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A VOZ DE ALMODÓVAR

JANETE EL HAOULI

“- ó doçuras!- é a voz feminina


que chega ao fundo dos vulcões
e grutas árticas.”

Arthur Rimbaud

O cinema de Pedro Almodóvar é um cinema que fala do corpo.


Sobretudo da intensidade sexual em sístole e diástole sob o jogo voyeur da
vigilância e da punição. Poderiam os dizer que a paixão subverte a razão a
todo momento, pois Almodóvar é um regicida e instaura o governo da infâmia,
dos delírios de luxúria, que desfilam barrocamente perante nossos olhos como
numa folia carnavalesca e canibal. Não é por acaso que seu cinema às vezes
tem problemas com a censura.
A voz de Almodóvar é obscena. Ela também está falando do corpo, porque não
existe voz humana neutra que possa apagar os vestígios de nossa carne.
Como diz Roland Barthes,

não há voz neutra - e se por vezes esse


neutro, esse branco da voz acontece, é para
nós um grande terror, como se descobríssemos
com horror um mundo petrificado,
onde o desejo estaria morto (BARTHES,1984).

A voz fala do corpo, porque ela é a fonte: oris em latim é tanto "boca"
quanto "origem", e nossos sentimentos escapam em palavras e gemidos
aquecidos por nosso hálito. Portanto, a voz se sexualiza, é definitivamente
erótica, é música nascente, nossa primeira lira. A voz pode se tornar o
elemento que envolve ator/espectador numa relação intersubjetiva, num
diálogo de prazer entre emissão e escuta. Não somente no sentido textual e
roteirístico, mas também de forma a preencher os espaços aquém e além da
palavra, os espaços que sensibilizam nossos instintos.
Os usos e os modos da voz no cinema de Pedro Almodóvar podem
tornar-se importantes neste contexto. Sua voz obscena transborda ou se abafa,
conforme a libera-ção ou o represamento da libido. Ora a emoção explode
numa voz indomável, ora a voz se estrangula como. se tudo fosse proibido ou
paradoxal. Almodóvar está entre o canto de Ariadne e o mugido do Minotauro -
ambos seduzem Teseu, este matador disposto a aliviar a potência furiosa do

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animal de Dioniso. A voz na plaza cinematográfica de Almod6var pode ser
melhor compreendida se analisarmos algumas cenas de Entre Tinieblas
(1983), La Ley dei Deseo (1986) e Ata-me! (1989).

ENTRE TINIEBLAS

Yolanda (Cristina S. Pascual), uma cantora de bolero viu seu amante


morrer de overdose de heroína. Depois de vadiar por alguns bares acaba
entrando para a Comunidade das Redentoras Humilhadas, um convento.
Rapidamente a Madre Superiora (Julieta Serrano) se apaixona pela cantora de
bolero, a quem a Madre já apreciava, e começa a lhe fornecer drogas. As duas
passam a consumi-Ias juntas. Mas Yolanda não corresponde ao amor da
Madre e pretende renegar seu passado e mudar de vida. O convento fecha
suas portas e a Madre perde seu amor, ao passo que Yolanda vai viver com a
Marquesa (Mari Carrilho).
Em Entre Tinieblas assistimos a uma cena bastante ilustrativa. Nossos
ouvidos são atingidos pelo grito lancinante da Madre Superiora. Quando vê que
Yolanda partiu e a abandonou. Esse grito dá aos ouvintes uma idéia da
propor-ção do impacto emocional sofrido pela personagem. Somos engolidos
por um grito que faz proliferar uma série invisível de espaços de reclusão: do
objeto de amor que se aprisiona, da prisão das drogas, da prisão da solidão, do
encarceramento das celas de um convento. Yolanda procura um movimento de
liberdade, de cancelamento ou transposição dos muros que a restringem. A
ausência - o, silêncio do ser-amado-que-canta - é totalmente preenchida pela
imaterialidade da voz que grita. O grito dessa Madre quase Sereia parece
querer atrair a carne para si a fim de devoraria, mas a cantora é outra. '
É preciso que nos detenhamos neste grito. Segundo Michel Chion, o
problema do grito está em sua posição, no ponto no qual se insere em face de
uma rede intrincada de ações e emoções:

O ponto do grito é um ponto impensável no íntimo


do pensamento, indizível no íntimo do discurso,
não visualizável no íntimo da representação. Ocupa um
ponto do tempo, mas não há duração em seu íntimo. Por quanto
tempo possa durar, suspende o.tempo (CHION, 1991).

