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C ATÁLOGO DA E XP OSIÇ ÃO

ISBN 978 - 85 - 89336 - 8 4 - 0

9 788589 336 8 4 0 SESC | Serviço Social do Comércio

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C ATÁLOGO DA E XP OSIÇ ÃO

SESC | Serviço Social do Comércio


Departamento Nacional
Rio de Janeiro
Maio de 2012

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SESC | Serviço Social do Comércio

Presidência do Conselho Nacional Produção Editorial


Antonio Oliveira Santos Assessoria de Divulgação e Promoção/DG
Christiane Caetano
Departamento Nacional
Direção-Geral Supervisão Editorial e Edição
Maron Emile Abi-Abib Fernanda Silveira

Divisão Administrativa e Financeira Produção de Texto


João Carlos Gomes Roldão Gabriela Varanda

Divisão de Planejamento e Desenvolvimento Direção de Arte


Álvaro de Melo Salmito Ana Cristina Pereira (Hannah23)

Divisão de Programas Sociais Projeto Gráfico


Nivaldo da Costa Pereira Studio Creamcrackers

Consultoria da Direção-Geral Fotos


Juvenal Ferreira Fortes Filho Cesar Duarte

Projeto e Publicação Stills retirados do filme Sudário: Carlos Vergara e São Miguel
Coordenação das Missões, de Carlos Vergara e Gustavo Moura, produzido
Gerência de Cultura/DPS por Duas águas.
Márcia Leite
Revisão de Texto
Assessoria de Artes Plásticas Clarisse Cintra
Caroline Soares de Souza
Leidiane Alves de Carvalho Produção Gráfica
Lúcia Helena Cardoso de Mattos Celso Mendonça

Texto Estagiário de Produção Editorial


Luiz Camillo Osório Adonis Nóbrega

©SESC Departamento Nacional


Av. Ayrton Senna, 5555 – Jacarepaguá
Carlos Vergara viajante: experiências de São Miguel das
Missões : catálogo da exposição. – Rio de Janeiro: SESC, Rio de Janeiro – RJ
Departamento Nacional, 2012. CEP: 22775-004
56 p. : il. ; 28 cm. Tel.: (21) 2136-5555
www.sesc.com.br
Bibliografia: p. 35.
ISBN 978-85-89336-84-0. Impresso em maio de 2012.
1. Vergara, Carlos, 1941- – Exposições - Catálogos.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610
2. Arte brasileira – Século XX - Exposições. I. SESC. de 19/2/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser
Departamento Nacional. reproduzida sem autorização prévia por escrito do SESC
CDD 759.981 Departamento Nacional, sejam quais forem os meios e mídias
empregados: eletrônicos, impressos, mecânicos, fotográficos,
gravação ou quaisquer outros.

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Criado há mais de 60 anos, o SESC vem cumprindo com êxito seu papel como articulador do

desenvolvimento e bem-estar social ao oferecer uma gama de atividades a um público amplo, em

um esforço que conjuga empresários e trabalhadores em prol do progresso nacional.

Dentre suas diversificadas áreas de atuação, a cultura se caracteriza como um democrático

disseminador de conhecimento, uma importante ferramenta para a educação e transformação

da sociedade, levada ao público de grandes e pequenas cidades por meio da itinerância de

espetáculos e exposições.

Ao possibilitar o livre acesso às artes plásticas, assim como ao cinema, ao teatro e à literatura, o SESC

incentiva a produção artística, investindo em espaço e estrutura para apresentações culturais e, acima

de tudo, promovendo a formação e qualificação de um público que habita os quatro cantos do Brasil.

A credibilidade alcançada pelo SESC nesse âmbito faz da entidade uma referência nacional, o que

revela a reciprocidade entre suas ações e políticas e as atuais necessidades de sua clientela.

