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Capitulo 3 Questées envolvidas na analise de textos enho referido as naturais dificuldades presentes na andlise de textos, exatamente porque a tarefa de ‘ana- lisar’ implica ‘separar os elementos’ de um conjunto, e, em um texto, nada é separavel totalmente. Tudo est4 intimamente entrelacado e se interdepende. Uma questao- zinha que parece ser s6 de gramatica pode estar inteiramente relacionada com 0 entendimento global do que é dito. De ma- neira que vale a pena nao perder de vista, em qualquer momen- to, a relagao de cada recurso com a visio de conjunto do texto. Embora se possa focalizar um ou outro aspecto particular, o foco do entendimento deve ser essa dimensao global. E que, no fundo, nada no texto é absolutamente particular, no sentido de que cada unidade constitui um elo do sentido maior expresso pelo todo. Consciente, pois, desses limites (os elementos de construgao de um texto sao insepardveis) e dessa possibilidade (o particular pode ser visto em funcao do global), consentimos em desenvolver algumas questoes pertinentes a andlise de textos e, em capitulos seguintes, apresentar alguns exemplos dessas andlises. Andlise de textos — fundamentos e praticas XANES! 3.1 Por que analisar textos? Tenho insistido na irrelevancia de um ensino centrado na andlise de frases e de pares de frases soltas. Nao sem razao: é consensual, no ambito da linguistica de texto, 0 principio de que muitos fatos da lingua, sobretudo aqueles relativos a seu funcio- namento, nao cabem nos limites da frase. Basta citar os recursos da coesao, os quais ultrapassam, quase sempre, a fronteira sinta- tica da frase e, até mesmo, de pares de frases. De fato, somente no texto é possivel encontrar justificativa relevante para, por exemplo, a escolha dos artigos (definido ou indefinido), das expresses déiticas (de pessoa, tempo € lugar), para a compreensao de relages semanticas entre frases encade- adas sem a presenga de conectivos explicitos; para as proprieda- des referenciais de substantivos e pronomes, sem falar nas muitas funges textuais e discursivas da repeticao de uma palavra ou da substituicdo de uma por outra equivalente. Enfim, a frase — como unidade isolada — é bastante limi- tada. E um recorte, uma espécie de fragmento de um hipotético contexto. Como tal, nao deixa ver a imensa complexidade do funcionamento sociocomunicativo da linguagem. Mesmo aquela frase retirada de um texto representa muito pouco, se nao é vista enquanto parte constitutiva desse mesmo texto. No momento em que se isola a frase, ela perde suas amarras com 0 quadro conceitual, referencial e discursivo de que faz parte. Perde, por- tanto, seu sentido maior. Como muito bem diz Marcos Bagno (2009: 119): Arrancar a frase do texto para tentar analis4-la isoladamente seria 0 mesmo que arrancar um tijolo de um edificio completo analisar esse tijolo em seus aspectos materiais (peso, largura, comprimento, composi¢o quimica...) sem levar em considera- cdo o papel que ele desempenha nesse edificio, em que posigao ele se encontra com relagao aos demais tijolos, quanto peso ele suporta e por ai vai... CAPITURONIE Quest Ja € tempo, portanto, de deixar de lado parece que estou insistindo numa a pratica tao comum da anilise de frases sol- questo ja sabida de todos, ou tra- tas, inventadas; frases artificiais, sem con- zendo uma espécie de “chuva no A Ee molhado”. Parece, apenas, pois, | textos reais, exatamente ao contrario do que guando vejo certas atividades que, | acontece quando falamos ou ouvimos, escre- ainda agora, frequentemente, sao enidé-otlemost propostas nas escolas, fico com Z ; fe a a certeza de que ainda é preciso No capitulo anterior, abordei a questao Vokacia jinstisir, a, atgumencar em das diferencas entre texto e frase, enfatizan- _ favor do texto. Nao é analisando | do que 0 texto nao é uma frase grande, uma She eee : ore frase de maior dimensao, uma frase estendi- duzit, de forma compreensiva e da. As regras que especificam a formagao de relevante, textos de diferentes gene re x ros, tamanhos e complexidades. frases sao limitadas e sao apenas de ordem sintatico-semantica, uma vez que nao envol- vem as determinagées decorrentes dos muitos fatores pragmati- cos presentes num contexto social de comunicagao. E possivel prever, por exemplo, 0 