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COM|DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

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28/09/2015 6:00

Raças impuras
Os portugueses são, de fato, essa mistura antiga de árabes, judeus e negros
Assim como os brasileiros gostam de contar piadas de portugueses, os portugueses
gostam de contar piadas de alentejanos. Os alentejanos são, digamos assim, os
portugueses dos portugueses. Amo o Alentejo. Tenho uma enorme simpatia pelos
alentejanos. Se tivesse nascido em Portugal gostaria que fosse em Évora. As largas
planícies alentejanas lembram, até certo ponto, as savanas africanas. O Alentejo é o
único lugar onde Portugal parece grande.
Durante séculos, o sul de Portugal recebeu escravos negros. Em 1761, ano em que o
Marquês de Pombal determinou o fim da entrada de escravos em Portugal, ainda
haveria pelo menos cinco mil a trabalhar nas planícies alentejanas. Persistem sinais
dessa presença em alguma toponímia e até em certos nomes de família, de origem
banto.
A influência árabe, essa, é evidente. Inclusive na música. O fado, aliás, está tão
próximo de alguma tradição árabe que há quem junte as duas e é como se sempre
tivesse sido assim. Ouçam por exemplo o jovem Ricardo Ribeiro, cantando, em árabe e
português, na feliz companhia do alaúde do libanês Rabih Abou-Khalil. Ouçam a seguir
a cantora tunisina Amina Alaoui em “Arco-íris”, um dos mais belos discos de fado que
eu conheço.
Pensei nisto tudo no aniversário de Zambujo, enquanto um grupo de alentejanos,
numa mesa próxima, começava a cantar. Aquele pátio belíssimo podia ser em Tanger.
Podia ser em Marrakech ou em Casablanca. Neste mesmo dia, à tarde, assisti a uma
reportagem sobre o drama dos refugiados sírios. Uma moça de voz estridente,
entrevistada na rua, insurgiu-se contra a possibilidade de Portugal receber alguns
desses refugiados ou quaisquer outros “árabes”, gente, afirmava ela, sem laços de
sangue e de cultura com Portugal. Escutei-a horrorizado. Não há maneira de me
conformar com a ignorância.
Lembrei-me de um episódio que me contou Mário Soares. Um dia, num encontro que
o antigo presidente português teve com Yasser Arafat, para discutir o interminável
conflito israelo-árabe, este chamou-lhe a atenção para a herança árabe da Península
Ibérica: “Vocês, portugueses, têm de nos apoiar. Afinal, vocês são árabes”.
“É verdade.” Reconheceu Soares, e logo acrescentou: “Mas também somos judeus”.
Os portugueses são, de fato, essa mistura antiga de árabes, judeus e negros. Os
brasileiros são a mistura, ainda mais desvairada, de portugueses, africanos, índios,
libaneses, japoneses etc. Um português que odeie “árabes” é um português que se
odeia a si próprio. Um neonazi português ou brasileiro é o mais esdrúxulo, ridículo e
repulsivo dos oximoros. Contudo — pasme-se! — eles existem. Os comentários nas
redes sociais, ou nos jornais on-line, são uma versão moderna dos antigos gabinetes de
curiosidades, ou quartos de maravilhas, salas onde, nos séculos XVI e XVII, os fidalgos
endinheirados acumulavam coleções de bizarrias, sortilégios e impossibilidades, como
sereias empalhadas, cornos de unicórnios ou lágrimas de crocodilo. Nas caixas de
comentários dos jornais, os prodígios, deformidades e monstruosidades não são
físicos, mas ideológicos e morais. As pessoas exibem ali, com um estranho orgulho, as
suas piores deformidades morais, a estreiteza aflitiva dos espíritos, as ideias mais
monstruosas. Ali está a exaltada patricinha carioca, defendendo a interdição das praias
da Zona Sul aos negros e pobres, ou o operário lisboeta que quer destruir a mesquita
de Lisboa. Há de tudo.
Em Dresden, na Alemanha, um grupo de neonazis colombianos foi espancado por
neonazis alemães quando tentava juntar-se a uma manifestação contra a entrada de
refugiados sírios. Um deles queixou-se amargamente: “Já não basta que na Colômbia
nos chamem morenonazis. Nós somos de raça pura, sim, apenas escurecemos um
pouco por causa do clima”.
É a história do ratinho que achava que era um gato, até que um gato o comeu.
António Zambujo fez 40 anos. Para festejar o acontecimento, juntou um grupo de
amigos num pátio de Lisboa. Quando cheguei, o rio Tejo, lá ao fundo, ainda guardava o
último fulgor do dia. Era como um incêndio desaguando na escuridão. A escuridão era
o mar. Conheci António Zambujo em São Paulo. Foi Marília Gabriela quem pela
primeira vez me falou dele: “Você já ouviu um fadista português chamado António
Zambujo?” — perguntou-me. Disse-lhe que não: “Não existe. Se existisse eu saberia”.
Então ela ofereceu-me um disco, era o “Outro sentido”, de 2007, e eu fiquei
maravilhado. Não sabia que havia em Portugal alguém a fazer música assim. Tentei
justificar a minha ignorância: “Você disse-me que era um cantor português e este
António é alentejano”.

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