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Lendas e contos do Alto Minho

ÍNDICE:
Lenda do Mosteiro de Ermelo 2

Lenda das Bodas do Cemitério 5

O Campo da Fome 6

Lenda da Fundação do Convento do Lugar de S. Bento 7

Lenda da Serra d'Arga 9

Lenda A Flor dos Montes 12

Lenda Santa Maria da Ínsua 17

Lenda O Penedo dos Casamentos 19

Lenda do Lagarto de Lamas de Mouro 19

Leonor 1
Lendas e contos do Alto Minho

Lenda do Mosteiro de
Ermelo

Tinha uma filha: D. Urraca, princesa piedosa, protetora de igrejas e conventos,


devotadamente dedicada à divulgação da fé cristã, em que despendia grande parte das
suas riquezas.
Um dia, decidiu fundar um Mosteiro para frades, em lugar sossegado e fecundo, rodeado de
vegetação e boas águas, onde vicejasse uma horta e frutificasse um pomar; onde houvesse
ermos floridos para meditação, vinhedos e trigais que fornecessem o pão e o vinho para o
mistério eucarístico e a sobrevivência da comunidade.

Com o consentimento real, acompanhada das suas aias e alguns soldados protetores,
meteu pés a caminho, por montes e vales do seu reino.

Chegada à Serra da Peneda, que lhe prometia larga vista sobre uma paisagem pacífica e
alegre, o silêncio e a oração, começou a subi-la, com entusiasmo, parando, ora aqui, ora ali,
para ganhar forças e melhor contemplar quanto a rodeava. Uma dessas paragens chama-se,
ainda, Bouças das Donas, lembrando o arvoredo onde D. Urraca e as suas aias repousaram,
abrigadas do Sol ardente.

Junto à vila do Soajo, onde se aconchegavam algumas casas de pedra e colmo, achou lugar
apropriado para edificação do Mosteiro e logo contratou pedreiros para lhe abrir os
alicerces.

Contente com o lugar que obedecia às condições desejadas, D. Urraca correu à Corte de seu
pai, a participar a D. Ordonho a feliz decisão.

Leonor 2
Lendas e contos do Alto Minho

Perguntou-lhe a curiosidade do rei:

- E o que se avista dessas alturas?

Respondeu-lhe a princesa:

- Longes e longes. Vêem-se, para o Sul, as torres da Sé de Braga e o imenso casario da


antiga cidade. Para o Norte, as Catedrais de Tuy e de Ourense, junto ao rio Minho. Para o
Oeste, praias onde vão quebrar-se as ondas bravias do mar. Para Leste, campos e montes
sem conta, onde pastam rebanhos e cavalgam guerreiros dos vossos exércitos.

D. Ordonho manteve-se por uns momentos calado, com uma ruga na testa, como quem
segue a seriedade de um pensamento.

Lenda da Veiga da Matança

Era uma vez uma veiga a que chamam a Veiga da Matança, em terras de beleza e viço dos
Arcos de Valdevez.

O seu nome nasce da convicção popular de que, em 1143, aí se travou uma batalha
sanguinária entre as hostes de D. Afonso Henriques e as de seu primo, o Imperador e rei D.
Afonso VII, de Leão.

O motivo da contenda residia na quebra do tratado de Tuy, em que o primeiro rei de Portugal
prometia vassalagem ao soberano vizinho.

Mas D. Afonso Henriques era um espírito rebelde, valente e determinado, disposto a fazer do
Condado Portucalense que exigira, pelas armas, a sua mãe D. Teresa, um país independente

Leonor 3
Lendas e contos do Alto Minho

e dilatado á custa das conquistas dos territórios da Moirama, a estenderem-se do Mondego


ao reino do Algarve.

Tivera, já, sob a proteção divina, uma batalha decisiva, nos Campos de Ourique, além-Tejo,
contra cinco reis moiros.

Como memória desta vitória e da milagrosa presença de Cristo, pois a lenda afirma o seu
aparecimento ao rei, encorajando-o à luta contra os infiéis, a bandeira de D. Afonso
Henriques passou a ostentar, em cinco quinas, as cinco chagas do Crucificado.

Sabendo da entrada do imperador pelo norte do país que estava a construir, com
entusiasmo, o rei português sobe aos Arcos, disposto a terçar armas pelos direitos do seu
sonho patriótico. E foi ocupar logo, para dar batalha, um lugar privilegiado, o alto Castelo de
Santa Cruz, onde os seus cavaleiros aguardaram, impacientes, o inimigo leonês.

Em piores condições encontrava-se D. Afonso VII, à frente das suas mesnadas.

Combater o primo, em tais apuros, era uma temeridade!