conjunto de estruturas de frases aceito pela gramatica de uma lingua. Mas 0 conjunto de textos pos- siveis numa lingua € praticamente imprevisivel, dada a sempre imensa heterogeneidade de contextos e de fungdes que, em cada instdncia, podem provocar o surgimento do ‘novo’ e do ‘inusi- tado’, apesar dos esquemas de coergao a que a interacao verbal nao pode fugir de todo. E por isso que, em se tratando de texto, é mais acertado falar em ‘regularidades’ do que em ‘regras’. Um texto, também, difere de um conjunto de frases porque, neste espaco, qualquer frase pode seguir-se a qualquer outra. A ordem em que elas aprecem nao afeta em nada o sentido do con- junto, uma vez que nao ha exigéncias de continuidade ou restri- Ges contextuais. No ambito do texto, ao contrario, temos que assegurar uma sequéncia da qual resulte a unidade, a coeréncia, linguistica e pragmatica, pretendida. Por vezes, uma palavra que aparece no primeiro pardgrafo j4 aponta para a direcao argumen- tativa assumida e, assim, condiciona o sentido de uma outra que consta bem mais adiante. Um aluno (mesmo ja adulto) treinado em formar frases — competéncia que ele adquiriu na escola, e que nao serve em Analise de textos — fundamentos e pr. cos IRANDETANTONES! 4) ed cox ine dade ae nenhum outro lugar social —, quando soli- professora que o recolheu, em citado a fazer um texto, acaba por escrever 1987, em um curso de educagao yma série de frases soltas, encadeadas apenas de jovens ¢ adultos, que acontecia numa escola situada na rea metro- por centrarem-se nO mesmo tema, como se politana do Recife. pode ver em seguida’. Aescola a escola e branca a escola € muito boa a escola € boa € Na esca que nos apremdemos E na escola que no ficamos inteligente E na escola que nos mudamos e a escola e muito enportante E na escola que nos aprendemos o educacdo sinao focé a escola nos nao sabia dinada na escola eu fendo aminha patria na escola eu aprendi muita coisa wo tenancy A Escola e grande | | | | | | | a escola tem tudo, Se examinarmos bem, podemos constatar que a ordem em que cada frase aparece nao importa para o entendimento do todo. Poderiamos alterar sua sequéncia; poderiamos comecar do fim. Nio haveria problema. Estamos, apenas, diante de um conjunto de frases soltas, com as quais alguém pensou estar fazendo um texto. Na verdade, esse ‘alguém’ estd apenas demonstrando que aprendeu a fazer o que lhe foi reiteradamente ensinado, mesmo em poucos anos de escola, embora nao tenha podido perceber que essa aprendizagem carece, inteiramente, de relevancia comu- nicativa e social. O texto é diferente da frase; é diferente de um conjunto de frases. Exige um estudo especifico. 3.2 O que é que se faz quando se analisa um texto? Uma consulta ao diciondrio Aurélio nos da conta de que a palavra ‘andlise’, entre outros sentidos, significa: Decomposigao de um todo em suas partes constituintes: and- lise de uma amostra de minério; andlise de um organograma. Exame de cada parte de um todo, tendo em vista conhecer sua natureza, suas proporgoes, sua fungoes, suas relacées etc. (destaque nosso) (p. 91). Pois bem: analisar textos € procurar descobrir, entre outros pontos, seu esquema de composi¢ao; sua orientagdo tematica, seu propésito comunicativo; é procurar identificar suas partes cons- tituintes; as fungdes pretendidas para cada uma delas, as relacdes que guardam entre si e com elementos da situa¢ao, os efeitos de sentido decorrentes de escolhas lexicais e de recursos sintaticos. E procurar descobrir 0 conjunto de suas regularidades, daquilo que costuma ocorrer na sua producao e circulagao, apesar da imensa diversidade de géneros, propésitos, formatos, suportes em que eles podem acontecer. O exame de tais regularidades é que nos permite levantar expectativas e construir modelos de como os textos s4o construi- dos e funcionam. O conhecimento desses modelos é fundamental para a ampliacao de nossas competéncias comunicativas, uma vez que — insisto — somente nos comunicamos através de tex- tos, nem que eles tenham apenas uma palavra. Vale advertir que buscar descobrir essas regularidades tex- tuais é mais do que perguntar sobre “o que diz 0 autor”. E, além disso, perguntar como € dito 0 que é dito, com que recursos lexi- cais e gramaticais, com que estratégias discursivas, quando e por que é dito, para quem e para provocar que efeitos, implicita e ex- plicitamente. E muitissimo mais, ainda, que identificar as classes gramaticais de palavras, ou a funcdo sintatica de determinados termos, sobretudo quando isso é feito sem referéncia aos sentidos expressos no texto. Anélise de textos — fundamentos e pratices (IRANDETANGNES! Assim, 0 que as pessoas fazem, 0 que podem fazer com a lin- guagem — inevitavelmente, em textos — é que € a grande ques- tao. Em funcao disso é que existem as palavras, nado importam os nomes e as classificagées que tenham. 