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Teatro por streaming pode ter chegado para ficar, diz Aderbal Freire-

Filho
02 de julho de 2020

[RESUMO] Autor compara a evolução do teatro e do futebol e pondera se a


pandemia de coronavírus pode consolidar o modelo de streaming nas artes
cênicas, ampliando o público, antes restrito aos espetáculos presenciais, em
movimento semelhante ao ocorrido com a transmissão de partidas de futebol
décadas atrás.
Uma pergunta frequente nesses tempos de pandemia tem merecido
reportagens, artigos, entrevistas: como será a volta do teatro depois da
pandemia?
O crítico e filósofo francês Roland Barthes, especulando sobre a atualidade
da tragédia grega na pólis de hoje, ou seja, pensando se dá para comparar
Atenas com Copacabana, disse que o que hoje mais podia se aproximar dos
festivais trágicos daqueles dias seriam as grandes competições esportivas.
Um campeonato de futebol, por exemplo: um período certo do ano, gente de
todas as camadas sociais assistindo, um grande vencedor no final...
Depois dessas novas guerras médicas (não dos gregos contra os medas,
mas dos médicos contra o coronavírus e os clorocharlatães), quero me valer
dessa comparação feita a propósito de uma morte na história do teatro (a dos
grandes festivais trágicos) para associar a volta do teatro à volta do futebol.

Nas peças apresentadas no Zoom, elenco não se conhece e cenários


mudam num clique.

Ora, o futebol já está voltando e o teatro ainda não. Mudou o futebol ou


mudaria Roland Barthes?
Ambos, futebol e teatro, são acontecimentos-espetáculo, um encontro entre
os artistas (do gramado, do palco) e o público.
Mas, há cerca de cem anos, o futebol, mesmo ao custo de perder grande
parte da sua emoção, começou a aumentar sua plateia. Primeiro pelo rádio,
em que mestres de cerimônias, os locutores esportivos, tentavam compensar
a perda da emoção dos estádios: com relatos dramáticos, um "cooorpo
estiraaaado" no chão; com gritos escalafobóticos,
"goooooooooooooooooooool"; criando expectativas e tensões, todo o estádio
em silencio, o "centerfoward" coloca o balão de couro na marca do pênalti...
A plateia aprendia a ver o espetáculo de longe ouvindo esse décimo segundo
artista do elenco, estrelas como Oduvaldo Cozzi, Waldir Amaral, Fiori
Gigliotti, que jogavam com Domingos da Guia, Zizinho, Peló, Garrincha e
Nilton Santos...
Décadas depois, além da voz e da narração, a tecnologia introduziu a
imagem nas transmissões esportivas. Primeiro em preto e branco, a televisão
trouxe o futebol para dentro das casas. Até que um dia vimos um
inesquecível espetáculo de futebol em cores na Copa do Mundo de 1970 e o
mundo virou um grande maracanã.
E esta é a diferença, "thats the question": o futebol já tem hoje muito mais
público em casa do que no estádio, enquanto o teatro só tem o público
presente na sala de espetáculos. A hora é essa, dirão os streamers, vamos
aproveitar então essa porrada na cabeça e abrir a plateia dos teatros para os
sofás de casa. Quem sabe, a redenção econômica do indigente teatro, em
lugar de 150 lugares, 150 mil.

