Você está na página 1de 21
Cédigo Criminal e Cédigo Criminoso subsidios e notas ao Cédigo Penal nazista de 1936 Christiano Fragoso! Sumério: I. Dedicatéria. I. Introdugao. III. Contextualizagaio histérica. IV. As diretrizes criminolé- gieas e politico-criminais nazistas, ¢ o projeto de Cédigo Penal alemtio de 1936, V. A parte geral do projeto. VI. A parte especial do projeto. I, Dedicatéria Vera Malaguti Batista ¢ Nilo Batista criaram ¢, durante anos, conduziram um dos mais bem-sucedidos cursos de mestrado em Ciéncias Penais do pafs, na Universidade Candido Mendes — UCAM, no Rio de Janeizo, Esse curso atraiu imimeros estadiosos de outros Estados, € até de outros paises, para a UCAM, formando dezenas de novos mestres, todos irmanados por uma abordagem critica das ciéncias criminais, proporcionada por um plantel de professores dle invulgar preparo té&- nico e de inspiragio democritica, As aullas no curso de mestrado em ciéncias penais na UCAM, pela transdisciplinariedade da abordagem (que mostrava que toda questo criminal € politica), constituiram para muitos (¢ inclusi- ye para mim) um yerdadeito © inspirador deshumbramento, uma viragem metodoldgica que deixou lembrangas indeléveis, condicionando a produgao intelectual e a atividade profissional dos alunos. Vera e Nilo puderam inspirar seus alunos a desafiar 0 senso comum tedrico e a pensar criticamente ‘a questo criminal, No mundo de hoje, em que prevalece o discurso tinico e antoritario, nfo € pouca coisa, Essa exitosa realizagao deve ser louvada, e este livro é um singelo, mas eloquente, preito de sgtatidao e de reconhecimento, por parte de seus sempre alunos, IL. Introdugao Este artigo de homenagem apresenta os tragos fundamentais do projeto de Cédigo Penal nazista de 1936. Q direito penal nazista é tema do qual ja se ocupou o professor Nilo Batista, em trabalho do inicio da década de 1980, no qual busquei a inspiragdo para o titulo deste artigo. Meu interesse por este palpitante tema também se deve ao professor Nilo Batista, que, em meados de 2009, me incumbiu de dar uma aula sobre a politica criminal nazista para os alunos do mestrado em Direito Penal da UERJ (o que eu viria, para jibilo meu, a repetir em meados deste ano de 2010). O texto deste projeto de CP de 1936 somente foi publicado recentemente, nao havendo, 20 que seja de meu conhecimento, qualquer trabalho que tenha apresentado, em lingua portuguesa, os Seus tragos fundamentais, E sumamente interessante 0 exame deste projeto, pois é facil perceber qudo profunda foi a influéncia da ideologia nazista na criagdo de novos tipos penais ¢ na reformula- G0 (em alguns casos, descatacterizante) de conceitos juridico-penais. Este projeto nao tem, lamentavelmente, apenas valor histérico; seu exame permite decifrar a politica criminal nazista e descobrir “que selo de origem tém algumas propostas politico-criminais do presente” ’ Uma das mais controvertidas propostas politico-criminais atuais é, sem diivida algu- <2Uly Ne 212> ina, @ instituigo de uma severa fratura Pie no direito penal: dt it irgersrafec, comin iia en © umn lado, um direito penal do cidadao , a © processuais penais tradicionais #40, ¢, de outro, um Direito Penal do tnimivo (Fen so gual eta a see 8 Tate Ainstituigdo de um Disco Penne) Ceindstrafreclt), no qual essas garantns inexistnne da concepgio controverinte nee Penal do Inimigo, defendida por Giinther Jakobs earns arte oh condone ngevéni i ‘ue haveria individuos que, por sua oposigio (seja renitenter ca, ada modalidade de conduta) ao sistema s sider pea a0 sistema social, devem ser ados na feeds a oa i considerados nao pesso Pes endl par alg, ai devendo) ser combatidos como inimigos do Estado. 6, inioagoa ni “0 tratados como seres humanos, mas apenas rf k : anos, Mas apenas como fontes de perigo, em virtucl ; No s . led Seguranga cognitiva do comportamento pessoal desses individuos. “um ‘ 0s. © Diteito Penal do Inimigo se desvia do diteito penal do edad, Particular, cujos caracteres bisicos seriam, como sintetiza Graci : criando um corpus punitivo Baru, ej cara ico Martin: (a) a antecipagao da punibili- Pas Permitiro alcance de atos preparatérios (sem a correlativa diminuigdo da eseala penal) ‘) uma de alidade a ’ pra rele sad absurd das penas, excessivamente majoradas; () a autodenominagato explicita vdlditine eine nt OH He combate a criminalidade do inimigo; e (A) uma considerivel resirieto de Bess ies riccessuals dos imputados etiquetados como inimigos.