Então, sabiamente aconselhado, propôs a D. Afonso Henriques o encontro dos dois


exércitos na planura da veiga, não para a violência de uma batalha, mas apenas para a
destreza de um torneio, ou baforada, como então era chamado.

Assim, cada cavaleiro português desafiava um cavaleiro leonês, para um confronto singular.

E venceria quem mais inimigos houvessem derrubado.

D. Afonso Henriques aceitou o repto e, rodeado de bons e esforçados cavaleiros,


experientes em manejar a lança e a espada no corpo do contendor, saiu-se vencedor do
bafordo, obrigando o imperador a regressar aos seus domínios de além-Minho.

Pouco tardou que D. Afonso VII não assinasse um armistício com o primo português,
aceitando-lhe, diante de um alto dignitário da Igreja, o título de rei.

Graças ao acordo entre dois monarcas, a veiga arcuense assistiu, assim, não a uma
carnificina, mas quase a um espetáculo palaciano, embora temerário, que, noutras
circunstâncias, poderia, até, ser admirado por damas e donzéis, entre guiões de seda e
ornamentos de festa. Mas a lenda sobrepõe-se à História.

E, séculos atrás de séculos, o povo olha a pujança pacífica daquela extensa veiga cultivada,
como local fatídico de uma horrenda batalha, com a terra empapada em sangue, cavalos
desventrados, guerreiros agonizantes, segurando, ainda, na mão exangue, lanças, escudos,
espadas, gemendo de dor, suspirando de morte. Incólume, no meio desta hecatombe,
empunhado a branca bandeira das quinas, montando um cavalo banhado de espuma, mas
de crinas agitadas ao vento da glória, qualquer pode imaginar o vulto espesso e nobre de D.
Afonso Henriques, o rei-herói, anunciando, naquela veiga, naquela matança, o Dia Primeiro
de Portugal!

Leonor 4
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Lenda das Bodas do Cemitério

Era uma vez um fidalgo, dos mais nobres das terras que se estendem, num vale fértil, entre
altas montanhas, banhadas por um rio, o Vez, pequeno no caudal, é certo, mas de margens
graciosas e elegante no percurso até às águas do Lima.

Chamava-se D. Soeiro e era alcaide do castelo de Tora, de perfil aguerrido, eriçado de


ameias, erguido sobre espessas rocas.
Enviuvara, há bem pouco, de D. Aldonça, aparecida morta subitamente, tão nova ainda e
tão bela.
Ninguém conheceu a dimensão do desgosto do alcaide, nem ninguém lhe vira as lágrimas
de dor, pois, por alguns dias, permaneceu encerrado no seu Paço do Vale, sem conviver
com amigos ou parentes.
Parecia, todavia, misterioso, a muitos, o triste desaparecimento da dama, coincidindo com o
afastamento de uma das suas aias, Dulce, a quem D. Soeiro dirigia, muita vez, ora um
galanteio, ora um sorriso cúmplice.
Por isso, nos castelos e solares das redondezas, se murmurava, aliás sem existência de
probas, que o marido se vingara na esposa, com veneno ou punhal, por ela haver
descoberto o seu amor adúltero e o haver interrompido com a expulsão de Dulce.
Passado o tempo de luto, D. Soeiro regressou às suas funções de alcaide do castelo de
Tora, próximo da fronteira, vigia e defesa do solo português.
Ia ele, num entardecer doce, vulgar por aquelas bandas, a caminho do castelo, quando ao
passar junto do cemitério onde jazia D. Aldonça, avistou um vulto de mulher, cuja riqueza do
trajo mostrava ser alguém de elevada estirpe.

Leonor 5
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Trazia o rosto pudicamente oculto por um véu de tecido leve.


