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Eduardo Seincman

Villa-Lobos: um
antimodernista
na Semana
de 22

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dossiê Semana de Arte Moderna

RESUMO

A “modernista” Semana de 22 contemplou musicalmente um único com-


positor brasileiro – Villa-Lobos – mas não propiciou acesso a suas obras
antimodernistas. Se atentarmos ao fato de que os nacionalismos são ineren-
tes aos modernismos iniciais do século XX, compreenderemos o profundo
alcance e o papel dos antimodernistas que, ao pactuarem com o passado,
puderam refletir criticamente o presente. Na realidade, modernistas e anti-
modernistas estiveram no mesmo palco dos contundentes acontecimentos
mundiais do início do século: atribuir-lhes denominações historicamente
datadas, como “passadistas” e “vanguardistas”, pouco acrescenta a suas
obras. É preciso, pois, repensar a música em sua dimensão estética a fim
de perceber que dentre as personas de Villa-Lobos a antimodernista soa
como estranha novidade.

Palavras-chave: Semana de Arte Moderna, modernismo, antimodernismo,


nacionalismo, identidade, folclore, Villa-Lobos, Bachianas.

ABSTRACT

As regards music, the “modernist” Art Week of 1922 had eyes for only one
Brazilian composer, Villa-Lobos. However, it did not provide access to his
anti-modernist works. If we take into account the fact that nationalisms were
inherent in the early modernisms of the 20th century, we can grasp the extent
of the outreach and the role of the anti-modernists, who were able to reflect
critically on the present as they made a pact with the past. In reality, both mo-
dernists and anti-modernists shared the same stage where the striking events
in early 20th century took place. Branding them with out-of-date titles such
as “past dwellers” and “vanguardists” adds little to their works. We need, then,
to rethink music in its aesthetic dimension so as to see that among Villa Lobos
personas the anti-modernist one sounds as a strange novelty.

Keywords: Modern Art Week, modernism, anti-modernism, nationalism,


identity, folklore, Villa-Lobos, Bachianas.

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Q
PRELÚDIO abordado a partir de grandes correntes ar-
Moderato tísticas e estilísticas, vê-se, no século XX,
pulverizado em tendências múltiplas e não
ualquer recorte que se raras vezes caóticas e antagônicas. Sem dú-
faça da história será vida, as guerras e a irracionalidade que as-
sempre parcial. Não solaram o novo século questionaram tanto os
poderia ser diferente antigos ideais iluministas quanto as visões
com relação à Semana mais idealistas:
de Arte Moderna de
1922. Bastaria, por exemplo, tentar verificar “Na passagem para o século XX […] o mundo
quando se iniciou propriamente o moder- já era praticamente tal como o conhecemos.
nismo, e as respostas seriam muitas, pois O otimismo, a expansão das conquistas eu-
dependeriam de como relacionamos os fa- ropeias e a confiança no progresso pareciam
tos do passado àqueles da década de 1920. ter atingido o seu ponto mais alto. E então,
No campo musical, alguns iriam argumentar num repente inesperado, veio o mergulho no
que as sonatas Waldstein e L’Appassionata, vácuo, o espasmo caótico e destrutivo, o hor-
compostas por Beethoven entre 1803 e 1805, ror engolfou a história: a irrupção da Grande
já continham sua futuridade, isto é, possuí- Guerra descortinou um cenário que ninguém
am a conformação e os materiais que seriam jamais previra” (Sevcenko, 2001, pp. 15-6).
posteriormente desenvolvidos pelos moder-
nistas1. Outros iriam relacionar essas sonatas Diante da “morte de Deus” – anunciada
ao espírito romântico, e os demais poderiam, em alto e bom som pelo “louco” nietzschia-
porventura, realçar a herança que elas rece- no em plena praça pública – e, consequente-
beram das mãos de Haydn e Mozart. mente, do prenúncio da “morte da história”, o
Mas é possível, igualmente, considerar homem moderno, especialmente a partir dos
um recorte temporal como sendo produto de anos 1920, dará um novo salto em direção ao
uma rica e ambígua encruzilhada do “pre- mito. Dentro desse panorama, duas tendências
sente das coisas presentes, passadas e futu- saltam à vista: de um lado, os artistas que,
ras”, como sublinhara Santo Agostinho. Se aceitando o fato de que “tudo o que é sólido
adotarmos esse ponto de vista com relação desmancha no ar” (Marx & Engels, 2007),
ao modernismo em geral e, especificamente, espelham em suas obras a própria realidade
à Semana de 22, constataremos que se trata fragmentada e caótica deste mundo, assim
de uma época crítica, entrecruzando-se ali como a incomunicabilidade e o pasmo do ho-
tanto os vultos do passado quanto os prenún- mem diante das crises e da ausência de senti-
cios de um futuro incerto e sombrio. do; de outro lado, os artistas que, não aceitando
Marx comentara, em grand geste, que tal realidade, buscam uma saída procurando
a revolução burguesa seria uma revolução em outros mundos, mesmo que utópicos, a
permanente, um turbilhão sem fim alimen- lógica e a unidade que cessaram de existir.
tando-se de suas próprias contradições. De Ocorre aqui, pois, uma rica e ambígua
fato, no século XX o mercado se expandiu tensão entre duas tendências que convivem,
aos mais distantes rincões do planeta, houve lado a lado, como frutos de uma mesma
grandes mudanças e crises sociais, as revo- época, de um mesmo estado de coisas. Se os EDUARDO SEINCMAN
é compositor, professor
luções científica e tecnológica modificaram intelectuais daquela ou de nossa época dife- do Departamento
as formas de o homem se relacionar com o renciam-nas como sendo conservadoras ou de Comunicações
e Artes da ECA-USP
mundo à sua volta. A arte modernista acom- inovadoras, conformistas ou inconformistas, e autor de Do Tempo
panhou esse processo através de profundas nacionalistas ou europeizantes, neoclássicas Musical (Via Lettera).
mudanças estéticas implicando novas e ou- ou vanguardistas, passadistas ou futuristas,
sadas formas de comunicação. O mundo, que isso diz respeito a uma visão mais política do 1 Tal como analisa André
anteriormente ao século XIX ainda podia ser que propriamente estética. Boucourechliev (1980).