* Muitoz Conde anota que Frog a. nimigo se manifesta, ainda, com as seguintes estratégias: (a) uma identificagao dos destinatérios mediante forte movimento para o direito penal de autor; (b) uma imputagao juridica através conformecrtérios independentes da causalidad; (¢) uma minimizagio da agdo em beneficio da om , Sem que interesse o que o agente realmente faa, a ni ser 0 dever que tenhta violado; (@) uma constru, do dolo sobre a base do simples conhecimento (teoria do conhecimento), que lhe permite abareas campos antes considerados préprios da negligéncia; (¢) uma perda de contetilo material do bem juridico, com os consequentes processos de clonacdo que permitem uma nebulosa multiplicago de elos; (1) um cancelamento da exigéncia de lesividade conforme a multiplicagao de tipos de petigo sem perigo (perigo abstrato ou presumido); (g) uma lesio ao principio da legalidade mediante tipos confuusos e vagos: e (h) uma delegagao de fimgdo legislativa penal, sob o pretexto das chamadas leis penais em branco’ O direito penal alemao nazista ¢, certamente, o mais emblematico caso conereto de Direi- {0 Penal do Inimigo; no Projeto de CP de 1936, os exemplos disso sfio iniimeros. Os caracteres indicados por Gracia Martin c as estratégias elencadas por Muiioz Conde serio muitas vezes re- conhecidos nos dispositivos do projeto. René Ariel Dotti diz. abertamente que “o chamado Direito Penal do Inimigo é a ressurreigdo de uma concepedo nazista sobre o ser humano”$ E Jorge de Fi gueiredo Dias decreta: “esta concepedo ¢ de todo em todo inadlmissivel, logo por poder descambar em um direito penal do agente” “sob as formas mais agressivas que assumiu no Estado nacional- -socialista alem@o".’ Nao & por acaso que Carl Schmitt, certamente o mais proeminente porta-voz da cigneia juridica nazista,* é 0 tedrico do direito mais invocado por Giinther Jakobs, ao formular sua tirdnica proposta de Direito Penal do Inimigo. A diferenciagiio entre amigo e inimigo, que seria a distingao politica fundamental,’ é formulada por Carl Schmitt em 1932, ano anterior a ascens%o de Hitler ao poder, que ocorre em 30/1/1933. A fundamentagio do projeto de 1936 consignava que o “verdadeiro perturbador da paz, 0 inimigo, devia ser combatido com a arma do direito penal”, aderindo, expressamente, a um Direito Penal do Inimigo, Este projeto de Cédigo Penal nao se transformou em lei, nem foi instituido por de- creto (como, lis, era mais comum na época). Mas a lamentavel e sinistra atualidade de seu discurso ctiminolégico (ento explicito, ¢, hoje em dia, velado [e talvez, por isso, mais petigoso]) e de suas pro- postas politico-criminais (basta ver certos dispositivos vigentes e, principalmente, certos projetos de lei em tramitagzio no Congress Nacional) mostra que o exame do projeto de CP nazista pode ser bastante proficuo, para evidenciar a que resultados pode levar o autoritarismo no exercicio do poder punitivo. IIL. Contextual! Imediatamente anterior ao dominio nazista, a Republica de Weimar, que se estendeu desde o fim da Grande Guerra"! (em novembro de 1918) até a ascensiio de Hitler (em janeiro de 1933), foi ago historica 4213 um periodo bastante conturbado da historia alema, proprio nascimento da Repubblica jé se deu de Modo inusitado, A derrota da Alemanha na Grande Guerra (que, para a populagao, pareceu siibita), Sabileagdo ea fuga do Kaiser Willelm II, ¢ 0 medo de que os espartaquistas (chehados por Rosa de Luxemburgo ¢ por Karl Licbknecht) proclamassem uma repiblica sovietiea levou ¢ que, em 9/11/1918, o politico Philipp Scheidemann, do partido social-democrata, proclamasse, da janela do Reichstag, a Republica Alema.!? A rendigao na Grande Guerra e a accitagio do Tratado de Versalhes eram vistas como uma ttaledo ao povo. Pelo Tratado de Versalhes, assinado em 28/6/1919, a Alemanha perdia 13% de seu Eeilero, com 75% das jazidas de ferro e 25% das minas de carvao, A Alsécia-L orena era devolve fos Franceses e uma parte da Prissia passou a fazer parte da recém-criada Polonia, Nos termmo do Unlado, a Alemanha ainda era obrigada a pagar reparagdes que chegavam a 226 bithoes de marcos de ouro, "A Alemanha também seria excluida de participagto no cenirio inter nacional, como mostra © fato de que foi impedida de integrar a Sociedade das Nagdes (tambéin conhecida como Liga das Nagdes). Algumas semanas depois da assinatura do tratado, em 11/8/1919, Constituigao da nova Repiblica seria promulgada na cidade de Weimar (a cerca de 300 km a sudoeste de Berlim), pois Betlim parecia muito insegura, apds uma tentativa dos comunistas de tomar o poder, O elevaco montante das reparagdes de guerra, as despesas com a previdéncia social, os eustos de manutengdo clas vitvas e dos érffos de guerra, a enorme emissfo de papel-moeda (que, na Alema- nha, como em outros lugares, havia financiado a guerra) e a ocupagdo do Ruhr por franceses e belgas fm fins de 1922 causaram uma inflagao galopante, Na eclosto da guerra, 4,2 marcos valiam wn dolar; m janeiro cle 1920, a proporgio era de 64,8 para cada délar, em 1922, a colagao saltou para 17.972 marcos. Em 1923, a inflagdo atingiu o pice, queimando uma enorme parte da riqueza nacional Em agosto de 1924, os paises vencedores da guerra, percebendo que a Alemanha nfo tinha ondigdes de pagar as reparacées, engendraram um plano econdmieo (que passou a historia ‘como Plano Dawes) para viabilizar esses pagamentos. O plano previa a desoeupagio do Ruhr 0 parcela- Menlo das