3.3 Com que finalidades se deve fazer a andlise de textos? Na terminologia escolar do ensino de portugués, tornou-se comum a expressao interpretagdo de texto, fruto de uma prati- ca de andlise que consta logo a seguir aos textos que compdem cada unidade do livro didatico, como ja referimos. Em geral, essa anilise é feita segundo uma espécie de roteiro, materializado em perguntas de diferentes espécies e finalidades. Nesses exercicios, é possivel encontrar de tudo: desde per- guntas de mera localizagao de informag6es explicitas — cujas res- postas sao de inteira obviedade —, até aquelas que, para serem respondidas, independem da leitura do texto. Além disso, é possi- vel encontrar também — sobretudo em manuais mais recentes — solicitagdes de atividades que exploram habilidades mais comple- xas de leitura, como, por exemplo, aquelas ligadas As estratégias de interpretacao por inferéncia ou por outro tipo de implicito. O fato de esses exercicios de interpretagdo constarem, pratica- mente, depois de todos os textos e a forma meio mecanica com que eles tém sido vivenciados provocaram uma espécie de desgaste da atividade, de maneira que os exercicios de interpretagdo passaram a significar uma atividade meio simplista de encontrar respostas para um conjunto de perguntas. As estratégias bem complexas de compreender um texto, de lograr alcangar o “miolo” de seus senti- dos e intengdes deixam, quase sempre, de ser desenvolvidas. Todos conhecemos a pratica tio comum nas escolas de “gramaticalizar” © texto, no sentido de toma-lo, simplesmente, como um conjunto de unidades gramaticais, cujas classes e fungGes precisam ser iden- tificadas. Por isso, parece-nos pertinente pensar um pouco sobre as finalidades de analisar textos. £ o que faremos a seguir. Em termos bem gerais, objetivamos promover o desenvol- vimento de diferentes competéncias comunicativas. Em termos mais especificos, objetivamos ampliar nossas capacidades de compreensao, nosso entendimento do que fazemos quando nos dispomos a processar as informagGes que ouvimos ou lemos. Em sintese, com a andlise de textos, pretendemos desenvolver nossa capacidade de perceber as propriedades, as estratégias, os meios, Os recursos, os efeitos, enfim, as regularidades implicadas no funcionamento da lingua em processos comunicativos de so- ciedades concretas, 0 que envolve a produgio e a circulacdo de todos os tipos de “textos-em-fungio”. A propria atividade de andlise — reiterada e consistente — é fundamental para desenvolver nossa capacidade de perceber, de enxergar, de identificar os fenédmenos ou os fatos que ocorrem nos textos. Evidentemente, nossas atividades de fala ou de escrita também ganham com a pratica da anilise, pois, por ela, passa- mos a entender melhor certos aspectos dos processos cognitivos, linguisticos, textuais e Ppragmaticos envolvidos em nossas interagdes verbais. Assim é que podemos propor, como fina- lidades da andlise em questao, o desenvolvi- mento de: * competéncias para a compreensio; * competéncias para a andlise e, meio indiretamente, * competéncias para os usos da fala e da escrita. Como se pode ver, os objetivos implica- dos na pratica da andlise de textos sao bem amplos e funcionais. Insisto: ultrapassam a descoberta de categorias gramaticais e sin- taticas, simplesmente?. Orientam-se, como apontei acima, para o desenvolvimento de diferentes competéncias. > Em meus livros, dou exemplos de algumas atividades de anélise de texto que se situam, exatamente, nesse patamar reduzido e simplis- ta de “apontar a classe gramati- cal, a fungao sintética, o nimero de silabas de uma palavra, ou sua classificagdo quanto a localizagao da silaba tonica”, Todo 0 empenho necessrio para o éxito do pro- cesso de compreensio do texto é esquecido. Nessas andlises, a gra- matica