Antonio Oliveira Santos


Presidente do Conselho Nacional do SESC

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Ao longo de sua história, o SESC se tornou referência no que diz respeito à difusão da atividade

cultural em projetos que percorrem todo o país, contemplando algumas de suas diretrizes intrín-

secas, dentre elas a promoção da melhoria do nível intelectual do nosso povo. Diante do cenário

artístico atual, o projeto ArteSESC celebra a arte contemporânea por meio de obras que propor-

cionam novas tendências para a arte brasileira, contribuindo, assim, para o fortalecimento do

senso de identidade nacional.

Com esse propósito, a concepção da exposição Carlos Vergara viajante―— Experiências de São

Miguel das Missões está fincada tanto na missão do SESC de levar a arte Brasil afora por meio da

itinerância de exposições, como na promoção de um trabalho artístico extremamente singular,

instigando o interesse pelo conhecimento e o estímulo a uma nova compreensão da realidade

pela apreciação de suas obras.

Em todo o seu trabalho, Carlos Vergara perfaz um itinerário de parte da nossa cultura e história,

utilizando-se dos mais variados tipos de materiais e técnicas. Isso o constitui como um artista de

extrema importância para a arte contemporânea, característica que faz sua obra manter relação

de afinidade com o papel afirmado pelo SESC para a cena cultural brasileira.

Maron Emile Abi-Abib


Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC

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Sumário

Apresentação 13

Ver o outro: a experiência de São Miguel 19

Entrevista 33

Obras em exposição 36

Acrílicos lenticulares (3D) 37

Lenços 45

Pinturas 53

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“Diferentemente da música, que entra
e invade, na pintura, a pessoa tem de se
permitir, se deixar.”

Carlos Vergara

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Carlos Augusto Caminha Vergara dos Santos nasceu em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em
1941. Na década de 1950, chegou ao Rio de Janeiro e trabalhou como analista de laboratório;
em paralelo, dedicava-se ao artesanato de joias, as quais foram expostas na 7a Bienal Internacional
de São Paulo em 1963, ano em que descobriu o desenho e a pintura. Participou, então, das em-
blemáticas mostras Opinião 65 e 66, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e foi um dos
organizadores da mostra Nova Objetividade Brasileira.

Carlos Vergara também foi cenógrafo e figurinista de peças teatrais; suas obras dialogavam com
o expressionismo e a arte pop. Inseriu a fotografia e os filmes super-8 em sua prática e desenvol-
veu uma série de trabalhos sobre o carnaval carioca. No âmbito da arquitetura, criou painéis para
edifícios com materiais e técnicas do artesanato popular. Na pintura, produziu quadros abstratos
geométricos, explorando tramas de losangos em campos cromáticos. A partir de suas diversas
viagens pelo Brasil, Vergara ampliou sua técnica por meio do uso de elementos naturais locais,
figurando com uma exímia contribuição para a inserção do rico cenário brasileiro no universo
das artes plásticas.

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Apresentação
A obra de Carlos Vergara nunca temeu o confronto. Primeiro, nos anos 1960, esse confronto

tinha uma marca política. Vivíamos sob uma ditadura. Na década seguinte, época de ressaca

e desorientação ideológica, ela vai mergulhar fundo na energia popular, extrair daí um tônus

poético que atravessasse a paralisia criativa. Suas fotografias do bloco de carnaval Cacique de

Ramos já são parte de nossa iconografia histórica. Nos anos 1980, de retomada democrática

e pujança mercadológica, buscou nos grandes fornos e pigmentos de Minas Gerais, um

silêncio e uma opacidade que garantissem algum travo reflexivo à pintura. Sempre enfren-

tando o estado de coisas estabelecido, contemporâneo na sua inquietação, na sua busca

por um alargamento de perspectivas e por uma pulsação artística vibrante e desinibida.

Dos anos 1990 até o presente, Vergara vem inserindo em seu trabalho novas geogra-

fias poéticas que tragam o susto da diferença para a superfície do trabalho, extraindo da

visão sua dobra de invisibilidade e suspensão. Vergara viaja para pintar, buscando

no deslumbramento do ver pela primeira vez a força motriz da sua poética visual.