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Qual das tendências é mais retrógrada ou virtude de sua própria obsolescência, em um


avançada: a que aceita o mundo tal e qual, ícone, objeto de veneração nostálgica da par-
projetando-o na obra de forma concentrada e te daqueles que, como os ‘maus poetas’ X ou
crítica, ou a que o rejeita reavendo o passado Z, estejam tentando fugir da modernidade.
a fim de utilizá-lo como antídoto do atual Todavia o artista – ou o pensador, ou o polí-
estado de coisas? Essa questão se torna ain- tico – antimoderno encontra-se nas mesmas
da mais problemática quando se verifica que ruas, no mesmo local, como o artista moder-
ambas as tendências podem habitar o interior no. Este ambiente moderno serve como linha
do mesmo artista. de ação ao mesmo tempo física e espiritual
Um exemplo concreto pode aprofundar – fonte primária de matéria e energia – para
essa questão. Em “A Perda da Auréola”, de ambos. A diferença entre o modernista e o
Baudelaire (2006, p. 253), encontramos, em antimodernista […] é que o modernista se
um mauvais lieu, um poeta que, para es- sente em casa neste cenário, ao passo que o
panto de seu interlocutor, disse que não iria antimodernista percorre as ruas à procura de
apanhar a auréola que caiu de sua cabeça um caminho para fora delas. […] não impor-
no lodaçal do macadame enquanto tentava ta quão opostos o modernista e o antimoder-
atravessar o caótico tráfego de cavalos e veí­ nista julguem ser: no lodaçal de macadame
culos do bulevar. Ao invés, se algum mau e segundo o ponto de vista do tráfego inter-
poeta encontrasse a auréola e a colocasse na minável, eles são um só”.
cabeça, isso o faria rir.
O cenário ou ambiente moderno é o da Portanto, o modernista e o antimoder-
Paris reurbanizada por Haussmann. Os bu- nista, além de conviverem no mesmo terre-
levares larguíssimos e compridos, ao rasga- no, podem apresentar-se como fases de um
rem a cidade, atiraram o homem nesse “caos mesmo artista, como ocorre com Baudelaire.
movente por onde a morte vem a galope” Mas, no caso de Villa-Lobos, já não se trata
( Baudelaire 2006, p. 253). Simbolicamente, nem de uma nem de outra possibilidade, e
o macadame pavimenta a auréola e o lodo, sim de “personas” que habitam o seu interior
o elevado e o baixo, o sublime e o crasso, e que podem mostrar-se em épocas e circuns-
onde tudo está nivelado diante e à mercê des- tâncias diferentes de acordo com o contexto.
te novo deus, o Mercado. Para fins de análise, teremos de abordar essas
Esse pequeno poema em prosa, além de “personalidades” separadamente.
se constituir uma das cenas arquetípicas da era
moderna, é de certa maneira uma autocrítica do
poeta a caminho da modernidade, pois o pró-
O MODERNISTA
prio Baudelaire, que anteriormente considerou
Allegro con brio
a poesia filha do deus-poeta e a ele próprio um Na virada do século, o Brasil, antes um
poeta do sublime e do elevado, deixa sua pró- país basicamente agrário e patriarcal, come-
pria auréola cair e passa a escrever “pequenos ça a absorver os novos ares da modernidade,
poemas em prosa” utilizando como matéria- tanto de suas conquistas quanto de suas cri-
-prima a linguagem comum e os elementos ses, que culminariam em duas grandes guer-
mais cotidianos e vulgares. Sobre esse poe- ras. A cultura da aristocracia novecentista
ma, Marshall Berman (1986, p. 157) comenta: terá gradativamente seus alicerces balança-
dos pela influência de uma elite intelectual e
“A cultura se torna um enorme entreposto artística que respira as novas ideias e mani-
comercial onde tudo é mantido em estoque, festações de vanguarda do mundo europeu.
na esperança de que algum dia, em algum Santuza Cambraia Naves (1988, p. 21) co-
lugar, encontre comprador. Assim o halo que menta que na década de 1920 a música erudita
o poeta moderno deixa cair (ou atira fora) e a música popular tomam direções opostas, e
como obsoleto talvez se metamorfoseie, em que o “projeto musical modernista, articulado