reparagdes, umn empréstimo de 800 milhdes de matcos & Alemanha, ¢a reorganizagito do Reichsbank sob a supervistio dos vencedores Embora submetida ao jugo dos veneedores, a Alemanha alcangou relativa estabilidade eco- uOmica em meados da déeada de 1920," principalmente aps a implantagdo do plano econdmico. Enire 1924 € 1929, a Alemanha viveria os anos dourados de Weimar (Goldene Zwanziger), que Netiam uma formidavel efervescéncia cultural. Pela atuagdo do Ministro de Relagdes Exteriores Gusfay Stresemann, a Alemanha melhoraria relagdes com outras nagdes (estabelecendo, p. ex., 0s Falados de Locamo) ¢ seria admitida, em 1926, na Sociedade das Nagies. Em 1925, Paul linden, burg, marechal da Grande Guerra, seria eleito presidente. Em 1927, a Alemanha atingiut o nivel de Produglo de antes da guerra ¢ retornou a um sistema de importagdes e exportacdes. Novas diffculdades econdmicas ¢ politicas comecariam em 1929. A dependéncia alema em telaglo economia americana fez com que © crack dla Bolsa de Nova York, em outubro daquele ano, se abatesse fortemente sobre a economia alemd. desemprego recrudesceu macigamente (passou de8,5%, em 1929, para 29,9%, em 1932), os saléios sofreram uma fortissima contragao e os pregos Sontinuaram a aumentar. A pobreza crescente se juntava um difundido senso de frustragao ¢ de falta deperspectivas, Politicamente, o presidente Hindenburg e seu entomo queriam por de lado a demo- Gracia parlamentare realizar uma reforma constitucional favordvel 4s antigas elites prussianas. Os chanceleres Briinning, von Papen e Schleicher ja vinham govemando sem o Reichstag, por meio de decretos emergenciais."* A crise econémica foi uma das causas fundamentais para 0 colapso de- Anitivo da repdiblica, pois, de um lado, ensejou uma radicalizagdo das massas, dispostas a tudo para Sairda anguistiante miséra, e, de outro, concedeu as classes conservadoras a oonsiao pata desferir o Bolpe definitivo no sistema de governo que havia se firmado em 1918 O partido nazista (Nationalsozialistische Deutsche Arberterpartei ~ NSDAP) havia surgido, am 24/2/1920, a partir de um outro partido (Deutsche Arbeiterpartei, fundado no ano anterior), Publicanco um programa de 25 pontos, que incluia a revogagao do tratado de Versalhes, a retirada 214> da nacionalidade alema aos judeus, o fortalecimento da comunidade do povo, € a estruturagao de um estado autoritério com controle da imprensa ¢ da literatura, Em 1921, Adolf Hitler passaria a chefiar o partido nazista. Em 1923, insuflados pela inflagdo daquela época ¢ pela ocupagao do Ruhr, 8 nazistas tentariam em Munique um golpe de Estado, que foi sufocado. Acusado de alta traigdo (Hochverrat) Hitler ficaria preso por apenas cerea de nove meses, sendo solto ao fim de 1924. Com as dificuldades econdmicas ¢ politicas a partir de 1929/1930, o partido nazista expe- rimentou grande crescimento. Com um eficientissimo uso da propaganda (que tratava a rendigio na guerra ea assinatura do tratado de Versalhes como uma punhalada nas costas do povo alemao), alindo a um discurso altamente nacionalista (que apontava os no arianos como bodes expiatérios, sendo os judeus apatridas sanguessugas) e & sittag&o econdmica causada pela Crise de 1929, os nazistas conseguiam granjear cada vez mais adeptos. Entre 1925 ¢ 1930, 0 niimero de membros do partido cresceu de 25 mil para 130 mil. A participagdo dos nazistas no Reichstag eresceria exponen cialmente: em 1928, apenas 2,8%; em setembro de 1930, ja tinham 18,3% (tornando-se 0 segundo maior partido, atrés apenas do SPD); em 1932, chegatiam a condigao de maior partido da Alemanka, obtendo 37,3% nas eleigdes de julho 33% nas eleigdes de setembro. ‘As elites prussianas (latifundidrios, industriais e militares), que apoiavam o presidente Hin- denburg, ¢ os nazistas tinham um inimigo comum: os comunistas. O partido comunista também vinha experimentando um crescimento, conquanto mais discreto, no Reichstag: em setembro de 1930, eles detinham 13,1%; em julho de 1932, 14,3%; e em setembro de 1932, chegariam a 16,9%, aproximando-se dos social-democratas (0 segundo partido). Havia, portanto, um grande receio, até pela instabilidade socioeconémica, de que os comunistas pudessem chegar ao poder. Imaginavam as elites prussianas que poderiam usar os nazistas em beneficio proprio, con- vencendo o presidente Hindenburg a convidar Hitler, em 30/1/1933, para o cargo de chaneeler. Foi, naquele momento, formado um gabinete misto, com politicos eonservadores ou ligados & lgreja (von Papen era vice-chanceler) e uma minoria de nazistas (p. ex., Hermann Goring). Os objetivos de Hitler, ao assumir a chancelatia, eram claros: (i) politicamente, um estado central forte (que depois deveria se tomar um autoritirio estado do Fihrer, um claro estado de po- licia, em que o que valia era a vontade do governante); (fi) economicamente, incentivar a retomada do crescimento; (iii) biopoliticamente, unificar e “purificar” a raga ariana e afastar os judeus; ¢ (iv) territorialmente, expandir as terras alemas, com a conquista de Lebensraum (espago vital) para & ‘Alemanha, Quando Hitler assume, 0s governistas, todavia, nfo tinham maioria no Parlamento (ti- ham 247 das 583 cadeiras), 0 que os obrigava a ter que buscar 0 apoio dos partidos do centro.!” Como veremos, Hitler iria atingir esses objetivos com uma velocidade estonteante. ‘A recuperagao econémica ocorreu de forma impressionantemente rapida, através de um pro- tecionismo estatal (que ja vinha desde a Repiblica de Weimar, mas $6 agora mostrava seus efeitos) © de uma habil politica monetiria, de Hjalmar Schachts, ministro da Fazenda e presidente do BC.Wesel diz que Hitler simplesmente teve sorte."