Você está na página 1de 10

AULA 2

TEXTO 1: COHN, Amélia. A questão Social no Brasil: A difícil construção da cidadania. In: MOTA, Carlos Guilherme. (org.).
Viagem incompleta: A experiência brasileira (1500-2000) – a grande transação. São Paulo: SENAC/SESC, 2000. p. 385-403.

1 – OBJETIVO DO TEXTO: “sintetizar os vários conteúdos – e suas conseqüências – que a questão social assume no decorrer do
século XX, consciente da ambigüidade do termo (como cidadania e cidadão, no Brasil). (p. 385)

O que é questão social no Brasil? O que a compõe?


a) Na maior parte das vezes designa “nossas mazelas sociais = problemas sociais (365)

Mas o que seriam os PROBLEMAS SOCIAIS? “um fenômeno social que ultrapassa um determinado nível considerado ‘normal’
pela sociedade a partir de determinados critérios:
1 – ÉTICOS (mais tolerados, como a fome, a pobreza, o trabalho infantil) (julgados como bons ou mal para a conduta humana –
ethos = costume; Reflexão crítica sobre a moralidade)
2 – MORAIS (violência, tráfico, consumo de drogas, devastação do meio ambiente, prostituição) Moral – regras de conduta ou
hábitos julgados inválidos para todos e cada um – normativa, varia no tempo e nas sociedades). – menos tolerados.

No Brasil há domina o pensamento social de que a pobreza está ligada à violência (problemas sociais) – vejamos:
- século XIX: Início da urbanização no Brasil – “os problemas sociais são vinculados à:
a) Carência de recursos (materiais e intelectuais) dos INDIVÍDUOS, o que os impossibilitaria viver por sua própria conta;
b)Pobreza vista como um problema individual – e a responsabilidade por seu combate seria também individual e privada = de
caráter filantrópico e voluntário.
Ao Estado caberia apenas a garantia da ordem. Pobre neste período era visto como criminoso, violento, ameaçador da ordem
pública, lascivo, sem cultura, incapaz (p. 387) “caso de polícia”.
- século XX (1901-1930) Mudanças sociais e econômicas no Brasil
(industrialização, urbanização, modernização)
Surgem novos segmentos sociais (os assalariados urbanos, especialmente imigrantes europeus anarquistas, politizados.
Movimentos de luta operária reivindicando direitos sociais básicos no ÂMBITO DO TRABALHO.

ASSOCIA-SE A CONCEPÇÃO DE QUESTÃO SOCIAL AO TRABALHO, daí surge uma distinção entre:

a) CIDADÃO – questão social dos trabalhadores, classes assalariadas urbanas = QUESTÃO DE CIDADANIA a ser resolvida pelo
PODER PÚBLICO E PELA SOCIEDADE/COLETIVIDADE, questões intoleráveis = QUESTÃO SOCIAL considerada LEGÍTIMA.

b) POBRE (Pobreza, miséria, não emprego) = QUESTÃO DE FILANTROPIA a ser resolvida pela ESFERA PRIVADA/INDIVÍDUO,
tolerável = PROBLEMA SOCIAL.

Diferente de outros países, no Brasil “nunca houve redistribuição (um pacto distributivo dos recursos para enfrentar a questão
social que sempre foi vista como algo que não deveria onerar os cofres públicos. (p. 389)

- A origem da questão social Brasileira, vinculada ao TRABALHO e ao INDIVÍDUO marcou a característica de nossas POLÍTICAS
SOCIAIS que se diretem a dois públicos:
1º - CIDADÃO – “Aquele coberto por um sistema de proteção social para o qual contribui – ex: Previdência social.;

2º - POBRE: “não contribuem e são alvos de programas filantrópicos ou de programas especiais do governo.

Portando, as políticas sociais no Brasil são de: a) SEM RECURSOS PÚBLICOS; B) DA UNIÃO (saúde pública) PREVISTAS NO
ORÇAMENTO DA UNIÃO (educação).

Então, são CARACTERÍSTICAS DO ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL:

1º) Se dirige a dois públicos distintos – cidadãos e pobres

2º) apresenta 03 tipos paralelos de políticas sociais com recursos distintos, ) SEM RECURSOS PÚBLICOS; B) DA UNIÃO (saúde
pública) PREVISTAS NO ORÇAMENTO DA UNIÃO (educação).