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basicamente por Mário de Andrade, mantém Lilia M. Schwarcz (2001, p. 27) ressalta
a tradicional classificação hierarquizante que “uma nova visão oficial deste país é cons-
entre erudito e popular”. Mário de Andrade truída. Dessa vez, a mestiçagem – menos bio-
enfatiza, assim, que cabe à música “alta” efe- lógica e mais cultural – é destacada não mais
tuar uma incorporação inteligente da música como um veneno, mas tal qual redenção”. A
“baixa”, ou popular, contribuindo para o res- mestiçagem espalha seus tentáculos em torno
gate e o amadurecimento de nossa identidade. da natureza e da arte, o que leva Villa-Lobos
Mário é o porta-voz de uma forte corrente a afirmar: “Minha obra é a consequência
nacionalista literária e musical que responde de uma predestinação, ela é tão abundan-
aos anseios ideológicos do Estado em busca te porque é fruto de uma terra imensa, ar-
de uma “verdadeira” identidade nacional. dente e generosa” (apud Vidal, 1991, p. 6).
Após a Primeira Guerra Mundial, as Na mesma linha de raciocínio, “Renato
ondas nacionalistas cobrem quase todos os Almeida condiciona a realização do projeto
continentes do globo. Nas Américas, a busca musical moderno à integração do compo-
de raízes identitárias é um meio de sair da sitor (intelectual) com a natureza (universo
“minoridade” cultural e da submissão co- rural)” (Naves, 1988, p. 22). Ao compositor
lonialista para alçar voo próprio buscando cabe o papel de atuar como mediador entre
adquirir reconhecimento “universal”. São o universo rural, que, embora “incivilizado
profundas as mudanças nessas primeiras e atrasado”, possui raízes, e o universo ur-
décadas do século: bano, que, embora “civilizado e avançado”,
é desenraizado. Dessa fusão do rural com o
“O processo de urbanização e de industria- urbano, do arcaico com o moderno, surgirá
lização se acelera, uma classe média se de- uma entidade única, homogênea e grandiosa:
senvolve, surge um proletariado urbano. Se o a “alma brasileira”2. Portanto, a “terra imen-
modernismo é considerado por muitos como sa, ardente e generosa”, a que Villa-Lobos
ponto de referência, é porque este movimento se refere, ao mesmo tempo se humaniza e
cultural trouxe consigo uma consciência his- adquire uma “alma”.
tórica que até então se encontrava esparsa na Para que essa “alma” não perca a sua
sociedade” (Ortiz, 2001, pp. 39-40). seiva, caberá ao intelectual, ou seja, ao
homem “cultivado”, conservar o folclore
Um dos pontos nevrálgicos dessa busca intacto, tal como recomendam Renato Al-
de uma identidade situou-se, obviamente, na meida e Mário de Andrade: “O imaginário
questão racial, cujo enfoque, a partir de en- do homem natural referenciado a rituais
tão, muda radicalmente: a miscigenação, que folclóricos […] deve ser preservado” (Na-
até há pouco era vista como sendo um dos ves, 1988, p. 22). Por essa razão é que, à
maiores motivos de nosso “atraso”, torna-se maneira de um Bela Bartók na Hungria,
um dado positivo a ponto de se tornar um Mário de Andrade propõe o recolhimento
mito fundante, o mito das três raças: do máximo de material oral possível antes
que o “progresso invasor” implante o seu
“O conceito de mito sugere um ponto de ori- esquecimento3. É um tanto paradoxal que
gem, um centro a partir do qual se irradia um modernista tenha receio do “progresso
a história mítica. A ideologia do Brasil-ca- invasor”, mas ao promulgar o resgate do
dinho relata a epopeia das três raças que se “homem natural” ele está apelando ao seu 2 Não por mero acaso,
fundem nos laboratórios das selvas tropicais. estado bruto, algo que o modernismo valori- “Alma Brasileira” é o
subtítulo do Choros no
Como nas sociedades primitivas, ela é um za especificamente, e não mais à idealização 5, para piano (1926), de
mito cosmológico, e conta a origem do mo- romântica do “bom selvagem” presente em Villa-Lobos.

derno Estado brasileiro, ponto de partida de José de Alencar ou em Carlos Gomes. Este 3 Sobre a questão da
memória e do esque-
toda uma cosmogonia que antecede a própria último foi, por sinal, execrado pelos mo- cimento, conferir Ortiz
realidade” (Ortiz, 2001, p. 38). dernistas, tal como atestam as palavras de (2000).