* Posteriormente, a diregZio dos investimentos estatais para a militarizagao também teve efeitos positivos na economia: queda do desemprego (em 1932, havia seis milhdes de desempregados; em 1934, esse ntimero ja tinha caido & metade; e em 1939, havin pleno emprego) e ganho real nos salarios (entre 1933 € 1939, um aumento de 18%). Wesel diz que a visto geral era otimista, mas havia esqueletos no armério: Hitler investe muito em armamentos, desprezando 0 comércio exterior (0 que faz com que fique com poucas matérias- -primas, que ele busca depois com conquistas militares). Politicamente, ficaria claro, desde o inicio, que os comunistas no teriam vez. A maquina de repressio penal seria usada, desde o inicio, para perseguir politicamente e punir os comunistas ~ 0 que também era funcional para obter o controle do Parlamento, O incéndio do Reichstag (ocorrido em 27/2/1933) seria o pretexto para que, no dia seguinte, fosse editado, “para protegiio do povo ¢ do Estado”, um decreto terrivel,”, que (i) afastava diversos direitos fundamentais, (ii) centralizava 6 poder politico (em detrimento da autonomia das provincias [Léinder)), (ii) previa pena de morte para varios delitos do Cédigo Penal (tais como incéndio, alta traigao etc.), para a tentativa, a ins- 4215 tigagdio, a oferta, a aceitagio de oferta ¢ a combinagao de matar o presidente ou outro membro do governo do Reich, para a desordem piiblica ou a violagiio de domicilio (se praticadas com arma), ¢ para 0 sequestro politico; ¢ (iv) criava um crime de desobediéncia, para quem resistisse a cumprit ou violasse os decretos editados com base nessa lei (ou instigasse tais condutas). Uwe Wesel assegura que 0s campos de concentraco nazista comegaram logo apés esse decreto de 28/2/1933.” O incéndio do Reichstag foi considerado pelos nazistas, desde o inicio, como uma suble~ vagio comunista, Shirer nara que Goring, logo ao chegar ao local do incéndio, teria proclamado que aquilo se tratava de um crime comunista2" Nao h comprovagao cabal, mas muitos dizem que 0 incéndio do Reichstag teria sido armado por membros das forgas de seguranga do proprio partido nazista® para impressionar opinido piblica (pois, em 5/3/1933, realizat-se-iam novas cleigdes para o Parlamento alemao) ¢ para permitir repressio politica contra os comunistas, que, de fato, foi exercida brutalmente. No episédio do Reichstag, foi preso um jovem, Marinus van der Lubbe, holandés, ajudante de pedreito, com conviegdes comunistas, Deputados comunistas também foram presos, ¢ os nazistas insistiam na versio de que se tratava de uma sublevagiio comunista. O episddio, que, no minimo, os nazistas exploraram bem, impressionou o eleitorado e fez com que o partido nazista tivesse um re- sultado importante no pleito de 5/3/1933: 0 NSDAP passou a ter 44,5% das cadeiras do Parlamento (tinha antes 33,1%), e 0 partido comunista (PD) caiu para 12,5% (tinha antes 16,9%). Desde o inicio, os nazistas queriam a pena de morte para os acusados do incéndio do Rei- chstag (como j mostrava a “sentenga” de Gdring ao chegar ao local dos fatos). Ocorre que o CP vigente ao tempo do incéndio do previa a pena de morte para o crime, que 36 foi estabelecida pelo decreto do dia seguinte. Hitler exigia que este decreto fosse aplicado retroativamente ¢ tal questo foi, inclusive, objeto de uma reunido ministerial (em 7/3/1933, logo apés as eleigbes): nessa reunio, Hitler impés sua exigéncia, dizendo inclusive que iria falar pessoalmente com o presidente do Rei- chsgericht (o tribunal de ciipula, entao competente para o julgamento).”* Até 0 fim do més de margo, mais dois duros golpes na democracia ja claudicante: (i) ap6: a declaragiio, com base no decreto de 28/2/1933, de vacdncia das 81 cadeiras comunistas no Par- lamento, os nazistas conseguem aprovar no Poder Legislativo, em 24/3/1933, uma lei que confere plenos poderes ao governo (Erméichtigungsgeset2), permitindo-lhe, sem limitagao tematica, editar leis (inclusive para alterar a Constituigio) e firmar tratados intemacionais; e (ii) com base nessa Ermichtigungsgesetz, Hitler edita uma lei que permite que as penas instituidas pelo decreto de 28/2/1993 sejam aplicadas a fatos ocorridos entre 31/1/1933 e 27/2/1933. Estava instituida a dita~ dura, ¢ o primeiro ato era precisamente revogar o principio da irretroatividade da lei penal. Restava saber como o Reichsgericht iria se posicionar... Wesel diz que 0 decreto da retroatividade foi a pri- meira de uma série de derrotas do ministério da justiga na defesa de prineipios do estado de direito. Depois que este dique se rompeu, varias rupturas se seguiram.