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De fato, como adverte Norberto Bobbio, a protecao do cidaddo no ambito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democratico daquele de indole totalitéria. Na diog&o do autor, “a diferenga fundamental entre as duas formas antitéticas de regime politico, entre a democracia ea ditadura, est4 no fato de que somente num regime democratico as relagdes de mera forga que subsistem, e no podem deixar de subsistir onde no existe Estado ou existe um Estado despético fundado sobre o direito do mais forte, sfio transformadas em relagdes de direito, ou seja, em relagdes reguladas por normas gerais, certas ¢ constantes, ¢, 0 que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que nfo podem valer nunca retroativamente. A consequéncia principal dessa transformagao é que nas relagdes entre cidadaos e Estado, ou entre cidadaios entre si, 0 direito de guerra fundado sobre a autotutela ¢ sobre a méxima ‘Tem razio quem vence’ 6 substituido pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a maxima “Vence quem tem razio’; e o direito piiblico extemo, que se rege pela supremacia da forga, é substitutdo pelo direito piblico interno, inspirado no principio da ‘supremacia da lei’ (rule of law)”.' Besse, pois, o grande dilema do processo penal: de um lado, o necessario indispensdvel respeito aos direitos fundamentais; do outro, 0 atingimento de um sistema criminal mais operante ¢ eficiente2 Ha de se buscar, portanto, um ponto de equilibrio entre a exigéncia de se assegurar 20 investigado e ao acusado a aplicagéo das garantias fundamentais do devido processo legal ¢ anecessidade de maior efetividade do sistema persecutorio para a seguranga da coletividade. E dentro desse dilema existencial do processo penal ~ efetividade da coerg&o penal versus observncia dos direitos fundamentais — que se buscaré, ao longo da presente obra, um ponto de equilfbrio no estudo do processo penal, pois somente assim serdio evitados os extremos do hipergarantismo e de movimentos como o do Direito Penal do Inimigo ou do Direito Penal da Lei e da Ordem. 2, SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS 2.1. Sistema inquisitorial ‘Adotado pelo Direito canénico a partir do século XILI, o sistema inquisitorial posterior- mente se propagou por toda a Europa, sendo empregado inclusive pelos tribunais civis até o século XVII. Tem como caracteristica principal 0 fato de as fungdes de acusar, defender julgar encontrarem-se concentradas em uma ‘nica pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acusador, chamado de juiz inquisidor. Essa concentragao de poderes nas mios do juiz compromete, invariavelmente, sua impar- cialidade. De fato, ha uma nitida incompatibilidade entre as fungdes de acusar e julgar. Afinal, 0 juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento. Em virtude dessa concentragao de poderes nas maos do juiz, n&o ha falar em contraditério, o qual nem sequer seria concebivel em virtude da falta de contraposig&o entre acusagio e de- 1. BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Tradugo de Jogo Ferreira; revisio técnica Gilson César Cardoso. 42 ed, Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 1999, p. 96-97. 2. Na linha do ensinamento de Ant6nio Scarance Fernandes, o vocébulo eficiéncia aqui empregado “é usado de forma ampla, sendo afastada, contudo, a ideia de eficiéncia medida pelo ntimero de condenacées. Serd eficiente © procedimento que, em tempo razodvel, permita atingir um resultado justo, seja possibilitando aos érgaos da persecuco penal agir para fazer atuar o direito punitivo, seja assegurando ao acusado as garantias do processo legal”. (Sigilo no processo penal: eficiéncia e garantismo. Coordenacao Antdnio Scarance Fernandes, José Raul Gavido de Almeida, Mauricio Zanoide de Moraes. Sdo Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 10). 38 fesa, Ademais, geralmente o acusado permanecia encarcerado preventivamente, sendo mantido incomunicavel. No processo inquisitério, o juiz inquisidor ¢ dotado de ampla iniciativa probatéria, tendo liberdade para determinar de oficio a colheita de provas, seja no curso das investigagdes, seja no curso do processo penal, independentemente de sua proposigao pela acusagdo ou pelo acusado. ‘A gestiio das provas estava concentrada, assim, nas mos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parametro a lei, podia chegar a conclus4o que desejasse. Trabalha o sistema inquisit6rio, assim, com a premissa de que a atividade probatéria tem por objetivo uma completa e ampla reconstrugao dos fatos, com vistas ao descobrimento da verdade, Considera-se possivel a descoberta de uma verdade absoluta, por isso admite uma ampla atividade probatoria, quer em relagio ao objeto do processo, quer em relagdo aos meios e métodos para a descoberta da verdade. Dotado de amplos poderes instrutérios, o magistrado pode proceder a uma completa investigagdio do fato delituoso. No sistema inquisitorial, o acusado é mero objeto do processo, ndo sendo considerado sujeito de direitos. Na