D. Soeiro, encantado com aquela aparição, não resistiu em rogar-lhe que se mostrasse aos
seus olhos, despojada de ocultações.
Ela obedeceu.
E D. Soeiro pôde, então, admirar melhor essa mulher, muito jovem e muito formosa.
Solícito, indagou-lhe se necessitava de auxílio; de companhia até casa, pois a noite
avançava e cresciam os perigos de uma dama, como ela, se aventurar, sozinha, por esses
ermos.
E, enquanto dizia tais palavras, o alcaide cada vez mais se sentia dominado pela sedução
daquela mulher.
Num ímpeto apaixonado, tentou mesmo tocá-la, mas parecia que as suas mãos unicamente
prendiam o sopro do vento.
Tomou-lhe a mão, mas sentiu-lha de gelo e como desprovida de carne.
Dir-se-ia haver palpado, apenas, os ossos de um esqueleto!
Todavia, não deixou de lhe confessar um amor eterno, pois pensava que lhe era impossível,
a partir do instante em que avistara aquela dama, continuar a viver de coração tranquilo e
solitário.
A visão sorriu enigmaticamente.
Depois, exigiu do alcaide que jurasse a eternidade desse amor, no recinto sagrado do
cemitério.
E ambos se dirigiram para lá.
Mas, quando D. Soeiro transpôs o portão da mansão dos mortos, o sino da capela do solar
do Vale começou a tanger, cadenciado.
Espantou-se o alcaide com aquele dobre, pois havia proibido aos seus criados, após o
falecimento de D. Aldonça, de fazer tocar o sino da capela.
Então, ao som das badaladas, D. Soeiro viu-se envolvido pelos braços da estranha dama e,
mudo de assombro, ouviu-se a confissão:
Ela era o cadáver de D. Aldonça, traída e assassinada pelo marido, a vingar-se, naquele
encontro, do seu sofrimento e da sua morte violenta.
E, à medida que fazia esta revelação, sem deixar de abraçar D. Soeiro, ia-se
transformando, lenta, lentamente, num esqueleto apavorante.
Um grito imenso, arrepiante, soltou-se da boca escancarada do alcaide.
A Lua já nascera no céu, pálida e misteriosa.
Na manhã seguinte, o coveiro foi descobrir D. Soeiro, morto e tombado sobre o sepulcro da
esposa.
Então, o povo e a fidalguia daquelas paragens, lamentando-lhe a morte, arrependiam-se de
haver duvidado da fidelidade do alcaide, afinal, tão apaixonado por D. Aldonça.
E nunca chegaram a conhecer a verdade.

O Campo da Fome
Leonor 6
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Conta-se que, há muitos anos, num mês de Maio, aconteceu algo muito estranho lá para os
lados de Formariz. Como acontece frequentemente, aquando das lavradas onde participam
muitas pessoas, na hora do almoço, as mulheres da casa transportam para o campo em que se
está a trabalhar o repasto para todos. É costume estender as toalhas de linho numa sombra
mais agradável, e aí sentarem-se os trabalhadores à volta do que sai dos generosos cestos:
boroa de milho e de centeio, uns nacos de carne de porco e um caldo de feijões e couves. Tudo
isto regado por umas malgas de vinho.

Encontrava-se o grupo da lavrada na tarefa de satisfazer o estômago e descansar as pernas e


costas, em alegre cavaqueira, quando se aproximou dele um cão com aspeto de esfomeado!
Sentindo-se importunados naquele momento de agradável convívio, todos enxotaram o cão, sem
lhe lançar o mais pequeno pedaço de pão!

- Fora cão! Xô...! Vai-te embora! — gritaram os mais incomodados.

O cão não teve outro remédio senão fugir dali. Mas uns passos à frente, voltou-se para trás e,
fixando os olhos naqueles que o escorraçaram, caíram-lhe os olhos ao chão! Toda a gente que
assistiu ao sucedido ficou perplexa. Nunca tinham visto coisa semelhante antes daquele dia! O
cão entretanto desapareceu, mas o último olhar que tivera para com os presentes permaneceu
marcado no seu pensamento, de tal maneira que adivinharam logo ali um mau presságio!

Passaram-se os anos e ainda hoje, diz-se, o campo onde aquelas pessoas estavam a trabalhar
nunca mais foi o mesmo na produção. O acontecimento marcou tanto as pessoas, que ao
campo, quase infértil a partir daquele dia - sendo hoje uma bouça -, deram o nome de «Campo da
Fome».

Leonor 7
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Lenda da Fundação do
Convento do Lugar de S.
Bento

O dono de uma quinta, chamada S. José, recebeu um dia dois frades que lhe foram pedir
esmola. Condoeu-se deles e ofereceu-lhes agasalho na quinta. No dia seguinte, muito comovido
pela desgraça dos frades, que não tinham casa nem dinheiro, perguntou para onde iam;
responderam que ficariam por ali se houvesse quem lhes desse um bocadinho de terra do
tamanho de um couro de boi. O dono da quinta disse que lhes dava ainda mais, o que eles
recusaram; só queriam o que pediam, mas dado com todas as seguranças que a lei oferece para
não lhes ser tirado mais tarde. O dono da quinta fez-lhes doação por escritura do terreno que
desejavam, isto é: o tamanho do couro de boi. Os frades, arranjaram um couro de boi,
cortaram-no em tiras muito finas e fizeram com elas o formato de um boi enormíssimo. O dono
da quinta vendo o roubo ficou louco. Os frades fizeram nesse terreno o convento, que ainda hoje
existe, assim como a capela de Santo António, hoje chamada de São Bento. A quinta do
convento, vista de um alto, que a domina, mostra perfeitamente o formato de um boi. Esta
história está descrita com as datas nas matrizes da repartição de finanças dos Arcos de
Valdevez, terra onde isto se deu. A quinta chama-se Quinta do Convento, sita no lugar de S.
Bento.