O grito da Madre Superiora é bem esta explosão irracional, este


fragmento incontrolável de emoção que viaja por todo o espectro de sensações
e desejos que o personagem viveu. Podemos imaginar que ele ocorre como
uma descarga natural, derivada de uma "memória sumária" - esses "filmes"
naturais que nos assaltam quando sofremos um súbito acidente, um risco de
vida. É como se a mente nos desse um alerta, uma série de pequenas doses
de emoções para, aos poucos, suportarmos a dor suprema. Pela boca da
Madre Superiora a voz escoa como uma "excreção" de sentimentos velozes
numa escalada invisível. Almodóvar habilmente prolonga este grito, que é
capaz de reiterar a emoção e congelar o tempo.
Michel Chion nos diz que o grito no cinema é principal¬mente feminino e
que suas possibilidades expressivas são inúmeras. É sempre um grito de
mulher, quem sabe porque haja um sabor sádico ou porque o gozo feminino

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seja interdito ao homem. O grito .do homem é um grito de poder, um grito de
Tarzan demarcando seu território fálico. Nas palavras de Chion:

O grito de homem delimita um território, o da mulher


remete a um espaço ilimitado,engole qualquer coisa
em si; é centrípeto e fascinatório, ao passo que o do
homem é centrífugo e definido (CHION, 1991).

Esse grito de mulher naturalmente é o da mãe, aquela que alimenta.


Tem tanto de vida em sua alegria quanto de morte em seu desespero. A boca
da mulher é a treva da noite e o que sai dela pode ter um conteúdo
desconhecido. É da boca da Sibila que saem os oráculos Com duplo sentido e
interpretação duvidosa. Uma Madre (mãe) que não pode ter filhos, muito
menos numa relação homossexual. Um amor que não vai produzir prole, uma
mãe infecunda. O que o grito traduz é a paixão da carne cruamente, o reverso
do orgasmo, a dor de uma impossibilidade dupla: a de não ser correspondido e
a da presença do ser amado. Uma série de contradições atua como num jogo
de espelhos para moldar a emoção deste grito o que o faz mais humanamente
intenso.
É importante notar que em Entre Tinieblas, Almodóvar habilmente
reforça a idéia de "sucção" produzida pelo grito da personagem. Na cena, o
movimento da câmera no mo-mento do grito é marcadamente centrípeto,
dialogando com as possibilidades simbólicas do grito e da voz feminina no
cinema. Aqui estamos diante de uma outra modalidade de grito: um grito
imoral, centrípeto, que toma corpo e se estende como se realmente fosse nos
sugar, um grito que inunda e engole tudo. Um grito que confronta com a
voz-que-canta, ainda que histrionicamente, boi eras... Entre o ridículo e o
dramático, entre o vulcão e o Ártico, nossos corpos espectadores são invadidos
e sodomizados pelo grito de Almodóvar.