3º é tratada de modo paternalista e clientelista (pelo Estado brasileiro) “Ao invés de libertar, as políticas sociais comandadas pelos
Estado reproduzem a subalternidade dos pobres e sua dependência à elite política” (390)

4º a) Políticas econômicas e políticas sociais, no Brasil, sempre foram tratadas como coisas antagônicas.
b) Centralização do aparato social do Estado, visto sempre como um grande agente modernizador da sociedade – filantropo e
assistencialista.
“O enfrentamento da questão social no país é sempre estreitamente vinculado à modernidade atribuída às nossas elites políticas e
ao Estado que a regula e legitima segundo seus interesses e por antecipação, mantém a ordem vigente.

A QUESTÃO SOCIAL: CIDADANIA E MERCADO.

A autora afirma que a trajetória do Brasil e dos Brasileiros são PARADOXAIS porque:
- A implantação dos direitos sociais se deu preferencialmente em regimes autoritários;
- Quem mais se apropria de nosso ‘perverso’ sistema de proteção social são os NÃO POBRES, os pobres para os mais pobres.
“As políticas sociais brasileiras reproduzem as desigualdades sociais existentes e a subalternidade dos dominados (p. 393).
Plano de saúde é para cidadão – empregado X SUS – para os carentes.

RELAÇÃO ENTRE CIDADANIA E MERCADO DE TRABALHO NA POLÍTICA SOCIAL BRASILEIRA:


a) (1923) Surgimento da Previdência Social para os assalariados;
1990) – Modelo combatido pelas elites para flexibilizar a economia
b) 1950 – O estado, fomentando o mercado (privado), subsidiando ou comprando serviços (Ex: Educação, livro didático, PROUNI,
renuncia fiscal) – A produção dos serviços sociais se torna PRIVADA.

C) 1990 – Novo padrão de solidariedade social: baseada não no MERCADO DE TRABALHO mas no MERCADO DE CONSUMO:
- Flexibilização das relações de trabalho;
- terceirização dos serviços;
- redução do tamanho do Estado e do gasto público;
“ O cidadão agora como capacitado a consumir e a poupar (p. 390) de ATIVO/INATIVO para “CADA UM POR SI”;
- substituição do tempo de trabalho pelo tempo de contribuição (na previdência), independente de se autônomo.

QUESTÃO SOCIAL – A NATURALIZAÇÃO DA POBREZA.

A autora identifica um deslocamento da questão social hoje.

ATÉ 1980 A QUESTÃO SOCIAL:


– era analisada de modo global,como fruto do sistema capitalista;
- polarização entre integração/exclusão pautada no TRABALHO (fora ou dentro do mercado, incluir no mercado);
- os direitos sociais vistos como MODERNOS

HOJE (2000):
- Analisada pelos segmentos mais vulneráveis da sociedade
- reconhecimento da impossibilidade de integrar todos;
- novas polarizações: globalizados X não-globalizados; excluídos X incluídos; organizados x desorganizados;
- naturalização da pobreza tida como fatalidade da globalização;
- ao invés de acabar com a desigualdade (que continua), fala-se em aliviar a pobreza (p. 400)
- direitos sociais vistos como ATRASO. (ENTRAVE AO MODERNO CAPITALISMO)

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

“A grande tarefa do país é consolidar a democracia”, deslocar a questão social do âmbito da pobreza para o da DESIGUALDADE
SOCIAL, transformar a questão social em QUESTÃO DE DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZA E PODER
A questão social desde muito é encarada pela própria sociedade como responsabilidade tão e somente do
governo. 

Por outro lado os problemas sociais passaram a ser encarados como decorrentes da carência de recursos
materiais e intelectuais, assim com a pobreza. 

Esta, por sua vez, vista como causa individual e de responsabilidade de cada um. 

Esses fenômenos sociais são tidos como éticos e morais, associados à permanência da ordem social do
governante que está no poder. 

Muitas experiências foram feitas por governos locais no sentido de combater os problemas sociais. 

Porém, até então... não houveram resultados benéficos perante as desigualdades sociais. 

Seja a nível da educação pública,segurança pública,sistema prisíonal e a reeducação dos mesmos, 


a corrupção política,improbidade administrativa,saúde pública,leis de proteção ambiental,a obreza,a 
violência, enfim, tudo ainda esta engatinhando nas mãos do poder de políticos e do interesse de certos
governantes e administradores. 

A QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL: A DIFÍCIL CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA 

As dificuldades por que passam os brasileiros são tidas como problemas sociais, estas por sua vez, se
ultrapassarem ao nível considerado “normal”, passam a serem consideradas como fenômeno social. 

O problema está, justamente, em se considerar normal o que é nocivo, pernicioso. 

