que ocor-
meio de suturas ou drenagens, guiados pela prá- ria com seus corpos, o uso desse instrumento
tica clínica de intervenção, ou temidas cirurgias, era feito sem nenhuma autorização.
muitas vezes mutiladorasIII, consideradas de práti- O fórceps obstétrico, assim, substituiu a
ca médica masculina17. A presença do homem no embriotomia em partos onde não havia livre ex-
parto, dessa forma, significava que algo estava pulsão rápida do bebê, trazendo mudanças radi-
indo mal e que a parteira já tinha utilizado suas cais à assistência obstétrica. A invenção do fór-
técnicas e redes de apoio sem êxito. Assim, so- ceps, segundo Litoff17, foi o evento que isolada-
mente por ostentação, por ser utilizado por famí- mente mais influenciou na aceitação da Obstetrí-
lias abastadas do período ou em casos difíceis cia como disciplina técnica e cientifica e passou
quando os recursos das parteiras se esgotavam, a ser utilizado corriqueiramente e sem restrições,
a vinda do cirurgião era requisitada. no século XVIII, tanto como o uso do ópio e da
Segundo Osava17, durante o séc. XVII acredi- sangria para aliviar as dores do parto.
tava-se que o feto comandava o trabalho de par- Assim, o uso do fórceps pode ser usado co-
to, sendo estes encarados como responsáveis mo símbolo da participação do homem no parto,
pela dor da mãe. Por isso, intervenções como a inaugurando um período onde há hegemonia da
embriotomia de fetos vivos ou mortos eram mo- técnica e legitimada pela ciência, em detrimen-
to do trabalho da parteira. As próprias partei-
ralmente o sofrimento como um castigo aquele
ras, mesmo não vendo com bons olhos o uso do
ser provocador de mal.
chamavam “mão de ferro”, recorriam ao médico,
É interessante, também, notar os diferentes
quando necessário17:
significados que o parto assume em cada socie-
“Estas colheres de ferro que interferiam no
dade. Na época de Hipócrates (460-377 a.C.), o
curso do nascimento, até então entregue à von-
parto era entendido como comandado pela von-
tade onipotente, desafiaram a noção de parto co-
tade do feto, por isso faziam-se oferendas para
mo um ato comandado pelo destino. A luta do
atraí-lo para fora do útero; diferentemente, no
homem contra a natureza se materializava, intro-
século XVII, predominava na Europa o imaginá-
duzindo o conceito de parto como um ato coman-
rio fortemente católico, que justificava a dor e as
dado pela vontade humana” (p.11).
anomalias do parto como obra onipotente e liga-
As cesáreas só eram permitidas em gestan-
da às condutas da mãe, que deveria, no mínimo,
tes mortas e só passou a ser prática aceita e
fazer jus a seus pecados17.
resgatada pela Obstetrícia científica a partir da
O cirurgião inglês Peter Chamberlen (1540-
segunda metade do século XX, e, no Brasil, em
1596) foi o inventor do fórceps, instrumento usa-
1822, disputando a hegemonia do fórceps nas in-
do em segredo durante quase um século. Segun-
tervenções sobre o parto. Esse uso da cesariana
do Osava17, o segredo sobre seu uso só foi possí-
gerou, na época, altos índices de mortalidade17.
vel, porque os médicos, naquela época somente Não muito diferente, na América do Nor-
apalpavam as partes intimas, mas não a viam, te, a corporação médica era formada em bases
portanto a assistência masculina ao parto se classistas: masculina, branca e de classe média,
contrapondo-se em campanhas contra os charla-
III
Como a temida histerectomia, ou a embriotomia13. tães e as parteiras17, num semelhante caça às

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

bruxas medievais. Anteriormente, na Idade Mé- mulheres, com seus “odores e secreções”. Se-
dia, a Santa Inquisição da Igreja Católica já havia gundo Del Priore5, “estas coisas de mulheres em
tido as parteiras como alvos prediletos de suas que se constituía dar à luz, requeria ritos e sabe-
caças e condenações3: res próprios, em que os homens só interfeririam
“Para os inquisidores, as bruxas parteiras em casos de emergência e, sobretudo, nos cen-
praticavam crimes, matavam crianças tanto no tros urbanos” (p.263). Assim, a presença mascu-
útero da mãe quanto depois de nascer, impediam lina era encarada como desconfortável.
a concepção através de ervas, provocavam abor- Havia preconceito com relação a essas mu-
to ou quando fracassavam na tentativa do aborto lheres, que eram acusadas de prática de infan-
ofereciam a criança ao diabo” (p.129). ticídio, feitiçaria e de provocar abortos5,17. Essa
Assim, também nos Estados Unidos, várias imagem negativa era veiculada pela literatura
foram as tentativas visando subjugar o trabalho médica do século XIX, em oposição ao cotidiano
das parteiras aos domínios da medicina ociden- das mulheres que a denominavam como “coma-
tal oficializada. Em 1902, foi aprovada a lei Midwi- dres”, demarcando sua proximidade, afetividade
ves Act, que proibia o exercício de parteiras não e carinho.
registradas, além de criar um órgão regulador de Como aponta Osava17:
suas práticas, orientando que deveriam solicitar
“O movimento do parto foi durante muito tem-
um médico em situações anômalas. Essa lei de-
po, uma vivência exclusivamente feminina,
marcou a passagem do domínio do parto para a
uma intensa experiência corporal e emocio-
medicina oficial17. Até então, na América do Nor-
nal que levava as mulheres a se subjetivarem
te, 50 % dos partos eram realizados por mulheres
a partir desta” (p.17).
de baixa renda, situação encarada pela classe
médica como um desperdício de material de es- Ainda que, até meados do século XX, as
tudo, à precariedade e à falta de higiene, margi- parteiras tradicionais tenham sido as grandes
nalizando e depreciando as mulheres parteiras. agentes centrais da assistência ao parto, no Bra-
Essa situação inaugurou campanhas nos sil não foi diferente movimento de transferência
meios de comunicação, disseminadas no inicio do parto para o campo da medicina. Os médicos
do século XX, propagandeando os benefícios da também disputaram a hegemonia sobre o parto
participação médica-masculina no parto, embora com as parteiras. Além disso, a questão racial
não tenha significado a diminuição dos altos índi- se mostrou crucial para a exclusão das parteiras
ces de mortalidade17. que eram, em sua maioria, mulheres indígenas,
No Brasil, desde o início da colonização, são negras, mestiças e mulatas, favorecendo a dis-
as parteiras que monopolizam a arte de partejar criminação e a maledicência sobre suas práticas.
e estas eram caboclas, portuguesas e negras ve- No século XX, acorre definitivamente o fim
lhas, pertencentes aos estratos mais baixos da da feminização do parto e passa a predominar o
sociedade, como apontou Osava17 (p.25). parto hospitalar. Antes o que era o espaço para
Até o século XIX, a assistência ao parto per- a subjetividade feminina tornou-se espaço para a
maneceu exclusivamente nas mãos das parteiras ação e a formação de médicos.
até o século XIX. Salvo algumas exceções, cirur- O discurso e a pratica médica, no entanto,
giões barbeiros não partejavam, pois a esfera não conseguiam incorporar a subjetividade fe-
do parto constituía ritos e saberes próprios das minina justamente por não haver compartilhado

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

concretamente da cultura feminina do parto e do comportamento da parturiente, provocando uma


parir. Segundo Osava17, o de trabalho de parto pa- uniformização da preparação do parto e sua rea-
ra os médicos é sentido com repugnância e pela lização, conforme aponta Osava17:
necessidade de intervenção. “No hospital, simbolicamente a mulher é des-
Esse fator possibilitou o resgate das ques- pida de sua individualidade, de sua autono-
tões femininas e uma aliança de gênero que fi- mia e sua sexualidade” (p.62).
zeram com que, na década de 1980 a 1990, o
Ao estar internada institucionalmente, a mu-
movimento feminista retornasse as questões
lher passa a ser banida de seus familiares, de
sobre o parto e o aleitamento como bandeiras
suas roupas, de sua alimentação típica, além de
importantes.
ficar sujeita à intervenção sobre seu corpo, com a
raspagem dos pelos pubianos, rituais de limpeza
Parto tecnológico no Brasil retal com uso do enemas e a introdução de soro
O parto por cesárea, o parto tecnológico, endovenoso. Os sentimentos são banidos da re-
na sociedade moderna ocidental, ganha, assim, lação médico-paciente e a mulher deixa de ser o
dimensão de segurança em detrimento do par- sujeito do parto, para se tornar apenas mais um
to normal, que remete à natureza e ao instinto caso. Nesse sentido, o preço que se paga para
e transformado em sofrimento desnecessário às uma suposta melhoria da qualidade do parto é a
mulheres que a tecnologia pode agora poupar. total desumanização em sua assistência e a sub-
Essa é a ideia que se prolifera. Assim, também missão da mulher a sondas, lavagens, toques,
o século XX dissemina o uso da anestesia para cortes e constrangimentos, realizados indepen-
entorpecer a dor de parto e, também, efetivar as dentemente de sua vontade.
cesáreas. Numa visão mecanicista e biomédica, o
O parto, tradicionalmente doméstico e cen- aparelho reprodutor feminino é tratado como uma
trado na mulher, passa a ser substituído pelo par- máquina de nascimento, que deve “produzir” o
to hospitalar e a rede de solidariedade entre as concepto, não á toa procedimentos para que es-
mulheres desaparece ao longo do século XX17, sa produção seja feita de forma acelerada são
quando médicos homens passam a atender aos adotados, como à indução à dilatação com uso
partos normais. A autora afirma que, enquanto o de soro de ocitocina. Assim, em metáfora, o cor-
parto era feito fora dos hospitais, mesmo que por po humano é tido como máquina, frente ao qual,
médicos, ainda havia a possibilidade de algum médicos devem realizar “ajustes” como uma de
controle sobre a ação deste profissional pelos fa- “linha de montagem” na fábrica hospitalar, condi-
miliares e amigas, que atuavam como vigias da cionando o nascimento ao modelo tecnológico17.
performance médica. Também a própria forma com a anestesia é utili-
Esse evento de hospitalização e, portanto, zada facilita essa concepção de corpo como “má-
institucionalização do parto, ocorre a partir do fi- quina”, ao afastar a dimensão psicológica, implí-
nal do século XIX, quando a classe médica come- cita no medo, da fisiológica, da dor.
ça a explicitar as frustrações por não poder con- No Brasil as coisas não foram diferentes,
trolar os eventos do nascimento. Assim, é orien- os médicos adotaram e reproduziram a postu-
tada a vinda para a maternidade, que é regrada ra da ciência positivista, que não permite ques-
sobre o que é ou não é permitido, inclusive no tionamentos quanto ao atendimento ao parto

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

medicalizado; os baixos salários estimulam o época devido ao seu aspecto andrógeno, confor-
descompromisso com as pacientes e as relações me apontou Durocher14 (p.299).
mercantis com a saúde, propagando a realização Essa profissionalização para a realização de
inclusive de partos agendados e cesarianas17. partos foi afunilada após a proibição dos cursos
Segundo Arruda2, os problemas começam de parteiras, que passou a ser feita como uma
com a própria formação dos profissionais da área disciplina da área de Obstetrícia, desde 193117
de Ginecologia e Obstetrícia, que evidenciam a (p.42). A Obstetrícia tem como lógica a formação
visão fragmentada e não integral do ser humano: de auxiliares de médicos, sendo uma especia-
“O parto para eles (estudantes de medicina) lização da Enfermagem, por isso traz as visões
identifica-se com a mulher deitada de costas, dessa profissão, que encara as parteiras como
pés nos estribos, anestesia, indução, episio- ignorantes, pouco higiênicas e supersticiosas17
tomia ou cesárea (...). Não aprendem coisas (p.22) – da mesma forma que as parteiras, com
importantes como massagens, apoio físico, sua visão contra a institucionalização, conside-
habilidades das parteiras: acham bobagens ram as enfermeiras obtetrizes como “servas da
e não tem tempo a perder. Por outro lado, profissão médica”17 (p.32).
aprendem a fazer intervenções mecânicas Segundo6 o Conselho Internacional de Enfer-
para apressar o parto, sem consciência de magem, existem quatro categorias de parteiras:
suas repercussões físicas e psíquicas sobre 1- a parteira: pessoa formada por um curso
a mulher. Eles têm que praticar, e impõe ma- educacional que está legalmente licenciada para
nipulações “para o nosso bem” ou para o a prática da obstetrícia;
bem do bebê” (p.65). 2 - a enfermeira obstétrica: pessoa legaliza-
da tanto para a prática da enfermagem, como a
de obstetrícia;
A questão legal 3 - a auxiliadora de parto: pessoa que tem
Em pesquisa feita por Tanaka25, em uma re- uma curta formação sob a supervisão da parteira;
gião periférica da cidade de São Paulo, a autora 4 - a parteira tradicional: pessoa que adqui-
apontou que a falta de acompanhamento ao pré- riu especialidade para a realização de partos de
-natal é o ponto de maior estrangulamento da as- maneira informal, pela experiência pessoal ou
sistência materna; nesse sentido, não é somen- por outra parteira tradicional e que pode, até, re-
te a técnica cirúrgica que faz a diferença para ceber um curto treinamento.
o bem-estar de mães e filhos recém-nascidos e, Apesar de sua grande quantidade, no Brasil,
sim, o acompanhamento da gravidez, uma espe- estimadas em 40 mil nas regiões Norte e Nor-
cialidade também dos não-médicos. deste, segundo Ministério da Saúde em 1997, as
Esse acompanhamento de gestação e parto parteiras tradicionais não desfrutam de apoio ou
também é reivindicado por outra categoria de pro- reconhecimento jurídico para a realização de seu
fissionais, as enfermeiras obstetras e a obstetriz. ofício, sendo que os principais entraves são, se-
O ensino formal de parteiras ocorreu, no pa- gundo Owen18: a ambivalência dos governos com
ís, de 1832 a 1925, que produziu nomes como o relação à atuação das parteiras tradicionais; a re-
de Madame Durocher, primeira parteira diploma- cusa deste em se comprometer completamente
da pela Faculdade de Medicina do Rio de Janei- com o tema; a oposição de médicos, enfermeiras
ro, profissional que gerou muitos comentários na e parteiras profissionais a sua atuação.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Em 1991, em Ontário, no Canadá, foi legali- nascimento e do parto, seja essa institucionali-
zada a profissão da parteira com formação hete- zada ou não, seja esta realizada por não-médico,
rogênea, podendo ser nurse-midwife (enfermeiras por parteira ou por enfermeira obstetra. Há proje-
com conhecimentos específicos de obstetrícia), tos de lei e perspectivas para a maior participa-
ou parteiras tradicionais17 (p.52). Porém, o mode- ção do não-médico no parto e pela Humanização
lo preferido pelas parteiras7 é o de formação se- do Parto, porém essas regulações emperram em
parada da Enfermagem, que representa uma re- como se daria a formação desses profissionais.
jeição ao modelo responsável pela medicalização Principais exemplos, disso são os Projetos de Lei
do nascimento, do qual discordam. Preferência
(PL) federais, apontados por Steck25:
também evidenciada por meu trabalho de campo
- PL 7.633 de 2014 (da Câmara), do depu-
com as parteiras do Amapá em 2002.
tado Jean Wyllys: estabelece que médicos e pro-
Neste modelo o de exercício de parteira se
fissionais de saúde devem dar prioridade à assis-
dá pela autorregulação entre os pares, ou seja,
tência humanizada à mulher e ao recém-nascido
estabelecido quando um conselho de parteiras
no ciclo da gravidez até o pós-parto. Os hospitais
para regularem sua prática7. Segundo o Conse-
deverão respeitar o limite de 15% de cesáreas, re-
lho Internacional de Enfermeiras, nos países eu-
ropeus há esse predomínio de autorregulação no comendado pela Organização Mundial da Saúde;
modelo de formação direto da parteira. - PLS 8 de 2013 (do Senado), do ex-senador
Gim Argello: obriga a obediência às diretrizes e
orientações técnicas e o oferecimento de condi-
Humanização do parto: Cais do Parto ções que possibilitem a ocorrência do parto hu-
No Nordeste brasileiro, há um movimento para manizado nos estabelecimentos do SUS. Já apro-
a oficialização das parteiras, embora de forma dis- vado no Senado e remetido à Câmara, foi motiva-
tinta, por contar com a presença de organizações do pelos esforços da Rehuna, coletivo de profis-
não governamentais (ONGs), de caráter feminista e sionais de saúde em Rede pela Humanização do
que lutam pela humanização do parto e pela apro-
Parto e Nascimento;
priação do corpo feminino pelas mulheres. A prin-
- PLS 75 de 2012 (do Senado), da senadora
cipal critica que esse movimento produz é sobre a
licenciada  Maria do Carmo Alves: proíbe que a
forma que a medicina oficial entende os corpos das
gestante detenta seja algemada durante o parto;.
mulheres, tal como máquinas biológicas, esquecen-
- PEC 100 de 2015 (da Câmara), do deputa-
do as outras dimensões do ser, alienando a mulher
do Veneziano Vital do Rêgo: disponibiliza equipe
em relação a seus ritmos e ciclos e que lhe aplica
multiprofissional para atenção integral no pré-na-
um excesso de medicalização17. Nesse ambiente, a
iniciativa de promoção das parteiras surge de mu- tal, parto e pós-parto, pelo SUS;
lheres intelectualizadas que reelaboram sua condi- - PL 359/2015  (na Câmara), da deputa-
ção feminina à luz de leituras feministas, e não das da  Janete Capiberibe: propõe fornecer curso de
próprias parteiras; embora hoje, essa reivindicação qualificação básica para as parteiras tradicionais
já esteja incorporada aos desejos apresentados pe- e incluir sua atividade no âmbito do SUS.
las próprias parteiras locais. As parteiras, mesmo sem, saber já atuam
A reintrodução do não-médico no parto é uma com a humanização do parto, como fica explicita-
estratégia para a humanização da experiência do do com a citação de Moulin11.

|77
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

“É um trabalho muito amoroso, em primeiro Outra característica da medicina científi-


lugar, eu acho muito importante é o aconche- ca atual é sua prática muito especializada. Há
go da família, porque no parto domiciliar lá especialistas para as diversas partes e órgãos
está o marido, a mãe, a sogra, e a gente co- que compões o corpo (cabeça, olhos, pescoço,
mo parteira tem aquele carinho, aquele amor estômago, reprodução, etc). Por isso, ela perde a
está do lado da gestante, está acariciando e perspectiva do doente como um ser integral, com
consolando está dando aquela força, aquele corpo, psiquismo e relações sociais13.
apoio. E a partir do nascimento da criança a Os médicos agem, no geral, de forma autori-
gente só tem é que ficar satisfeita, porque eu tária, desapropriando seus clientes dos seus sin-
acho que é um passo que a gente deu a mais tomas, sensações e doenças e tratando o doente
e teve aquela vitória de conseguir realizar o como um objeto coisificado, sem potencialidade,
parto” (p.29). religião ou classe social13. Mais do que isso, tra-
tando os como “pacientes”, ou seja, seres pas-
sivos diante de suas próprias histórias, tal como
Medicina ocidental X Medicina popular seres abstratos. Tal condição é reforçada pela di-
A medicina ocidental é uma prática social ficuldade de acesso ao saber especializado em
que não é gerada dentro da cultura popular. Ela é nossa sociedade, que é hierarquizada, já que his-
resultado da sistematização, da codificação cien- toricamente quanto mais a medicina se especia-
tífica de um determinado tipo de saber, produzi- lizava, mais ela se afastava da cultura popular e
do nas universidades, compilado em livros, e tem mais se voltava contra ela.
possibilidade de alcance desigual pela sociedade. A medicina científica atual pode ser analisa-
Os profissionais (médicos, biólogos, enfer- da vulgarmente como resposta às necessidades
meiros) necessitam passar por cursos de espe- do capital, pois exerce uma prática de recupera-
cialização para adquirem um conhecimento cien- ção, de reparação e manutenção das pessoas,
tífico e técnico para o combate às doenças, por enquanto seres produtivos e socialmente indis-
isso, são considerados como legítimos pela so- pensáveis para o trabalho. Por isso, está preocu-
ciedade, uma vez que são credenciados para o pada em aliviar os sintomas do doente, o mais
exercício profissional por instituições de ensino e rápido possível, utilizando como instrumento os
governamentais. O atendimento à saúde através medicamentos e intervenções que fazem os do-
da medicina científica se dá em espaços próprios entes voltar à produção13. Não há praticamente
de trabalho, em agências de cura (hospitais, clíni- preocupação e cuidado com as causas que ge-
cas, consultórios, ambulatórios). ram as doenças e os males. Essa relação causal
A medicina legitimada atual tem como ob- entre medicina e capitalismo, embora seja tão
jetivo principal a cura ou a supressão dos sinto- mecânica, contém aspectos simbólicos e de efi-
mas, por isso, é vista como curativa, voltando-se cácia da ciência ocidental.
mais para a doença ou eliminação dos sintomas A medicina científica está também atrelada
e menos para a promoção da saúde e na pre- a empresas multinacionais que atuam na área da
venção. Como legítima, tem apoio do Estado por saúde, por meio da indústria farmacêutica e de
meio da formulação das políticas oficiais de saú- equipamentos médicos e cirúrgicos. Essas far-
de, um conjunto de leis e medidas que favorecem macêuticas utilizam como princípio ativo para a
a manutenção e a reprodução dessa medicina. sua produção elementos extraídos também das

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

próprias ervas medicinais, base da medicina de disponíveis no meio ambiente de cada localidade,
conhecimento popular que é fortemente desvalo- o que, porém, não se aplica às ervas medicinais
rizada e combatida na legislação penal brasileira. de cultivo doméstico, que são plantadas e estão
O Código Penal4 define como: onde há parteiras.
“Curandeirismo - I prescrevendo, ministrando Este autor19 também verificou que as mulhe-
ou aplicando habitualmente qualquer subs- res preferiam ter filhos em casa e auxiliadas pe-
tância; II usando gestos, palavras ou qualquer las parteiras, muito elogiadas, e que competem
outro meio; III fazendo diagnóstico. Pena: de- em vantagem com sistema oficial de saúde:
tenção de seis meses a dois anos. Parágrafo “A especialização traduz uma divisão profun-
único: se o crime é praticado mediante re- damente alienada do trabalho do médico ao
muneração, o agente fica também sujeito a atuar fragmentando o corpo doente em uni-
multa” (art. 284). dades autônomas, verdadeiras mônadas, vis-
tas como se não guardassem interações en-
Assim, o direito e as relações sociais se dão
tre si. O saber médico busca correlacionar os
numa correlação assimétrica entre a medicina
sinais e sintomas de doença com alterações
científica e a popular. Numa sociedade medicali-
anátomo-patologicamente detectáveis, isto é,
zada como a nossa, o trabalho popular de cura é
em síntese, o que caracteriza a doença. Em
apresentado, pela lei, como algo que deve ser ba-
nenhum momento da intervenção médica se
nido, uma vez que desafia a medicina instituída.
refaz a unidade dos elementos do corpo en-
Perante a lei os profissionais populares de cura,
tre si e/ou do corpo com o sujeito e nem des-
são meros analfabetos, ignorantes, ilegítimos pa-
te com o meio social onde se inscreve. É um
ra tratar das doenças e por isso recebe críticas,
processo radical de negação da historicidade
como mostrou Oliveira13:
nas manifestações da corporalidade huma-
“É legítimo a suposição de que exista uma
na” (p.10).
única concepção de mundo (de soluções, de
sentimentos, de sofrimento e necessidades), A ação da medicina popular, diferentemen-
e esta seja ditada pela classe de onde saem te da científica, interpreta a doença usando ex-
os médicos?” (p.61). plicações totalizantes, onde essas doenças e os
doentes não estão “descolados” do ambiente
Porém, a medicina popular concretamente
em que vivem e doença é algo que interfere nas
não desapareceu e, embora esteja marginaliza-
relações vividas pelos sujeitos e por elas é in-
da, resiste, como aponta Pereira19.
terferida. Nesse sentido, o curanderismo caboclo
“Os saberes subalternos se redimensionam, (catimbó, pajelança, benzeduras, parteiras, erva-
ora se opondo, ora se apropriando dos sabe- teiros) é a “caixa de ferramentas” e os repertó-
res hegemônicos produzidos pela medicina rios utilizados pelas parteiras do Norte para suas
científica” (p.26). ações, no sentido, como aponta Pereira19, que:
Pereira19, em seu doutorado sobre as práti- “As representações de doença entre as par-
cas das parteiras na periferia de Manaus, notou teiras é parte essencial de uma visão de mun-
uniformidade dessas práticas, independente da do, onde se inscrevem elementos mágico-reli-
origem da população. Verificando que as variações giosos, valorativos e orientados da ação junto
são relativas apenas ao uso das matérias-primas à natureza e a sociedade” (p.15).

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

E continuando, Pereira19 conclui: Desde a década de 1970 se discute a im-


“...a causalidade de doenças só pode ser portância da legitimidade das medicinas popula-
adequadamente compreendida enquanto ins- res do ponto de vista da população, uma vez que
tância explicativa que se articula e se refere se acham historicamente integradas à vida do
ao conjunto de representações que os gru- povo. Isso fez surgir iniciativas de incorporação
pos sociais elaboram para explicar a ordem da medicina popular, numa medicina comunitá-
biológica, social e do cosmo” (p.12). ria e com práticas alternativas de cura, em pro-
gramas de assistência à saúde, mesmo aqueles
ligados à medicina erudita e científica, como afir-
Considerações e alternativas ma Oliveira12:
Nesse sentido, entender as representações “Neste sentido se inscreve a recomendação da
sociais dos sujeitos é o que possibilita analisar a Organização Mundial de Saúde, realizada na ci-
passagem do mundo individual para o social. No dade de Alma-Ata ex-soviética, datada de 1978,
caso da doença, essa passagem ocorre de forma para que valorizem os seus curandeiros” (p.72).
integral, uma vez que é um evento particular, in- A “ciência” (scientia, em latim) popular está
dividual e vivenciado historicamente pelo social. estruturada à base de um conhecimento popu-
A prática dos profissionais de cura constitui- lar, com leis e princípios próprios, muitas vezes
-se numa expressão viva do embate entre erudito transcendentais. Opõem-se à medicina erudita na
e popular, recriando o ato popular de curar que compreensão do fenômeno, pela integração que
tem conteúdo heterogêneo. faz entre doença, biografia e relações sociais. Di-
Quem vem delimitando ideologicamente a ferentemente da ciência erudita que separa corpo
medicina popular é o mundo erudito e científico, e espírito e as causas das doenças da biografia da
utilizando a religião erudita, a lei, a imprensa e a pessoa, de sua história e de seu psiquismo.
Medicina para decidir o que é “medicina popular”. Reconsiderar a medicina popular é propor no-
Construindo essa definição em contraposição à vas relações sociais, evidenciando a o respeito à
medicina científica. Não são os profissionais da diversidade cultural, seu conhecimento e contato
medicina popular que afirmam perante a socieda- com a natureza e, portanto, seus conhecimentos
de o que são e o que fazem, eles apenas agem. de cura. Isso implica numa revisão crítica dos valo-
Infelizmente, a medicina popular ainda é vis- res da sociedade, incluindo a produção, o controle
ta pela maioria dos governantes e pelo Estado e a apropriação dos bens materiais e simbólicos e
como algo expropriado de todos os valores legí- da relação entre seres humanos e natureza.
timos. Assim sendo, atribuem que é imprópria
ao conjunto da população, impondo à população
uma visão de homogeneidade cultural.
Essa oposição entre medicina popular e
Referências:
medicina erudita/cientifica, na verdade, exprime
Amapá. Decreto n° 2453 – Institui o Programa Resgate e
confrontos políticos de culturas que ocorrem por
Valorização das Parteiras Tradicionais dentro do Programa
meio de relações de poder, demonstrando quais de Desenvolvimento Sustentável. Boa Vista; 14 ago. 1995.
grupos são legitimados e, portanto, “superiores”, Arruda A. Um atendimento ao parto para fazer ser e nas-
daqueles combatidos e, portanto, “inferiores”. cer. Quando a paciente é mulher. In: Relatório do Encontro

|80
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Educação pré-natal com utilização de Recursos Expressivos:


conceitos, estratégias e transposição para atenção primária
Prenatal education utilizing Expressive Resources: concepts, strategies and transpositions for primary
health care

Maria Augusta Silvestre de MeloI, Silvia Helena Bastos de PaulaII, Siomara Roberta de SiqueiraIII,
Nilza Maria de Souza CorbaniIV, Ana Cristina Cordeiro SantiagoV
Resumo Abstract

São tecidas considerações quanto à experiência pedagógica de Considerations are made regarding the use of expressive resour-
utilização de recursos expressivos na Educação Pré-Natal no âmbi- ces in Prenatal Education in the context of primary health care and
to da atenção primária e em cursos de formação de profissionais in training courses for professional health multipliers for facilita-
de saúde como multiplicadores para facilitação de atividades de tion of antenatal education activities. The pedagogical approach of
grupos. O enfoque pedagógico adotado tem por base a metodolo- the course is based on David Prado Diez in expressive and creative
gia criativa expressiva de David Prado Diez, por meio de estudos methodology, adapted by means of studies in Brazil. The meetings
realizados no Brasil. Os encontros realizados com utilização desse held from 2011 to 2013 combine individual and group learning
método foram no Instituto de Saúde de 2011 a 2013 e mescla- situations and are spaces that brings forth discussion, reflection,
vam situações de aprendizado individual e em grupo, e constituí- discoveries, creations, exchange of experiences, production and
ram espaços que privilegiaram discussão, reflexão, descobertas, socialization of knowledge, with sights set on learning and favoring
criações, intercâmbio de experiências, produção e socialização changes in practices Prenatal Education in primary care.
de conhecimentos, com vistas no aprendizado e favorecimento
de mudanças nas práticas de trabalho na Educação Pré-Natal na Keywords: Health education; Prenatal education; Expressive re-
Atenção Primária. sources; Expressive creative methodology.IIIIVV

Palavras-chave: Educação em Saúde; Educação Pré-Natal; recur-


sos expressivos; metodologia criativa expressiva.

I
Maria Augusta Silvestre de Melo (gutasmelo@gmail.com) é psicóloga pela
Faculdades Integradas de Uberaba (FIUBE), com formação em Psicodrama III
Siomara Roberta de Siqueira (siqueirasiomara@gmail.com) é psicóloga pela
pela Federação Brasileira de Psicodrama (FEBRAP) e Arteterapia pela Pro- Universidade Estadual Paulista (UNESP), enfermeira pela União das Institui-
posta de Orientação Multidimensional Arte Realidade (POMAR) e Centro de ções Educacionais do Estado de São Paulo (UNIESP), Mestre em Ciências da
Estudos Avançados de Psicologia (Ciclo CEAP), Mestre em Ciências da Comu- Saúde pela Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado
nicação e Educadora Perinatal pela Universidade Fernando Pessoa, em Portu- da Saúde de São Paulo e Doutoranda em Enfermagem pela Escola de Enfer-
gal, Educadora Perinatal e Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho magem da Universidade de São Paulo.
Federal de Psicologia (CFP). IV
Nilza Maria de Souza Corbani (nilzacorbani60@gmail.com) é enfermeira pela
II
Silvia Helena Bastos de Paula (silviabastos58@gmail.com.br) é Enfermeira Universidade Estadual de Londrina, Mestre em Ciências da Saúde com eixo
pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Mestre em Saúde Pública com con- em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
centração em Saúde Comunitária, Doutora em Ciências com concentração em V
Ana Cristina Cordeiro Santiago (anacristina_cordeiro30@yahoo.com.br) é en-
Infectologia e Saúde Pública pela pela Coordenadoria de Controle de Doenças fermeira pela Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN), Especialista
da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Especialista em ativação de em Obstetrícia e em Estratégia Saúde da Família pela Faculdade de Ensino
processos de mudança na formação de profissionais de Saúde e Pesquisadora Superior Santa Bárbara (FAESB) e Enfermeira da Estratégia de Saúde da Famí-
Científica do Núcleo de Práticas de Saúde do Instituto de Saude/SES São Paulo. lia do município de Sorocaba – São Paulo.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução família ou da comunidade, parteiras e feiticeiras.


O propósito deste artigo é apresentar a utili- No Brasil, as práticas tradicionais de partejamen-
zação de recursos expressivos na Educação Pré- to, como o parto de cócoras ou numa rede de
-Natal e na formação de profissionais de saúde dormir - que contavam (e ainda contam) com auxí-
como facilitadores para aplicação desse enfoque lio de comadres, parteiras curiosas e o auxílio de
pedagógico, com base na adaptação da metodo- familiares, que fazem rituais domésticos, como
logia criativa expressiva1. A ideia é formar profis- caldos, canjas de galinha, chás e defumadores
sionais para a Atenção Primária para aplicar este relaxantes - foi substituído paulatinamente pelo
método em suas ações educativas nas interven- parto médico2,3,4.
ções que requeiram aumento de capacidade dos O surgimento da Atenção Pré-Natal como
sujeitos, para o que se denomina de empodera- intervenção profissional no atendimento a gravi-
mento, e assim decidirem sobre opções de cuida- das no país ocorreu por iniciativa de Madame Du-
do em saúde, ligadas ao princípio da integralida- rocher (1809-1893), que foi a primeira parteira
de, da participação, do direito à saúde e autono- diplomada em 1834, a exercer, de forma pionei-
mia, tipo de parto, ambiência e no planejamento ra, seu trabalho na cidade do Rio de Janeiro5. O
reprodutivo, neste caso prioritariamente de grávi- primeiro serviço de Atenção Pré-Natal foi insta-
das e suas famílias. lado em 1925 por Raul Briquet (1887-1953), na
As preocupações com a saúde feminina e Faculdade de Medicina da Universidade de São
a maternidade remontam há séculos, quando Paulo. Nos anos de 1950 a 1960 deu-se a fase
o parto era fenômeno na essência, feminino, da atenção no modelo materno-infantil e a chega-
que em geral envolvia mulheres experientes da da de inovações tecnológicas, entre as quais se

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

destacou o exame de ultrassonografia, incorpora- para “fora” de si mesmas, ao se mostrar as di-


do ao acompanhamento pré-natal. ferenças que existem no mundo; são psicólogas
Na década de 1980, o Ministério da Saú- e enfermeiras com experiências em grupos de
de ao lançar o Programa de Atenção Integral à Educação Pré-Natal, Saúde Sexual Reprodutiva,
Saúde da Mulher (PAISM), reconheceu a mulher Amamentação e Formação Profissional, entre ou-
como sujeito de direitos e não apenas um corpo tros, que atuam sob diferentes enfoques teóri-
reprodutor, pois trazia em sua proposta básica cos, e oferecem informações técnicas, porém se
as questões das relações de poder e o comparti- inquietavam com o silêncio, a linguagem não ver-
lhamento das relações individuais, estimulando a bal – olhares e expressões – apontando, talvez,
participação dos envolvidos. para que o trabalho educativo no Pré-Natal acor-
A valorização das ações educativas no pré- re somente como formalidade de um programa
-natal se deu com mais ênfase em 2000 quan- de saúde que se propõe a oferecer informações
do o Ministério da Saúde instituiu o Programa de sem que se complete o processo comunicativo
Humanização no Pré-Natal e Nascimento (PHPN)6 em si. Observou-se também que os profissionais
e, em 2004, quando se renovou o Programa de que trabalham na atenção primária são ‘treina-
Atenção Integral à Saúde da Mulher, criando a dos’ com a mesma proposta.
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Com estas percepções e no intuito de ana-
Mulher (PNAISM)7, que frisa os cuidados básicos lisar questões assinaladas no início deste texto,
de saúde, entre eles ações educativas no aten- procurou-se referência teórica na literatura para
dimento à mulher e incorpora a humanização, o conhecer um pouco sobre trabalhos educativos
enfoque de gênero, a integralidade e a promoção que foram desenvolvidos com relação à gravidez
da saúde como princípios norteadores, para con- desde o século XX. Observou-se que desde en-
solidar avanços no campo de direitos sexuais e tão até os dias atuais, o foco do trabalho com
reprodutivos, visando a melhoria da atenção obs- grávidas foi se ampliando de um olhar puramen-
tétrica, do planejamento reprodutivo, da atenção te fisiológico para a consideração de questões
ao aborto inseguro e aos casos de violência do- emocionais, sociais e políticas, como é o caso de
méstica e sexual7. direitos sexuais e reprodutivos. De uma visão da
Mesmo com a vigência de uma política que colaboração da mulher no trabalho de parto pa-
valoriza as ações de educação em saúde e edu- ra seu protagonismo; do entendimento da mulher
cação pré-natal desde 2000, estudo recente8 ve- como única personagem nas questões relativas à
rificou a falta de voz de mulheres de todos os gravidez e parto estende-se para o vínculo mãe-
graus de escolaridade e de inserção social para -bebê e família e da gravidez como situação de
decidir quanto à opção de parto, o que aponta transformação do entorno social.
vácuos merecedores de reflexão a respeito de co- Enfoca-se neste artigo, a proposta de Curso
mo são preparadas as mulheres para o momento de Educação Pré-Natal e de Formação de Multi-
de tomada de decisão, de modo orientado e infor- plicadores para Utilização de Recursos Expressi-
mado sobre o desfecho de sua gravidez e tipo de vos, que foram ministrados pelo programa CUR-
parto/nascimento. SUS, proposto pelo Núcleo de Práticas do Institu-
As autoras entendem a educação como pro- to de Saúde, da Secretaria de Estado da Saúde
cesso de preparar as pessoas para o mundo9 de São Paulo. Os relatos dos cursos voltados ao
e para viver em sociedade, ou seja, conduzi-las Pré-Natal e desenvolvidos neste contexto, com

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

aplicação de recursos expressivos nos quais se utilizar perguntas divergentesVIII; reviver o passado
prepararam profissionais para atuar de modo a para refazê-lo, fazer analogias, propor desafios
favorecer iniciativas e o protagonismo da mulher às vezes aparentemente utópicos, inventar, en-
e da família, empregando o método adaptado por contrando novos processos e instrumentos do co-
Melo1 para Educação Pré-Natal. nhecimento, novas utilidades e aplicações, novos
sentidos e novas respostas, expressar-se com lin-
guagens múltiplas, tais como palavras, pinturas,
Bases teóricas da Educação Pré-Natal com escultura, desenho, fotografia, multimídia, sons,
utilização de Recursos Expressivos ruídos, gestos e movimentos, dentre outros.
A base desse relato é a adaptação da Meto- As estratégiasIX são formuladas para que
dologia Criativa Expressiva, desenvolvida por Pra- todos se sintam instigados a participar do pro-
do20, que propõe “a utilização de métodos criati- cesso de construção do conhecimento, sentindo
vos como modo alternativo e divergente, frente seu saber valorizado, bem como suas experiên-
ao pensar reprodutivo, desenvolvendo fórmulas cias e vivências pessoais e, também, o seu mo-
construtivas, cooperativas e significativas para do de expressar, sugerir, avaliar, construir21. En-
ensinar e aprender de forma mais divertida, ágil e fim, de ser indivíduo. Estes são característicos
satisfatória”, para dar base à formação e que foi da “aprendizagem construtiva significativa”15, que
adaptada por Melo para Educação Pré-Natal co- parte da realidade pessoal, social e cultural dos
mo abordagem psicopedagógica com propósitos participantes e, pelos processos mentais, clarifi-
emancipadores1 (p.85). Esse método tem como ca e amplia, encontrando lugar para o aprendido
pressuposto básico o reconhecimento “do outro” nesta sua realidade, pois:
como um indivíduo com percepções, sensações,
[...] se dá quando o sujeito manipula os obje-
história, saberes, emoções e possibilidades, ca-
tos e fenômenos, os decompõe e recompõe
paz de lidar com sua realidade e suas escolhas.
ao mesmo tempo em que expressa livremen-
Um ser criativo, portanto, autônomo.
te ideias e sensações, imagens e crenças, o
Prado20 sugere que sejam combinados e apli-
sentido e sentimentos sobre os mesmos, pa-
cados o maior número de métodosVI e “linguagens
ra depois recompor e estruturar os conteúdos
criativas” para um mesmo tema, assunto ou pro-
blemaVII. Estes pretendem, segundo o autor1 (p.86):
desbloquear os conteúdos da consciência; proble- As perguntas divergentes são aquelas que fomentam o pensamento di-
VIII

vergente, sem censuras conscientes. Para tanto, elas não podem recorrer a
matizar determinado tema ou situação; podendo dados da memória, mesmo que seja necessário usar de conhecimentos que
se têm a respeito do tema. Elas fazem com que o sujeito se sinta desafiado
ou, ao menos, curioso. Surpreende o sujeito: não era para estar ali. Elas têm
como fim desenvolver a fluência mental, por isso, devem desencadear uma
grande variedade de pensamentos, ideias, sentimentos, imagens, mesmo
que desconexas ou contraditórias. A meta de quem trabalha com estímulo
divergente é criar uma situação que provoque originalidade de pensamento.
Acessar mais o pensamento e a imaginação do que a memória.
As perguntas divergentes podem estimular (propiciar) desenhos, formas, hi-
póteses, efeitos, inovações, sensações, sentimentos, desejos, funções, cone-
VI
“Os métodos são caminhos seguros, consistentes em uma sequência de xões de fantasias, impressões, causas, transformações, opções, dependendo
atividades específica e concreta que se realizam passo a passo, programadas do que se pretende. Vale saber que as perguntas divergentes nunca começam
para obter, de modo seguro, resultados ou efeitos que sustentam e evidenciam por um verbo, nem por um pronome (quanto, quem) ou advérbio (quando,
os desejos e motivos, os ideais e objetivos de quem os realiza, e que tenham onde), pois estas perguntas levam a respostas fechadas. As perguntas diver-
sido comprovados em distintos contextos, com distintos atores e em áreas gentes começam com: para que (fim), por que (causa), como (processo), que
diversas do saber com resultados parecidos”1 (p.155). Eles necessitam (consequência ou essência) – sempre estimulando o pensamento divergente.
ter como características: ser universais (podem ser aplicados em qualquer IX Quando determinamos as finalidades de determinada técnica,
tempo ou lugar); lógicos e sistêmicos; adaptáveis (pois levam em conta quem, flexibilizamos seus procedimentos, estabelecemos contextos, tomamos em
quando e onde são aplicados); eficazes, avaliáveis e comprovados. conta elementos pessoais, de organização e espaço-tempo, avaliamos tanto
VII
Sozinhos, estes métodos não apresentam a mesma eficiência do que se os objetivos planejados como as mudanças previstas, porém não alcançadas,
forem utilizados em conjunto. a transformamos em estratégia (p. 12)21.

