Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na
América. Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói, Curso Pós-graduação em História, Universidade
Federal Fluminense. (tese de doutoramento). 1999.
estudo esteve muito baseado nas sugestivas e originais hipóteses de trabalho e
resultados da renovada historiografia argentina dos últimos anos2 especialmente para a
campanha de Buenos Aires, que em boa medida tiveram vigência e foram verificadas
em nosso trabalho. Entre as principais conclusões, que contrariam a visão tradicional de
uma paisagem agrária conformada apenas por grandes latifúndios pecuários manejados
por poucos e indômitos peões livres, indicamos uma presença majoritária de lavradores
dentre os produtores rurais; a existência de uma variada gama de criadores de animais,
que se iniciava com poucas dezenas de cabeças e alcançava rebanhos vacuns de
algumas milhares de cabeças (ainda que 68% dos proprietários possuíssem até 500
animais); o fato de que mais da metade das “estâncias” (definidas por nós como as
unidades produtivas com mais de cem cabeças vacuns), eram na verdade
estabelecimentos mistos, dedicados simultaneamente à pecuária e à agricultura
(especialmente do trigo e da mandioca); uma forte presença de mão-de-obra escrava,
não só na agricultura mas também na pecuária e, finalmente, que grande parte dos
denominados “lavradores” eram, também, pastores, criadores de pequenos rebanhos de
gado. Naquele trabalho abordamos a capitania como um todo, a partir de uma amostra
de 541 inventários, tomados de cinco em cinco anos. Aqui utilizaremos a mesma
amostragem.
Quadro 1
2
GARAVAGLIA, J.C. Pastores y labradores de Buenos Aires. Una historia agraria de la campaña
bonaerense 1700-1830. Buenos Aires, Ediciones de la Flor, 1999. GELMAN, J. Campesinos y
estancieros. Una región del Rio de la Plata a fines de la época colonial. Buenos Aires, Libros del Riel,
1998. MAYO, Carlos. Estancia y sociedad en la pampa 1740-1820. Buenos Aires, Biblos, 1995.
2
Rio de Janeiro e Corte 363.940 146.060 510.000 28,6
Minas Gerais 463.342 168.543 631.885 26,7
São Paulo 160.656 77.667 238.323 32,6
Rio Grande Sul 63.927 28.253 92.180 30,6
Brasil 2.488.743 1.107.389 3.596.132 30,8
Quadro 2
% da população escrava sobre a população total do Rio Grande do Sul, 1780-1807
3
GUTIÉRREZ, Horacio. Crioulos e africanos no Paraná 1798-1830. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 8 n° 16, pp. 161-188, mar-ago 1988. p. 163
3
mortem 4, temos que 87% dos inventariados eram proprietários de escravos. Como bem
observou Garavaglia5, os inventários são uma fonte socialmente determinada e sobre-
representam os setores mais ricos da sociedade, aqueles que tem algum bem a declarar.
Mas, certamente, os escravos estavam entre os bens relevantes que justificavam a
abertura de inventário. João Fragoso6, utilizando-se também de uma amostra de
inventários para o período de 1810 a 1830 para o Rio de Janeiro, importante área de
plantation produtora de açúcar, encontrou que 90% dos inventariados eram
proprietários de escravos, percentual muito semelhante ao do Rio Grande (87%). Este
percentual, por si só, elide a idéia de que os escravos, nesta capitania, alocavam-se
apenas na produção mais remuneradora e mais capitalizada, a do charque. Já
Garavaglia7 para a campanhha de Buenos Aires, também utilizando-se de inventários
(1750-1815) encontrou que 51% dos produtores rurais possuíam escravos.
Através do quadro 3 , que estabelece o tamanho dos plantéis e sua frequência no
meio rural8, pode-se observar que a grande maioria - 75% - dos proprietários de
escravos do Rio Grande possuía no máximo 9 cativos. Quase a metade dos proprietários
detinha até 4 escravos e os proprietários de até 9 escravos compunham três quartos de
todos os senhores, mas detinham apenas 35% dos cativos.
Quadro 3
Distribuição dos proprietários e escravos, por faixa de tamanho do plantel
meio rural, (1765-1825)
4
A amostra constitui-se de 541 inventários, tomados de 5 em 5 anos e para todos os distritos do Rio
Grande, para o período de 1765-1825. Os inventários post-mortem encontram-se depositados no Arquivo
Público do Estadodo Rio Grande do Sul, Porto Alegre (APERGS) e a metodologia para a elaboração da
amostra encontra-se em OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores..., op. cit.