Leonor 8
Lendas e contos do Alto Minho

Lenda da Serra d'Arga

Era vez um rei chamado Evígio, forte e severo, que ocupava o trono visigótico da Península
Ibérica, parte do qual se estendia pelas terras férteis que, séculos mais tarde, iriam constituir
Portugal.

Evígio tinha uma filha única, de nome Eulália, muito bela, luz dos seus olhos, prometida por ele
em casamento ao valente guerreiro Remismundo, que desejava como seu sucessor. Mas Eulália
amava outro. Amava o jovem Egica, de nobre sangue real, também ele valoroso, é certo, mas
cujos amores com Eulália o rei Evígio contrariava, preso ao compromisso tomado com
Remismundo. Porque o coração se lhe negasse a aceitar a decisão paterna, Eulália resolveu
fugir com Egica para longe do seu reino, onde encontrassem, juntos, a felicidade desejada. E,
numa certa noite escura, ambos, escapando à vigilância de servos e soldados, cavalgaram livres,
para outros lugares mais amáveis.

Ao saber da fuga dos jovens namorados, logo o rei enviou um poderoso exército em sua
perseguição. Conscientes dos perigos que corriam, Eulália e Egica procuraram ocultar-se o
melhor e o mais breve possível da ira de Evígio.

Leonor 9
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E, debaixo de uma violenta tempestade, chegaram à vista de uma alta serra, chamada Medúlio,
próximo da Galiza, onde fora construído o Mosteiro Máximo, conhecido de Egica, pois ali residia
um velho amigo seu, Frei Gondemaro, decerto pronto a acolher, com satisfação e carinho, o par
de fugitivos.

Vencendo as fúrias do vento rude e da chuva insistente, não tardaram a bater às portas do
Mosteiro e a cingir os braços generosos do monge, que prontamente lhes ofereceu uma mesa
abundante e o repouso dos leitos.

A manhã seguinte, trazendo consigo um Sol radioso, desvendou, aos olhos da princesa e do
cavaleiro, um panorama deslumbrante de campos semeados, densos e verdes arvoredos, águas
rumorejantes de riachos, rebanhos brancos de ovelhas, o mugido melancólico dos bois, um
pulsar de vida selvagem entre as brenhas, uma festa de pássaros nos ares.

E Eulália, encantada com o que via, exclamou:

- Porquê, chamar Medúlio ao esplendor e prosperidade desta serra, e não Agro, como merece?

Respondeu-lhe o irmão Gondemaro:

- Razão tendes. Pois toda esta riqueza se deve ao trabalho agrícola, de Sol a Sol, dos nossos
bons monges que a cultivam sem fadiga e com muito amor.

Rogou-lhe, então, o par enamorado que, nesse dia magnífico, Gondemaro o casasse, antes que
os homens de Evígio o descobrissem e levassem prisioneiro.

Fez-lhe o frade a vontade, no segredo do altar florido, ante a bênção da cruz sagrada. Depois,
Eulália e Egica partiram para novo reino, ainda mais distante do poder do rei ofendido.

Mas Eulália, ainda que junto do seu amado, sofria de saudade do pai e da sua pátria, e levava os
dias em lágrimas.

Até que chegou, por fim, ao castelo onde o casal morava, o velho monge do Mosteiro Máximo.
Vinha exausto da viagem penosa, tão demorada e tão cheia de perigos. Mas trazia boas notícias!
O rei Evígio, também saudoso da filha querida, estava pronto a perdoar a desobediência e a fuga,
se Eulália lhe desse um neto varão, que viesse alegrar-lhe a velhice e herdar-lhe a pesada coroa.

Leonor 10
Lendas e contos do Alto Minho

Não tardou muito que a princesa embalasse nos braços um filho, para o perdão do rei e o
regresso feliz dos exilados.

Porém, antes de alcançarem o palácio de Evígio, perante a estima e o respeito de todos,


quiseram voltar àquela altiva serra, onde haviam casado, chamada, agora, Serra de Arga, pois o
povo, na sua ignorância, havia deturpado para Arga a palavra Agro, raiz da palavra Agricultura,
com que Eulália justamente a apelidara.

E assim a Serra ficou chamada até aos nossos dias, com a beleza da sua paisagem doce e
agreste, cada vez mais fecunda e arroteada, com o bulício da sua fauna e pujança da sua flora,
recebendo os louvores entusiásticos de quem lhe sobe aos altos e lhe desce aos vales, na
devoção das romarias, escutando o balir manso dos rebanhos, o reboar dos sinos, o estrondo
dos foguetes na lisura dos céus.