A viagem desnaturaliza o olhar, tira dele a força do hábito e das convenções. Daí

surge a intensidade. O deslumbramento requer intensidade para que o sobres-

salto, típico do susto admirado diante do novo e do outro, não se torne algo

exótico, nem se faça excessivo ao se transpor em obra. O difícil em arte — a sua

questão crucial — é transmitir o deslumbramento, dar alguma permanência a

um sentimento tão fugaz. Isso não se faz sem a mediação da obra, sem

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a passagem de um modo de ver particular (do artista) para outro pre-

tensamente universal (dos espectadores potenciais). O pôr-se em obra,

como aquilo que faz do deslumbramento do artista o deslumbramento

de qualquer um. A intensidade que produz esse deslocamento é con-

quistada no trabalho de ateliê, no lento ofício do gesto, da pincelada,

da mão-olho-pensamento. O exercício do pintor contemporâneo é uma

espécie de superação da técnica, do saber-fazer, da destreza. Supera-se

o virtuosismo em busca do poético. Só assim ainda advém algum

deslumbramento.

Essa intensidade não é una e homogênea, mas plural e heterogênea. Ela

desencadeia um ver diferente, um ver de muitas maneiras. A multiplici-

dade, nessas obras, vem do fato de Vergara transformar cada viagem,

cada paisagem, cada topografia, todo detalhe de um mundo carregado

de afecções, em uma nova materialidade artística. Seja na fotografia,

nas monotipias ou nas telas, o mundo percebido é apropriado, trans-

portado, retrabalhado e reinventado. Sua pintura parece estar sempre

mudando, mas só assim ela se torna disponível ao que é próprio de

cada situação. Uma questão importante no artista viajante é essa dis-

ponibilidade para o outro, o cuidado com as diferenças. Vergara não

quer falar pelo outro, quer possibilitar outros modos de falar a partir

de situações e contextos de fala específicos. O artista como etnógrafo,

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conforme salientado por Hal Foster (2005), só interessa na

medida em que possa “reocupar espaços culturais perdi-

dos e propor memórias históricas alternativas”.

O que tinha sido visto no local por onde passou o artista é

revisto, como se fosse a primeira vez, na superfície da tela,

nas palpitações das fotografias em 3D e nas imagens do

vídeo Sudário. É fundamental não se confundir os motivos

de viagem com algum fator ilustrativo da obra. O pretexto

não determina o texto, nem o visto o visível. Na verdade,

pela obra se refaz a viagem. Não se trata de reproduzir o que

estava lá, mas de se fazer do deslumbramento um aconteci-

mento pictórico. A viagem, no fundo, é uma metáfora para

o fazer poético — ir em busca de diferentes modos de ver e

de ser no mundo.

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Missões
Aldeamentos indígenas gerenciados
por padres jesuítas no Novo Mundo, as
missões representavam parte do sonho
jesuíta de civilização e evangelização
desses povos. Espalhadas por toda a
América colonial, as missões consti-
tuem uma das mais notáveis utopias
da história.

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Ver o outro: a experiência de São Miguel

A experiência de São Miguel é um momento decisivo daquele “ir em busca” na obra

de Vergara. Vários tempos e espaços se encontram e se multiplicam aí. Da história

pessoal à cultural, passando pela revisitação de modos de vida soterrados e esque-

cidos e chegando à própria potência da arte em abrir perspectivas de compreensão

que não se encaixam no saber científico e objetivo.

Filho de um reverendo da Igreja Anglicana, Vergara conviveu desde cedo com a abertu-

ra espiritual inerente à condição humana. O artista é também gaúcho, oriundo de um

território de fronteira, lidando desde cedo com o entrechoque de identidades e diferen-

ças. As reduções jesuíticas entre Paraguai, Argentina e Brasil foram um experimento

civilizatório ímpar, muito além do movimento de aculturação e cristianização dos

índios. Criou-se ali, no extremo sul da América, uma possibilidade singular de vida

em comum, nas quais as diferenças eram assumidas, cultivadas e reinventadas, não

obstante os conflitos intrínsecos ao processo. Olhar retrospectivamente para o que acon-

teceu nas missões requer cuidado justamente por conta da impossível imparcialidade

no tratamento do assunto. No século 18, as diferenças culturais eram tratadas de modo

opressivo e violento. O outro inexistia no imaginário ocidental. Todavia, não podemos

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esquecer o quanto as missões pretenderam ser um experimento

único, cuja lógica não era apenas cristianizar os índios, mas formar

uma comunidade nova e sem precedentes, na qual a cultura guarani

também seria considerada. Se hoje, por exemplo, ainda se fala gua-

rani no Paraguai, é resultado desse trabalho originado nas missões.