O que tem acontecido? Tem sido tênue a linha que liga a questão social com o que ela representa. Por
exemplo, as injustiças e desigualdades sociais que não representam ameaças diretas ao controle político e da
ordem são deixados à mercê, tolerados, deixados no campo daquilo que consideram como sendo normal. Já a
violência, seqüestros, homicídios, dentre outros, por serem ameaças diretas à ordem e ao poder, têm
prioridade da ação governamental, quando ganham investimentos pesados, mesmo sem grandes resultados,
pois as suas causas estão vivas e bastantes potenciais. 

É assim que fenômenos sociais, como pobreza, aqueles decorrentes das secas, são toleráveis, só ganham
prioridade , quando associados aos que representam ameaças à ordem . Exemplo: quando a pobreza é
associada à violência, então são tomadas algumas providências para que volte aos níveis aceitáveis, portanto
controláveis. 

A partir de 1930 a questão social do trabalho é matéria do governo, enquanto que o da pobreza (desvalidos)
continua coisa da filantropia. Aqui há uma diferenciação entre problemas sociais e questões sociais. Um é
indesejável porém aceito, o outro, mais abrangente, é até legitimado, tido como permanente e estrutural. 

Cabe ao brasileiro agora lutar por uma ordem social mais democrática, superando a sua subordinação pelas
elites, considerando a coletividade, transformando a questão social numa questão redistributiva da riqueza e do
poder. Assim todos ganham. 

Os problemas sociais foram uma constante no Brasil desde tempos imemoriais, encaradas como coisa da
filantropia alheia, mesmo no decorrer do tempo, com o surgimento das grandes cidades, quando tais
problemas se tornaram mais agravantes. Com as mudanças verificadas na sociedade, na questão trabalhista, o
problema da pobreza tomou outro rumo, separando-se dos problemas do cidadão, que era aquele que
contribuía financeiramente com os cofres públicos. 
As elites políticas continuam se revezando no poder, agindo de acordo com seus interesses e focalizando a
pobreza, por eles mesmo produzida, como uma “questão social” enfrentando-as com políticas sociais nos
grupos identificados como vulneráveis, quase sempre sob os holofotes da grande mídia, principalmente em
épocas de eleição. 

Há grupos sociais que atuaram,dirigem e atuam naquilo que consideram perigoso à ordem nacional, melhor
dizendo, ao poder temporal daqueles que se revezam, deixando estar situações de pobreza, de violência, de
desajustes sociais, porém consideradas normais, ao sabor de seu próprio destino. 

Pouco se procura ligar o contesto de uma questão social com o que ela representa, e o que ainda vai
representar. 

Tal realidade firma-se com o modelo político-social que mais perpetua a situação problemática do povo, do que
atenua, mais se faz em proveito das elites dirigentes, do que dos desvalidos da nação. 

Falta comprometimento,e seriedade em todos os níveis para a solução dos nossos problemas sociais.

NACIONAL: O Bolsa-Família e a questão


social
Teoria e Debate nº 57 - março/abril de 2004
publicado em 19/12/2006

O programa tem pelo menos quatro características que devem ser ressaltadas: ter como
objeto de intervenção a família em seu conjunto; entender que programas de transferência
de renda isoladamente não são suficientes para garantir aumento da possibilidade de
geração autônoma de renda; buscar uma parceria com estados e municípios; e ter como
eixo a preocupação com a dimensão republicana

Amélia Cohn e Ana Fonseca*1

O debate sobre a questão social no Brasil vem sendo pautado por duas matrizes principais:
uma privilegiando o ângulo da pobreza, com maior ou menor ênfase na desigualdade e na
justiça sociais; outra privilegiando o ângulo da superação da pobreza, com ênfase na
dimensão da cidadania e do fortalecimento da esfera pública.
A primeira, ao privilegiar a questão da pobreza em si, tende a enfatizar as políticas públicas
na sua dimensão política – no geral restrita à racionalidade custo–efetividade –, em
detrimento da sua dimensão pública propriamente dita, derivando daí visões maniqueístas
entre focalização/universalização; econômico/social; centralização/descentralização,
Estado/mercado. A segunda articula a pobreza à perspectiva da satisfação das necessidades
básicas dos indivíduos enquanto direitos sociais, com ênfase na dimensão da construção de
sujeitos autônomos, portanto da ótica da esfera pública. Se ambas não raramente são vistas
como antagônicas, isoladas não são capazes de dar conta da questão social do país, dadas a
magnitude e a complexidade de sua configuração.