LA LEY DEL DESEO

Há uma interessante cena em La Ley del Deseo em que a personagem


Ada (Manuela Velasco), uma menina de 10 anos, dubla a canção francesa Ne
me quitte pas, cantada pela brasileira Maisa Matarazzo. O uso da voz nesta fita
de Almodóvar parece discutir a sonorização sincronizada no cinema e seus
recursos expressivos. Na cena é notório o descompasso entre a voz que canta
e a pessoa que a emite. Uma voz de cantora sai' - por um artifício - da boca de
uma criança. A situação é fatalmente bizarra, porque o cineasta desvincula a
voz de seu personagem e, como diz Chion, explicita a natureza de "trucagem".
Há também a sensação de que se quer emprestar ao personagem um. corpo
que ele não tem, uma nova existência, que imediatamente é falsa. Não existe
fusão lógica possivel entre o corpo visto e a voz ouvida, há algo de irracional no
ar em meio a uma cena de tensão.
Neste filme Almodóvar subverte propositadamente a ilusão da "perfeita
unidade" sexual entre voz e corpo através da dublagem. Segundo Kaja
Silverman, em seu livro The Acoustic Mirror (1988), a dublagem tradicional

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exercia um papel de "supervisar" das diferenças sexuais: uma voz feminina
deve provir de um corpo feminino; uma voz masculina deve provir de um corpo
masculino. Se Almodóvar não baralha os sexos de Ada e Maisa Matarazzo,
com certeza, há muita ironia em fazer sair uma voz feminina adulta de um
corpo mais jovem - que o senso comum imagina ainda não-maturado
sexualmente, quiçá "virginal". Com o uso desta trucagem que desloca a voz de
seu sujeito emissor, uma série de questões aparece. A conotação é a de
perversidade, de uma pedofilia kitsch. Ouvimos e vemos um desejo que emana
de uma menina que diz Ne me quitte pas vestida para a Primeira Comunhão. O
que é adulto e o que é infantil? Pois, sentados na sala escura,
inconscientemente ansiamos que uma voz corresponda realmente a um corpo,
que o cinema nos dê a ilusão de que tudo está em ordem - massageando
nosso ideal de "realismo". É com isto justamente que Almodóvar joga. Não
podemos esquecer que esta dublagem dialoga com as ações da "mie" de Ada.
Ela, a adulta, está possessa e histérica - sua voz poderia ser a de Maisa
Matarazzo -, mas a menina é que "canta" aludindo a uma condição adulta de
todo impossível. Dentro de um drama bastante real e concreto, Almodóvar faz
com que a canção .seja entoada por uma espécie de "Castrati" moral. Uma
mutilação sádica em favor do belo: da voz que parte à procura de sua fonte, de
sua "mãe".

ATA-ME!

Ricki (Antonio Banderas) deixa o hospital psiquiátrico e decide constituir


uma família. Elege para sua mulher a ex-atriz pornô Marina (Victoria Abril), que
luta para abandonar as drogas. Nesta fita de Almodóvar a voz ocupa uma
posição bastante interessante. Se pensarmos na violência de Ricki ao raptar
Marina, imaginamos que ela poderia gritar e fazer de sua voz um instrumento
de protesto. Nada disso ocorre, Ricki coloca sua mão na boca de Marina como
que impedindo sua reação instintiva.
Estamos diante de um grito implícito de Marina ao mesmo tempo em que
escutamos a voz abafada de Ricki. Durante a trama a mulher é incapaz de - ou
não quer - reagir, o homem que age se encontra atado pelas emoções. De fato
ela acabará se apaixonando pelo amante agressor. Se a voz, uma vez
libertada, é o veículo de uma emoção que se dilata, transborda e ganha a vida;
ao se tomar interdita, ela revela os traços de um represamento do desejo, de
uma aparente "falta de ar" - situação que encontramos comumente nas vozes
padronizadas que enunciam o discurso "sério", moral e legal em nossas
sociedades. Qualquer coloração de desejo numa determinada voz é tomada
como algo perigoso e subversivo. A voz - como não poderia deixar de ser. - se
transforma em mercadoria, num tráfico de desejos.
O personagem transmite em sua voz as idéias de clausura e de ternura
que são, desde logo, contraditórias. O absurdo da situação diz muito a respeito
de nossa fatal incomunicabilidade contemporânea: um crime de “cárcere
privado” aparece como única justificativa para que alguém ganhe tempo e
possa convencer o outro. Ricki se utiliza desse recurso extremo para retardar.a
velocidade vertigino-sa a que estamos sujeitos nestes dias midiatizados.
Marina não grita ou porque teme por sua vida ou porque sente um prazer em
ser amarrada e receber a atenção de um. virtual agressor. Há uma