|85
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

semânticos de sua consciência, ao mesmo informação; análise, que é a capacidade pa-


tempo em que os transforma e configura ou- ra decompor mentalmente uma realidade em
tros novos que permitam mudar a realidade partes, centrando-se nessa capacidade para
em seu imaginário individual e grupal ou co- distinguir e diferir uns conceitos e/ou elemen-
munitário primeiro e, mediante sua interven- tos de outros; síntese, que está relacionada à
ção social, cultural e ambiental sobre essa capacidade de elaborar esquemas, organizar a
mesma realidade1 (p.87). informação, extraindo os atributos mais impor-
tantes; sensibilidade para os problemas, para
Assim, a aprendizagem construtiva significa-
que se possa prevenir os perigos e evitar os
tiva fundamenta a metodologia criativa expres-
21
conflitos antes que nasçam; abertura mental,
siva e tem, como fim, construir uma visão objetiva fazendo referência à atitude vital das pesso-
científica da realidade, desenvolver, por meio de as para aceitar novas experiências, buscando
processos do fazer não mecânicos, operações e a maior quantidade de opções possíveis para
atitudes mentais básicas de análise e síntese, de sua resolução; comunicação, que é a capaci-
comparação e ilusão lógica, de busca e interroga- dade de transmitir e compartilhar sentimentos,
ção, de desenvolvimento de conceitos e construir sensações, ideias, mensagens e informações
estruturas mentais de funcionamento eficazes e com outras pessoas, utilizando linguagens múl-
estruturas cognitivas (de conteúdo) que vão cres- tiplas, como a dança, a fala, os desenhos, mo-
cendo e transformando-se com o tempo, seguin- delagens etc.; redefinição, que é capacidade de
do um modelo processual de trabalho. encontrar usos, funções, aplicações e defini-
Este método pretende, em sua essência, ções diferentes das habituais; e inspiração, a
que o participante desenvolva o pensar por si habilidade para perceber a realidade de modo
só, diante do que é culturalmente dado ou im- novo e transformá-la parcial ou totalmente1.
posto, que construa e ordene o próprio pensar No processo de adaptação desta metodo-
e querer sobre os conhecimentos dados, que logia para o desenvolvimento dos recursos cria-
possa fazer projetos e coisas úteis para si mes- tivos utilizados no curso de Educação Pré-Natal
mo e para a sociedade, que desenvolva a capa- aqui apresentado, procurou-se referências no
cidade de fomentar o trabalho livre e estrutura- Psicodrama, abordagem desenvolvida por Jacob
dor da inteligência lógica, e que se torne capaz Levi Moreno23, que propõe as seguintes etapas
de reconstruir o conhecimento e a cultura, a para sua realização: aquecimentoX, dividido em
arte e a ciência20. específico e inespecífico; desenvolvimento da
A utilização da Metodologia Criativa Ex- atividade expressiva propriamente dita; com-
pressiva pressupõe uma série de critérios bási- partilhamento, é o momento de troca sobre o
cos, que devem ser observados para sua apli- que foi experiência e processamento, quando
cação, quais sejam: originalidade, que faz re-
ferência ao novo e único; produtividade ou flui-
dez, que se refere à quantidade de respostas
dadas pelo sujeito; flexibilidade, que se refere X
O aquecimento pretende preparar, aquecer, como o próprio nome sugere,
à capacidade de movimentar-se, modificar-se, para o trabalho que será desenvolvido. Quando inespecífico, pode ser verbal
ou corporal (dispositivos físicos de arranque, como se denomina no Psico-
ser ágil de mente e corpo; elaboração, que diz drama) e o específico pretende o aquecimento para a atividade propriamente
dita. Esta fase é de suma importância, de modo que os participantes se
respeito ao processamento e organização da sintam à vontade e prontos para criar. Muitas vezes, parece uma brincadeira.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

se fazem correlações com o focoXI do trabalho, as conservas culturaisXIV, saindo de uma atitude
neste caso, o acompanhamento a pessoas na receptiva/passiva para uma atitude ativa no pen-
gravidez e fechamentoXII. sar e agir. Saindo de atitudes unicamente indivi-
Os recursos expressivos, como o desenho, duais para ações cooperativas, encontrando me-
a música, a pintura, a modelagem, a escultura, a canismos para romper com o que, aparentemen-
dança, a fotografia, o canto, além de dramatiza- te, está preestabelecido.
ção e verbalização, muito utilizados em oficinas Nesta experiência, a avaliação pretende per-
e processos de Arte-Educação foram aqui utiliza- ceber o processo, mais do que a aquisição do
dos como egos auxiliares XIII, aqueles que têm co- conhecimento, mais compreender o que é apre-
mo características serem “capazes de conduzir, sentado e menos a memória distante do afeto: a
guiar” (p.109)22, “convocar” a “buscar outra for- repetição. Neste caso, a autoavaliação se torna
ma de fazer, de expressar para se apresentar (...) um potente instrumento.
um jeito único de fazer, de dar forma. (...) um jeito Para aplicação deste método são necessá-
de contar de si e de sua singularidade (...) des- rios alguns cuidados da parte dos facilitadores.
cobrindo-se por meio da sua produção expres- É preciso que processos cognitivos partam do
siva”1 (p.64), o que favorece o desenvolvimento mais simples para o mais complexo, dos primei-
da autonomia, pois atendem a toda proposta da ros contatos com o corpo, por meio da respira-
metodologia criativa expressiva. Na Teoria do Psi- ção, até a possibilidade de um corpo em traba-
codrama de Moreno o conceito de ego auxiliar se lho de parto – sensação e sentimento; de toques
refere aos papéis exercidos por sujeitos colabo- superficiais e parciais até trabalhos em que todo
rativos, muitas vezes capacitados, ao processo o corpo esteja envolvido; da questão fisiológica
da dramatização e não às técnicas propriamente da gravidez e do parto até a complexidade de
ditas, mas Melo propõe a utilização dos recursos temas que envolvam o ciclo gravídico-puerperal,
expressivos com este fim1. para que atinjam um característico importante
É necessário oferecer um espaço seguro do método, que é ser motivador, pois a complexi-
aos participantes, em que seja facilitada a livre dade deverá aumentar passo a passo, de acordo
expressão, para que possam compartilhar temo- com as necessidades individuais ou do grupo,
res, angústias, transtornos, competências, pos- favorecendo a sensação de capacidade e a se-
sibilidades e descobertas. Um espaço potencial, gurança de novos passos que podem ser dados,
onde possam ser ouvidos, vistos, correr riscos aumentando assim a autoconfiança.
em segurança. Este espaço deve favorecer que Este característico está intimamente liga-
os participantes encontrem modos inovadores do ao desejo humano inato de descobrir, de co-
para tratar o que está preestabelecido, ou seja, nhecer um pouco mais, de ir além do já sabido,
de formular e resolver problemas, o que aponta,
XI
“Trabalhar com um foco é colocar em destaque uma parte da cena, sem per-
“quando é permitido”, para uma atitude investiga-
der a noção da totalidade, do campo maior; é iluminar uma área do palco, pri- dora e crítica da realidade.
vilegiar um segmento para dissecá-lo em maior detalhe ou para reconhecê-lo
como tema central de uma sinfonia; é prestar atenção ao solo que se ressalta
sem perder de vista a orquestra”15 (p.63). É onde estará concentrado o esfor-
ço do facilitador, neste caso, a experiência da maternidade e da paternidade.
XII
Fazer uma síntese do que foi vivido e de como estão se sentindo os
participantes do trabalho, neste momento e avaliar as atividades do dia.
XIII
“Assumindo a característica de ser aquele capaz de conduzir, guiar, XIV
Objetos materiais, comportamentos, usos e costumes de determinada cul-
mediante o aquecimento preparatório, para suas ansiedades, deficiências e tura que foram aprendidos, estão preestabelecidos e se mantém idênticos
necessidades, com o objetivo de orientá-lo no sentido da melhor solução dos em várias situações, mas que podem (e devem) ser utilizados como ponto de
seus problemas” 22 (p.109). partida para a transformação.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Recursos Expressivos: uma proposta de no parto e nascimento começa no reconhecimen-


formação de multiplicadores para a Educação to dos profissionais que ali atuam, pois se enten-
Pré-natal de que, somente assim, podem ser capazes de
Tomando por base teórica a Metodologia estabelecer relação de significado com as pesso-
Criativa Expressiva, adaptada por Melo1 para o as com as quais trabalham, valorizando as dimen-
acompanhamento de grávidas e casais em con- sões subjetivas e coletivas, reconhecendo e trans-
texto de clínica particular e em instituições filan- formando suas realidades, quando necessário.
trópicas, e ainda, para formação de profissionais Essa proposta reforça que também os profis-
das áreas de Saúde e Educação, foi desenvolvida sionais, na condição de participantes de um curso,
a presente proposta para formação de Multipli- sejam ouvidos e “des-cobertos” em sua realidade
cadores para utilização de Recursos Expressivos profissional, pessoal e, principalmente, no entendi-
na Educação Pré-Natal em serviços do Sistema mento de gravidez, parto e nascimento, pois é es-
Único de Saúde (SUS), apresentada no Programa perado deles que possam ter escuta qualificada,
CURSUS do Instituto de Saúde. atenta e livre de preconceitos, pois precisam co-
nhecer e ser capazes de pôr em prática as regras
- perfil dos facilitadores:
de ouro deste método: aceitar incondicionalmente
Nos cursos de Educação Pré-Natal e de For-
as ideias e as imagens do outro com suas solu-
mação de Multiplicadores, ministrado no Progra-
ções, o que quer dizer que precisam criar um clima
ma CURSUS, entre 2011 e 2013, foi recomen-
de liberdade e espontaneidade de expressão. É es-
dada a observância de uma das características
perado que estejam aptos para aceitar as diferen-
mais difíceis daqueles que aplicam atividades
ças, correr riscos, dar tempo e ter tempo e serem
com este método: não fazer apenas a transmis-
capazes, principalmente, de elaborar o próprio me-
são de conhecimentos, muito pelo contrário, dei-
do da expressão de sentimentos, suas inibições e
xar de ser o detentor do conhecimento, para sair
bloqueios para lidar com a ansiedade ante o desco-
de cena de modo que o outro faça, experimente,
nhecido. Também dever ter noções de processos
descubra seus talentos e suas verdades e trazer
criativos, técnicas e estratégias que fomentem o
informações, quando necessário.
pensamento divergente, seus caminhos, funciona-
- perfil dos participantes: mento, finalidades e utilidades. Devem ser hábeis
Os participantes do curso foram seleciona- para elaborar perguntas divergentes, estimulando a
dos pelo critério de vínculo com o Sistema Públi- fluência e a flexibilidade de atitudes. Precisam se
co de Saúde (SUS), com prioridade para os que dar conta de que o outro tem autonomia para en-
realizam atividades de Pré-Natal. As categorias contrar e decidir seus próprios caminhos.
profissionais foram diversas: médicos, enfermei- São, nesta proposta, designados como fa-
ros, nutricionistas, psicólogos, obstetrizes, assis- cilitadores e não coordenadores/professores, e
tentes sociais, técnicos e gerentes de serviços e acreditamos que somente terão desenvolvidas
programas ligados à saúde da mulher. estas habilidades tendo a oportunidade de viven-
A Metodologia Criativa Expressiva, quando ciar esta metodologia, afinal, também eles (nós),
utilizada na formação de profissionais que traba- estão submetidos a um fazer com pouca ou ne-
lham no Pré-Natal, reconhece estes profissionais nhuma reflexão, análise crítica, des-conectados
como indivíduos, com suas histórias, problemas, de si mesmos, de seus afetos e possibilidades
possibilidades e singularidades. A humanização de transformação da realidade.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Estratégias pedagógicas e de intervenção - histórias e improvisações:


A construção desta proposta foi concebida Chamamos improvisação, a apresentação de
estabelecendo-se relações entre criar e gestar, uma história, com princípio, meio e fim, com uma
entre o cuidado com o profissional de saúde e ou mais personagens, que acontece em determi-
aquele que chamamos usuários – as grávidas e/ nado lugar, num período preestabelecido, sem ne-
ou casal e o bebê. O estabelecimento do ‘contra- nhum ensaio. Essa estratégia permite que venha
to pedadógico para o trabalho’, as propostas das à tona a bagagem do indivíduo com quem traba-
atividades, o conteúdo e as regras básicas, que lhamos, seja teórica ou empírica, com sensações,
acompanharam todo o percurso foram sustenta- sentimentos e lembranças, a um tempo em que se
das na Metodologia Criativa Expressiva. estimula a construção de novos saberes. A impro-
Assim, o respeito com o outro foi construído visação pode ser apresentada verbalmente, escrita
para que se pudesse utilizar esta metodologia, ou de forma dramática. Para isso, precisa-se de um
desenvolvida pela expressão com linguagem di- espaço físico onde o trabalho venha a ser executa-
versas, instigando a capacidade intelectual cria- do. Para seu desenvolvimento, é necessário conhe-
tiva e o espírito crítico, em um processo no qual cer uma ou mais personagens que fazem parte da
fossem reconhecidos: história pessoal, valores, trama: Quem é (são) esta (e) (s) personagem(ns)?
sentimentos, crenças e diversidade de cada um Que faz(em)? Onde vive(m)? Como se sente(m)?
e também elaboradas ações que visassem a qua- Que deseja(m)? Responder a estas perguntas faz
lidade do atendimento, acolhendo as necessida- com que a história, a trama, seja construída, teci-
des da população local. As estratégias foram deli- da, no decorrer do processo que tem sempre ele-
neadas para atender alguns propósitos: pertenci- mentos surpresas que se apresentam – afinal, a
mento de grupo, observação da vivência pessoal, história ‘vai sendo construída’, ela não está pronta
consideração e respeito por esta vivência e ofere- nem acabada, a qualquer momento qualquer coisa
cimento de novos conteúdos (informações) com pode acontecer e a trama precisará ser alterada. E,
base em evidências científicas. neste caso, é possível que o profissional de saúde
As estratégias adotadas na versão do CUR- responda à pergunta: “O que esta pessoa precisa
SUS - Recursos Expressivos para o Pré-Natal fo- quando busca o serviço de saúde?”.
ram desenvolvidas como uma costura: uma es-
- transposição:
tratégia que aconteceu em determinado encontro
Esta estratégia pretende que os participan-
teria como propósito aquecer os participantes pa-
tes reflitam sobre as atividades desenvolvidas,
ra as atividades do encontro seguinte. Comparti-
identificando-as, fazendo analogias, refletindo so-
lham-se algumas delas:
bre qual é seu propósito naquele momento, anali-
- diário de bordo: sando o que foi desenvolvido e pensando outras
No primeiro dia, foi entregue um caderno, possibilidades de utilização, de acordo com sua
com a proposta de ser, também, um ‘espaço po- realidade, inovando em algo que era conhecido.
tencial’, lugar de registro do que foi vivido: senti- Novamente chama-se a atenção para a experiên-
mentos, ideias, dúvidas, lembranças, reflexões, cia de cada um, sua vivência, o público com o
propostas e tarefas. Ele seria de uso exclusivo qual trabalha, sua realidade, para que pudesse ir
dos participantes e nele foram desenvolvidas ati- além. Esta proposta não pretende ser uma repe-
vidades e a escrita livre era a proposta principal. tição nem uma reprodução mecânica do que está

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

posto, afinal se está trabalhando com um método desenvolvida por egressos em sua prática profis-
criativo, mas sim, promover a investigação e a sional. Uma delas refere-se à ambiência de for-
reflexão sobre a prática, gerando novos conheci- mação universitária de profissionais de saúde re-
mentos neste campo do saber e interiorizando- alizada por uma enfermeira e docente que lecio-
-os no plano pessoal. Também não se pretende nava na disciplina de saúde da mulher, no curso
a memorização de conteúdos, pois podem ser de graduação de Enfermagem de uma universi-
acessados sempre que necessário, mas compre- dade privada da cidade de São Paulo. A outra se
ensão profunda sobre assistência e acolhimento refere a um projeto voltado para grávidas e suas
no período de gravidez, parto e pós-parto. Para famílias, com condução de uma enfermeira e sua
dar apoio e, a um só tempo, estimular estas refle-
equipe de Atenção Básica vinculadas a uma uni-
xões, foi solicitado que em cada encontro respon-
dade de saúde da cidade de Sorocaba:
dessem às perguntas: atividade desenvolvida,
“Como docente-enfermeira do quinto semes-
para que foi desenvolvido (pergunta que amplia a
forma de pensar, diferente de qual o seu propósi- tre da disciplina saúde da mulher, no curso
to), material utilizado, onde, quando e com quem de graduação de Enfermagem de uma uni-
pode ser empregado. versidade privada, tive a oportunidade de
Recursos como bordado, toque, tempesta- aplicar a metodologia criativa expressiva que
de de ideias, desenho, construção do fantoche, apreendi no Curso Recursos Expressivos na
escrita livre, preparação de lanche, exposição, fo- Educação Pré-Natal, pelo Instituto de Saúde,
ram algumas das estratégias utilizadas na reali- e, então, comparar o aplicado à metodologia
zação do CURSUS - Recursos Expressivos para o anterior, quando, para trabalhar o tema, eu
Pré-Natal, lembrando sempre que seu desenvol- criava uma situação-problema tomando co-
vimento foi construído também com base na me- mo base o Protocolo de Pré-Natal da Prefei-
todologia psicodramática, na qual o aquecimento tura de São Paulo, e contava com um grupo
é indispensável, assim como em um trabalho de pequeno de participantes da sala de aula.
parto, desde o período latente, a fase ativa até Esse estudo de caso ilustraria a teoria, que
que o nascimento aconteça. seria colocada em lousa ou projetada. Em-
É importante enfatizar que na Metodologia bora fosse um avanço diante de uma aula
Criativa Expressiva as respostas não são ofereci- tradicional, ainda não despertava a atenção
das pelo facilitador – tarefa árdua a ser aprendida do graduando, expresso na preferência por
por aqueles que são treinados para terem, sem-
questionários – solicitavam que lhes dessem
pre, respostas prontas, sob relação verticalizada
30 questões para dentre essas o professor
com os usuários. Lembra-se a ele, o facilitador,
selecionar dez “para a prova”; ou seja, o pro-
que cabe ser um provocador e acompanhante de
cesso de decorar - ou por textos escritos em
processos e caminhadas.
lousa (porque, neste caso, teriam no caderno
um conteúdo relativamente pequeno para ler
Aplicações de Recursos Expressivos pelos a prova), ou também por cópias impressas
participantes pós-curso resumidas da aula e, categoricamente, não
Apresentam-se aqui duas experiências iriam aos livros para reforçar o conteúdo mi-
em que a ‘Metodologia Criativa Expressiva’ foi nistrado, exceto uns poucos estudantes que

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

contando não “encheriam uma mão”. O índi- trazendo teoria e mesclando-as com experi-
ce de reprovação, portanto, era desalentador. ências, quer do cotidiano empírico – de fami-
liares, do local de trabalho ou do “ouvi dizer
No entanto, pela participação no Curso Recur-
que” (dúvidas) - quer da experiência do do-
sos Expressivos na Educação Pré-Natal, com
cente, construindo aí histórias de pré-natal e
experiências inovadoras, surgiu a possibilida-
depois preenchidas no formulário/Protocolo.
de de aplicar estratégias diferentes para os
Como surgiram de um coletivo, num mesmo
semestres seguintes. Dois momentos vividos
houve diferentes histórias de gravidez com
no Curso Recursos Expressivos na Educação
diferentes desfechos, e, portanto, com dife-
Pré-Natal marcaram a visão do docente a fim
rentes cuidados: sem riscos, com risco, com
de levá-lo a pensar diferente e refazer a es-
riscos acentuados, gravidezes de adolescen-
tratégia de aula. Na primeira, trabalhou-se
tes resultantes de violência, gravidez não de-
com argila quando cada participante “con-
sejada. Ou seja, perceberam que o protoco-
cebeu” uma gravidez e contou sua história.
lo era somente um guia, pois as gestantes
Nas narrações percebeu-se em cada “con-
cepção” um modo diverso de ver a grávida e eram singulares, cada uma com uma ou mais
seu pré-natal, com situações e necessidades necessidades, e com suas diferenças. Perce-
distintas e únicas. Noutro momento, teceu-se beram que poderiam começar a preencher
um bordado: a partir do centro do retalho, o formulário numa dada ótica, mas à medi-
para onde desejassem. Cada bordado tomou da da interação entre eles - profissional de
um rumo, uma forma, levando à reflexão de saúde - gestante/família esse quadro poderia
que no pré-natal há um ponto de partida, po- evidenciar fatos que implicariam novo olhar e,
rém as direções e rumos podem ser diversos, dependendo de quais fossem, seria o cuida-
no ritmo próprio de cada grávida. A atenção do. Desse modo, seguir tão somente ou rigi-
do profissional é para apoiar esses rumos e damente o protocolo, tornar-se-ía inexequível,
escolhas como auxiliador desse processo. Ou uma vez que foram levantadas várias situa-
seja, intervém-se se necessário. Assim, essas ções num único formulário protocolar.  Logo
dinâmicas trouxeram possibilidades inovado- foram descobertas situações singulares pa-
ras, enriquecendo e permitindo vislumbrar ra o uso do Protocolo e suas limitações, exi-
transformações das relações entre profissio- gindo um olhar mais atento e sensível, para
nais de Enfermagem e as grávidas nas ações “além do protocolar”  (Nilza Corbani, 2014) .
educativas e de humanização.
“A aplicação se deu em grupo denominado
Embora nas aulas da Saúde da Mulher se Gerações, criado para contribuir na redução
contasse unicamente com os recursos de da mortalidade materna. A ambiência foi em
uma aula expositiva tradicional (lousa, cadei- uma UBS convencional e os profissionais en-
ras enfileiradas, retroprojetor e protocolos), volvidos são denominados profissionais de
mais o impresso do protocolo de pré-natal da “linha de frente” da unidade. Participavam
Secretaria de Saúde, a metodologia não era da organização dos encontros uma enfermei-
mais a mesma. Em cada tema, para o cum- ra e uma psicóloga que colaboravam no gru-
primento do Plano de Ensino, o docente e es- po de pré-natal e no atendimento individual
tudantes iam formando uma teia de saberes, das mulheres que precisavam. Os encontros

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

eram planejados a cada semestre e aconte- vivencia das participantes. A troca intercedi-
ciam semanalmente a cada segunda-feira à da pela utilização de recursos expressivos,
tarde. Havia preparação de lanche e se bus- torna as participantes ativas ao invés de
cava oferecer brindes como estímulo para apenas ouvintes passivas e gera mais intera-
participantes. Em um destes encontros, uma ção, aprendizado e vínculo entre todas” (Ana
auxiliar de enfermagem da unidade, ensinou Cristina Cordeiro, 2014).
as mulheres a fazer tricô de dedo, sem uso
de agulhas, para fazer um presentinho da
mãe para o bebê que chegaria ou que já es- Discussão
tava ali e se teve surpresas com as criações A proposta no início do curso trouxe algu-
das mulheres. Conforme teciam o presente, ma confusão, uma vez que os recursos expressi-
se conversava sobre a história daquela gravi- vos já são, muitas vezes, utilizados na realidade
dez, as diferenças entre essa e outras, suas dos participantes, mas com o intuito de “ensinar
expectativas com a chegada do novo bebê e a fazer”, em oficinas, que propõem a aquisição
surgiu uma história triste, de uma grávida de de habilidades no saber-fazer prático, ou como
início, que frequentava o grupo pela primeira recursos “para passar o tempo”. Em outros mo-
vez e compartilhou ser dependente química. mentos, parecia “simplesmente uma brincadeira”
As próprias mulheres a acolheram e come- (fala dos participantes). Mas, aos poucos, pode-
çaram a dividir suas impressões e incenti- -se ter a experiência da utilização dos recursos
var a nova integrante para que “deixasse” ou de pintura, desenho, bordado, dança, colagens,
“moderasse” o uso da droga e aproveitasse
entre outros, como possibilidades de recupera-
o momento mágico que é gerar e esperar um
ção da liberdade de expressão e consequente
filho. Apesar de se ter um programa previa-
autonomia, que é a sustentação deste trabalho.
mente discutido, os assuntos eram tratados,
Sair de uma atitude passiva / receptiva
conforme surgiam. Alguém trouxe uma ques-
trouxe algum desconforto no início, mas pôde-se
tão sobre a hora de amamentar, então este
perceber o crescente envolvimento no decorrer
assunto virava o tema da reunião. Outro al-
dos cursos, que observaram os critérios básicos
guém falou dos ciúmes do irmãozinho mais
da Metodologia Criativa Expressiva. Os partici-
velho ou até mesmo do marido, então este
pantes ficavam, cada dia, mais envolvidos, mais
se tornava nosso assunto principal. Elas dis-
seram que (o grupo) era um momento em desejosos compartilhar suas experiências e cada
que se sentem importantes e mais ativas na dia mais disponíveis para ouvir a experiência do
sua própria história de gravidez. Quando ga- outro e não mais (ou somente) com uma postura
nhavam bebê, era automático o desejo de de espera do conhecimento – eles se tornaram
apresentar o novo membro ao grupo e conti- os produtores de conhecimento.
nuavam participando dos encontros (..). Com Importante resaltar que este trabalho foi de-
esta experiência, observei que este tipo de senvolvido como um processo e construído com
contato com as mulheres e grávidas é muito a participação de todos e, desta forma, a avalia-
mais produtivo do que o antigo modelo de ção foi contínua, fomentando o espírito reflexivo
palestra, quando fala quem teoricamente sa- e a confiança para novos passos, que eram com
be mais, e que nem sempre tem a mesma frequência, compartilhados.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

O trabalho expressivo em grupo favoreceu As evidências científicas sobre Educação


a construção de uma rede de apoio importante Pré-Natal apontam que os cursos pré-natais têm
naquele momento que suportava as mudanças como objetivo promover o sentimento de segu-
favorecidas ali e que eram aplicadas em suas rança da mulher, à medida que o parto se aproxi-
realidades. ma, e que estes trabalhos podem ser um veículo
Para Rios24, as experiências de Educação para modificação de atitude dos usuários, tanto
Pré-Natal, que ativam aspectos da cultura sub- promovendo maior autoconfiança na mulher e in-
jetiva e criatividade, podem contribuir para maior dagações quanto a rotinas e recomendações pro-
autoconsciência e não somente para conhecer fissionais, quanto levando a maior ‘aceitação e
as necessidades de aprendizado das grávidas no adesão’ aos tratamentos médicos prescritos, ou
período do pré-natal e para apoiar a grávida na ainda, uma indução ao que está preestabelecido,
determinação de seu autocuidado. Reconhecen- mas que isto vai depender não apenas das ca-
do o pré-natal como um espaço propício para que racterísticas daqueles que frequentam os cursos
a mulher se prepare para viver o parto de mo- pré-natais, mas também da competência, habili-
do positivo, integrador, enriquecedor, entende-se dades e valores dos profissionais, assim como
que o processo educativo no pré-natal (Educação dos objetivos subjacentes do programa.
em Saúde) é indispensável não somente para a
aquisição de conhecimentos a respeito do pro-
cesso de gestar e parir, mas também para que se Considerações finais
torne forte como pessoa autônoma. As experiências relatadas acima apontam
Há incerteza quanto aos elementos críticos que é possível, principalmente, sair de uma postu-
do Cuidado e da Educação Pré-Natal, mas se ad- ra onde, supõe-se, capacitar o outro – profissional,
mite que o cuidado inadequado está associado futuro profissional, gestante, puérpera, etc – pa-
ao aumento de complicações e desfechos desfa- ra uma postura onde é possível ouvir, se interes-
voráveis da gravidez25, também para a transição sar pelo outro, favorecendo a livre expressão e a
para o trabalho de parto e nascimento positivo reflexão acerca da própria realidade quando são
que inclui, autoestima materna, competência e utilizados os critérios básicos da Metodologia Cria-
autonomia como fatores importantes para uma tiva Expressiva. Os profissionais contam de como
experiência positiva de gravidez26,27. No SUS exis- utilizaram os recursos expressivos que dispunham
tem protocolos baseados nos principios da inte- para, principalmente, oferecer um espaço de es-
gralidade, autonomia e humanização, que resu- cuta e compartilhamento, favorecendo atitudes de
midamente podem compor a Educação Pré-Natal mostram a iniciativa, a reflexão, a possibilidade de
como: ações de promoção de saúde, de proteção mudança como competência de cada um de nós.
específica, informações sobre preparação física As aplicações de recursos expressivos des-
para o parto, alusão ao que diz respeito aos efei- tacadas neste trabalho apontam para o processo
tos de varias posições e ambiências de parto, de promoção da capacidade para decidir, ou se-
para que a mulher possa participar ativamente ja, empoderar-se, o que implica na conquista de
do seu parto, percebendo o bem-estar que essas maior autonomia e liberdade, avanço e supera-
situações propiciem e assim recomenda-se a fre- ção do estado de subordinação, de dependência,
quência em consultas e exames pré-natais e o seja física, econômica e psicológica. Significa tor-
contato com o serviço de maternidade. nar-se sujeito ativo do processo.26.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Sempre existirá um novo jeito de fazer, um Sabatino H, Cordeiro S. Historia de la métodos de prepa-
outro jeito de dizer, de olhar, novas formas e alter- ración física y psíquica para el parto. In. Prieto JC. (coord.).
Obstetricia general. Madrid: Editora Universitaria Ramón
nativas e, com certeza, modos melhores, inespe-
Areces; 1995. p.16-32.
rados e inexplorados de criar, ensinar e aprender.
Odent M. A cientificação do amor. São Paulo: Terceira Mar-
Isto é trabalhar com criatividade. E, reforçando, gem; 2000.
afirma-se que a proposta de humanização no par- Odent M. O renascimento do parto. Florianópolis: Saint Ger-
to e nascimento começa no reconhecimento dos main; 2002.
profissionais que aí atuam. Kitzinger S. A experiência do parto. Lisboa: Instituto Piaget;
1984.
Maldonado MT. Maternidade e paternidade. vol I. Petrópo-
lis, RJ: Vozes; 1990.
Maldonado MT, Canella P. Recursos de relacionamento para
Referências profissionais de saúde: uma boa comunicação com clientes
Melo MAS. A metodologia criativa Expressiva na Intervenção e seus familiares em consultórios, ambulatórios e hospi-
Psico-Gestacional: experiências de formação e desenvolvi- tais. Rio de Janeiro: Reichmann & Affonso Editores; 2003.
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|94
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Técnica de “Depuração” em estudos de caso: visando


facilitar a discussão da assistência à saúde de adolescentes
“Debugging Cases” strategy in a case study: aiming to facilitate discussion of adolescent health care

Adriana Maria do NascimentoI, Isabella Fontes MonteiroII,


Rebeca Rodrigues de LimaIII, Samanta Ribeiro Oliveira da SilvaIV, Regina FigueiredoV,
Fernanda Luz Gonzaga da SilvaVI, Danilo MilevVII, Vanessa Matias da RochaVIII

Resumo Abstract

Este artigo apresenta o emprego da técnica “Depuração de Casos” This article presents the applicability of the strategy “Debugging
para discussão de Estudo de Caso, utilizada para formação de Cases” to discuss a Case Study, used for training health professio-
profissionais de saúde da Atenção Básica na promoção de saúde nals of Primary Care in the promotion of sexual and reproductive
sexual e reprodutiva de adolescentes. Por meio de descrição da health of adolescents. Through the description of the strategy, des-
técnica, descrição de discussões e entrevistas realizadas após cription of discussions and interviews conducted after applicabili-
sua utilização, obteve-se a opinião dos profissionais em relação ty, an opinion was obtained from the professionals regarding the
à técnica. São discutidas e analisadas suas contribuições para a strategy. Their contributions to the training of health professionals
formação de profissionais de saúde e para a promoção e assis- and to the promotion and health care of adolescents in issues
tência à saúde de adolescentes em questões de direitos e saúde of sexual and reproductive health and rights are discussed and
sexual e reprodutiva. analyzed.

Palavras-chave: Metodologia de educação; Estudo de caso; Direi- Keywords: Methodology of education; Case study; Sexual and re-
tos sexuais e reprodutivos; Saude sexual e reprodutiva; Assistên- productive rights; Sexual and reproductive health; Health care.
cia à saúde.

I
Adriana Maria do Nascimento (drika.rasika@gmail.com) é bacharel em Enfer- pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo
magem pela Universidade Paulista (UNIP), com aperfeiçoamento em Saúde (EACH/USP).
Coletiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São V
Regina Figueiredo (reginafigueiredo@uol.com.br) é Cientista Social, Mestre
Paulo e pós graduanda em Pesquisa Clínica com foco em Epidemiologia pela em Antropologia Social e Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São
Universidade de São Paulo (USP). Paulo (USP) e Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde da Secretaria de
II
Isabella Fontes Monteiro (isabella.monteiro@usp.br) é bacharel em Obste- Estado da Saúde de São Paulo.
trícia pela Universidade de São Paulo (USP), com aperfeiçoamento em Saúde VI
Fernanda Luz Gonzaga da Silva (fe.gonzaga@hotmail.com) é bacharel em
Coletiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Obstetrícia pela Universidade de São Paulo (USP), com aperfeiçoamento em
Paulo e Mestranda em Mudança Social e Participação Política pela Escola de Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de
Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP). São Paulo e atua como assistente de pesquisa nessa instituição.
III
Rebeca Rodrigues de Lima (rebecalegal@uol.com.br) é bacharel em Obste- VI
Danilo Milev (danilomilev@hotmail.com) é bacharel e licenciado em Ciências
trícia pela Universidade de São Paulo (USP), com aperfeiçoamento em Saúde Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André, com aperfeiçoamen-
Coletiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São to em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da
Paulo. Saúde de São Paulo.
IV
Samanta Ribeiro Oliveira da Silva (sami.ribeiro@yahoo.com.br) é bacharel VIII
Vanessa Matias da Rocha (vanessa_rocha24@yahoo.com.br) é bacharel
em Obstetrícia pela Universidade de São Paulo (USP), com aperfeiçoamen- e licenciada em Educação Física pela Universidade São Judas Tadeu, com
to em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da aperfeiçoamento em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria de
Saúde de São Paulo e Mestranda em Mudança Social e Participação Política Estado da Saúde de São Paulo.

|95
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução realização de histerectomias34, assim como no


Na área da Saúde, é comum a confusão de atendimento a adolescentes23.
papéis dos profissionais em lidar com determina- Neste último item, se destaca a questão
dos assuntos como, por exemplo, violência, dro- da atenção à prevenção da gravidez e do forne-
gas, ou sexualidade. Uma vez que esses temas cimento de contraceptivos na adolescência, que
são polêmicos e muitas vezes considerados ta- tem sido pauta de muitos debates em relação
bus, os profissionais costumam misturar percep- aos direitos sexuais e reprodutivos dos adoles-
ções e valores pessoais junto à atuação profissio- centes. Não são poucos os trabalhos que se pau-
nal. O Conselho Regional de Medicina do Estado tam nos direitos dos adolescentes após 1990,
de São Paulo15 já apontou que tanto a Ginecolo- quando foi implementado o Estatuto da Criança
gia como a Obstetrícia apresentam casos em que e do Adolescente (ECA)5. Não apenas discute-se
esses conflitos de ordem profissional e bioética se tais direitos vêm sendo entendidos e pratica-
se permeiam à prática, talvez como em nenhu- dos31,32,35, mas também as dificuldades e con-
ma outra especialidade médica. Frequentemen- tradições, inclusive legais, de seu entendimento
te, profissionais dessas áreas são confrontados pleno19,22. O fato é que corriqueiramente, direitos
por situações com as quais não sabem lidar com já estabelecidos e referendados pelo próprio Mi-
“neutralidade”, ultrapassando, inclusive, limites nistério da Saúde8,9 são, muitas vezes, transgre-
éticos em atitudes que expressam preconceito didos e negados pelos serviços e profissionais de
e julgamento moral, como constatado em várias saúde pública23.
situações, como casos de abortamento29, de for- Além disso, verifica-se que há uma tendên-
necimento da contracepção de emergência26, na cia do senso comum na abordagem dos direitos

|96
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

sexuais e reprodutivos de adolescentes pelo vi- não costumam ter as legislações de direitos se-
és familiar, ou seja, os adolescentes costumam xuais e reprodutivos em suas formações; segun-
ser encarados sob a ótica da tutela de pais ou do, porque, de acordo com Andrade e Vieira1, o
responsáveis e não como sujeitos plenos de di- modelo biomédico hegemônico tão predominante
reitos, ficando a mercê sempre do aval de suas nessas escolas de formação profissional quanto
ações e também a submissão de seu atendimen- nas instituições de assistência em saúde, tende
to em saúde da responsabilidade dos outros. Es- a valorizar o tecnicismo durante a prática, descon-
sa noção esbarra na responsabilidade familiar, siderando, na maioria das vezes, o histórico so-
mas também no direito adquirido, após inúme- cial, individual e psicológico do usuário, limitando
ras discussões de saúde, à garantia do sigilo de os profissionais na capacidade de lidar com os
informações sobre relatos de pensamento e de valores individuais, culturais e aspectos psicoló-
conduta preconizado por uma série de conselhos gicos. Além disso, estes aspectos também não
profissionais ligados à saúde. são discutidos na própria formação dos alunos e
Os conselhos de profissionais das áreas de futuros profissionais de saúde.
Enfermagem14 e Medicina15, Psicologia16 e Servi- Essa tendência se intensifica quando as
ço Social17 explicitam, em seus códigos de ética, abordagens humanizadas e contextuais não são
a importância do sigilo das informações pessoais consideradas. Com exceção de áreas como a Psi-
do paciente como necessário à adesão e à conti- cologia Social e a Antropologia, que lidam com de-
nuidade da atenção em saúde. Da mesma forma, mandas e imaginários das pessoas percebendo
a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Fe- onde/como/porque elas têm tal e qual conduta,
deração Brasileira das Associações de Ginecolo- as práticas profissionais tendem a se voltar ao in-
gia e Obstetrícia (FEBRASGO)33, fazem essa reco- divíduo e suas funções biológicas, ou seja, à práti-
mendação, explicitando as questões de natureza ca clínica, assim como o direito à saúde vai sendo
da sexualidade dos adolescentes. norteado cada vez mais ao ser biológico. Dimens-
É importante frisar que o direito ao sigilo tein21 aponta isso na seleção e hierarquização dos
e à autonomia de adolescentes, defendido, não pacientes, na baixa eficácia das terapêuticas, no
vislumbrou evitar a abordagem grupal dos proble- alto índice de abandono dos tratamentos e nos
mas, mas garantir o direito do adolescente en- conflitos das orientações dos profissionais da saú-
quanto indivíduo de opinião e ativo, não reconhe- de com as representações de pessoa usuária das
cido em leis anteriores que o colocavam a mer- instituições de saúde, inclusive quanto à visão so-
cê de decisões familiares. Garantir a autonomia, bre saúde e doença, e corpo. Como consequência.
nesse caso, preconiza, não apenas enxergar su- Tem-se a “coisificação” dos pacientes e a não per-
as demandas e necessidades, mas também prio- cepção desses como sujeitos de direitos.
rizá-las, de forma a garantir que o vínculo entre Por isso, no que se refere à sexualidade, há
assistência e serviços com esse sujeito garan- embates quando são apresentados aspectos que
ta seu espaço e inclusão no sistema, o que não o tecnicismo não responde e se constituem na or-
ocorreria caso a família fosse convocada. dem dos direitos, principalmente individuais, uma
Assim, a dificuldade dos profissionais de vez que, com relação a adolescente, há interes-
saúde em lidar com a sexualidade de adolescen- ses, muitas vezes conflitantes entre ele e seus fa-
tes está relacionada predominantemente com a miliares22. Esses interesses familiares estão, nor-
formação dos mesmos; primeiro porque esses malmente, calcados na moral social, em hábitos,

|97
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

preconceitos e estereótipos comuns, fortemente levantamento de demandas prioritárias em saú-


guiados pela cultura de origem patriarcal, como de e elaboração de estratégias na tentativa de
se constata na visão sobre a homossexualidade contribuir com a situação local no tocante à redu-
ou sobre a prática sexual das meninas22,28 – que ção da mortalidade materna.
são fortemente reprimidas socialmente devido à O diagnóstico de saúde elaborado no traba-
adoção de modelos estereotipados e de gênero lho supracitado apresentou as taxas de mortali-
feminino e masculino28. dade materna na Região de Saúde de Franco da
Da mesma forma, profissionais sem preparo Rocha que engloba os municípios de Cajamar,
e discussão sobre direitos e cultura, se apresen- Caieiras, Francisco Morato, Franco da Rocha e
tam com essas mesmas construções culturais do Mairiporã. No ano de 2010, a taxa foi de 71,06 por
senso comum e as utilizam para avaliar e “palpi- 100.000 nascidos vivos e, em 2013, 46,37 por
tar” sobre os comportamentos sexuais das pesso- 100.000 nascidos vivos. Restringindo o olhar pa-
as que atendem, trazendo interferências de ordem ra o município de Franco da Rocha, notou-se que
pessoal e moral para a sua atuação de trabalho e esta razão de mortalidade era de 92,38 em 2010,
perdendo por várias vezes a perspectiva do cuida- 143,54 em 2011 e nenhuma morte computada
do da saúde em si e do direito em saúde do outro – em 2013, sendo que os dados referentes ao ano
o usuário adolescente. A desconstrução e quebra de 2012 não estavam disponíveis na ocasião25.
de paradigmas dentro de uma sociedade onde as Sabe-se que as taxas observadas nesse
mulheres e também meninas adolescentes ocu- município ultrapassam os limites estabelecidos
pam um lugar de coadjuvantes em suas relações pela Organização das Nações Unidas (ONU), que
familiares e sociais, principalmente em ambientes deveriam ser de no máximo 35 óbitos maternos
de maior pobreza e desigualdade e, portanto, de por 100.000 nascidos vivos36. Além disso, iden-
dependência econômica, refletem diretamente no tificou-se, também, que as causas de óbitos ma-
julgamento desses sujeitos e na vulnerabilidade a ternos no município estavam relacionadas direta-
que estarão expostos13. mente às altas taxas de mortalidade obstétrica
Buscando contribuir para a facilitação da direta, ou seja, causas evitáveis. Evidenciou-se,
compreensão do direito a atenção em saúde de ainda, que essas taxas seriam indicadores de
situações que remetem ao âmbito coletivo ou fa- pré-natal de baixa qualidade, baixa qualidade da
miliar, este artigo apresenta uma técnica de dis- atenção ao parto, investimento insuficiente em
cussão de caso utilizada para questões de saúde planejamento reprodutivo e falta de acesso das
sexual de adolescentes, buscando integrar o di- gestantes aos serviços de saúde25.
reito desses como sujeito de direitos individuais. A definição dessa demanda prioritária resul-
tou na elaboração de uma síntese de evidências
na qual foram analisadas revisões sistemáticas
Metodologia que avaliaram intervenções capazes de reduzir
No período de 2014 a 2016, o Instituto de a mortalidade materna. Levando em considera-
Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São ção a organização da rede de atenção à saúde
Paulo, através do Programa de Aprimoramento materno-infantil do município e as opções viáveis
Profissional (PAP) em Saúde Coletiva e em par- para resolução do problema, a qualificação das
ceria com a Secretaria Municipal de Saúde de ações de planejamento reprodutivo foi a propos-
Franco da Rocha, desenvolveu um trabalho de ta de ação escolhida pelos gestores do município

|98
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

para sofrer intervenção, uma vez que essa ação de fluxos necessários de serem realizados para a
é uma forte aliada na redução da mortalidade atenção em saúde reprodutiva de adolescentes.
materna, conforme apontaram Nyamtema e cole- O caso foi elaborado pela equipe do Instituto
gas31, em uma revisão sistemática. Também Gol- de Saúde e procurou refletir a realidade do muni-
die e colegas24 constataram que o planejamento cípio e do atendimento nas Unidades Básicas de
reprodutivo é a intervenção mais eficaz, pois tem Saúde (UBS), de modo a provocar identificação
potencial de redução da mortalidade materna de dos participantes com a situação comum, ou se-
7% a 28,1% nas áreas rurais e de 5,8% a 23,5% ja, a situação de risco de gravidez na adolescên-
nas áreas urbanas. Igualmente Delfino e cole- cia, num contexto familiar conturbado e com ou-
gas20 concluíram que o planejamento reprodutivo tras demandas de saúde, em que adolescentes
somado a outras estratégias de ação pode pro- têm prática sexual com parceiros da localidade.
porcionar uma redução na mortalidade materna Caso de Talita:
de uma região, com impactos de até 75%. “Talita, 13 anos, estudante, compareceu pela
Diante disto, entre as estratégias elaboradas primeira vez a uma Unidade Básica de Saú-
em resposta às demandas identificadas no muni- de, acompanhada da prima de 15 anos, re-
cípio, foi realizada a proposta de capacitação de ferindo atraso menstrual. Na recepção, foi
servidores da saúde em Planejamento Reproduti- informada da necessidade de estar acompa-
vo para Adolescentes, uma vez que a incidência de nhada por um responsável e não pôde reali-
casos de gravidez na adolescência no município é zar o teste de gravidez. Talita retornou após
alta e considerada corresponsável pela alta mor- uma semana, acompanhada de uma amiga
talidade materna local. Uma oficina pré-agendada, da prima, de 18 anos. Durante a coleta do
com a participação de servidores de diferentes Pregnosticon (teste de gravidez), a adolescen-
Unidades Básicas de Saúde do Município de Fran- te relatou que é filha de Silvana, 30 anos,
co da Rocha (SP), foi montada para a aplicação e auxiliar de limpeza, estava na fila da laque-
discussão de um estudo de caso. Segundo Yin37: adura, mas acabou engravidando do quarto
“[...] um estudo de caso investiga um fenôme- filho. Está casada com Josias, desemprega-
no contemporâneo (o ‘caso’) em seu contex- do há dois anos e apresenta quadro de alco-
to no mundo real, especialmente quando as olismo, não aceita realizar vasectomia, não
fronteiras entre o fenômeno e o contexto pu- possui responsabilidades dentro de casa e
derem não estar claramente evidentes” (p.2). recentemente começou a ter comportamen-
tos abusivos. Há 4 meses fica com Cléber, 25
Considerou-se que a técnica proporcionaria
anos, motoboy, pai de dois filhos e frequenta-
oportunidade para gerar reflexões a respeito da
dor dos fluxos (‘rolezinhos’). Após o resultado
assistência e do cuidado contraceptivo aos ado-
negativo, aproveitou o momento e referiu sen-
lescentes, embasando uma discussão frente às
tir ‘bolinhas’ na região da vagina além de ter
dificuldades e posicionamentos dos profissionais
sentido dor nas últimas relações sexuais”.
quanto aos direitos sexuais e reprodutivos dos
adolescentes, questões de gênero, preconceito, O grupo de profissionais, dividido em sub-
direito à autonomia e ao sigilo, além da reflexão so- grupos de 3 a 4 pessoas, deveria discutir e res-
bre as barreiras que as jovens enfrentam na bus- ponder: “Qual deveria ser a postura do serviço
ca de serviços de saúde, favorecendo a ilustração frente ao caso?”. Desta forma, esperava-se que

|99
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

construíssem uma estratégia de ação para solu- Os encaminhamentos e ações da UBS de-
ção da(s) situação(ções) envolvida(s) no caso. vem seguir as políticas nacionais, estaduais e
Como a expectativa era de que muitos as- municipais de cada subárea da saúde, conforme
pectos de ordem moral, dúvidas, envolvimento de o modelo constitucional do SUS que norteia as
familiares e esquecimento de alguns detalhes da ações de serviços e profissionais de saúde que
situação apresentada no caso fossem feitos, a fi- atuam nesse sistema.
nalização do trabalho de estudo de caso utilizou a Para avaliar a técnica, foram realizadas du-
técnica de “depuração de casos”, que especifica as formas de avaliação: (1) os participantes res-
em um quadro síntese, todos os personagens en- ponderam a um questionário de avaliação no final
volvidos na situação, seus problemas e necessi- do encontro, contendo questões sobre a organi-
dades quanto à saúde e o papel de resolução que zação, objetivo e metodologia utilizada na forma-
a UBS e seus fluxos têm, uma vez que o modelo ção; (2) cada profissional foi visitado em seu ser-
assistência no Sistema Único de Saúde (SUS) é viço até 2 meses após o encontro, de forma a
pautado na integralidade individual. Assim, a “de- responder uma entrevista semiestruturada sobre
puração de casos” foi inventada enquanto técni- o processo, a dinâmica realizada, a viabilidade
ca pelo grupo do Instituto de Saúde para facilitar de sua replicação e de implementação das ações
a visualização da dimensão de inserção do cuida- orientadas.
do individual no conjunto de assistência à saúde
que lida com comunidades e questões familiares,
buscando facilitar intervenções e integração dos Resultados
sujeitos na promoção da saúde: A oficina de discussão de caso Planejamen-
to Reprodutivo de Adolescentes, contou com a
Quadro 1 – Tabela modelo para construção da participação de 10 profissionais de saúde: 3
“depuração de caso” agentes comunitárias de saúde, 1 auxiliar de en-
Personagem Problema/ Como a UBS Bases
fermagem, 4 enfermeiros, 1 assistente social e
Questão deve atuar? Normativas 1 profissional da equipe de gestão do município.
de Saúde e Legais
1 - ........
Em seguida, cada grupo apresentou as pos-
2 - ........ síveis condutas para resolução de cada caso que
3 - .......
............ que consideravam “confuso” e complicado, mas
Fonte: Elaboração própria recorrente em sua comunidade.

|100
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Quadro 2 – Resultado da discussão em Grupo do Caso Talita.

Grupo Conduta com Talita Conduta com outro(s)

Grupo 1 - teste rápido (DST) - orientar mãe sobre contracepção até fazer
- consulta ginecológica imediata laqueadura
- localizar a mãe
- investigar os sintomas
- orientar sobre contracepção
Grupo 2 - teste rápido (DST) - orientar mãe sobre contracepção até fazer
- teste de gravidez laqueadura
- fazer consulta de enfermagem - realizar pré-natal da mãe;
- verificar por qual motivo mãe não se comu-
nica com a filha
- encaminhar a mãe para apoio social
- realizar visita domiciliar para ver situação
do padrasto
- encaminhar padrasto para CRAS
- oferecer ao namorado método contracep-
tivo
Grupo 3 - teste de gravidez imediato sem necessidade de
acompanhante
- convocar adolescente para grupo
- verificar se houve violência sexual
- discutir com a mãe o caso que a mãe deveria ter
orientado
- falar da postura irresponsável do parceiro
- acionar Conselho Tutelar.
Fonte: Elaboração própria

Uma vez trazidos os resultados dos grupos serviços do SUS8,9,10, aplicando a técnica de “de-
elementos, foram trazidos à luz da discussão e puração de caso”. Assim, o instrutor constrói ex-
embasamento das ações estratégicas de cuida- positivamente um quadro, que discute a diversi-
do, propostas pelos participantes em adequação dade de condutas apontadas pelos grupos frente
aos conceitos, normas, diretrizes e legislações às necessidades de saúde dos sujeitos envolvi-
preconizadas que dispõe dos direitos sexuais e dos no caso, seus problemas e quais condutas
reprodutivos dos adolescentes para a orienta- estariam embasadas nas diretrizes, legislações
ção de condutas de profissionais que atuam em e normas vigentes em saúde.

|101
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Quadro 3 – Caso “depurado”, conforme problemas de saúde, condutas e bases normativas.