* proceso criminal pelo inegndio do Reichstag foi instaurado contra cinco acusados: além de van der Lubbe, foram acusados Ernst Torgler, lider do partido comunista, ¢ trés biilgaros, Dimitroff, Popoff ¢ Taneff, que trabalhavam no escritério ilegal da Internacional Comunista em Berlim. Nas investigagdes, haviam sido ouvidas mais de 500 testemunhas, formando 32 volumes de autos. O juiz que conduziu as investigagdes preliminares foi indicado pelo governo ¢ indeferia todos 08 requetimentos defensivos. As audiéncias no Reichsgericht comegaram em 21/9/1933 sob grande atengao internacional. Hitler exigia a condenagiio de todos ¢ havia tensilo sobre como o Tribunal iria reagit. Os réus eram mantidos algemados o tempo inteiro, mesmo durante as audiéneias; foi-lhes negado 0 direito de e colher seus prOprios advogados (que foram indicados pelo Tribunal). Nas audiéncias, ficou claro que Torgler ¢ os trés biilgaros eram inocentes. A sentenga saiu em 23/12/1933. O tribunal preferiu um caminho intermedidrio: van der Lubbe foi condenado a morte (como Hitler queria), mas os quatro corréus foram absolvidos (contra a vontade de Hitler).*Van der Lubbe foi guilhotinado poucos dias depois, em 10/1/1934.A absolvigdo dos quatro corréus, na visio dos nazistas, ia muito longe, 216> porque exclufa a teoria de uma conspirago comunista, Houve uma grita furiosa por parte dos na- zistas. O resultado apareceria logo depois: os quatros acusados absolvidos seriam submetidos, logo apés a decisiio, a uma prisio de protegaio (Schutzhafi), que era uma pris%io administrativa, contra a qual no cabia Habeas Corpus; os biilgaros foram logo deportados ¢ Torgler s6 foi solto em 1936, Em 24/4/1934 (quatro meses depois da sentenga), foi criado 0 Volksgerichthof: com sede em Berlim, passaria a ter competéncia para atuar em processos de alta traigdo, que era retirada do Reichsgeriicht, Logo depois viriam os ataques finais a0 ja moribundo Estado de Direito alemao. Em 14/7/1933, é editada lei que proclama que o partido nazista é 0 tinico partido da Alemanha (§ 1), ¢ criminaliza a tentativa de criagdo de outros partidos, com pena de priso de até 3 anos (§ 2) (Gesetz sgegen die Neubildung von Parteien). Em 30/1/1934, 6 editada uma lei que extingue as assembleias legislativas das provineias (§ 1), e demove as provincias a meras unidades administrativas do Reich, transferindo seus poderes para 0 Governo Federal (§ 2). Em 01/8/1934, com a preméneia da morte do presidente Hindenburg (que, doente, realmente faleceria no dia seguinte), Hitler, jé se denomi- nando Fithrer, baixa uma lei, unindo os cargos de presidente e de chanceler (§ 1). A partir dai, ele passa a ser chamado de Fiihrer e Reichskanzler ¢ a ter poder ilimitado. Ou seja, em apenas um ano € meio (entre fevereiro de 1933 e agosto de 1934), a Alemanha, apés todos esses ataques , passa de um pais com federagiio, com divistio de poderes e direitos fun- damentais (Rechtsstaat), a um estado de policia centralizado, sem direitos fundamentais, ¢ tendo, no cume, um lider (Fithrerstaat). Huber, autor do mais proeminente livro de direito constitucional da época, dizia que 0 poder de Hitler era “abrangente, totalmente livre e independemte, exclusive e ilimitado”2* Bstavam langadas as bases para que Hiller fizesse, de fato, tudo 0 que queria.. Desde 0 inicio do dominio nazista, passaram a ser destitufdos e perseguidos os professores de Universidades, os funcionérios piiblicos, os cientistas (p. ex. Einstein), os intelectuais (p. ex. ‘Thomas Mann ¢ Bertold Brecht) e, em geral, qualquer pessoa que detivesse posigao de poder ou proje¢ao, mas que fosse de origem judaica ou ndo se alinhasse a ideologia nazista. Dentre os pro- fessores de direito, intimeros foram sumariamente demitidos e forgados a emigrar: Herman Heller, Walter Jellinek, Hans Kelsen, Gerhard Leibholz e Hans Nawiasky sio alguns exemplos entre professores de direito constitucional e de teoria do direito; na area criminal, Gustav Radbruch, Ri chard Honig, Hermann Kantorowieze ans von Hentig. Os juristas nazistas, liderados por Hans Frank e Carl Schmitt, chegaram a realizar um vergonhoso congresso, nos dias 3 ¢ 4 de outubro de 1933, sobre “O judaismo na ciéncia do direito” (Das Judentum in der Rechtswissenschaft), com vistas a discutir modos de eliminar a influéncia dos judeus no direito, incitando que livros de juristas judeus nao fossem lidos No lugar dos professores judeus ou nfo alinhados ao regime nazista, deveriam ser colocados juristas que endossassem a ideologia nazista. Muitos docentes jovens, de cerca de 30 anos, foram, sob condigao de adequagio & ideologia nazista, arregimentados para substituir os professores cate- dréticos. Em Kiel, os nazistas montaram uma faculdade de direito que deveria servir de modelo para demais, sendo ali congregados os mais fervorosos defensores de uma “renovagiio” do direito ale- mio de acordo com ideologia nazista; essa fuculdade de Kiel, por sua ligagaio estreita com o regime nazista, chegou posteriormente a ser chamada “faculdade da tropa de choque” (Stosstruppfakultdi), € dela faziam parte, entre outros, Georg Dahm, Friedrich Schaffstein (direito penal), Karl Larenz (direito civil e filosofia do direito), Ernst Rudolf Huber (direito constitucional), Wolfgang Siebert (direito civil ¢ do trabalho) ¢ Karl Michaelis (direito civil). Muitos outros professores, de outras faculdades, também se converteram a ideologia nazista; na area criminal, Edmund Mezger é 0 exemplo mais eloquente.”” Os idedlogos nazistas, que pretendiam um estado fundado em conceitos raciais, tenderiam evidentemente a um approach biolégico do crime (tal approach, evidentemente, preexistia aos na- zistas, mas eles o radicalizaram), Mas os juristas nazistas eram, de inicio, hostis 4 criminologia, que era vista como a causa de uma suposta leniéncia da justiga criminal de Weimar; para eles, 0 interesse criminol6gico de entender a personalidade do criminoso teria minado a nogio de responsabilidade 4217 individual, comprometendo a defesa social.” Os crimin6logos nazistas, portanto, passaram a, de um lado, buscar dissociar a visto de que a criminologia estava ligada a falhas da justiga criminal de Wei, ‘mar ¢, de outro lado, a capitalizar em cima da predilego nazista pela visto biolégica da sociedad.” No primeiro intento, Exner defenderia, em estudo de 1931, que a tendéncia de leniéneia comerou nos anos 1880, muito antes do periodo de Weimar.” A segunda empreitada (i.c., ganhar 0 apoio nazista para estudos criminolégicos) teria que passar por explorar a tendéncia dos nazistas Fisio biolbgica da sociedade e sua empolgagio com a cugenia — isto, é claro, conducziria & pesquisa biolégico-criminal. A Bavétia era pioneira na realizagio de exames biologico-criminais, que Viers. tein, jé em setembro de 1933, sustentava que poderiam constituir um modelo para uma pesquisa biol6gica nacional para classficar a populagfo inteira de acordo com 0 seu valor genético, 0 que Constituiria fundamento para implementar-se uma abrangente politica eugenista.”" Wesel assegura que “nunca na Alemanka (como no periodo nazista] foram editadas tantas leis em to pouco tempo, que tornariam o direito penal e 0 processo penal em instrumentos do ‘error’. Visrias foram as leis penais editadas com 0 objetivo de habilitar poder punitivo contra ad. versarios politicos, sempre em termos terrivelmente vagos ¢ abertos. P. ex., um decreto de 21/3/33 criminalizava “quem, intencionalmente, faz uma afirmagao fatica, falsa ou altamente enganadora, que seja apta a prejudicar severamente o bem-estar do Reich ou de uma Land ou a reputacao do soverno do Reich ou do governo de uma Land, ou dos partidos ou associages que apoiem estes sovernos” (§ 3,1); a modalidade culposa também era punivel (§ 3,3). Werle diz que este artigo & © Primeiro exemplo marcante de uso dle meios penais para a protegdo da confianga na lideranga nazista; na pritica, este artigo era um instrumento para a luta contra manifestagdes oposicionistas ¢ cra muito usado cotidianamente.”* Muitas leis também foram editadas para proteger as instituigoes ¢ simbolos nazistas. Franz Gtirtner, ministro da Justia do Reich, ao comentar, no segundo semestre de 1935, as ideias que presidiam a “tenovagao” nazista do direito penal, dizia que trés leis, editadas naquecles Lltimos anos, realizavam as ideias fundamentais do novo Cédigo Penal. Eram elas as seguintes: (i) a lei contra criminosos habituais perigosos e sobre medidas de seguranga, de 24/11/1933; (ii) a lei de 24/4/1934, que deu nova redacao aos dispositivos sobre alta traigio (Hochverrat) e traigio & patria Candesverraty ¢ Gi) a lei de 28/6/1935, que permitiria a analogia em matéria penal. A estreita ligagao entre eugenia ¢ politica criminal ja se desenhava durante a Repiiblica de Weimar, ¢ seria muito explorada pelos nazistas, que, jé em 1933, editariam lei que permitia a esterili- zavao forcacla de pessoas com certas doengas hereditrias (lei de 14/7/1933). A lei contra criminosos hhabituais perigosos e sobre medidas de seguranga, de 24/11/1933, 6 vista como uma decorréncia dessa politica eugenista ¢ racial (e nao especificamente de politica criminal). Entre as medidas de seguranca, previa-se a castracdo foreada de criminosos sexuais petigosos (“Enmannung ge- Aahrlicher Sittlichkeitsvebrecher”, § 42a, 5), Ponto nuclear da nova lei cra a custédia de seguranga (Sicherungsverwahrung) para criminosos habituais (que, todavia, na esteira de v. Liszt, constava dlo Projeto Radbrueh, de 1922, ef. § 45), que era temporalmente ilimitada.” Esta lei também previa a imputabilidade diminuida (§ $1) ¢ introduzia um delito de cometimento de crime em estado de embriaguez, para punir as hipdteses de actio libera in causa (§ 3300) A lei de 24/4/1934 servia a uma organizagio, complementagtio ¢ agravamento das penas da alta traigao (Hochverrat) e da traigao a patria (Landesverrat).