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Processo de execucao e direito de defesa ADA PELLEGRINI GRINOVER SUMARIO: 1. Natureza juridica da execugéo penal: as divergéncias doutrindrias; 2. Seu reflexo na re- forma processual brasileira; 2.1. Primeira fase: omisséo; 2.2. Segunda fase: a insuficiéncia; 2. Terceira fase: a desatencéo; 3. Pela jurisdicion zagio do processo da execucio; 3.1. © aspecto epis- temolégico; 3.2. © aspecto deontolégico; 4. Di- reitos de defesa e processo de execucao no Projeto n° 6833/1975; 4.1. Situacio atual; 4.2. A pro- posta; 5. Conclusoes — sintese. 1. Natureza juridica da execugio penal: as divergéncias doutrinérias Nao se aplacaram ainda as dividas da doutrina sobre a natureza juri- dica da execucéo penal. Para permanecer apenas na doutrina processual penal italiana, que tio profundamente influiu sobre a nossa, podemos mencionar, em primeiro lugar, os autores que, acentuando a importancia do art. 577 do Cédigo de Processo Penal ('), configuram a atividade execu- tiva como sendo de natureza tipicamente administrativa (°). Levando em consideracao a natureza da funcdo jurisdicional e seu es- copo de atuagdo no ordenamento juridico, outra autorizada corrente doutri- ingBee executives do Ministerio Piblico @ do preter”, prov® que, iniiaiva do, Mintaro Poblic Fa perience & de Segundo ho os provimentos do 1966, ofa, 477; RENIERI, ‘execizione panafe, Turim, 1959, pag. 307, R. Inf, legis!, Brositia a. 15 m. 59 jul./set. 1978 53 naria sustenta a natureza jurisdicional da execucio penal (*). A mesma con- elusio, por distintas razées, chegam outros autores, que salientam que os atos coercitivos dos érgaos administrativos sao legais e eficazes na medida em que dimanam de ato jurisdicional, que os pressupée (*). J& em uma posigdo intermediaria alinha-se outra corrente doutrinaria que ndo reconhece a execucdo penal carater propriamente jurisdicional, mas sim “processual”: tratar-se-ia, substancialmente, do ultimo “momento” do iter processual que tem seu ponto culminante na prolagdo da sentenca (*). H& quem distinga, enfim, trés diversos aspectos da execugdo penal: pelo que respeita A relacio da sangdo com o poder punitivo estatal, a exe- cugao se enquadraria no direito penal substancial; no que tange 4 relagao da ™Mesma sancao como titulo executivo, a execugdo pertenceria ao direito pro- cessual penal; e no que concerne a atividade executiva, propriamente dita, estariamos diante do direito administrativo (*). Apesar das divergéncias doutrinarias, um dado parece pacifico, aqui como alhures: tém, incontestavelmente, natureza jurisdicional aqueles epi- sédios que se podem inserir, incidentalmente, no curso da execugio, e aos quais se costuma denominar “‘incidentes da execugio” (). 2. Seu reflexo na reforma processual brasilei As referidas divergéncias doutrinarias, que também se notam entre nés, no poderiam senao refletir-se nos trabalhos preparatorios da reforma pro- cessual penal brasileira. 2.1. Primeira fase: a omissio Em junho de 1970, era encaminhado ao Ministro da Justica o Antepro- jeto de Cédigo de Processo Penal, de autoria de José Frederico Marques, 0 qual substituia anteprojeto anterior elaborado por Hélio Bastos Tornaghi. O anteprojeto de 1970 nao cuidava do proceso de execueao, por considera- rem os orientadores da reforma legislativa mais apropriada a elaboracao, a parte, de um Codigo de Execucoes Penais, tarefa essa entregue a Benja- mim de Morais Filho, em substituigéo a anteprojeto anterior de Roberto Lyra. Reconhecendo-se, posteriormente, a inseparabilidade do processo de execugio e do processo de conhecimento, os anteprojetos Frederico Mar- ip, tre outce, DE MARSICO, dieitio processuale penale, Népoles, 1052, ply. 307; NASEILL La'Fla pute, ‘arm, ton po. (ALOIS, Manuale praise dl proctduen penelt, IV, “Delfesecuzione « del cappor! glutadiion sorts sranere”. Mal, 143, bas (2) CONS, 1 tal slit procecaual vane, MiKo; 1855, ota, 140; SABATIN| Shuopoe, Teta, dat ‘Procedimenti Inckdentall_ nal proceso” pensie, Turim, 1853, 3 SCARANO, | rapport dl dette anata, Milo, 1042, PA. 254" (6) LEONE, Tratiale dl dintio proceesuale panale, Ill, Népoles, 1981, pty. 462. (7) V, por todoa, LEONE, op. oll, phy. 472; BELLAVISTA, op. clt, pig. 481; RANIERI, op. elt, plc. 487, ™ R, Inf. legisl, Brotilia a, 15m. 59 jul/eet. 1978 ques e Benjamim de Morais Filho nao lograram seguimento legislativo. E foi entdo incumbido da elaboragao de novo anteprojeto, que abrangesse 0 pro- cesso de execucio, o Professor José Frederico Marques, por todos os seus méritos de processualista, 2.2. Segunda fase: a insuficiéncia © novo anteprojeto, depois de revisto por uma comissio composta por Hélio Bastos Tornaghi, Benjamim Morais Filho, José Carlos Moreira Alves e José Salgado Martins, além do proprio autor, foi afinal encaminha- do ao Congresso Nacional, tomando na Camara dos Deputados, como Pro- jeto de Lei, o n.