Como observou o próprio Vergara, os guaranis deslocaram-se,

mantendo-se no mesmo lugar, em brevíssimo espaço de tempo, do

Paleolítico ao Barroco. Incorporaram novas possibilidades técnicas e

simbólicas, sem com isso tornarem-se outra coisa que não guaranis.

A dificuldade relatada pelos próprios jesuítas em transmitir aos índios a

mensagem da salvação cristã vinha de uma compreensão de tempo toda

ela fundada no presente, no agora. Como incutir a ideia de pecado e sal-

vação quando não se tem a concepção linear de passado-presente-futuro?

Quando tudo é, ao mesmo tempo, presente? Há que se pensar essa diferença

junto com a condição impreterivelmente contemporânea da própria arte. Diante

de uma pintura, instalam-se simultaneamente o tempo do artista e da confecção

da obra, e os muitos tempos vindouros a serem constituídos pelo olhar do especta-

dor, fazendo da pintura uma experiência sempre contemporânea. O que se vê na tela

é uma confluência de tempos e olhares, impreterivelmente inacabados, que se querem

fazer atual para o olhar.

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Pintar a partir da experiência de São Miguel

requer aceitar um ponto de partida, e dar-lhe

um tratamento poético, de modo a impulsionar

o visto para além de si, com o verfazer da pintu-

ra. O que interessa é que não se passa impune

por determinados lugares e diante de certos acon-

tecimentos. São Miguel certamente é um deles. O

que de fato aconteceu ali? Como visões de mundo tão

diferentes — dos jesuítas e dos índios — se puseram

em comunhão junto à experiência cristã do sagrado? Que

utopia foi aquela, uma espécie originária de Canudos às

margens do rio Uruguai? Até a formulação dessas pergun-

tas é difícil nos dias de hoje. O que resta, indiscutivelmente,

é uma ruína de igreja ainda esplendorosa, sinalizando para

algo misterioso com força de encantamento perante o artista

admirado.

Assim sendo, não cabe temer a experiência e tomá-la como

motor ou inspiração para uma série de trabalhos. As pinturas

não servem para ilustrar nada. Não se representa São Miguel por

elas. Não há ilustração possível ali. Os vestígios extraídos do chão,

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da pedra e das imagens produzem um deslocamento, as-

sumindo aí o que há de perda e acréscimo, reescrevendo

o que foi, sempre inacabado, à luz do que pode vir a ser,

sempre por fazer. O que sobra daquela experiência do sa-

grado, a utopia de São Miguel, só pode ser visto hoje como

uma espécie de sobra, de suplemento (invisível) dessas pin-

turas. Ou seja, o que existe é a obra de Vergara, com sua

materialidade densa, sua coloração agitada, seus espaços aper-

tados, sua textura pulsante. Aí de dentro vislumbra-se, como o

que não tem nome, o encontro selvagem e amoroso de índios

sul-americanos e missionários jesuítas. Isso não se mostra nas

pinturas, eventualmente se revela no susto de um olhar disponível.

A arte, especialmente a pintura,


só pode falar do que ela não é —
esse encontro único de culturas
e experiências humanas, falando
de si, das qualidades pictóricas.

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O que se fala por meio dela não é a fala do outro, como algo

fixo e dado, mas a possibilidade de outras falas, outras maneiras

de ver que, nesse caso da série de São Miguel de Vergara, são

o alarido poderoso e silenciado que surgiu daquela experimen-

tação civilizatória peculiar. Mas será que todo olhar está sempre

disponível para perceber o que não se mostra, o para além da pin-

tura? A disponibilidade tem a ver com a capacidade de admiração.