Personagem Problema/ Como UBS deve atuar? Bases Normativas


Questão de Saúde e Legais
1 – Talita Teve relação sexual - atenção individual com direito à autonomia e ECA e Ministério da Saú-
5

(adolescente sem prevenção sigilo em todos os procedimentos; de, dispensam obrigação


de 13 anos) e buscou realizar - realização de teste-gravidez; de acompanhante para
teste de gravidez. - verificar se costuma ter relações sexuais con- atenção ginecológica,
Tem “bolinhas” na sentidas (se foi forçada, fazer encaminhamento contraceptiva e exa-
região da vagina. da violência); mes7,8,9.
- atenção ginecológica e contraceptiva (para
qualquer método);
- exames ginecológicos e testes para detecção
de DST;
- tratamento da DST (se for o caso);
- orientação de uso de preservativo contra
DST/aids.
2 – Cleber Pai de 2 filhos, Se reside na área: Lei de Planejamento Fa-
(jovem de teve relação sexual - orientação em planejamento familiar para pla- miliar4 e Política de Aten-
25 anos) com Talita sem nejamento de paternidade; ção ao Adolescente e ao
prevenção - orientação para realização de teste rápido Jovem8,9,10.
para detecção de DST; e Política de DST/Aids
- tratamento da DST (se for o caso); orienta prevenção de
- orientação de uso de preservativo contra DST/ DST/Aids7,10,12.
aids.
3 – Silvana Tem 4 filhos e está - realizar o pré-natal; Lei de Planejamento Fa-
(30 anos) na fila de laquea- - verificar demora de espera de laqueadura; miliar4
dura. - oferecer e esclarecer sobre importância de e Política do Ministério
Está grávida. uso de contraceptivos de alta eficácia e dura- da Saúde para atenção
Tem parceiro usuá- douro até laquear (DIU, injeção trimestral, etc); integral a usuários de
rio de álcool. - orientar condutas para familiar de dependên- álcool e outras drogas6.
cia química (na UBS, CAPS, ou serviços locais).
4 – Josias Faz abuso de ál- - abordagem para orientação de dependência Política do Ministério da
(padrasto) cool, química e encaminhamento ao CAPS; Saúde para atenção inte-
Desempregado, - encaminhamento Centro de Referência em gral a usuários de álcool
Comportamentos Assistência Social (CRAS) e Posto ao Atendi- e outras drogas6
abusivos. mento ao Trabalhador (PAT), para apoio à busca e Política Nacional de
de emprego e renda. Saúde – que orienta
interação com outros
setores e equipamentos
públicos11.
5 – Amiga da Se reside na área: Lei de Planejamento Fa-
Prima - orientação para atenção ginecológica e con- miliar4 e Política de Aten-
(18 anos) traceptiva (para qualquer método); ção ao Adolescente e ao
- orientação de uso de preservativo contra DST/ Jovem8,9,10.
aids. Política de DST/Aids
orienta prevenção de
DST/Aids7,12.
Fonte: Elaboração própria

|102
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

No processo de avaliação, os questioná- muito positiva (numa média próxima à nota


rios aplicados ao final do encontro apontam máxima) quanto ao conteúdo, metodologia, re-
que praticamente todos os profissionais con- levância, desempenho dos facilitadores e sua
sideraram as técnicas empregadas de forma própria participação:

Tabela 1 – Avaliação dos participantes da Oficina, considerando 10 a nota avaliação máxima.

Desempenho Auto avaliação


Participantes conteúdo metodologia relevância
dos facilitadores de participação
1 10 10 10 10 10
2 10 10 10 - 10
3 10 10 9 8 9
4 10 8 10 10 8
5 10 10 10 10 8
6 10 9 9 9 10
7 10 10 9 10 9
8 10 10 10 10 -
9 10 10 10 10 -
10 10 10 10 10 10
média 10 9,7 9,7 9,7 9,3
Fonte: Elaboração própria

Com relação à pertinência da oficina pa- expectativas por 90%, expectativas e “adequada
ra sua formação foi considerada “muito impor- em carga horária” por 90%.
tante” por 80%, “além” ou “muito além” das

Gráfico 1 - Avaliação dos participantes sobre a Pertinência, Resposta às Expectativas e Carga Horária
da Formação

Fonte: Elaboração própria

|103
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

As entrevistas demostram que o uso de dis- teste de gravidez tinha receio de fazer sem o
cussão de caso que utilize similaridade com as pai sem a mãe, até chegava ao ponto de se
características culturais e socioeconômicas pró- negar” (Participante 3).
ximas à realidade do município permite identifica-
“A pessoa/o paciente, você vai atender como
ção dos profissionais de saúde.
pessoa e você nunca atende só ela. Aí tem as ou-
“O estudo de caso que a gente teve lá no cur-
tras questões que se estendem” (Participante 6).
so com vocês acontece muito aqui no posto” (Par-
Além disso, relatam que o aperfeiçoamen-
ticipante 1).
to de conhecimentos sobre os aspectos legais,
“...a gente acha que é só um estudo do ca-
quebra de tabus e ideias transmitidas pelo senso
so, mas que realmente acontece, independente da
comum existente localmente, permitindo a am-
UBS, porque uma coisa é falar de uma coisa que
pliação da capacidade de prestar o cuidado inte-
não vivencia e aí fica superficial, mas aquilo me
gral à saúde através de pressupostos científicos
marca porque realmente acontece e ajuda até me-
e normatizações, garantindo de forma eficiente o
lhorar” (Participante 2).
direito à saúde e evitando consequências negati-
A “depuração de caso” foi considerada co-
vas para o paciente e para o sistema de saúde
mo uma maneira clara e didática de transmis-
como um todo.
são do conteúdo, possibilitando o esclarecimen-
to das dúvidas sobre cada problema e questão “... aqui eles têm a cabecinha muito fechada
dos “personagens”. Além de orientar condutas ainda em relação a tudo isso que envolve a
de forma objetiva e interligada à legislação exis- sexualidade então foi bom pra gente apren-
tente foi considerada muito importante, uma vez der a conduzir a conversa com esse público”
que muitos desconheciam as legislações e nor- (Participante 5).
mas vigentes: Quando à contribuição da atividade para
“... passou informação que a gente não co- a reflexão da prática profissional, os participan-
nhecia, também da parte da vasectomia e tes apontaram a importância de não lidar com
da laqueadura que é a idade ou dois filhos, os usuários dos serviços e pacientes de ma-
aqui a gente falava a idade e dois filhos, essa neira automática, especificamente priorizando
parte gravou bastante porque a gente estava o bom acolhimento, escuta e a construção do
passando informação errada para as pesso- conhecimento conjunto por meio de grupos e
as, estava bloqueando muitas pessoas. [...] consultas, que na prática resulta no aprimora-
querendo ou não a gente estava negligen- mento da abordagem dos adolescentes, maior
ciando sem saber que estava negligencian- facilidade na disseminação das informações
do” (Participante 3). para colegas e para o público, realização de en-
caminhamentos adequados, melhoria na quali-
Também facilita a orientação de como se-
dade de assistência ao planejamento reprodu-
guir a legislação e sobre que “personagem” (que
tivo da população, além da experimentação e
sujeito) aplicá-las para considerar as ações de
potencialidade de usar novas dinâmicas para
saúde:
passar informações.
“... porque aqui na unidade os funcionários Dos participantes, apenas 1 relatou ter con-
tinham receio de atender pessoas menores seguido replicar o caso em seu serviço de saúde
de idade, principalmente adolescente se era no intervalo até a entrevista.

|104
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

“Nós replicamos o estudo de caso, eu trouxe considerados tabus, a visualização do direito à


a folha e elas leram, foi coincidência porque saúde de cada pessoa individualmente é funda-
no dia estava tendo um bem parecido aqui” mental, juntamente com o conhecimento das di-
(Participante 4). retrizes e normas de saúde, para ações diretas
Os demais nove afirmaram que iriam fazê- sobre a realidade e articuladas a outros serviços,
-lo e um dos entrevistados também salientou ao invés de apropriações “confusas” da realidade
que a técnica deveria ser aplicada com todos os que paralisa a atuação sobre as situações.
profissionais das unidades de saúde, devido ao Essas dificuldades e “confusões” de iden-
insucesso na resolução da atenção das adoles- tificação do alvo da ação de saúde devem ser
centes no município. levadas em consideração nas estratégias dos
poderes públicos, pois nos revelam a necessi-
dade de aprimoramento das políticas públicas
Discussão e considerações também na área de formação, educação e atu-
A utilização de técnicas educativas, como a alização de seus profissionais, visando o bom
discussão de casos, parece atrair bastante inte- e efetivo funcionamento dos serviços. Segun-
resse dos profissionais de saúde, que no correr do Bazon3, a falta de preparo profissional e o
do dia-a-dia sentem falta de interlocução sobre grande número de atendimentos realizados no
problemas e discussão das práticas cotidianas a sistema público de saúde dificultam a relação
partir de suas experiências. Conectar atividades médico-paciente/familiares, impedindo muitas
educativas com a prática profissional se mostra, vezes a melhor compreensão dos processos e
assim, favorável à resolução de casos e a utiliza- fatores associados aos problemas de saúde, o
ção de “depuração de caso” facilita a apresenta- que contribui para a negligência do cuidado, on-
ção e aplicabilidade de normatizações e legisla- de usuários são vistos como objetos de inter-
ções em vigor, respaldando a atuação profissio- venção e não como sujeitos de direitos27. Nesse
nal embasada nos direito à saúde dos indivíduos sentido, individualizar o foco ajuda a identificar
e menos em sua moralidade pessoal ou informa- as necessidades de cada indivíduo e se resgata
ções subtraídas do senso comum. a ideia de saúde enquanto bem social e indivi-
Dessa forma, concorda-se Costa e cole- dual inalienável27.
gas , que afirmam que o uso de estudo de caso
18 Um elemento potencializador da técnica de
é uma estratégia apropriada para detalhamento e “depuração de casos” é a discussão dos casos
exemplificações de problemas a intervir. com diferentes cargos e formações profissionais,
A experiência de uso da técnica se revelou relação multidisciplinar que favorece o olhar inte-
eficaz para a identificação de lacunas e dificulda- gral do cuidado e a interlocução da questão por
des que os profissionais encontram em sua atua- diferentes pontos de vista. Anjos Filho e Souza2
ção, com contextos familiares ou coletivos em que mencionam que o trabalho multiprofissional vai
há muitos envolvidos e há tendência à mistura de além da existência de uma multidisciplinarida-
suas ações com a moralidade e o comportamento de constituindo-se, em alguns momentos, como
da comunidade, que dificultam a identificação dos uma pluridisciplinaridade, ou seja, uma outra di-
reais problemas da população e também o seu po- mensão em que há a confluência de olhares tro-
sicionamento e atuação profissional. Frente à inse- cados pelos integrantes da equipe para formar
gurança na abordagem de determinados assuntos um todo, um fluxo único.

|105
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Embora haja, conforme Anjos Filho e Sou- 7. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de DST e
za , trabalhadores que atuam em desacordo com
2 Aids. Política Nacional de DST/aids: princípios e diretrizes.
1ª ed. Brasília;1999.
a maioria, além de certos integrantes do quadro
8. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saú-
profissional que apresentam dificuldades para
de. Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Marco legal:
troca de saberes e experiências, a unificação de
saúde, um direito de adolescentes. Brasília: Editora do Mi-
discussões em pequenos grupos permite que se- nistério da Saúde; 2007.
ja desenvolvido e garantido um trabalho mais inte- 9. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saú-
grado, que evite distorções e condutas totalmen- de. Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Saúde inte-
te diversas entre si, anacrônicas e/ou errôneas. gral de adolescentes e jovens - orientações para a organi-
O fortalecimento das ações de Atenção zação de aerviços de aaúde. Brasília: Editora do Ministério

Básica, assim deve imprimir não apenas a Edu- da Saúde; 2007.


10. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
cação Permanente e a disseminação dos novos
Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégi-
conteúdos aprendidos, mas a organização dos
cas. Direitos sexuais, direitos reprodutivos e métodos anti-
serviços com espaços e tempos de agrupamento concepcionais. Brasília: Ministério da Saúde; 2006.
das equipes, tornando-os ambientes coletivos de 11. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. De-
interação favorável ao aprimoramento pessoal e partamento de Apoio à Descentralização. O SUS no seu
profissional de todos os envolvidos, em oposição município: garantindo saúde para todos. 2. ed. – Brasília;
ao modelo que reduz os profissionais a meros 2009. 46p. Série B. Textos Básicos de Saúde.

executantes de tarefas. 12. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em


Saúde. Programa Nacional de DST/Aids. Nota técnica nº13
- recomendações para a ampliação do acesso aos preserva-
tivos masculinos na rede de serviços de saúde do Sistema
Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2009.
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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Formação profissional em Saúde: do conhecimento


instrumental ao trabalho como princípio educativo
Professional formation in Healthcare: from the instrumental knowledge to the work as an educational
principle

Rosilda MendesI e Daniele Pompei SacardoII

Resumo Abstract

A mudança na graduação das profissões da saúde constitui um te- The change in graduation of health professions constitutes a fun-
ma fundamental para a consolidação do Sistema Único de Saúde damental theme for the consolidation of the Brazilian National He-
(SUS). Este artigo tem o intuito de analisar duas experiências de alth System (SUS). This article aims to analyze two experiences
formação em saúde desenvolvidas em universidades públicas que in health formation developed in public universities that reveal
revelam o desafio de orientar processos inovadores de formação the challenge of guiding innovate processes for the formation of
de profissionais, pautados em ações relacionais centradas no de- professionals, based on relational actions centered on the deve-
senvolvimento de competências para acolher e constituir vínculos lopment of competencies to receive and constitute links with the
com o usuário. Ao considerar a importância dos cenários de prática user. In considering the importance of practice sceneries of SUS
do SUS, postulamos que por meio deles podem ser estabelecidas we postulate that by means of them practices can be established
práticas que interrogam a hegemonia do discurso positivista, do do- that question the hegemony of the positivist discourse, of the tech-
mínio de técnicas e a transmissão de conhecimento instrumental, nique mastering and the transmission of instrumental knowledge,
dando oportunidade de gerar mediações e “práticas radicais” que and they can be an opportunity to generate mediations and “radical
convocam o estudante a conhecer e ser um agente de transforma- practices”, which call the student to know and to be an agent of
ção. Os dois casos mostram que esses cenários podem ser consi- transformation. The two cases serve to show that those sceneries
derados espaços de diálogo, onde trabalhadores do SUS, usuários can be considered spaces for dialogue, where the SUS workers,
do sistema de saúde,  docentes  e  estudantes  vão estabelecendo healthcare system users, teachers and students establish their so-
seus papéis sociais na confluência de seus saberes, seus modos cial roles at the confluence of their knowledges and ways of being
de ser e de estar no mundo. O desafio que se coloca é que ambos and living in the world. The challenge that is posed is that both
os casos precisam ser coerentes em seus pressupostos e, ao mes- must be coherent in their assumptions and, at the same time, su-
mo tempo, suficientemente abertos ao reconhecimento e enfrenta- fficiently open to the recognition and the coping with their own fla-
mento de suas próprias falhas, equívocos e crises. ws, mistakes and crises.

Palavras-Chave: Educação; Educação superior; Educação em Keywords: Education; Higher education; Health education.
saúde.

I
Rosilda Mendes (rosilda.mendes3@gmail.com) é bióloga pela Universidade
Estadual de São Paulo (UNESP-Rio Claro), Mestre em História e Filosofia da
Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Dou-
tora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de
São Paulo (FSP/USP) e Professora Associada do Departamento de Políticas
Públicas e Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-
-Baixada Santista).
II
Daniele Pompei Sacardo (danielesacardo@gmail.com) é psicóloga pela Uni-
versidade Estadual Paulista (UNESP-Assis), Mestre e Doutora em Saúde Pública
pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e
Professora Doutora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciên-
cias Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/UNICAMP). 

|108
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução constituída por orientações da Escola Nova, por


A mudança na graduação das profissões elementos da pedagogia de Paulo Freire e, de ma-
da Saúde constitui um tema fundamental para a neira implícita, pelos pressupostos e métodos da
consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) já pedagogia das competências.
inscrita no relatório da VIII Conferência Nacional Entre os atores relevantes desse processo,
de Saúde, embora tenha sido um aspecto pouco destacam-se as instituições de ensino, isolada-
desenvolvido pela Reforma Sanitária1. Entretanto, mente ou articuladas com outras entidades e mo-
esse relatório não menciona nenhum fundamento vimentos profissionais, bem como o movimento
pedagógico necessário à formação técnica, ética estudantil, os quais reclamavam a necessidade
e política dos profissionais que atuam no SUS. De de mudar os parâmetros curriculares de modo
acordo com Pereira e Lajes15, tal “esvaziamento que essa preocupação não ficasse restrita a al-
teórico” vem sendo preenchido, desde o início da guns professores ou departamentos de algumas
década de 1990, por iniciativas como o Programa escolas, mas que se tornasse uma questão re-
de Profissionalização dos Trabalhadores da Área levante para todo um segmento profissional, in-
de Enfermagem (PROFAE), pelas instituições for- cluindo os trabalhadores e gestores das institui-
madoras de profissionais da Saúde, em especial ções assistenciais do SUS. Essa questão ganha
as Escolas Técnicas de Saúde do SUS (ETSUS), relevância na medida em que não parece possí-
bem como pelo Ministério da Saúde, com base vel produzir a reorganização das práticas de saú-
na Política Nacional de Educação Permanente de sem interferir, simultaneamente, no mundo da
em Saúde (PNEPS)3. Tais iniciativas pautaram formação e no mundo do trabalho9. A partir das
suas atividades em uma síntese epistemológica experiências de articulação das instituições de

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

ensino com o SUS e os movimentos populares, Tais fundamentos mantêm aproximações


houve algumas articulações multiprofissionais com os termos “metodologia ativa”, “aprendiza-
que se fortaleceram com o movimento pela defi- gem significativa”, “aprendizagem baseada em
nição de Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) problemas” e seus correspondentes, que cons-
alinhadas com as necessidades do SUS. tam nas DCN, mas também nos discursos dos di-
As DCN constituem um padrão geral de versos atores institucionais que têm como objeto
orientação para a elaboração dos currículos e dos a formação profissional em saúde.
projetos políticos-pedagógicos que devem ser ado- Cabe destacar que o trabalho em saúde
tados por todas as instituições de ensino supe- possui características particulares pelo fato de
rior (IES). A primeira resolução com diretrizes para sua produção se dar por meio do encontro entre
a área da saúde – resolução nº 1.133 de 20011 duas ou mais pessoas, por mais institucionaliza-
– dispõe sobre as DCN dos cursos de Medicina, das que estejam as práticas de saúde. É nesse
Enfermagem e Nutrição, nas quais constam ele- espaço de “trabalho vivo” e atravessado por “tec-
mentos sobre o perfil, competências e habilidades nologias duras, leve-duras e leves”12, que é pos-
do egresso desses cursos, os conteúdos curricu- sível um certo grau de invenção e que os traba-
lares, os estágios e atividades complementares, a lhadores colocam em operação suas concepções
organização do curso e o seu acompanhamento e sobre saúde, doença, cura, cuidado etc. Ainda
avaliação. As DCN têm como objetivos estruturar que as diferentes modalidades de organização do
novos modelos de formação que estimulem: trabalho em saúde restrinjam mais ou menos a
“...o abandono das concepções antigas e her- criatividade e a autonomia de ação, há certo grau
méticas das grades (prisões) curriculares, de de liberdade dos trabalhadores em atuar que não
atuarem, muitas vezes, como meros instru- é totalmente suprimido pelas instituições. É pe-
mentos de transmissão de conhecimento e la necessidade de aproximar a formação profis-
informações”1 (p.2). sional do mundo do trabalho e de oferecer aos
futuros profissionais novas tecnologias e novos
Nesse contexto, os conhecimentos são con-
compromissos ético-políticos para o trabalho em
siderados como “ferramentas” passíveis de utili-
saúde, que o processo de formação é também
zação, visto que a ordem é de criação de compe-
objeto indispensável de abordagem pelas políti-
tências para os complexos problemas cotidianos.
cas de saúde9. Nesse sentido, é possível consi-
De acordo com essa perspectiva, a educação pres-
derar as DCN de 2001 e os demais documentos
supõe a ênfase na experimentação e na empiria,
subsequentes uma expressão concreta de insti-
numa evidente crítica à compartimentalização e à
tucionalização de uma política pública no âmbito
estratificação do conhecimento em disciplinas iso-
da formação profissional produzida com o objeti-
ladas, e a centralidade do processo educativo en-
vo de proporcionar a transformação das práticas.
contra-se nos métodos de ensino-aprendizagem e
no protagonismo dos estudantes. Como diz Morin13:
“..ao invés de acumular o saber é mais impor- Educação no mundo do trabalho
tante dispor ao mesmo tempo de uma apti- Pretendemos aqui discutir duas experiên-
dão geral para colocar e tratar os problemas; cias de formação que tomam os cenários de
princípios organizadores que permitam ligar prática como potentes espaços de diálogo e de
os saberes e lhes dar sentido” (p.21). construção de cidadania, aonde  trabalhadores

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

do SUS, usuários do sistema de saúde,  docen- essência concreta e é, por natureza, contraditó-
tes e estudantes vão estabelecendo seus papéis ria, pois implica simultaneamente em conserva-
sociais na confluência de seus saberes, modos ção e criação.
de ser e de estar no mundo. Nossas reflexões Outro aspecto fundamental reforça sua fun-
iniciais iniciam a partir de duas indagações: como ção social, à qual Charlot6 faz referência ao incor-
tornar a educação superior significativa, crítica e porar a significação política da educação. Contu-
emancipadora? Os cenários de prática do SUS do, “o verdadeiro problema é saber em que ela é
educam? Coloca-se, nesse sentido, um duplo de- política” (p.10), diz o autor. A educação é política
safio que consiste em tomar a educação em sua porque transmite modelos que prevalecem em
ampla dimensão, como práxis reflexiva e dotada uma sociedade: modelos de vida, de trabalho, de
de sentido, por um lado, e, por outro, eleger o relacionamento, de condutas. Por serem mode-
mundo do trabalho como ponto de partida para a los de grupos sociais influentes; têm significação
proposta pedagógica. política, uma vez que a política exprime relações
A aposta é de que por meio dos “cenários” de força, até entre ideais opostos. As ideias polí-
de prática possam ser estabelecidas práticas ticas sobre a sociedade, a justiça, a liberdade, a
educativas em saúde que interrogam a hegemo- igualdade, por exemplo, impregnam os modelos.
nia do discurso positivista, do domínio de técni- Nesse sentido, e educação é social e deve ser
cas e de transmissão de conhecimento instru- uma reflexão permanente sobre os modelos so-
mental, possibilitando uma oportunidade de gerar ciais e sobre a organização social, e toda teoria
mediações e “práticas radicais”,  que convocam da educação deve, necessariamente, ordenar-se
o estudante e o professor a conhecerem e a se a um projeto de sociedade.
conhecerem, a serem agentes de transformação Tal projeto perpassa por uma concepção
da realidade. Desta forma, à dimensão verdadei- ampla de educação, como proposto em “Educa-
ramente formativa do processo educativo que se ção Um Tesouro a Descobrir - Relatório para a
pretende aqui dar destaque. UNESCO da Comissão Internacional sobre Educa-
Para iniciar, vamos nos deter, ainda que de ção para o Século XXI” 14, conhecido como Rela-
forma sintética, sobre algumas concepções acer- tório Jacques Delors, que aponta para o fato de
ca da educação. O caráter histórico-antropológico que a educação no presente século deve se orga-
da educação elucidado por Vieira Pinto18 permiti- nizar em torno de quatro aprendizagens, a saber:
rá identificar alguns princípios capazes de expan- aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender
dir o caráter instrumental das práticas educativas a ser, aprender a viver junto. A ideia de conheci-
e particularmente daquelas vinculadas à área de mento ganha novos contornos, integrando conco-
saúde. Para o autor a educação é um processo, mitantemente o fazer, o ser e o conviver. São os
um decorrer de formação do homem no tempo; valores que ensinam o indivíduo a comportar-se
a educação é um fato existencial, constitutiva como ser no mundo, a estabelecer uma hierar-
do ser humano; a educação é um fato social quia entre as coisas, a chegar à convicção de que
já que se refere à sociedade como um todo; a algo importa ou não importa, vale ou não vale; a
educação é um fenômeno cultural; a educação discernir entre um valor e um contra-valor8.
é uma atividade teleológica, ou seja, a formação Identificar esses princípios orientadores
do indivíduo sempre “visa um fim”; a educação é da prática educativa pode dar à positividade
um fato de ordem consciente; a educação é por da formação na área da saúde e possibilitar a

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

constituição de um agir profissional que conside- se encontra separado. Não basta, no entanto,
re as dimensões técnicas, éticas e políticas en- simplesmente de eleger o mundo do trabalho
volvidas no agir em saúde. como ponto de partida, mas de superar o cará-
Trabalhar com a concepção ampla de edu- ter estreito da profissionalização para pensar na
cação de modo a incorporar as formas educati- possibilidade que tome o trabalho como princípio
vas que ocorrem no interior das relações sociais, educativo, no sentido de aliar uma formação de
inclusive no mundo do trabalho, com o objetivo natureza geral e abrangente.
de desenvolver práticas que dialoguem com os
saberes, os desejos e com a singularidade de
quem demanda o cuidado em saúde, contrapõe- Experiências que valorizam os cenários de
-se à visão unidimensional da formação profissio- práticas
nal vinculada às necessidades imediatas para o A perspectiva interdisciplinar na formação
mercado de trabalho. Em outras palavras, ao se da UNIFESP-Baixada Santista
enfatizar o mundo do trabalho como relação so- A experiência de formação interdisciplinar
cial fundamental, que não se reduz à ocupação, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP),
à tarefa, mas não os exclui, aponta-se que nele Campus Baixada Santista será aqui apresentada
se situa um importante lócus da unidade teoria/ a partir de um de seus eixos comuns – o eixo
prática, ética, técnica e política. “Trabalho em Saúde” (Eixo TS), de caráter trans-
Nesse particular, o legado teórico de Gra- versal, comum a todos os cursos de graduação
msci parece-nos apropriado por trazer uma im-
11 do campus, e que tem como diretriz geral possi-
portante referência sobre a prática pedagógica bilitar uma visão abrangente do processo saúde/
inserida no mundo do trabalho. O autor dará ao doença/cuidado, do trabalho em saúde e do sis-
princípio do trabalho, como elemento educativo, tema de saúde vigente, de maneira a contribuir
à inseparabilidade entre instrução e trabalho. O na formação de profissionais capacitados para
trabalho como princípio educativo remete, pois, ofertar uma atenção integral e desempenhar um
ao caráter formativo do trabalho e da educação papel ativo nas questões de saúde existentes em
como ação humanizadora como aponta Ciavatta7: nossa sociedade.
A proposta de formação do Eixo TS insere-
“Para isso, seria necessário tanto o conheci-
-se no contexto dos movimentos de mudanças
mento das leis da natureza, como das huma-
na formação dos profissionais de saúde, como já
nidades e da ordem legal que regula a vida
apontado anteriormente. As atividades de ensino
em sociedade” (p.408).
deste eixo abrangem os três primeiros anos dos
O que poderia estar suposto nesta orienta- cursos de graduação de Fisioterapia, Educação
ção é que os serviços de saúde passam a ter Física, Nutrição, Psicologia e Terapia Ocupacio-
um peso pedagógico de destaque, de tal forma nal, e os dois primeiros anos do curso de Serviço
que a formação de um profissional “consciente”, Social (vespertino e noturno), perfazendo cerca
capaz de responder critica e eticamente aos de- de 800 estudantes em cada semestre.
safios de consolidar os princípios do SUS, vem da Consistem em atividades de campo, vivên-
formação e também do mundo do trabalho. Nes- cias práticas, pesquisas orientadas, supervisões,
se sentido, serviços de saúde e escola deveriam discussões em grupos, aulas teóricas, que envol-
criar mecanismos de unir o que historicamente vem, portanto, técnicos e docentes da área de

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Saúde Coletiva e dos diversos cursos de gradu- a fim de conhecer a rede de saúde municipal e
ação, totalizando cerca de 40 docentes em cada discutir o sistema de saúde vigente em nosso pa-
semestre eletivo. Também envolve equipes de di- ís, também analisar a evolução da racionalidade
versos serviços públicos Santos (de secretarias de clínico-epidemiológica, seus pressupostos inves-
Saúde, Educação, Assistência Social) e de outros tigativos e suas implicações para as políticas de
municípios da Baixada Santista, requerendo uma saúde e para a prática do profissional de saúde;
complexa logística para viabilizar atividades de . no 3º semestre, no módulo “Encontros e a
campo dos diferentes módulos. As estratégias de Produção de Narrativas”, duplas de alunos acom-
ensino-aprendizagem deste eixo valorizam a parti- panham, por meio de visitas domiciliares quinze-
cipação e o envolvimento dos alunos na constru- nais, famílias residentes no município de Santos
ção do conhecimento e pode-se afirmar que a inte- e em outros municípios da Baixada; acompanha-
ração e exposição a situações vivenciadas no coti- mento que tem como diretriz permitir aos alunos
diano das práticas de atenção à saúde são pontos o desenvolvimento da escuta, do vínculo, de uma
de partida para a aprendizagem significativa. prática clínica comum aos diversos profissionais
Em decorrência, os módulos semestrais es- que possibilite a identificação de necessidades de
tão organizados de forma a promover a inserção saúde das famílias, bem como a construção de
dos alunos em “cenários” de práticas, desde o propostas de intervenções adequadas à realidade
primeiro ano da graduação, em atividades que de vida e dos serviços de saúde. O produto deste
possibilitam o contato, nos territórios dos municí- semestre é a construção de narrativas de vida;
pios da Baixada Santista, com diferentes grupos . no 4º semestre, no módulo “Trabalho em
populacionais em seus locais de moradia. Procu- Equipe e Práticas Coletivas”, equipes compostas
ra-se, desta forma, fomentar a aproximação dos por alunos dos 6 cursos de graduação realizam
estudantes com os problemas de saúde da po- atividades de prevenção de doenças e promoção
pulação e também com os serviços do sistema da saúde em diferentes grupos populacionais
de saúde pública. Há um permanente esforço em com envolvimento de equipes de diferentes ser-
articular os referenciais teóricos às práticas, bem viços públicos municipais (unidades de saúde,
como sustentar e aprimorar o diálogo com os de- escolas, centros comunitários), associações de
mais eixos constitutivos do currículo. bairros, organizações não governamentais (ONG)
Nesta trajetória de formação, são utilizadas entre outros. Cada grupo de estudantes realiza
diferentes ferramentas e estratégias metodoló- cerca de seis atividades de campo;
gicas que percorrem os três primeiros anos da . no terceiro ano (5º e 6º semestres), os es-
formação: tudantes realizam intervenções específicas e em
. no 1º semestre, se iniciam, com o módulo comum na produção do cuidado, no módulo “Clí-
“Condições de Vida e a Produção Social de Saúde”, nica Integrada: produção de cuidado”. São orga-
no qual são realizadas visitas a diferentes territó- nizadas equipes multidisciplinares das diferentes
rios da cidade de Santos para conhecer as diversas graduações, que têm como responsabilidade a
condições de vida da população e suas implicações atuação em atendimento domiciliar, o acompa-
para o processo saúde-doença e cuidado. nhamento de pacientes atendidos em serviços
. no 2º semestre, os estudantes cursam o da Atenção Básica, de serviços de especialida-
módulo “Desigualdades Sociais e Políticas de des ou internados em enfermarias hospitalares.
Saúde no Brasil” e realizam visitas aos serviços, A orientação e supervisão das atividades são

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

realizadas por uma equipe composta por profes- Saúde Ambiental, Saúde Comunitária/da Família e
sores de diferentes áreas profissionais, totalizan- Ética, algumas delas de maneira longitudinal e dis-
do cerca de 20 docentes10,18. tribuídas ao longo dos 6 anos do curso. Ao analisar
A avaliação recente da experiência destacou a proposta curricular, observa-se uma subdivisão
três aspectos relevantes que merecem ser apon- do processo formativo entre disciplinas dos eixos
tados: (1) o fato de haver um eixo comum a todos “Básico”, “Pré-clínico” e “Clínico” (ou internato), de
as profissões que percorre toda a formação, en- modo que a maior concentração dos conteúdos de
volvendo docentes de todas as áreas, e que co- Saúde Coletiva se localiza nos três anos iniciais.
loca em destaque o tema do trabalho em Saúde; É importante considerar que, em decorrên-
(2) o encontro entre as profissões ao longo do cia da promulgação em 2014 das novas Diretrizes
processo de formação, com foco na produção do Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em
cuidado, que permite que se explore as possibi- Medicina2, houve uma reformulação da carga-ho-
lidades de interação entre as profissões; e (3) o rária destinada ao período “clínico”, exigindo maior
investimento no encontro entre estudantes – fu- dedicação em atividades práticas na Atenção Bá-
turos profissionais de saúde – e os usuários em sica. Para se adequar a essa normativa, recente-
seus contextos é potente e mobiliza a todos para mente a instituição deliberou por considerar os
a construção de relações mais horizontalizadas10. estágios realizados nos centros de saúde duran-
te o quarto ano de formação, como “internato”, o
O ensino da Saúde Coletiva no curso de que significa uma ampliação do período “clínico” e
Medicina na UNICAMP: o desafio de romper maior tempo dedicado às intervenções supervisio-
com o modelo flexneriano hegemônico nadas nos serviços de Atenção Básica municipal.
Diferentemente da UNIFESP - Baixada San- No que tange aos aspectos teóricos e meto-
tista, a experiência da Universidade de Campinas dológicos, o projeto pedagógico da formação de
(UNICAMP) concentra-se no curso de Medicina, Saúde Coletiva busca aproximar os alunos de Me-
tendo em vista que apenas no primeiro ano do dicina do sistema de saúde pública desde o pri-
curso há uma interação genuinamente interdis- meiro ano, possibilitando uma visão crítica, tanto
ciplinar com o curso da Fonoaudiologia, embora dos papéis desempenhados pelas instituições e
nesta mesma universidade e campus haja outros profissionais da área, quanto da política da saú-
cursos da área da saúde, como Enfermagem, de do Brasil, por meio da experiência de estágios
Educação Física e Farmácia, além de Nutrição e nos serviços de saúde, especialmente na Aten-
Ciências do Esporte, realizados no campus de Li- ção Básica. Com abordagem problematizadora e
meira e que, devido à distância geográfica, difi- voltada para a prática profissional, os conteúdos
culta uma abordagem conjunta entre os cursos das disciplinas apresentam e discutem temáticas
desses dois campus. centrais desse campo interdisciplinar, visando à
O projeto político-pedagógico do Departa- integralidade e à humanização do cuidado. Den-
mento de Saúde Coletiva para a graduação em tre os temas trabalhados, destacam-se: os deter-
Medicina conta com cerca de 40 docentes e pro- minantes do processo de saúde-doença-atenção
fissionais de apoio ao ensino e pesquisa, designa- com ênfase no território, as necessidades de
dos para ministrar as disciplinas e conteúdos das saúde individuais e coletivas, estratégias de edu-
áreas de Política, Planejamento e Gestão, Epide- cação em saúde e trabalho em equipe, gestão da
miologia, Ciências Sociais, Saúde do Trabalhador, clínica, a abordagem familiar, o apoio matricial, a

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

clínica ampliada e a visita domiciliar com vistas à De acordo com Scherer e colegas17, houve
integralidade do cuidado em saúde, diversidade um movimento de ruptura deste paradigma com a
cultural e promoção da saúde, trabalho interse- institucionalização e implantação do SUS:
torial e gestão do cuidado em rede, o estabeleci-
“...uma vez que o modelo clínico/flexneriano
mento e pactuação de critérios de acesso e equi-
não respondia aos problemas da organização
dade nos diferentes níveis do sistema sanitário,
das ações e serviços de saúde de maneira a
os aspectos éticos da atenção à saúde, incluindo
atender às necessidades de saúde da popu-
a interrelação do aluno com seus pares, com os
lação” (p.57).
usuários, seus preceptores e as instituições on-
de atua, além de questões relacionadas à saúde Com a criação do SUS, aprofundou-se a cri-
do trabalhador e à saúde ambiental. se causada pela disputa entre dois modelos ou
Em relação aos conteúdos da Epidemiologia, paradigmas, visto que a nova proposta buscava
são abordados os processos de transição demo- produzir novos modos de conceber os problemas
gráfica e epidemiológica, noções de demografia, não solucionados pelo paradigma dominante e re-
as fontes de informações para medidas das con- orientava as pesquisas sobre esses problemas,
dições de saúde, os indicadores epidemiológicos apontando os limites e as insuficiências explicati-
(mortalidade geral e proporcional, mortalidade vas para os fenômenos sociais.
infantil), as medidas das doenças (incidência, No caso da formação em saúde, é possível
prevalência, letalidade), o controle das doenças, verificar também movimentos de mudança curri-
epidemias e endemias e as enfermidades de no- cular que atenda às necessidades do novo para-
tificação compulsória, instrumentalizando o aluno digma demandado pelo SUS, embora haja muita
a desenvolver habilidades e competências para resistência por parte dos atores sociais direta-
atuar como profissional de saúde no âmbito do mente envolvidos, tanto nas instituições universi-
Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica. tárias, quanto nos serviços de saúde. Assim, as
Cabe destacar que a formação médica, par- políticas indutoras dos processos de mudança
ticularmente, mas também outras profissões da na formação das profissões de saúde, as quais
área da saúde persistem sofrendo forte influência procuram reorientar o modelo de atenção e de
do modelo flexneriano, que se baseia num para- gestão do SUS e, também, o sistema de ensino
digma fundamentalmente biológico e quase me- superior, vêm sofrendo mútua influência e se re-
canicista para a interpretação dos fenômenos vi- troalimentando enquanto possibilidades de rom-
tais e cuja centralidade é a doença e não a saúde, per com o modelo hegemônico.
além da crença na presunção da tecnologia como Se considerarmos a ruptura como uma
centro da atividade científica e da assistência à das possibilidades de solução da crise, a par-
saúde. Esta formulação constitui, ainda hoje, o tir da emergência do novo paradigma implícito
modo hegemônico de organizar a ‘grade’ curricular no SUS, presentemente, um dos maiores desa-
orientadora do processo formativo em Medicina e, fios colocados para a Saúde Coletiva na UNI-
ao mesmo tempo, vem influenciando o modelo de CAMP – instituição que influenciou o movimen-
atenção à saúde brasileiro, que tem sido histori- to da Reforma Sanitária que culminou com a
camente marcado pela predominância da assis- criação dessa política –, seria o de “re-formar”
tência médica-curativa e individual e pelo entendi- e apresentar um novo projeto ético-político-pe-
mento de saúde como ausência de doença. dagógico de formação profissional que atenda

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

integralmente às DCN, assumindo seu papel de Reflexões finais


liderança no cenário institucional “para dentro” As definições de DCN e iniciativas políticas
da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), bem institucionais convidam à instalação de inovações
como para outros cursos de medicina. A esse no campo da formação em saúde, que quanto
respeito, cabe ressaltar que a profundidade da mais coletivo, inclusivo e participativo, maiores
crise paradigmática e o campo de disputas se as possibilidades da educação produzir efeitos.
expressam na tensão entre os posicionamentos Essas possibilidades dependem, na maioria das
radicalmente antagônicos que convivem no coti- vezes, do empreendimento de processos coleti-
diano da instituição FCM, não apenas no âmbito vos de invenção, exposição a diversos modos de
discursivo, mas nas atividades práticas desen- viver, da reflexão crítica sobre as práticas, em di-
volvidas nas preceptorias e estágios realizados ferentes territórios, de diferentes modos, a partir
ao longo do processo formativo. Tais questões de diferentes referenciais4. Os dois casos apre-
encontram-se no plano dos valores e princí- sentados pretenderam apontar, cada um a seu
pios norteadores das atitudes, orientações, modo, que é preciso “mantê-los permanentemen-
regras, normativas, habilidades e competên- te em transformação”5.
cias a serem ensinadas/aprendidas, em todos Todavia, se considerarmos a situação da
os cenários de práticas. Dessa forma, caberia educação não universalizada e a própria situação
interrogar (nos): qual formação profissional de- atual dos serviços de saúde, a questão deixa de
sejamos? Seria a voltada para o setor público, parecer tão simples e acaba por gerar um quadro
privado e, ou ambos? Qual modelo de atenção que parece não ter solução. Reconhece-se hoje,
à saúde? O centrado nos procedimentos e, ou com maior clareza, que a relação entre educação
nos usuários/pacientes? Conteúdos, metodolo- e o mundo do trabalho é complexa, contraditó-
gias e avaliações subdivididas entre currículo ria, tanto decorrente das contradições do traba-
básico (teórico) e clínico (prático)? E tantas ou- lho e seu respectivo mercado, como também em
tras questões a serem (re)examinadas. consequência das funções sociais que o sistema
Finalmente, no âmbito da formação profis- educacional cumpre.
sional, vislumbra-se uma possibilidade de rup- Há de se apontar ainda as ameaças con-
tura (ou não) do modelo hegemônico, a depen- cretas e simbólicas para que esse processo de
der do caminho a ser trilhado na consecução mudanças na formação profissional, interdiscipli-
da dimensão operacional, em especial das no- nar e com maior integração ensino-serviço seja
vas DCN, já em andamento desde 2014: ou se consolidada definitivamente como um paradigma
consolida como estratégia de reorientação do emergente, a começar pelo crônico subfinancia-
projeto político-pedagógico da instituição, com mento público do SUS. São tantos os aspectos
ampla revisão sobre o que deveria estar no pre- em que a política sanitária nacional se encontra
sente no currículo e a forma como os assuntos em risco atualmente, causando profunda perple-
deveriam ser ensinados aos alunos “nativos di- xidade, que é possível considerar as concepções,
gitais” (ou da “geração Z”), ou se consolidará reflexões e proposições descritas nesse artigo
como um processo de mudança apenas retóri- como utopia irrealizável ou pura ilusão de docen-
ca e impotente diante da onipotência do “porto tes implicadas. Ou no máximo, considerar o re-
seguro” e amplamente conhecido, porém limi- lato de experiências como exemplos provisórios
tado, modelo flexneriano. e efêmeros, tendo em vista a crise profunda na

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

qual nos encontramos em nosso país, especial- de promover mudanças nas relações entre as uni-
mente nos âmbitos ético, político e econômico. versidades e os serviços de saúde e dar destaque
Como já apontado, em tempos de crise, a ruptura ao trabalho como princípio educativo.
é uma possibilidade do novo insurgir, daí recor-
rermos às proposições de Boaventura de Sousa
Santos16 ao indicar que:
“...em períodos de transição [paradigmática], Referências
difíceis de entender e de percorrer, é neces- 1. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de
sário voltar às coisas simples, à capacidade Educação. Câmara da Educação Superior. Parecer nº 1.133
de formular perguntas simples, perguntas de 7 de agosto de 2001. Diretrizes curriculares da Medici-
na, Enfermagem e Nutrição. Diár. Ofic. Um.; 3 out. 2001;
que, como Einstein costumava dizer, só uma
Seção 1E, p.131.
criança pode fazer mas que, depois de feitas,
2. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de
são capazes de trazer uma luz nova à nossa Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3.
perplexidade” (p.46). Brasília; 20 jun. 2014. Diretrizes Curriculares Nacionais do
Curso de Graduação em Medicina.
O sucesso, a legitimidade e o alcance da
3. 3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão
condição de hegemonia do novo paradigma inter-
do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de
disciplinar e voltado à integralidade do cuidado Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educa-
dependem da conquista de novos adeptos pro- ção Permanente em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde;
venientes da academia, dos serviços sanitários, 2009. 64p. Série B. Textos Básicos de Saúde e Série Pac-
da gestão e de outros setores e movimentos so- tos pela Saúde; v.9.
ciais; em suma, de toda a sociedade. Pode-se 4. Campos GWS. Contracapa. In: Matta GC, Lima JCF.
(Org.). Estado, sociedade e formação profissional em saú-
afirmar que a reformulação do processo de for-
de: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de
mação profissional em saúde implica mudanças
Janeiro: Editora Fiocruz; EPSJV; 2008.
abrangentes na maneira pela qual o conhecimen- 5. Casseto SJ, Capozzolo AA, Henz AO, Junqueira V. Como
to científico e a educação no mundo do trabalho fortalecer um projeto e mantê-lo em transformação. In: Ca-
se relacionam, e são usados para a formulação pozzolo AA, Casetto SJ, Hens AO. Clínica comum: itinerários
e organização, tanto dos modelos de atenção à de uma formação em saúde. São Paulo: HUCITEC; 2013.
saúde quanto das propostas político-pedagógi- p.268-273.
6. Charlot B. A mistificação pedagógica. Realidades so-
cas e curriculares dos cursos. O desafio que se
ciais e processos ideológicos na teoria da educação. 2ª ed.
coloca é que ambos precisam ser coerentes em
Rio de Janeiro: Zahar; 1983
seus pressupostos e fundamentos e, ao mesmo 7. Ciavatta M. O trabalho como princípio educativo. In: Pe-
tempo, suficientemente abertos ao reconheci- reira IB, Lima JCF. Dicionário da educação profissional em
mento e enfrentamento de suas próprias falhas, saúde. 2ª ed. Rio de Janeiro: EPSJV; 2009. p. 408-415.
equívocos e crises. 8. Delors J. (coord.). Educação: um tesouro a descobrir –
Ainda que identifiquemos esse contexto de Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre
Educação para o século XXI. 9ª ed. São Paulo: Cortez; Bra-
adversidades concebemos propostas de ensino
sília, MEC/ UNESCO; 2004.
como formas de (re)unir o ensino em serviço, e res-
9. Feuerwerker LCM. Além do discurso da mudança na
ponder às contradições da prática. Tal podem ser educação médica: processos e resultados. São Paulo: Edi-
os casos que apresentamos e que vêm sendo ela- tora Hucitec / Londrina: Rede Unida / Rio de Janeiro: Asso-
borados, não como receitas, mas como tentativas ciação Brasileira de Educação Médica; 2002.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

10. Feuerwerker LCM, Capozzolo AA. Mudanças na forma- [acesso em: 28 set 2017]. Disponível em: http://unesdoc.
ção dos profissionais de saúde: alguns referenciais de par- unesco.org/images/0010/001095/109590por.pdf
tida do eixo Trabalho em Saúde. In: Capozzolo AA, Casetto 15. Pereira IDF, Lages I.  Diretrizes curriculares para a for-
SJ, Hens AO. Clínica comum: itinerários de uma formação mação de profissionais de saúde: competências ou práxis?
em saúde. São Paulo: HUCITEC; 2013. p. 35-58. Trab. Educ. Saúde. 2013; 11(2):319-338. 
11. Gramsci A. Os intelectuais e a organização da cultura. 16. Santos BS. Um discurso sobre as ciências na transição
7ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; 1989. para uma ciência pós-moderna. Estud. Av. 1988; 2(2):46-71, 
12. Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica 17. Scherer MDA, Marino SRA, Ramos RS. Rupturas e
do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R. Agir resoluções no modelo de atenção à saúde: reflexões
em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, sobre a estratégia saúde da família com base nas ca-
1997, p. 71-112. tegorias kuhnianas. Interface Com. Educ. Saúde. 2005;
13. Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar 9(16):53-66.
o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2001.37p. 18. UNIFESP- Universidade Federal de São Paulo- Relatório
14. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ci- de Monitoria 2015/2016.
ência e a Cultura (UNESCO). Educação: um tesouro a desco- 19. Vieira Pinto A. Sete lições sobre educação de adultos.
brir. Relatório para a UNESCO da comissão Internacional so- São Paulo: Autores Associados/Cortez; 1992. Coleção Edu-
bre Educação para o Século XXI. destaques. Brasília; 2010. cação Contemporânea.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Educação Permanente para o controle social: uma


ferramenta para a gestão participativa e compartilhada
Permanent Education for social control: a tool for shared and participative management

Maria do Carmo Sales MonteiroI, Teresa Cristina Lara de MoraesII

Resumo Abstract

Esse artigo relata a experiência do Grupo de Trabalho para Educa- This article reports the experience of the Working Group for Per-
ção Permanente do Controle Social (GTEPCS) que permitiu iden- manent Education of Social Control (GTEPCS, in portuguese ini-
tificar desafios para atuação dos conselheiros, possibilitando a tials) which permitted the identification of challenges to the advi-
implementação da Política Municipal de Educação Permanente sors’ performance, allowing the implementation of the Municipal
(EP) para o Controle Social no Município de São Paulo, objetivando Policy of Permanent Education (EP), giving better autonomy to the
nortear e fortalecer a participação enquanto ferramenta de gestão regions. The methodology used allowed the construction of the cur-
do SUS. Esse trabalho possibilitou a construção de um Documen- riculum and the pedagogic strategy for each territory. The results
to Norteador e a aprovação da resolução que institui as etapas de achieved were possible due to the collective work of all segments
elaboração e execução dos Planos de EP, dando maior autonomia in a descentralized manner. The experienced process represents a
às regiões. A metodologia utilizada permitiu construir o Plano de quality development in enlarging the Advisors’ formation, seeking
EP baseado no Plano Municipal de Saúde, orientando a definição the construction a apropriation of the knowledge that is shared
do perfil de competências do Conselheiro Gestor para construção with all envolved actors, promoting the qualification and transfor-
do currículo e das estratégias pedagógicas elaboradas para cada mation of the advisors’ daily work process.
território. Os resultados alcançados foram possíveis devido ao tra-
balho conjunto com participação de todos os segmentos de forma Key-words: Permanent education, Social control, Planning.
descentralizada. O processo experienciado representa um salto
de qualidade quando se ampliam as ações de formação dos Con-
selheiros, buscando a construção e apropriação do conhecimento
que é compartilhado com todos atores envolvidos, promovendo
qualificação e transformação do processo de trabalho no cotidiano
da prática dos conselheiros.