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Oswald de Andrade (apud Mariz, 1983, pp. pronunciados em seu Trio Segundo, em que
45-6) publicadas no Correio de São Paulo: o scherzo-spiritoso é uma estranha mistura
de gestos à maneira de Debussy com o hu-
“Carlos Gomes é horrível. […] Mas como se mor de Satie, mas se afirmam de modo mais
trata de uma glória da família engolimos a enfático em outras obras também apresenta-
cantarolice toda do Guarani e do Schiavo, das na Semana: “Rodante” (1919), da Sim-
inexpressiva, postiça, nefanda. […] Ora, en- ples Coletânea e A Fiandeira (1921). Mas,
quanto na Alemanha se procedia à renova- no geral, as obras executadas na Semana de
ção estética, formidavelmente anunciada por 22 ainda estão carregadas com uma forte
Wagner, e na França César Franck precedia tinta francesa impressionista e simbolista.
Debussy, o nosso Carlos Gomes, batuta em Embora a Semana de 22 tenha se insurgido
punho, cabelo sensacional, olhar de fera ame- contra as elites da belle époque (Contier, 2004)
ricana, acreditava em Ponchielli. […] De êxito que guardavam um gosto musical conservador
em êxito, o nosso homem conseguiu difamar e repudiavam as vanguardas europeias como
profundamente o seu país, fazendo-o conhe- o expressionismo, o futurismo ou mesmo o
cido através de Peris de maiô cor-de-cuia e “radicalismo” de um Erik Satie, o gosto e o
vistoso espanador na cabeça, a berrar forças espírito franceses não irão se dissipar tão rapi-
indômitas em cenários horríveis. Felizmente, damente, pois é forte a influência de composi-
a Itália, que chegou a dar a degradação veris- tores como César Franck, D’Indy, Debussy ou
ta, tem hoje a genialidade moderníssima de do “Grupo dos Seis”. O próprio francês Da-
Malipiero e Casella. Felizmente nós temos rius Milhaud, que a convite de Paul Claudel
hoje a imprevista genialidade de Villa-Lobos. estabelecera-se no Rio de Janeiro de 1917 a
São Paulo vai ouvi-lo. E como São Paulo é a 1919, chegou a criticar o francesismo brasileiro
cidade dos prodígios – herdeira das migrações e o desconhecimento da música austro-alemã:
e das entradas – vai aceitá-lo. O nosso velho e
caduco ambiente de musicalidade decadente “A curva traçada pela evolução da música
e convencional estalará ao peso da mão genial em França, depois de Wagner, reproduz-
do compositor de Kankikis e Kankukus”4. -se exatamente do outo lado da Terra. Todo
movimento, toda tendência encontram um
Na realidade, a Semana ainda não ha- eco no hemisfério austral. […] Vincent
via assistido a essa “imprevista geniali- D’Indy e a Schola servem de modelo aos
dade”, como afirma Oswald de Andrade5. compositores argentinos e chilenos, enquanto
Não porque o compositor já não houvesse no Brasil a orientação é nitidamente debus-
escrito obras contundentes nos anos 1920, systa e impressionista. […] a música contem-
mas simplesmente porque essas últimas não porânea austro-alemã é quase desconhecida
foram escolhidas. Tome-se, por exemplo, a naquele país e o movimento, tão importante,
Sonata II, de violoncelo e piano (1916), e o determinado por Schoenberg é mais ou me-
4 “Kankikis” e “Kankukus”
fazem parte das Danças Trio Segundo, de violino, violoncelo e piano nos ignorado” (Naves, 1988, p. 54).
Características Africa- (1916), apresentados no dia 13 de fevereiro:
nas, para piano, apre-
sentadas no dia 13 de possuem uma escrita fortemente baseada no Haverá um esforço cada vez mais intenso
abril, primeiro dia de desenvolvimento de células e motivos aliada de Villa-Lobos para se desgarrar desse es-
concertos da Semana
de 22. à diluição das formas em um todo flexível e pírito francesista. Para ele, a busca de uma
metamórfico típicos do romantismo final. O identidade brasileira será propiciada pela
5 Nos três dias de apre­
sentações com obras segundo movimento da Sonata II já insinua “miscigenação”, a qual irá impregnar grada-
de Villa-Lobos durante elementos a serem explorados futuramente: o tivamente sua estética sintonizando-a com a
a Semana de 22, “Kanki-
kis” e “Kankukus” são tom nostálgico e o uso de materiais mais sim- visão e a crítica de Mário de Andrade, que,
praticamente uma ex- ples relacionados à música de salão através “a partir dos anos 20, […] atacou os possíveis
ceção, pois já apontam a
“outro” Villa-Lobos, que de harmonias que lembram as de Satie. Es- ‘pecados internacionalistas’ ou ‘desraçados’
analisaremos adiante. ses elementos mais “modernistas” estão mais ou ‘despaisados’ cometidos pelos composi-

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tores eruditos brasileiros” (Contier, 2004, p. demais e de timbres excepcionais, cacoetes
17). A missão de Villa-Lobos é esteticamente de exposição colonial. Foi com uma instru-
complexa: realizar uma espécie de “miscige- mentação normal que o compositor conse-
nação musical” do que seriam os elementos guiu essa violência de colorido. O conjunto
formadores da “alma brasileira” (animais, é extremamente musical e merece o caloroso
pássaros, selvas e florestas, índios, brancos, sucesso que acolheu a sua revelação” (apud
negros, africanos, caboclos, ameríndios, Grieco, 2010, p. 34).
crianças, lendas, danças etc.) com a lingua-
gem musical ocidental de concerto. A “transposição erudita da barbárie”, de
Uma das primeiras tentativas encontra- que fala Mário de Andrade, denuncia uma
-se nas Danças Características Africanas questão mais geral e nevrálgica do moder-
(1914-16). Apresentadas no primeiro dia da nismo musical que busca no passado distante
Semana, receberam do compositor o subtítulo ou em uma cultura “longínqua” (folclórica ou
de “Danças dos Índios Mestiços do Brasil”: 1. urbana) a fundamentação de suas próprias
“Farrapós”: Dança dos Moços; 2. “Kankukus” “barbáries”: emancipação das dissonâncias,
– Dança das Crianças; 3. “Kankikis”, Dança politonalidade, atonalidade, polirritmia,
dos Velhos. A ambígua referência tanto a ritmos e métricas irregulares, quebras sin-
africanos quanto aos índios tem como fon- táticas, uso excessivo de silêncios, ruídos
te de inspiração os índios caripunas, que, e harmonias percussivas etc. O modernista
segundo o autor, seriam cafuzos6. Observa- almeja a fusão do que há de mais contem-
-se aqui a tentativa de efetuar uma fusão dos porâneo com o que existe de mais arcaico, o
elementos “afro-indígenas” com a linguagem que foi um dos motivos do impacto causado,
da música de concerto. Para Mário de An- por exemplo, pela Sagração da Primavera,
drade, as Danças Características Africanas de Stravinsky, no ano de 1913. O material
sonoro da obra e a forma de elaborá-lo mos-
“[…] são os prelúdios duma tendência que travam que, levado às últimas consequências,
mais tarde se sistematizaria no compositor o desenvolvimento da música ocidental desa-
e que, pra impressionar os tímidos, direi que guava no que havia de mais primitivo.
consiste no emprego de barbárie bárbara… Esse “primitivismo” não se situa, contu-
exotismo cafuz… ainda excessivamente euro- do, apenas no plano das notas e das harmo-
peias… com mais realismo e principalmente nias ou na mistura de estilos e eras. A música
mais eficácia na expressão, uma transposição de Stravinsky, alterando radicalmente a for-
erudita da barbárie” (apud Grieco, 2010, p. 34). ma de comunicação, abandona a escrita pro-
cessual, dramática e causal para se instalar
Para Juan Orrego-Salas, de vez no modelo de narração mítica. A ló-
gica de concatenação dos materiais deixa de
“Além do emprego (na versão orquestrada) ser a do “engenheiro”, cujas obras resultam 6 Villa-Lobos afirma que
se trata de índios do
de alguns instrumentos indígenas como o ca- do encadeamento lógico dos meios visando Mato Grosso, mas os
xambu e o reco-reco, essa obra se desenvolve os fins, para se tornar a do bricoleur, cujas caripunas são do Ama-
pá e Rondônia. Obs.: o
de preferência em um plano onde se explora obras nascem da recomposição dos estilha- “indigenismo” de Villa
em partes iguais a síncopa e a polirritmia ços e fragmentos recolhidos do mundo7. A foi influenciado pelas
obras de Sílvio Rome-
afro-brasileira e a repetição rítmico-celular de conformação geral da obra é de um grande ro, Melo Morais Filho
raízes-indígenas” (apud Grieco, 2010, p. 34). mosaico, mas a alternância incessante da e pelos estudos de
caótica colagem e montagem de fragmentos Couto de Magalhães e
de Barbosa Rodrigues.
Para Emile Vuillermoz, produz uma rica vertigem caleidoscópica de
7 Sobre a questão do
ritmos, tempos, cores, perspectivas e textu- “pensamento selva-
“É pintura orquestral feita à faca, em plena ras. Como se percebe, ao se opor às estrutu- gem”, e a diferença
entre o “engenheiro”
mata, que possui um vigor e um relevo no- ras dramáticas e líricas do Novecentos, inex- e o “bricoleur”, conferir
táveis. Nenhuma procura de exotismo fácil tricavelmente atreladas à literatura, a música Lévi-Strauss (2005).