busca da verdade material, admitia-se que 0 acusado fosse torturado para que uma confisséo fosse obtida. O processo inquisitivo era, em regra, escrito ¢ sigiloso, mas essas formas nAo Ihe eram essenciais. Pode se conceber o processo inquisitivo com as formas orais e piblicas. Como se percebe, h4 uma nitida conexo entre o processo penal e a natureza do Estado que o institui. A caracteristica fundamental do processo inquisitério é a concentragdo de poderes nas méos do juiz, af chamado de inquisidor, 4 semelhanga da reuni&o de poderes de administrar, legislar e julgar nas maos de uma tinica pessoa, de acordo com o regime politico do absolutismo. Em sintese, podemos afirmar que o sistema inquisitorial é um sistema rigoroso, secreto, que adota ilimitadamente a tortura como meio de atingir o esclarecimento dos fatos e de concretizar a finalidade do processo penal. Nele, no hé falar em contraditério, pois as fungdes de acusar, defender e julgar esto reunidas nas méos do juiz inquisidor, sendo o acusado considerado mero objeto do proceso, ¢ n&o sujeito de direitos. O magistrado, chamado de inquisidor, era a figura do acusador e do juiz ao mesmo tempo, possuindo amplos poderes de investigacao e de produgo de provas, seja no curso da fase investigatdria, seja durante a instrugo processual. Por essas caracteristicas, fica evidente que 0 processo inquisitério é incompativel com os direitos ¢ garantias individuais, violando os mais elementares princfpios processuais penais. Sem a presenga de um julgador equidistante das partes, ndo ha falar em imparcialidade, do que resulta evidente violagdo & Constituigo Federal e a propria Conven¢&o Americana sobre Direitos Humanos (CADH, art. 8°, n° 1). 2.2. Sistema acusatério De maneira distinta, 0 sistema acusatério caracteriza-se pela presenga de partes distintas, Contrapondo-se acusagao e defesa em igualdade de condigSes, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante ¢ imparcial. Aqui, h4 uma separago das fungdes de acusar, defender e jugar? O processo caracteriza-se, assim, como legitimo actum trium personarum. Historicamente, o processo acusatério tem como suas caracteristicas a oralidade ea publici- dade, nele se aplicando o principio da presungao de inocéncia. Logo, a regra era que o acusado 3. Nesse sentido: PRADO, Geraldo. Sistema acusatério: a conformidade constitucional das leis processuais penais, ‘3¥ ed, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 114. 39 Tru + ———. DOES tooo NOGOES INTRODUTORIAS Permanecesse solto durante 0 processo. N&o obstante, em varias fases do Direito Romano, sistema acusatério foi escrito e sigiloso. Quanto a iniciativa probatéria, o juiz nfo era dotado do poder de determinar de oficio a produgo de provas, jé que estas deveriam ser fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame direto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatério, aspira-se uma posicao de passividade do juiz quanto a reconstrugao dos fatos. Com o objetivo de preservar sua imparcialidade, o magistrado deve deixar a atividade probatéria para as partes. Ainda que se admita que o juiz tenha poderes instrutorios, essa iniciativa deve ser possivel apenas no curso do processo, em carater excepcional, como atividade subsididria da atuagdo das partes. No sistema acusatério, a gestiio das provas ¢ fungdo das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos liberdades fundamentais. Diversamente do sistema inquisitorial, o sistema acusat6rio caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solu¢do justa do caso penal. A separacao das fungdes processuais de acusar, defender e julgar entre sujeitos processuais distintos, o reconhe- cimento dos direitos fundamentais a0 acusado, que passa a ser sujeito de direitos e a construgdo dialética da solugio do caso pelas partes, em igualdade de condigdes, so, assim, as principais caracteristicas desse modelo. Segundo Ferrajoli, so caracteristicas do sistema acusatério a separagdo rigida entre 0 juiz e acusago, a paridade entre acusaco e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento. Lado outro, so tipicamente proprios do sistema inquisit6rio a iniciativa do juiz em campo probatério, a disparidade de poderes entre acusagdo e defesa ¢ 0 cariter escrito e secreto da instrugdo.* O sistema acusatério vigorou durante quase toda a Antiguidade grega e romana, bem como na Idade Média, nos dominios do direito germano. A partir do século XIII entra em declinio, passando a ter prevaléncia o sistema inquisitivo. Atualmente, o processo penal inglés é aquele que mais se aproxima de um sistema acusatério puro. Pelo sistema acusat6rio, acolhido de forma explicita pela Constitui¢ao Federal de 1988 (CF, art. 129, inciso 1), que tomou privativa do Ministério Pablico a propositura da aco penal piblica, a relagdo processual somente tem inicio mediante a provocagdo de pessoa encarregada de deduzir a pretens&o punitiva (ne procedat judex ex officio), e, conquanto no retire do juiz © poder de gerenciar o processo mediante o exercicio do poder de impulso processual, impede