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I.

O gato na estação

No momento que abriu seus olhos, já sabia estar atrasado pela claridade não usual e o
silêncio igualmente estranho que apontava que seus pais já tinham saído de casa a
algum tempo. Suas suspeitas foram confirmadas por um post-it em sua porta. Pela
letra assumiu ser da autoria de sua mãe: “ você acabou dormindo bem tarde, então
resolvi não te acordar… Bom primeiro dia de aula! Sempre orgulhosa de você ”. Uma
pequena carinha feliz fechava o bilhete. Tiago fez uma nota mental para esclarecer na
primeira oportunidade que pontualidade era bem mais importante que uma boa noite
de sono, algo que, aliás, não tinha desde o primeiro ano do colegial. Teria de se
contentar com o segundo período, embora não tenha deixado de se perguntar que
primeira impressão causaria em seus futuros colegas de universidade.
Deixou o seu usual pão com manteiga na torradeira, enquanto avaliava seu
nível de apresentabilidade. Suas olheiras estavam tão boas quanto poderiam para
alguém que dormiu todos os dias às quatro da manhã pelos últimos três meses. O fato
de estar, como sempre, se afogando nas suas próprias roupas e estar apenas um tom
mais escuro que sua parede branca certamente não o favoreciam. Um corretivo ajudou
um pouco a situação, apesar de ser consideravelmente velho e já ter passado da
validade. A torrada estava especialmente boa, o que Tiago tomou como um sinal de
boa sorte. Ele estava tentando manter uma atitude positiva.
Nove e meia da manhã. Só agora percebia que tinha esquecido seu bilhete
único, o que o colocava numa fila razoavelmente longa para a entrada do metrô. O
Senhor Maleta Suspeita parecia se encontrar na mesma situação. Senhor Maleta
Suspeita, como havia sido documentado por Tiago, estava todos os dias na estação
Vila Mariana por volta das oito da manhã e isso incluía fim de semanas. Seu blazer
xadrez, ainda tão cafona quanto se lembrava, se encontrava amassado. Ambos
perderam a hora. A maleta suspeita com seus três cadeados usuais estava bastante
estufada e seu couro um pouco mais gasto do que da última vez. Sua cara comprida,
olhos cansados e a calvície prematura complementam perfeitamente a estética de vilão
de terceira categoria. Quanto mais Tiago observava o sujeito, apreciando seu café
gelado, mais semelhanças encontrava com sua pessoa, o que o deixou extremamente
desconfortável. “ 4,50” a voz monótona do atendente o tirou do transe e o fez lembrar
o quanto a passagem de metrô tinha ficado cara nos últimos anos. “ Aqui!” esboçou
um sorriso que não foi correspondido. Foi uma boa tentativa.
Em contrapartida, não encontrou Dona Zenaide, o que fazia bastante sentido,
afinal ela nunca se atrasaria. Já se conheciam há um ano e meio. Foi numa sexta feira,
Zenaide lhe ofereceu um pacote de bala de menta garoto, uma raridade que Tiago já
não via há alguns anos. Conversaram sobre seus netos, um deles era apenas seis meses
mais novo que Tiago e tinha passado em engenharia na Poli, apesar de também ser
amante das artes, especialmente da literatura. Desde então trocaram recomendações de
livros, discutiram política e até uma vez combinaram de alimentar pombos em uma
praça perto da casa de Zenaide, ela também gostava de clichês. Acabou nunca
acontecendo. Bom, agora Tiago tinha um pacote de balas de menta garoto só para ele.
O trem já estava cheio e apesar de teoricamente tudo ser muito novo, o dia ainda
pesava com uma sólida e incomoda familiaridade sobre os ombros de mais um menino
desleixado com um caso sério de falta de sono.

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