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modernista volta seus olhos para as imagens submergindo em massas de notas “estrangei-
e, portanto, ao gênero épico. Mas, contraria- ras”, os temas infantis tornam-se como que
mente aos épicos do passado, já não há mais reminiscências, instantâneos de um passado
sucessão de fatos ou cenas em uma sequência longínquo e ancestral que, de quando em
única do passado ao futuro: no mito é como quando, emerge na agitação do mundo atual.
se tudo já estivesse designado antes de ocor- Do mesmo modo que em Petrushka, impera
rer, e a impressão causada é de simultanei- aqui a diversidade de reminiscências, faíscas
dade e multiplicidade dos pontos de vista. de entrechoques culturais, multiplicidade de
Se nos basearmos apenas nas obras de pontos de vista. Situados em contextos conso-
Villa-Lobos tocadas na Semana de 22, não nantes ou dissonantes, em andamentos lentos
encontraremos muitas semelhanças com essa ou agitados, esses fragmentos de memórias
maneira modernista de configurar as obras povoam um presente multidimensional con-
musicais, pois estão calcadas basicamente tendo desde mundos e lugares distantes até
nas técnicas de elaboração temática da for- o turbilhão caótico da moderna vida urbana.
ma allegro-de-sonata. Já em 1918, portanto Todas as oito peças, ou “cenas”, que com-
apenas dois anos depois das Danças Carac- põem a A Prole do Bebê No 1 carregam, in-
terísticas Africanas, havia surgido A Prole teriormente, a constante tensão gerada pelo
do Bebê No 1, para piano, que, não tendo sido entrechoque de seus próprios elementos e,
executada na Semana de 22, foi, no entanto, exteriormente, chocam-se entre si provocan-
estreada em 5 de julho daquele mesmo ano do um distanciamento épico que requer dos
por Arthur Rubinstein. No subtítulo da obra ouvintes a constante reavaliação dos con-
lê-se: “Coleção de 8 Peças Sobre Temas Po- teúdos e posições conforme a narrativa se
pulares Brasileiros”: 1. Branquinha (A Bo- desdobra. Essa forma de compor e de narrar
neca de Louça); 2. Moreninha (A Boneca de a obra é a do mito: construída como bricola-
Massa); 3. Caboclinha (A Boneca de Barro); gem, já não importa tanto a ordem dos fatos,
4. Mulatinha (A Boneca de Borracha); 5. pois sua concatenação não é mais regida pela
Negrinha (A Boneca de Pau); 6. Pobrezinha causalidade. Com isso, as próprias noções
(A Boneca de Trapo); 7. O Polichinelo; 8. A de espaço e tempo modificam-se: mais do
Bruxa (A Boneca de Pano). que avançar no tempo, ocorre o circundar as
Escrita apenas sete anos após a estreia de ações. Anatol Rosenfeld (1965, p. 21) ressal-
Petrushka, de Stravinsky, no Teatro Chatelet ta essa diferença por meio do diálogo entre
de Paris no ano de 1911, não há como deixar Goethe e Schiller:
de notar alguns parentescos entre ambas as
obras, a começar pela temática dos bonecos “Goethe destaca […] que o poema épico ‘re-
e bonecas que as protagonizam. A obra de trocede e avança’, sendo épicos ‘todos os mo-
Stravinsky contrasta a realidade urbana e tivos retardantes’. O que sobretudo salienta é
moderna com o mundo arcaico de persona- que o drama exige um ‘avançar ininterrupto’.
gens e temas folclóricos. Em Villa-Lobos, as E Schiller: o dramaturgo ‘vive sob a cate-
bonequinhas são representadas por temas in- goria da causalidade’ (cada cena, um elo do
fantis e folclóricos que, ao surgirem ou subi- todo), o autor épico sob a da substancialida-
tamente desaparecerem, contraponteiam-se e de: cada momento tem seus direitos próprios.
harmonizam-se com materiais exógenos. Há ‘A ação dramática move-se diante de mim,
uma constante mutação ou fusão de massas mas sou eu que me movimento em torno da
harmônicas com linhas melódicas folclóri- ação épica que parece estar em repouso’”.
cas, surgindo, aqui e acolá, sugestões de ou-
tros rincões culturais: um traço de música Se no drama musical o sentido do todo
chinesa aqui, de impressionismo ali, de per- dependia da evolução das partes – bastando
cussão africana acolá, etc. Apresentando-se um pequeno lapso para que o todo desmoro-
muitas vezes incompletos ou inacabados e nasse –, nas obras modernistas o sentido das