Palavras chave: Educação permanente; Controle social,


Planejamento.

I
Maria do Carmo Sales Monteiro (carmoenf@gmail.com) é enfermeira, Espe-
cialista em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade
de São Paulo (FSP-USP), Especialista em Formação Pedagógica para Edu-
cação Profissional de Nível Técnico na Área da Saúde pela Escola Nacional
de Saúde Pública (ENSP), Docente da Escola Técnica do Sistema Único de
Saúde de São Paulo (ETSUS-SP) e Coordenadora da Educação Permanente
para o Controle Social da Escola Municipal de Saúde (SEM) da Secretaria de
Saúde do Município de São Paulo (SMS/PMSP).
II
Teresa Cristina Lara de Moraes (tcristinalara@uol.com.br) é psicóloga, Mes-
tre em Sociologia da Educação e Doutora em Psicologia da Educação pela
Universidade de São Paulo (USP), Coordenadora dos Projetos de Prevenção
do Serviço da Atenção Especializada em DST/Aids da Cidade Líder II da Secre-
taria Municipal de Saúde da Cidade de São Paulo (SMS/PMSP) e membro do
Núcleo de Sistemas e Serviços de Saúde, do Instituto de Saúde da Secretaria
de Saúde do Estado de São Paulo (IS/SES-SP).

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução - de qual educação falamos? Entendemos que a Educação Permanente


Partimos da premissa que educação é um em Saúde (EPS) é a lanterna que ilumina a práti-
fenômeno que acompanha a existência dos indi- ca, pois traz como premissa uma noção que nos
víduos ao longo de toda vida, um processo amplo é muito cara, do ser humano como alguém incom-
de desenvolvimento, socialização e subjetivação pleto e sempre em busca de novos aprendizados
do ser humano. Com este olhar buscamos uma e horizontes. Nesse sentido, rompe com a visão
proposta pedagógica que se balize na perspectiva predominante e que limita a educação aos ban-
histórico-crítica de educação e que tenha o traba-
cos escolares.
lho como princípio educativo, onde os trabalhado-
Vale lembrar que na década de 1970, Orga-
res possam problematizar sua prática com base
nização das Nações Unidas para Educação, Ci-
nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS),
ência e Cultura (UNESCO) apresentou a Educa-
apontando para uma aprendizagem significativa e
ção Permanente como diretriz essencial a partir
crítica da realidade social em que está inserido7.
da qual os sistemas de ensino deveriam ser re-
Para Saviani11, a teoria histórico-crítica, na
qual se baseia a Educação Permanente, nos traz pensados, adotando como princípio uma educa-
a possibilidade de uma aprendizagem que parte ção ao longo da vida, com o foco no “aprender
da realidade e do conhecimento dos educandos a aprender”19 (p.36). Nesse sentido, a Educação
e que, ao problematizar a prática cotidiana, reú- Permanente, segundo o relatório Aprender a Ser,
ne elementos para a sua promoção e inclusão publicado pela Unesco em 1972, foi concebida
social, produzindo coletivamente novos conheci- “como um conjunto contínuo existencial cuja du-
mentos e transformando a sociedade. ração se confunde com a vida mesma”8 (p.13).

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

No Brasil, na década de 1960, a Educação de saúde como espaços vitais para o exercício
Permanente começou a ser debatida, sobretudo, do controle social no SUS4.
a partir da obra do educador Dumerval Triguei- Garantimos os espaços e canais de partici-
ro18, que a definia como um caminho a ser ex- pação, porém, para efetivá-los na prática, temos
plorado para além dos muros escolares, ou se- que nos instrumentalizar de forma organizada pa-
ja, reunindo condições para potencializar tanto a ra que possamos intervir. Assim, para formular,
contribuição da escola na vida das pessoas, co- fiscalizar e deliberar sobre as políticas de saúde
mo na sociedade. é necessário conhecer nossos direitos e as ne-
Ancoramos nossas premissas em uma edu- cessidades de saúde do território em que esta-
cação que se baseia nos princípios de Paulo Frei- mos inseridos. Desta forma, para melhor qualifi-
re. O educador parte da concepção da proble- car a atuação do conselheiro de saúde é preciso
matização como o motor da aprendizagem, bus- lançar mão da Educação Permanente em Saúde,
cando romper com o que intitulou de “educação entendida enquanto conceito e prática em perma-
depositária ou bancária”, que na visão freiriana nente construção e que busca a atuação no terri-
é um modelo de educação que parte do pressu- tório, respeitando a realidade de cada localidade,
posto de que o aluno nada sabe e o professor é suas características, bem como suas diferenças
detentor de todo o saber, criando-se, assim, uma institucionais e socioculturais18. Entendendo este
relação vertical entre educador e educando. Ao território como um espaço resultado de proces-
contrário, Freire aposta em uma educação que
sos socioculturais e econômicos7.
intitulou como “libertadora”, onde a relação entre
O papel do Conselho de Saúde está rela-
educador e educando se dá por meio de um pro-
cionado à maneira como seus integrantes se arti-
cesso integrativo em que o conhecimento não é
culam com as bases sociais, como transformam
despejado para o educando, mas que se constrói
os direitos e as necessidades de seus segmen-
socialmente, adotando a problematização como
tos em demandas e projetos de interesse público
alavanca da aprendizagem9.
e como participam da deliberação da política de
saúde a ser adotada em cada esfera de governo.
Educação Permanente para o controle social Desta forma, o conselheiro deve fortalecer e con-
- Por que temos que qualificar nossa ação tribuir para a estruturação e articulação de ca-
conselheira? nais permanentes de informações sobre os ins-
As conquistas brasileiras, dos últimos 500 trumentos legais, leis, normas, decretos e outros
anos, se deram à custa de muita luta. A come- documentos que visem fortalecer sua atuação6.
çar pelo próprio SUS. Este é fruto da luta de Enfim, a Educação Permanente para o con-
organizações populares, de técnicos e traba- trole social contém os processos pedagógicos
lhadores comprometidos com a saúde. Tal luta que contribuem para o desenvolvimento da ação
foi consolidada em duas leis federais, a Lei nº do sujeito social em torno do cumprimento do di-
8.0802 e a Lei nº 8.1423, ambas de 1990. Es- reito à saúde, instrumentalizando-o para interven-
tas são o resultado da persistência e empenho ções construídas no cotidiano dos serviços e da
desses movimentos sociais pela democratiza- comunidade, por meio de metodologias partici-
ção dos serviços de saúde e, como marco legal, pativas, utilizadas em processos formais e infor-
deram origem aos conselhos e as conferências mais que valorizam as vivências e experiências.

|121
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

A ação conselheira e o processo de trabalho em conjunto com o Conselho Municipal de Saúde,


são indissociáveis; a partir desse binômio que se elaboraram um modelo de curso para capacita-
constrói o perfil de competências e habilidades ção técnica, política e ética de seus conselheiros
dos educadores e educandos considerando as gestores, utilizando a metodologia da problemati-
dimensões conceituais, técnicas, éticas e políti- zação preconizada pela ETSUS-SP. Essa propos-
cas necessárias à atuação do conselheiro. Nesse ta englobava também a capacitação de docentes
sentido, sua ação conselheira deve busca esta- que atuariam nesses cursos. Para tanto, foi feita
belecer relações entre o conhecimento novo e os a elaboração de uma apostila de textos básicos
preexistentes, assim como as expectativas, sen- e planejado um conjunto de atividades didáticas
tidos e significados que se mobilizam no proces- para desenvolvimento dos conteúdos a serem uti-
so de ensino aprendizagem1. lizados em todas as regiões do município.
Esse processo contínuo de formação visa De 2003 a 2013, foram realizadas 233 tur-
valorizar a criação de uma consciência crítica, mas e capacitados 4.748 conselheiros de saúde.
por isso exige uma prática educativa participati- Durante esse período, os atores das diversas re-
va, dialógica e democrática, sempre ancorada em giões de saúde envolvidos promoveram discus-
referenciais éticos voltados à garantia do direito sões locais buscando adequar os conteúdos da
à cidadania. Este é o caminho que possibilitará formação a sua realidade. As avaliações realiza-
qualificar a prática no conselho, contribuindo pa- das com esses participantes apontaram que a
ra a melhora da qualidade de vida das pessoas formação trouxe uma importante contribuição na
do território. constituição dos Conselhos Gestores, no proces-
so eleitoral e na ampliação de conhecimentos
sobre legislação referente ao SUS. Porém tam-
Caminhos percorridos na Educação Permanente bém foram citadas dificuldades como não mu-
para o controle social dança efetiva do cotidiano dos conselhos, a falta
Em 11 de agosto de 2006 foi aprovada a de conteúdos atualizados, a falta de preparo de
Resolução n° 363 do Ministério da Saúde, que alguns docentes e de participação de todos os
cria a Política Nacional de Educação Permanente segmentos no curso, principalmente, dos traba-
para o Controle Social (PNEPCS)5. Essa política lhadores e gestores, além de não terem atendido
reúne o conjunto de contribuições, estudos, refle- todas as demandas da cidade.
xões, debates, divergências e convergências em Em 2009, a equipe do, então, CEFOR, em
torno da formação de conselheiros de saúde e conjunto com representantes do Conselho Muni-
amplia a sua importância, elevando-a enquanto cipal de Saúde elaborou o Projeto de Educação
Programa de Capacitação para uma Política Na- Permanente para o Controle Social (PEPCON).
cional Estratégica para o SUS5. Também orien­ta Esse projeto continha três eixos básicos: capa-
que os Conselhos de Saúde participem formula- citação, informação/comunicação; e pesquisa,
ção das políticas e seus pla­nos de educação per- procurando atender as principais diretrizes da Po-
manente, garantindo a maior participação e con- lítica Nacional de Educação Permanente para o
trole social da sociedade em favor do SUS. Controle Social de 2006. Durante este processo
No município de São Paulo, em 2003, o de elaboração do projeto foi levantado o perfil de-
Centro de Formação dos trabalhadores da Saúde talhado dos conselheiros gestores que passaram
(CEFOR) e a Escola Técnica do SUS (ETSUS-SP), pelos cursos no período de 2003 a 2008, que

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

serviu de base para estabelecer os eixos do pro- centrado no processo de trabalho do Conselhei-
jeto, bem como para a revisão dos conteúdos do ro Gestor, tendo como propósito melhorar a ação
curso de conselheiro gestor realizado. Tal proces- conselheira em todas as dimensões, auxiliando
so possibilitou a aprovação da Resolução nº 5 na formação integral do indivíduo e na transfor-
de 2009 pelo Conselho Municipal, publicada em mação de sua prática. Para tanto, foi desenvol-
201013, que estabelece diretrizes para a imple- vido um processo educativo de ação, reflexão e
mentação do processo de Educação Permanen- transformação das práticas, compartilhado entre
te para Conselheiros Gestores das Unidades de gestores, trabalhadores de saúde e usuários para
Saúde da Secretaria Municipal da Saúde da ci- a busca de soluções dos problemas locais – ex-
dade de São Paulo. Porém, devido às mudanças periência que representou um marco referencial
políticas e administrativas ocorridas na época, o no planejamento da Educação Permanente a ser
projeto não foi implantado, embora os cursos te- utilizada, possibilitando maior autonomia regional
nham continuado a ocorrer nas regiões, confor- e ampliação de seu raio de alcance a todas as re-
me a realidade local. giões da cidade, por meio da formação de facilita-
Atualmente o Município de São Paulo tem dores de Educação Permanente para o Controle
mais de 6.000 conselheiros gestores de saúde, Social. Ao constituirmos este grupo de trabalho,
distribuídos em 25 Supervisões Técnicas de Saú- assumimos o compromisso de engendrar esfor-
de (STS) e participantes em todas as unidades de ços para a implantação efetiva de uma Educação
saúde do território municipal. O grande desafio é Permanente para o Controle Social, acreditando
desenvolver um projeto de Educação Permanente que essa ferramenta tem poder de qualificar o
que atenda a necessidade desse contingente de processo de trabalho do Conselho Gestor.
conselheiros que se renovam a cada dois anos, Vale lembrar que a Educação Permanente
mantendo os princípios pedagógicos descritos não é apenas um “cardápio de cursos” oferecido
nesse texto. continuamente, mas uma proposta contra hege-
Em outubro de 2013, a Escola Municipal de mônica que rompe com o modelo escolar e que
Saúde (EMS) retomou a discussão da educação busca a desalienação do processo de trabalho.
permanente desses conselheiros e constitui o Para atingir seus objetivos é necessário sempre
Grupo de Trabalho da Educação Permanente para estar enfrentando obstáculos e percorrendo no-
o Controle Social (GTEPCS), com participação do vos caminhos, por essa razão foram estabeleci-
Conselho Municipal de Saúde, da Assessoria de das duas frentes de trabalho para: (1) trilhar um
Gestão Participativa e de representantes das Es- caminho que possibilitasse construir uma Política
colas Municipais Regionais, além de conselheiros Municipal de Educação Permanente para o Con-
do segmento gestor, trabalhadores e usuários. O trole Social; (2) elaborar um currículo a ser per-
grupo iniciou seu trabalho relatando as experiên- corrido pelo conselheiro gestor e que utilizasse
cias locais, destacando os problemas e dificulda- estratégias pedagógicas preconizadas pela Edu-
des para realização dos cursos e, principalmente, cação Permanente.
apontando a insuficiência das ações realizadas A primeira frente culminou com a elabora-
em dar conta das necessidades locais. ção do Documento Norteador para a Educação
Com esse olhar ampliado e ancorado nos Permanente do Controle Social na Secretaria Mu-
princípios pedagógicos da Educação Permanente, nicipal de Saúde de São Paulo; a segunda culmi-
passou-se a desenvolver um trabalho educativo nou com a definição do quadro de competências

|123
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

e habilidades do conselheiro gestor, orientando teoria distanciada da realidade atrapalha o de-


a construção do currículo e das estratégias pe- senvolvimento do próprio conselheiro. Cada ati-
dagógicas que deveriam ser elaboradas por sub- vidade educativa que se pretenda levar à prática
grupos montados para cada eixo temático. O deve, necessariamente, partir da revisão crítica
documento norteador, o perfil de competências das próprias práticas. Assim, promove-se autono-
e habilidades e os roteiros pedagógicos elabora- mia e responsabilização dos grupos de trabalho
dos foram aprovados pelo Conselho Municipal de em construir o diagnóstico e a busca de soluções
Saúde na Resolução nº 3 de 201612. compartilhadas, incluindo, a busca de novos co-
Dessa forma, o grupo de trabalho, busca nhecimentos e competências.
cumprir sua função de subsidiar as regiões na As regiões de Saúde do município de São
elaboração e execução do plano de Educação Paulo têm realizado seus planos de Educação Per-
Permanente para o Controle Social, incluir esses manente considerando as necessidades e priori-
planos no Plano Municipal de Educação Perma- dades locais e estimulando que o planejamento
nente (PLAMEP) e pactuá-los nos contratos de seja feito com a participação das unidades de
gestão com as Organizações Sociais (OS) da área saúde e das Supervisões Técnicas de Saúde. A
da Saúde. Com esse propósito, o grupo foi re- princípio, utilizou-se como referencia o calendário
conhecido e formalizado pelo Conselho Municipal de atividades dos conselhos de saúde, que in-
de Saúde, através da Resolução nº 7, Conselho cluía a eleição, a formulação do regimento inter-
Municipal de Saúde de 201614, enquanto apoio à no, a preparação para conferencias de saúde e as
Comissão de Educação Permanente do Conselho demais atividades. Posteriormente, foi desenvol-
Municipal de Saúde de São Paulo. A resolução vida uma metodologia de planejamento baseada
estabelece que compete a esse grupo apoiar, em metas estratégicas definidas por cada Super-
orientar, propor e fiscalizar os Planos de Educa- visão Técnica de Saúde e que constam no Plano
ção Permanente para o Controle Social em âmbi- Municipal de Saúde. Esse processo possibilitou
to municipal. desenhar um caminho mais efetivo e que subsi-
Sempre orientados pela metodologia da pro- dia as ações dos conselheiros; também permitiu
blematização e tendo por principio pedagógico o que se descentralizasse a formação de facilita-
processo de trabalho e inspirados na concepção dores de Educação Permanente com a aprovação
de currículo integrado, elaborou-se um material de resolução no Conselho Municipal de Saúde,
pedagógico para a formação dos facilitadores e determinando que ações educativas para o Con-
para o apoio ao planejamento das ações educa- trole Social devam ser desenvolvidas nas Coor-
tivas, utilizando o mapa conceitual construído a denadorias Regionais de Saúde com participação
partir do perfil de competências e habilidades do do Conselho Municipal de Saúde, da Assessoria
conselheiro. Com essa ferramenta, foram esta- de Gestão Participativa, das Escolas Municipais
belecidos os passos para o planejamento do tra- de Saúde Regional e dos conselheiros dos três
balho, destacando metas prioritárias, habilidades segmentos, atendendo, assim, as necessida-
do conselheiro e a importância da elaboração da des locais e promovendo o desenvolvimento de
ação educativa. Essas ações educativas par- competências e habilidades que possibilitem aos
tem da compreensão de que todo processo re- Conselhos de Saúde cumprir sua missão. Nes-
quer planejamento, desenho e execução a partir ta perspectiva, ficou definido que cada Supervi-
de uma análise estratégica, lembrando que uma são Técnica de Saúde deveria ter um corpo de

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

facilitadores que pudessem servir de referência técnicos das supervisões e coordenações de


para o planejamento e execução de ações educa- Saúde, usuários dos conselhos gestores e os
tivas que correspondam à realidade do território. representantes das ouvidorias.
Isso gerou, no período de 2014 a 2017 os seguin- O grande desafio dos facilitadores da Edu-
tes resultados: cação Permanente tem sido a promoção de espa-
• 80% de planos de Educação Permanente ços de discussão para nortear e fortalecer a par-
desenvolvidos pelas Supervisões Tecnicas ticipação enquanto ferramenta de gestão do SUS
de Saúde e apresentados aos Núcleos de nas regiões. E, nesses espaços, ampliar a parti-
Educação Permanente para compor o Plano cipação na elaboração dos planos de Educação
Municipal de Educação Permanente, pactu- Permanente construído por cada Supervisão Téc-
ado nos contratos de Gestão; nica de Saúde, considerando as particularidades
• 68% desses planos utilizaram metodologia de cada território, envolvendo os conselheiros
de planejamento em sua confecção; gestores locais, a comunidade e suas lideranças,
• 80% das regiões estão em processo de am- conforme as etapas determinadas na Resolução
pliar a formação de seus facilitadores; nº 11 de 201615 do Conselho Municipal de Saúde.
• aprovação, pelo Conselho Municipal de Saú- No enfrentamento cotidiano desses desa-
de de São Paulo, de resolução que garante fios a vivência reafirmou que é possível contribuir
a capacitação de facilitadores, incluindo a para a efetivação da Política de Gestão Participa-
metodologia de elaboração e execução des- tiva da Secretaria Municipal de Saúde em todas
ses planos; as suas esferas, reconhecendo a Educação Per-
• publicação das cartilhas “O Que É e Como manente como ferramenta que contribui para a
Funciona o Conselho Gestor?”16 e “Apoio Pa- qualificação do Controle Social.
ra o Planejamento das Ações de Educação A experiência acumulada após quatro anos
Permanente Para o Controle Social: Qualifi- também permite afirmar que o trabalho coletivo
cando a Participação na Gestão das Políti- envolvendo atores sociais dos três segmentos,
cas Públicas de Saúde no Município de São usuários, trabalhadores e gestores, foi um gran-
Paulo”17 – esta última contendo planilha de de salto de qualidade para o fortalecimento do
sugestão do passo a passo para o planeja- controle social nas regiões e, sobretudo, para a
mento da Educação Permanente. implementação da Política Municipal para o Con-
trole Social na cidade de São Paulo.
A elaboração dos planos de Educação Per-
Desafios do percurso manente construído por cada Supervisão Técnica
Muitos obstáculos foram ultrapassados, o de Saúde, considerando as particularidades de
que, por vezes, torna o caminho tortuoso. Ain- cada território, envolvendo os conselheiros ges-
da não há efetivação da Política de Gestão Par- tores, a comunidade e suas lideranças é um ca-
ticipativa na Secretaria Municipal de Saúde e minho que potencializa os espaços de discussão,
se mostra necessário investir no fortalecimen- norteia e fortalece a participação enquanto ferra-
to das Escolas Municipais Regionais para que, menta de gestão do SUS.
de fato, haja com autonomia local. Além disso, Muitos caminhos ainda têm que ser trilha-
ainda é preciso estimular o envolvimento de vá- dos, mas serão percorridos com a convicção de
rios atores: assessorias de gestão participativa, que a consolidação da democracia passa por

|125
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

tomadas de decisões coletivas e pela participa- 11. Saviani D. Escola e democracia: teorias da educação,
ção social como forma de coibir as ingerências do curvatura da vara, onze teses sobre educação e política.
São Paulo: Cortez/Autores Associados; 1984.
Estado. É na dinâmica tensa da vida social que
12. São Paulo. (município). Conselho Municipal de Saúde.
está a esperança e a possibilidade de defender,
Resolução nº 3, de 18 fevereiro de 2016. Resolve: aprovar
efetivar e aprofundar os preceitos democráticos o documento norteador para a Educação Permanente do
e os direitos de cidadania. controle social na Secretaria Municipal de Saúde de São
Paulo. Diário Oficial da Cidade de São Paulo. 28 jul. 2016;
61(140):53. [acesso em: 12 ago 2017]. Disponível em: ht-
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promoção, proteção e recuperação da saúde, a organiza- Conselheiros Gestores das Unidades de Saúde da Secretaria
ção e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá Municipal da Saúde da Cidade de São Paulo. Diário Oficial da
outras providências. Brasília: Presidência da República; 19 Cidade de São Paulo. 28 set. 2010; 55(181):54. [acesso em:
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3. Brasil. Lei nº 8.142. Dispõe sobre a participação da co- Resolução nº 7, de 20 de outubro de 2009. Resolve: ins-
munidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e tituir o Grupo de Trabalho para Educação Permanente do
sobre as transferências intergovernamentais de recursos Controle Social enquanto Grupo Permanente para apoio à
financeiros na área da saúde e dá outras providências. Comissão de Educação Permanente do Conselho Municipal
Brasília: Presidência da República; 28 dez 1990. [acesso de Saúde. Diário Oficial da Cidade de São Paulo. 10 nov.
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|126
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

A estratégia de Educação Permanente para a produção de


redes de cuidado na atenção à saúde da pessoa em situação
de violência na cidade de São Paulo
The permanent education strategy for the production of care networks in healthcare for people in situ-
ations of violence in the city of São Paulo

Fátima Madalena de Campos LicoI, Suely Yuriko Miyashiro TápiasII,


Elaine Aparecida LorenzatoIII, Maria Lucia Aparecida ScalcoIV, Nelson Figueira JuniorV

Resumo Abstract

Esse artigo descreve o processo educativo que envolveu os profis- This article describes the educational process that involved pro-
sionais das seis coordenadorias regionais de saúde, da Secretaria fessionals of six health coordinators, the Municipal Health Depart-
Municipal da Saúde do Município de São Paulo (SMS-SP), dos Nú- ment of the Municipality of São Paulo (SMS-SP), the Centers for
cleos de Prevenção das Violências e da rede intersetorial, para a Prevention of Violence and the Intersectoral Network, for the imple-
implantação da linha de cuidado e construção da rede de atenção mentation of the care line and construction of the comprehensive
integral à saúde da pessoa em situação de violência. Apresenta a care network for the health of the person in a situation of violence.
relevância da Educação Permanente em Saúde como uma estraté- It presents a relevance of the Permanent Education in Health as
gia para potencializar os espaços de gestão de forma descentrali- a strategy to enhance the spaces of management in a decentrali-
zada, integrando os gestores e técnicos da SMS-SP, das Organiza- zed way, integrating the managers and technicians of the SMS-SP,
ções Sociais e da rede intersetorial. Esse processo teve início em with the Social Organizations and with the Intersectoral Network.
2015, com a formação de um comitê executivo, responsável pela These process began in 2015, with the formation of an executive
gestão e condução de um curso de aprimoramento e do proces- committee, responsible for the management and conduction of a
so educativo. Trata-se de um estudo descritivo, do tipo relato de professional development course and an educational process. It is
experiência de ações educativas, fundamentado na metodologia a descriptive study, a kid of experience report of educational ac-
da problematização. Participam do processo 1300 profissionais, tions, based on the problematization methodology. There are in the
possibilitando o fortalecimento de uma rede integrada de cuidado process 1300 professionals, has enabled the strengthening of an
às pessoas em situação de violência; a consolidação dos fluxos integrated network of care for people in situations of violence; the
assistenciais; de vigilância e competências de cada um dos níveis consolidation of care flows, the surveillance and each competence
do cuidado; a criação de espaços de diálogo que estimulem ini- with the level of care; the creation of dialogue spaces that inspi-
ciativas de promoção de saúde e identificação de estratégias de res health promotion initiatives and the identification of protection
proteção e de garantia de direitos. strategies and guarantee of rights.

Palavras-chave: Violência; Rede de cuidado; Educação permanente Keywords: Violence; Care network, Permanent education.

I
Fátima Madalena de Campos Lico (fatimalico@gmail.com) é psicóloga, Mes- IV
Maria Lucia Aparecida Scalco (mscalco@prefeitura.sp.gov.br) é psicóloga
tre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com Especialização em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP-
(PUC-SP), Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da -Ribeirão Preto) e em Doenças e Agravos Não Transmissíveis pela Coordena-
Universidade de São Paulo (FSP/USP) e atua na Escola Municipal de Saúde ção de Vigilância em Saúde (DANT/CCD/COVISA) da Secretaria Municipal da
da Secretaria Municipal da Saúde do Município de São Paulo. Saúde do Município de São Paulo (SMS-SP).
II
Suely Yuriko Miyashiro Tápias (smiyashiro@prefeitura.sp.gov.br) é enfermeira V
Nelson Figueira Junior (nelsonfigjunior@prefeitura.sp.gov.br) é psicólogo Es-
Especialista em Saúde Pública da Coordenadoria Regional de Saúde Norte da pecialista em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC
Secretaria Municipal da Saúde do Município de São Paulo (SMS-SP). Campinas) e Assessor Técnico da Área de Atenção Integral à Saúde da Pes-
III
Elaine Aparecida Lorenzato (elorenzato@prefeitura.sp.gov.br) é psicóloga da soa em Situação de Violência da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo
Coordenadoria Regional de Saúde Norte da Secretaria Municipal da Saúde do (SMS-SP).
Município de São Paulo (SMS-SP).

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução causada pelas formas mais frequentes de violên-


As questões relativas às violências na so- cia e de acidentes constitui um grande desafio
ciedade contemporânea tornaram-se objeto de para o setor da saúde.
reflexão e de estudo em virtude de sua gravidade Em 1993, a Organização Pan-Americana de
e magnitude. É um problema que afeta as diferen- Saúde (OPAS) recomendou aos países membros,
tes camadas sociais e diferentes faixas etárias, entre eles o Brasil, que incluíssem o tema do en-
devendo ser compreendido dentro dos marcos frentamento das violências em suas agendas.
históricos socioeconômicos, políticos e culturais Em 1996, a 49ª Assembléia Mundial de Saúde
que vão determinar as desigualdades de poder adotou a Resolução WHA49.25, declarando a vio-
nas relações de gênero, raça/cor, etnia e outras. lência como um problema importante, e crescen-
Neste cenário, vislumbram-se as dificulda- te, de saúde pública no mundo. A Organização
des que envolvem a elaboração, execução e ges- Mundial de Saúde (OMS) em resposta a esta re-
tão de políticas públicas relacionadas ao tema. solução, publicou, em 2002, o Relatório Mundial
A violência impacta a qualidade de vida do indi- sobre Violência e Saúde13, que representou uma
víduo e da comunidade, gerando demandas para importante contribuição para a compreensão do
os mais diferentes setores como, por exemplo, o papel do setor saúde e revelando que, em todos
social, o educacional e a segurança pública. os anos, mais de um milhão de pessoas perdem
Na saúde, resulta em altos custos, uma vez a vida e muitos outros sofrem lesões graves por
que o atendimento da pessoa que sofre violên- causas violentas.
cia envolve uma série de ações específicas de No Brasil, para o enfrentamento deste pro-
cuidado11. Diminuir o índice de morbimortalidade blema no âmbito das três esferas de governo

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

(federal, estadual e municipal) vem sendo produ- A população do município de São Paulo é,
zido um conjunto de leis e portarias que buscam conforme o Censo IBGE de 2010, de 11.253.503
garantir as informações, o cuidado e a prevenção de habitantes3: são 20% (2.336.636) de crian-
da violência. ças e adolescentes de 0 a 14 anos de idade;
Na cidade de São Paulo, a Secretaria Mu- 25% (2.908.499) de jovens na faixa etária de 15
nicipal da Saúde (SMS-SP) e sua Área Temática a 29 anos de idade; e 11,89% (1.338.138) de
de Atenção Integral à Saúde da Pessoa em Situ- idosos, acima dos 60 anos. Do total de habitan-
ação de Violência, juntamente com sua Subge- tes, 60,64% se auto refere como de cor branca,
rência de Doenças e Agravos Não Transmissíveis 30,51% de cor parda, 6.54% de cor preta, 2,19%
(DANT) do Centro de Controle de Doenças (CCD) de cor amarela, 0,12% de indígenas3.
da Coordenação de Vigilância em Saúde (COVI- No que se refere ao problema da violência,
SA), são responsáveis pela formulação de políti- analisando os dados de mortalidade do município
cas públicas voltadas para minimizar o impacto tem-se que, do total de 75.298 mortes, em 2015,
das diversas formas de violência sobre os cida- 6.062 (8,05%) foram por causas externas (violên-
dãos no município. cias e acidentes), distribuídas em (Gráfico 1):

Gráfico 1 - Distribuição de nº de Mortes por Tipo de Causa Externa Município de São Paulo, 2015.

Fonte: SIM/PROAIM – 2015- SMS-SP/COVISA/CCD/ DANT-2017

Na comparação com as mortes por “causas (PROAIM) da SMS-SP. Chama a atenção o aumen-
externas” ocorridas em 2011 (Tabela 1), observa- to de mais 170% das mortes por intoxicação; o
-se uma diminuição de 38,75% de “eventos de aumento de 8,5% e de 29% nas mortes por afo-
intenção indeterminada”, provavelmente devido à gamento e por quedas, respectivamente. Há tam-
qualificação da informação por parte do Programa bém um importante aumento de 44% de mortes
de Aprimoramento da Informação de Mortalidade por intervenção legal.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Tabela 1 - Variação do nº de Mortes por Causas Externas nos Anos de 2011 e 2015

morte por causas externas 2011 2015 Variação


causa ext. indeterminada 800 490 diminuição de 38,75%
envenenamento, intoxicação 104 281 aumento de mais de 170%
expiraç fumaça, fogo, chamas 63 62 manteve-se
afogamento e submersão 139 152 aumento de 8,5%
quedas 845 1090 aumento de 29%
lesões autoprovocadas 538 528 manteve-se
acidentes trânsito e transporte 1545 1168 diminuição de 25%
agressões gerais 1392 1389 manteve-se
intervenção legal 132 191 aumento de 44%
(total agressões gerais + interv. legal) 1524 1580 aumento de 3,7 (desprezível)
outras 644 711 aumento de 10,4%
Total geral 6202 6062 queda de 2,2 (desprezível)
Fonte: SIM/PROAIM, 2015; SMS-SP;COVISA;CCD;DANT; 2017

Destaca-se, no conjunto das mortes por representam 121 (63,4%) casos do total; as da
agressão, o aumento de 44% do número de “in- faixa etária de 15 a 29 anos de idade represen-
tervenção legal” do sexo masculino (Tabela 2). tam 159 (83%) e as de jovens negros de 15 a 29
Nessa situação as mortes de pessoas negras anos totalizam 101 (53%).

Tabela 2 - Mortes por Intervenção Legal do Sexo Masculino, por faixa etária e raça/cor, 2015.
Município de São Paulo

Faixa etária Branca Preta Parda Não inform. Total

< 1 ano - - - - -
01/abr - - - - -
05/set - - - - -
out/14 - 1 2 - 3
15 - 19 27 8 45 - 80
20 - 29 30 5 43 1 79
30 - 39 6 1 9 - 16
40 - 49 2 - 1 - 3
50 - 59 1 - 2 - 3
60 - 69 2 - - - 2
70 - 79 - - 1 - 1
80 e + - - - - -
Ign 1 - 3 - 4
total 69 15 106 1 191
Fonte: SIM /PROAIM - 2015 - SMS-SP/COVISA/CCD/DANT-2017

|131
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Diante da magnitude e da complexidade do Para sua implantação, foi desencadeado,


problema da violência na cidade, a SMS-SP vem juntamente com a Escola Municipal de Saúde,
desenvolvendo várias ações; entre elas, destaca- um processo de educação permanente, objeto
-se a criação dos Núcleos de Prevenção de Violên- desse artigo.
cia. Esses núcleos foram instituídos em todas as
unidades de saúde, pela Portaria nº 1.300/2015
do município15, e correspondem às equipes de A estratégia da Educação Permanente para a
referência do serviço de saúde responsáveis pe- implantação da Linha de Cuidado de Atenção
la organização do cuidado e da articulação das Integral à Pessoa em Situação de Violência
ações a serem desencadeadas para a superação A Educação Permanente é a aprendizagem
da violência e promoção da cultura de paz. Essas no trabalho, onde o aprender e o ensinar se in-
equipes de profissionais são responsáveis pelo corporam ao cotidiano das organizações e ao
processo educativo e articulação da rede de pro- trabalho. Parte do pressuposto da aprendizagem
teção nos territórios. significativa (que promove e produz sentidos) e
Outra ação a ser destacada, foi a elaboração, propõe provocar mudanças a partir da reflexão
por meio de um grupo de trabalho, da Linha de Cui- crítica sobre as práticas reais dos profissionais
dado de Atenção Integral à Pessoa em Situação de em ação na rede de serviços2.
Violência, em 2015. A construção dessa linha foi Os objetivos dos processos da educação
um grande passo na consolidação da política de permanente são a transformação das práticas
atenção integral à saúde da pessoa em situação profissionais e da própria organização do traba-
de violência, em todas as esferas da SMS-SP. seu lho, tendo como referência as necessidades de
documento é composto pelos capítulos: apresen- saúde das pessoas e das populações, da gestão
tação; introdução; prevenção da violência e promo- setorial e do controle social em saúde6.
ção da cultura de paz; definição, tipos e naturezas Considerando a possibilidade de a educa-
da violência; Linha de Cuidado para Atenção Inte- ção operar no mundo das relações de ensino/
gral à Saúde da Pessoa em Situação de Violência; aprendizagem como dispositivo, ou seja, “uma
vigilância em saúde; atendimento à pessoa em si- montagem ou artificio produtor de inovações que
tuação de risco ao suicídio; atendimento à pessoa gera acontecimentos e devires, e que atualiza
em situação de violência sexual; cuidado em rela- virtualidades e inventa o novo” (p.135)1, pressu-
ção aos ofensores; áreas técnicas; competências; põe-se que a ação pedagógica pode disparar pro-
redes; avaliação; e monitoramento14. cessos subjetivos, associados aos de cognição
A linha de cuidado visa orientar e sistemati- (p.187)8. Nessa perspectiva, os processos edu-
zar o trabalho dos profissionais de saúde em to- cacionais podem contribuir na produção de sujei-
dos os níveis de atenção, de forma a estabelecer tos com capacidade de intervir na realidade com
fluxos assistenciais, para o cuidado ininterrupto, o objetivo de transformá-la.
corresponsabilização de diferentes atores e reso- A subjetividade é estruturada a partir da his-
lubilidade da assistência. Busca ainda estabele- tória de vida, das experiências, dos valores ad-
cer as competências de cada um dos níveis do quiridos e vão determinar certa forma de analisar
cuidado, assim como contribuir para as ações de e intervir sobre o mundo do trabalho em saúde.
proteção exigindo para isso a interação com os Para Merhy10 a subjetividade define que o traba-
demais sistemas na garantia de direitos. lhador aja de um modo ou de outro.

|132
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Além da subjetividade, contribui também pa- envolveu profissionais de saúde que atuam como
ra a forma de agir frente ao trabalho, a implica- interlocutores da área Técnica de Atenção Inte-
ção com o objeto, no caso, o problema de saú- gral à Pessoa em Situação de Violência e nos
de do usuário com o qual se relaciona. Segundo Núcleos de Prevenção de Violência na Atenção
Merhy10, a subjetividade e a implicação estão pre- Primária à Saúde.
sentes em todo o processo assistencial, de pro- O processo de educação permanente para
dução pedagógica e da saúde. O autor considera implantação desta linha teve início em 6 de agos-
que os processos educacionais só serão eficazes to de 2016, com a realização de um curso de
se operarem mudanças nas subjetividades dos aprimoramento destinado aos interlocutores das
trabalhadores (p. 189)8. 6 coordenadorias regionais de saúde e das 26
Para provocar processos de subjetivação a supervisões técnicas de saúde da SMS-SP.
Educação Permanente em Saúde deve implicar O curso foi desenvolvido a partir da combi-
os sujeitos com o seu próprio processo de tra- nação de ofertas teóricas, discussão de casos
balho, com o desafio de pensar uma nova forma e práticas de intervenção, com momentos de
pedagógica amarrada com a intervenção, e tendo concentração e dispersão, buscando estimular
como centro do processo pedagógico “a implica- a reflexão e a troca de experiências entre os pro-
ção ético-política do trabalhador no seu agir em fissionais e entre a rede de proteção existente
ato, produzindo o cuidado em saúde, no plano nos territórios das regiões de saúde. Criou-se,
individual, e coletivo, em si e em equipe” (p.174)9. assim, um campo aberto ao diálogo e à elabo-
Essa educação se insere em uma necessá- ração de eventuais divergências, favorecendo a
ria construção de relações e processos compreensão e a integração de novos conceitos
e paradigmas e contribuindo para produção de
“...que vão do interior das equipes em atua-
novas subjetividades e para o processo de cui-
ção conjunta, - implicando seus agentes -, às dado integral às pessoas em situação de violên-
práticas organizacionais, - implicando a insti- cia nos territórios5.
tuição e/ou o setor saúde -, e às práticas inte- A produção de subjetividade pressupõe a
rinstitucionais e/ou intersetoriais, implicando aproximação dos atores envolvidos na produção
as políticas nas quais se inscrevem os atos da saúde (gestores, trabalhadores e usuários),
de saúde (p.161)7. resultando em uma gestão democrática e parti-
Fundamentado no referencial teórico expos- cipativa nas políticas e nos serviços de saúde,
to, foi desenvolvido o processo de educação per- que envolve, a um só tempo, processos coletivos
manente para a implantação da Linha de Cuidado e individuais que mobilizam e transformam os su-
para a Atenção Integral à Pessoa em Situação de jeitos participantes do processo5.
Violência. Para o planejamento do curso foi constituí-
do um grupo de trabalho composto por profissio-
nais de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS)
Metodologia – representantes das coordenadorias regionais
Trata-se de um estudo descritivo, do tipo de saúde, das áreas técnicas da Atenção Primá-
relato de experiência de ações educativas, fun- ria da SMS-SP, da Autarquia Hospitalar Municipal
damentado na estratégia de educação perma- (AHM), do Serviço de Atendimento Móvel de Ur-
nente e na metodologia da problematização, que gência (SAMU), da COVISA, da Coordenação de

|133
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Epidemiologia e Informação (CEInfo) e da Escola casos, implantar o fluxo da linha de cuidado, bem
Municipal de Saúde. como, organizar o atendimento, criar estratégias
Para a capacitação pedagógica dos facilita- para fortalecer o cuidado integral nos serviços
dores de aprendizagem e planejamento das aulas das pessoas em risco ou situação de violência
do curso, foi constituído um grupo denominado e fortalecer ou construir a rede de proteção às
Grupo de Educação Permanente, composto pelo pessoas em situação de violência nos territórios.
coordenador e interlocutores da Área Técnica de
Atenção Integral à Pessoa em Situação de Violên-
cia da SMS-SP e das seis CRS, representantes Estratégias metodológicas
da DANT/COVISA, da Escola Municipal de Saúde Foram utilizadas as seguintes estratégias
e das 6 escolas municipais de saúde das regiões metodológicas:
norte, centro, leste, sudeste, oeste e sul.
- plenárias com especialista:
Considerando o bloco temático do curso, os
Evento semestral com 4 horas de duração
conteúdos teóricos foram organizados em “oferta
que permitia, a partir das necessidades dos par-
comum” pelos facilitadores de aprendizagem, vi-
ticipantes do curso (profissionais de saúde e fa-
sando o aprofundamento dos temas e as “ofertas
cilitadores de aprendizagem), a identificação de
singulares”, que consistiram em apresentação e
temas e docentes para exposição dialogada ou
discussão de casos de violência contra crianças,
debate. Desta forma, foram introduzidos novos
adolescentes, idosos e populações vulneráveis
conceitos para subsidiar as discussões de casos
atendidos nos serviços e, ainda, em conteúdos ori-
e aprofundar as diversas temáticas relacionadas
ginados das necessidades de cada grupo. Para ca-
à implantação da linha de cuidado de atenção in-
da encontro foi elaborado um Termo de Referência
tegral à pessoa em situação de violência.
pelo Grupo de Educação Permanente, para subsi-
diar as discussões nos momentos de concentra- - rodas de debate:
ção. Nos momentos de dispersão os interlocuto- Realizadas trimestralmente no estúdio da
res reproduziam ou elaboravam novos termos de Escola Municipal de Saúde e transmitidas pela
referências, considerando as singularidades dos TV Canal Profissional - São Paulo Saudável, com
encontros realizados no território das supervisões. participação dos profissionais dos Núcleos de
As dispersões compreenderam as ativida- Prevenção de Violência na Atenção Primária à
des de campo, realizadas mensalmente nos terri- Saúde dos serviços de saúde participaram assis-
tórios das Supervisões Técnicas de Saúde, pelos tindo a roda de debate e enviando perguntas ao
facilitadores de aprendizagem, ou seja, os interlo- vivo para os profissionais.
cutores da assistência e vigilância das coordena-
- educação à distância (EAD):
ções e supervisões, com a participação dos pro-
Foi desenvolvido conteúdo de EAD, em com-
fissionais de saúde dos Núcleos de Prevenção de
plemento ao curso presencial, utilizando a plata-
Violência na Atenção Primária à Saúde dos servi-
forma Moodle para disponibilização de material
ços de saúde das seis 6 Coordenadorias Regio-
didático e das avaliações.
nais de Saúde e dos profissionais das redes de
proteção intersetoriais das supervisões. - narrativas:
O objetivo da dispersão foi ampliar a ofer- As narrativas foram propostas com o objeti-
ta conceitual para subsidiar as discussões de vo de relatar ações, experiências, sentimentos e

|134
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

reações às mudanças durante o processo em de- O processo de educação permanente em


senvolvimento. As narrativas são cada vez mais saúde mostrou a necessidade de rever fluxos as-
frequentes em estudos qualitativos para compre- sistenciais e definir competências de cada um
ender experiências e diferentes visões de sujei- dos níveis do cuidado. Na região sul, foi desenca-
tos num dado contexto12. deado um processo de discussão envolvendo a
Promotoria Pública e a Vara da Infância local, pro-
- plano de intervenção:
pondo um novo fluxo para o atendimento da crian-
Foi proposta a elaboração, por cada super-
ça e adolescentes vítimas da violência sexual e
visão de planos de intervenção, ao final do pro-
discussão sobre indicadores para monitoramento
cesso pedagógico, com a finalidade de implantar
e avaliação das ações dos Núcleos de Prevenção
a linha de cuidado e fortalecer os Núcleos de Pre-
de Violência na Atenção Primária à Saúde.
venção de Violência na Atenção Primária à Saúde.
Na região centro, foi levantada a necessida-
- seminário: de de organizar rodas de conversas e capacita-
Foi agendado ao final do curso, visando ção na área de violência de gênero, envolvendo
apresentar os planos de intervenção de cada su- parcerias com a universidade para o empodera-
pervisão elaborados pelos participantes e para mento das mulheres. Assim, durante o processo
realizar a avaliação de todo o processo. de educação permanente, foi identificada a im-
portância de ações educativas voltadas para ho-
mens autores de agressão e ações foram dispa-
Resultados e discussão radas nas regiões, visando a sensibilização dos
O processo de educação permanente de- profissionais dos serviços sobre esse tema. Isso
sencadeado para implantação da linha de cuida- motivou que na região norte fosse planejado um
do teve como base a reorganização do trabalho grupo educativo destinado aos homens autores
dos Núcleos de Prevenção de Violência na Aten- de agressão.
ção Primária à Saúde e a formação da rede pro- Esse processo de educação permanente
tetiva. Participaram deste processo 1.300 profis- também tem facilitado a integração da assistên-
sionais, envolvendo trabalhadores dos núcleos, cia e vigilância em saúde com foco nas situações
interlocutores das coordenações regionais de de violência, possibilitando aprimorar a qualidade
saúde, das supervisões técnicas de saúde e da da informação, rever fluxos, estabelecer ações e
rede protetiva existente nos territórios das regi- ampliar conhecimento, no que se refere à notifi-
ões abrangidas pelo curso. O processo educati- cação de violência, à organização de diagnósti-
vo demonstrou que a ação dos coletivos de tra- cos locais e de base territorial, ao estabelecimen-
balhadores envolvidos possibilitou criar um novo to de ações de monitoramento e a pronta ação,
modo de significar o mundo do trabalho e buscar principalmente nas situações de violência sexual
uma nova forma de produção de cuidado. e autoagressões4.
A experiência vem possibilitando o fortaleci- Considerando a questão da violência, a no-
mento de uma rede integrada de cuidado à pes- tificação é um dos instrumentos de defesa da
soa em situação de violência, com a criação de garantia de direitos, estabelecida por legislação
espaços de diálogo, estimulando iniciativas de municipal, estadual e federal. Ela tem como ob-
promoção de saúde e identificação de estraté- jetivos gerar informações para a compreensão
gias de proteção e de garantia de direitos. desse fenômeno por parte do setor saúde, apoiar

|135
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

a organização dos serviços para responder com A informação é um dos instrumentos da Vigi-
o cuidado necessário frente à sua ocorrência e lância às violências, que deve ser pensada de forma
apoiar a formação das redes de prevenção, pro- ampla, com ações voltadas ao coletivo e trabalhadas
moção e proteção intersetoriais. de forma participativa, a partir dos territórios onde
Há ainda muito que se trabalhar no sentido as desigualdades sociais propiciam as maiores e
da melhoria da informação, tanto no aumento do sobrepostas vulnerabilidades. O processo de edu-
número e completude dos registros no Sistema de cação permanente em saúde, que integra saberes
Informação Nacional de Agravos de Notificação (SI- e práticas da assistência, vigilância e promoção de
NAN) (Tabela 3), como também na integração com saúde vem fortalecendo a presença da vigilância de
banco de dados de outras áreas e setores. violências no dia a dia dos serviços e dos territórios.
Tabela 3 - Comparativo de nº de Notificações por Tipo de Violência,

Primeiro Semestre de 2016 e 2017. Município de São Paulo.