No entanto, há consenso entre os estudiosos da pobreza e da exclusão social sobre sua


principal causa no país – o acentuado grau histórico de desigualdade da apropriação da
riqueza e do capital social acumulado, conformando um processo de crescimento e
desenvolvimento na desigualdade de renda. É também apontado em vários textos2, com o
respaldo de mestres como Caio Prado Júnior e Celso Furtado, que enfrentar essas “questões
tão antigas e contemporâneass” envolvidas na pobreza e na desigualdade social “significa
enfrentar e eliminar velhas práticas políticas e implementar ações sociais que resgatem a
cidadania da população excluída, dando-lhe condições para sua emancipaçãoo”. Eis o desafio
central para as políticas públicas hoje: resgatar a cidadania da população excluída, dando-
lhe condições para sua emancipação.

Compondo o quebra-cabeça

Quando se formula o Bolsa-Família, não se trata de reinventar a roda desconhecendo-se os


traços atuais do modelo de proteção social brasileiro. Trata-se, sim, de, ao resgatá-lo,
procurar avançar na conformação de uma rede de proteção social que tenha como horizonte
sua universalização.

O modelo de proteção social brasileiro, dadas suas marcas estruturais, é composto de duas
matrizes – direitos contributivos vinculados à condição dos indivíduos (os trabalhadores) no
mercado formal de trabalho e transferências de renda não-contributivas vinculadas à
assistência social –, configurando-se uma dualidade. O grande marco para a sua superação é
a Constituição de 1988, mas herda-se um modelo de proteção social que vai de encontro a
um sistema de seguridade social, incluídas a previdência social (constituída nos moldes de
seguro social), a assistência social (entendida como direito, e não como filantropia) e a
saúde.

Embora o marco de referência institucional desse novo sistema de proteção social esteja
ainda calcado nos fundamentos de uma sociedade do trabalho, tal como ocorreu em suas
origens, busca-se agora articular todos os benefícios contributivos e não-contributivos sob a
égide dos direitos sociais, e não mais da assistência e/ou da filantropia, como anteriormente.

Este constitui o desafio contemporâneo: contrapondo-se às tendências mundiais de


reconfiguração dos sistemas de Welfare State, sem nunca termos constituído um verdadeiro
Estado de Bem-Estar Social – para lembrar, Francisco de Oliveira (não o “outroo” 3, o
saudoso Chico Previdência) refere-se ao Brasil como um caso de Estado de Mal-Estar
Social –, compor um conjunto de políticas setoriais virtuosas entre si, que historicamente
foram sendo instituídas como paralelas e concorrentes, regido pela matriz da justiça social,
da eqüidade e dos direitos sociais.

Isso não implica desconhecer experiências passadas, tampouco negá-las. Implica, sim,
resgatá-las sempre que for o caso, enfrentando essas heranças históricas e a elas somar e
articular outras políticas e programas pautados pelo princípio da justiça social e da eqüidade,
alçando os segmentos pobres à condição de cidadãos. E não constitui tarefa de uma única
política setorial, muito menos o é de um único programa; é na comunhão dos princípios e
diretrizes que regem cada uma dessas ações que irá sendo moldado esse sistema de
proteção social capaz de traduzir na agenda pública um novo projeto para a sociedade.

Fundamentos e diretrizes
A originalidade e a inovação do Bolsa-Família não residem na negação dos programas de
transferência de renda já existentes (Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Auxílio-Gás e Cartão-
Alimentação) nem se restringem a sua unificação nos marcos estreitos de buscar maior grau
de racionalidade administrativa do governo. Ele parte do diagnóstico de que esses programas
representaram um avanço no campo das políticas públicas, porém não superaram
características marcantes da tradição brasileira das políticas sociais: pulverização dos
recursos, elevado custo administrativo, superposições de públicos-alvo, competição entre as
instituições, ausência de coordenação e perspectiva intersetorial, impossibilitando uma ação
articulada para o enfrentamento da pobreza e da desigualdade social. Acresce-se a isso o
fato de operarem com um sistema de cotas de atendimento, reduzido valor dos benefícios,
voltados para somente um dos membros do grupo familiar, e solene ignorância da existência
de programas similares conduzidos por estados e/ou municípios. O Bolsa-Família elege
a família como a unidade do programa, o que significa ter todos os seus membros como
público-alvo, e não mais cada um isoladamente, a partir da constatação óbvia, mas
raramente incorporada às políticas sociais de âmbito nacional, de que a pobreza num país
com a magnitude e a diversidade do Brasil apresenta várias formas de manifestação – que
não se reduzem à renda dos indivíduos pobres, tampouco às precárias condições de vida a
que estão condenados –, associada ao objetivo de que se trata de, além de satisfazer de
forma digna suas necessidades básicas, alçá-los à condição de cidadãos.

