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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

João Paulo Veloso Matos

A função do mito fundador em ​O Guarani

São Paulo
2018
João Paulo Veloso Matos. Nº 8976111
Noturno.

A função do mito fundador em O Guarani

Trabalho de aproveitamento da disciplina FLC0300


- Literatura Brasileira III do bacharelado em letras.

São Paulo
2018
Introdução

No processo de se firmar como classe revolucionária e nova classe


dominante — A Revolução Industrial e as Revoluções Burguesas — a burguesia
produziu novas formas de consciência que rompiam com as anteriores. A ruptura
com as antigas formas de produção de riquezas e de organização política ajudam a
consolidar os Estados nacionais, e com isso, os mitos de fundação das nações
como justificativa para a existência dos Estados-nações. Segundo Rosenfeld e
Guinsburg (2008), o romantismo é “um movimento de oposição violenta ao
Classicismo e a época da Ilustração”1, que eram correspondentes ao período do
Antigo Regime.
Segundo Nunes(2008):

“Ao cosmopolitismo abstrato do século XVIII, supressor das


diferenças nacionais, o Romantismo opôs um nacionalismo concreto, que
foi preparado pela concepção herderiana da “unidade orgânica de cada
personalidade com a forma de vida que lhe corresponde”2

O papel dos mitos românticos tinha como uma das funções criar uma
identidade nacional. A matéria medieval foi adotada por muitos poetas e
romancistas europeus para servir de chão para tais novos mitos, das novas [velhas]
origens dos povos. A matéria medieval era usada como oposição a matéria
greco-latina do classicismo, além disso, também houve uma apropriação das formas
medievais, tanto na lírica, como na prosa. Georg Lukács mostra como o romance
tem uma de suas origens na literatura medieval, sendo uma dissolução da épica.3

Romantismo no Brasil

Sobre o Nacionalismo no romantismo brasileiro, Antonio Candido destaca:

1
ROSENFELD, Anatol; Guinsburg, Jacó. “Romantismo e classicismo” in In Guinsburg, Jacó (org.). ​O
Romantismo. ​São Paulo : Perspectiva. 2008. 4ªed. p. 261
2
NUNES, Benedito. “A Visão Romântica”. In Guinsburg, Jacó (org.). ​O Romantismo. ​São Paulo :
Perspectiva. 2008. 4ªed. p.59
3
LUKÁCS, Georg. “O Romance como epopéia burguesa” in ​Ensaios Ad Hominem - N. 1, Tomo II:
Música e Literatura​. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem. 1999 pp. 87-136
“Quanto aos traços que é possível considerar mais característicos,
destaca-se obviamente, como vimos, o nacionalismo, transformação do
nativismo que vinha do começo do século XVIII e talvez tenha significado
mais político do que estético, porque foi um desígnio correlativo ao
sentimento de independência. No limite, o seu pressuposto de originalidade
nacional era ilusório, porque implicava um estado imaginário de separação
no conjunto das literaturas ocidentais, às quais a brasileira pertence
organicamente e das quais não pode ser destacada. Às vezes o
nacionalismo exaltado daquele período (​mais teórico do que prático​)
parece a clássica rejeição dos pais pelos filhos no momento da
adolescência, – os pais sendo no caso os portugueses.”4

O romantismo no Brasil serviu muitas vezes como forma da burguesia


brasileira buscar sustentar ideologicamente suas estruturas econômicas, justificar a
independência de Portugal, a conformação do Estado independente, ao mesmo
tempo em que pretendia conhecer o país e firmar uma identidade nacional. Como
diz Candido(2002) , esse nacionalismo é mais teórico que prático. Essa recepção
dos ideais românticos se dá dessa forma porque, Segundo Mazzeo (2015)5, no
Brasil o processo de construção do Estado Nacional é excludente para as massas,
muitas vezes contra as massas, com processos de modernização feitas “pelo alto”.