1ºSem. 2016 1ºSem. 2017 Variação 2017-2016
Not. Violência 8474 11749 +38%
Autoagressão 840 1741 +107%
Viol. Sexual 575 839 +45%
Fonte: SINAN - SMS-SP/COVISA/CCD/DANT. Dados atualizados em 25/07/2017

Pode-se verificar, ainda, mudanças na pro- o desenvolvimento do processo pode-se observar


dução do cuidado e nos trabalhadores envolvi- mudanças positivas, as angústias e inseguranças
dos. Inicialmente os participantes desse proces- foram diminuindo e o grupo de facilitadores ad-
so, manifestavam angústia e inseguranças para quiriu maior autonomia para desencadear ações
utilização da estratégia de educação permanen- pedagógicas com potencial para mudanças das
te. Houve momentos de avanços e também de práticas. Conforme aponta Franco8 “trabalho, en-
retrocessos, sendo necessário muitas vezes reto- sino e aprendizagem se misturam nos cenários de
mar os objetivos e metodologias propostas para produção de saúde como processos de cognição
o curso. Um paradoxo evidenciado no processo e subjetivação, e acontecem simultaneamente co-
foi adotar a Educação Permanente em Saúde co- mo expressão da realidade” (p.186)8.
mo estratégia de gestão e movimentos do gru- Foi necessário, ainda, rever algumas estra-
po de facilitadores, com o objetivo de disparar tégias pedagógicas adotadas, como por exemplo
processos educacionais considerados tradicio- a elaboração das narrativas e a utilização da pla-
nalmente mais eficazes, no atributo de transferir taforma Moodle como repositório. Constatou-se
tecnologias de cuidado aos trabalhadores. que, além das dificuldades temporais, nem todos
Os facilitadores de aprendizagem manifes- os profissionais possuíam habilidades para a uti-
tavam a necessidade de aprofundar seus conhe- lização de ferramentas virtuais, de modo que ain-
cimentos teóricos e de convidar docentes/ espe- da se faz necessária a instrução para o desen-
cialistas para a desenvolverem aulas expositivas. volvimento de competências, para assimilação
Uma proposta discutida conjuntamente foi à cons- dessas novas tecnologias.
tituição do grupo de educação permanente que As narrativas, introduzidas com a finalida-
contribuiu para o aprofundamento e a vivência da de de conhecer e analisar o processo individu-
metodologia proposta e dos aportes teóricos. Com al de aprendizagem dos participantes do curso

|136
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

e de avaliar o processo educativo, não tiveram unidades de produção de cuidado são, ao mes-
aceitação pela maioria do grupo. Assim, foram mo tempo, unidades de produção pedagógica,
reduzidas e sua proposta modificada, optando-se promovendo o protagonismo dos trabalhadores
por utilizá-las apenas para relatos de processos da saúde, da gestão, do ensino e do controle so-
cognitivos de aprendizagem e nas rodas de deba- cial. Ao mesmo tempo em que os trabalhadores
te com especialistas no tema violência. produzem atos de cuidado, mudando a realidade,
O processo de educação permanente vem também produzem a si mesmos como sujeitos.
possibilitando consolidar e fortalecer as ações A Educação Permanente em Saúde traz, em si,
intersetoriais. Nesse sentido, o Grupo de Estu- a potência da mudança nos trabalhadores, nos
do de Violência Doméstica (GEVIDE) do Ministé- usuários e no processo de produção do cuidado.
rio Público de São Paulo vem planejando, com as Partindo desses pressupostos, o objetivo,
coordenações regionais de saúde Centro e Leste, ao adotar a estratégia de educação permanen-
ações educativas destinadas aos agentes comu- te para a implantação da linha de cuidado, foi
nitários de saúde. Também desencadeou reuni- organizar a ação, direcionando-a para mudanças
ões com as coordenadorias para definir fluxos e no nível organizacional, técnico-assistencial, das
discutir as atribuições dos Serviços de Proteção relações com a equipe e, ainda, nas formas de
às Vítimas de Violência (SPVV) da Secretaria Mu- acolher e responsabilizar-se pelo usuário.
nicipal de Assistência Social e Desenvolvimento A implantação da Linha de Cuidado para
e dos Núcleos de Prevenção de Violência na Aten- Atenção Integral à Saúde da Pessoa em Situação
ção Primária à Saúde. de Violência ocorreu de forma diferente nas co-
As diversas iniciativas desencadeadas no ordenadorias regionais de saúde, em função das
processo de educação permanente para a im- especificidades locais e subjetividades dos ato-
plantação da Linha de Cuidado para Atenção Inte- res sociais envolvidos nesse processo.
gral à Saúde da Pessoa em Situação de Violência Foram grandes os avanços alcançados na
evidenciam que o SUS, pela sua dimensão e am- compreensão e utilização da estratégia de edu-
plitude, capilaridade social e diversidade tecno- cação permanente. O processo possibilitou o pro-
lógica presente nas práticas dos trabalhadores, tagonismo dos trabalhadores de saúde para de-
principalmente nos lugares de produção de saú- senvolverem ações de prevenção, de assistência,
de, é um lugar rico e privilegiado para o ensino e de vigilância e de promoção da autonomia das
aprendizagem e para a ação criativa dos trabalha- pessoas em situação de violência. Propiciou tam-
dores de saúde8. Os atores sociais implicados na bém conhecer o território e o seu perfil epidemio-
construção do SUS produzem diversas propostas lógico e promover a articulação intersetorial para
de cuidado para a saúde, portanto, é preciso criar definição de fluxos e competências nos diferen-
e desenvolver processos pedagógicos que possi- tes níveis da assistência. A partir dos diagnósti-
bilitem produzir sujeitos capazes de protagonizar cos epidemiológicos realizados, os profissionais,
mudanças nos serviços de saúde8. juntamente com a rede de proteção, propuseram
projetos de intervenção para o enfrentamento
das violências a que estão submetidos os dife-
Considerações finais rentes grupos vulneráveis nos territórios.
A Educação Permanente em Saúde conside- Finalizando, os processos de mudança nos
ra o trabalho como nuclear à ação pedagógica. As serviços de saúde do SUS, especialmente nas

|137
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

formas de produção do cuidado, a partir da re- social. Pyhsis, Rev. Saúde Coletiva, 2004, 1(14):41-65, Rio
organização do processo de trabalho, deve ter de Janeiro, jan.- jun.
7. Ceccim RB. Educação Permanente em saúde: desafio
como pressuposto a educação permanente dos
ambicioso e necessário. Interface – comunicação, saúde,
trabalhadores da saúde. Ela é tida como uma me-
educação 2005, 16 (9): 161 - 8, Botucatu, set. – fev.
todologia eficaz para agregar novos conhecimen- 8. Franco TB. Produção do cuidado e produção pedagógica:
tos às equipes e torná-las protagonistas dos pro- Integração de cenários do SUS. In: Franco TB, Merhy EE, or-
cessos de produção de cuidado na saúde. ganizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade
em saúde: textos reunidos, 1.ed. São Paulo: Hucitec, 2013,
361.p.(Saúde e Debate).
9. Merhy EE. O desafio que a educação permanente tem
em si: a pedagogia da implicação. Interface – comunicação,
Referências saúde, educação 2005, 16 (9):172 - 4, Botucatu, set. –fev.
1. Baremblitt G. Compêndio de análise institucional. Belo 10. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São
Horizonte: Instituto Félix Guattari, 2002. Paulo: HUCITEC, 2002.
2. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Tra- 11.Minayo MCS, Souza ER, organizadores. Violência sob o
balho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão olhar da saúde: infrapolítica da contemporaneidade brasi-
da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Per- leira. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.
manente em Saúde. Série B. Textos Básicos de Saúde, Sé- 12. Onocko-campos RT, Palombini ALd, Leal E, Serpa Ju-
rie Pactos pela Saúde, 2006, (9). Brasília – DF, 2009. nior ODD, Baccari IOP, Ferrer AL et,al. Narrativas no estudo
3. Brasil. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Esta- das práticas em saúde mental: contribuições das perspecti-
tística – IBGE, Censo demográfico 2010. São Paulo, 2010. vas de Paul Ricoeur, Walter Benjamim e da antropologia mé-
4. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria Nº 204, de 17 de dica. Ciência & Saúde Coletiva 2013, 18 (10):2847 -2857.
fevereiro de 2016 - Define a Lista Nacional de Notificação 13. Organização Mundial da Saúde. Relatório Mundial sobre
Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pú- violência e saúde. [World report on violence and health].
blica nos serviços de saúde públicos e privados em todo Genebra: OMS, 2002.
o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras 14. São Paulo. Prefeitura do Município de São Paulo. Se-
providências. cretaria Municipal da Saúde de São Paulo. Coordenação
5. Campos GWSd. Método para apoio a coletivos organiza- da Atenção Básica. Linha de Cuidado para Atenção Integral
dos para a produção: a capacidade de análise e de interven- à Saúde da Pessoa em Situação de Violência. São Paulo,
ção. In: Campos GWSd. Um método para análise e co-gestão 2015.
de coletivos: a constituição dos sujeito, a produção de valor 15. São Paulo. Secretaria Municipal da Saúde de São Pau-
de uso e a democracia em instituições: o método da roda. lo. Gabinete do Secretário. Portaria Nº 1300/2015- SMS.
São Paulo. ed. Hucitec, 2000. (Saúde e, Debate; 131). G. Institui os Núcleos de Prevenção de Violência (NPV) nos
6. Ceccim RB, Feuerwerker LM. O quadrilátero da formação estabelecimentos de saúde do Município de São Paulo. São
para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle Paulo, 2015.

|138
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Educação para o SUS: avaliação de um Programa de


Aprimoramento Profissional em Saúde Coletiva na
perspectiva de seus egressos
Education for Brazilian Public Health System: evaluation of a Public Health Professional Enhancement
Program from graduate’s perspective

Luiza Sterman HeimannI, Márcio DerbliII, Aparecida Natália RodriguesIII

Resumo Abstract

Esta pesquisa avaliou o Programa de Aprimoramento Profissio- This study evaluated the Professional Enhancement Program of the
nal do Instituto de Saúde a partir da percepção dos egressos dos Health Institute based on the perception of the graduates from the
anos 2010 a 2016, considerando sua trajetória profissional e sua years 2010 to 2016, considering their professional trajectory and
inserção no mercado de trabalho, por meio de um estudo de na- their insertion in the labor market, through an evaluation study
tureza avaliativa que utilizou métodos quali-quantitativos para le- using qualitative and quantitative methods for data collection. The
vantamento dos dados. A análise do material obtido foi pautada analysis of the material obtained based on the Content Analysis,
pela Análise de Conteúdo, no que se refere à dimensão qualitativa, regard to the qualitative dimension, and by the Frequency Analysis
e pela Análise de Frequência dos dados quantitativos. Entre os of the quantitative data. Among the results, we found its importan-
resultados, destacam-se: a importância atribuída pelos egressos ce attributed by the graduates to the program in their professional
ao programa em sua formação profissional, em função do desen- training, due to the development of a critical view about the reality
volvimento de uma visão crítica sobre a realidade do ambiente de of the work environment and the skills to use important tools (such
trabalho e de habilidades para uso de ferramentas importantes as evaluation tools) at professional practice in the field of Public
(como instrumentos de avaliação, por exemplo) na prática profis- Health. Still in relation to training, data point to necessity to review
sional no campo da Saúde Coletiva. Ainda em relação à formação, the curricula of health graduations regarding the teaching of SUS
os dados apontam para a necessidade da revisão dos currículos principles, its logic of organization and functioning.
das graduações da área da Saúde quanto ao ensino dos princípios
do SUS, sua lógica de organização e funcionamento. Keywords: Health human resource training; Inservice training; Edu-
cation; Graduate.
Palavras-chave: Capacitação de Recursos Humanos em Saúde; Ca-
pacitação em Serviço; Educação e Pós-Graduação em Saúde.

I
Luiza Sterman Heimann (dirgeral@isaude.sp.gov.br) é médica sanitarista,
mestre em Saúde Pública pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e
em Saúde Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP). É diretora de De-
partamento Técnico de Saúde do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado
da Saúde de São Paulo.
II
Márcio Derbli (marcioderbli@isaude.sp.gov.br) é jornalista, Especialista em
Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e
diretor do Centro de Apoio Técnico-Científico do Instituto de Saúde.
III
Aparecida Natália Rodrigues (natalia@isaude.sp.gov.br) é formada em
Engenharia Civil, especialista em Saúde Pública pela Universidade de São
Paulo (USP) e assistente técnica de pesquisa do Núcleo de Formação e
Desenvolvimento Profissional do Instituto de Saúde.

|139
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução de São Paulo para estimular a formação de recur-


O Instituto de Saúde (IS), um dos Institutos sos humanos para atuarem no âmbito do Poder
de Pesquisa da Secretaria de Estado da Saúde Público, baseada no treinamento em serviço, sob
de São Paulo (SES-SP), tem como missão contri- supervisão de profissionais qualificados4,2.
buir para a formulação e avaliação de políticas A gestão do PAP era de responsabilidade
públicas de saúde no âmbito da SES-SP, contri- da Fundação do Desenvolvimento Administrati-
buir para a formação de profissionais para o Sis- vo (FUNDAP), criada nos anos 70 pelo governo
tema Único de Saúde (SUS) e prestar assessoria do Estado de São Paulo, com o objetivo de ser
visando responder às necessidades regionais e um órgão capaz de auxiliar na reformulação do
locais do sistema e da saúde da população. A sistema de administração, promover a constante
instituição desenvolve os seguintes programas atualização das práticas administrativas no setor
de formação profissional em Saúde voltada pa- público por meio da realização de atividades de
ra o SUS: Aprimoramento Profissional em Saúde ensino, pesquisa e assistência técnica de forma
Coletiva e em Avaliação de Tecnologia de Saúde, integrada. Em 2016, a FUNDAP foi extinta pelo
Mestrado Profissional, Estágios e CurSUS - Cur- governo estadual e a gestão do PAP foi assumida
sos de atualização para o SUS de curta duração. pelas diversas Secretarias de Governo.
O Programa de Aprimoramento Profissional O Programa de Aprimoramento Profissio-
(PAP) foi criado em 1979, pelo Decreto Estadual nal do Instituto de Saúde (PAP/IS) foi implanta-
nº 13.919. O PAP é definido como modalidade de do em 1979, com caráter teórico-prático e mul-
ensino de Pós-Graduação Lato Sensu e foi conce- tiprofissional, com o objetivo de formar recursos
bido como um instrumento do governo do Estado humanos (exceto profissionais médicos) para o

|140
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

desenvolvimento de Pesquisa em Saúde Coleti- O conteúdo programático do PAP/IS/ATS,


va4. A partir de 2009, com a publicação do Decre- aprovado pelas instâncias superiores, se desen-
to nº 55.004, a estrutura organizacional do IS foi volve em sete disciplinas: Introdução à Saúde
atualizada de acordo com as novas atribuições e Coletiva, Políticas Públicas, Introdução à Avalia-
competências da SES-SP advindas da implemen- ção de Tecnologias de Saúde, Determinação dos
tação do SUS-SP. Efeitos das Intervenções em Saúde, Pergunta de
O PAP/IS encontra-se estruturado para ser Investigação e Bases de Dados, Avaliações Eco-
desenvolvido no período de um ano, sendo dividi- nômicas, Protocolos Clínicos, Diretrizes Terapêu-
do entre atividades teóricas e práticas. Na dimen- ticas e Políticas de Cobertura.
são teórica, é realizado um curso composto pelas Embora o PAP/IS possa ser considerado um
seguintes disciplinas: Ciências Sociais em Saú- programa de sucesso, conforme alguns estudos
de; Políticas Públicas de Saúde; Epidemiologia e vêm apontando3,5, sua natureza jurídica sempre
Educação em Saúde, além de outras disciplinas foi objeto de polêmica, uma vez que sua legitimi-
oferecidas conforme as demandas do componen- dade enquanto título acadêmico não é facilmen-
te prático do programa
te reconhecida fora do âmbito do Estado de São
O componente prático do programa é esta-
Paulo. Desta forma, diversas instâncias governa-
belecido pela coordenação do PAP/IS, que nos úl-
mentais, inclusive o Instituto de Saúde, busca-
timos anos firmou uma parceria com o Conselho
vam a transformação do PAP em um Programa
de Secretários Municipais do Estado de São Pau-
de Especialização dentro dos moldes jurídicos e
lo (COSEMS/SP) para identificar demandas de
pedagógicos aceitos nacionalmente e validados
munícipios do Estado, que são eleitas como ob-
pelos órgãos de competência.
jetos para investigação e estruturar trabalhos de
A partir de 2015 a SES-SP organizou uma
campo, sob a supervisão dos pesquisadores do
comissão visando construir um projeto de Espe-
IS, para pesquisa e busca de soluções frente aos
cialização em Saúde que atendesse a todas as
problemas identificados. Desde 2009, o PAP/IS
modalidades contidas nos diversos Programas
atuou nos seguintes municípios: Embu das Artes
de Aprimoramento Profissional executados em
(2009-2012), Santos (2013) e Franco da Rocha
(2014-2017). seu âmbito.
Em 2014, o Núcleo de Análise e Projetos A extinção da FUNDAP acabou por catali-
de Avaliação de Tecnologias de Saúde (NAPATS) sar o processo de implementação dos cursos
do IS apresentou para a SES-SP e para a FUN- de Especialização, especialmente no IS. Assim,
DAP uma proposta ampliando o escopo do PAP/ a partir de 2017, o programa entrou em fase
IS com a inclusão da modalidade de Avaliação de transição adaptando sua configuração para
de Tecnologia de Saúde (ATS). O objetivo da no- o modelo de Especialização. No mesmo ano, o
va modalidade é a formação de profissionais programa de Especialização foi aprovado pelo
de saúde para atuarem com ATS nos diferentes Conselho Estadual de Educação e a próxima tur-
serviços e instâncias do SUS-SP, desenvolvendo ma, em 2018, receberá a titulação de Especia-
competências para a elaboração de pareceres lista em Saúde Coletiva.
técnico-científicos, de acordo com as diretrizes A implementação desta nova fase do pro-
do Ministério da Saúde para a incorporação de grama enseja, portanto, uma avaliação sobre
tecnologias no SUS. o impacto do PAP/IS na formação em Saúde e,

|141
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

especificamente sobre seu papel na formação de meio das redes sociais (Facebook e Messenger),
recursos humanos para o SUS. recebendo mais 21 respostas (19,09%). Egres-
O objetivo deste estudo foi avaliar a contri- sos que foram localizados e não responderam
buição do Programa de Aprimoramento Profissio- ao questionário representaram 10,0% (11) e os
nal (PAP/IS) na formação, na trajetória profissio- que não foram localizados 10,91% (12). A taxa de
nal e na inserção no mercado de trabalho dos questionários respondidos atingiu 83,63% (89).
egressos dos anos 2010 a 2016. O Questionário online foi enviado aos egres-
sos juntamente com um ofício, explicando os ob-
jetivos do estudo, o respeito aos preceitos éticos
Procedimentos metodológicos de pesquisa e solicitando a participação.
Trata-se de um estudo de natureza avaliati-
va que utilizou métodos quali-quantitativos para
levantamento dos dados. A análise do material Resultados
obtido foi pautada pela Análise de Conteúdo1 no Perfil dos egressos
que se refere à dimensão qualitativa e pela Análi- Pelo levantamento dos dados secundários,
se de Frequência dos dados quantitativos. foi possível constatar que a grande maioria dos
Como fonte primária de dados utilizou-se egressos no período de 2010 a 2016 foi formada
um Questionário online e como fonte secundária, por mulheres. Do total de 110, 90 (81,8%) são
a Ficha de Inscrição do processo de seleção para mulheres para apenas 20 (18,2%) homens. Em
o PAP/IS. relação à idade, 89 (80,9%) tinham de 20 a 29
Das Fichas de Inscrição foram coletados os anos, seguidos por 18 (16,4%) na faixa etária de
dados para definir o perfil sócio demográfico dos 30 a 39 anos, sendo dois (1,8%) entre 40 a 49
egressos. A partir do levantamento das fichas, e finalmente um (0,9%) na faixa de 50 ou mais.
identificou-se que, entre 2010 a 2016, 110 alu- A faixa etária que concentrou o maior número
nos do PAP/IS se formaram na área de Saúde de alunos, ou seja 80,9% foi a de 20 a 29 anos.
Coletiva e quatro, na área de Avaliação de Tecno- Isto se explica, em parte, por uma das principais
logia de Saúde. exigências do processo seletivo do PAP/IS até
O Questionário online foi composto por 20 2014, a saber, a conclusão do curso superior a, no
questões, sendo nove fechadas e 11 abertas, e máximo, dois anos. Posteriormente esta restrição
abordava as seguintes questões: percurso profis- quanto ao tempo de formação foi extinta.
sional e acadêmico após a conclusão do PAP/IS; O perfil acadêmico dos 110 ex-aprimoran-
avaliação sobre as disciplinas do programa e o dos do PAP/IS caracterizou-se de acordo com
trabalho de campo desenvolvido e sugestões pa- a natureza (pública ou privada), estado e muni-
ra o aperfeiçoamento do programa. cípio da instituição de ensino de graduação de
Na primeira tentativa de envio do questioná- que eram provenientes, da seguinte forma: 52,7%
rio online, 10,91% (12) dos e-mails retornaram, (58) provieram de universidades de natureza pri-
enquanto 22,73% (25) responderam prontamen- vada, contrapondo-se aos 47,3% (52) de institui-
te às questões. A segunda abordagem para lo- ções públicas de ensino.
calização dos egressos foi realizada via celular Entre as instituições de ensino menciona-
e telefone fixo, recebendo mais 43 (39,09%) de das, 77,3% (85) localizavam-se na capital de São
respostas. A terceira e última abordagem foi por Paulo, 9,1% (10) eram do interior de São Paulo,

|142
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

8,2% (9) de Santos, 1,8% (2) da Região Metropoli- definidas: a) Relevância: eleição da(s) disciplina(s)
tana de São Paulo e 3,7% (04) de outros estados considerada(s) prioritária(s) para o exercício pro-
da Federação, a saber: Acre (01), Paraná (01), fissional b) inserção no mercado de trabalho: co-
Bahia (01) e Sergipe (01). mo os conhecimentos adquiridos foram facilita-
Os cursos de origem dos egressos do PAP/ dores da inserção profissional, c) desempenho
IS apontaram para as seguintes frequências de no trabalho: o quanto a aquisição de habilidades,
áreas de concentração: 31,81% da Psicologia, conhecimentos e técnicas favoreceram a prática
29,09% da Enfermagem, 10% da Fisioterapia, profissional. d) processo de trabalho: em que me-
10% da Obstetrícia e 7,27% da Nutrição. dida os conhecimentos adquiridos subsidiaram a
Ocupação Profissional aprendizagem quanto à postura e raciocínio críti-
De acordo com os dados do Questionário, ve- co na atuação profissional.
rificou-se que 71,9% dos egressos afirmam atuar a) relevância:
na área da Saúde, sendo que 55,05% trabalham Entre as diferentes disciplinas ofertadas
diretamente, 13,48% fazem pesquisas ligadas à nos cursos do PAP/IS de 2010 a 2016, 10 fo-
Saúde e 3,37% ingressaram em Programas de ram citadas nominalmente ou indiretamente.
Residência Multiprofissional. Responderam tra- Neste último caso geralmente eram menciona-
balhar fora da área da Saúde 20,22% dos egres- das pelo nome do professor, ou designadas de
sos e apenas 5,61% afirmaram não trabalhar ou forma ligeiramente diferente da nomenclatura
estudar, enquanto 4,49% não responderam. oficial do programa ou mesmo por algum conte-
údo ou atividade da disciplina que permitia sua
Avaliação do PAP/IS pelos egressos
identificação.
- análise de conteúdo:
Na tabela a seguir, apresentam-se as disci-
Os resultados apresentados a seguir fo-
plinas citadas e o número total de menções:
ram obtidos pelo método da Análise de Conte-
údo, de acordo com Bardin1, das respostas às Tabela 1 – Percentual das disciplinas referidas no
questões abertas do Questionário que versa- total dos 89 questionários respondidos.
vam sobre os seguintes temas: (I) Formação Te-
órica: importância dos conteúdos teóricos das Nome da disciplina Nº %

disciplinas do PAP/IS, (II) Relevância do Traba- Políticas Públicas 35 39,3


Epidemiologia 30 33,7
lho de Campo para a formação e o exercício
Todas as disciplinas 24 29,9
profissional do egresso.
Educação e Comunicação 20 22,4
Para cada uma das perguntas foram defini-
em Saúde
das categorias de análise, em função da frequ- Ciências Sociais 17 19,1
ência das palavras chave identificadas, da forma Introdução à Saúde Coletiva 14 15,7
que se segue: Informação em Saúde 8 8,9
1. formação teórica Introdução à Avaliação de 3 3,3
Inicialmente procurou-se avaliar a relevân- Tecnologias de Saúde
cia para o exercício profissional atribuída pelos Práticas 2 2,2
egressos às disciplinas do PAP/IS. A frequência Metodologia 2 2,2
Gestão 1 1,2
das menções (diretas ou indiretas) ao nome das
Outras respostas 12 13,4
disciplinas foi relacionada a quatro categorias

|143
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Entre as disciplinas citadas, destacam-se Figura 1 – Percentuais de egressos em cor-


com maior frequência: “Políticas Públicas”, “Epi- relação com as áreas de atuação profissional.
demiologia”, “Educação e Comunicação em Saú-
de” e “Ciências Sociais”. Chama a atenção que
o conjunto das disciplinas foi citado por cerca de
30% dos entrevistados, sendo a terceira catego-
ria mais frequente.
Uma possível explicação para que o conjun-
to das disciplinas esteja entre as mais frequentes
citadas pelos egressos aponta para a percepção
sobre a inter-relação entre as disciplinas na cons-
trução pedagógica do programa, como ilustram
Foi possível perceber no discurso dos egres-
os seguintes excertos de respostas à questão
sos a importância atribuída às disciplinas do
sobre a disciplina de maior relevância no quadro
PAPS/IS para a inserção e o exercício profissional:
do PAPS/IS:
Todas elas (disciplinas), pois é preciso traba-
Cada disciplina proporcionou sua contribui- lhar na Saúde Pública de maneira integral,
ção. Estão interligadas dinamicamente e se interprofissional e intersetorial. Sendo assim,
entrelaçam a todo o momento na atuação todas as disciplinas oferecidas têm sido de
profissional. O que mais elas proporcionaram suma importância para meu exercício profis-
foi amplitude do pensamento crítico perante sional enquanto psicólogo e enquanto profis-
a política pública e tudo que permeia a rela- sional da saúde.
ção Estado-usuário-trabalhador SUS e a Re-
A fala em destaque, entre outras, demons-
de de Serviços como um todo
tra a relação que os egressos percebem sobre o
Todas as disciplinas foram importantes.
impacto das disciplinas em seu percurso profis-
Foi um conjunto de disciplinas que se com- sional em termos de “amplitude do pensamento
plementavam e proporcionava um olhar crítico” ou “olhar ampliado”.
ampliado.
c) desempenho no trabalho / d) processo
b) inserção no mercado de trabalho de trabalho:
A inserção na prática profissional foi avalia- A disciplina Políticas Públicas, citada em
da por meio da classificação dos egressos quan- maior frequência entre os egressos (39,3%), apa-
to à atividade profissional no momento da res- rece fortemente relacionada ao desempenho no
posta, uma vez que o local de atuação (área da trabalho e à visão crítica sobre os processos de
Saúde, fora da área, Pesquisa, etc) não necessa- trabalho.
riamente correspondia à área de inserção profis- O trecho a seguir destaca a aquisição de
sional. Para fins de análise, foram considerados conhecimento e sua relação com o desempenho
os grupos que atuam na Saúde, fora da Saúde, profissional e o processo de trabalho:
em Pesquisa, ou outras áreas. Políticas Públicas: Nos ajuda a entender a
A distribuição dos egressos por tipo de atu- complexidade das Políticas Públicas e os múl-
ação profissional está descrita na Figura 1. tiplos fatores que interferem, auxilia na nossa

|144
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

capacidade de tomar decisões mais coeren- atendimento ao indivíduo, família ou comuni-


tes, cientes das limitações e possibilidades. dade. Nos desperta para pensarmos continu-
Apesar de já terem se passado seis anos, as adamente as nossas práticas de Educação
disciplinas de Políticas Públicas de Saúde e em Saúde.
Epidemiologia por tratarem de assuntos que Epidemiologia, Educação em Saúde e Políti-
estão continuamente vinculados com o traba- cas Públicas, pois hoje atuo na construção de
lho da Vigilância Sanitária (...). programas e protocolos na Atenção Básica e
Políticas Públicas - visão crítica que promo- em paralelo atuo na Vigilância Epidemiológi-
veu reflexões sobre as ações de saúde. ca e na organização do Programa de Educa-
Na disciplina de políticas públicas para que ção Permanente municipal.
tivesse a oportunidade de estudar mais pro-
A quarta disciplina mais citada, Ciências
fundamente as leis, portarias e diretrizes co-
Sociais em Saúde (19,1%), é evocada como im-
mo um todo. (...).
portante para a construção do entendimento dos
A disciplina Epidemiologia, com 33,7% de conceitos de Saúde e Saúde Coletiva, forjando a
citações entre os egressos, apresenta forte rela-
visão crítica dos egressos que pode vir a subsi-
ção com as categorias desempenho no trabalho
diar seu desempenho profissional:
e processos de trabalho, tal como a disciplina Po-
Acredito que as disciplinas sobre Ciências So-
líticas Públicas.
ciais em Saúde, determinantes sociais, histó-
E a Epidemiologia permite a compreensão
ria do SUS, Humanização e Regionalização,
do processo-saúde doença das populações,
Educação em Saúde e Direitos Sexuais e Re-
sendo um instrumento muito importante para
produtivos foram as aulas mais importantes
o desenvolvimento de ações voltadas para a
por aprofundar conceitos com que eu já ha-
promoção e prevenção da saúde.
via tido contato na graduação e para conhe-
Epidemiologia: Auxilia nos processos de to-
cer conceitos que eu não havia aprendido.
mada de decisão, monitoramento e avalia-
Ciências Sociais em Saúde, Políticas Públi-
ção; (...)
cas, Epidemiologia. Todas as disciplinas per-
Epidemiologia e Políticas de Saúde, sem es-
tas não é possível entender o funcionamento mitem com que tenhamos um olhar sobre o
do sistema nem como analisar dados epide- que encontraremos na prática, o funciona-
miológicos em saúde. mento do sistema e também fornece emba-
samentos para que possamos criar melho-
A disciplina Comunicação e Educação em
rias no meio em que atuamos”.
Saúde não foi oferecida para todas as turmas
inseridas neste estudo. Entretanto, ela foi a ter- Finalmente, a quinta disciplina mais citada
ceira mais citada (22,4%), entre todas as discipli- (15,7%), Introdução à Saúde Coletiva foi conside-
nas, o que pode indicar o reconhecimento da sua rada como um elemento básico para a formação
importância na formação e no desempenho dos da capacidade crítica, além de subsidiar o de-
profissionais de saúde. sempenho profissional.
Educação em Saúde: Auxilia no atendimento Introdução a Saúde Coletiva: Essencialmen-
dos usuários e a ter mais clareza da diversi- te por ampliar nossa capacidade crítica e me-
dade de escuta que pode acontecer em um lhor entender os contextos (...).

|145
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Ressalto as seguintes disciplinas: Introdução Sim, a construção do trabalho Avaliação da


à Saúde Coletiva; Políticas Públicas de Saúde; Atenção Básica no Município do Embu das
Epidemiologia e a Oficina sobre Ferramentas Artes com ênfase nos processos de trabalho
SUPPORT para Políticas Informadas por Evi- e na qualidade da atenção foram essenciais
dências como as mais relevantes nesse pro- para conhecer o que se passava nas unida-
cesso, tanto de formação como para meu des e em especial com o trabalhador SUS,
exercício profissional atual, pois me deram quando ingressei na unidade sabia o que es-
subsídios para exercer a função que tenho ho- perar e como agir.
je e possibilitaram um conhecimento sobre a
Dentre os egressos que não trabalham na
Saúde Pública e o SUS que eu não tinha.
área da Saúde (20,22%), a experiência do campo
2 - relevância do trabalho de campo remeteu principalmente para o “posicionamen-
Entre os egressos que trabalham na área da to crítico sobre a Saúde enquanto cidadão” e a
Saúde, 55,05% destacou a importância da expe- “operacionalização de conceitos”. Embora estes
riência do trabalho de campo para a “vivência do respondentes não atuem na área, a vivência do
SUS”, “apropriação de técnicas e métodos”, “au- campo também foi aproveitada em seus campos
mento da visão crítica na atuação profissional” e de atuação profissional. Ao serem indagados so-
“consolidação do conteúdo teórico” que de algu- bre a contribuição dos conhecimentos adquiridos
ma forma impactaram em seu desempenho pro- no PAP/IS para seu desempenho profissional es-
fissional direta ou indiretamente. boçaram as seguintes respostas:
Parte dos egressos apontou como a expe-
Extremamente. Me fez atuar na prática, colo-
riência de campo antecipou situações encontra-
car meu conhecimento a prova, levantar pro-
das durante o exercício profissional, indicando
blemas situacionais, pensar em ferramentas
que a configuração do campo do PAP/IS tem
e construir instrumentos para resolução dos
conseguido aproximar os aprimorandos da rea-
problemas.
lidade do SUS.
Com certeza. Porque a análise que realizo
Sim, permitiu-me construir um conhecimento
de questões relacionadas à Saúde perpassa
de elaboração de planejamento estratégico
por muitos dos temas discutidos durante mi-
e investigação em saúde, que tenho utiliza-
nha formação no PAP e minhas ações/enca-
do na tentativa de produzir redes e linhas de
minhamentos são embasadas por todo este
cuidado e de analisar dados epidemiológicos
conhecimento.
no município em que atuo; em que a lógica
Sim. Por me fazer ver a Saúde de uma manei-
de Saúde ainda é em grande parte a do en-
ra mais ampla, não somente como ausência
caminhamento, e do psicólogo restrito ao
de doença.
consultório.
Foi muito relevante (o trabalho de campo), Finalmente, os egressos que atuam na área
meu grupo atuou diretamente na assistência da Pesquisa (13,48%) reconhecem a relevância
da Atenção Básica, por meios de questioná- da experiência de campo especialmente pela “vi-
rios. Hoje eu atuo justamente na AtençãoB- vência dos serviços e sistemas de saúde”, pelo
básica e o conhecimento adquirido me trou- “conhecimento adquirido” e, como o grupo ante-
xez um olhar diferenciado. rior, pela “operacionalização de conceitos”. Ao

|146
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

relacionarem o aprendizado no PAP/IS ao se de- Muito relevante. Porque por meio desse tra-
sempenho profissional respoderam que: balho percebi a necessidade da buscar por
Sim, porque pude ter a visão da dinâmica da evidência científica no tratamento dos pa-
gestão de saúde de uma cidade. cientes, e de questionar e obter respostas
Sim. Possibilitou ver de perto a realidade de buscando a individualidade de cada doença
um determinado território local, suas dificul- e o meio em que vive.
dades e potencialidades. Sim, obtive melhores resultados no monito-
De fundamental relevância, pois as reuniões ramento das necessidades de saúde do pa-
com o município nos deram a oportunidade ciente, visão mais ampliada e melhor análise
de conhecer e entender um pouco mais da das prioridades no âmbito da Saúde Coletiva.
realidade da situação de Saúde da popula- Sim, a realização do Produto do Trabalho de
ção da região, contexto que, acredito eu, não Campo foi muito importante, pois trabalha-
seria tão bem compreendido apenas com o mos com dados reais da Secretaria da Saúde.
estudos de artigos e sistematização de dados Com certeza. Por meio do Trabalho de Cam-
da área. Além de possibilitar um maior enten- po consegui aprender muito sobre constru-
dimento de como o SUS funciona de fato na ção de indicadores de Saúde e sua análise,
prática. Assim, esses aspectos permitiram o o que me fez gostar muito e querer ingressar
despertar de um olhar mais atento para bus- na carreira acadêmica.
ca de subsídios necessários na realização de Por outro lado, entre os que não conside-
trabalhos profissionais futuros. raram o PTC relevante para a trajetória profissio-
Ao final do PAP/IS, os aprimorandos elabo- nal, o entendimento sobre a experiência avaliava
ravam um Produto derivado do Trabalho de Cam- que o conhecimento adquirido poderia ter alguma
po (PTC). Para cada ano, a natureza do produto importância.
variava conforme as demandas municipais levan- Foi importante na minha trajetória acadêmi-
tadas por meio de Diagnósticos de Saúde e Con- ca, mas não consigo lincar com a atividade
dições de vida, Pareceres Técnico-Científicos e que exerço hoje.
Relatórios de Avaliações, por meio do Programa Não usei para nada aquilo. A construção foi
Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade exigente, mas o produto final não interfere na
da Atenção Básica (PMAQ). minha trajetória profissional.
A análise das respostas sobre a a relevân-
3 - formação profissional
cia da participação do egresso na elaboração do
As respostas sobre a importância do PAP/
produto do Trabalho de Campo apontou, principal-
IS na formação profissional dos egressos per-
mente, para a “compreensão do objeto de traba-
mitiram estabelecer três categorias de análise:
lho”, para o “trabalho com dados reais” e para o
(1) Importância, (2) Conhecimento e (3) Atuação
aprendizado de “técnicas”.
Profissional.
Entre os 79 egressos que responderam a
esta questão, 84,81% consideraram relevante a) importância
para a trajetória profissional ter participado das A relevância da formação pelo PAP/IS foi ana-
atividades de elaboração do produto, enquanto lisada a partir de uma escala partindo de “muito
11,39% discordaram da proposição. importante”, “importante”, “pouco importante”,

|147
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

“não importante” e “sem informação”, baseada Pública e conhecimentos direcionados à Pesqui-


na frequência dos conteúdos manifestos nas res- sa, como metodologia científica, por exemplo.
postas abertas ao Questionário on line anterior- A matriz de análise da categoria Conheci-
mente analisadas. mento derivada desta qualificação, encontra-se
A construção desta escala foi baseada explicitada na Tabela 1:
em respostas como: “(O PAP/IS) foi um divisor
Tabela 1 – Matriz de análise da categoria
no processo educacional entre a vida acadêmi-
Conhecimento
ca e o preparo para a vida profissional (...)” ou
“Para mim, foi um enorme prazer e uma exce- Categoria
AMPLIOU ADQUIRIU
“Conhecimento”
lente oportunidade de aprendizado no Instituto
SUS 23 (27,05%) 15 (17,64%)
de Saúde (...)”. O segundo índice foi definido a
Saúde Coletiva/
partir de conteúdos como: “O PAP/IS foi impor- Saúde Pública
27 (31,76%) 6 (7,05%)
tante para ampliar os conceitos da Saúde Cole- Pesquisa 3 (3,5%) 4 (4,7%)
tiva (...)” ou “Foi importante para compreensão
e reflexão sobre o SUS (...)”. Respostas como De modo geral, os dados indicam que os
“Acúmulo para a área de atuação.” foram inter- egressos ampliaram seus conhecimentos no PAP/
pretadas como “pouco importantes”, enquanto IS, e em menor grau, também adquiriram novos co-
nenhum egresso manifestou que o PAP/IS não nhecimentos. No que diz respeito à aquisição de
foi importante de maneira alguma. conhecimentos, os relativos ao SUS foram os mais
É bastante interessante notar que 97,2% mencionados (17,6%), seguidos pelos conhecimen-
das respostas indicam que o PAP foi muito im- tos relacionados à Saúde Coletiva (SC)/Saúde Pú-
portante (44,5%) ou importante (52,7%) para os blica (SP), com 7%. Quanto à ampliação do conheci-
egressos na sua formação profissional. Apenas mento, os relacionados à SC/SP são mais mencio-
1,3% mencionou ser pouco importante e a mes- nados (31,7%), seguidos pelo tema SUS, com 27%.
ma porcentagem não informou. O tema “Pesquisa”, embora em menor grau, tam-
bém foi mencionado, tanto como aquisição de co-
b) conhecimento
nhecimento (4,7%) quanto como ampliação (3,5%).
Quanto ao “Conhecimento”, a qualificação
Considerando a característica multiprofis-
das respostas foi baseada em falas relativas à
sional dos egressos, majoritariamente pertencen-
“aquisição” ou “ampliação de conhecimentos”,
tes à área da Saúde, os dados podem indicar que
“aquisição de novos conhecimentos”, ou ainda
os cursos universitários não conseguem apresen-
“ampliação de conteúdos aprendidos anteriormen-
tar aos alunos informações suficientes sobre o
te”. As respostas que não permitiam nenhuma in-
SUS e também sobre o campo da Saúde Coleti-
terpretação relacionada a pelo menos duas des-
va/Saúde Pública e que o PAP/IS tem contribuído
tas variáveis foram excluídas da análise.
para complementar esta formação.
Para qualificar o tipo de conhecimento, se-
A seguir, destacam-se três respostas que
ja ampliado ou adquirido, foram designadas três
ilustram, de maneira geral, a análise desta
variáveis, sempre a partir do conteúdo manifesto
categoria.
nas respostas. Desta forma, foi possível identifi-
car conhecimentos relacionados ao Sistema Úni- Participar do Programa de Aprimoramento
co de Saúde (SUS), à Saúde Coletiva ou Saúde em Saúde Coletiva no IS foi uma experiência

|148
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

enriquecedora e importante para comple- de campo e convívio com outros profissionais de forma
mentar a minha formação. Hoje tenho uma interdisciplinar na área de Saúde Pública”
visão mais crítica e reflexiva sobre a Saúde c-2. inserção.
Pública no Brasil, devido ao aprendizado ad- O termo “Inserção” diz respeito ao próprio
quirido durante o Aprimoramento. ingresso profissional no mercado de trabalho e
Apesar do pouco contato que tive com a a como o PAP/IS pôde contribuir neste sentido.
área durante a graduação, não foi possível Neste tópico, 11,23% dos respondentes afirmam
compreender as especificidades e particu- que o programa foi importante tanto para efetiva
laridades da Saúde Coletiva, mas me inte- inserção no mercado, como para se diferenciar
ressei bastante e me despertou uma vonta- em futuros processos seletivos, como ilustram
de de trabalhar na área. Com o PAP/IS foi as respostas abaixo:
possível aprender muito mais sobre Saúde,
Determinante para aquisição de conhecimen-
Saúde Pública, Saúde Coletiva e o SUS, in-
to teórico sobre o SUS e título profissional pa-
clusive, percebendo e entendendo que seria
ra aprovação em residência multiprofissional
possível trabalhar na intersetorialidade en-
e contratação por O.S.
tre Saúde e Educação.
Foi fundamental para que eu pudesse atuar
(...) Ter passado a graduação sem discutir
na Atenção Básica e aliar o campo clínico às
Saúde enquanto direito foi uma marca triste,
Políticas Públicas.
apesar do respeito e carinho que tenho pe-
Aquisição de conhecimentos específicos da
la minha formação e instituição. Não tenho
área, aumento da rede de relacionamento
dúvidas que o Aprimoramento me conectou
profissional, obtenção de título como diferen-
com esta discussão e enriqueceu minha for-
cial no CV.
mação profissional/cidadã.
c-3. prática
c) atuação profissional A variável “Prática” diz respeito à postura
A análise qualitativa das respostas à ques- profissional, visão crítica e a própria atuação
tão sobre a importância do PAP/IS para a atua- profissional dos egressos. Notadamente, estes
ção profissional permitiu a criação de cinco va- parecem ser o maior impacto do PAP/IS na for-
riáveis para interpretar qual tipo de qualificação mação profissional dos egressos, uma vez que
profissional foi mencionada em maior frequência, 33,7% mencionou a importância do PAP para sua
a saber: c.1. processo, c.2. inserção, c.3. práti- prática profissional, conforme relatos a seguir:
ca, c.3. militância e c.4. técnica. Foi ótimo, auxiliou no entendimento sobre a
c-1. processo construção do SUS, as políticas, o manejo e
A variável “processo” considerou respostas me apresentou um olhar diferenciado que in-
que mencionassem questões referentes ao tra- clui a gestão do SUS, na minha prática de
balho em equipe e com equipes multidisciplina- trabalho consigo colocar esse olhar e gerar
res na atuação profissional do egresso. No total discussões para o fortalecimento do SUS.
da amostra, 12,35% dos egressos entenderam Acredito que minha experiência no PAP/IS foi
que o PAP/IS teve um impacto positivo neste sen- importante para me aproximar mais das Po-
tido, como ilustra a seguinte resposta: “(...) contri- líticas Públicas em Saúde, sensibilizar meu
buiu para minha formação profissional com experiência olhar quanto à avaliação dos serviços de