Vivemos em um mundo que despreza a admiração. Para Descartes,

a admiração era uma das mais nobres paixões da alma. Imagino a

tristeza desse grande pensador se soubesse no que se transformou sua

busca por certezas indubitáveis. Paradoxalmente, o conhecimento claro

e distinto, corolário da certeza, tornou-se cego. Contra isso, e em nome

de um pensamento que se dá no mundo e pelo mundo, Merleau-Ponty

(1987) transformava a dúvida em fé perceptiva. “Reduzir a percepção ao

pensamento de perceber, sob o pretexto de que só a imanência é segura,

implica assinar um seguro contra a dúvida, cujos prêmios são mais onerosos

do que a perda que deve ser indenizada, pois implica renunciar ao mundo efe-

tivo e passar a um tipo de certeza que nunca nos dará o ‘há’ do mundo.” Essa

noção de fé perceptiva vem a calhar nesse contexto, pois o que se quer mostrar

não é da ordem da demonstração, mas da constatação. Há um mundo e manei-

ras de vê-lo cuja apreensão requer sempre criação. O mundo é o que se vê, junto

e para além do que se mostra, um conascimento entre quem vê e o que é visto.

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Tornamo-nos mais eficazes na nossa capacidade

produtiva/cognitiva, mas muito menos disponíveis

à entrega/potência amorosa. O Sagrado Coração de

que fala Vergara seria uma força que nos põe em

direção ao outro sem subtração do si mesmo. A pin-

tura só pode falar do que não é ela, falando de si,

das qualidades pictóricas. Mas será que todo olhar

está sempre disponível para perceber o que não se

mostra, o para além da pintura? A disponibilidade

tem a ver com a capacidade de admiração. Uma per-

gunta meio abrupta: será que a “desadmiração”, típi-

ca de nossa atual pedagogia da suspeita, aponta para

a “despolitização” crescente em que vivemos? Uma

tese romântica: a política liberal é pautada pela descon-

fiança, a política libertária pela capacidade de admirar.

Explico-me: sem ver o outro não se concebe um mundo

em comum. A pintura é extemporânea talvez por ter

essa tonalidade afetiva, e esse tempo da admiração. Ela

é política por resistir à velocidade e nos impor um pre-

sente absoluto, um tempo estendido. Há que se deixar

o tempo recuar para que possamos aderir à fugacidade

do aparecer. A pintura de Vergara é intensa e múltipla.

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Como poderia a arte revelar um

acontecimento singular? Como par-

tir desse encontro admirado com as

ruínas de um mundo perdido e recriar

uma tonalidade afetiva onde se desarme a

desconfiança fechada diante daquilo que não

sabemos o que é? É essa experiência do sem

nome, do que não sabemos como classificar,

como identificar, que se abre no encontro com o

assombroso de algumas obras de arte. Pode a arte

ir ao encontro de algo que aconteceu no passado e

propiciar o novo? Como “falar de” sem ser ilustrativo?

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As cores de Vergara saem da natureza, da terra, dos pigmen-

tos minerais, mas se dispõem a uma sensualidade que não

teme o incêndio da fantasia pictórica. Sem o recurso de uma

visualidade extrovertida, o relato se tornaria de mão-única, sub-

traindo a imaginação do ato de ver, confundindo-se criação com

reprodução. Reconduzir-nos para esse momento absolutamente

original de encontro e conversão requer a multiplicação dos afetos

e das potências visuais — daí Vergara lançar mão de vários meios

simultaneamente, combinando a pintura, a fotografia, o filme, as mo-

notipias, entrelaçando modos de sentir variados. Há na operação poé-

tica de Vergara uma necessidade de buscar os meios adequados para

revelar algo não sabido, mas sentido. Deixar surgir uma multiplicidade

de vozes e afetos e encontrar uma intensidade poética própria para cada

situação. Nas cores, nas muitas cores que vemos nessas telas, em sua

opacidade mineral que nos abre para uma profundidade, quase delirante,

que absorve o silêncio de uma utopia de conversão. O que de fato aconte-

ceu naquele experimento civilizatório, naquele encontro de homens, culturas

e deuses, é uma questão em aberto. Sua irradiação, todavia, mantém-se em po-

tência, aderindo aos lenços de Vergara, seus sudários iluminados pelo chão que

um dia serviu de palco para a ousadia do encontro e da invenção. Que cada um

de nós possa exercitar essa potencialidade vendo o outro que se insinua, sempre

se velando, na superfície dessas obras em exposição itinerante de longa duração.