“em seu caminho de objetivação capitalista, aparece determinado


pela interioridade latifundiário-escravista de sua estrutura econômica que
vai em direção, contrariamente ao ocorrido na Alemanha, à subsunção de
uma burguesia, também ela transformista6, aos polos centrais do
capitalismo e a consolidação de uma economia que se conforma
hipertardiamente como subsidiária à grande produção industrial, enquanto
“elo frágil” do modo de produção capitalista, em seu conjunto anatômico.”7

Mazzeo (2015) aponta também que a burguesia brasileira é débil e que


realizou um “‘transformismo’ pela metade”, porque implementa um processo
modernizador que

​“além de estar situado no terreno da permanente contrarrevolução


interna, possibilita também adequações de tipo

4
CANDIDO, Antonio. O romantismo no Brasil. São Paulo : Humanitas / FFLCH. 2002. pp. 87-88.
Grifos meus.
5
MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. São
Paulo: Boitempo. 2015. 3ªed
6
Leia-se “conciliatória” e cooptada, diferente da burguesia que conduziu os processos da revolução
burguesa na Europa.
7
MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. São
Paulo: Boitempo. 2015. 3ªed. p.132
modernização-subalternizada ​do capitalismo brasileiro, em relação ao
conjunto societal burguês”8

Sobre o movimento de independência, Emília Viotti da Costa (1979) aponta


que:

“Para as elites que tiveram a iniciativa e o controle do movimento,


liberalismo significa apenas liquidação dos laços coloniais. Não pretendiam
reformar a estrutura de produção, nem a estrutura de sociedade. Por isso a
escravidão seria mantida, assim como a economia de exportação. Por isso
o movimento de independência seria menos antimonárquico do que
anticolonial, menos nacionalista do que antimetropolitano”9

O Brasil da metade do século XIX tinha uma produção baseada no trabalho


de escravizados, pessoas negras trazidos da África e seus descendentes. Assim, o
negro ficou excluído por muito tempo do processo de criação de identidade
nacional, tendo os escritores optado por eleger as figuras do branco e do índio como
heróis da fundação.

O Guarani e o mito de fundação

O romance “O Guarani”, tendo seu primeiro capítulo publicado em folhetim


em 1857, carrega diversas características do romantismo. A primeira que surge é a
tentativa de remontar um passado distante, construindo um discurso que busca
delinear as origens de um povo, de uma nação. Outra é a cor local — tratando de
uma matéria que diz respeito ao brasil, utilizando o pitoresco nas descrições da flora
e fauna local e tendo como herói um indígena.
O índio Peri, o Herói, é apresentado no capítulo IV, “A caçada”. Pouco depois
de sua descrição física, surge uma onça:

8
MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. São
Paulo: Boitempo. 2015. 3ªed. p.132
9
COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 2ª ed. São Paulo:
Ciências Humanas. 1979. p. 33
“Era uma ​onça enorme​; de garras apoiadas sobre um grosso ramo
de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo,
preparando o salto gigantesco.
Batia os flancos com a larga cauda, e movia a cabeça ​monstruosa,
como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo;
uma espécie de ​riso sardônico e ​feroz ​contraía-lhe as negras mandíbulas,
e mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam
fortemente, e pareciam deleitar-se já com o odor do sangue da vítima.”10

É atribuído a onça “enorme” um traço humano, o “riso sardônico”. Mas esse


riso, atitude humana, também é categorizado como “feroz”, retomando o aspecto
animal. Como se pode ver, a personificação da fera é contrabalanceada com um
certo grau de animalização do índio Peri:

“O índio, sorrindo e indolentemente encostado ao tronco seco, não


perdia um só desses movimentos, e esperava o inimigo com a calma e
serenidade do homem que ​contempla uma cena agradável​: apenas a
fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa.
Assim, durante um curto instante, a ​fera e o ​selvagem mediram-se
mutuamente​, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre
agachou-se, e ia formar o salto quando a cavalgata apareceu na entrada da
clareira.
[...]
O índio, que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os
joelhos e apertara o forcado, endireitou-se de novo[...]
Estendeu o braço e fez um ​gesto de rei, que rei das florestas ele
era, intimando aos cavaleiros que continuassem a sua marcha​”11

