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A Voz de Almodóvar
A Voz de Almodóvar
JANETE EL HAOULI
Arthur Rimbaud
A voz fala do corpo, porque ela é a fonte: oris em latim é tanto "boca"
quanto "origem", e nossos sentimentos escapam em palavras e gemidos
aquecidos por nosso hálito. Portanto, a voz se sexualiza, é definitivamente
erótica, é música nascente, nossa primeira lira. A voz pode se tornar o
elemento que envolve ator/espectador numa relação intersubjetiva, num
diálogo de prazer entre emissão e escuta. Não somente no sentido textual e
roteirístico, mas também de forma a preencher os espaços aquém e além da
palavra, os espaços que sensibilizam nossos instintos.
Os usos e os modos da voz no cinema de Pedro Almodóvar podem
tornar-se importantes neste contexto. Sua voz obscena transborda ou se abafa,
conforme a libera-ção ou o represamento da libido. Ora a emoção explode
numa voz indomável, ora a voz se estrangula como. se tudo fosse proibido ou
paradoxal. Almodóvar está entre o canto de Ariadne e o mugido do Minotauro -
ambos seduzem Teseu, este matador disposto a aliviar a potência furiosa do
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animal de Dioniso. A voz na plaza cinematográfica de Almod6var pode ser
melhor compreendida se analisarmos algumas cenas de Entre Tinieblas
(1983), La Ley dei Deseo (1986) e Ata-me! (1989).
ENTRE TINIEBLAS
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seja interdito ao homem. O grito .do homem é um grito de poder, um grito de
Tarzan demarcando seu território fálico. Nas palavras de Chion:
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exercia um papel de "supervisar" das diferenças sexuais: uma voz feminina
deve provir de um corpo feminino; uma voz masculina deve provir de um corpo
masculino. Se Almodóvar não baralha os sexos de Ada e Maisa Matarazzo,
com certeza, há muita ironia em fazer sair uma voz feminina adulta de um
corpo mais jovem - que o senso comum imagina ainda não-maturado
sexualmente, quiçá "virginal". Com o uso desta trucagem que desloca a voz de
seu sujeito emissor, uma série de questões aparece. A conotação é a de
perversidade, de uma pedofilia kitsch. Ouvimos e vemos um desejo que emana
de uma menina que diz Ne me quitte pas vestida para a Primeira Comunhão. O
que é adulto e o que é infantil? Pois, sentados na sala escura,
inconscientemente ansiamos que uma voz corresponda realmente a um corpo,
que o cinema nos dê a ilusão de que tudo está em ordem - massageando
nosso ideal de "realismo". É com isto justamente que Almodóvar joga. Não
podemos esquecer que esta dublagem dialoga com as ações da "mie" de Ada.
Ela, a adulta, está possessa e histérica - sua voz poderia ser a de Maisa
Matarazzo -, mas a menina é que "canta" aludindo a uma condição adulta de
todo impossível. Dentro de um drama bastante real e concreto, Almodóvar faz
com que a canção .seja entoada por uma espécie de "Castrati" moral. Uma
mutilação sádica em favor do belo: da voz que parte à procura de sua fonte, de
sua "mãe".
ATA-ME!
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cumplicidade entre a vítima-que-não-grita e o agressor-com-voz-embargada.
Quem se ata neste jogo de vozes e corpos?
A voz do homem em Ata-me! dobra-se sobre si mesma; o grito da
mulher também não ocorre de forma a nos remeter ao irracional ou ao terror.
No final do filme, as vozes antes tolhidas passam a cantarolar liberadas e
fluidas uma música, uma espécie de jingle. O nome da música é "Resistir"
(Montoro/Diego), o que dá pistas da "resistência" dos amantes e, mais
abrangentemente, das interdições a que as vozes se submetem moral,afetiva e
socialmente. A válvula descompressora, claro, é o sexo. E o sexo e os
hormônios têm tudo a ver com a voz.
Estes usos e modos da voz demonstram a minúcia contextualizante, o
interesse por um aumento sutil de significações e a dissolução das antinomias -
marcas da direção de Almodóvar. .
Sua voz obscena não poderia investigar a "voz da mãe" sem lhe
acrescentar o exagero e a subversão de valores. Ele mostra esta voz maternal
acolhedora e nutriz, nas situações mais contraditórias: De uma mulher que grita
num relacionamento que não implica a maternidade; de uma voz maternal que
liga/desliga com uma criança com "voz adulta"; e de um estranho casal em que
a mulher não grita e a voz do homem está atada, deslocada de sua função
épica e fundadora.
Não há dúvida de que a voz de Almodóvar faz proliferar uma série do
aprisionamento, como a da Madre Superiora ou a de Ricki, que reforça a
caracterização das personagens e exacerba suas ações. Como coloca a já
mencionada ensaísta Kaja SILVERMAN (1988), as imagens da posição
materna explicitam a idéia de cela uterina, rede umbilical e teia de aranha,
colocando a criança numa situação de impotência. Aqui- reconhecemos Ada,
'mais ainda, se' pen-sarmos na profunda dependência que a criança tem da
voz materna, a criança seria um prisioneiro, mas em Almodóvar a voz de sereia
da criança aprisiona. Ele inverte esta condição ideológica, desvirtua os padrões
da família modelar procriadora.
Na realidade a voz da mãe é uma espécie de voz over.
e off, que deveria introduzir a diferença e nos abrir para o conhecimento do
outro. Em Almodóvar parece haver a crença de que a diferença - em nosso
tempo - só pode ser conquistada a partir de um baralhamento, de uma jocosa
confusão. Nas mãos do diretor a voz "psicanalítica" da mulher e do homem
passam por uma torção movida pelo excesso, pela esquizofrenia geral. As
vozes não estão onde originariamente as encontramos, seu sentido foi
invertido. Poderíamos dizer que se tratam de vozes picarescas, de seres
burlescos, que pervertem a ordem e os costumes para que nos seja permitido ir
além da escuta comum.
Uma das grandes conquistas do cinema é a sonorização sincronizada.
Em vários filmes, Almod6var não só eviden-cia o emprego aleg6rico do som
enquanto música, mas também propõe un1a rediscussão da tradição do uso da
voz no cinema. É muito coerente que a sua direção encare a voz sob o ponto
de vista da carne.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARTHES. Roland. 1984. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70.
CHION. Michel. 1991. La voce nel cinema. Parma: Pratiche Editrice;.
SILVERMAN, Kaja. 1988. The acoustic mirror. The female voice in
Psychoanalysis and cinema. Bloomington' and Indianapolis: Indiana University
Press.