Referências
FOSTER, H. O artista como etnógrafo. Arte e Ensaio. Rio de Janeiro, p. 146, 2005.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 45

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Carlos Vergara começou sua trajetória como artista em meados
da década de 1960. Desde então, sua obra é combativa e surpreendente.

Faz uso dos mais diversos suportes: pintura, fotografia, vídeo, colagem e

monotipias. Ele realizou ao longo dos anos algumas viagens a trabalho.

O viajante está sempre tocado pelo olhar virgem e desimpedido. Como o

artista observa na entrevista a seguir, o momento das viagens é aquele de

olhar para fora, que será seguido por um olhar mais introspectivo, para den-

tro da própria obra, no desdobramento necessário do ateliê.

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Entrevista
A exposição Carlos Vergara — viajante: experiências de São Miguel das Missões revela o interesse

do artista por aquelas experiências, ao mesmo tempo espirituais e utópicas, que ocorreram no

sul do Brasil no século 18. Interessa a Carlos Vergara o encontro cultural, a abertura do sagrado

e o esforço de fazer conviver, mesmo que muitas vezes de modo opressivo, mundos e modos de

vida diferentes. Para entender melhor como foi esse processo, confira a entrevista exclusiva com

o artista, realizada pelo crítico de arte Luiz Camillo Osório.

Luiz Camillo Osório: Vergara, uma vez que essa entrevista acompanha a exposição oriunda das suas

viagens à Missão Jesuítica de São Miguel, creio que seria pertinente você falar um pouco da

sua relação com a questão religiosa. Trata-se de uma exposição de arte, ou seja, os trabalhos valem

por si, têm força poética, encantam ao olhar independentemente do conteúdo. Todavia, esse é o

segundo ponto a que quero me referir, não é por acaso que você foi até São Miguel, uma comunida-

de espiritual e utópica que se construiu no sul das Américas. Trocando em miúdos: esse conteúdo

— histórico e espiritual — é determinante para a força estética do trabalho, pois há um diálogo seu

que potencializa esse deslocamento do conteúdo para a forma. Faz sentido isso?

Carlos Vergara: Das questões que me assaltam, uma tem sido mais frequente: como viver junto?

O indício de um paradigma que tente responder essa questão me atrai. Isso me moveu na direção

das missões jesuíticas do sul, como me moveu na direção do Bloco Cacique de Ramos. Alterno

olhar para dentro e olhar para fora. Quando “estou” artista viajante, estou olhando para fora, e

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o que vejo pode ser pretexto para o trabalho. Quando estou recolhido no ateliê, esse olhar para

dentro pode fazer com que o procedimento para criar o trabalho, e inventar soluções para a sua

visualização, seja seu próprio pretexto. Daí a escolha de diversas mídias em busca da que melhor

revele o que me interessa, e que pode interessar aos outros. Também me chama à atenção a rela-

ção do homem com o sagrado, com o sublime, e fico procurando desvendar a visualidade disso,

ver e pensar sobre o invisível do visível.

Luiz Camillo Osório: Um elemento que é sempre bom explicar é sua operação poética, suas op-

ções relativas aos meios de expressão. Você é pintor, fotógrafo, artista gráfico etc. Cada lingua-

gem tem o seu lugar e a sua ocasião. Fale um pouco desse processo e das decisões presentes em

cada trabalho ou série. Comente também as monotipias, o seu interesse em trazer vestígios

de um lugar, uma memória física que é retrabalhada (ou não) simbolicamente no ateliê. As

suas séries são potencialmente inacabadas. A força delas vem desse inacabamento constituti-

vo. Fale sobre esse inacabamento, essa renovação constante das suas séries.