™ Equiparavam-se a tentativa ¢ a consumagao desses crimes; punia-se a preparagio desses delitos (p. ex., § 83); cominava-se frequen- femente a pena de morte (ora coativa, ora facultativamente); ¢ permitia a imposigdio da medida de Seguranga de Sicherungsverwahrung (custédia de seguranga), mesmo sem os pressupostos legais, bastando que a seguranca piiblica a exigisse (§ 93). A competéncia para o julgamento desses delitos passaria para o Volksgerichthof, que esta lei também criava (artigo III). A lei de 28/6/1935 permitia a analogia em matéria penal com base no sio sentimento do povo alemao (das gestmde Volksempfinden),e era vista como um meio necessétio de libertago do juiz das amarras do texto legal, com 0 intuito de obter a justica material no caso conercto. Giirtner dizia crer 218> que as eriticas (prineipalmente estrangeiras) 2 essa lei eram infundadas, pois ignorariam que o povo hemo tem, por sua visio de mundo, wm saudivel sentimento sobre licito ¢ 0 ilicito, e, portanto, ate soatimento deveria, no mais profundo sentido, ser a Fonte de toda 8 criagao juridica.” ae eendénias nazistas de pureza racial levariam, em 15/9/1935, durante wh CONE nae vista em Nuremberg, i edigio de duas leis terriveis (a Reichsbiirgenseser © & Blutschutzgesetz), que seriam 0 néicleo da legislagao racial nazista, A ‘Reichsbiirgergesetz trazia uma distingdo feita por Hitler no livro Mein Kampf entre memibro do estado (Staatsangehdrige) ¢ cidadao do Reich {Reichsbiirger): s6 era cidadao do Reich aquele detentor de sangue ‘alemao que provasse querer © star apto a servir fielmente a0 povo e 20 Reich alemaes (§2 D: 36 0 cidadao do Reich tinha direitos politicos de votar e ser votado (§ 2 111). A Bluischutzgesetz tinha importéncia central para o direito penal nazista: criminalizava-se o casamento (§§ Te 5 Dea relagao sextial extramatrimonial (§§ 2 € P11) entre alemies e judeus, sob o argumento da preservagio da pureza do sangue e da raga arianos. {As penas atingiam juceus ¢ alemaes. Certamente para impedir fraudes a lei, também era crime um judeu empregar mulher ariana com menos de 45 anos (88 5 © sil) vhedigdo de todas essas leis penais acontecia, todavia, paralelamene Ts trabalhos mais gerais de preparagio de um novo Cédigo Penal, Astia afirmava que os nazistas julgavam muito importante editar um novo Codigo Penal, inteiramente adequado a sua ideologia.” J4 no verdo europe de 1933, comegariam os trabalhos de reforma, Jevando a um projeto que, junto com um swaeio do ministro da Justiga prussiano Hans Kerrl (o Denkschrifi “Nationalsozialistisches Stra- freeht”, uma espécie de esqueleto do que deveria ser o novo CP), seria © material de trabalho da omissao que seria instituida, em 3/111933, sob a Presidéncia de Franz Giirtner, Dessa comis faziam parte, além de Giirtner e de Kerrl, dois seeretirios do Ministério da Justiga (Roland Freis~ ler e Franz Schlegelberger), virios professores (Eduard Koblrauschy Johannes Nagler, Georg Dahm, Edmund Mezger, Graf Gleispach, entre outros) ¢ cinco representin'et da pritica juridica, principalmente magistrados (entre outros, Reimer, Klee, Grau, Leimer, Lorenz ¢ Graf von der Gotz)" Dos trabalhos dessa comissio surgitia 0 projeto de Codigo Penal de 1936, que, em 1° de dezembro daquele ano, seria remetido a Hitler. IV. As diretrizes criminolégicas e politico-eriminais nazistas, ¢ 0 projeto de Cédigo Penal alemio de 1936 {A perquirigao das bases ideolégicas do nazismo servi para aclarar as fungBes que o sistema penal nazista exereeu. Essas fungdes seriam, evidentemente, sistematizadas no projeto de Codigo Pe- yeje 1936, A compreensio da politica criminal subjacente a0 projeto de CP Passi necessariamente, pelo entendimento da importaneia que os conceitos de sangue (Blut), de raga (Rasse), de comunidade tio povo (Volksgemeinschafi), ¢ de leafdade (Treu) tinkam no ambito da ideologia nazista Teusicamente, somente aqueles que tivessem sangue ariano eam membros da raga ariana, dita superior. E s6 0s membros da raga ariana eram eonsiderados membros da comunidade do povo (Volksgemeinschafi). Aqueles que nfo pertenciam & raga ariana cram considerados socialmente no- civos. Karl Larenz, “um dos mais importantes tedricos nazistas em direito civil”, esereveria, em 1935, que no & apenas por ser pessoa ou por ser dotado de razt0 geral absirata que se tem dircitos @ obrigagdes ¢ a possibilidade de estabelecer relagbes juriicas, mas St por ser membro de uma Comunidade, a comunidade do povo. Somente como membro da ‘comunidade do povo é que alguém tom honra, que merece atengo como membro do dieito (ou sujeito de direito).