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partes depende do todo. De modo semelhan- folclore já não é mais o mesmo, ele perde seu
te às obras do período barroco, há blocos de significado primeiro. […] é por meio do meca-
partes que se concatenam de inúmeras ma- nismo de reinterpretação que o Estado, através
neiras. Mas os modernistas, ao fragmenta- de seus intelectuais, se apropria das práticas
rem e recombinarem os materiais de modo populares para apresentá-las como expressões
por vezes irreconhecível, criam deslocamen- da cultura nacional. O candomblé, o carnaval,
tos que, além de gerarem desconforto e estra- os reisados, etc. são, dessa forma, apropriados
nhamento, alteram os padrões da percepção pelo discurso do Estado, que passa a consi-
espaço-temporal dos ouvintes. Além disso, derá-los como manifestação de brasilidade”.
o distanciamento épico possibilita uma nova
irrupção da ironia e da paródia, traços prati- Aplicado esse comentário ao âmbito
camente ausentes no período romântico. musical, resta saber que espécies de obras
*** podem realizar a mediação entre o popular
Neste ponto, é de se perguntar: a tão e o nacional, entre a diversidade do folclore
sonhada busca nacionalista pela unidade e e a ideologia da identidade. Observamos que
identidade poderá ser encontrada em obras tanto Petrushka quanto Prole do Bebê, com
em que impera o turbilhonamento de re- suas fragmentações, deslocamentos, tensões
miniscências e fragmentos reunidos à ma- e dissonâncias interculturais, não se presta-
neira de bricolagens? O problema se torna vam a esse propósito.
ainda mais agudo se pensarmos que tanto É que as obras dos modernistas, embora
Petrushka quanto Prole do Bebê veiculam aceitando a diversidade e o caos do mundo
um novo tipo de tensão que já não é mais moderno e os refletindo criticamente em suas
aquela especificamente musical: ao incluírem obras, não conduzem a uma visão sintética e
as mais variadas tradições musicais do pas- identitária. Com os antimodernistas ocorre
sado e do presente no mesmo útero mítico, exatamente o inverso: não aceitando o caos e a
suas obras passam a lidar com tensões decor- diversidade do mundo, suas obras partem em
rentes de consonâncias e dissonâncias inter- busca da unidade e identidade perdidas. Se a
culturais sustentadas, obviamente, por novos realidade é vertiginosa e se encontra dilacera-
dispositivos composicionais, como a polito- da, as obras irão propor um mundo ideal onde
nalidade e a polirritmia. Em última instân- tudo é uno, coeso e homogêneo. Assim, o an-
cia, a postura do modernista não resulta em timodernista voltará novamente seus olhos à
unidade e identidade, mas em diversidade e auréola do poeta caída no lodaçal do maca-
alteridade. Cabe, portanto, refletir a respeito dame, uma herança do passado que continua
da postura dos antimodernistas. a lampejar no pavimento do mundo moderno.
Onde mais poderia o antimodernista en-
contrar os meios de encenar um mundo ideal
O ANTIMODERNISTA senão no próprio passado? Não foi essa atitude
Adagio molto de Bach, antimodernista por excelência, que o
Renato Ortiz (2001, p. 140) comenta que levou a ser desconsiderado como compositor
no período nacionalista os intelectuais atuam em sua própria época? O passado pode ofe-
como mediadores simbólicos entre a cultura recer ao antimodernista o conhecimento e os
popular, que é plural, e o nacional, que é uno recursos que garantam a unidade e, ao mesmo
e identitário. Assim, tempo, servir de alteridade com relação ao
presente. É no passado que o antimodernis-
“[…] o folclore, que se define como conheci- ta poderá encontrar o senso de proporção,
mento fragmentado, passa […] a integrar um equilíbrio e simetria formais ou, então, as
todo coerente ao ser mediado pela atividade engrenagens contrapontísticas que põem em
intelectual. É bem verdade que esse processo marcha o movimento do mundo. Valer-se dos
de operação simbólica reedita a realidade, o recursos técnicos e comunicacionais do pas-