Carlos Vergara: A repetição me aflige e muito, o estilo... Só vai ser novo para o outro o que for novo

para mim. Isso não impede que eu retorne de tempos em tempos a pretextos antes utilizados,

uma vez que, de repente, você percebe que existem aspectos que não foram nem vistos, nem

revelados na potência possível. Por isso as “séries” serão sempre inacabadas. O próprio inacaba-

mento do trabalho puxa o espectador, creio, para uma fruição participativa no esforço que ele faz

quando vê pensando ou pensa vendo...

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Luiz Camillo Osório: Outro aspecto interessante é sua abertura para projetos colaborativos, desde

a exposição no MAM-Rio em 1972, em que você abriu o seu espaço para mostrar os trabalhos

dos seus colegas e realizar uma mostra coletiva. Essa prática colaborativa se desdobra em vários

outros momentos — na criação das fantasias e dos adereços do bloco para serem usados, na

parceria com o Hélio Oiticica, com os operários dos fornos em Minas Gerais, com músicos,

cineastas, fotógrafos, até os próprios índios guaranis. Como você vê isso? De que maneira um

artista contemporâneo como você lida com essa dimensão do sagrado que está presente em São

Miguel e na Capadócia, o que é possível apreender daí?

Carlos Vergara: “Nenhum homem é uma ilha” e tenho prazer no coletivo. Desde o meu tempo

como atleta, as encrencas e os prazeres da interdependência me agradam. O trabalho bom dos

outros me anima a fazer o meu. A diferença é que no esporte a competição é parte do jogo e quem

ganha, ganha, e quem perde, perde. Comemore o vencedor, pois existem métodos e pontuação

para dizer quem é o vencedor. Em arte não. A subjetividade torna a competição só um trunfo do

mercado, e quem perde é a cultura. Por isso eu gosto do que vem escrito no abre-alas da Escola

de Samba Salgueiro: “Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro pede passa-

gem; uma escola nem melhor nem pior, apenas diferente...” No Carnaval de 1973 ou 1974, eu estava

fotografando na avenida, e ia entrar a Mangueira, quando morreu uma senhora da ala das baianas e

a escola entrou na avenida em silêncio, desfilou andando, os componentes tirando os chapéus

e adereços de cabeça, só ao som do surdo base marcando o passo. Tive ali uma sensação do

sublime tão grande, quanto tive em São Miguel das Missões e nas cavernas da Capadócia. Talvez,

por essa dimensão do sagrado que está no homem, não se deva desistir de procurar.

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OBRAS EM EXPOSIÇÃO

Obras em exposição

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Acrílicos lenticulares (3D)

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S.M. 5, 2008
Montagem de fotos com acrílico lenticular (3D)
100 x 100 cm

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S.M. 6, 2008
Montagem de fotos com acrílico lenticular (3D)
100 x 100 m

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S.M. 7, 2008
Montagem de fotos com acrílico lenticular (3D)
100 x 100 cm

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S.M. 8, 2008
Montagem de fotos com acrílico lenticular (3D)
100 x 100 cm

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S.M. 9, 2008
Montagem de fotos com acrílico lenticular (3D)
100 x 100 cm

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S.M.10, 2008
Montagem de fotos com acrílico lenticular (3D)
100 x 100 cm

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Lenços

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Sem título, 2008 (Coroa do Sagrado Coração)
Monotipia em tecido
40 x 40 cm

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Sem título, 2008
Monotipia em tecido
40 x 40 cm

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Sem título, 2008
Monotipia em tecido
40 x 40 cm

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Sem título, 2008
Monotipia em tecido
40 x 40 cm

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Sem título, 2008
Monotipia em tecido
40 x 40 cm

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Pinturas

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Sem título, 2011
Monotipia e pintura em lona crua
130 x 80 cm

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Sem título, 2011
Monotipia e pintura em lona crua
120 x 150 cm

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Este catálogo foi composto na tipologia Scala e
Scala Sans. Impresso em papel couché mate 180
g/m2 (miolo) e supremo 240 g/m2 (capa).

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