Se em um parágrafo Peri é homem engenhoso, que contempla um animal,


apresentando como racional, no seguinte é um selvagem, apresentando já os
características animalescas. “[...] estes dois selvagens das matas do Brasil, cada um
com suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem,
consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.” Eles lutavam
em pé de igualdade. Se por um lado, Peri é diminuído a um animal, por outro, isso
engrandece a força desse herói, quase sobrenatural, já que o tamanho e a
ferocidade da onça são enfatizadas nesses parágrafos.
O termo “rei” carrega uma ambivalência. De certo modo aproxima Peri dos
heróis da novela de cavalaria — um modelo na construção desse personagem e de
muitos outros no romance romântico. No entanto, Peri não é um rei do mundo

10
ALENCAR, José de. O Guaraní. São Paulo: Ed. Círculo do Livro. [19??]. p.28. Grifos meus
11
ALENCAR, José de. O Guaraní. São Paulo: Ed. Círculo do Livro. [19??]. p.28. Grifos meus.
“civilizado”, mas o rei da floresta, ou seja, esse herói atinge o ideal romântico da
pureza na e da natureza. É um rei na ordem natural.
Essa cena tem a função de introduzir certas características atribuídas pelos
europeus aos indígenas, como uma maior proximidade ao estado natural do homem
do que teriam os Europeus, os homens “civilizados”. Com essa aproximação entre
homem e natureza, há também uma animalização — em certo grau — do herói e,
consequentemente, dos indígenas de um modo geral. Além disso a cena de luta
entre homem e fera é um topos dos livros de cavalaria. Peri derrota a onça numa
luta corporal, cena que remete muitos enfrentamentos de feras, como o seguinte,
presente no livro de cavalaria “Amadís de Gaula”:

“Y tomando sus armas descendió del cavallo, que adelante


espantado del fuerte león ir no quería, poniendo su escudo delante, la
espada en mano, al león se fué, que las grandes bozes que el rey Garínter
le dava no lo pudieron estorvar. El león, assí mesmo, dexando la presa
contra él se vino, y juntándose ambos teniéndole el león debaxo en punto
de la matar, no perdiendo el Rey su gran esfuerço, heriéndole con su
espada por el vientre lo hizo caer muerto ante sí[...]”12

O bom índio. O Mau índio.

Na tentativa de tratar do processo de extermínio de tribos indígenas, o


romance busca harmonizar algumas partes envolvidas, se apoiando num discurso
que assume que existem bons índios — aqueles que se submetem voluntariamente
à servidão — e os maus índios, aqueles que enfrentam o colonizador. Isso fica
expresso em diversos momentos, sendo um deles a fala de dom Antônio de Mariz
no capítulo VI da primeira parte:

“— Sei o que queres dizer; não partilho essas idéias que vogam
entre os meus companheiros; para mim, os índios quando nos atacam, são
inimigos que devemos combater, mas são homens!”13

Essa fala de dom Antônio Mariz está num contexto em que se discutia o
assassinato de uma índia Aimoré cometida por dom Diogo, filho de dom Antônio. Tal

12
MONTALVO, Garci Rodríguez de. ​Amadís de Gaula.​ Editado por Juan Manuel Cacho Blecua.
Madrid: Ediciones Cátedra, S. A., 1996. 3ª ed. p. 229
13
ALENCAR, José de. ​O Guaraní.​ São Paulo: Ed. Círculo do Livro, [19??]. p. 39.
ato traz uma série de consequências na narrativa — a principal delas, o cerco da
casa de dom Antônio pelos Aimorés —, sendo retomado em analepse no capítulo
XIV da primeira parte, que mostra a cena sendo testemunhada por Peri. O
assassinato acidental é categorizado como “capricho de caçador”. Nesse momento,
o narrador assume parcialmente o ponto de vista de Peri:

“O espetáculo que acabava de presenciar o entristecera;


lembrou-se de sua tribo, de seus irmãos que ele havia abandonado há tanto
tempo, e que talvez àquela hora eram também vítima dos conquistadores
de ​sua terra​, onde outrora viviam livres e felizes”14

Porém, logo depois tem-se:

“Ora, o índio conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e sem


religião, que se alimentava de carne humana e vivia como feras no chão e
pelas grutas e cavernas; estremecia só com a idéia de que pudesse vir
assaltar a casa de dom Antônio de Mariz.”15

Apesar caráter conservador da obra, existem matizes a serem considerados.


Se eleva o indígena — tanto Peri, quanto, num sentido mais abstrato, os indígenas
em geral — a posição de herói nacional, ao mesmo tempo em que se defende uma
servidão voluntária. O narrador, ao assumir o ponto de vista de Peri, rechaça os
massacres cometidos pelos “conquistadores”, ao mesmo tempo em que condena
práticas como antropofagia e as formas organizacionais dos povos nativos. A figura
do índio é, por um lado, humanizada, por outro, desumanizada

A Conjunção mítica

O Guarani ​busca conciliar as partes de um processo histórico violento, o da


colonização do Brasil, numa narrativa que mostra o nascimento de uma nação
através da União entre “engenho europeu" e a natureza do novo mundo. Alfredo
Bosi (1992) categoriza a obra como “mito sacrificial”. O crítico aponta que o
indianismo se funde à fantasia medieval. O amor de Peri é o amor cortês das

14
ALENCAR, José de. O Guaraní. São Paulo: Ed. Círculo do Livro. [19??]. p. 81. Grifos meus
15
ALENCAR, José de. O Guaraní. São Paulo: Ed. Círculo do Livro. [19??]. p. 81-82
cantigas de amor e dos livros de cavalaria, se assemelhando a relação de suserania
e ao culto católico de santas:

“Junto da inocente menina adormecida na isenção de sua alma


pura e virgem, velavam três sentimentos profundos, palpitavam três
corações bem diferentes.
Em Loredano, o aventureiro de baixa extração, esse sentimento era
um desejo ardente, uma sede de gozo, uma febre que lhe requeimava o
sangue;
[...]
Em Álvaro, cavalheiro dedicado e cortês, o sentimento era uma
afeição nobre e pura, cheia de graciosa timidez que perfuma as primeiras
flores do coração, e do entusiasmo cavalheiresco que tanta poesia dava
aos amores daquele tempo de crença e lealdade
[...]
Em peri o sentimento era culto, espécie de idolatria fanática na qual
não entrava um só pensamento de egoísmo; amava Cecília não para sentir
um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ela,
para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um
pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.
[..]
Assim, o amor se transformava tão completamente nessas
organizações, que apresentava três sentimentos bem distintos; um era uma
loucura, o outro uma paixão, o último uma religião”16

Com Loredano e Álvaro, Alencar estabelece em Peri um outro patamar mais


alto de amor cortês. É construída uma oposição entre os sentimentos de Loredano e
Álvaro. Baixo e alto. Mas Peri se encontra acima dos dois por seu nível de
abnegação. É o mais alto grau de amor cavaleiresco e pureza, superando Álvaro.

Fiorin(2008) sintetiza esse mito:

“O castelo nos trópicos edificado por D. Antônio de Mariz é o


símbolo da colonização portuguesa. Está ele assediado por dois inimigos:
um externo e natural, os aimorés, e outro interno e cultural, o bando de
aventureiros cúpidos rebelados por Loredano. O edifício colonial está sendo
atacado por elementos naturais perversos e pelos baixos sentimentos de
muitos colonizadores. D. Antônio de Mariz manda seu filho D. Diogo ao Rio
de Janeiro em busca de socorro (1995, p. 161-162). A ajuda externa,
porém, não chega a tempo. D. Antônio espera o ataque final dos Aimorés e
faz explodir o paiol de pólvora da casa, matando a todos, os aimorés, os
aventureiros, mas também a família (p. 272). É o edifício colonial que foi
destruído e com ele seus inimigos externos e internos. Todos estão mortos,
resta apenas o casal inicial. Pode-se, então, construir o mito de origem da
nacionalidade.
Quando os aimorés puseram fogo na casa, Peri concebe um plano
para salvar sua senhora, a fuga de D. Antônio de Mariz com Cecília. O
fidalgo português, contudo, rejeita a possibilidade de abandonar os seus.
16
ALENCAR, José de. O Guaraní. São Paulo: Ed. Círculo do Livro. [19??]. pp. 54-55
No entanto, diz que, se Peri fosse cristão, confiar-lhe-ia a filha. O índio
aceita ser batizado e recebe o nome cristão de Antônio, o mesmo do velho
fidalgo (p. 268-270). Peri deve levar Cecília até o Rio de Janeiro, à casa de
uma irmã de D. Antônio de Mariz. Foge, então, com sua senhora pelo rio
Paquequer.
Ao longo de todo o romance, Peri, apesar de toda sua nobreza, é
apresentado com um selvagem (p. 97). Ao aceitar o batismo, transforma-se
no herói mediador mítico. Reúne natureza e cultura, a identidade tupi e a
identidade portuguesa. No mito, nomear é criar. Quando Peri, conservando
o seu nome, recebe o de D. Antônio, adquire uma identidade luso-tupi. Ao
mesmo tempo, o narrador vai mostrando a transformação de Cecília em
mulher (p. 278). É então que Cecília percebe o homem Peri. Antes o
considerava apenas um escravo, um amigo. Agora se apercebe de sua
beleza (p. 279-280). Peri não está mais dentro da civilização, mas no seu
elemento, a natureza. Assim como D. Antônio é o senhor cultural no
romance, o índio é o senhor natural. No seu elemento, ganha uma nova
dimensão (p. 280). Cecília decide não ir para a casa da tia no Rio de
Janeiro, mas passar a viver com o índio (p. 288). Num movimento inverso
ao de Peri, que, ao tornar-se cristão, une natureza e cultura, Cecília
assume sua condição de elemento da natureza, englobando, assim, cultura
e natureza.
[..]
Nuvens negras acumulam-se nas cabeceiras do Paraíba. Pelo
barulho das águas, Peri percebe que as águas da chuva vão provocar uma
grande inundação. Vai para a margem do rio com Cecília e vê uma grande
massa de água precipitar-se pelo Paraíba. Não tem tempo de
embrenhar-se na mata. Sobe então no alto de uma palmeira e fica lá com
Cecília. A tempestade continua ao longo da cordilheira, a água cresce
sempre (p. 293)
Peri diz que vai salvar Cecília e conta-lhe o mito de Tamandaré,
que é o Noé indígena. O mito narra que, tendo havido um dilúvio, que
cobriu toda a Terra de água e matou todos os homens, Tamandaré e sua
mulher escaparam em cima da copa de uma palmeira, pois a água cavara a
terra, arrancara a palmeira e esta subira com as águas acima do vale, das
árvores, das montanhas. O casal povoou a Terra (p. 295). Peri abraça-se à
palmeira em que está com Cecília, sacode-a, abala suas raízes, que se
desprendem da terra já minada profundamente pela torrente. A luta do
homem com a árvore é sobre-humana. [..] Os dois beijam-se. E o livro
termina da seguinte maneira: “A palmeira arrastada pela torrente impetuosa
fugia... E sumiu-se no horizonte”. O horizonte onde some a palmeira é o
futuro do povo que se constituiria a partir de um casal inicial formado de um
índio que aceitara os valores cristãos e de uma portuguesa que acolhera os
valores da natureza do Novo Mundo. Essa nação teria um caráter cultural
luso-tupi.
O mito é sempre uma coincidentia oppositorum (Eliade, 1991, p.
127). No nosso caso, o mito de origem da nação brasileira opera com a
união da natureza com a cultura, ou seja, dos valores americanos com os
europeus. O Brasil seria assim a síntese do velho e do novo mundo,
construída depois da destruição do edifício colonial e dos elementos
perversos da natureza. Os elementos lusitanos permanecem, mas
modificados pelos valores da natureza americana.
A nação brasileira aparece, depois do dilúvio, em cuja descrição se
juntam os mitos das duas civilizações constitutivas da nação brasileira, o de
Noé e o de Tamandaré.
Como diz Alfredo Bosi, os mitos ajudam muito mais a compreender
a época em que foram forjados do que o universo remoto que pretendem
explicar (1992, p. 176). O selo de nobreza da nação brasileira é dada pela
fusão sangue português com o sangue tupi. Essa interpenetração une a
nobreza de uma e de outra cultura. Dela está excluído o elemento africano,
que foi importantíssimo, juntamente com o indígena e o europeu, para a
formação da nacionalidade. No período em que o romance foi produzido, os
negros eram escravos no Brasil. Não poderiam, portanto, os africanos estar
no relato que se pretendia fosse sobre as origens míticas da nacionalidade.
No entanto, também essa conciliação luso-tupi não conta a realidade da
ocupação portuguesa, com os massacres da população indígena. Por outro
lado, o indígena que está na base na nação brasileira é o que aceita os
valores cristãos, aquele que, em sua entrega ao branco, assume uma nova
identidade. Os outros são vistos como selvagens que devem ser
exterminados.
O belo e heróico Peri junta-se a uma galeria de outras personagens
criadas por Alencar “como respostas ao desejo ideal de heroísmo e pureza
a que se apegava, a fim de poder acreditar em si mesma, uma sociedade
mal ajustada, presa a lutas recentes de crescimento político. No meio de
tanta revolução sangrenta (...), em meio à penosa realidade da escravidão
e da vida diária - surgia a visão dos seus imaculados Parsifais, puros,
inteiriços, imobilizados pelo sonho em meio à mobilidade da vida e das
coisas” (Candido, 1964, p. 220)17. ”18