Leonor 11
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Lenda A Flor dos Montes

Foi em Venade que tudo isto aconteceu. Lá, existe um alto penedo de estranha configuração,

Leonor 12
Lendas e contos do Alto Minho

que logo atrai o olhar de quem por ali passa descuidado. Porém a gente da terra, ao senti-lo
debruçado sobre o seu caminho, volta logo a cabeça, com receio de o encarar. O motivo que deu
origem a esse estado de alma (o medo não é mais do que um estado de alma) foi esta lenda que
vou contar, tal como me foi contada.
É linda, a Primavera no Minho. Os campos ficam mais verdes, mais viçosos. As flores
desabrocham pelos montes, à beira das estradas, junto aos balcões das casas garridas. E foi em
plena Primavera que isto aconteceu.
Maria Clara saíra com o gado para o campo. Mas não se demorara tanto como era seu costume.
Voltara mais cedo. A mãe estranhou o facto, ao vê-la entrar em casa. E indagou:
— Já de volta?
A rapariga respondeu, desembaraçada:
— É verdade, minha mãe. Também… o Sol já lá vai.
— E o gado?
— Está acomodado. É sempre a primeira coisa que faço antes de entrar em casa.
E tentando dar um tom indiferente à pergunta:
— Viu o Zé?
A mãe de Maria Clara parou de lidar. Olhou a filha de frente. Parecia zangada.
— O Zé... O Zé... Então foi por causa dele que voltaste mais cedo?... Pois não me fales nele!
Maria Clara assustou-se.
— Porquê?
Veio pronta, a resposta:
— Porque essa velha bruxa qu’inda é parente dele anda p’raí a espalhar que ele vai ser um
desgraçado contigo!
Maria Clara embespinhou-se.
— Desgraçado comigo? Pois tomara muitos o lugar dele!
— Talvez. Mas o que é certo é que as bocas danadas já têm que fazer!
— E porquê?
— Olha, filha, porque somos muito pobres e não temos um braço de homem para nos defender.
Essa é que é essa!
Maria Clara estava corada de indignação. Mas quis fingir indiferença.
— Ora, mãe, deixe-as lá falar! O que lhes rói é ele ter alguma coisinha de seu e eu só ter as
pobres ovelhas! Que se amofinem, porque eu bem me importo com elas! Gosto do Zé, e pronto!
Queira ele... e havemos de casar!
Do lado de fora soou uma gargalhada. E uma voz bem timbrada fez-se ouvir:
— Com que então, andas para aí a falar do Zé, alto e bom som...
Maria Clara, apanhada de surpresa pelo namorado, resolveu levar o caso para a brincadeira.
— Eu falo alto... e tu escutas às portas! Com que então... ouviste tudo?
— Ouvi que gostavas de mim e isso soou-me como música na igreja!
Maria Clara voltou a corar de alegria. Gracejou:
— Vê, mãe, como ele fala? É assim, com estas palavrinhas bonitas, que ele me apanha!
O rapaz olhou-a, prazenteiro:
— Também tu és bonita, cachopa! Bem bonita!
Ela encarou-o, quase séria. Indagou:
— Olha lá, Zé... O que vale mais? Uma cara bonita, ou dinheiro na arca?...
O jovem enamorado riu, antes de responder:

Leonor 13
Lendas e contos do Alto Minho

— Conforme, rapariga. Para mim prefiro uma cara bonita e um bom coração, à arca mais
recheada. Mas olha que nem todos pensam assim...
Maria Clara atalhou logo, furiosa:
— Por exemplo: a velha bruxa qu’inda é tua tia... diz que és mal empregado em mim!
Ele pegou-lhe na mão, tentando acalmá-la. Sorria para temperar a borrasca que se anunciava.
— Não te zangues, cachopa! É natural que a minha tia pense assim! É de outros tempos. Gosta
de mim...
— E eu, não gosto?
— Sim... mas de outra maneira!
— E que pretende que faças?
— Só farei aquilo que entender...
— Mas entretanto ela continua a falar… e as outras a seguirem-lhe o exemplo!
Ele encolheu os ombros.
— Olha! Qualquer dia iremos os dois à igreja, e toda a má língua acabará.
Maria Clara ficou suspensa. Quase a medo, perguntou:
— Qualquer... dia?
Ele sorriu-lhe.
— Sim. E muito breve! Ainda antes do dia do Senhor! Iremos os dois à sacristia e falaremos ao
senhor Prior.
Maria Clara voltou a corar.
— Que lhe vais dizer? Tenho tanta vergonha dele...
O rapaz olhou a sua bem-amada bem nos olhos, como a buscar inspiração. E respondeu,
fitando-a sempre:
— Direi assim: Senhor Prior! Quero arreceber-me com esta cachopa, que é mesmo uma flor dos
montes!
Maria Clara não sorriu. Estava quase a chorar de alegria. Voltou-se para a mãe, com voz trémula
pela emoção.
— Vossemecê ouviu?... Como o Zé sabe falar bem!
A mãe de Maria Clara sorriu, enleada. Lá longe, na torre da igreja, soaram as ave-marias. A tarde
declinava, num manto de luz suave...
Dias depois, mais feliz do que nunca, Flor dos Montes — como os rapazes já chamavam a Maria
Clara — subiu a serra com o gado.
Era uma tarefa diária. Estava só. A água da fonte corria de mansinho, como em segredo de
amor. E a jovem sonhava, olhando, lá em cima, o penedo — esquecida até das histórias que dele
se contavam.
De súbito pareceu a Maria Clara que o penedo se cobria de uma luz doirada. Levantou-se, então,
num sobressalto, acordadas em si as histórias de antanho. E foi precisamente nesse instante
que uma jovem esplendorosamente bela começou a surgir desse penedo, que se abria
vagarosamente!
Quase sem voz, tão grande era a emoção, Maria Clara murmurou:
— Valha-me Nossa Senhora! Tanto oiro!
Deu alguns passos em frente, mas estacou, receosa.
Uma voz bonita falou-lhe então:
— Não temas... Aproxima-te.
Clara tartamudeou:
— Quem... sois?...

Leonor 14
Lendas e contos do Alto Minho

A jovem, envolta em fumo e luz, pareceu surpreendida:


— O quê? Nunca ouviste falar em mim?
— Em vós?
— Sim. Ou pelo menos… neste penedo...
Maria Clara teve uma revelação. Ficou pálida de medo, e perguntou:
— Sois... a moura encantada?
— Sou, sim. E posso fazer de ti a rapariga mais rica e feliz de todas estas terras. Basta que me
oiças.
— Estou a ouvir-vos...
— E prometes fazer tudo quanto te pedir, sem falares a ninguém no que acaba de acontecer?
— Se for coisa simples, farei!
— Sim, é simples. Tens fermento da última cozedura de pão?
— Tenho, sim. A minha mãe guarda sempre o fermento.
— Neste momento, onde está a tua mãe?
— No rio, a lavar.
— Pois tem de ser agora mesmo! Vai a casa e traz-me o fermento. Eu tomarei conta do gado.
— Só isso?
— Só. Mas não digas a ninguém o que vais fazer, nem que me viste, entendes? Se cumprires a
tua promessa, serás tão rica, que ninguém neste país te igualará!
— Por que fazeis isso?
— Porque ficarei livre!
Maria Clara ficou um instante pensativa. Depois afirmou, convicta:
— Prometo! Prometo tudo isso!
E arquejando de emoção:
— Que bom! Que bom vai ser! Tomai conta do meu rebanho. Eu volto já!
Correndo de pedra em pedra, Flor dos Montes parecia uma andorinha, tão leve e contente se
mostrava. De súbito, alguém viu-a passar e gritou-lhe:
— Eh, rapariga! Que aconteceu para ires correndo assim?... Não ouves? Pareces uma tonta,
cachopa!
Ofegante, Maria Clara parou. Vendo a tia do seu namorado — aquela que tão más ausências
fazia dela — gritou-lhe:
— Que me quer, sua bruxa?
A velha ficou varada. Nunca Maria Clara lhe falara assim. Teve um acesso de raiva, e exclamou:
— Bruxa, eu? Olha a sem vintém, e ainda por cima malcriada!
Maria Clara teve um riso nervoso.
— Sem vintém? Isso é o que vossemecê pensa!
E com orgulho súbito, remoendo vinganças:
— Serei a mais rica de tudo isto em redor!
A velha abriu os olhos num espanto. Que loucuras proferia a namorada do seu sobrinho! Meneou
a cabeça, desgostosa.
— Não há dúvida que além de pelintra és tonta! Tu, rica?... Não tens onde cair morta! E queres
ainda o meu Zé! Desengana-te... Ele não é para o teu dente!
Maria Clara teve um acesso de raiva.
— Serei rica, sim, senhora! Mas se quiser pode levar também o seu sobrinho!
A mulher mostrou-se quase alarmada.
— Que vento te passou pela cabeça? Quem te meteu essa ideia nos miolos?

Leonor 15
Lendas e contos do Alto Minho

— Foi a princesa moura do penedo!