5
GARAVAGLIA, Juan Carlos. “Las “estancias” en la campaña de Buenos Aires. Los medios de
producción (1750-1815).” In: FRADKIN, Raúl O. (org.) La historia agraria del Río de la Plata colonial.
Los establecimientos productivos (II). Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1993, p. 125.
6
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça
mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. p. 76.
7
GARAVAGLIA, Juan Carlos. “Las “estancias” en la campaña de Buenos Aires. Los medios de
producción (1750-1815).” In: FRADKIN, Raúl O. (org.) La historia agraria del Río de la Plata colonial.
Los establecimientos productivos (II). Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1993.
8
Excluiu-se da amostra aqueles inventários exclusivamente urbano, ou seja, que não referiam nenhum
bem relacionado à produção agrícola ou pecuária, como terras, animais e instrumentos de trabalho.
4
10 a 19 60 16 821 27
20 a 49 25 7 703 23
50 ou mais 7 2 416 14
Total 367 100 3010 100
Fonte: 367 inventários post-mortem, 1765-1825, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do
Sul
9
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça
mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. p. 80.
5
superiores ao que tradicionalmente supôs-se necessário para o tipo de agricultura e
pecuária praticadas nos campos sulinos. Já os detentores de menos de 100 cabeças de
gado vacum, que denominamos de lavradores-pastores, possuíam a média de 3
escravos. Tanto os “estancieiros” (criadores de mais de cem animais vacuns) quanto os
pastores-lavradores praticava basicamente o cultivo de trigo e mandioca e criavam
equinos. Apenas os mais ricos estancieiros dedicavam-se também à produção de muares
e a cria de ovinos.
Os grandes proprietários de escravos do Rio Grande presentes na amostra são os
charqueadores, que detém em média 40 escravos, variando suas posses entre 15 e 68
cativos. Na Bahia, os senhores de engenho tinham, em média, 66 escravos10, número
bem superior ao dos charqueadores. Já nos distritos baianos do Recôncavo dedicados ao
cultivo da mandioca, o número médio de escravos por proprietário era de 4,5 -
quantidade também significativamente superior aos 3,3 escravos dos pastores-
lavradores sulinos.
A análise dos inventários indicou, portanto uma alta freqüência da propriedade
escrava entre os inventariados, mas em pequenos plantéis. Schwartz conclui seu
trabalho sobre a propriedade de escravos na Bahia afirmando: “a escravidão no Brasil
distribuía-se largamente entre a população livre, constituindo-se na base econômica da
sociedade como um todo e em uma forma de investimento extremamente comum e
acessível”. Mais, que a aquisição de cativos por pessoas de poucos recursos indicam
que a mão-de-obra escrava “era barata, relativamente abundante, fácil de obter e, mais
importante, fácil de repor”. Por isso a “ubiquidade” da propriedade de escravos mesmo
entre ex-escravos, os forros11. Nesses aspectos, o Rio Grande de São Pedro não se
apresenta como exceção; pelo contrário, confirma as conclusões de Schwartz.
Utilizando uma fonte mais próxima das listas nominativas, os róis de
confessados, Kuhn analisou a população de Viamão em 1751, quando a capela tinha
apenas pouco mais de 700 habitantes e 136 fogos. Encontrou uma população escrava de
origem africana que correspondia a 45% do total, além de 3,2% de índios
administrados. Os campos de Viamão, quatorze anos após a fundação do presídio de
Rio Grande (1737), possuíam uma proporção de escravos semelhante a das zonas
10
SCHWARTZ, S. Segredos internos. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 361
6
mineradoras ou de plantation! Naquele momento estavam estabelecendo-se as primeiras
estâncias de criação. Após a invasão espanhola de 1763, sua população será reforçada
por parte dos habitantes de Rio Grande que aí se refugiaram. Em 1778, a população
escrava diminuiu para 40,5% do total, estando presente em 65% dos fogos, ou unidades
censais12. A escravidão aparece, portanto, como uma característica estrutural da região,
ainda no que poderíamos chamar de período formativo.