Ao optar pela família, três premissas estavam presentes. A primeira, de que programas de


transferência de renda não constituem um fim em si mesmo, porque de per si não são um
instrumento de superação da pobreza, em que pese sua importância enquanto mecanismo
de alívio imediato da pobreza e da condição de privação a que estão condenados largos
segmentos da população. A segunda, de que devem estar necessariamente associados a
políticas complementares que criem possibilidades para que essas famílias, ao se
desvincularem do programa, estejam numa situação distinta daquela que motivou seu
ingresso; vale dizer, a necessidade de estabelecer uma estreita associação entre programas
de transferência de renda e políticas de inserção social. A terceira, de que a transferência de
renda deve estar associada à garantia do acesso das famílias pobres (e por definição
também das não-pobres) aos serviços universais, como saúde e educação.

Frente a essas premissas, construídas num trabalho conjunto dos distintos ministérios da
área social e econômica, sob a coordenação da Casa Civil e da assessoria da Presidência da
República, num exercício até então inédito de busca de articulação intersetorial no âmbito do
governo federal, formulou-se o Programa Bolsa-Família, oficialmente lançado em 20 de
outubro de 2003. Do ponto de vista organizacional, optou-se por uma Secretaria Executiva
vinculada à Presidência da República e um Comitê Gestor Interministerial, composto dos
ministros da Educação, Saúde, Assistência Social, Segurança Alimentar, Trabalho, Fazenda,
Planejamento e Casa Civil, criando-se espaços para o exercício da necessária
intersetorialidade para que o Bolsa-Família de fato ganhasse o contorno de uma política
estratégica na conformação de um novo perfil do sistema de proteção social no país.

Tratava-se então de unificar os cadastros dos distintos programas vigentes no Cadastro


Único, instituído em outubro de 2001, verificar duplicidades e inconsistências de dados, e ao
mesmo tempo cumprir a meta estipulada pelo presidente da República: atingir 3,6 milhões
de famílias em dezembro de 2003. O Cadúnico passa a ser entendido como uma ferramenta
fundamental para o planejamento das políticas públicas no âmbito dos territórios, em que
pesem suas limitações oriundas principalmente do fato de haver sido constituído quando
prevalecia, ao contrário do que propõe o Bolsa-Família, o sistema de cotas diferenciadas dos
programas no âmbito municipal e no estadual.

Uma vez que cabe aos municípios a implementação do Bolsa-Família, os entes federados são
concebidos efetivamente como parceiros. Em conseqüência, o processo de descentralização
ganha uma especificidade, na medida em que municípios e estados são chamados a pactuar
com a esfera nacional sua integração ao programa, contando ou não com programas
próprios de transferência de renda, configurando-se assim um processo de descentralização
mais horizontal do que nos casos da saúde, da educação e da assistência social, em que o
poder central assume de forma mais acentuada o comando desse processo. No Bolsa-Família
a descentralização é pactuada com estados e municípios, podendo existir vários tipos de
parceria – contrapartida com recursos próprios ou com políticas complementares para o
público-alvo do programa –, já que seu desenho demanda um processo de descentralização
com um grau maior de horizontalidade, sem que a esfera federal perca sua capacidade de
gerir essa política de transferência de renda de forma redistributiva.

Exatamente porque traz em sua concepção a preocupação com a superação da pobreza, o


Bolsa-Família exige a articulação com outros programas de caráter universalista e de caráter
estrutural para que essas famílias efetivamente encontrem “portas de saídaa” para superar
sua vulnerabilidade social.

Resgatando temas polêmicos

O debate em torno das políticas sociais do atual governo vem sendo pautado, entre outros
temas, pelo que se poderia denominar de “competiçãoo” quando se comparam os dois
últimos governos ao atual, traduzida numa verdadeira “gincana de númeross”. O que está
em jogo aqui não é “quanto se gasta a mais ou a menoss” – apesar de com o Bolsa-Família o
valor do benefício ter em média triplicado em relação ao valor dos programas anteriores. O
que verdadeiramente conta é a lógica que a concepção do próprio programa imprime a sua
implementação: a de ser um programa que pretende chegar ao objetivo de cobrir até 2006
todas as famílias pobres do país4. O critério de inserção no Bolsa-Família é o valor de corte
de R$ 50 per capita familiar para o valor básico do benefício de R$ 50 mais o valor variável
de R$ 15 para as famílias com filhos até 15 anos, até o limite de três filhos; para famílias
com renda mensal per capita superior a R$ 50 até R$ 100, o valor do benefício é variável: R$
15 por filho até 15 anos, até o limite de três benefícios.