17
A obra citada por Firin é “CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (momentos
decisivos). 2.ª ed. São Paulo: Martins, v. II, 1964.”
18
FIORIN, José Luiz. “Língua portuguesa, identidade nacional e lusofonia.” in ​Confluência[​ S.l: s.n.],
2008. pp. 56-59
Referências bibliográficas

ALENCAR, José de.​ O Guaraní.​ São Paulo: Ed. Círculo do Livro. 19??

BOSI, Alfredo. ​Dialética da colonização.​ São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CANDIDO, Antonio. ​O romantismo no Brasil.​ São Paulo : Humanitas / FFLCH. 2002.

COSTA, Emília Viotti da. ​Da monarquia à república: momentos decisivos.​ 2ª ed.
São Paulo: Ciências Humanas. 1979

FIORIN, José Luiz. “Língua portuguesa, identidade nacional e lusofonia.” in


Confluência​[S.l: s.n.], 2008. pp 53-67

LUKÁCS, Georg. “O Romance como epopéia burguesa” in​ ​Ensaios Ad Hominem -


N. 1, Tomo II: Música e Literatura.​ São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem.
1999 pp. 87-136

MAZZEO, Antonio Carlos. ​Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia


burguesa.​ São Paulo: Boitempo. 2015. 3ªed.

MONTALVO, Garci Rodríguez de. ​Amadís de Gaula​. Editado por Juan Manuel
Cacho Blecua. Madrid: Ediciones Cátedra, S. A., 1996. 3ª ed.
NUNES, Benedito. “A Visão Romântica”. In Guinsburg, Jacó (org.). ​O Romantismo​.
São Paulo : Perspectiva. 2008. 4ªed. pp. 51-75

ROSENFELD, Anatol; Guinsburg, Jacó. “Romantismo e classicismo” in In


Guinsburg, Jacó (org.). ​O Romantismo. ​São Paulo : Perspectiva. 2008. 4ªed. p.
261-274

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