Passemos agora à análise das “relações de moradores e seus estabelecimentos”,
elaboradas em 1797, existentes apenas para quatro distritos e freguesias: Viamão, Caí,
Nossa Senhora dos Anjos e Porto Alegre. Trata-se de um levantamento das áreas rurais,
excluindo as urbanas, que lista todos os proprietários ou ocupantes de terras (há muitos
chefes de domicílio que “vivem a favor” de outros proprietários), os tipos de rebanhos
possuídos e sua quantidade e o número de escravos. Além de uma parte da área rural de
Porto Alegre, todos os outros distritos/freguesias situam-se no seu entorno, nos
arredores da capital, nos quais predominavam a agricultura e a criação de animais de
médio porte, se comparado com outras freguesias da capitania. Em nenhuma delas
houve registro de charqueadas.
11
SCHWARTZ, S. Segredos internos. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 368-370.
12
KUNH, Fábio. “Gente da fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa – século XVIII”.
In: GRIJÓ, KUHN, GUAZZELLI e NEUMANN (org.). Capítulos de história do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2004. p. 47-74.; p. 50-55.
7
20 a 49 2 1,3 54 8,0
Total 153 100,0 670 100,0
Fonte: Viamão: "Relação de estancieiros e mais moradores que possuem terras nesta freguesia
da Conceição de Viamão em 30 de junho de 1797." Códice 1198-A, AHRS
Viamão tinha 202 estabelecimentos rurais, dos quais 75,7% contavam com
escravos (proporção mais alta do que a encontrada por Kuhn com os róis de confessados
para o ano de 1778). Em quase todos as unidades refere-se a prática da agricultura, com
a expressão “usa de toda a planta”. Quando os cultivos são especificamente
mencionados, os mais comuns são o trigo e a mandioca, seguidos pelo milho, feijão e o
algodão. Os grandes proprietários de rebanhos, com mais de mil reses, são apenas sete e
todos eles possuem, no mínimo, 10 escravos cada um. Dentre eles situam-se os dois
maiores plantéis e rebanhos: 32 escravos e 9 mil reses, e 22 escravos e seis mil reses.
No entanto, estes grandes estancieiros estavam rodeados de pequenos produtores
escravistas. 89% dos proprietários detinham até 9 escravos e 28% do total tinham um
único escravo. Estes 89% dos proprietários detinham 65% do total de escravos (670). O
número médio de escravos nesta freguesia era de 4,4 e a moda 1.
8
faixa de n° de % do total n° de escravos % do total de
tamanho do proprietários de escravos
plantel proprietários
1a4 41 60,3 89 19,2
5a9 10 14,7 79 17,1
10 a 19 12 17,6 165 35,6
20 a 49 5 7,4 130 28,1
Total 68 100,0 463 100,0
Fonte: “Relação de moradores do distrito do Caí e de seus estabelecimentos. 3 de Agosto de
1797, tenente José de Azevedo e Sousa.” Códice 1198-A, AHRS
9
50 ou mais 1 1,2 83 17,5
Total 86 100,0 473 100,0
Fonte: "Moradores da freguesia de Nossa Senhora dos Anjos que possuem estâncias ou outros
quaisquer estabelecimentos por sesmaria, escrituras ou títulos legítimos e ainda sem eles, em 12
de julho de 1797 anos." Códice 1198-A, AHRS
Por fim temos uma relação de Porto Alegre, muito parcial, que abarca apenas
130 produtores, dos quais 99 possuíam escravos. Confrontando o total de escravos
listados, 339, com um mapa de população de 1798, temos que aí estão representados
apenas 25% dos escravos da capital da capitania. Não há maiores detalhes na relação,
mas é de se supor que ela seja de um dos distritos rurais da capital. Feita esta ressalva,
temos que 76% dos produtores possuíam escravos, com um plantel médio de 3,4
cativos. Os proprietários de apenas um escravo são 32% dos senhores, e aqueles que
detém até 9 escravos são nada menos que 93% do total de proprietários, controlando
74,7% da escravaria. Neste distrito de Porto Alegre não existia plantel de mais de 20
escravos, sendo o maior de apenas 15 cativos. Das quatro localidades analisadas, esta é
a que apresenta os menores plantéis, ainda que a propriedade de cativos estivesse
bastante disseminada (76%), tanto quanto em Viamão e Caí. Como especialização
produtiva, destaca-se a presença de atafonas, em 3 propriedades; estes estabelecimentos
possuíam em média 7 cativos, enquanto os detentores de rebanhos de menos de cem
cabeças tinham plantéis médios de 3,4 cativos (a mesma média do distrito). De 130
produtores, apenas cinco tem mais de cem reses. O distrito é tipicamente conformado
pelos pastores-lavradores: praticamente todos dedicavam-se às lavouras, sendo
freqüentes as referências, também, às casas, currais e “árvores de espinho”. A área de
Porto Alegre foi sempre identificada como uma região de predomínio de mão-de-bra
familiar, devido à presença dos casais açorianos. O estudo da estrutura da posse de
escravos traz fortes indicativos de que, no mínimo, a mão-de-obra escrava era
complementar à mão-de-obra familiar.