|149
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Saúde Pública e aprimorar meu olhar para o Foi uma experiência enriquecedora, mos-
seguimento das diretrizes e princípios do SUS trando a importância de trabalhar com o Sis-
na atuação como profissional da rede. tema Público por meio de evidências cientí-
Manter o foco na Saúde Coletiva sempre foi ficas, para garantir mais qualidade na toma-
desafiador, ainda é. Acredito que o PAP/IS me da de decisão.
ajudou a entrar numa unidade de saúde en- De modo geral, a análise das respostas pe-
xergando com outros olhares e não só com la categoria “Atuação Profissional” indicam que
os saberes práticos da Enfermagem. o maior impacto do PAP/IS se deu na postura e
visão crítica dos egressos e, consequentemente,
c-4. militância
no próprio desempenho profissional.
A variável “militância”, relacionou-se ao en-
gajamento dos egressos nos movimentos sociais 4 - sugestões para o PAP/IS
Em função de questão do Questionário on
ou outras organizações ligadas ao SUS ou à Saú-
line em que se solicitou a apresentação de su-
de Coletiva. Apenas 7,8% mencionaram direta-
gestões para o aperfeiçoamento do PAP/IS a par-
mente algum tipo de preocupação neste sentido,
tir da perspectiva da experiência profissional dos
como ilustrado a seguir:
egressos, emergiram as seguintes categorias de
(...)Tive a impressão que o Aprimoramento
análise quantitativa:a) mais prática, b) metodolo-
me reconectou com um processo pessoal de gia pedagógica-participativa, c) campo/prática e
confirmação da minha escolha profissional, d) mais teoria.
por uma carreira na área da Saúde, essen-
a) mais prática
cialmente por colocar o SUS em discussão
A primeira categoria, “mais prática”, circuns-
e possibilitar a nós aprimorandos(as), pensar
creveu as 15 menções (a que porcentagem este
nossa formação para atuação nesse sistema.
número de respostas corresponde? referentes à
O SUS, por vezes, traduz no seu cotidiano as
necessidade, segundo os egressos, de mais ati-
limitações, potências e possibilidades da so-
vidades práticas em detrimento dos conteúdos
ciedade que estamos vivendo, construindo e
teóricos do PAP/IS. Pela ótica dos respondentes,
a que pretendemos ter um dia.(...)
a experiência do Aprimoramento seria mais pro-
(...) O PAP/IS contribuiu para que eu me tor-
veitosa, caso pudessem ter mais contato com
nasse uma militante do SUS. profissionais, serviços e gestores, como corrobo-
ram as seguintes respostas:.
c-5. técnica
Em relação à “Técnica”, aqui entendida co- Indicaria mais contato no dia a dia do profis-
mo processos ou instrumentos específicos, ape- sional de Saúde Pública e dos seus pacien-
tes, ou seja mais prática e não apenas teoria.
nas 2,2% a mencionaram, como se segue:
Ter mais disciplinas práticas, realizar mais
O PAP/IS foi uma oportunidade de trabalhar
trabalhos dentro da realidade do SUS e com
com uma equipe multiprofissional e de enten-
os trabalhadores do SUS .
der algumas análises que podem ser feitas
com os bancos de dados do SUS. Eu já me b) metodologia pedagógica-participativa
interessava por análise de bancos de dados A categoria “Metodologia Pedagógica-
antes do PAP e continuo nessa área. -Participativa” se refere, de modo geral, às

|150
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

sugestões que englobavam as relações esta- trabalhos aplicados que possam melhorar a
belecidas entre o corpo docente e discente, a eficiência dos serviços públicos de saúde.
configuração da grade de disciplinas e sua coe-
rência interna. Dentro deste escopo, 14 egres- 5 - indicação para o PAP/IS
sos (porcentagem?) apontaram elementos que Uma das perguntas procurou investigar a
tendência dos egressos sobre indicar ou o não
julgam demandar melhorias, tal como descrito
o PAP/IS para outros profissionais. A totalidade
a seguir:.
dos respondentes (79) respondeu positivamente
Eu sugiro que as aulas sejam melhor estrutu-
à questão.
radas e a relação entre professores, orienta-
dores e alunos seja revista de alguma forma,
considerando os alunos como profissionais Considerações finais
formados que estão ali para se aprimorar e A realização deste levantamento teve como
realmente aprender, permitindo que os alu- principal razão, a importância de avaliar o Progra-
nos desempenhem um papel mais ativo na ma de Aprimoramento Profissional do Instituto
construção do conhecimento e na elabora- de Saúde pela ótica da experiência profissional
ção do trabalho. dos seus egressos, especialmente no momento
c) campo/prática em que o programa vem passando por reformula-
A terceira categoria diz respeito ao campo e ções, visando sua mudança de status para Espe-
à prática profissionais, embora de modo diferen- cialização, condição conquistada em 2017 e que
te da primeira, uma vez que foi possível distinguir será efetivada em 2018.
em oito (08) enunciados ênfases em demandas Os dados levantados pelo Questionário per-
para suprir o desconhecimento sobre o SUS e su- mitiram avaliar que a instituição tem conseguido
as características. organizar e oferecer o PAP/IS de forma alinhada
à perspectiva de sua missão institucional, ou se-
Ter mais contato com a prática, não só na
ja, voltar-se à formação de quadros capacitados
área de saúde geral, mas também na área
para atuar no SUS a partir dos princípios funda-
de saúde mental.
dores do sistema.
Mais vivência em campo, aprofundar a histó-
De modo geral, destaca-se a importância
ria do SUS.
atribuída pelos egressos do PAP/IS em sua for-
d) mais teoria mação profissional desenvolvendo visão crítica
A última categoria, em oposição à primeira e sobre a realidade encontrada no ambiente de
à anterior, sugere o aumento da carga teórica do trabalho e habilidades para uso de ferramentas
curso, refletindo a necessidade de complementa- importantes na prática profissional. Ainda em re-
ção da formação básica em Saúde Coletiva. lação à formação, os dados apontam para a ne-
Aumentar a grade do curso com mais mate- cessidade da revisão dos currículos dos cursos
rias e trabalhos referentes a Saúde Pública. de Graduação na área da Saúde no que se refere
Aumentar a carga horária de cursos de Epide- ao ensino dos princípios do SUS, sua lógica de
miologia, Bioestatística e Avaliação Econômi- organização e funcionamento.
ca e Política de Cobertura. Trabalhar com os O PAP/IS vem desenvolvendo de maneira
dados estatísticos disponíveis e desenvolver satisfatória a inserção dos seus participantes na

|151
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

tríade serviço, ensino e pesquisa, como demons- Referências


tra a presença de cerca de 72% dos egressos 1- Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70 Ltda,
19772- FUNDAP – Fundação do Desenvolvimento Adminis-
nas três áreas de atuação, assim como o reco-
trativo. Programa de Aprimoramento Profissional – Manual
nhecimento da importância do programa na for-
de Procedimentos Técnicos e Administrativos. São Paulo:
mação da visão crítica e no embasamento teóri- Edições Fundap; 2006
co-prático pelos egressos. 3-FUNDAP – Fundação do Desenvolvimento Administrativo.
Finalmente, destaca-se a configuração pe- Problemática dos Recursos Humanos em Saúde no Estado de
dagógica do PAP/IS, privilegiando a formação São Paulo – relatório final. São Paulo: Edições Fundap; 1992
teórica-prática de modo a propiciar aos aprimo- 4-INSTITUTO DE SAÚDE. Secretaria de Estado da Saúde de
São Paulo. Aprimoramento em saúde coletiva: reflexões.
randos uma inserção no SUS, como observado-
São Paulo: Instituto de Saúde; 2000
res críticos e participantes das ações, garan-
5- Sancha CCM. A trajetória dos egressos do Programa de Apri-
tindo a supervisão e acompanhamento do de- moramento Profissional: quem são e onde estão os enfermei-
senvolvimento das atividades ao longo de todo ros, fisioterapeutas e psicólogos dos anos de 1997 e 2002
programa. [Dissertação]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2008

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Participação social em saúde no Brasil: elementos para


compreensão de sua dinâmica
Health social participation in Brazil: elements for the understanding of its dynamics

Virgílio Cézar da Silva e OliveiraI, Tania Margarete Mezzomo KeinertII,


Adilio Renê Almeida MirandaIII, Silvia Ferreira Caproni GonçalvesIV

Resumo Abstract

Este artigo possui como propósito central contribuir para o aper- The main purpose of this article is to improve the debate on health
feiçoamento do debate sobre a participação social em saúde no social participation in Brazil. Specifically, it seeks to discover the
Brasil. Especificamente, busca-se conhecer os espaços democrá- democratic spaces and discuss health participation in Brazil, focu-
ticos e discutir aspectos importantes para compreensão da parti- sing, in particular, on: actors that make it viable; arenas where it
cipação em saúde no Brasil, enfocando, em especial: atores que develops and elements capable of characterizing it preliminarily:
a viabilizam; arenas nas quais ela se desenvolve e elementos ca- types, levels, possibilities and limits of health participation. Social
pazes de caracterizá-la: tipos, níveis, possibilidades e limites. Em actors that make the participation in health in Brazil possible cons-
relação aos atores sociais que viabilizam a participação em saúde titute a multiple and complex network of democratic responsibility,
no Brasil pode-se afirmar que constituem uma rede múltipla e com- not exempt of contradictions. In regards to where it takes place,
plexa de accountability democrática, não isenta de contradições. the main institutional arrangements that allow for social participa-
Sobre as arenas, os principais arranjos institucionais que possi- tion within the Unified Health System (SUS) are the councils and
bilitam a participação social no âmbito do SUS são os conselhos health conferences, that aim to operate in favor of the co-manage-
e as conferências de saúde que visam operar em prol da coges- ment of public policies and that integrate systems that also have
tão de políticas públicas e integram sistemas que contam, ainda, plans (policies) and public funds. Finally, the categories of analy-
com planos (políticas) e fundos financeiros públicos. Finalmente, sis, which were pre-selected in bibliographical sources, allow the
quanto às categorias de análise, selecionadas a priori em fontes understanding of: the types of participation; the levels of autonomy
bibliográficas, observa-se que elas são capazes de favorecer a of leaders and leaders; the possibilities of participatory ventures;
compreensão: dos tipos de participação; dos níveis de autonomia limitations and risks, which reveal possible misrepresentations.
de dirigidos e dirigentes; das possibilidades de empreendimentos
participativos; de suas limitações e de seus riscos. Keywords: Health social participation; Actors and institutional ar-
rangements; Categories of analysis.
Palavras-chave: Participação social em saúde; Atores e arranjos
institucionais; Categorias de análise.

I
Virgílio Cézar da Silva e Oliveira (virgilio.oliveira@ufjf.edu.br) é Administrador de Federal de Alfenas (IS/UNIFAL) e do Observatório de Práticas Participativas
Público, Mestre e Doutor em Administração pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal
em Administração da Universidade Federal de Lavras é Professor da Faculda- do Espírito Santo (UFES).
de de Administração e Ciências Contábeis da Universidade Federal de Juiz de III
Adílio Renê Almeida Miranda (adilio.miranda@unifal-mg.edu.br) tem Gradua-
Fora (UFJF) e Pesquisador do Grupo Analítico em Saúde (GAS) do Instituto de ção, Mestrado e Doutorado em Administração pela Universidade Federal de
Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Alfenas (IS/UNIFAL) e Lavras, é Professor e Co-Coordenador do Grupo Analítico em Saúde (GAS)
do Observatório de Práticas Participativas da Universidade Federal de Minas da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL) e membro do Observatório de
Gerais (UFMG) e da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Práticas Participativas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da
II
Tania Margarete Mezzomo Keinert (taniak@isaude.sp.gov.br) é Administra- Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
dora Pública e Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Mestre em Adminis- IV
Silvia Ferreira Caproni Gonçalves (silvia.goncalves@unifal-mg.edu.br) é peda-
tração Pública e Governo e Doutora em Administração pela Fundação Getúlio goga, graduada em Administração Escolar Pós-graduada em Metodologia do
Vargas, com Especialização em Economia Pública pela Universitá Commercia- Ensino e Mestre em Gestão Pública e Sociedade pelo Instituto de Ciências
le Luigi Bocconi na Itália e Especialização em Administração Municipal e Re- Sociais de Americana, Técnica em Assuntos Educacionais e Pesquisadora do
gional pela University of Haifa, de Israel; Pesquisadora do Instituto de Saúde Grupo Analítico em Saúde (GAS) da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL) e
de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e do Grupo Analíti- Pesquisadora do Observatório de Práticas Participativas da Universidade Fede-
co em Saúde (GAS) do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universida- ral de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

|153
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução Atores sociais que viabilizam a participação em


A temática da participação social, também saúde no Brasil
denominada “participação comunitária” no âmbito O estudo sobre os instrumentos de contro-
do Sistema Único de Saúde (SUS), adquire espe- le social frente às ações dos poderes instituídos
cial relevância dado o fortalecimento das relações apresenta categorias de entendimento que favo-
entre sociedade e Estado por meio da ampliação recem a identificação dos atores sociais que via-
e diversificação dos canais de participação. Con- bilizam a participação social em saúde no Brasil.
sidera-se essencial, portanto, conhecer tais espa- Como salienta Bodernave2, a participação
ços democráticos e discutir aspectos importantes possui duas bases complementares: um compo-
para compreensão da participação em saúde no nente afetivo e outro instrumental. Com relação
Brasil, enfocando, em especial: (1) atores que a ao primeiro, afirma-se que a participação vincula-
viabilizam; (2) arenas nas quais ela se desenvolve -se ao prazer em realizar atividades com outras
e (3) elementos capazes de caracterizá-la prelimi- pessoas. Quanto ao segundo, acredita-se que
narmente: tipos, níveis, possibilidades e limites. a realização de atividades participativas exigem
Tais aspectos são apresentados, nesta ordem, no esforços coletivos para que sejam desenvolvidas
decorrer do texto. Depreende-se do colocado an- de modo eficaz e eficiente. A participação afetiva
teriormente, que se trata de um texto de natureza vincula-se, em primeiro plano, a eventos cotidia-
teórico-conceitual cujo objetivo é contribuir para o nos, de interação face a face ou comunitária. A
aperfeiçoamento desse debate, ainda que conte participação instrumental, por sua vez, associa-
com elementos de pesquisa de natureza docu- -se à combinação contemporânea de esforços,
mental, tais como leis, decretos e regulamentos. que tende a exigir mediações institucionais e que

|154
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

possui potencialidades superiores à ação singu- No que diz respeito à participação comuni-
lar, individual. tária e à accountability democrática, os atores
Em relação aos instrumentos de controle, essenciais são aqueles que interagem em con-
Behn destaca que os sistemas tradicionais de
1
selhos intra-municipais (conselhos gestores), mu-
accountability foram concebidos para estabelecer nicipais, intermunicipais, estaduais e Conselho
a confiança pública na probidade administrativa Nacional de Saúde, representando o governo,
e, no contexto de reforma dos aparelhos estatais, prestadores de serviços de saúde, profissionais
fez-se (e faz-se) necessário sedimentar a confian- do setor e usuários5.
ça pública no desempenho governamental. Já a Os segmentos mencionados podem abar-
accountability democrática deve permitir que os car representantes de associações de portado-
cidadãos participem do debate sobre a escolha res de patologias, de pessoas com deficiência,
das metas, do acompanhamento e avaliação da entidades indígenas, movimentos de mulheres,
consecução delas. Portanto, quatro perguntas se negros, entidades de aposentados e pensionis-
apresentam à sociedade: (1) quem decidirá quais tas, entidades congregadas de sindicatos, cen-
resultados devem ser produzidos?; (2) quem de- trais sindicais, confederações e federações de
ve responder pela produção desses resultados?; trabalhadores urbanos e rurais, entidades de de-
(3) quem é responsável pela implementação do fesa do consumidor, organizações de moradores,
processo de accountability?; e (4) como irá fazer entidades ambientalistas, organizações religio-
funcionar esse processo de accountability? Res- sas, trabalhadores da área da saúde, associa-
postas efetivas não serão encontradas sem o en- ções, sindicatos, federações, confederações e
volvimento cidadão em processos públicos. conselhos de classes, comunidade científica, en-
Os aspectos citados, associados aos princí- tidades públicas, hospitais universitários e hospi-
pios da descentralização e da participação social tais provedores de meios para estágio, pesquisa
(que nortearam a redação do texto constitucional e desenvolvimento, entidades patronais, entida-
de 1988), agregaram atores diversos ao sistema des dos prestadores de serviço de saúde e repre-
nacional de saúde e reposicionaram os municí- sentantes do governo, dentre outros movimentos
pios como espaços relevantes para a configura- sociais e populares organizados14.
ção e reconfiguração de políticas públicas, como
destacam Keinert e Oliveira13.
No contexto da participação instrumental e Arranjos institucionais que materializam a
da accountability em moldes mais convencionais, participação em saúde no Brasil
destaca-se a atuação de um exército de servido- Os principais arranjos institucionais que
res, no âmbito do Ministério da Saúde, das Se- possibilitam a participação social no âmbito do
cretarias Estaduais e Municipais de Saúde, dos SUS são os conselhos e as conferências de saú-
Consórcios Intermunicipais de Saúde4 e, ainda, de. Esta seção busca detalhá-los, de modo breve.
das Comissões Intergestores Bipartite e Tripar- Embora o formato institucional “conselho”
tite, que são instâncias de negociação e pactu- seja observável no Brasil desde o período colo-
ação voltadas aos elementos administrativos, nial11, durante o processo de regulamentação
financeiros e operacionais do Sistema Único de do texto da Constituição de 1988 eles ganha-
Saúde. Tais órgãos possuem, respectivamente, ram uma inédita relevância, pois foram percebi-
abrangência estadual e federal3. dos como instrumentos capazes de viabilizar os

|155
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

princípios da descentralização e da participação 2015, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es-


social. Outros meios, de menor inserção nos ní- tatística (IBGE)12, 99,7% das localidades brasileiras
veis subnacionais, notadamente o orçamento possuíam, na data do diagnóstico, conselho munici-
participativo e os fóruns temáticos, também fo- pal de saúde. Cumpre mencionar que todos os es-
ram legitimados pela Carta Magna, como obser- tados brasileiros também apresentam conselhos,
vam Paula e Keinert18. de natureza tetrapartite paritária e deliberativa.
Os conselhos são órgãos colegiados, de na- De modo complementar às ações dos con-
tureza permanente e deliberativa, presentes nos selhos, as conferências podem ampliar o diálogo
três níveis da federação, que devem operar em social nos diversos segmentos de políticas públi-
prol da cogestão de políticas públicas e do con- cas. No contexto de referência deste artigo, elas
trole social das ações dos poderes instituídos. representam fóruns para avaliação da saúde pú-
Eles integram sistemas de gestão que contam, blica, para proposição de diretrizes e para formu-
ainda, com planos ou políticas (que destacam lação da política de saúde nas três esferas de
premissas e prioridades de ação em médio e lon- governo. Sua periodicidade é quadrienal14.
go prazo) e fundos financeiros públicos. As conferências são iniciadas pelo diálogo
Especificamente no caso da saúde, seus pro- em ampla base municipal, a partir do qual priori-
pósitos se voltam ao acompanhamento da saúde dades, diagnósticos e propostas (sintetizadas em
da população, às prioridades de intervenção para relatórios) são encaminhadas ao nível estadual,
proteção e recuperação da saúde, à formulação de pelos delegados. Novas sínteses e novos repre-
diretrizes e estratégias para atuação do sistema pú- sentantes seguem para o patamar federal, pois,
blico de saúde (o que abarca planejamento, pactua- nessa instância, novas linhas de ação serão con-
ções e gestão orçamentária), ao acompanhamento cebidas para todo o Sistema Único de Saúde. Per-
e à avaliação de ações e ao processamento de in- cebe-se, portanto, que esse esforço de engenha-
formações para a realização de seus fins, em par- ria institucional é capaz de combinar participação
ceria e sinergia com outros órgãos gestores15. direta e representação, operando contra um dos
Na saúde, de forma mais intensa do que em grandes males das democracias de massa que é
outros segmentos, os conselhos transcendem os o tênue engajamento popular em processos públi-
perímetros municipal, estadual e federal, admitin- cos. Dito de outro modo, a participação política,
do formatos locais e distritais. Os primeiros pos- por meio de instrumentos como estes, pode dividir
sibilitam maior proximidade entre a comunidade, espaço com a participação meramente eleitoral.
suas organizações e os serviços de saúde. Os Em um passado recente, percebe-se que o
demais se vinculam a uma região ou distrito sani- Brasil dinamizou a realização de conferências em
tário, que congregam unidades de saúde e comu- múltiplos segmentos de políticas públicas. Entre
nidades que guardam entre si certa identidade 2003 e 2006, 43 eventos foram realizados, sen-
geográfica, socioeconômica e epidemiológica14. do 38 nacionais e 5 internacionais. Apresentaram
Outro atributo que chama atenção em relação em sua primeira edição 16 conferências. Em con-
aos conselhos de saúde, quando comparados aos junto, cerca de dois milhões de cidadãos foram
demais conselhos de direitos, é o seu grau de ins- mobilizados19. Ao longo de sua história, o Brasil
titucionalização entre os municípios brasileiros. De promoveu 15 Conferências Nacionais de Saúde
acordo com informações da pesquisa Perfil dos Es- (CNS), cujas edições, anos e temas encontram-
tados e dos Municípios Brasileiros, publicizada, em -se abaixo, no Quadro 1:

|156
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Quadro 1 – Edição, ano e tema das Conferências Nacionais de Saúde

Edição e ano Temas das conferências nacionais


1ª CNS (1941) Situação sanitária e assistencial dos estados
2ª CNS (1950) Legislação referente à higiene e à segurança do trabalho
3ª CNS (1963) Descentralização na área de saúde
4ª CNS (1967) Recursos humanos para as atividades em saúde
Implementação do sistema nacional de saúde. Programa de saúde materno-infantil. Sis-
5ª CNS (1975) tema nacional de vigilância epidemiológica. Programa de controle das grandes endemias.
Programa de extensão das ações de saúde às populações rurais
Situação atual do controle das grandes endemias. Operacionalização dos novos diplomas
6ª CNS (1977) legais básicos aprovados pelo governo federal em matéria de saúde. Interiorização dos
serviços de saúde. Política nacional de saúde
7ª CNS (1980) Extensão das ações de saúde por meio dos serviços básicos
8ª CNS (1986) Saúde como direito. Reformulação do sistema nacional de saúde. Financiamento setorial
9ª CNS (1992) Municipalização é o caminho
Saúde, cidadania e políticas públicas. Gestão e organização dos serviços de saúde. Con-
10ª CNS (1996) trole social na saúde. Financiamento da saúde. Recursos humanos para a saúde. Aten-
ção integral à saúde
Efetivando o SUS: acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle
11ª CNS (2000)
social
Saúde: um direito de todos e um dever do Estado. A saúde que temos, o SUS que que-
12ª CNS (2003)
remos
13ª CNS (2007) Saúde e qualidade de vida: política de Estado e desenvolvimento
Todos usam o SUS! SUS na seguridade social - política pública, patrimônio do povo bra-
14ª CNS (2011)
sileiro
15ª CNS (2015) Saúde pública de qualidade para cuidar bem das pessoas: direito do povo brasileiro
Fonte: Conselho Nacional de Saúde, 2011; 2015.

A observação dos temas das conferências Categorias de análise para compreensão da


revela que foram dedicadas a pontos-chave do participação em saúde no Brasil
sistema de saúde em diferentes décadas. É dig- As categorias analíticas inferidas da litera-
no de nota a pluralidade de pautas e a percepção tura versam sobre os tipos, níveis, objetivos (que
da descentralização e da interiorização como ne- expressam suas possibilidades), obstáculos (que
cessidades agudas. Destaca-se, ainda, a impor- exprimem seus limites) e os riscos da participa-
tância da 8ª conferência que, em 1986, estabe- ção (que manifestam desvirtuamentos possíveis).
leceu importantes premissas para o texto consti- Ao analisar a situação dos governos, na-
tucional de 1988. cionais ou regionais, Nogueira16 os percebe sob
No ano de 2017, três conferências nacio- quatro fontes de demandas, interesses e reivin-
nais ligadas à área de saúde estão programadas, dicações: o mercado, a sociedade civil e os pla-
a saber: 2ª Conferência Nacional de Saúde das nos: transnacional e subnacional. As reações tí-
Mulheres, 1ª Conferência Nacional de Vigilância picas às pressões: transnacional e subnacional
em Saúde e 1ª Conferência Nacional Livre de Co- são, respectivamente, a abertura econômica e a
municação em Saúde7. descentralização. Os anseios por lucratividade,

|157
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

característicos do mercado, e pela afirmação de favor de posições mais pragmáticas, voltadas à


direitos, característicos da sociedade civil, encon- resolução de problemas situados na fronteira en-
tram respostas públicas em privatizações e em tre o público e o privado. Assim, a combinação
oportunidades de participação. Entre os tipos de de esforços para a cogestão de políticas públi-
participação que coexistem, o autor identifica as cas pode traduzir-se em cooptação por meio da
formas: assistencialista, corporativa, eleitoral e qual demandas pontuais são atendidas em troca
política. Há, ainda, uma modalidade que pode flo- de apoio político ou em transferência de respon-
rescer em espaços de participação institucionali- sabilidades com a inadequada desoneração de
zada: a participação gerencial. órgãos ou atores.
Observa-se que os elementos dessa tipolo- Um novo conjunto de categorias é capaz
gia podem caracterizar a transcendência de do- de expressar níveis de participação, isto é, de
mínios restritos para domínios coletivos. Nesse revelar a centralização ou não das decisões en-
sentido, a participação assistencialista é notada tre elites dirigentes e coletivos dirigidos2. Em um
em todas as épocas, como produto da natureza primeiro grau (informação/reação), dirigentes in-
gregária do homem. Ela se materializa em inicia- formam aos membros da organização sobre as
tivas de auxílio mútuo, como o mutirão, e pre- decisões já tomadas. Em alguns casos, a rea-
tendem minimizar o infortúnio, otimizar recursos ção dos membros é levada em conta pelos diri-
comunitários e atenuar conflitos. A participação gentes e, em outros, não é sequer considerada.
corporativa vincula-se à satisfação de interesses Em consultas facultativas a administração pode
particulares. Ela é excludente em alguma medida, (se e quando quiser), ouvir o coletivo, solicitando
pois beneficia grupos ou classes. No cenário das críticas, sugestões ou informações para solução
democracias pluralistas contemporâneas, sua de algum problema. Em consultas obrigatórias os
expressão é vigorosa, assim como a percepção membros devem ser ouvidos, embora a decisão
de sua legitimidade. Há a participação eleitoral, final pertença à elite dirigente. Em contextos de
que busca interferir nos rumos de grandes cole- elaboração/recomendação, os integrantes do
tividades. Por meio dela, os direitos políticos ga- coletivo constroem propostas e recomendam
nham forma e significado. Todavia, sua mecânica medidas que a administração aceita ou rejeita.
limita-se, na maioria das vezes, ao voto, para que Contudo, ela deve sempre justificar seu posi-
o recurso da representação constitua câmaras cionamento. Em iniciativas de cogestão as deci-
deliberativas em todos os níveis da federação. sões de uma organização são compartilhadas.
A participação de natureza política pode ser con- Os administrados exercem influência direta na
siderada a forma mais refinada de engajamento eleição de planos de ação. Comitês e conselhos
social. Ela amplia as possibilidades da partici- são formatos organizacionais que viabilizam es-
pação eleitoral, pois pressupõe atores coletivos se nível de participação. Quando levados a ca-
envolvidos em processos de interesse geral, de bo, processos de delegação entregam aos ad-
modo que o poder possa ser descentralizado. Ar- ministrados autonomia em certos campos da
ticulações sustentadas por valores partilhados e organização. A administração define perímetros
por lastro histórico operam para a legitimidade dentro dos quais os membros possuem comple-
dessa modalidade de participação. A participa- ta autoridade. Não necessitam, portanto, con-
ção gerencial, por fim, é produto do esvaziamen- sultar superiores para decidirem. Finalmente, na
to do conteúdo ético-político da participação em autogestão todo o coletivo determina objetivos,

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

escolhe meios e estabelece controles pertinen- contemporâneos de poder, que devem subordi-
tes, sem referência a uma autoridade externa. nar-se ao controle social. A qualidade de sistemas
Nesse nível, deixa de existir a diferenciação en- impessoais origina-se da pressão dos interessa-
tre administradores e administrados. dos (controle da burocracia) e não apenas de sua
Deve-se a Demo10 uma discussão sobre o capacidade de autorregularão. Em paralelo, a de-
que se espera obter – e, portanto, se pode obter mocracia é um sistema sociopolítico no qual se
– com a participação. Assim, entre os objetivos negociam divergências, para que se acomodem
(e possibilidades) da participação destacam-se: em patamares que permitam a convivência e a
a autopromoção, a realização da cidadania, a im- realização relativa dos interesses singulares.
plementação de regras democráticas para intera- A negociação entre as partes vincula-se, por-
ções, o controle do poder, o controle da burocra- tanto, à possibilidade de revisão de pactos so-
cia, a negociação entre partes e a consolidação de ciais e de proposição de novos consensos míni-
uma cultura democrática. mos. Encerrando esta tipologia, a consolidação
A autopromoção é característica da ação so- de uma cultura democrática é um objetivo basilar
cial centrada nos próprios interessados (benefici- da participação, pois ela deve tornar-se comum
ários), que passam a autogerir ou, pelo menos, a em sistemas poliárquicos de poder9, comprome-
cogerir a satisfação de suas demandas, com vis- tidos com o Estado de direito, a igualdade e a
tas a superar a necessidade de ajuda assisten- simetria de oportunidades entre os cidadãos.
cialista. O vício fundamental do assistencialismo Se a participação apresenta possibilidades,
é despertar elos de dependência, de subserviên- ela também exprime limites, pois lida com obstá-
cia, entre beneficiários e provedores. culos. Há, portanto, elementos intrínsecos à par-
A realização da cidadania é a qualidade so- ticipação que podem se contrapor à sedimenta-
cial de um coletivo organizado sob a forma de ção da democracia. Desse modo, como observa
direitos e deveres majoritariamente reconheci- Demo10 processos participativos podem ser limi-
dos. Direitos correspondem às prerrogativas que tados, pois incorrem em democratismo, centra-
protegem e conferem dignidade aos indivíduos e lismo, populismo, purismo e assistencialismo. As-
deveres dizem respeito ao compromisso comuni- sim: democratismos são as deturpações do pro-
tário de cooperação e corresponsabilidade. cesso participativo, no sentido de empregar suas
No que se refere à implementação de regras premissas para levá-la ao absurdo, gerando uma
democráticas, a participação é um exercício que demonstração de sua inviabilidade; centralismo
permite a promoção e a destituição de centros de corresponde à centralização institucional e/ou
poder, o estabelecimento de elos entre represen- por parte de lideranças, que, de modo impositivo,
tantes e representados e outros fins. Um de seus invertem o fluxo participativo (não da base para
objetivos é, portanto, contribuir para a instalação o topo, mas de modo contrário); o populismo, es-
e o vigor da democracia, que demanda parâme- tabelecido quando há aceitação acrítica de que o
tros, organização e empenho coletivo. coletivo sempre é detentor de razão absoluta, o
Não há democracia sem controle do poder, que pode impedir movimentos participativos de
que não pode emergir das elites dirigentes, de- dialogarem com outros atores coletivos; o puris-
vendo ser realizado pela base. Sociedades orga- mo corresponde ao ápice da qualidade política,
nizadas e participativas são capazes de se con- em que processos participativos idealizados pre-
traporem às disfunções das burocracias, núcleos tendem ser completamente coesos. Em casos

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

assim, assume-se o risco de distanciá-los de accountability democrática, não isenta de contra-


múltiplos contextos, assim como da prática co- dições. Pode-se distinguir uma participação de
tidiana; o assistencialismo, finalmente, que pode caráter mais instrumental e em moldes mais con-
traduzir-se em um obstáculo significativo ao êxito vencionais, que anima estruturas formais de ne-
da participação, pois grupos dominantes o em- gociação e pactuação voltadas aos elementos ad-
pregam para desmobilizar iniciativas sociais. Por ministrativos, financeiros e operacionais do SUS.
meio de ofertas emergenciais e compensatórias, No que diz respeito à participação comunitária,
iniciativas de efetiva emancipação são podadas e os atores essenciais são aqueles que interagem
lideranças são docilizadas e cooptadas. em conselhos: intra-municipais, municipais, inter-
Tendo em mente as possibilidades e os limi- municipais, estaduais e nacional, representando
tes da participação, Demo10 também pontua seus o governo, prestadores de serviços de saúde, pro-
riscos, que manifestam desvirtuamentos poten- fissionais do setor e usuários com vistas à garan-
ciais. Isso ocorre quando são paliativos, efêmeros, tia do direito universal à saúde numa perspectiva
demorados ou suspeitos. Processos participativos ético-política democrática.
são considerados paliativos quando se desenvol- Como se sabe, os principais arranjos institu-
vem em esferas de importância secundária em um cionais que possibilitam a participação social no
coletivo ou quando são meios de legitimação ide- âmbito do SUS são os conselhos e as conferências
ológica de instâncias de poder. O caráter efêmero de saúde que visam operar em prol da cogestão de
de iniciativas participativas é perceptível quando políticas públicas e integram sistemas que contam,
estas se esgotam rapidamente, dependendo em ainda, com planos (políticas) e fundos financeiros
demasia da presença de certas lideranças ou de- públicos. No SUS, os conselhos transcendem os
monstrando precariedade de organização e ca- perímetros administrativos tradicionais (municipal,
rência de sustentação própria. A criação de um estadual e federal), admitindo formatos locais e re-
contexto efetivamente participativo não é algo sim- gionais que guardam entre si certa identidade geo-
ples, pois envolve múltiplos fatores (pessoais, cul- gráfica, socioeconômica e epidemiológica. 17
turais, históricos, etc.). Os tempos de amadureci- De modo complementar às ações dos con-
mento são longos, demorados, o que pode operar selhos, as conferências podem ampliar o diálogo
para a desmobilização de grupos. Por fim, proces- social, pois representam fóruns para avaliação,
sos participativos são percebidos como suspeitos proposição de diretrizes e formulação da política
em duas direções. A primeira diz respeito à coop- de saúde nas três esferas de governo. Há um es-
tação estatal, que pode utilizar-se do engajamento forço institucional para combinar participação di-
social para legitimar a ordem vigente. A segunda reta e por representação, buscando garantir o en-
associa-se ao seu caráter contestador, pois não gajamento popular – o qual divide espaço com a
há participação exitosa que não gere, em estreita participação meramente eleitoral. O histórico de
ou larga escala, instabilidade. conferências na saúde coloca em relevo temas
plurais, embora a questão da descentralização
tenha prevalecido.
Considerações finais Em relação às categorias de análise, sele-
Em relação aos atores sociais que viabilizam cionadas a priori em fontes bibliográficas, obser-
a participação em saúde no Brasil pode-se afirmar va-se que elas são capazes de favorecer a com-
que constituem uma rede múltipla e complexa de preensão: (1) dos tipos de participação; (2) dos

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

níveis de autonomia de dirigidos e dirigentes; (3) sobre as transferências inter-governamentais de recursos


das possibilidades de empreendimentos partici- financeiros na área da saúde e dá outras providencias. Bra-
sília; 28 dez 1990.
pativos; (4) de suas limitações e (5) de seus ris-
6. Conselho Nacional de Saúde. 15ª Conferência Nacional de
cos, que revelam desvirtuamentos possíveis.
Saúde. Brasília: CNS; 2015 [acesso em 15 fev. 2017]. Disponí-
Por ser um fenômeno complexo, multiface- vel em: http://conselho.saude.gov.br/web_15cns/index.html.
tado e plural, a participação em saúde no Brasil 7. Conselho Nacional de Saúde. Conferências 2017. Brasí-
não é, obviamente, completamente inteligível pelo lia: CNS; 2017. [acesso em 08 jun. 2017]. Disponível em:
universo de atores, espaços de negociação e ca- http://www.conselho.saude.gov.br/conferencias.html.
tegorias detalhadas neste artigo. Essa afirmação 8. Conselho Nacional de Saúde. Histórias das Conferências de
Saúde. Brasília: CNS; 2011 [acesso em 15 fev. 2017]. Disponí-
destaca a necessidade de construção de recursos
vel em: http://conselho.saude.gov.br/14cns/historias.html.
heurísticos complementares, que irão emergir de
9. Dahl RA. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo:
cada contexto institucional que se busca conhecer. EdUSP; 2005.
Todavia, por serem relativamente genéricas, 10. Demo P. Participação é conquista. São Paulo: Cortez;
as categorias sobre participação possuem amplo 1988.
potencial de aplicação, podendo, como constru- 11. Gohn MG. Conselhos gestores e participação sócio-po-
ções típico-ideais, mediar relações entre sujeito lítica. São Paulo: Cortez; 2001.
12. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
e objeto de pesquisa no gigantesco mosaico em-
Perfil dos estados e dos municípios brasileiros: 2014. Rio
pírico estruturado no âmbito do SUS.
de Janeiro; 2015.
13. Keinert TMM, Oliveira, VCS. Participação social em saú-
de no Brasil: abordagem exploratória da produção técnico-
-científica entre 1990-2014 e proposição de uma agenda
de pesquisa. In: XIX SemeAd - Seminários em Administra-
Referências ção; 2016; São Paulo. São Paulo: FEA/USP; 2016.
1. Behn RD. O novo paradigma da gestão pública e a busca 14. Ministério da Saúde; Conselho Nacional de Saúde. A
da accountability democrática. Revista do Serviço Público. responsabilidade do controle social democrático do SUS.
1998; 49(4):5-45. Brasília: CNS; 2013.
2. Bordenave JED. O que é participação?. São Paulo: Brasi- 15. Ministério da Saúde; Conselho Nacional de Saúde. A
liense; 1983. prática do controle social: conselhos de saúde e financia-
3. Brasil. Lei nº. 12466. Acrescenta arts. 14-A e 14-B à mento do SUS. Brasília CNS; 2002.
Lei no 8.080. Dispõe sobre as condições para a promo- 16. Nogueira MA. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos
ção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o e políticos da gestão democrática. São Paulo: Cortez; 2005.
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras 17. Oliveira VCS. Sociedade, Estado e administração públi-
providências, para dispor sobre as comissões intergesto- ca: análise da configuração institucional dos conselhos ges-
res do Sistema Único de Saúde (SUS), o Conselho Nacional tores do município de Lavras – MG. [Tese de Doutorado].
de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Programa de Pós-Graduação em Administração. Universida-
Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e suas res- de Federal de Lavras. Lavras; 2009.
pectivas composições, e dar outras providências. Brasília; 18. Paula APP, Keinert TMM. Inovações institucionais parti-
24 ago 2011. cipativas: uma abordagem exploratória da produção brasi-
4. Brasil. Lei nº. 8080. Dispõe sobre as condições para a leira em Administração Pública na RAP e no EnAPG (1990-
promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização 2014). Cadernos EBAPE.BR (FGV). 2016; 14:744-758.
e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá ou- 19. Silva ERA. Participação social e as conferências nacio-
tras providências. Brasília; 19 set 1990. nais de políticas públicas: reflexões sobre avanços e desa-
5. Brasil. Lei nº. 8142. Dispõe sobre a participação da co- fios no período de 2003-2006. Rio de Janeiro: Instituto de
munidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); 2008.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Participação social e regionalização: a construção de um


diálogo territorializado
Social participation and regionalization: the construction of a territorialized dialog

Sandra Greger TavaresI, Eda Terezinha de Oliveira TassaraII

Resumo Abstract

O artigo aborda a participação social em articulação com a regio- The article approaches the articulation between social participa-
nalização da saúde no âmbito do SUS, com o objetivo de discutir tion and the regionalization of health in the scope os SUS, with the
de que forma tem se estruturado o diálogo entre os diversos ato- objective of discussing in what ways the dialog between the various
res das instâncias políticas e socioambientais do controle social. political and socio-environmental actors present on social control
A coerência entre as expectativas veiculadas por estas políticas is structured. The consistency between the expectations brought
e sua operacionalização no plano territorial será analisada, por by those policies and its operation in a given territorial plane is to
método compreensivo-racional, contrapondo as esperanças pro- be analised, by comprehensive-rational method, in contrast with
jectuais e os princípios subjacentes às dinâmicas de ordenamento the projectual hopes and the undelying principles of both the heal-
da atenção à saúde em redes e de organização dos conselhos th care’s networked organizational dynamics and the organization
e movimentos sociais de saúde, através do estudo de caso do of health councils and social movements. , através do estudo de
município de Jacareí. Discutiu-se a fragmentação socioambiental caso do município de Jacareí. It is discussed the socio-environ-
das paisagens, identidades e formas associativas vinculadas ao mental fragmentation of landscape, identity and associative for-
atravessamento pelo fenômeno da globalização; a precarização ms linked by the phenomenon of globalization; the precariousness
dos mecanismos formais de participação social e a não potencia- of formal means of social participation and the incomplete poten-
lização da participação pela regionalização da saúde. Concluiu-se tialization of said participation by the regionalization of health. It
que há significativos desajustes entre as esperanças projectuais concludes that there are significant mal-adjustments between the
das políticas de participação social e regionalização da saúde e o projectual hopes of the policies about social participation and re-
atendimento efetivo destas expectativas e se propôs formas de gionalization of health, and the efective fulfilment of those expec-
planejamento e gestão interativas, norteadas pela construção de tations, and it’s proposed interactive ways of planning and mana-
modalidades dialógicas e territorializadas de interação social en- gement, headed by the construction of dialogical and local ways of
tre os diversos atores sociais do cenário da saúde. social interaction between the various social actors in health care.

Palavras-chave: Participação social; Regionalização; Sócio ambien- Keywords: Social participation; Regionalization; Social environ-
te; Interação social; Globalização. ment; Social interaction; Globalization.