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cumplicidade entre a vítima-que-não-grita e o agressor-com-voz-embargada.
Quem se ata neste jogo de vozes e corpos?
A voz do homem em Ata-me! dobra-se sobre si mesma; o grito da
mulher também não ocorre de forma a nos remeter ao irracional ou ao terror.
No final do filme, as vozes antes tolhidas passam a cantarolar liberadas e
fluidas uma música, uma espécie de jingle. O nome da música é "Resistir"
(Montoro/Diego), o que dá pistas da "resistência" dos amantes e, mais
abrangentemente, das interdições a que as vozes se submetem moral,afetiva e
socialmente. A válvula descompressora, claro, é o sexo. E o sexo e os
hormônios têm tudo a ver com a voz.
Estes usos e modos da voz demonstram a minúcia contextualizante, o
interesse por um aumento sutil de significações e a dissolução das antinomias -
marcas da direção de Almodóvar. .
Sua voz obscena não poderia investigar a "voz da mãe" sem lhe
acrescentar o exagero e a subversão de valores. Ele mostra esta voz maternal
acolhedora e nutriz, nas situações mais contraditórias: De uma mulher que grita
num relacionamento que não implica a maternidade; de uma voz maternal que
liga/desliga com uma criança com "voz adulta"; e de um estranho casal em que
a mulher não grita e a voz do homem está atada, deslocada de sua função
épica e fundadora.
Não há dúvida de que a voz de Almodóvar faz proliferar uma série do
aprisionamento, como a da Madre Superiora ou a de Ricki, que reforça a
caracterização das personagens e exacerba suas ações. Como coloca a já
mencionada ensaísta Kaja SILVERMAN (1988), as imagens da posição
materna explicitam a idéia de cela uterina, rede umbilical e teia de aranha,
colocando a criança numa situação de impotência. Aqui- reconhecemos Ada,
'mais ainda, se' pen-sarmos na profunda dependência que a criança tem da
voz materna, a criança seria um prisioneiro, mas em Almodóvar a voz de sereia
da criança aprisiona. Ele inverte esta condição ideológica, desvirtua os padrões
da família modelar procriadora.
Na realidade a voz da mãe é uma espécie de voz over.
e off, que deveria introduzir a diferença e nos abrir para o conhecimento do
outro. Em Almodóvar parece haver a crença de que a diferença - em nosso
tempo - só pode ser conquistada a partir de um baralhamento, de uma jocosa
confusão. Nas mãos do diretor a voz "psicanalítica" da mulher e do homem
passam por uma torção movida pelo excesso, pela esquizofrenia geral. As
vozes não estão onde originariamente as encontramos, seu sentido foi
invertido. Poderíamos dizer que se tratam de vozes picarescas, de seres
burlescos, que pervertem a ordem e os costumes para que nos seja permitido ir
além da escuta comum.
Uma das grandes conquistas do cinema é a sonorização sincronizada.
Em vários filmes, Almod6var não só eviden-cia o emprego aleg6rico do som
enquanto música, mas também propõe un1a rediscussão da tradição do uso da
voz no cinema. É muito coerente que a sua direção encare a voz sob o ponto
de vista da carne.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

5
BARTHES. Roland. 1984. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70.
CHION. Michel. 1991. La voce nel cinema. Parma: Pratiche Editrice;.
SILVERMAN, Kaja. 1988. The acoustic mirror. The female voice in
Psychoanalysis and cinema. Bloomington' and Indianapolis: Indiana University
Press.

Texto publicado no livro: URDIDURA DE SIGILOS_ Ensaios sobre


o cinema de Almodóvar. Eduardo Peñuela Cañizal (org.) – São Paulo:
ANNABLUME: ECA-USP, 1996. P. 85-93

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