E voltando costas à mulher, que a olhava agora com espanto e medo, Maria Clara continuou
correndo. Chegada a casa, tirou o fermento, e voltou, sempre correndo, a subir a serra.
Nesse tempo, porém, já outras mulheres a quem a velha tia do Zé Quintão pusera ao corrente do
que se passara, seguiam no rasto daquela a quem chamavam a Flor dos Montes.
Quase sem poder respirar — tão grande era o cansaço — a rapariga nem reparou no gado que
voltava sozinho ao redil. Esgazeada, olhou o penedo já quase sem luz. A princesa não estava lá!
Buscou em volta, numa muda interrogação. Então, ouviu as vozes das mulheres e do rapazio,
que começavam a subir a serra, no seu encalço. A verdade, ou antes, a realidade surgiu-lhe de
repente: ela faltara à promessa que havia feito à moura! A vaidade falara nela mais alto que o
desejo de cumprir a palavra dada! A princesa desaparecera. E ela teria de quedar-se pobre como
era, e ainda cheia de vergonha da sua soberba!
Vendo-a nessa expressão de atarantada e vencida, a risota foi geral. Então, alucinada, Maria
Clara voltou a descer o monte, correndo em direção a casa.
A tarde morna fazia do crepúsculo mais um véu de tristeza para calar alegrias. No seu leito de
enferma, Maria Clara olhava um ponto fixo no teto. Não falava, não dormia, não queria comer.
Junto dela, a mãe chorava em silêncio. As vizinhas deixaram de a visitar. O próprio Zé Quintão
não aparecia. E os dias iam passando... E Maria Clara ia mirrando, mirrando...
Nessa tarde, porém, algo aconteceu. Vinda do exterior, uma voz chamou:
— Flor dos Montes!
Maria Clara ouviu. Os seus olhos abriram-se mais. A mãe dela, a seu lado, começou a chorar.
A voz tornou:
— Flor dos Montes!
A mãe da rapariga exclamou, num raio de esperança:
— Louvado seja Deus! É o Zé Quintão!
E foi abrir a porta. O rapaz entrou.
Comovido, beijou a testa, os olhos de Maria Clara. O peito dela arfava, demonstrando a emoção
que estava a sentir. Mas continuava muda e queda. Zé Quintão voltou a falar-lhe:
— Maria Clara! Tu és a Flor dos Montes. Mas as flores, quando murcham, morrem... E tu tens de
viver! O senhor Prior está à nossa espera no domingo.
Houve um pequeno silêncio. A expressão parada de Flor dos Montes animou-se. Fechou os
olhos. E as lágrimas começaram a rolar, inundando-lhe o rosto.
A mãe voltou a exclamar:
— Deus seja louvado!
Zé Quintão insistiu:
— Tens de pôr-te boa! Só faltam três dias!
Então Maria Clara soergueu-se no leito. Pela primeira vez a sua voz enchia a casa, desde a
malfadada tarde em que descera do monte, correndo.
— Zé... tu falaste-lhe?... Tu queres... ainda… casar comigo?
Ele fingiu naturalidade:
— E por que não? Não era isso o combinado?
— Era... mas...
— Mas tens de prometer-me que nunca mais irás sozinha lá a cima, ao penedo!
Fechando os olhos, como a dissipar recordações, ela murmurou quase em surdina:
— Prometo!... Nunca mais! Nunca mais!

Leonor 16
Lendas e contos do Alto Minho

Zé Quintão puxou a moça de encontro ao seu peito forte. Tinha lágrimas nos olhos, que tentava
encobrir.
Espreitando do alto, o crepúsculo fez sinal à noite para que descesse depressa.
E a noite encontrou já os dois namorados abraçados e felizes!

Lenda Santa Maria da


Ínsua

Frei Diogo Arias


olhou para a
pequena ermida
solitária, ali
junto à foz do Minho, numa língua de areia a querer invadir o mar. O santo frade tinha finalmente
encontrado o lugar onde poderia entregar-se a Deus e meditar as palavras divinas. Juntamente
com um pequeno grupo de irmãos, aventurou-se até à imagem da Senhora de Carmes e
confiou-lhe o seu segredo. Servo do menino que estava ao colo da Senhora, prometeu Frei Diogo
que ali ergueria um convento, para, longe do barulho do mundo, entregar-se à sua proteção.
Os irmãos que o seguiam, bem compreendiam e admiravam a vontade e coragem do seu
patrono, mas descriam das possibilidades de levar a bom termo tal propósito. Afinal, aquele
lugar não era tão sujeito aos caprichos e rumores do mar e suas tempestades? Como encontrar