Momentos históricos do Maraca£

Bom, o primeiro que me vem a cabeça é um conto/crônica do Fernando


Sabino sobre a invenção da laranja (resumindo: o grande empresário que
começa com o suco em garrafa, muda para caixinha, ah, perde o sabor,
então na casca da laranja, muito suco em cada casca, não é rentável, ah, e
se botamos uns gomos...).
Não é a primeira vez que penso nele no teatro. Já tinha pensado antes vendo
um espetáculo em que os atores, depois da primeira parte, pediam aos
espectadores para sair da sala. Nos levantávamos, saíamos todos e daí a
pouco nos chamavam de volta e víamos que eles tinham mudado o cenário
(vocês não vão acreditar, mas era um grupo de vanguarda). Eu pensei: um
dia eles inventam a cortina. Pois o teatro por streaming, nada não, nada não,
um dia vai inventar o cinema.
Vejo muitos artistas aderindo a esse recurso, para se manterem vivos. Viva!
Mas não será o caso de pensar nisso como em alguma coisa temporária,
inventada a vacina para o coronavirus esse mal passa? Um amigo descrente
me diz que o teatro por streaming pode ter alguns nomes: cinema caseiro,
ex-teatro, cinema ruim, por aí...
Como no conto do Sabino, vai chegar lá: ah, sem uma montagem não fica
bom; ah, falta escolher melhor os planos; ah, seria preciso ter umas cenas
externas; ah, pra que tanto texto?; ah... ah... Resultado: vão acabar
inventando o cinema.
Dito de outro modo: o teatro fora do teatro começou a ser inventado no fim do
século 19, foi chamado de cinematógrafo e logo de cinema (do grego
"kinema", movimento); no fim dos anos 20 do século passado ganhou som
(juntou-se com o fonógrafo); depois conseguiu ganhar cores e daí para a
frente segue ganhando novos e novos recursos técnicos (e poéticos, claro).
Paradoxalmente, o avanço da tecnologia teve alguns efeitos letais: o cinema,
que ia matar o teatro, em certo sentido acabou morrendo antes. Falo das
salas de espetáculo-cinema: não, os cariocas dos vários grupos de risco, do
tempo do Azteca, na rua do Catete, dos Cines Metro (Passeio, Copacabana e
Tijuca), do Cine São Luiz, dos cinemas de bairros, somos testemunhas
oculares dessa história. As grandes salas fecharam, algumas viraram quatro,
cinco salas pequenas, os cinemas novos são conjuntos de salas pequenas
etc. E, quem sabe, só continuam pela nostalgia da tela grande: ah, nada
como ver numa telona!

Cinemas fechados durante a quarentena

Aqui, chego ao teatro. Nosso caso não é saudade de palcão, é saudade de


gente na nossa frente, do nosso lado.
Será que o streaming vai resolver? Meu amigo descrente diz que não, mas
como não sou radical faço eu mesmo o contraditório. Há relativamente pouco
tempo, foi lançado um livro de crítica de cinema do príncipe dos poetas
brasileiros, Guilherme de Almeida. Muitos (eu, por exemplo) se
surpreenderam com a revelação dessa face do poeta: Guilherme de Almeida
tinha uma coluna sobre cinema em um jornal paulistano da época, os anos
1920, 1930 e nos primeiros anos comentou o único cinema que existia, o
cinema mudo.
A parte do livro que mais me encantou foi a que mostra uma enquete que ele
fez com seus leitores. Respondendo a uma pergunta do colunista sobre o
que esperavam do cinema sonoro que se anunciava, a quase unanimidade
dos leitores dizia que era um absurdo, que não ia dar certo, que se passasse
a ser falado não seria mais cinema.
E, assim como imaginei os atuais defensores do teatro em rede como
inventores da laranja, imagino agora meu amigo descrente como um dos
leitores da coluna de cinema do Guilherme de Almeida diante da perspectiva
do cinema sonoro. O cinema sonoro veio para ficar e só ele não se deu
conta.
E, de fato, o cinema em rede tem características próprias, que podem dar a
ele legitimidade e longa vida, para além de pandemias. A principal dessas
caraterísticas é o que é chamado de “ao vivo” em teledifusão e radiodifusão,
isto é, a qualidade de não ser gravado. É verdade que nem isso é novo, as
primeiras telenovelas eram “ao vivo” ("frio na barriga"; "errou, errou"; "minhas
dálias, onde estão minhas dálias").
Aqui, graças aos avanços tecnológicos, tem também a “presença” dos
espectadores, que podem inclusive praticar um dos atos mais próprios da
arte presencial, o aplauso. Enfim, surgido e/ou desenvolvido durante o
isolamento social obrigatório, o teatro online pode se transformar em mais
uma arte com sua origem no teatro, como o cinema (teatro industrial) e o
teleteatro (teatro eletrônico). Mistura de artes cênicas e dramáticas com
reality show, o teatro online pode estar chegando para ficar, ter sua própria
poética e afirmar-se como, digamos, a nona arte.