A recorrência dessa síndrome da “gincana de númeross” acaba se traduzindo num círculo


vicioso, pois em geral aqueles que afirmam que “no Brasil se gasta muito com a área social,
mas se gasta mall” são os mesmos que advogam uma racionalização dos gastos sociais – o
que, lido de outra forma, significa dizer que o que importa é exatamente como se alocam os
recursos, e não quanto se aloca5. A proposta do Bolsa-Família, nesse sentido, significa
montar uma estratégia de intervenção na área social que seja marcada ao mesmo tempo
pela eficiência no gasto público e pela eficácia social, buscando ações intersetoriais, parcerias
com as distintas esferas de governo e com a sociedade, controle e regras públicas de sua
gestão e políticas matriciais que permitam sejam construídas “portas de saídaa” para que as
famílias encontrem caminhos para conquistar autonomia no que diz respeito à renda e à
cidadania.

Outro tema que tem pautado o debate é o Cadastro Único, que vem sendo travado em torno
de pelo menos duas vertentes. A primeira questiona a qualidade do Cadúnico como
instrumento de gestão eficaz para focalizar o programa nos grupos efetivamente mais pobres
da população; enfim, enquanto instrumento eficiente para “ordenar todas as pessoas em
uma dada população de acordo com o grau de carência de cada umaa”, o que possibilitaria
ao governo “obter uma fila, em que as primeiras posições são ocupadas por aqueles com
maior nível de carênciaa”6. Só é possível que o cadastro efetivamente funcione como um
instrumento tão preciso quando se concebe a pobreza como um fenômeno absolutamente
linear e palpável, em que pese todos concordarmos com sua complexidade e o fato de ela
ser multifacetada. A alternativa seria substituí-lo por um censo, ou refazê-lo, implicando um
aumento considerável dos gastos em funções-meio em detrimento da função-fim – os
benefícios chegarem lá na ponta. Significa, ademais, desconhecer que “vazamentoss” na
prestação de benefícios a famílias que a rigor não estariam na posição correta da “filaa”, por
receber pouco a mais do que os valores estipulados como critério, em nada mudam
substancialmente sua situação de pobreza, e, quanto aos demais casos aberrantes, trata-se
de desmandos da gestão pública.

A outra vertente diz respeito ao fato de este ser um cadastro das famílias pobres que atribui
a cada um de seus membros um número de identificação (o NIS – número de identificação
social), o que vem sendo desqualificado como “registro de identidade de pobree”. Isso nada
mais reproduz do que a velha e boa concepção de nossas elites de que os pobres não podem
ser identificados porque isso os estaria estigmatizando, dado que o público-alvo das políticas
sociais são exclusivamente os segmentos pobres da população. Daí porque as concebem
como setorializadas e segmentadas, numa divisão explícita entre Estado para os pobres e
Mercado para os não-pobres (aliás, como se este, sobretudo na área social, fosse capaz de
sobreviver somente com a capacidade de consumo dos não-pobres, estando aí a experiência
do setor supletivo da saúde para mostrar que não é assim).
Vejamos agora de outra perspectiva: a questão do cadastro único não se confunde com
identificar e monitorar de maneira punitiva as famílias pobres, mas sim num valioso
instrumento de gestão das políticas públicas, uma vez que, identificados esses segmentos da
população, pode-se fazer confluir de forma articulada aquelas políticas de modo a torná-las
virtuosas entre si – ao contrário de nossa tradição, que não só as vem segmentando como
travando uma disputa entre elas para saber “de quem é o pobree”. Ademais, com o
adequado controle público da gestão dessas políticas, o que inclui o próprio cadastro, ele se
traduz num oportuno instrumento de combate ao clientelismo, outro traço marcante da
trajetória das políticas sociais no país. Daí sua importância como instrumento de gestão e do
salto que se deu a partir do Bolsa-Família, ao viabilizar seu acesso a municípios e estados, o
que não ocorria – nem estava previsto ocorrer pela regulamentação quando de sua criação,
em 2001.

Por outro lado, se, como alegam alguns, não é necessário ter esse “RG dos pobress” porque
“nos rincões brasileiros todos são pobress”, isso é insuficiente na medida em que o Bolsa-
Família não se propõe a ser um fim em si mesmo, mas um meio a mais para tirar essas
famílias da situação de pobreza extrema, o que exige que se conheçam a configuração e a
natureza específicas da pobreza em que se encontram para que se possa fazer confluir para
esse público-alvo uma série de programas que possibilitem a construção de “portas de
saídaa”.