10
tamanho do proprietários de escravos
plantel proprietários
1a4 76 76,8 147 43,4
5a9 16 16,2 106 31,3
10 a 19 7 7,0 86 25,3
Total 99 100,0 339 100,0
Fonte: Códice 1198-A, fls. 9 a 17. AHRS
Como observações finais, podemos afirmar que a análise da estrutura de posse
de escravos através das quatro “relações de moradores” corrobora os resultados antes
obtidos com a amostra de inventários. A capitania do Rio Grande de São Pedro,
excluídas suas áreas urbanas, que não foram objeto de análise, apresentou um alto
índice de disseminação da propriedade de escravos entre a população livre: de 87%
(amostra de inventários para toda a capitania, no período 1765-1825) a 76% ( Viamão,
Caí, Porto Alegre em 1797) e 65% (Nossa Senhora dos Anjos, 1797). Se na amostra os
pastores-lavradores (aqueles com menos de 100 cabeças de gado vacum) detinham um
plantel médio de 3,3 escravos, uma média bastante abstrata por abarcar um período de
60 anos e todas as localidades do Rio Grande, as “relações” fornecem dados mais
concretos, expressando a diversidade da estrutura agrária entre as áreas: 2,7 cativos em
Viamão, 6,1 em Caí, 3,4 em Porto Alegre e 3,2 em Nossa Senhora dos Anjos. Com a
exceção de Caí, as outras médias aproximam-se bastante daquela obtida com os
inventários.
Confrontando estes resultados com outras áreas do sul da América portuguesa, o
Rio Grande destaca-se com um peso da escravidão bem superior. No estudo de Luna
para 25 localidades paulistas, tem-se que para 1777 e 1804 o percentual de fogos com
escravos era de apenas 24%, uma proporção muito distante da que encontramos para as
freguesias rio-grandenses, mesmo considerando que no estudo de Luna estão
englobados os aglomerados urbanos, que não estão contemplados em nossa análise. O
número médio de escravos por fogo no oeste paulista foi de 1,93, no vale do Paraíba
1,43, atingindo 2,3 cativos no litora, no ano de 180414, também bastante modestos. Para
Sorocaba, Bacellar determinou que em 1772 apenas 22,5% dos domicílios de lavradores
possuíam escravos. Na mesma localidade, em 1810, o percentual total de domicílios que
14
LUNA, Francisco Vida. São Paulo: população, atividades e posse de escravos em vinte e cinco
localidades (1777-1829). Estudos Econômicos, São Paulo, 28(1): 99-169, jan-mar 1998. p. 104
11
abrigavam escravos (e não apenas de lavradores) ficou em 20,4%, com um plantel
médio de 5,4 cativos.15
Já em Guarapuava, Paraná, na primeira metade do século XIX a presença
escrava é também modesta: em 1828 apenas 29,1% dos domicílios tem escravos e em
1835 o percentual desce para 20,3%, com um tamanho médio de plantel de 2,7
escravos, para os dois anos. Somente em 1840 a escravaria média será de 3,6 cativos 16.
Nas freguesias e distritos analisados do Rio Grande em 1797, o plantel médio foi
de 4,8 escravos, variando entre 3,4 (Porto Alegre) a 6,8 cativos (Caí). Tal número
médio em geral foi semelhante ou superior a de outras áreas produtoras de alimentos da
América portuguesa, em especial as meridionais.
Para além das charqueadas, pois elas não estão presentes nas áreas estudadas
com as “relações de moradores”, a escravidão esteve amplamente difundida no campo
rio-grandense, fosse na agricultura, fosse na pecuária, marcando sua estrutura agrária e
moldando sua sociedade, numa magnitude até agora insuspeitada.
15
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial. Socorocaba, séculos
XVIII e XIX. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. Respectivamente, pp. 129 e 144.
16
FRANCO NETTO, Fernando. População, escravidão e família e Guarapuava no século XIX. Curitiba:
12