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sado não implica anacronismo ou mera ado- Na postura “realista”, já não se trata de
ção do estilo “neoclássico”. Não raramente, o empregar o folclore em sua “pureza”, mas de
estilo neoclássico é taxado de anacronismo, transformá-lo, estilizá-lo ou transfigurá-lo
mas ninguém pode, em sã consciência, negar tendo em vista as possibilidades expressivas
às Bachianas o fato de pertencerem a um pe- e críticas decorrentes do estranhamento que
ríodo modernista tipicamente villa-lobiano. tais distorções propiciam. É exemplar, nesse
Mas garantir a unidade não é o suficiente. sentido, uma obra como o Bolero (1928) de
O modernismo nacionalista almeja a identi- Ravel9, em que a figura rítmica estilizada,
dade, e isso, como se viu, recai na questão quase como uma “marcha”, torna-se uma
do folclore e das raízes nacionais. Existem idée fixe ao mesmo tempo irônica e opressi-
basicamente três posturas principais que pro- va dessa avalanche sonora que recai sobre o
curam dar conta dessa questão: ouvinte. Esse sentido de unidade e evolução
no espaço e no tempo, devido principalmen-
n a postura “purista” se utiliza da citação: o te à orquestração, ao mesmo tempo em que
material folclórico, recolhido diretamente da serve de espelho crítico à fragmentação do
8 É o que ocorre com fonte, e idealmente mantido “intacto”, é ex- mundo, vislumbra, talvez, a ominosa opres-
muitas obras “indi-
genistas” de Villa- posto como símbolo da identidade nacional; são dos tempos vindouros.
-Lobos cujos temas n a postura “realista” se utiliza da alusão: o A vertente realista, devido ao distancia-
foram transcritos por
um Rondon ou por material folclórico original passa por al- mento crítico com que trata seus materiais,
um Jean de Léry. O gum tipo de transformação ou estilização; também pode fazer uso da paródia, como é
índio de Villa-Lobos
n a postura “idealista” se utiliza da invenção: o caso de “D’Edriophtalma”, segunda peça
é uma tentativa de
apresentá-lo de ma- cria-se um material novo como se fosse de Embryons Dessechés (1913), de Satie,
neira límpida, bruta,
“genuinamente” folclórico. tocada na primeira noite das apresentações
desnudada. Para tal,
em geral o tema in- da Semana de 22 durante a conferência de
dígena é transcrito Na postura “purista”, os compositores, se- Graça Aranha intitulada “A Emoção Estética
ipsis literis na tentativa
de preservar sua “au- guindo a cartilha de Mário de Andrade e ou- da Arte Moderna”. Essa obra, ao parodiar a
tenticidade”, embora tros musicólogos, tomam como ponto de par- famosa “Marcha Fúnebre”, de Chopin, cau-
seja entoado por um
cantor(a) lírico(a) e rit- tida de suas obras algum material folclórico sou um desconforto na plateia da Semana (e
micamente pontuado “original”. Acreditam que seus “traços carac- na pianista Guiomar Novaes) só comparável
de maneira seca, rústi-
terísticos” (melódicos, harmônicos, rítmicos, à leitura de “Os Sapos”, de Manuel Bandeira,
ca, cáustica, como se
fosse um acompanha- instrumentais etc.) são, por si sós, fatores iden- que parodia o parnasianismo.
mento “tipicamente titários e que, ao sofrerem, em seguida, elabo- Na postura “idealista”, já não se trata de
indígena”, mas har-
monizado à maneira rações e desenvolvimentos, serão “apurados”. utilizar o folclore como citação ou alusão,
de um Bartók ou de Um dos maiores entraves dessa concep- mas como invenção. Ao substituir o folclore
um Stravinsky.
ção é seu “etnocentrismo”, pois, ao ser re- enquanto substância pelo folclore enquan-
9 Outro exemplo excep-
tirado do contexto original e transportado to essência, o idealismo constrói um mito,
cional é a modernista
La Valse (1919), de Ra- à música de concerto, o material folclórico uma utopia, um arquétipo fundante, uma
vel. Parte-se de uma descontextualiza-se. Embora adquira novas realidade fictícia, esta sim dotada de unida-
valsa que atravessa
uma constante desfi- significações, tende a se tornar exótico: de de e identidade. Excelente exemplo disso é
guração pela ação de início, o exótico gera impacto, mas aos pou- A Lenda do Caboclo, de Villa-Lobos, que,
contrastes e conflitos
cada vez mais bom- cos vai perdendo sua potência até se tornar embora composta em 1920, não fez parte
básticos até chegar ao um clichê e um óbice à identidade almejada8. das apresentações da Semana de 22. Escrita
ponto de sua explosão
ou “implosão”. Como
É muito comum que esses clichês, como os apenas dois anos após A Prole do Bebê No
no Bolero, La Valse já “batuques” e as “síncopas”, tornem-se símbo- 1, em quase tudo se lhe opõe e é modelar
não é apenas o exem- los estereotipados de “brasilidade”. No caso da via antimodernista que a partir de então
plo de mais uma valsa.
Ela é um paradigma, específico de Villa-Lobos, eles serviram consubstanciará algumas obras-primas da
representa o princípio muitas vezes de base para a composição de trajetória do compositor.
e o fim de todas as
valsas, e mesmo de obras de caráter ufanista e “didático”, prin- Para se compreender como essa obra
toda uma época. cipalmente durante o Estado Novo. de Villa-Lobos opera, pode-se compará-la

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com Embryons Dessechés, de Erik Satie. A evita os seccionamentos e oblitera a capa-
“marcha fúnebre”, que com Beethoven já ad- cidade de o ouvinte ordenar fatos e ter a
quirira uma posição de relevo no repertório impressão de passagem do tempo;
sinfônico, torna-se, com Chopin, fortemente n a adoção do viés monotemático e de um ca-

simbólica, tornando-se um signo até mesmo ráter único da obra impede a clareza formal;
independente da própria sonata que lhe deu n o emprego de andamentos lentos e de pul-

origem. Satie parodia a “Marcha Fúnebre” sação inalterável dá a impressão de trans-


de Chopin invertendo carnavalescamente cendência e infinitude;
sua polaridade: o elevado torna-se rasteiro, n a ausência ou a atenuação das cadências

o mito é desmitificado, o sério torna-se ri- conclusivas evita as pontuações e as dis-


sível e a verve “mórbida” do romantismo é tinções fraseológicas e formais;
escancaradamente caricaturada. n a mistura entre figura e fundo cria ambigui-