Um terceiro tema é o das condicionalidades vinculadas ao benefício: manter os filhos na


escola, estar em dia com o calendário das vacinações, as gestantes fazerem pré-natal e ser
vedado o trabalho infantil. Seu objetivo é associar o complemento de renda assegurado pelo
programa ao acesso das crianças e adolescentes à educação básica, à sua permanência na
escola, à inserção dos grupos familiares na rede de saúde, com especial ênfase nas crianças,
gestantes e nutrizes, e na rede de proteção social, além de à garantia de que as crianças não
serão expostas ao trabalho infantil.

Tais condicionalidades vêm sendo entendidas por uns como uma forma de disciplinar os
pobres, impondo-lhes sanções (desligamento do programa) quando não cumpridas 7. Por
outros, são vistas como uma forma demonitoramento dessas famílias, implicando um
excessivo grau de normatização por parte do Estado da esfera da vida privada dos
indivíduos. Ambos os riscos de fato existem, porém o eixo central que orienta a formulação
do programa – e a maneira pela qual vem sendo implementado – são as condicionalidades
concebidas como um contrato entre as partes, para que as famílias invistam naquilo que
permitirá o desenvolvimento de suas capacidades para que possam, com a presença de
políticas governamentais de natureza mais estrutural, dispor das condições mínimas
necessárias para garantir para si a possibilidade de um processo de inclusão social
sustentável. Trata-se aqui de combater a tradição de uma cultura brasileira punitiva com
relação à pobreza e aos pobres, não poucas vezes lhes atribuindo uma “incapacidadee” de
objetivamente informar sobre suas condições de vida ou os vendo com desconfiança,
atribuindo-lhes arbitrariamente uma capacidade de desvirtuar as informações fornecidas
quando do cadastramento.

Um breve balanço

Quando do lançamento do Programa Bolsa-Família, o presidente da República reiterou a


meta de atingir o atendimento de 3,6 milhões de famílias em dezembro de 2003 e 11,4
milhões até 2006.

Em dezembro do ano passado o programa atingiu a meta. Envolvendo um volume de


recursos da ordem de R$ 264 milhões8 e presente na quase totalidade dos municípios, o
Bolsa-Família incluiu 3.615.816 famílias recebendo benefícios com um valor médio de R$
72,80.

Além do alívio imediato da condição de penúria em que essas famílias sobrevivem, não há
como desconhecer o impacto que essa transferência de recursos tem para as economias
locais, já que em dezembro de 2003 as transferências realizadas representaram para a
Região Norte o equivalente a 15% dos recursos provenientes do Fundo de Participação
Municipal; para a Região Nordeste, 28%; para a Sudeste, 10%; para a Sul, 8%; e, para a
Centro-Oeste9, 7% – o que autoriza afirmar seu caráter redistributivo também em termos
regionais.

Obedecendo à concepção que norteia a formulação do programa – que reside no


entendimento de que o enfrentamento da pobreza, da desigualdade e da exclusão social não
pode ser tarefa de um único ente da federação e muito menos de somente um de seus
programas, mas sim de um esforço intersetorial envolvendo todas as unidades da federação,
estabelecendo-se uma relação virtuosa entre programas e políticas sociais e econômicas e
entre os entes da federação –, para os estados e municípios são apresentadas duas
propostas básicas de pactuação. Para aqueles que têm programa próprio de transferência de
renda, que considerem a transferência do Bolsa-Família como parte do benefício que já
implementam e, com a diferença, ampliem a cobertura dos próprios programas. E, para
todos eles, que tomem esses grupos familiares como alvo privilegiado de outras políticas e
programas desenvolvidos no âmbito local. Com essas duas propostas é que se vêm buscando
negociações de pactuação com os estados e os municípios.

Paralelamente, o Cadúnico está sendo aperfeiçoado e instrumentos técnicos e contratuais


vêm sendo desenvolvidos para que as prefeituras possam acessá-lo, o que até recentemente
era impossível. Da mesma forma, têm sido promovidas oficinas de discussão com
especialistas na questão da pobreza e gestores governamentais para que se desenvolva uma
proposta de indicadores multidimensionais da pobreza visando aprimorar o processo de
seleção das famílias.