que o magistrado tome iniciativas que no se alinham com a equidistancia que ele deve tomar quanto ao interesse das partes. Deve o magistrado, portanto, abster-se de promover atos de oficio na fase investigatoria, atribuig&o esta que deve ficar a cargo das autoridades policiais ¢ do Ministério Publico. Como se percebe, o que efetivamente diferencia o sistema inquisitorial do acusatério é a posigdo dos sujeitos processuais e a gestiio da prova, O modelo acusatério reflete a posicdo de igualdade dos sujeitos, cabendo exclusivamente As partes a produgao do material probatério € sempre observando os prinefpios do contraditério, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivagio das decisdes judiciais. Portanto, além da separagao das fungdes de acusar, de- fender e julgar, o trago peculiar mais importante do sistema acusatério & que 0 juiz nao é, por exceléncia, o gestor da prova. Em sintese, pode-se trabalhar com o seguinte quadro comparativo entre os dois sistemas: 4 FERRAJOLI, Luigi. Direito e raz: teoria do garantismo penal. 28 ed. Séo Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518. 40 Tito + NOGOES INTRODUTORIAS, Sistema inquisitorial Nao hé separago das funges de acusar, defender e julgar, que esto concentradas em uma Unica pessoa, ue assume as vestes de um juiz inquisidor; Sistema Acusatério Separagdo das funcées de acusar, defender e julgar. Por consequéncia, caracteriza-se pela presenca de partes dis- tintas (actum trium personarum), contrapondo-se acusa¢o ‘edefesa em igualdade de condigdes, sobrepondo-se a am- ‘bas um juiz, de maneira equidistante e imparcial Como se admite o principio da verdade real, o acusado ‘Bo 6 sujeito de direitos, sendo tratado como mero objeto do processo, daf por que se admite inclusive a tortura como meio de se obter a verdade absoluta; O principio da verdade real é substituido pelo principio da busca da verdade, devendo a prova ser produzida com fiel observéncia ao contraditério e 3 ampla defesa; Gestio da prova: 0 juiz inquisidor & dotado de ampla Iniciativa acusatoria e probatéria, tendo liberdade para determinar de oficio a colheita de elementos informa- tivos e de provas, seja no curso das investigacBes, seja no curso da instrugdo processual; Gesto da prova: recal precipuamente sobre as partes. Na fase investigatéria, 0 juiz sé deve intervir quando provoca- do, ¢ desde que haje necessidade de intervencSo judicial Durante a instrucdo processual, prevalece o entendimento de que 0 juiz tem certa iniciativa probatéria, podendo de- de provas de oficio, desde que 0 faca ‘Aconcentragao de poderes nas mos do juize a inicia- tiva acusatria dela decorrente € incompativel com a garantia da imparcialidade (CADH, art. 88, § 12) € com ‘A separagio das fungdes e a iniciativa probatéria residu- al restrita a fase judicial preserva a equidistancia que o magistrado deve tomar quanto ao interesse das partes, sendo compativel com a garantia da imparcialidade e com © principio do devido processo legal. © principio do devido processo legal. 2.3, Sistema misto ou francés Apés se disseminar por toda a Europa a partir do século XIII, o sistema inquisitorial passa a softer alteragSes com a modificagao napoleénica, que instituiu 0 denominado sistema misto. Trata-se de um modelo novo, funcionando como uma fusao dos dois modelos anteriores, que surge com 0 Code d'Instruction Criminelle francés, de 1808. Por isso, também é denominado de sistema francés. E chamado de sistema misto porquanto o processo se desdobra em duas fases distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitorial, com instrugdo escrita e secreta, sem acusagdo e, por isso, sem contraditério. Nesta, objetiva-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de cardter acusatério, o érgao acusador apresenta a acusag4o, o réu se defende ¢ 0 juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade e a oralidade. Quando o Cédigo de Processo Penal entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que 0 sistema nele previsto era misto. A fase inicial da persecugao penal, caracterizada pelo inquérito policial, era inquisitorial. Porém, uma vez iniciado o processo, tinhamos uma fase acusatéria. Porém, com 0 advento da Constituig&o Federal, que prevé de maneira expressa a separago das fungdes de acusar, defender e julgar, estando assegurado 0 contraditério ¢ a ampla defesa, além do princ{pio da presung&o de nao culpabilidade, estamos diante de um sistema acusatério. E bem verdade que nao se trata de um sistema acusatério puro. De fato, ha de se ter em mente que o Cédigo de Processo Penal tem nitida inspiragdo no modelo fascista italiano. Torna-se imperioso, portanto, que a legislaco infraconstitucional seja relida diante da nova ordem consti- tucional. Dito de outro modo, nfo se pode admitir que se procure delimitar o sistema brasileiro a partir do Cédigo de Processo Penal. Pelo contrario. Sao as leis que devem ser interpretadas luz dos direitos, garantias e principios introduzidos pela Carta Constitucional de 1988, 41

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