“Sé ¢ sujeito de diveito quem 6 membro da comunidade do povo, ¢ sb é membro ‘da comunidade do povo quem tent sangue alemao”. Larenz. diz.que “essa frase [a anterior] poderia fer colocada no lugar da capaci- lade juridica de “toda pessoa’, enunciada no § 1 do Cédigo Civil alemao, no pico de nossa ordem Juridica’, ¢ arremata “quem estd fora da comunidade do povo, também nao estd dentro do direito drnao & um sujeito de direito”.* A comunidade do povo era um organismo de esséncia de mesma espécie (finalmente, de mesma raga). 4219 Georg Dahm considerava que conceito de comunidade deveria condicionar a ciéneia penal em sua totalidade; crime e pena obtém seu sentido a partir da comunidade.““Gallas ensinava que a esséncia do crime é sua contrariedade a comunidade (Gemeinschafiswidrigheit)"; nessa ligio, Wer~ Ie vé 0 ponto central que congregava todas as teorias que pretendia exprimir 0 conceito material de crime na época nazista: crime como violagao de dever (Schaffstein), como traigéio (Dahm) ou como expressiio de uma atitude interna vil (Marxen), Mezger também dizia que “certamente 0 crime é violagio pessoal de dever”.** ‘A comunidade (Volksgemeinschaft) se funda na coesio interna de seus membros. Os direitos ¢ obrigagdes dos membros devem ser entendidos e condicionados a ligagdo com a comunidade. ‘Toda a comunidade se funda na lealdade (Trev) € na utilidade pessoal do companheiro.® A ideologia nazista nfo considerava 0 homem como individuo, mas apenas como companheiro do povo (Volks- -genossen), como membro da comunidade conereta (konkrete Gemeinschaft).® Isto levava a que os direitos individuais liberais fossem profundamente restringidos e as obrigagdes estendidas, sempre em prol da comunidade. Ao liberalismo foi contraposto um pensamento autoritério de direito penal. A protegiio da comunidade era o interesse primordial, que sobrepujava todos os direitos individuais O conceito de lealdade (Trew) & comunidade era de vital importincia para a politica criminal nazista; o direito penal protege a vida da comunidade € repele a violagaio da lealdade a0 proprio povo..' A criminalidade era um indicador de que 0 membro respective da comunidade do povo foi excluido da espécie, Pelo delito, o agente sairia da comunidade; o pertencimento & comunidade (uma relagdo viva e pessoal entre homens de mesma raga ¢ atitude interna) seria quebrado pelo crime. A natureza do crime estaria, antes, na culpa, na degeneraco da vontade e personalidade como um todo, na consciente remincia dos imputiveis contra a lei vital da comunidade, Dahm afirma que esse ¢ 0 pensamento bisico do novo direito penal da vontade, tal como 0 Denkschrift prussiano o desenvolve € como a comissio de Direito Penal adotou no projeto de 1936.**Assim, entende-se a afirmagao de Vormbaum de que 0 objetivo primario da politica criminal e do direito penal nazistas nao deveria ser reagir a fatos, mas sim erradiear, da comunidade, elementos perigosos para a comunidade.® Este tipo de consideragao leva a varias premissas na esfera politico-criminal: (f) a mera vio- laco do dever para com a comunidade prevalece sobre a violagio de bem juridico, assumindo a condigdo de substrato material do crime; (fi) 0 fato criminoso, como tal, é irrelevante, sendo sig- nificativo apenas como sinal da personalidade e da atitude interna do agente, descaracterizando 0 conceito de culpabilidade e privilegiando a periculosidade; (iii) se se quer determinar atitudes inter nas nocivas, entdo é disfuncional uma descrigo formal de condutas socialmente nocivas, fazendo com que o principio da legalidade fenega; (iv) o direito penal cambia, de um direito penal do ato (Zatstrafiecht) para um direito penal do autor (Taterstrafrecht), passando & construgao dos tipos a privilegiar aspectos da personalidade do agente, em detrimento de agdes externas; e (¥) a vontade criminosa desbanea o resultado como principal fator a ser apenado, sendo privilegiado um direito penal da vontade (Willensstrafrecht). Adiante, veremos quais foram algumas das consequéncias des- sas premissas politico-criminais. V.A parte geral do projeto ‘A importancia dos conceitos de raga e de comunidade do povo para a ideologi marcas clarissimas na parte geral do projeto. A primeira prova disto esti em que o sio sentim do povo alemio (gesundes Volksempfindem) tinha fungdes claramente normativas ¢ interpretativas era fonte do dircito ¢ era o parametro para definir o conteiido e a aplicagao do direito penal. O le~ gislador nao cria o direito, apenas 0 publica; o povo era a fonte do direito.** O projeto pressupunha 0 s6lido enraizamento do juiz na visio basica nazista da comunidade do povo. Na pritica, impunha- se que 0 juiz interpretasse a lei penal de acordo com a vontade da condugao do povo, que nio se expressava apenas na lei, mas também continuamente em outras manifestagdes.** O § 2 do Projeto dizia isto com clareza assustadora; “Guia da aplicagdo do direito sao os aniincios do Fithrer, Toda nazista deixa 0

Você também pode gostar