Teatro online

Volto ao meu tema central, jardim que inevitavelmente me levaria, como me


levou, a muitas veredas que se bifurcam: como será a volta do teatro? O que
dizer do que se diz dessa volta?
Ao mesmo tempo em que se fala de plateias reduzidas, de separação entre
lugares na plateia, também se coloca a questão da distância entre os artistas
do elenco.
Outra vez quero voltar a comparação com o futebol.
Muito se tem falado sobre voltar com monólogos. Sem contar que os
monólogos já vinham se tornando quase maioria nas temporadas teatrais dos
países de cultura desassistida (o Brasil por exemplo), estaríamos
estimulando uma vertente que não é, por natureza, a mais rica da tradição
teatral. Não que não tenha tradição: o bululu, do final do século 16, gênero de
teatro andarilho para um ator só, prova isso.
A dramaturgia adotou o gênero e autores destacados aderiram a ele:
Pirandello, Cocteau, Beckett... Mas até pouco tempo eram exceções, como o
caso do fenômeno brasileiro "As Mãos de Euídice", de Pedro Bloch, com o
ator Rodolfo Mayer. Depender de monólogos seria como se o futebol sem
estádio tivesse que disputar partidas de gol a gol, um goleiro de cada lado,
chutões, nas rebatidas não passar do meio do campo.
Mas não é nada disso: o futebol de estádios fechados, que a TV vai transmitir
para todos os sofás (e banquinhos, chão, cadeiras, camas...) terá 11 contra
11, juiz, bandeirinhas, gandulas, técnico e reservas ao lado do campo... E vai
ter faltas, entradas duras, cinco pulando na área para cabecear. Está bem,
proíbe-se comemoração coletiva de gol, aquele monte de homens se jogando
uns por cima dos outros, nunca entendi como o Neymar, tão contundível, não
tenha morrido numa dessas comemorações.
Flamengo entra em campo na retomada do futebol no país

Tampouco jogam com máscaras. Fico imaginando a obrigatoriedade de


máscaras em campo para os jogadores e juiz: assim como um jogador puxar
a camisa do adversário é falta, me pergunto se puxar a máscara é motivo
para expulsão. Deveria ser, o infrator quis expor o adversário ao coronavirus.
Pois muitas das especulações sobre o teatro pós-pandemia indicam que
atrizes e atores deveriam usar máscaras.
Que máscaras? Afinal, de máscaras o teatro entende. As máscaras da
tragédia e da comédia, a máscara do Arlequino, do Brughella, máscaras da
commedia dell’arte, as máscaras do teatro balinês, tantas máscaras mais. Já
essas máscaras de proteção contra vírus e bactérias, que estamos usando
agora, não deixam de ser máscaras, mas...
Talvez esteja rolando uma pobreza de sinônimos por aqui. Vou me socorrer
do espanhol, que para se referir a essas máscaras de proteção sanitária fala
em "mascarillas", em "barbijos" e, mais frequentemente, em "tapabocas".
Uma coisa é dizer que os atores agora vão ser obrigados a usar máscaras. É
com a gente mesmo! Outra, oposta, é dizer que todos os personagens vão
usar máscaras sanitárias. Tira de mim esse "tapabocas"!
No máximo, a poesia do palco ganha um signo. Imagino Hamlet colocando
um "tapabocas" ao se aproximar de Claudio, que matou seu pai, para não se
contaminar com o veneno dos seus crimes e mentiras: uma metáfora cênica
que pode enriquecer a leitura dessa tragédia de Shakespeare e reafirma sua
condição de poema ilimitado.
Ainda agora, pensando no último espetáculo que fiz antes da quarentena,
com o Teatro El Galpán, do Uruguai, cuja versão brasileira queremos
encenar no Teatro Poeira, imagino como pode ser expressivo que alguns
personagens usem "tapabocas" quando se aproximem dos ditadores centro
americanos, Trujillo, Somoza, hoje tão próximos de nós, dos mercadores de
escravos, hoje tão próximos de nós, dos colonizadores, hoje tão próximos de
nós...
Estamos vivendo uma escala distópica na rota do teatro, desde suas origens,
em direção à utopia. E para retomar o caminho é preciso, antes de mais
nada, deixar claro que essa escala distópica é provisória: é a não sociedade,
e o teatro só existe no convívio social. Sem "tapabocas".
Vamos voltar a Roland Barthes e combinar assim: o que os jogadores de
futebol podem fazer, os jogadores de teatro também podem, isto é, vale tudo,
menos beijo na boca. Pelo menos até a descoberta da vacina.

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