Igualmente estão em curso vários estudos de caso de experiências locais de implementação


do Bolsa-Família para avaliá-lo da perspectiva da administração pública (eficiência) e da
perspectiva da gestão pública, com ênfase no processo de sua implementação, tendo em
vista o controle social (público), a construção da cidadania e uma nova qualidade da relação
do Estado com a sociedade.

A identidade do Bolsa-Família

O Bolsa-Família não reivindica para si a invenção da roda. Mas tampouco pode ser reduzido a
um programa que tem por objetivo meramente racionalizar os três programas provenientes
do governo anterior (Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação e Auxílio-Gás), acrescidos do Cartão-
Alimentação, criado no governo atual pelo Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar
(MESA). Da mesma forma, ele traz consigo a clara distinção entre sua especificidade e a
especificidade das competências atinentes à assistência social, regulamentadas pela Lei
Orgânica da Assistência Social (LOAS).

Ele representa um avanço frente às propostas anteriores exatamente porque as resgata em


outro patamar: busca a integração entre as políticas setoriais no interior do próprio governo,
perseguindo a intersetorialidade das ações na área social, imprimindo outro sentido ao
processo de descentralização ao tratar os entes da federação como efetivos parceiros nessa
tarefa, propondo-se como um programa matricial e transversal das iniciativas
governamentais dirigidas para o combate à pobreza.

Nesse sentido, pelo menos quatro características suas devem ser ressaltadas: ter como
objeto de intervenção a família em seu conjunto, e não mais cada indivíduo isoladamente;
entender que programas de transferência de renda não constituem um fim em si, porque
isoladamente não são suficientes para garantir que essas famílias, sem ações públicas
complementares, vejam aumentada sua possibilidade de geração autônoma de renda uma
vez desligadas do programa; buscar uma parceria com estados e municípios, promovendo
um processo de “descentralização pactuada” entre os entes da federação; e ter como eixo a
preocupação com a dimensão republicana – a criação de critérios públicos e universais de
inclusão e exclusão no programa, orientados por uma concepção não punitiva, mas
contratual quanto às condicionalidades, e a ênfase em mecanismos de controle social e
público sobre sua implementação, sem que com isso o Estado abra mão de sua
responsabilidade republicana. As condicionalidades assumem, assim, a dimensão de
responsabilidade essencialmente pública, de caráter universal, e portanto do Estado, quer do
ponto de vista da oferta adequada de serviços, quer do ponto de vista do monitoramento de
seu cumprimento.
Embora seja voz corrente que o ambiente econômico não se constitui num bom cúmplice
nesse processo, isso não justifica que se fique no âmbito estreito do “realismo do possívell”,
em detrimento da utopia futura de uma sociedade mais justa em que imperem os direitos da
cidadania.

Notas:
1 Texto entregue para publicação em 14 de janeiro de 2004.

2 Pochmann, M. e Amorim, R. (orgs.), Atlas da Exclusão Social no Brasil, S. Paulo, Cortez,


2003; Campos, A., Pochmann, M. e Silva, R. (orgs.), Atlas da Exclusão Social no Brasil –
Dinâmica e Manifestação Territorial, v. 2, S. Paulo, Cortez, 2003, p. 37.

3 Referência feita por Lena Lavinas em “Proteção social: sem compulsórios nem clientelass”,
em Teoria e Debatenº 55, set./out./nov. 2003.

4 Estimadas num total de 11,4 milhões de famílias com renda per capita de até meio salário
mínimo, das quais 5 milhões com renda per capita de até um quarto do salário mínimo.

5 Em 2003 o governo federal investiu R$ 4,3 bilhões em programas de transferência de


renda (Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Cartão-Alimentação, Auxílio-Gás e Bolsa-Família) e
para 2004 estão orçados R$ 5,3 bilhões. O valor médio dos programas anteriores de
transferência de renda era de R$ 25, enquanto em 2003 é de R$ 75.

6 Texto apresentado por Ricardo Paes de Barros e Mirela de Carvalho P. da Silva no


seminário Indicadores Multidimensionais de Pobreza, em Brasília, novembro de 2003,
mimeografado.

7 É freqüente a presença do termo “castigoo”, referindo-se às sanções pelo não-


cumprimento das condicionalidades, em textos oficiais ou relatórios de seminários
promovidos por agências internacionais.

8 O conjunto dos programas de transferência de renda (Bolsa-Família, Bolsa-Escola, Bolsa-


Alimentação, Cartão-Alimentação e Auxílio-Gás) soma um volume de recursos nesse mesmo
mês da ordem de R$ 433 milhões.

9 Sem considerar o Distrito Federal.

Você também pode gostar