I
Sandra Greger Tavares (gregerusp@gmail.com) é psicóloga, Mestre, Doutora
e Pós-Doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/
USP) e Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado
da Saúde de São Paulo (SES/SES-SP).
II
Eda Terezinha de Oliveira Tassara (edalapsi@hotmail.com) é física, Mestre,
Doutora e Professora Livre Docente em Psicologia do Departamento de Psico-
logia Social e do Trabalho e Pesquisadora e fundadora do do Laboratório de
Psicologia Sócio-Ambiental e Intervenção (LAPSI), do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo (IP/USP). Foi Professora Visitante do Instituto
Nazionale di Fisica Nucleare da Universidade de Pisa, Itália; do Laboratoire
de Psychologie Environnamentale, da Universidade de Paris V, do Centre de
Recherches Historiques da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales
(EHESS), de Paris e da Universidad Popular Autónoma del Estado de Puebla
(UPAEP), do México.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução a viabilização de anseios que se traduzem, em


No mundo contemporâneo, esperanças última instância, na expectativa da garantia do
de transformação têm se intensificado e rea- direito universal à saúde?
parecido sob as mais variadas formas de ma- Com base nos princípios doutrinários do
nifestação social, em parte devido ao vislum- SUS, preconizados desde a Constituição Fede-
bre de melhores condições de vida; em contra- ral11, a saúde passa a ser entendida como um
partida, parece que estes desejos vêm sendo direito de cidadania e um dever do Estado que
frustrados de forma recorrente na realidade necessita então prover e democratizar as ações
socioambiental. e serviços, garantindo universalidade, igualdade
Zizek38 (p.E2) sinaliza a necessidade de se e integralidade na atenção à saúde. Supera-se
identificar a violência naquilo que permanece e uma perspectiva curativa de saúde, concebida
não apenas quando algo muda. Trata-se de ul- como ausência de doença e se assume uma con-
trapassar a invisibilidade da violência e tentar cepção ampliada, relacionada às condições de vi-
reencontrá-la em sua dimensão mais profunda e da da população.
estrutural, sob os escombros que resultam dos A despeito dos inúmeros avanços no plano
anseios de paz, mimetizados em expectativas técnico e político, desde a regulamentação do
programáticas que têm servido muitas vezes pa- SUS, é possível observar inadequações e des-
ra manutenção do poder. vios que configuram déficits na oferta de ações
Seria possível realizar as esperanças projec- e serviços públicos de saúde de qualidade fren-
tuais implícitas nas políticas públicas de saúde,
21
te às complexas e imprevisíveis demandas por
de modo que possam realmente contribuir para saúde da população e comprometem o acesso e

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

a continuidade da atenção, mesmo com a maior as instâncias políticas deliberativas da gestão pú-
descentralização26 (p.429-435). blica de saúde e/ou ainda participar do planeja-
É neste ponto especialmente que a dis- mento das políticas públicas, minimizando assim
cussão sobre os impasses para a afirmação da os efeitos nocivos da violência programática e do
saúde como direito universal tangencia a temáti- desenraizamento intensificado pela globalização.
ca da violência. É importante levar em conta as Este artigo tem por objetivo, então, contri-
formas de violência que se ocultam sob a vul- buir com a discussão sobre os encaixes/desen-
nerabilidade programática das políticas públicas. caixes que se produzem no encontro/desencon-
A violência implícita no contraste entre o ideário tro entre as esperanças contidas no projeto SUS
das políticas públicas e as formas precarizadas e suas formas de operacionalização na realidade
de concretização de suas estratégias programá- socioambiental por meio das estratégias de re-
ticas na realidade cotidiana brasileira deve ser gionalização e participação social, considerando
problematizada. sua transversalidade com os fenômenos da glo-
Quanto mais democrático é o Estado, maior balização e da violência e as modalidades de diá-
deveria ser o grau de representatividade da socie- logo que se estabelecem entre os atores sociais
dade por este neste Estado, mas, por hipótese, do cenário da saúde.
este Estado não consegue representar a socieda-
de de maneira a satisfazer todas as aspirações,
expectativas e possibilidades de organização hu- Desenvolvimento
mana no espaço total. Sob tal perspectiva, um - Percurso metodológico:
projeto social deveria buscar influenciar o teor de A análise sobre as políticas de participação
representatividade do Estado na produção da or- social e regionalização da saúde empreendida
ganização humana no espaço34 (p.78). neste artigo pautou-se em método compreensi-
Neste sentido, o estudo sobre a dinâmica da vo racional alimentado mais diretamente por um
participação social em sua articulação com o pro- sistema de buscas construído a partir de um es-
cesso de regionalização no Sistema Único de Saú- tudo matricial, descritivo e diagnóstico, realizado
de (SUS) se faz necessário, uma vez que o ordena- no território conturbado de Jacareí, estado de
mento da saúde em redes pode ser considerado São Paulo, no Vale do Paraíba, entre outros re-
como a dimensão territorial da universalização da ferenciais. Neste estudo matricial30, produziu-se
saúde e, portanto, corresponderia a uma forma in- conhecimento transdisciplinar, por meio de ob-
tensiva de aproximação entre Estado e sociedade servação sistemática, e foram geradas imagens
que ampliaria as perspectivas de diálogo entre as instantâneas, sintéticas e aproximativas com re-
diversas instâncias e atores envolvidos. lação às seguintes problemáticas: formas e di-
Seria possível analisar a partir desta proble- nâmicas de alta complexidade relacionadas aos
matização, entre outros aspectos, se a motivação modos psicossociais de ocupação do território e
para a constituição de grupos populares que sur- de organização de coletivos sociais e políticos,
gisse de demandas locais permitiria, a esses gru- discutidas e analisadas à luz do conceito teóri-
pos, que se articulassem de uma maneira mais co de enraizamento37 (p.407-440), entre outros,
permanente e autônoma, por serem supostamen- e relacionadas ao contexto globalizado.
te mais enraizados no território, e discutir em que Foram investigadas as utopias de transfor-
medida estes coletivos conseguiriam dialogar com mação (esperanças projectuais) implícitas nos

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

discursos dessas políticas públicas de saúde, se desloca, muitas vezes, de Jacareí para São
avaliando-se eventuais avanços e discriminando José dos Campos ou para outras localidades.
aquelas políticas que, se mostrando capazes de De acordo com Tassara30, as sinergias entre es-
interagir com a dinâmica socioambiental, condu- ses isolats são episódicas e rarefeitas, sendo,
zam-nas para aproximações com as aspirações quase sempre, contingências fortuitas da in-
utópicas ou delas se afastem, quando referidas a serção de indivíduos, como pontos de redes de
dimensões distópicas (“antiutópicas”)29. sociabilidade das quais são participantes seus
A capacidade de projetar, como parte do moradores, podendo situar-se em antecedentes
universo operativo, possibilita a união do ser hu- familiares, de origem territorial ou profissional,
mano à realidade e à história. A utopia, como ati- de participação em grupos religiosos ou asso-
vidade livre e espontânea, permite projetar sem ciações, conselhos etc.
fazer e guarda em sua racionalidade a esperança Com base nestes achados29, a autora con-
de sua realização, a esperança projectual21. cluiu que existe atualmente uma tendência ao
Construiu-se, neste contexto, uma crítica predomínio de formas associativas fortemente
projectual32 por meio da desnaturalização das vinculadas ao território, embora não pelo territó-
ideologias subjacentes ao direcionamento polí- rio em si, mas sim pelo fato deste ele ser mora-
tico imputado às formas de operacionalização da de comunidades de existência18, cujo sentido
das racionalidades implícitas nos projetos so- existencial comum não se evidencia no momento
ciais de participação social e regionalização da presente. Constata-se, ao mesmo tempo, a fra-
saúde no SUS. gilidade das identidades individuais por sua ins-
crição inexorável no processo global de produção
- Jacareí: um caso ilustrativo? associada à construção mágica da quimera de
Os estudos realizados em Jacareí25,15,16, um destino comum. Quando organizados em gru-
inseridos na referida investigação matricial30 , pos, estes indivíduos não conseguem se cons-
apontam para uma fragmentação socioespacial tituir como movimentos políticos, reproduzindo
no município, que tende a alimentar a constru- raízes da própria formação social e cultural brasi-
ção de modos de relação comunitária voltados leira e, assim, evidenciando uma questão central
para o atendimento imediato das necessidades na problemática urbana brasileira generalizada
cotidianas de sua população. Estas ações so- no país, a saber: a inexistência de uma planifi-
ciocomunitárias revelam-se insuficientes, porém cação técnica e política pública que permita sua
complementares e/ou substitutivas com relação crítica projectual.
às ações estatais e de outros atores societais Oliveira25 sugere que o impacto da dinâmi-
e acabam por fortalecer a coesão identitária de ca da globalização abrange a própria paisagem
seus moradores em torno de isolats (comunida- em sua construção, que é então marcada por
des em relativo isolamento), ou mesmo, de bair- uma padronização operada por uma indústria da
ros situados no centro histórico expandido, crian- construção cada vez mais movimentada por ca-
do novas centralidades a eles associadas. pitais externos. Estabelece-se, desse modo, um
Oliveira25 identificou em Jacareí uma poli- ambiente também padronizado e descaracteriza-
centralidade evidenciada por um sistema intrin- do em suas relações com os ecossistemas re-
cado de centros imaginários, tendo como refe- manescentes da natureza e com a memória so-
rência-origem um centro histórico tradicional que cial, tal como observado em Jacareí. Se a própria

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

paisagem se mostra distante dos seus habitan- estabelecer e manter a infraestrutura necessária
tes e alheia ao plano societário da coletividade, ao funcionamento dos conselhos, inviabilizando,
a assimilação dessa escala do território e da em especial, a participação dos usuários; e, final-
paisagem municipais só poderia se dar de forma mente, descrédito dos cidadãos acerca do teor
fragmentada, tanto pelos planejadores e técni- da representatividade e autonomia efetivas no
cos dos poderes públicos, quanto pelas lideran- exercício da participação social por parte de usu-
ças políticas. A paisagem se torna veículo para a ários e profissionais de saúde16.
sociedade de consumo e favorece o surgimento No que tange à integração entre o proces-
de demandas construídas artificialmente como so de regionalização da saúde e a dinâmica da
necessárias, embora vazias de significação para participação social em Jacareí, há indícios de
a própria população. Isto implica em dificuldade desconhecimento quase total sobre esta intera-
crescente para se trabalhar no planejamento de ção imprescindível que poderia se dar, inclusive,
um município, pois processos de ordenamento do por meio da instauração de conselhos regionais
território pautados na valorização da identidade de saúde, inexistentes nestas localidades. De
psicossocial coletiva ficam prejudicados a priori. acordo com dados constantes no Observatório
Acredita-se que o pertencimento desenrai- de Saúde do Vale do Paraíba36, de 2007, Jacareí
zado e meramente formal, vinculado predominan- pertence ao Diretório Regional de Saúde de Tau-
temente a espaços institucionais e burocráticos, baté (DRS XVII) e se insere no Comitê Gestor Re-
sem ou com pouca conexão com o processo de gional do Alto Vale do Paraíba e no Comitê Gestor
organização sociopolítica no plano societário do Regional da Rede Regional de Atenção à Saúde
território, tem servido de base para as institui- (CGR RRAS – 17); ambos contando apenas com a
ções democráticas em construção no país, in- representação do secretário municipal de saúde,
clusive as instâncias de participação social35 sendo que não se encontram aí inseridos outros
(p.13-24). representantes dos conselhos de saúde16.
Em estudo sobre a participação social em Gomes15, em estudo desenvolvido em Ja-
saúde, também realizado em Jacareí, identificou- careí, destaca que é impossível compreender e
-se uma situação paradoxal: os conselhos de organizar um processo de regionalização contem-
saúde existem, mas encontram-se, de certa for- porâneo estritamente pelo âmbito de sua coesão
ma, estagnados devido a inúmeros fatores: ins- local. As situações socioregionais transcendem
tabilidade jurídica acionada por Ações Diretas de os recortes políticos e administrativos e eviden-
Inconstitucionalidade (ADI) movidas por cidadãos ciam tensões locais pelo estabelecimento de pro-
ou, muitas vezes, por representantes do governo cessos de micro regionalizações internas e entre
contra as leis que regem estes dispositivos; cap- municípios adjacentes, que, por sua vez, sofrem
tação de participantes dos movimentos espontâ- o impacto de agentes da globalização econômica.
neos pelas instâncias de participação institucio- É evidente o grau de dissociação entre os
nalizadas; tendência à cooptação de represen- direcionamentos políticos operacionalizados no
tantes dos segmentos usuários e profissionais município e as esperanças projectuais correspon-
da saúde desses conselhos para atender aos dentes às políticas de participação social e re-
interesses estatais, que muitas vezes se mos- gionalização da saúde, condições necessárias e
tram distanciados com relação às demandas so- interdependentes para garantir a universalização
cioambientais; falta de investimento público para da saúde. Seria esta uma tendência nacional?

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Análise da coerência entre esperanças saúde, em consonância com o eixo que prevê a
projectuais e estratégias organizativas das organização do sistema em redes regionalizadas,
políticas de participação social e regionalização deveria ser ascendente, integrado do nível local
da saúde no SUS ao federal, sendo ouvidos os respectivos conse-
A descentralização do SUS nos anos 19909 lhos de saúde, isto é, uma espécie de planeja-
priorizou relações verticais e resultou na amplia- mento participativo.
ção da abrangência do poder municipal na gestão É sugestiva a recomendação, referente à
em saúde. Entretanto, ainda parece evidente, a participação social que consta do Relatório Final
fragilidade no planejamento regional dos meca- da 14ª Conferência Nacional de Saúde3 para que
nismos de descentralização do SUS. Diante das se criem conselhos regionais, garantindo-lhes in-
estratégias de regionalização da saúde em curso, fraestrutura e logística e impedindo que os CGR
percebe-se a necessidade de refinamento e ade- os substituam nas competências deliberativas, a
quação às múltiplas realidades e desigualdades fim de preservar a efetividade do controle social.
socioespaciais brasileiras2,19. Esperava-se que o ordenamento em redes
Diretrizes governamentais foram propostas potencializasse a participação social, que deve-
para o enfrentamento destes desafios, entre elas ria também se dar de forma capilarizada, ascen-
a Norma Operacional de Assistência à Saúde dente e articulada em cada região de saúde. No
(NOAS 01/2001)6 e o Pacto pela Saúde5 , que entanto, a possibilidade de participação da so-
elegeu a regionalização como estratégia prioritá- ciedade civil nas decisões políticas do setor de
ria para a integração dos serviços e ações de saúde, inclusive no que tange ao planejamento
saúde. Indica-se no Pacto pela Saúde a criação estratégico da regionalização, por meio dos con-
dos Colegiados de Gestão Regionais (CGR) como selhos de saúde (nacional, estaduais, municipais
espaços para as negociações intergovernamen- e gestores), parece não estar contribuindo, de
tais (estado e municípios) para organizar redes modo geral, para a superação das desigualdades
assistenciais regionalizadas e orientar a amplia- que ocorrem nas relações sociais em nosso pa-
ção dos investimentos públicos no SUS. ís, como um todo, e nem para a universalização
Seguindo o princípio da descentralização, a da saúde. Configuram-se, nestas instâncias, re-
participação da comunidade no SUS, já prevista lações de poder em que o espaço de delibera-
na Constituição de 1988, foi regulamentada por ção política se faz inacessível aos cidadãos e se
lei10 que determinou a instauração, nas esferas mostra fragilizado, por vezes gerando um efeito
governamentais federal, estadual e municipal, de burocratização e engessando a participação
dos conselhos de saúde, com caráter permanen- política dos grupos populares, mesmo onde sua
te e deliberativo, – para atuar no controle da exe- presença se encontra juridicamente assegura-
cução da política pública, inclusive em seus as- da14 (p.2437-2445).
pectos econômicos e financeiros –, cuja composi- Entre os impasses identificados, em nível
ção deveria ser de usuários do SUS (metade das nacional, no que diz respeito ao funcionamento
vagas) e representantes do governo, prestadores dos conselhos municipais de saúde (CMS), por
de serviço, profissionais de saúde (ocupando de exemplo, destacam-se os seguintes: dificuldades
forma equitativa a outra metade das vagas). de comunicação entre o CMS e a comunidade;
Preconizou-se, por meio do Decreto Federal concentração das informações nos gestores e
nº 7.5084, que o processo de planejamento da técnicos, que acabam influenciando as decisões,

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

deixando os representantes dos usuários muitas políticas de saúde. Além disso, o autor também
vezes alheios ao debate e sem voz ativa; tendên- denuncia a tendência a suprimir ou antecipar o
cia a uma abordagem técnica nas discussões, debate de certos assuntos, retirando-os do fórum
pouco dedicadas ao debate sobre as políticas de das comissões intergestores e transferindo-o pa-
saúde e os indicadores sociais28 (p.2411-2421). ra outros espaços não sujeitos ao controle dos
O Ministério da Saúde8 criou uma comissão conselhos de saúde, neutralizando, assim, o fun-
técnica com o objetivo de discutir e elaborar pro- damento democrático destas instâncias.
postas para implantação e operacionalização do É fundamental que se perceba que a primei-
SUS, que viria a ser conhecida como Comissão ra condição para que se possa planejar e desen-
Intergestores Tripartite (CIT), articulando gestores volver um projeto de natureza social é conside-
federais, estatais e municipais. Posteriormente rar que o desenvolvimento histórico não se dá
na Norma Operacional Básica (NOB), de 19937, espontaneamente, pois é resultante de uma luta
foi criada a Comissão Intergestores Bipartite estratégica entre grupos, interesses e visões di-
(CIB), como fórum de pactuação entre gestores ferentes O Estado deve reconhecer e administrar
estaduais e municipais. as relações (por vezes conflituosas) entre diferen-
A criação das comissões intergestores, que tes grupos, por meio de políticas públicas que
se tornaram o principal espaço de negociação en- objetivem o aumento da representatividade de
tre os três níveis de gestão do sistema, mostra cada um deles, no sentido de atender às suas
o fortalecimento do papel dos gestores federais. necessidades30,34.
Apesar do potencial democrático das comissões As relações entre os grupos no jogo de for-
intergestores, evidenciam-se fragilidades a serem ças político se dão no “socioambiente”, ou seja,
investigadas, tais como o fechamento à partici- há que se considerar as relações sociais como
pação de atores sociais e o estabelecimento de socioespaciais. O meio em que um sujeito habi-
canais diretos entre os gestores federais, estadu- ta (socioambiente) constitui-se, tanto pelas inte-
ais e municipais, individualmente e por intermé- rações sociais estabelecidas e vividas por ele,
dio de suas, cada vez mais influentes, entidades como pelo ambiente físico no qual elas irão se
associativas: Conselho Nacional de Secretários desenvolver e ao qual também irão transformar.
de Saúde (CONASS) e Conselho Nacional de Se- Se o espaço é formado, por um lado, pela resul-
cretarias Municipais de Saúde (CONASEMS)12,20. tante do material acumulado a partir das ações
Ao retratar a microdinâmica da CIB Bahia, humanas através do tempo, por outro, é organiza-
Leão destaca, como um dos pontos de maior
20
do pelas ações atuais que o animam e que a ele
vulnerabilidade em seu funcionamento, a insufi- atribuem função e dinamismo. É a sociedade, em
ciente permeabilidade social, na medida em que última instância, o ser humano, que anima as for-
se explora muito pouco e de maneira pontual o mas espaciais (paisagem), atribuindo-lhe um sen-
diálogo com os atores societais, que raramente tido e que, portanto, tem o poder de transformar
são considerados de modo efetivo nos proces- a organização do espaço ao longo da história33
sos decisórios e deliberativos, permanecendo (p.221-233).
como um potencial a ser desenvolvido. Em tese, As conjecturas vinculadas a um processo
os conselhos de saúde deveriam referendar ou político e administrativo de regionalização, inclu-
aprovar todas as resoluções em discussão nas sive o da saúde, deveriam levar em conta essa
comissões intergestores que dizem respeito às imbricação entre sociedade, espaço e tempo,

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

de modo que a estratégia de regionalização (em mas no seu valor relativo e mutável dentro de um
sua perspectiva geográfica) dialogasse continua sistema mais amplo e que corresponde às condi-
e dialeticamente com as dinâmicas em jogo no ções atuais da sociedade.
socioambiente considerado (perspectiva psicos- Para fomentar um planejamento e uma ges-
social e sociopolítica). tão das redes de atenção à saúde efetivamen-
Na implantação da estratégia de regionali- te democráticos, é importante distinguir escalas
zação da saúde é fundamental que se diferen- e direcionalidades dos vetores hegemônicos da
ciem dois importantes constructos, postulados globalização, que aceleram as diferenciações es-
em contextos fronteiriços e interdisciplinares: paciais internas e resultam em usos divergentes,
regiões geográficas e regiões de saúde. Região desiguais, competitivos e conflituosos dos terri-
geográfica é uma categoria de análise científica, tórios13 (p.55-60) e possíveis formas inovado-
que pressupõe uma perspectiva global e a análi- ras e contra-hegemônicas (altermundialistas) de
se da dinâmica dos lugares em relação à dinâmi- territorialização1.
ca da totalidade do mundo. A região de saúde, Haesbaert17 interroga a possibilidade de
por sua vez, não é uma região geográfica, trata- se operar um processo de regionalização, num
-se de uma estratégia de planejamento setorial mundo marcado por uma constante dinâmica de
para a organização política, institucional, técni- desterritorialização. Problematiza a tendência a
ca e assistencial, com objetivo de tornar mais se reduzir a compreensão do mundo contempo-
eficaz a ação do Estado na garantia do direito râneo à questão da desterritorialização em opo-
universal à saúde2. sição à territorialização e a se entender a organi-
A conciliação entre pressupostos tão diver- zação socioespacial da sociedade pós-moderna
sos, impossível do ponto de vista epistemológico, exclusivamente sob a forma de “territórios-rede”
realiza-se na formulação das políticas públicas (embora sejam predominantes), como se a única
de regionalização, induzindo muitas vezes a inter- propriedade do espaço social fosse a de descon-
pretações distorcidas que tendem a identificar de tinuidade dos processos de presença e ausência
modo linear regiões de saúde e geográficas, não promovidos pela compressão do tempo e espa-
operando com as contradições inerentes à sobre- ço, em oposição aos “territórios-zona”. A multiter-
posição destas formas de concepção e organiza- ritorialidade é a forma contemporânea da reterri-
ção do espaço. A discriminação entre tais cons- torialização e não de desterritorialização. Novas
tructos e seus pressupostos se faz necessária formas de regionalização são propostas, então,
não apenas do ponto de vista técnico e científico, considerando-se a interseção entre lógicas reti-
mas também político e ideológico. culares (redes e “territórios-rede”), zonais (“terri-
A tentativa de abordar a questão do espa- tórios-zona”) e a ilógica daquilo que o autor deno-
ço em sua integralidade remete à definição de minou como aglomerados humanos resultantes
ambiente como organização humana no espaço dos processos de exclusão socioespacial – os
total. De acordo com Santos27, o espaço total é isolats17 (p.45-56) –, tal como ocorre em Jacareí?
que constitui o real, enquanto as frações do es- O planejamento de políticas públicas deve-
paço (casa, edifício, bairro, cidade), que apare- ria ser estratégico e interativo, constituindo-se
cem tanto mais concretas quanto menores, é que em alternativa ao planejamento compreensivo-
constituem o abstrato, na medida em que seu -racional que pressupõe a tomada antecipada
valor sistêmico não está na coisa tal como se vê, de decisões baseada em análises racionais das

|169
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

situações problemáticas, revertendo-se em um de uma sociedade que vem perdendo as referên-


contínuo temporal passado-presente-futuro, exi- cias, revelando-se, a cada rito de violência, como
gindo processos flexíveis de adaptação de pla- uma sociedade que vem se acabando, para se
nos e visões, desde a identificação de deman- tornar “um aglomerado provisório de seres sem
das. As avaliações e reformulações incrementais rumo”22 (E.2).
teriam que se basear dialeticamente em trocas Martins23 associa as desigualdades sociais
intensas de informações entre participantes, sob que não apenas sobrevivem, mas se acirram no
verificação empírica pari passu com o desenrolar mundo globalizado, a novas formas de represen-
do planejamento e da ação, considerando sua di- tação e poder que vão além da questão da ex-
mensão socioespacial. clusão social. O autor aponta que “a concepção
de exclusão é “antidialética”. Ela nega o princípio
da contradição, nega a história e a historicidade
Conclusão das ações humanas”23 (p.3). Analisa as formas
É fundamental promover a desconstrução perversas, precárias ou patológicas de inclusão
das operações ideológicas que subjazem ao pla- social como decorrentes de um modelo de repro-
nejamento e à gestão das políticas de regionali- dução ampliada do capital, que, no limite, produz
zação e de participação social em saúde, na me- escravidão, desenraizamento, pobreza e também
dida em que estas sustentam a ilusão de que ilusões de inserção social.
suas expectativas projectuais serão pronta e Vivem-se hoje os efeitos do acirramento
integralmente atendidas rumo à universalização das desigualdades, da crescente inclusão precá-
da saúde. Na análise crítica destas políticas so- ria e das formas de mobilidade e configuração
ciais é importante considerar a necessidade de regionais múltiplas, ambíguas e complexas, vin-
se realizar ajustes contínuos e dinâmicos entre culadas ao impacto da globalização. E isto tudo é
as utopias que veiculam e as bricolagens estra- uma forma de poder, de reprodução de relações
tégicas que são operacionalizadas a partir das de poder profundamente desiguais e que geram
configurações do socioambiente. Não há como iniquidades e perpetuam formas invisíveis de vio-
negar que estruturas e dinâmicas de organização lência que devem ser enfrentadas, inclusive no
socioambientais pré-existentes condicionam as âmbito da saúde.
racionalidades presentes e futuras destas polí- A conexão mais alinhada entre a planifica-
ticas, expressando compromissos anteriormente ção técnica, tal como desenhada a partir das
assumidos. políticas públicas de regionalização, seus com-
Há indícios que permitem supor que a te- promissos utópicos e a participação popular no
mática da violência esteja catalizando a projeção cerne da instabilidade socioambiental aqui pro-
das mais diversificadas experiências associadas blematizada, poderia tomar como pressuposto a
a estes descompassos entre as esperanças pro- proposição de uma arquitetura da capilaridade29
jectuais e as formas de concretização das políti- (p.253-277). Esta proposta consiste em uma for-
cas públicas no cotidiano, ainda que esta contra- ma de engenharia projectual, que requer um ma-
dição não seja adequadamente percebida. O que peamento da realidade que entenda os sujeitos
se percebe é o medo, a frustração, a inseguran- coletivos e individuais atuantes, a distribuição es-
ça, a revolta, que segundo Martins22, expressam pacial dos mesmos no território e na população
a falta de confiança nas instituições por parte em função da sua segmentação (urbano-rural,

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

étnica, socioeconômica, etária, de gênero etc), emergentes, de suportar o dissenso e de impedir


antes de se propor qualquer forma de planeja- o exercício da violência e do domínio de umas
mento regional. sobre outras.
Além disso, considera-se que a eficácia so- No campo da Saúde Coletiva se faz neces-
cial e política, no seu plano máximo, só poderia sário desenvolver mais análises pautadas no re-
ser atingida pela transformação de cada sujeito conhecimento do papel histórico dos sujeitos in-
em protagonista histórico, isto é, em um sujeito dividuais e coletivos frente às determinações e
capaz de entender as possibilidades de transfor- limitações impostas por estruturas rígidas, con-
mação que o mundo oferece, capaz de entender siderando-se assim o lugar significativo da práxis
o poder que tem de atuar nessas transformações para a compreensão aprofundada sobre as con-
e capaz de se engajar numa busca coletiva de dições de saúde em sua perspectiva ampliada e
mudança de desejabilidade da vida social. contextualizada no âmbito da crítica projectual.
Como possíveis formas de enfrentar a glo- Afinal, como já assinalara Minayo24 (2001):
balização na contemporaneidade, sugere-se a “...o campo da saúde (coletiva) sempre se im-
proposição de intervenções em vários níveis, co- portou mais com a lógica médica da enfer-
meçando pelo enfrentamento de aspectos psi- midade do que com a sociológica dos sujei-
cossociais impeditivos, vinculados à não partici- tos. Também nas organizações dos serviços
pação individual; entre eles a negatividade – um de saúde, no seu planejamento e avaliação
impedimento afetivo de enfrentar as consequên- a ênfase tem sido muito maior nos métodos
cias cognitivas da subjugação – e a positividade que conferem relevâncias às relações entre
– a incapacidade de conceber formas alternativas funções, papéis e relações técnicas. Ainda
de realidade –, por meio de práticas que estimu- quando o planejamento estratégico é incluído
lem a participação desde o início, ou seja, desde no campo organizacional, seus objetivos são
o planejamento da intervenção. preferencialmente voltados para perceber a
Poderiam ser desenvolvidas formas de in- vontade dos diferentes atores, a fim de con-
tervenção denominadas emancipatórias, na me- trolá-los e dominá-los, do que para chamar à
dida em que promovam o desenvolvimento da ca- participação efetiva” (p.15).
pacidade de suportar o confronto com a alterida-
de, da capacidade dialógica com esta alteridade
e da capacidade participativa, colaborando com a
construção de uma participação social democrá-
Referências
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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Sustentabilidade: desdobramentos face a uma busca


emancipatória
Sustainability: uncovering’s towards an emancipatory search

Mariana MalvezziI

Resumo Abstract

A presente pesquisa teve por objetivo estudar a sustentabilidade The present research aimed to study sustainability and emancipa-
e a emancipação como pilares interdependentes da existência do tion as interdependent pillars of man’s and society’s existence. He-
homem e da sociedade. Aqui, a sustentabilidade é entendida co- re, sustainability is understood as the possibility of permanence,
mo a possibilidade da permanência e continuidade de ambos. A continuity of both. Emancipation is understood as the experience
emancipação é compreendida como a vivência da condição onto- of ones ontological condition, as being able to participate in ones
lógica de ser capaz de participar de seu próprio futuro. Basta uma own future. A brief analysis of the productions of these objects is
breve análise das produções acerca desses objetos para expor enough to expose their complexity and the interdependent rela-
sua complexidade e a relação interdependente com que estão im- tionship with which they are implicated, in a dialectical movement
plicados, num movimento dialético no qual a realização de um re- in which the realization of one requires the understanding and con-
quer a compreensão e consideração do outro. Este artigo, portan- sideration of the other. This article therefore took the examination
to, assumiu o exame da sustentabilidade e da emancipação como of sustainability and emancipation as its main object. In order to
seus principais objetos. Para tanto levantou, por meio da aplicação do so, through the application of Q Methodology, it searched the
da Técnica Q, o entendimento léxico sobre a sustentabilidade por lexical meaning of sustainability in professionals who work with
profissionais que atuam com ações e reflexões voltadas a esta actions and reflections focused on this theme. As the main con-
temática. Como principal resultado deste levantamento observou- sideration of this survey, it was observed that the understandings
-se que os entendimentos sobre a sustentabilidade encontram-se of sustainability were mostly linked to the controls of the physical
majoritariamente atrelados ao controle dos danos físicos ao am- damages to the environment and that sustainability and emancipa-
biente e que a sustentabilidade e a emancipação, principal objeto tion, main object of this research, don’t associate to each other in
deste estudo, não se vinculam entre si nas ações propostas pelos the actions proposed by the participants. This fact reinforces the
sujeitos. Fato que reforça o longo caminho a ser percorrido na dis- long path to be followed in the discussion of these pillars, as cru-
cussão destes pilares como elementos cruciais da vida humana, cial elements of human life, since sustainability can only be possi-
uma vez que a sustentabilidade somente poderá ser viabilizada ble by individuals who aim emancipation and therefore are able to
por indivíduos que almejem a emancipação e, portanto, se mos- build a narrative of their own.
trem capazes de construir uma narrativa que lhes seja própria.
Keywords: Sustainability; Emancipation; Identity.
Palavras-chave: Sustentabilidade; Emancipação; Identidade.

Mariana Malvezzi (mariana.malvezzi@hotmail.com) é psicóloga, Mestre em


I

Psicologia Organizacional e Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Univer-


sidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Pesquisadora Associada ao Laboratório
de Psicologia Sócio-Ambiental e Intervenção (LAPSI) do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo (IP/USP) e Professora e Pesquisadora na Escola
Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (ESPM/UNIFESP).

|174
Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução desses dois objetos do conhecimento para ex-


A presente pesquisa teve por objetivo es- por sua complexidade e a relação interdepen-
tudar a sustentabilidade e a emancipação co- dente em que estão implicados, num movimen-
mo dois pilares interdependentes da existência to dialético no qual a realização de um requer
do homem e da sociedade, sendo a sustentabi- a compreensão e consideração do outro: como
lidade entendida como a possibilidade da per- em uma tese e em sua antítese, cujo movimento
manência e continuidade de ambos e a emanci- contínuo de aproximação é o que lhes permite
pação como a vivência da condição ontológica existir enquanto fundamento para a existência
de ser capaz de participar de seu próprio fu- do homem13.
turo. Ambas, sustentabilidade e emancipação Este artigo, portanto, assumiu o exame da
cresceram em complexidade no contexto da so- sustentabilidade e da emancipação como seus
ciedade globalizada. principais objetos, tendo em vista sua possível
Estas questões têm sido foco de significa- contribuição para melhor compreensão da socie-
tiva atenção em vários campos da ciência, como dade e de sua gestão. Hoje, tanto se fala e se es-
a Biologia, a Sociologia, a Psicologia e a Filoso- creve sobre sustentabilidade e emancipação que
fia, assim como no âmbito de ações nas esferas fica difícil não naturalizar sua banalização, pois
governamental, empresarial e principalmente ambas despontam como elementos cruciais da
acadêmica. Os investimentos na compreensão vida humana em sociedade. O pressuposto aqui
da sustentabilidade e da emancipação têm sido perseguido é, portanto o de compreender porque
férteis, acarretando crescente produção biblio- a sustentabilidade somente poderá ser viabiliza-
gráfica. Basta uma breve análise das produções da por sujeitos emancipados.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Método Além dos profissionais, os acadêmicos têm


As dificuldades implicadas na compreensão outro tipo de experiência que os capacita a res-
dos significados que acompanham a palavra sus- ponder o que se entende por sustentabilidade,
tentabilidade decorrem da amplitude do campo uma vez que seu esforço tem sido direcionado
que ela abarca: o planeta Terra, a sociedade, as para integrar as reflexões e articulá-las ao campo
instituições, a pessoa, dentre muitos outros ob- teórico de modo que se que possa representar
jetos. Falar de sustentabilidade implica em se co- o que seria a ação pela sustentabilidade. Tam-
municar acerca de condições de todos esses ob- bém foi considerado um terceiro grupo de pro-
jetos. Além disso, esse campo abriga questões fissionais: os membros do governo, cuja atuação
e problemas encadeados a um número incontá- frente a sustentabilidade é entendida por meio
vel de outras questões diante das quais qualquer do desenvolvimento de políticas publicas, entre
busca de consenso parece irrealizável. O avanço outras frentes, ações que abarcam muitos enten-
de tal campo de reflexão e investigação traz me- dimentos sobre a sustentabilidade.
nos respostas do que novas perguntas; qualquer Para se arquitetar a busca da voz de sujei-
novo trabalho agrega complexidade ao objeto de tos que atuam na área de sustentabilidade depa-
estudo porque desnuda outros aspectos. ra-se com idêntico desafio, já analisado anterior-
O caminho escolhido para produzir informa- mente sobre a elucidação do conceito. A partir
ções que permitiram elaborar repostas às questões da consideração de diferentes caminhos dispo-
levantadas foi a escuta de outros pesquisadores e níveis para essa tarefa, como a entrevista, os
profissionais que vêm trabalhando com a mesma questionários, grupos focais, estudos de caso e
pergunta e, ou com os problemas da gestão dos a Técnica Q, optou-se por esta última. Todos os
ambientes: físico e social do presente e do futuro. instrumentos considerados em sua potencialida-
As opiniões desses acadêmicos e desses profis- de para apreender a voz dos sujeitos, oferecem
sionais, hoje já inseridas no mercado, contribuíram vantagens e desvantagens. O exame desses dis-
com alguma luz, ou algum caminho novo, uma vez tintos caminhos evidenciou que a Técnica Q des-
que tais sujeitos são pessoas que assumem po- ponta como um caminho “despoluído” de compli-
sições executivas em organizações, que poderiam cações e suficientemente eficaz para produzir a
ser definidos como agentes de sustentabilidade, diferenciação entre afirmações diversas que são
ou pessoas que compartilham a mesma tarefa da oferecidas como conceito, ou ações que produ-
autora desta pesquisa, uma vez que refletem sis- zem sustentabilidade.
tematicamente sobre o conceito de sustentabilida- A Técnica Q consiste num processo de esco-
de para melhor compreendê-lo. Diversas empresas lha forçada de afirmações (“apostas”) oferecidas
criaram inclusive a posição de gestor de sustenta- a juízes. O resultado das escolhas de cada juiz é
bilidade e acoplaram a ela metas estratégicas. Tais apresentado na forma de escala ordinal, denomi-
profissionais têm experiência em ações que visam nada de Escala Q. A totalidade das Escalas Q ela-
gerar sustentabilidade e, por isso, podem contribuir boradas pelos juízes é submetida a análise de fa-
para a explicitação dos elementos e sentidos vin- tores e grupamentos para identificar a significân-
culados à sustentabilidade. Como agentes de sus- cia estatística da homogeneidade entre os juízes
tentabilidade suas ações e seus discursos frente na priorização das afirmações que lhes são ofere-
aos objetos e eventos devem ser coerentes com o cidas. O principal resultado desse procedimento
predicado identitário “sustentável”. é a discriminação entre afirmações poderosas e

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

afirmações fracas. O conjunto de afirmações po- tenham pelo menos três anos de trabalho com sus-
derosas, assim como o conjunto de afirmações tentabilidade e portanto capazes de criticar o conte-
fracas propiciam a identificação dos conteúdos údo que a literatura apresenta como sustentabilida-
que têm mais força para aglutinar juízes ao seu de, sua viabilidade em projetos e empreendimentos
redor, ou seja, os motivos que fundamentaram a e avaliar prioridades intrínsecas à busca pela sus-
priorização de afirmações por parte dos juízes. tentabilidade. Esses indivíduos, denominados aqui
Devido a essas características, a Técnica como experts, foram buscados em instituições aca-
Q tem sido largamente utilizada em pesquisa no dêmicas, empresariais e governamentais.
campo das ciências sociais e comportamentais A população de sujeitos almejado nesta
para estudar ideologias, conceitos e papéis. Es- pesquisa foi de no mínimo 15 e no máximo 30,
tudos dos conceitos de saúde, integridade, esti- buscando-se diversificá-los entre gestores, aca-
los de vida e relacionamentos amorosos utiliza- dêmicos e agentes governamentais. O motivo
ram com eficácia essa técnica1,16,17. A Técnica Q desta estratificação é a captação de uma diversi-
é, desta forma, uma metodologia para investigar dade de olhares, identificando profissionais que
conceitos e teorias pelo seu poder de mostrar priorizam a reflexão e profissionais que priorizam
significância na capacidade de afirmações para a aplicação, bem como profissionais que tem fo-
aglutinar sujeitos, sendo um eficaz método de co em políticas públicas.
compreensão da subjetividade humana, por meio Também foi considerada para a elaboração
da expressão do ponto de vista individual14. das afirmações, a estratificação de seus conteú-
Assim, através da Técnica Q, os sujeitos dos de acordo com as diversas tendências iden-
foram solicitados a priorizar afirmações sobre o tificadas na compreensão do conceito de susten-
conceito de sustentabilidade a partir de um con- tabilidade, tal como levantado na pesquisa biblio-
junto de enunciados (“apostas”) que expõem a gráfica. Nessa estratificação, foram identificados
diversidade de significados, predicados, aplica- quatro distintas tendências que diversificam o
ções e interfaces que tangenciam este concei- conceito de sustentabilidade na literatura. São
to. A elaboração da Escala Q por parte de cada elas: sustentabilidade como controle de danos à
sujeito é, desta forma, produto da experiência natureza física (ambientalismo), sustentabilidade
individual de cada um com o conceito de sus- como controle da qualidade de vida (condições
tentabilidade. Como este artigo analisa a sus- de existência), sustentabilidade como princípio
tentabilidade e sua correlação com a busca pela (filosofia) e sustentabilidade como emancipação
emancipação humana, a Técnica Q, dadas as ca- (originalidade e autonomia). Esta estratificação
racterísticas acima descritas, oferece condições não é uma tarefa fácil porque os critérios de di-
facilitadoras para os juízes proporem sua pró- ferenciação não são excludentes, mas se tangen-
pria construção do conceito de sustentabilidade ciam e se interpenetram. A seguir apresentare-
e nele identificarem, sua possível relação com a mos os entendimentos das quatro tendências
emancipação humana. acima descritas.
O critério de escolha dos sujeitos revela sua
identidade como agente de sustentabilidade. Para - sustentabilidade como controle da nature-
ser agente, o sujeito deve trabalhar com o concei- za física:
to teoricamente, ou sua aplicação em situações de A busca pela sustentabilidade, e conse-
avaliação ou gestão. Buscou-se profissionais que quentemente sua definição, tem sido fortemente

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

ancorada na importância da tratativa dos proble- controle do ambiente físico, este entendimento
mas diretamente ligados à questão ambiental, provavelmente, como no caso anterior, é também
tais como escassez de água, diminuição dos de- bastante disseminado na sociedade como um to-
jetos, programas de reciclagem, entre tantos ou- do. As diversas iniciativas sociais podem ser re-
tros. É provável que, dentre as possíveis ações feridas como uma possível forma de atuação no
ligadas à busca pela sustentabilidade, os objeti- sentido de incrementar a qualidade de vida do
vos descritos por este grupo de afirmações este- homem e da sociedade.
jam entre os mais assimilados pelas empresas
como metas organizacionais, bem como, prova- - sustentabilidade como princípio:
velmente, sejam os mais reconhecidos pela po- Neste outro grupo de afirmações, a susten-
pulação em geral. Neste grupo de afirmações, tabilidade é apresentada como uma questão re-
a sustentabilidade apresenta-se dependente da lativa a um interesse maior da sociedade, algo
noção de resultado (controlável, palpável, concre- ligado àquilo que se entende por sociedade e sua
to) e é condicionada, portanto, às ações origina- constituição. Nestas afirmações, o conteúdo prin-
das imediatamente para que se tenham manti- cipal é a orientação de referência, pautada pela
das as atuais condições de vida da humanidade priorização de uma ação sobre outra, frente àqui-
e as das gerações futuras, como definido pelo lo que a sociedade deveria ser. Assim, dentro de
Relatório de Brundtland20. Assim sendo, as ações uma lógica de princípios, a questão da sustenta-
e sentidos para a sustentabilidade apresentadas bilidade faz sentido e é pautada mais em decor-
aos sujeitos, relativas a este grupo, de acordo rência dos critérios das escolhas que são reali-
com a literatura, são propostas concretas para a zadas, ao invés de necessariamente o impacto
compreensão e tratamento dos danos causados das mesmas sobre, por exemplo, a qualidade de
ao ambiente físico do planeta. vida das pessoas. Aqui, tem-se em conta mais o
princípio enquanto uma regra ou um preceito que
- sustentabilidade como controle da qualida- tange o funcionamento da sociedade e as intera-
de de vida: ções entre os homens do que os impactos desta
Neste segundo grupo de afirmações, a bus- ou daquela ação. Nesse sentido, a atenção para
ca pela sustentabilidade passa necessariamente a busca pela sustentabilidade ocorre não como
pelo incremento das condições de vida da socie- controle dos danos físicos ou busca pela melho-
dade como um todo e tem suas ações fortemen- ria da qualidade de vida (entendida como ações
te marcadas pela procura por uma melhoria no mais imediatas), mas sim por meio da garantia
desenvolvimento das condições de vida do Ho- de condições de justiça, igualdade, liberdade e
mem. As ações e sentidos propostos por este democracia para todos. A sustentabilidade é, por-
grupo de afirmações referem-se a melhorias nas tanto, uma consequência e não o objetivo final
áreas de saúde, moradia, condições de cultura e destas ações.
lazer, identificadas como sinais de qualidade de
vida. A questão da responsabilidade dos indivídu- - sustentabilidade como emancipação:
os e dos projetos sociais também diz respeito a Finalmente, como o presente trabalho ob-
este grupo. Apesar de não aparecer de forma tão jetiva saber o quanto a emancipação integra os
concreta nas iniciativas organizacionais e gover- conceitos de sustentabilidade, foram geradas
namentais, se comparado com as iniciativas de afirmações, também inspiradas na literatura

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

acadêmica, que indicassem algum fragmento sustentabilidade, mas também refletir em que
emancipatório. As afirmações deste grupo procu- medida se encontra a busca pela sustentabilida-
ram mostrar o potencial emancipatório, presen- de enquanto emancipação.
te na questão da sustentabilidade ao relacionar As informações coletadas foram submeti-
emancipação ao desenvolvimento de reciprocida- das à análise fatorial, o método de avaliação es-
de e ao aumento da conscientização da socie- tatística que mais possui afinidade com a Técnica
dade como um todo, não apenas no que se re- Q14. Como mencionado anteriormente, a carac-
fere aos aspectos ligados ao controle físico dos terística principal dessa técnica é o fato de que
danos, que ameaçam a sociedade, mas também todas as variáveis (afirmações) são tratadas co-
como um reconhecimento, por parte de todos, mo individualidades. Os dados foram analisados
das próprias potencialidades enquanto atores utilizando o software estatístico SPSS (Statistical
criativos das próprias histórias4. Package for Social Sciences)19. A análise resul-
A sustentabilidade, ou o desenvolvimento tante dos questionários aplicados foi organizada
sustentável, como proposto no Relatório de Brun- e cada participante foi classificado em cada um
tland20 são associados à criação de condições dos três grupos estudados (Grupo 1 - Academia,
que permitam a “realização das próprias neces- Grupo 2 - Governo e Grupo 3 - Empresa).
sidades e aspirações” (p.12). Ao pensar nos dois As 65 afirmações foram agrupadas em or-
termos colocados por este relatório, necessidades dem de concordância pelos participantes, pro-
e aspirações, cabe uma reflexão mais ampla a res- duzindo quatro fatores que explicam a maior
peito de todos os seus possíveis significados. A parte da variabilidade dos dados originais das
palavra “necessidades” remete a condições que afirmações. Com base nas cargas fatoriais de
são impreteríveis ou absolutamente imperativas cada questão, as afirmações foram divididas
para a vida humana, tais como água, alimentos, em quatro grupos para verificar se a classifica-
abrigo. Ou seja, que sua ausência pode ser fatal. ção proposta pela análise fatorial é a mesma da
Já a palavra “aspiração” remete aos desejos e classificação proposta anteriormente nos quatro
anseios do homem. As propostas apresentadas, critérios de compreensão da sustentabilidade.
cujo conteúdo oferece algum fragmento emanci- Diante de correspondência significante, os
patório, propõem ações relacionadas ao ganho de fatores receberam os nomes dos quatro grupos:
consciência e reflexão, diminuição das diferenças “ambiente físico”, “qualidade de vida”, “princípio”
econômicas sociais e culturais e estímulo para o e “emancipação”. Nessa operação, foi verificado
desenvolvimento de uma cultura comunitária. se existem diferenças significantes entre os va-
lores médios desses quatro fatores em função
dos três distintos grupos de sujeitos. O número
Apresentação dos resultados de sujeitos demandou que a análise fosse feita
A seguir são discutidos os resultados da por meio de testes não paramétricos, pois eles
aplicação e análise estatística das Escalas Q ob- não assumem distribuição normal das variáveis
tidas dos 19 sujeitos, sendo cinco (5) acadêmi- dependentes e o nível de significância adotado
cos, nove (9) executivos do setor privado e cin- foi 5% (p<0,05), como é praxe nos testes estatís-
co (5) funcionários do setor público. Lembrando- ticos na área das ciências sociais.
-se que o objetivo desta discussão não é unica- A seguir apresentamos a tabela com os da-
mente compreender os vários entendimentos da dos acima descritos:

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Tabela 1 - Análise Fatorial Exploratória com rotação Varimax das afirmações organizadas em ordem
de concordância (N=19)

fator 1 – natureza física fator 2 – princípio fator 3 – emancipação fator 4 - qualidade de vida
(11% da variância) (8,5% da variância) (5,8% da variância) (5,1% da variância)
afirmações carga fatorial afirmações carga fatorial afirmações carga fatorial afirmações carga fatorial
13 (P) -0,846 7 (NF) 0,795 59 (E) 0,67 28 (QV) -0,701
2 (NF) 0,81 55 (NF) 0,696 10 (NF) -0,652 29 (QV) -0,699
5 (NF) 0,76 27 (QV) -0,663 60 (E) 0,645 32 (P) 0,697
11 (NF) 0,758 6 (NF) 0,646 56 (E) 0,624 21 (QV) -0,688
43 (QV) 0,736 8 (NF) 0,642 52 (E) 0,591 57 (E) -0,657
4 (NF) 0,728 45 (E) -0,637 53 (E) -0,558 20 (QV) 0,559
33 (P) 0,717 9 (NF) 0,631 17 (P) 0,551 26 (NF) -0,553
1 (NF) 0,645 14 (P) -0,614 40 (QV) -0,542 38 (QV) 0,501
3 (NF) 0,637 15 (P) -0,594 51 (E) -0,541 41 (QV) -0,472
24 (E) -0,637 34 (QV) 0,571 37 (QV) 0,499 39 (E) 0,453
35 (QV) 0,61 18 (NF) 0,57 44 (NF) -0,397 64 (P) -0,384
23 (QV) 0,6 47 (P) -0,528 25 (QV) -0,394
19 (QV) -0,592 16 (P) 0,511 31 (P) -0,352
54 (E) -0,586 12 (NF) 0,481 62 (E) -0,239
65 (P) -0,566 63 (P) -0,48
36 (E) 0,465 61 (E) -0,479
22 (E) -0,429 46 (P) -0,474
58 (E) -0,41 30 (P) -0,403
49 (P) -0,357 42 (QV) 0,392
50 (E) -0,309 48 (P) -0,289
Legenda: P = princípi”; NF = natureza física; QV = qualidade de vida; E = emancipação.

