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História dos índios na América:


abordagens interdisciplinares
e comparativas
Entrevista com Serge Gruzinski ∗

Entrevistadora: Maria Regina Celestino de Almeida

1. Os estudos sobre populações SG – A abordagem interdisciplinar


indígenas nas Américas têm se começa com os primeiros estudos
desenvolvido numa perspectiva sobre os índios do México e Peru. São
histórico-antropológica que tende estudos sobretudo etno-históricos,
a valorizar os índios como sujeitos e já a palavra pressupõe este tipo
ativos dos processos históricos nos de produção híbrida e de encontro
quais se inserem. Seu trabalho entre a história e a antropologia. No
sobre o México colonial insere-se México, por muito tempo, os índios
nessa linha de pesquisa, assim eram objeto da etno-história, a histó-
como os trabalhos apresentados ria era para os brancos. Uma referên-
neste dossiê. Como vê a importân- cia importante no caso do México é
cia da abordagem interdisciplinar Gonzalo Aguirre Beltrán, antropólogo
para esses estudos e, de forma que faz história. Aplica a teoria da
mais ampla, para a própria histó- aculturação (da antropologia cultu-
ria indígena das Américas? ral norte-americana) a um contexto

*
Diretor de Pesquisa da CNRS e Diretor de Estudos da École des Hautes Études em Sciences
Sociales – França.

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História dos índios na América: abordagens interdisciplinares e comparativas

histórico que cobre todo o período SG – Hoje, a linha de demarcação


colonial, o século XIX e a revolução já não se impõe pela hegemonia da
mexicana. Combina uma visão antro- história dos brancos, mas pela pre-
pológica com uma visão diacrônica do ocupação dos historiadores de pri-
passado. Para o Peru e para o México vilegiar as vozes dos índios, ou seja,
a etno-história foi a base dos estudos uma história que seria totalmente
sobre os índios. Nathan Wachtel é enfocada não só sobre o protagonis-
outro historiador que combinou co- mo dos índios, mas também sobre as
nhecimento profundo dos arquivos fontes escritas de origem indígena.
com o trabalho de campo intensivo, Essa visão radical rechaça o ponto de
cujo melhor resultado é o seu livro vista europeu e as fontes européias,
Le Retour des Ancêtres – Les Indiens contribuindo para manter separada a
Urus de Bolivie XXe-XVIe siècle. É um etno-história dos índios das histórias
estudo sobre os Urus, com os quais dos outros grupos que compunham
passou muito tempo no lago Titicaca. as sociedades coloniais.
No meu caso, quis estudar a história
dos índios do México porque isso 3. Considerando as significativas
me obrigava a combinar enfoques diferenças entre as diversas regi-
antropológicos e históricos. E posso ões da América em relação às po-
acrescentar também arqueológicos, pulações indígenas e seus contatos
já que muitos dos dados desses índios com as sociedades envolventes,
vêm de fontes arqueológicas. assim como a multiplicação de es-
tudos regionais que revelam exa-
2. De qualquer forma, parece que tamente essas diferenças, gostaria
mesmo no caso da história indíge- de colocar duas questões. Como
na dessas regiões, nas quais esses vê as possibilidades de estudos
estudos tiveram sempre aborda- comparativos entre as diferentes
regiões da América? Como vê a
gens interdisciplinares, mantinha-
importância de estudos de caso?
se, como você afirmou, uma certa
distinção entre uma etno-história
SG – A experiência ensina que é
dos índios e a história dos brancos. difícil promover estudos compara-
Isso ainda se mantém? Como vê tivos entre as diferentes regiões da
as possibilidades de superar esse América. Existem obras que reúnem
dualismo? contribuições da Meso-América e dos

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Serge Gruzinski Entrevista

Andes, mas são mais justaposições ríndio. Pensar que o indígena pode ser
que comparações entre elas, procu- também o africano, o filipino, o mar-
rando confrontá-las. Talvez seja mais roquino, Enfim, todos os que tiveram
fácil comparar processos. Por exem- de reagir às ofensivas comerciais, à
plo, seria muito interessante comparar cristianização, à dominação política
processos de mestiçagem entre índios dos ibéricos, fossem portugueses ou
mexicanos e andinos. Essa dificulda- espanhóis. Um ponto comum a todos
de reflete um problema muito mais esses grupos tem a ver com o processo
geral, que é a compartimentalização de ocidentalização e com as múltiplas
entre as disciplinas, as historiografias formas de responder a este processo.
e as antropologias latino-americanas. Nós não podemos desvincular as mo-
Outra possibilidade seria comparar dalidades de cristianização dos índios
situações que se assemelham nos do Brasil pelos jesuítas com as pratica-
processos de integração dos índios nas das em outras regiões. Para entender
nações do século XIX ou no processo as especificidades do Brasil é preciso
de redescobrimento dos índios na Ar- pensar como isso se passou na Índia
gentina ou no Brasil, no século XX e porque são processos sincrônicos que
princípios do XXI. Logo, seria melhor incluem o jogo duplo da colonização
comparar situações e processos, em política e religiosa. Ambos buscavam
vez de casos, zonas, etnias. Comparar a transformação do índio em cristão.
problemáticas, como o desapareci- Este tipo de comparação não é nada
mento e reaparecimento dos índios, arbitrário porque os mesmos jesuítas
por exemplo. circulavam em todas as partes do im-
pério português e até fora do Império.
4. Seus estudos recentes têm en- Por exemplo, o primeiro capelão da
fatizado a importância das abor- Igreja de N. Sra. de Guadalupe, perto
dagens globalizantes que, ao pro- da cidade do México, provinha de
mover as possíveis articulações Goa, onde antes tinha sido sacerdote.
entre eventos diversos em regiões Isso quer dizer que o mesmo homem
distantes, e até em tempos distin- transferiu sua experiência com os
tos, lhes conferem significados indígenas da Ásia para os indígenas
mais amplos e complexos. Como da América espanhola. As histórias
vê as possibilidades de articulação conectadas estudam conjuntos conti-
entre a história indígena e essa nentais ligadas por circulações, inter-
história globalizante? câmbios, experiências comuns.

SG – É importante não reduzir o


termo indígena ao seu sentido ame- Paris, 26 de maio de 2006

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