Villa-Lobos percorre o caminho inver- dades na consciência do ouvinte que passa


so: parte da opinião rasteira, negativa e es- a não “pisar em solo firme”;
tereotipada de que o caboclo, devido à sua n as nuances gradativas de dinâmica e de outros

miscigenação, seria preguiçoso, passivo, parâmetros musicais obscurecem a consci-


inerte e modorrento10, para com sua Lenda ência das partes internas do texto musical;
do Caboclo realizar uma tradução musical n a ausência de desenvolvimentos e elabora-

positiva desses mesmos traços a fim de criar ções temáticas evita o gênero dramático e,
a imagem utópica de outro mundo. Suspen- consequentemente, a impressão de causa-
dendo a ação do tempo e borrando a nitidez lidade e de avanço no tempo;
dos planos formais e temáticos, Villa-Lobos n o uso de modos e pentatonismo escamo-

cria uma espécie de Cocanha11 que devolve teia a noção de centro e gera ambiguidade
ao homem moderno o que este descartara harmônica.
como sendo “caboclo”: o tempo de divagar,
de demorar-se, de remoer os pensamentos, Esses procedimentos, que dão a possibi-
de deter-se perante o mundo e refletir antes lidade de se retratar a “alma” das coisas, são
de agir. um rico filão a ser explorado pelo compo-
A citação do folclore é uma imagem de sitor: seis anos após a Lenda do Caboclo,
primeiro grau e a sua alusão, de segundo aparece Choros No 5 (1926), para piano, in-
grau. Ao tomar o folclore como invenção, titulado “Alma Brasileira”. É sintomático que
Villa-Lobos parte de uma imagem de se- Villa-Lobos vá da alma do caboclo à alma
gundo grau – estereótipo do caboclo – para brasileira, pois a ideologia nacionalista an-
construir uma imagem musical de terceiro seia por uma alma “nacional” que seja a mais
grau: o mito da Lenda do Caboclo. A obra, universal possível. 10 U
 rupês (1918), de Mon-
como lenda que se tornou mito, não retrata a Outro dado importante é que o emprego teiro Lobato, ajudou
aparência do caboclo, mas sua essência, sua de tais procedimentos reintroduz e intensifi- a construir o estereó­
tipo do caboclo e cai-
“alma”. Para fazê-lo, Villa-Lobos recorre a ca o gênero lírico no interior do épico, gêne- pira Jeca-Tatu.
alguns procedimentos que serão recorrentes: ro modernista por excelência. É nesse ponto 11 Em Urupês, Jeca-Tatu
exato que algumas obras de Villa-Lobos é apresentado como
uma espécie de ho-
n o s materiais empregados no decorrer da entram em sintonia com as do período bar- mem natural de Coca-
narrativa (passado, presente e futuro) asse- roco: por um lado, esses recursos discursi- nha: “Jeca mercador,
melham-se dando a impressão de suspen- vos possibilitam que elas alcancem a mesma jeca lavrador, jeca fi-
lósofo… quando com-
são do tempo; transcendência encontrada nas de Bach e, por parece às feiras, todo
n o uso de ostinatos e o retorno cíclico dos outro lado, sua nostalgia antimodernista con- mundo logo adivinha
o que ele traz: sempre
materiais (melódicos, harmônicos, rítmicos duz a um lirismo introspectivo semelhante coisas que a natureza
etc.) sugerem conteúdos e gestos ancestrais ao dos adágios barrocos de Albinoni, Vivaldi derrama pelo mato e
ao homem só custa
ritualísticos e paradigmáticos; ou Telemann, mas já filtrado e intensificado o gesto de espichar a
n ausência de grandes contrastes e conflitos pelo uso que o romantismo fizera do barroco. mão e colher”.

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As Bachianas de Villa-Lobos tornam-se, Essas obras expressam, com maestria, o


assim, paradigmáticas: quatro anos após a lado mais interior e nostálgico do antimoder-
composição de “Alma Brasileira” surge aque- nista que busca uma saída e ao mesmo tempo
la que representa simultaneamente o amadu- um antídoto ao ritmo e à forma de mundo
recimento desse processo e o ponto de partida impostos pela modernidade. Nessas obras,
de uma série de obras-primas desse gênero: a “persona” antimodernista de Villa-Lobos
o “Prelúdio” (Modinha), segundo movimento mostra ser possível, de um lado, transformar a
das Bachianas Brasileiras No 1 (1930). Se- lenda em mito, o local em universal e, de ou-
guem-se, então, obras do calibre da “Tocata” tro, fazer brotar a identidade da diversidade.
(Trenzinho do Caipira) das Bachianas Brasi- Mas, nesse ponto, o nacional já se tornou uni-
leiras No 2 (1930), “Prelúdio” (Introdução) das versal, e a música de Villa-Lobos, transcen-
Bachianas No 4 (1930-41) e a “Ária” (Cantile- dendo o próprio modernismo, aponta para no-
na) das Bachianas Brasileiras No 5 (1938-45). vos caminhos a serem percorridos no futuro.

B I B LI O G R AFIA

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