Leonor 17
Lendas e contos do Alto Minho

ali o sossego? Ausente a vozoaria humana, como silenciar a dos elementos da natureza? E
como se podia ali viver em qualquer fonte de água doce?
Frei Diogo pressentia a descrença dos irmãos, mas não via neles qualquer desânimo, O
entusiasmo com que levava por diante as obras e a fé que transmitia, iam contagiando,
lentamente, todos os frades. — Valha-nos Deus e a Virgem! Era o crédito para todas as dúvidas.
Ao longe passavam os marinheiros e pescadores, os quais, atónitos, iam registando os
progressos das obras. Grande coragem e fé teriam que ter aqueles frades, para desejarem viver
tão pobremente, sem comodidade e sem água doce, pensavam os homens do mar.
Acabadas as obras e celebrada a inauguração e dedicação da capela, foram, logo desde os
primeiros dias, surpreendidos os frades por tão doce quietude do mar. Mas a surpresa aumentou
quando, por mais alterado que fosse o mar, e a tormenta afastasse qualquer navegador, dentro
do convento, principalmente na capela, não se ouvia qualquer barulho! Era o silêncio um convite
à oração, que assim lhes permitia elevar o espírito para as coisas celestes! Aquele era na
verdade um lugar protegido e abençoado pela Virgem Senhora da Conceição, que frei Diogo
Arias havia colocado no altar da capela, e que agora recebia o nome do local: Senhora da Ínsua!
E se a alegria e a fé cresciam a cada dia nos corações dos irmãos, ela ficou para sempre
fortalecida quando Frei Diogo lhes indicou, a mando da Senhora que lhe havia aparecido em
sonhos, um local para escavar. Assim fizeram. Ainda a escavação estava no início, e logo um
jorro de água doce a todos maravilhou! Milagre! Foi este o grito entusiasmado e fervoroso de
todos, pelo inusitado do local e pela qualidade da água que aí brotava.
Pelas redondezas passou o relato de tal feito milagroso. Todos acorriam para ver e beber de tão
ditosa fonte, vindo esta a ser conhecida como “Fonte Milagrosa”, e as suas águas pretendidas
para todas as curas.
Junto à imagem, Senhora da Conceição, Frei Diogo Arias agradecia as graças concedidas pela
Virgem que, daí em diante, seria sempre a Estrela-do-mar para os mareantes e pescadores, e o
último remédio para a saúde de todos.

Leonor 18
Lendas e contos do Alto Minho

Lenda O Penedo dos


Casamentos

Há muitos solteiros que não desperdiçam a oportunidade de irem até ao "penedo do casamento",
situado no alto da Serra d’Arga e que, segundo a lenda, consegue "arranjar testo para qualquer
panela", tudo dependendo da perícia de quem quer casar.
Os solteiros atiram uma pedra para o penedo para que esta fique em cima dele. Se ela ficar em
cima à primeira, é sinal que casa no prazo de um ano. Se for à segunda, tem que esperar dois
anos. E por aí fora.

Porém, quando os tempos estão difíceis, e o desespero de quem recorre ao penedo aumenta,
ouvem-se com frequência cantar os seguintes versos:

Ó meu Senhor S. João

Casai-me que bem podeis

Já tenho teias de aranha

Naquilo que bem sabeis

Lenda do Lagarto de
Lamas de Mouro
Leonor 19
Lendas e contos do Alto Minho

Em tempos que lá vão, nas imediações da chã de Lamas de Mouro, existia um monstruoso
lagarto que afligia toda a população. O enorme réptil postava-se sobranceiro ao caminho que
levava à Senhora da Peneda, e todos os que ali passavam eram engolidos pelo seu apetite voraz.
Todos os anos, alguns pastores, perdigueiros, e romeiros, que por ali passavam com destino ao
Santuário da Senhora, eram vítimas do feroz lagarto.

Ora ali perto, no coto da meadinha, morava uma mulher que passava o tempo a fiar na roca e a
assoalhar as suas meadas, aproveitando tão arrumado lugar ao sol. Acontece que um dia esta
mulher, em andanças de devota ou de pegureira, passou por perto do lagarto. Ao ver a figura que
se aproximava, o terrível sáurio acometeu-a para a devorar. Num supremo e insuspeito esforço a
mulher arrancou da cintura uma arma de defesa, que não era outra coisa senão a sua roca! Com
extraordinária habilidade desferiu um poderoso golpe no até então invencível réptil,
transformando-o em pedra!

Crê-se que a mulher era Nossa Senhora, e a prova do seu feito pode-se ainda hoje ver no lugar
dito de Portela do lagarto, nome que advém da forma rochosa que encima o penhasco, pois se
assemelha ao repugnante réptil.

Leonor 20

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