° 633/1975. Em livros separados (IV e 1X), 0 projeto cuidou do processo de conhecimento — ali englobando as providéncias cautelares —- € do processo de execucio. Apesar disto, talvez pelas razoes historicas jd indicadas, o projeto ndo dava ao processo de execuedo a mesma impor- tancia dedicada ao processo de conhecimento ¢ aos provimentos cautelares. E, pelas mesmas razdes ou qui¢d por uma certa relutancia metodologica, nao chegava a tomar posicdo cientifica quanto a jurisdicionalizagao do pro- cesso de execucio. Assim, por exemplo, 0 projeto, reconhecendo embora que na execucdo penal existem o aspecto administrativo e 0 jurisdicional (arts. 851 e segs., 854 e segs. e 856 e segs., encabecando, no Titulo “Dos orgaos da execugo penal”, respectivamente, os Capitulos “Do juizo da execucao penal”, "Da administragao penitenciaria” e “Do Ministério Piblico no pro- cesso executério”) nfo atribuia ao Ministério Publico funcao de parte, li- mitando-se a vélo como fiscal da execuedo e cometendo-lhe fungdes admi- nistrativas (arts. 858 e 859, parigrafo tinico). Dessa colocagao defluem importantes conseqiiéncias para os direitos de defesa no processo de execugio, que somente podem ser plenamente asse- gurados onde a execucio penal seja plenamente jurisdicionalizada. E assim, © projeto acabava sendo inteiramente omisso quanto ao incidente de re- vogacao do sursis (arts. 877/889), do livramento condicional (arts. 890/909), do parcelamento da multa (art. 851, § 2.°); nao outorgava ao condenado su- ficientes garantias no incidente de conversao da pena pecuniaria em pena privativa da liberdade, por nao assegurar a defesa técnica nem a producdo de provas (art. 848, § 1.°); nao previa a participacio do condenado em todas as modalidades de modificagao da execugao da pena (art. 918) etc. 2.3. Terceira fase: a desatenséo Pela primeira vez na historia do direito brasileiro, um projeto de Co- digo de Processo Penal foi submetido a apreciagéo do Congresso Nacional, para a indispensavel contribuigdo do Parlamento. Na Camara dos Deputados, 0 projeto foi enriquecido por numerosas emendas parlamentares, tendo sido amplamente debatido pelos especialistas na matéria. Forcoso é reconhecer, todavia, que o processo de execucao recebeu bem pouca alencao: foram dedi- cadas ao Livro IX as Emendas oferecidas em Plendrio, de n.* 743 a 778, que nao denotaram, em sua esmagadora maioria, qualquer preocupacao pelos direitos de defesa do condenado. Com efeito, apenas as Emendas n.°* 743, R. Inf, tegis!, Brasilio o, 15 n. 59 jul./set. 1978 35 749 e 772 preocupavam-se com esse aspecto da execucao penal: as de n.% 743 e 749, de autoria do Deputado Adhemar Ghisi — incorporada apenas a primeira ao projeto aprovado pela Camara (art. 851) — tenta conferir ao Conselho Penitenciario atividade auténoma com relacio 4 administragdo penitenciéria, atribuindo-lhe a vigiléncia que deveria competir ao juiz da execucao; e a de n° 772, de autoria do Deputado Santilli Sobrinho, também adotada pelo projeto aprovado (art. 929), garante ao condenado 0 direito de defesa (embora sem alusio a defesa técnica) no incidente de revogacéo do livramento condicional. Posteriormente, 0 projeto foi adaptado a Lei n© 6.416, de 24 de maio de 1977, acolhendo-a em parte, sem que com isto se alterasse a sistemética do projeto e da legislacdo vigente no tocante ao processo de execugao. 3. Pela jurisdicionalizagao do processo de execugao A luta pela jurisdicionalizagao do processo de execugdo penal resulta de uma tomada de posicao cientifica e metodolégica. A experiéneia juridica pode ser estudada — ensina Mestre MIGUEL REALE — sob trés aspectos: norma, valor e fato (*), E os principios gerais do direito processual colocam- se entre a epistemologia e a deontologia, entre a norma e o valor ético, no limiar de ambos. A natureza juridica da execugdo penal é moldada pela ciéncia do direito Positivo, pelo direito entendido como ordem normativa: mas, ligando-se aos principios gerais que essa mesma execugio informam, nao pode desprender- Se dos valores éticos do direito. Analisemos, pois, a execugdo penal sob os Angulos epistemolégico e deontologico. 3.1. Oaspecto epistemolégico Sob o ponto de vista da dogmatica juridica, que estuda o direito como ordem normativa, o carater jurisdicional do processo de execugéo penal exsurge claramente, apesar de certas imprecisoes legislativas. Na verdade, nao se nega que a execucdo penal é atividade complexa, que se desenvolve entrosadamente, nos planos jurisdicional e administra. tio, e nao se desconhece que dessa atividade participam dois poderes es- © Judiciério e 0 Executivo, por intermédio, respectivamente, dos orgie jurisdicionais e dos estabelecimentos penais. Mas & preciso separar os dois aspectos. A aplicago da pena é objeto do Direito Penitenciario, o qual se liga ontologicamente ao direito administra- tivo, muito embora suas regras possam encontrar-se nos cédigos penal e Pprocessual penal. Mas a tutela tendente a efetivagao da sangdo penal 6 objeto do processo de execucdo, o qual guarda natureza indiscutivelmente jurisdicional e faz parte do direito processual. Deixando de lado a expiagio da pena, objeto da ciéncia penitenciéria, © processo de execucdo penal nada mais é do que o instrumento através do {@) MIQUEL REALE, Fllosotia de dievito, 1957, vol, H, n.%e 181/196, 56 R. Inf. legial. Brasilia @, 15 9. 59 jul./set. 1978

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