Análise dos resultados Desta forma, esta seção se propõe a analisar os


Com o intuito de analisar a sustentabilidade resultados à luz desta reflexão teórica.
a partir de sua interdependência com a busca pela Os resultados revelados, pelos dados empí-
emancipação, esta pesquisa buscou por meio de ricos, não demonstram a clareza que se espera-
um exercício de categorização de 65 metas para va, como também se pode observar na literatura
a sustentabilidade por profissionais agentes do acadêmica pesquisada, como, por exemplo, os
conceito, compreender como a construção desse diferentes entendimentos presentes nas áreas
conceito está sendo realizada e como seus predi- de Ecologia, Ambientalismo e do próprio Desen-
cados estão ou não alinhados com as ideias de volvimento Sustentável2,3,7,8,15,22. Entretanto, os
originalidade e autonomia5,9, de livre expressão resultados providos pela análise estatística for-
do ganho de uma sabedoria própria4, ou de cons- neceram muitas informações que provocam inú-
tituição subjetiva da própria autodeterminação11. meras reflexões que poderão auxiliar a responder

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

algumas das questões colocadas ao longo deste ausente dos dados empíricos produzidos pelos
trabalho. sujeitos desta pesquisa. Desta forma, os sujeitos
Desta forma, o dado que mais ficou eviden- parecem apresentar as mesmas dúvidas e ques-
te, é que não está claro para os sujeitos entre- tões que esta pesquisa procurou levantar.
vistados o que significa sustentabilidade, dado a Outro aspecto que pode ser elaborado a par-
falta de homogeneidade tanto nos agrupamentos tir destes dados é que o caminho para se investi-
de respostas, como na ordem de preferência das gar a sustentabilidade implica no desdobramento
metas oferecidas. Fato que sinaliza, que muitas da aplicação desse conceito em diferentes cam-
das questões colocadas no decorrer desta refle- pos, tal como proposto aqui: ambiente físico, qua-
xão também povoam suas mentes. E que, apesar lidade de vida, princípios e emancipação. Os su-
de, enquanto agentes do conceito atuarem dire- jeitos assumiram as afirmações próprias desses
tamente na reflexão ou definição de ações para quatro campos, sendo que nenhum deles ofere-
a sustentabilidade, não possuem segurança das ceu resistência ou estranhou ações em qualquer
ações e reflexões necessárias para a tratativa uma das 65 afirmações apresentadas. Tal como
desta problemática. Afinal, tudo pode ser impor- dito acima sobre o trabalho, a sustentabilidade é
tante quando se trata de uma temática tão com- uma condição de existência e que, portanto pode
plexa como a sustentabilidade. ser aplicada a tudo o que existe. Esses campos
As inferências permitidas pela Escala Q ela- se permeiam como fica claro na fronteira estabe-
boradas por estes sujeitos comunicam que se es- lecida aqui entre condições do ambiente e quali-
tá diante de uma questão que perpassa diferen- dade de vida. As condições do ambiente físico fa-
tes campos da sociedade e do saber, tal como zem também parte da qualidade de vida. Caberia
também observado na análise teórica. Problema pensar em sustentabilidade, não como desenvolvi-
idêntico ocorre com o conceito de trabalho. A fí- mento, mas como a presença ou o esforço para o
sica responde que é uma energia, o marxismo alcance dos quatro campos estudados no trabalho
que é uma mercadoria, o freudismo que é uma empírico desta pesquisa. Isso porque o desenvol-
atividade de afirmação do adulto, a filosofia que vimento atrelado à sustentabilidade, ou melhor,
é uma categoria ontológica do ser humano, a tra- a sustentabilidade atrelada ao desenvolvimento
dição judaico-cristã que é um castigo de Deus, (como tem sido apontada, principalmente depois
e Hegel, que é um espelho do ser humano. As- do Sustainable Development Summit21), que apre-
sim, o trabalho é um objeto implicado em diver- senta um fator limitante que, até certo ponto, tem
sos aspectos do ser humano. Analogamente, a pautado as ações no sentido de uma manutenção
sustentabilidade surge igualmente com muitas do status quo18.
implicações inerentes a sua construção. Seu Também, pode ser levantado a partir dos
mundo físico e seus recursos são perecíveis e dados, que apesar da pouca clareza para o agru-
substituíveis se a própria sociedade é construída, pamento de metas para a sustentabilidade exis-
se as identidades são produzidas e reproduzidas te diferença significativa entre os três distintos
continuamente, a todos esses objetos, pode-se grupos de profissionais pesquisados. A escolha
aplicar o conceito de sustentabilidade. Em razão por essas categorias de sujeitos foram definidas
dessa grande abrangência de elementos e de porque o exercício profissional e o exercício da
complexas inter-relações, a diversidade de apli- reflexão teórica, focados em objetos diferentes
cações para a sustentabilidade não poderia estar pode moldar as percepções, representações e

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

os valores dos indivíduos, tal como foi largamen- aspectos apresentam diferenças significativas
te demonstrado pelos estudos das profissões6. no entendimento do homem e da sociedade. O
Desta forma, seria difícil acreditar que não hou- que falar então, dos profissionais entrevistados
vesse diferenças entre um gestor de sustentabili- que pertencem a diferentes ciências. A outra di-
dade subordinado a parâmetros de lucro e outro ferença significativa, encontrada entre os profis-
subordinado a parâmetros de políticas públicas. sionais entrevistados, foi uma maior concordân-
Essa diferenciação entre os sujeitos aparece, até cia dentro do grupo Academia, no que se refere
mesmo, na composição dos subconjuntos que o à “natureza física”, do que entre os profissionais
tratamento estatístico gerou dentro de cada gru- do grupo Empresa. O conceito de transigência10
po profissional. Constata-se apenas uma única pode ser aplicado nesse caso. Isto porque, a
concordância entre as afirmações que não foi as- responsabilidade pelo lucro de uma empresa
sociada a qualquer conjunto significativo de sujei- pode moldar o gestor em relação a uma ação
tos e de afirmações, mostrando alta dispersão, mais do que outro que tem a responsabilidade
tanto que o próprio software utilizado as eliminou. por políticas públicas ou a vigilância das empre-
Essa única afirmação que aparece eliminada tan- sas que exploram o ambiente. Esta adaptação
to no grupo de Empresa, como no do Governo é a (a própria “transigência”) da realidade também
afirmação 34 (investimento na diminuição do de- pode estar refletindo a importância que o discur-
semprego). Esse resultado revela que o investi- so sustentável possui nas empresas12. Fato que
mento na diminuição do desemprego não integra não se comprova no grupo Academia, em função
qualquer conjunto de metas que compõem algu- da própria natureza de sua atuação.
ma ação dirigida para promover sustentabilidade. Outra informação importante propiciada pe-
Esse item é visível apenas nos escores do grupo la análise estatística é a diversidade de composi-
Academia. Infelizmente, a falta de dados qualita- ções de ações que potencialmente gerariam sus-
tivos que explicitem os porquês das escolhas não tentabilidade. A comparação dos conjuntos de
permite caminhar adiante na compreensão dessa afirmações aglutinados e diferenciados nos 12
rejeição, aparentemente tão importante. quadrantes produzidos pelo SPSS pelos três gru-
A análise fatorial apontou apenas duas di- pos de profissionais sugere que não existe uma
ferenças significativas na amostra estudada: o concordância de caminhos para se produzir sus-
grupo Academia mostrou-se mais distante do tentabilidade. Pode-se afirmar que este resultado,
grupo Governo e Empresa, nos fatores “eman- apresenta 12 possíveis caminhos que incluem
cipação” e “natureza física”, respectivamente. ações próprias dos quatro aspectos estudados,
Houve, portanto menor concordância dentro do com exceção do quadrante 2 do grupo de acadê-
grupo Academia no que se refere à “emancipa- micos que não contempla qualquer ação alocada
ção” do que entre os profissionais consultados como emancipatória. Nesse quadrante constam
do grupo Governo. Este resultado pode indicar 16 ações que foram significativamente associa-
que na academia, dada sua característica mais das entre si como um caminho, porém sem que
reflexiva existe maior crítica com relação aos cri- fosse nele incluído qualquer ação no sentido de
térios ou condições necessárias para busca pela produzir algum fragmento emancipatório. Ne-
emancipação. Esta condição vem marcada, por nhum outro quadrante excluiu totalmente uma
exemplo, já na própria Teoria Crítica, cujos diver- das categorias de ação. Portanto, nos outros 11
sos autores, apesar de concordarem em muitos caminhos propiciados por este trabalho, a ação

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

produtora de sustentabilidade requer respeito a sustentabilidade. Ou seja, que a criação e defini-


princípios, controle sobre a natureza física, con- ção de critérios de justiça precisam estar presen-
trole sobre as condições de qualidade de vida tes na sociedade, além dos aspectos ligados aos
e ações emancipatórias. Este resultado mostra controles de danos físicos ao ambiente. Contu-
que, até certo ponto, há concordância tanto com do, tal como presente nas primeiras articulações
o princípio da responsabilidade11, como com as acerca da sustentabilidade7,8 os aspectos físicos
deslimitações do Eu10, com o cuidado com o meio e de controle de danos permanecem prioritários
ambiente2 e com a garantia de aspectos ligados frente aos demais. Assim, uma nova ética11,15,
à qualidade de vida20. apesar de reconhecidamente importante na lite-
O próprio processo utilizado para a defini- ratura e em algumas ações governamentais e or-
ção do conceito de desenvolvimento sustentável ganizacionais, ainda não ganhou o espaço que as
(hoje uma referência mundial nesta temática) ofe- atuais mudanças globais demandam.
recido por meio do Relatório de Brundtland é um Esta análise permite concluir que o conceito
indicativo desta interdisciplinaridade inerente à de sustentabilidade é um conceito, como no ca-
construção da sustentabilidade. O resultado des- so da identidade4, em constante construção e que
te esforço em aglutinar diferentes perspectivas caberá à sociedade e ao Homem atuarem no sen-
gerou um documento importante, porém que jus- tido de tornar a discussão acerca dessa problemá-
tamente por abarcar diversos aspectos tornou-se tica e seus desdobramentos em uma busca que
tão maleável, que qualquer iniciativa pode ser en- tenha em conta o próprio homem e sua condição
tendida como um esforço no sentido de buscar a ontológica, em seu vir-a-ser. Esta condição parece,
sustentabilidade7,8,22. Aspecto que acaba por abrir justamente por reconhecer o homem em toda sua
espaço de manobra para os muitos interesses potencialidade, ser a condição para que ele não
políticos e econômicos de países e organizações. apenas se reconheça e reconheça ao outro, como
Esses resultados demonstram que o campo também reconheça o mundo a sua volta.
“emancipação” é o mais fraco dentre os quatro
campos aqui considerados, na concepção estra-
tégica de sustentabilidade, por parte dos sujei-
tos. O campo mais forte, ou o que mais compõe a
Referências
concepção de sustentabilidade dos sujeitos aqui
1. Baker RM. Economic rationality and health and lifestyle
representados é o “ambiente físico”. Se os cam-
choices for people with diabetes. Social Science & Medici-
pos relativos ao “ambiente físico” e “qualidade ne. 2006; 63(9):2342-2353.
de vida” forem integrados num único campo, a 2. Carson R. Silent spring. Boston: Houghton Mifflin;1962.
mesma proporção entre os campos se mantém. 3. Castells M. A era da informação: economia, sociedade e
Entretanto, a afirmação com maior carga fatorial cultura. São Paulo: Paz e Terra; 1999.
foi a número 13 (promoção e aprofundamento da 4. Ciampa A. A estória do Severino e a história da Severina.
Um ensaio de Psicologia Social. São Paulo: Editora Brasi-
democracia, como justiça social), que pertence
liense; 1987.
ao campo “princípio” e trata da democracia e jus-
5. Ciampa A. Políticas de identidade e identidades políti-
tiça social como condições de sustentabilidade.
cas. In: Dunker CIL, Passos MC (Ed.). Uma psicologia que
Os resultados revelam que há forte concor- se interroga - ensaios. São Paulo: Edicon; 2004.
dância entre os sujeitos sobre a incapacidade de 6. Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do Tra-
ações limitadas ao nível técnico para promover a balho: contribuições da Escola Dejouriana à análise da

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 16. Randall K, Bender D, Montgomery D. Determining the
1994. opinions of health sciences students and faculty regarding
7. Doebel R. Sustainability in history. on uses and abuses of a academic integrity. International Journal for Educational In-
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8. Grober U. Deep roots. a conceptual history of sustainable 17. Ray C, Thorman J. Using Q methodology as a strategy
development. Berlim: Wissenschaftszentrum; 2007. to explore cultural opinions toward Health Care Journal of
9. Guareschi N. As relações sociais na construção das iden- International Society for the scientific study of subjectivity.
tidades. Psicologia em Estudo. 2002; 7(2):55-64. 2006; 29:3-4.
10. Habermas J. O futuro da natureza humana. São Paulo: 18. Sachs W. No sustainability without development: Aislin
Martins Fontes; 2004. Magazine; 1995. v.11.
11. Jonas H. Le principe responsabilité. France: Champ Es- 19. SPSS Statistics for Windows, IBM, Version 24.0. Ar-
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12. Layargues PP. A cortina de fumaça: o discurso empre- 20. United Nations (New York). Report of the world commis-
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14. Mckeown B, Thomas D. Q methodology: quantitative development WSSD. Johannesburg Summit; 2002. [acesso
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15. Pena-Vega A. O despertar ecológico - Edgar Morin e a 22. Veiga JE. Desenvolvimento sustentável. o desafio do
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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Possibilidades de enfrentamento do genocídio em São Paulo


Possibilities of coping with the genocide in São Paulo

Marisa FeffermannI, Sandra QuixadaII, Valter Henrique da Silva JuniorIII,


Silvia BastosIV, Geany Magalhães da SilvaV

Resumo: Abstract:

A proposta deste artigo é apresentar o percurso de construção de The purpose of this article is to present the construction of a ne-
um movimento em rede, que busca a proteção e enfrentamento tworked movement that seeks to protect and combat the violence
das violências sofridas por jovens na cidade de São Paulo, princi- suffered by young people in the city of São Paulo, especially poor
palmente jovens pobres, em sua maioria negra, que vive em ter- young people, mostly black, living in impoverished and peripheral
ritórios empobrecidos e periféricos. Parte-se do conceito de “ju- territories. It begins with the concept of “juvenícidio” to express
venícidio” para expressar conceitual e politicamente o aumento conceptually and politically the vertiginous increase of the actions
vertiginoso das ações do Estado Penal em detrimento do Estado of the Penal State to the detriment of the Rule of Law, characte-
de Direito, caracterizado pelo encarceramento em massa e pelos rized by the mass incarceration and the homicides. In Brazil, the
homicídios. No Brasil, o genocídio da juventude negra expressa genocide of black youth expresses this reality, it is considered that
esta realidade, considera-se que os homicídios dos jovens, não homicides of young people, is not only a matter of public safety,
é só uma questão de segurança pública, mas de saúde pública, but public health, so to face the complexity of this problem is ne-
assim para enfrentar a complexidade deste problema é necessá- cessary to build networks, which transcend the area of ​​health and
rio a construção de redes, que transcendam a área da saúde e public safety. In this way, civil society, represented by collectives
da segurança pública. Desta forma, aposta-se que a sociedade that historically struggle in this network with NGOs, Pastoralists,
civil, representada por coletivos que historicamente lutam nesta professionals from various public and private areas can build a
pauta em rede com as ONGS, Pastorais, profissionais de várias possibility of giving visibility to this reality and seek forms of pro-
áreas públicas e privadas podem construir uma possibilidade de tection and confrontation.
dar visibilidade a esta realidade e buscar formas de proteção e
enfrentamento. Keywords: Network; Genocide; Violence.

Palavras chaves: Rede; Genocídio; Violência.IIIIIIIVV

I
Marisa Feffermann (mfeffermann@gmail.com) é psicóloga, Mestre e Doutora
em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/
USP) e Pós-Doutora en Investigación en Ciencias Sociales, Niñez y Juventud
(CLASCO) e pesquisadora do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da
Saúde de São Paulo.
II
Sandra Quixadá (sandraquix1@gmail.com),graduanda em Psicologia pela
Universidade Uninove, estagiária do Instituto de Saúde da Secretaria de Esta-
do da Saúde de São Paulo.
III
Valter Henrique da Silva Júnior (valter.psicologo.org@gmail.com) é psicólogo
pela Faculdade Paulista
IV
Silvia Bastos (silviabastos58@gmail.com) é enfermeira, Mestre em Saúde
Pública pela Universidade Federal do Ceará, Doutora em Ciências pela Coor-
denadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São
Paulo e Pesquisadora Cientifica do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado
da Saúde de São Paulo a.
V
Geany Magalhães da Silva (gee.magalhaes@hotmail.com.br) é psicóloga
pela Universidade Cruzeiro do Sul e Assistente de Pesquisa do Instituto de
Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Introdução comércio ilegal de drogas, que têm sido aponta-


Os homicídios de jovens representam uma dos como os principais fatores de risco para a uti-
questão nacional, não é só de segurança pública, lização de armas de fogo e, consequentemente,
mas de saúde pública também4. Em 1996, a 49ª responsáveis por homicídios. Mais recentemen-
Assembleia Mundial da Saúde declara a violên- te, pesquisas revelaram que o registro de antece-
cia como importante problema de saúde pública dentes policiais pode, igualmente, ser apontado
e convoca a OMS para desenvolver uma tipolo- como fator de risco, tanto para a morte precoce
gia da violência que caracterizasse “os diferen- quanto para a ocorrência de deficiências físicas
tes tipos de violência e os elos que os conecta- de jovens no começo da idade produtiva.
riam”16. Nessa perspectiva, a Saúde Pública par- É importante atentar para as condições em
te do princípio da necessidade da compreensão que essas mortes violentas ocorrem. Compreen-
da gênese e das formas de manifestação da vio- der a vulnerabilidade social, auxilia a entender a
lência e, especificamente, dos comportamentos grande exposição de um indivíduo ou de um indi-
violentos para refletir sobre as possibilidades de víduo ou de um grupo aos problemas enfrentados
preveni-los. Busca, desta forma, compreender os na sociedade, incluindo as dificuldades de aces-
possíveis fatores que permitem a emergência de so a serviços sociais, como os de saúde, à esco-
ocorrências desse tipo de causa externa. la e à Justiça. Desta forma, busca-se articular co-
Algumas hipóteses foram produzidas para mo as condições objetivas, ou seja, as condições
explicá-las, desde a questão de comportamentos de vida, como fatores determinantes que interfe-
geradores de risco, como o consumo abusivo de rem na trajetória destes jovens, podendo adicio-
drogas lícitas e ilícitas e o envolvimento com o nar riscos ou facilidades a exposição à violência.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Da mesma forma, o conceito “juventude” genocídio da juventude tem como fonte um con-
deve ser compreendido em conexão com o uni- junto de fatores que vão desde a explícita segre-
verso cultural, político, social e econômico no gação social até o racismo velado. São condições
qual se constitui. que inferiorizam o negro, submetendo-o às pio-
res condições, como as empregatícias e de pio-
res salários. O principal propulsor da construção
O juvenicídio/genocídio desses estigmas, produzidos e reforçados pelos
No contexto de estudar o fenômeno da ju- meios de comunicação, está alicerçado no pro-
ventude, pesquisadores da América Latina têm cesso histórico das discriminações raciais cons-
buscado compreender o processo que implica tituídas no país desde a escravidão. Os indícios
em condições precárias e persistentes que cus- desses estigmas se expressam no número de
tam a vida de centenas de milhares de jovens mortes de jovens negros, na violência legitimada
não só latino-americanos, como também ameri- exercida pelo Estado, nas chacinas e no encarce-
canos e europeus, tomando por base o conceito ramento em massa, que tira de circulação inúme-
de “juvenicídio”. ros jovens, preferencialmente negros.
O conceito de juvenicídio amplia a ideia da A análise de causas de mortalidade de jo-
morte real, ou do simples registro da morte de jo- vens permite delinear um quadro que é, a um
vens, para um complexo processo de criminaliza- só tempo, complexo e preocupante. Segundo
ção dos jovens, construído a partir do campo po- o Ministério da Saúde, em 2015 houve 59.080
lítico e das indústrias culturais que estereotipam mortes em 201513. Segundo o Atlas da Violência
e estigmatizam as condutas e estilos juvenis, 201712, em 2015, mais da metade das vítimas
criando predisposições que desqualificam esse de violência eram jovens (31.264, equivalentes
mundo e o identifica como violento, perigoso e a 54,1%), das quais 71% eram negros (pretos e
criminoso. A criminalização dos jovens reforça o pardos) e 92% do sexo masculino. Entre 2005 e
preconceito, o estereótipo e o estigma inscritos 2015, nada menos do que 318.000 jovens fo-
em processos estruturantes de racialização que ram assassinados no país12. Os autores do le-
constituem condições de possibilidade nas rela- vantamento estimam que o cidadão negro possui
ções de produção e de reprodução das desigual- chances 23,5% maiores de sofrer assassinato
dades sociais. em relação a cidadãos de outras raças/cores12;
No Brasil, o tema do juvenicídio está intima- a maioria dos homicídios ocorreu por uso de ar-
mente relacionado com o que podemos denomi- ma de fogo, num total de 41.817 mortes8, que
nar como genocídio da juventude negra – consi- corresponderam a 71,9% do total de homicídios
derando que este é o grupo étnico/racial que vem no país; situações que em apenas 8% dos casos
sendo historicamente exterminado e encarcera- foram a julgamento12.
do. São os jovens negros e pobres que vivem nas Analisando o ano de 2015, a participação
periferias, em especial, aqueles que são respon- do homicídio como causa de mortalidade da ju-
sabilizados por uma crescente economia de dro- ventude masculina, entre 15 a 29 anos de idade,
gas ilícitas. correspondeu a 47,8% do total de óbitos (e 53,8%
A “guerra social” vivida hoje no Brasil con- se considerarmos apenas os homens entre 15 a
tradiz o mito fundador do Brasil, o da não violên- 19 anos)13. Em 2015, 60,9 indivíduos para cada
cia, de um país ordeiro e pacífico. O fenômeno do grupo de 100.000 jovens entre 15 e 29 foram

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

mortos; considerando apenas a juventude mas- dados apresentados no Atlas da Violência12 que
culina, este indicador aumenta para 113,6 em aponta que, em 2012, o risco relativo de um jo-
cada 100.00012. vem negro ser vítima de homicídio era 2,6 vezes
Um outro estudo, Índice de Vulnerabilidade maior do que um jovem branco.
Juvenil à Violência e Desigualdade4, realizado pela Esses dados explicitam o que podemos de-
Secretaria Nacional de Juventude, incorporando finir como o “genocídio da juventude negra”. Ao
um indicador de desigualdade racial ao indica- longo dessa década, morreram ao todo 556.000
dor sintético de vulnerabilidade à violência dos pessoas vítimas de homicídio, número que exce-
jovens (mortalidade por homicídios, por aciden- de ao número de mortes da maioria dos conflitos
te de trânsito, frequência à escola e situação de armados registrados no mundo. Comparando os
emprego, pobreza no município e desigualdade), 100 países que registraram taxa de homicídios,
constatou que os negros com idade entre 12 e entre 2008 e 2012, para cada grupo de 100.000
29 anos apresentavam mais risco de exposição à habitantes, o estudo Cerqueira, D, Coelho. D,
violência do que os brancos da mesma faixa etá- 20176 conclui que o Brasil ocupa o sétimo lugar
ria. Em 2012, o risco relativo de um jovem negro no ranking dos analisados. O executor mais con-
ser vítima de homicídio era 2,6 vezes maior do tundente é o agente do Estado; trata-se de uma
que um jovem branco. Em São Paulo, o risco re- situação de extermínio dessa parcela da popula-
lativo de um jovem negro ser vítima de homicídio ção causada por dois tipos de racismo arraigados
em relação a um jovem branco é de 1,64 (p.29). na nossa cultura: o institucional e o estrutural.
Em mapeamento das mortes registradas Por isso, é fácil concluir que se gasta mui-
em enfrentamento com a Polícia Militar do Esta- to e ineficientemente com o sistema carcerário
do de São Paulo entre 2001 e 2010 realizado pe- vigente. O custo médio mensal de um preso em
lo Instituto Sou da Paz5, os resultados apontam instituições estaduais é de 1.800,00 reais. Con-
que 93% dos mortos por ação da polícia corres- siderando o tempo de pena atribuída ao crime de
pondiam a moradores da periferia, sendo 60% jo- tráfico, tem-se que, ao final do tempo mínimo da
vens com idade entre 15 e 25 anos, 54% negros prisão, o Estado terá desembolsado 108.000,00
e pardos, 95% homens e 5% mulheres. reais6. Esses números são resultado da “política
Pessoas mortas em intervenções policiais de tolerância zero” que adotou como modelo o
são majoritariamente negras; 76% das vítimas de combate total a todo tipo de crime e a política
intervenções policiais entre 2015 e 2016 eram de guerra às drogas, tendo como resultado mais
homens negros6. As mulheres negras represen- visível à criminalização e o encarceramento dos
tam 65% das vítimas de homicídio do sexo femi- jovens negros pobres e marginalizados.
nino. Entre 2005 e 2015, os homicídios de mu- Morte materna, violência obstétrica, índices
lheres negras cresceram 22% e os homicídios de de pobreza, falta de moradia digna, filhos mortos
mulheres não negras reduziram 7,4%9. por incorretas abordagens, desemprego, menor
Além da violência física, os jovens enfren- salário, menor representação nos espaços de
tam vários tipos de preconceitos, o que significa poder e decisão, sim todos os dados mostram
que são vítimas não somente de uma violência também a opressão e o racismo sobre a mulher
física direta, como também de uma violência que negra. A base da pirâmide das opressões his-
não mata, mas que fere e muito, profundamente, tóricas, se acentua a cada crise e se exacerba
é a simbólica e moral. Isso fica evidenciado pelos a cada golpe. No país, das desigualdades, 64%

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

das pessoas sem emprego são pretas ou pardas, das terras aos remanescentes dos quilombos
conforme dados do IBGE. De 2003 a 2013, o as- (1988); a primeira lei de cotas raciais nas Uni-
sassinato de mulheres negras cresceu 54,2%, versidades do Estado do Rio de Janeiro (2002);
população que já sofre com a mais alta mortali- o Comitê contra o Genocídio da Juventude Negra
dade materna, que chega a 60% dos casos.3. (2008); o Movimento Mães de Maio, ocorrido em
Esse extermínio em massa, que ocorre em Santos – São Paulo (2006); o movimento contra
momento de “não guerra”, onde as práticas geno- a militarização entre outros.
cidas são respaldadas pelo racismo institucional,
tanto em sua forma brutal materializada, como
por sofisticados mecanismos de omissão. A in- Importância das redes
visibilidade da realidade dos negros, e, em es- A proposta de rede já faz parte de políticas
pecial, dos jovens negros – considerando a for- de saúde brasileiras, fundamentadas por várias
ma que são executados legal e ilegalmente pelos legislações e normas vigentes: o Decreto 7.508
agentes do Estado –, a banalização e neutraliza- de junho de 20113 que regulamenta a Lei 8080
ção dessas violências, a perpetuação do mito da de 1990 e as Redes de Atenção à Saúde; a Por-
democracia racial produzem um efeito nefasto taria nº 3.088, de 23 de dezembro de 201114,
que impede, muitas vezes, as vítimas de se ins- que institui a Rede de Atenção Psicossocial para
trumentalizar contra as violências a que são sub- pessoas com sofrimento ou transtorno mental e
metidas, ao mesmo tempo em que as fazem in- com necessidades decorrentes do uso de crack,
corporar e reproduzir como verdades os estigmas álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Úni-
a que são submetidas. co de Saúde.
Por fim, ressaltar que contradizendo a ideia Entende-se rede social como um conjunto
do homem Cordial de Sergio Buarque de Holanda heterogêneo de iniciativas e recursos formais e
(1936), historicamente o povo brasileiro resistiu informais dispostos para atender necessidades
as inúmeras violências impetradas pelo Estado. e interesses de um grupo ou da sociedade. Para
Apesar da disseminação do mito da “democra- os fins de análise das redes utilizadas por jovens,
cia racial vários movimentos sociais surgiram procura-se identificar estratégias dispostas por es-
se rebelando contra essa opressão social e de te grupo para superar a ausência ou a deficiência
Estado. Historicamente, podemos citar a luta do Estado no atendimento às suas necessidades
dos quilombos, destacando o Quilombo dos Pal- desenvolvimento humano. No caso, rede social se
mares, em Alagoas (1680-1695); a Revolta dos entende como uma estrutura participativa, aberta
Malês, ocorrida na Bahia (1835); a Cabanagem e com autonomia entre os indivíduos ou organiza-
(1835-1840); a Revolta Popular, ocorrida no Pa- ções que são agregados por laços formados em
rá (1.835–1.840); a Balaiada; a Revolta Popular, torno de valores e objetivos compartilhados, sem
ocorrida no Maranhão (1838–1841); a Revolta da que as partes percam sua identidade2.
Chibata (1910); a criação da Frente Negra Bra- Na dimensão social consideram-se as nor-
sileira (1931); a Criação do Teatro Experimental mas, costumes e valores tradicionais, heranças
do Negro (1944); a Fundação do Movimento Ne- culturais, relações sociais relativas ao ambiente.
gro Unificado (1978); e, mais recentemente, a Lei A dimensão política necessita da participação e
Caó, que classifica o racismo como crime inafian- a aplicação dos direitos humanos. A dimensão
çável (1985); o reconhecimento da propriedade econômica requer emprego, ocupação produtiva

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

e criativa, salários justos. Enfim, a rede requer o tecnológicos estruturados, pois suas ações
desenvolvimento das capacidades humanas, de mais estratégicas configuram-se em processos
suas habilidades e conhecimentos para fortificar de intervenção, operando como tecnologias de
iniciativas que realizem o bem comum, que aten- relações e de subjetividades. Assim, o que ca-
da interesses sociais e no caso da saúde que racteriza a promoção da saúde é a constatação
facilite a resolução de problemas e agravos2. do papel protagonista dos determinantes gerais
A noção de rede, assim, compreende saú- sobre as condições de saúde. Este se sustenta
de e ambiente como fatores interdependentes no entendimento que a saúde é produto de um
e inseparáveis, portanto, o desenvolvimento co- amplo espectro de fatores relacionados com a
munitário e a identidade de uma comunidade ou qualidade de vida, incluindo um padrão adequa-
grupo é fato a ser considerado quando se cogita do de alimentação e nutrição, e de habitação e
em participação, auto-organização e também a saneamento; boas condições de trabalho; opor-
cogestão de recursos naturais da coletividade. tunidades de educação ao longo de toda a vida;
Por isso, na rede, a ideia de partilha de poder ambiente físico limpo; apoio social para famí-
é inerente, a ausência de um líder é substituída lias e indivíduos; estilo de vida responsável; e
pela negociação contínua, autodeterminação, e um espectro adequado de cuidados de saúde.
pela coesão que surge da necessidade sentida Suas atividades estariam, então, mais voltadas
de maneira comum por um grupo. As pessoas ao coletivo de indivíduos e ao ambiente, com-
se agrupam espontaneamente, seja pelos modos preendido num sentido amplo, de ambiente fí-
de ver análogos, ou por sentirem de modo seme- sico, social, político, econômico e cultural, atra-
lhante transtornos de suas existências. vés de políticas públicas e de condições favorá-
As redes são espaços de harmonia, mas es- veis ao desenvolvimento da saúde (as escolhas
paços nos quais se admite o conflito e nos quais saudáveis serão as mais fáceis) e do reforço
deve existir constante negociação e autodeter- (empowerment) da capacidade dos indivíduos e
minação. Para Baumann1, (2003) apud Costa7, das comunidades15.
(2005) a rede se relaciona à proteção e à união
das pessoas tornando-as fortes. Também a ideia
de teia se relaciona à proteção ajudando-as a en- Seminário Internacional Juventudes e
frentar iniquidades e fragilidades específicas que Vulnerabilidades – a ideia de formação de uma
as tornam vulneráveis a determinados agravos. rede
De acordo com Barroso, para se construir O “I Seminário Internacional Juventudes
ou fortificar redes em saúde é necessário que e Vulnerabilidades: homicídios, encarceramen-
se conheça a situação de vida e suas concep- to e preconceitos”VI foi organizado em conjunto
ções de saúde e as redes operantes que se for-
maram naturalmente, sejam elas de caráter for- VI
O evento faz parte de uma série de esforços de pesquisadores da CLACSO da
América Latina e Iberoamérica, que tem estudado as condições dos jovens, em
mal ou informal, acredita-se também que essas especial quanto às políticas de criminalização e estigmatização, principalmente
iniciativas denotam o grau de percepção de ne- de negros e indígenas moradores de bairros e territórios periféricos. Esse gru-
po já elaborou um livro Juvenicidio: Ayotzinapa y las vidas precarias en América
cessidades de um grupo e suas aspirações de Latina y España, buscando retratar como as juventudes e vulnerabilidades a
partir da análise dos homicídios, encarceramentos e preconceitos que ocorrem
melhoria coletiva. em cada um dos países e participou de diversos eventos para disseminar seu
conteúdo Feira do Livro, em Guadalajara - México (2015) e em seminários e
As ações em saúde não podem ser expres- congressos realizados em Tijuan - México (2015), em Havana - Cuba (2016),
em Ciudad de Juarez - México (2016), em Buenos Aires - Argentina (2016); na
sas somente nos equipamentos e nos saberes Espanha (2016) e em Montevideo - Uruguai (2017).

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

com professores da Faculdade de Direito da em grupos para discutir os temas do seminário:


Universidade de São Paulo (USP). Com a partici- (1) a cor do homicídio, (2) racismo institucional,
pação da Defensoria Pública do Estado de São (3) encarceramento em massa, (4) drogas e cri-
Paulo, de conselhos profissionais (quais???) e minalização dos jovens, (5) violência de gênero.
de cerca de 40 coletivos que militam e traba- Também foi montado um grupo de estudantes
lham com o tema da juventude e negritude, reu- secundaristas. As questões que respaldaram as
niu em por três dias pessoas com o objetivo
discussões foram “o que pega”, “quais as estra-
contribuir com as áreas técnicas de saúde do
tégias para lidar com estas questões”, “como
adolescente e do jovem e da saúde da popula-
construir uma rede”.
ção negra, na efetivação de políticas públicas
Esse exercício que possibilitou que profissio-
que respeite e incentive a diversidade étnico/
nais de várias áreas, coletivos sociais pensassem,
racial, sexual e social.
em conjunto, a construção de um trabalho em rede.
Os dois primeiros dias ocorreram na Facul-
dade de Direito da USP e o terceiro na Escola de
Samba (qual) de Sapopemba, com os conteúdos:
A sistematização do seminário
o “juvenicídio” na América Latina e Europa; a cor
O Seminário contou com 3.000 participantes,
dos homicídios; os meios de comunicação como
sendo 80% mulheres. Em relação À raça/cor, 48%
fomentadores do medo e do preconceito racial;
eram brancos e 48% pretos ou pardos, 1% amarelo
os movimentos de resistência; o encarceramento
em massa –símbolo do Estado Penal; a Criminali- e 1% indígena. A maioria (66%) era jovem e 1/3 adul-
zação das juventudes; as políticas de drogas; e o tos (34%). Em relação à escolaridade, 61% haviam
racismo institucional. completado o curso superior, 21% a especialização
Em Sapopemba, o grande objetivo foi se- e quase metade (46%) atuava profissionalmente no
mear a proposta de uma construção da Rede de setor público, sendo 22% na área de Saúde.
Proteção e Resistência aos Genocídios. Para is- Com relação a grupos organizados, participa-
so, os cerca de 500 participantes, se dividiram ram do seminário 900 coletivos de toda a cidade.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Imagem 2 - Coletivos Organizados que Participaram do Seminário – por região

Realizando uma relação entre os coletivos e Essa diversidade de profissionais da área


organizações não-governamentais existentes em de serviços públicos apresenta potencial para a
cada região (como demonstrado no mapa para a atuação de redes informais juntos a redes for-
Região Leste), foi possível destacar a importân- mais já ocupadas por essas pessoas.
cia de que a rede atinja com discussão as regi-
ões Sul, Leste, Oeste, Norte e Central do municí-
pio de São Paulo.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Imagem 2 – Área de Atuação de Servidores Públicos – visualização de interface de atuação em rede

Uma proposta de rede virtual e presencial As demandas vão se intensificando, a cons-


A partir deste processo convidamos os trução de fios que se entrelaçam e vão se trans-
participantes do Seminário, para seguirmos na formando em nós que por vezes respondem as
construção de um espaço de reflexão e cons- expectativas e por outras se desfazem. A dificul-
trução de uma Rede de Proteção e Resistência. dade de romper algumas barreiras e ações pré-
Os participantes dos coletivos e dos serviços -estabelecidas, preconceito, racismo institucional
públicos e privados foram contatados e inclu- tem se mostrado uma constante. Em algumas re-
ídos em grupos de whatsapp a partir de sua giões formalmente existem redes, que na prática
região de atuação. não são resolutivas, outras que dependem exclu-
A proposta foi que cada reunião fizesse sivamente de profissionais emprenhados. Neste
reuniões mensais, compondo Redes de Prote- início de construção, pôde-se perceber a impor-
ção e Resistência Regional, para um encontra tância de conhecer o território, de andar pelas
bimestral geral com toda a rede. Uma propos- ruas, de conhecer os moradores, de sair das ins-
ta que está sendo delineada, com a participa- tituições e por outro lado a importância dos cole-
ção de 130 coletivos. Ocorreram Reuniões na tivos entrarem em contato com os entraves ins-
Zona Leste em Sapopemba, Cidade Tiradentes, titucionais de alguns órgãos públicos e privados.
Jardim Bonifácio e São Mateus. Na Zona Oeste Têm-se ciência, que a empreitada desta re-
as reuniões foram na Vila Dalva, São Remo e de de enfrentamento das violências é imensa,
alguns bairros de Osasco, já na região Central considerando o Estado que tem uma grande leta-
os encontros ocorreram na Favela do Moinho, lidade policial, o medo e a insegurança de quem
na ocupação Mauá, na Ocupação São João e na vive o cotidiano violento “das quebradas”. Toda-
Pastoral. Na zona norte, os encontros foram rea- via, este enfrentamento deve ser feito por todos
lizados em Perus, Taipas e Jardim Peri. Na Zona e todas considerando que é nossa responsabili-
Sul, Capão Redondo e Jardim Ângela. dade a defesa da vida destes jovens.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Referências 8. Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Anuário


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dá outras providências. Brasília: Presidência da República; 2017. Brasília; 2017.
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decreto/d7508.htm. 14. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088 - institui a Rede
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Secretaria Nacional de Juventude, Ministério da Justiça e transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Índice de vulnera- de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Úni-
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blication/312138855_DEMOCRACIA_RACIAL_E_HOMICI- Sundsvall sobre ambientes favoráveis à saúde. In: 3ª Con-
DIOS_DE_JOVENS_NEGROS_NA_CIDADE_PARTIDA. ferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Sundis-
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personal communities, collective intelligence. Interface (Bo- www.iasaude.pt/attachments/article/155/Declara%C3%83
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ext&pid=S1414-32832005000200003. armas de fogo no Brasil. Rio de Janeiro: FLACSO; 2016.

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

A Artista abstratas que permitem redirecionamentos duran-


Lilia Perrone te a sua execução, os sentimentos e emoções da
artista, externalizando sua interioridade e o seu
diálogo com a vida e seus elementos, ao mesmo
tempo em que permite a interlocução, interação e
interpretação diversa de quem os observa.

Contatos: Face: Lilia Perrone Artista Plástica


Email: lilia.perrone@hotmail.com
Tel: (11) 975793174

Série Giz Pastel em Papel:


É artista plástica, pintora, arteterapeuta e
psicóloga e outogada como Professora pelo Insti-
tuto Pero Vaz de Caminha, em 1984.
Já participou de diversas exposições no Bra-
sil e em outros países como Grécia, Espanha, Es-
tados Unidos e França e foi catalogada no Annua-
rie de L’Arte Internacional, por Patrick Sermadiras,
Publicité Edition e Relations Publiques, em Paris.

Prêmios:
- 1985, em Dallas - Estado Unidos, com Prêmio
de Exposição
- 1984, em Paris, França, pelo Le Centre Interna-
cional D’Arte Contemporaine, com a Grande Me-
dalha de Bronze
- 1983, em São Paulo, com a Láurea Pero Vaz de
Caminha, pela memória do escrivão
- 1983, em São Paulo, pela União dos Artístistas
Plásticos e pela Sociedade Brasileira de Plásti-
cas de Guararapes, com a Grande Medalha de
Prata III
- 1997, Prêmio por Destaque Profissional, pela
Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.
Suas obras, que se utilizam de diversos ma-
teriais de pintura, extravasam com o uso de formas

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Informações básicas e instruções aos autores Subtítulos do texto: nos subtítulos não se deve usar números,
mas apenas letras, em negrito e caixa Ab, ou seja, com mai-
O Boletim do Instituto de Saúde (BIS) é uma publicação se- úsculas e minúsculas.
mestral do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da
Corpo do texto: o corpo do artigo deve ser enviado em Times
Saúde de São Paulo. Com tiragem de dois mil exemplares,
New Roman, corpo 12, com espaçamento simples e 6 pts
a cada número o BIS apresenta um núcleo temático, defini-
após o parágrafo.
do previamente, além de outros artigos técnico-científicos,
escritos por pesquisadores dos diferentes Núcleos de Pes- Transcrições de trechos dentro do texto: devem ser feitas em
quisa do Instituto, além de autores de outras instituições de Times New Roman, corpo 10, itálico, constando o sobreno-
Ensino e Pesquisa. A publicação é direcionada a um público me do autor, ano e página. Todas essas informações devem
leitor formado, primordialmente, por profissionais da área da ser colocadas entre parênteses.
saúde do SUS, como técnicos, enfermeiros, pesquisadores,
médicos e gestores da área da Saúde. Citação de autores no texto: deve ser indicado em expoen-
te o número correspondente à referência listada. Deve ser
Fontes de indexação: o BIS está indexado como publicação
colocado após a pontuação, nos casos em que se aplique.
da área de Saúde Pública no Latindex. Na Capes, o BIS está
Não devem ser utilizados parênteses, colchetes e similares.
nas áreas de Medicina II e Educação.
Citações de documentos não publicados e não indexados na
Copyright: é permitida a reprodução parcial ou total desta pu-
literatura científica (relatórios e outros): devem ser evitadas.
blicação, desde que sejam mantidos os créditos dos autores
Caso não possam ser substituídas por outras, não farão parte
e instituições. Os dados, análises e opiniões expressas nos
da lista de referências bibliográficas, devendo ser indicadas
artigos são de responsabilidade de seus autores.
somente nos rodapés das páginas onde estão citadas.
Patrocinadores: o BIS é uma publicação do Instituto de Saú-
de, com apoio da Secretaria de Estado da Saúde de São Referências bibliográficas: preferencialmente, apenas a bi-
Paulo. bliografia citada no corpo do texto deve ser inserida na lista
de referências. Elas devem ser ordenadas alfabeticamente
Resumo: os artigos submetidos para publicação deverão ser e numeradas, no final do texto. A normalização seguirá o
enviados para o e-mail boletim@isaude.sp.gov.br, antes da estilo Vancouver.
submissão dos artigos. Deverão ter até 200 palavras (em
Word Times New Roman, corpo 12, com espaçamento sim- Espaçamento das referências: deve ser igual ao do texto, ou
ples), em português, com 3 palavras-chave. Caso o artigo seja, Times New Roman, corpo 12, com espaçamento sim-
seja aprovado, um resumo em inglês deverá ser providen- ples e 6 pts após o parágrafo.
ciado pelo autor, nas mesmas condições do resumo em por-
tuguês (em Word Times New Roman, corpo 12, com espa- Termo de autorização para publicação: o autor deve autorizar,
çamento simples, acompanhado de título e palavras-chave). por escrito e por via eletrônica, a publicação dos textos envia-
dos, de acordo com os padrões aqui estabelecidos. Após o
Submissão: os artigos submetidos para publicação devem aceite para publicação, o autor receberá um formulário espe-
ser enviados, em português, para o e-mail boletim@isaude. cífico, que deverá ser preenchido, assinado e devolvido aos
sp.gov.br e ter entre 15.000 e 25.000 caracteres com espa- editores da publicação.
ço no total (entre 6 e 7 páginas em Word Times New Roman,
corpo 12, com espaçamento simples), incluídas as referên- Obs.: no caso de trabalhos que requeiram o cumprimento da
cias bibliográficas, salvo orientações específicas dos edito- resolução CNS 196/1996 será necessária a apresentação
res. O arquivo deve ser enviado em formato Word 97/2003, de parecer de comitê de ética e pesquisa.
ou equivalente, a fim de evitar incompatibilidade de comu-
nicação entre diferentes sistemas operacionais. Figuras e Avaliação: os trabalhos são avaliados pelos editores cientí-
gráficos devem ser enviados à parte. ficos, por editores convidados e pareceristas ad hoc, a cada
edição, de acordo com sua área de atuação.
Título: deve ser escrito em Times New Roman, corpo 12, em ne-
grito e caixa Ab, ou seja, com letras maiúsculas e minúsculas. Acesso: a publicação faz parte do Portal de Revistas da SES-
-SP, em parceria com a BIREME, com utilização da metodolo-
Autor: o crédito de autoria deve estar à direita, em Times New gia Scielo para publicações eletrônicas, podendo ser aces-
Roman, corpo 10 (sem negrito e sem itálico) com nota de sada nos seguintes endereços:
rodapé numerada informando sua formação, títulos acadêmi-
cos, cargo e instituição a qual pertence. Também deve ser Portal de Revistas da SES-SP – http://periodicos.ses.sp.bvs.br
disponibilizado o endereço eletrônico para contato (e-mail). Instituto de Saúde – www.isaude.sp.gov.br

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Educação, Comunicação e Participação em Saúde

Orientação aos autores – Notas técnicas de Avaliação de obedecer a seguinte estrutura: Introdução que aborde o
Tecnologias de Saúde contexto de realização do parecer ou informe, o problema
estudado, e a tecnologia avaliada; Método com pergunta
Notas Técnicas de Avaliação de Tecnologias de Saúde de investigação estruturada, bases de dados de literatura,
incluem pareceres técnico-científicos e outros tipos de estratégias de busca de informações científicas, critérios
informes rápidos de avaliação de tecnologias de saúde para seleção e análise dos estudos incluídos; Resultados
(ATS), que possam contribuir para subsidiar a tomada de e Discussão que inclua uma apreciação sobre as limita-
decisão sobre incorporação e ou exclusão de tecnologias ções do estudo, a interpretação dos autores sobre os re-
no sistema de saúde. Ensaios e reflexões sobre aspectos sultados obtidos e sobre suas principais implicações e a
metodológicos e sobre políticas relacionadas à ATS tam- eventual indicação de caminhos para novas pesquisas.
bém são bem-vindos. Recomendação que possa subsidiar uma tomada de de-
cisão por gestores nos diferentes âmbitos do sistema de
Tamanho do texto saúde.

• Deve ter até 2.000 palavras (excluindo resumo, tabela, • F ontes de financiamento: devem ser declaradas todas as
figura e referências), no máximo uma tabela ou figura e fontes de financiamento ou suporte, institucional ou priva-
até 10 referências. Sugere-se a seguinte distribuição das do, para a realização do estudo.
partes do texto: Introdução (até 600 palavras); Método
(até 300 palavras); Resultados e Discussão (até 1.000 • C
 onflito de interesses: deve ser informado qualquer po-
palavras); Recomendação (até 100 palavras). tencial conflito de interesse.

• O resumo não precisa ser estruturado e deve ter até 150 • A spectos éticos: informar sobre avaliação por um comitê
palavras, e ser apresentado em português e inglês. de ética em pesquisa, quando pertinente.

Estrutura do texto •C
 olaboradores: devem ser especificadas as contribuições
individuais de cada autor na elaboração do artigo.
•Não há uma estrutura para apresentação de Notas Técni-
cas no formato ensaios e reflexões. • A gradecimentos: incluem instituições que de alguma for-
ma possibilitaram a realização da pesquisa e/ou pessoas
• A s Notas Técnicas relativas a pareceres técnico-científi- que colaboraram com o estudo, mas que não preenche-
cos e outros tipos de informes rápidos de ATS, devem ram os critérios para serem coautores.

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