parece ser suficiente. Mar- cos Bagno (2009: 166-168) conclui sobre 0 que seria o ensino dessa gramética suficiente — que nao deve acontecer na escola — por oposicio a educacio linguistica, que deve preencher os objetivos de qualquer ensino de lingua. Sobre © que € educagao linguistica e seus desdobramentos, ver, no mesmo li- vro, p. 155-165; ver ainda Bortoni- Ricardo (2004), Analise de textos — {undamentos e praticas ATA TAES! De fato nao parece haver outro caminho senao o da com- peténcia. As exigéncias atuais, muito mais que noutras €pocas, recaem sobre pessoas capazes de atuarem socialmente, com versatilidade, com criatividade, com fluéncia, com desenvol- tura, com clareza e consisténcia, na discussdo, na andlise e na condugio das mais diferentes situagdes sociais — do espago familiar ao espago do trabalho. Isso desloca, necessariamente, os objetivos do ensino da lingua na direcdo da reflexao investi- gadora, da andlise dos usos sociais da lingua — escrita e falada, verbal e multimodal — e da aplicabilidade relevante do que se ensina, do que se aprende. Nessa perspectiva, cresce 0 significado do interesse pela ana- lise, pelas perguntas, pelas hipéteses, muito mais do que pelas respostas. Tivemos (ou, temos?) uma pratica pedagogica baseada em certezas irrefutaveis; sem sombra de dtividas. Nem sequer ad- mitiamos um depende: a resposta era sempre em termos de um sim ou de um nao categérico; um certo ou um errado definitivo. A finalidade da andlise, portanto, é promover esse estado de pergunta, de busca; esse querer ver, mais por dentro, a engre- nagem de funcionamento da linguagem. Nessa direcdo, nao ha outro jeito: vamos chegar ao texto. 3.4 Que textos analisar? Como resposta a essa pergunta, s6 nos cabe dizer: | todos os textos, de qualquer tipo ou género, de qualquer tamanho ou fungao, textos ] | verbais (orais ou escritos) e ndo verbais e textos multimodais (imagens, charges, | historias em quadrinhos, gralicos, tabelas, mapas) podem ser objeto de andlise. ] Evidentemente, a escolha desse material se prende a deter- minadas circunstancias, como, por exemplo, o tipo ou o género em estudo ou alguma particularidade relacionada a um deles. De qualquer forma, a motivagao da escolha deve ser, sobretudo, a “CAPITULO 3° Les envolvidas na analise di andlise de aspectos pertinentes 4 natureza, a funcao, a construgdo do texto. Vale, no entanto, apontar alguns cuidados que devem ser to- mados quanto a essa escolha do material a ser objeto de andlise. No que se refere a oralidade, deve ser de interesse da escola promover diferentes situagdes de interacgdo, com distintas finali- dades e destinadas a grupos variados de interlocutores (ora mui- tos, ora poucos), do mesmo ou de outros grupos. Na verdade, a escola deve assegurar ao aluno a convivéncia com a diversidade de intervengGes e de contextos da comunica¢ao oral publica, para que ele possa ultrapassar a simples oralidade da conversa infor- mal entre pares do mesmo grupo social. Nessa perspectiva, cabem as iniciativas para promover ati- vidades que ponham o aluno em contato real com géneros orais mais complexos e formais como: debate, semindrio, apresentagdo de trabalhos em grupo, defesa ou justificativa de pontos de vista, de propostas, exposicao de pontos teéricos ou de ideias, entrevis- ta, apresentacao de pessoas, de programas, de eventos etc. S40 situagdes que exploram nao apenas as competéncias do aluno para o planejamento e a conducao de um evento comunicativo como também as competéncias para a escuta e a participacao colaborativa e relevante em grupos. A anilise de textos orais deve ter, portanto, um largo espaco nas atividades de sala de aula. Em geral, a escola tem providen- ciado poucas oportunidades de reflexdo e de estudo a partir de atividades orais. A escola parece afinar com a impressao ingénua de muitos que imaginam ser a oralidade livre de qualquer coer- ¢4o e, portanto, nao requerer qualquer empenho de estudo ou aprimoramento. Em se tratando da andlise de materiais escritos, vale reco- mendar que os textos: * sejam adequados, quanto a tematica, 4 estruturagao lin- guistica e ao tamanho, a faixa etaria dos alunos; * remetam para diferentes contextos geograficos e cultu- rais, nao se limitando, portanto, a informagdes ou dados

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