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http://dx.doi.org /10.

1590 /2238-38752019v9117

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Programa


de Pós-Graduação em Sociologia, Porto Alegre, RS, Brasil
jaymegomesnt@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-1561-9001

Jayme Gomes Neto I

A TEORIA SOCIAL NO SÉCULO XX:


NOVAS “VINTE LIÇÕES”

Joas, Hans & Knöbl, Wolfgang. (2017). Teoria Social:


vinte lições introdutórias. Tradução: Raquel Weiss.
Petrópolis: Vozes.

Teoria Social: vinte lições introdutórias te chega ao Brasil pela Editora Vozes. A
constitui um empreendimento inte- publicação, que conta com a tradução
lectual de larga escala, fruto de um de Raquel Weiss, põe agora ao alcance
trabalho de quase duas décadas prota- do público brasileiro um texto de pri-
gonizado por dois reconhecidos teóri- meira linha que promete cobrir uma
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cos e historiadores do pensamento importante lacuna editorial. Sua sofis-


social. Resultado de uma série de au- ticação conceitual, aliada à capacida-
las proferidas por ocasião da passa- de de síntese dos autores, servirá de
gem de Hans Joas pela Universidade ferramenta valiosa tanto a estudantes
de Chicago em 1985, o manuscrito vi- iniciantes como a pesquisadores e
ria a ser revisado e expandido nas dé- professores.
cadas seguintes com a ajuda de seu Em linhas gerais, o livro de Joas e
ex-aluno Wolfgang Knöbl, coautor do Knöbl pode ser considerado a contra-
livro. Publicado originalmente em parte europeia da obra homônima −
2004 − e traduzido para inglês em 2009 Twenty lectures − publicada por Jeffrey
− o texto logo se tornou uma referência Alexander em 1987. Se, por um lado, os
importante no campo da sociologia autores são menos centrados na “lógi-
teórica, constituindo, segundo Eisens- ca teórica” do que Alexander (1987) − o
tadt, “talvez a mais compreensiva e que faz com que sua reconstrução pa-
crítica análise do desenvolvimento da reça, às vezes, mais fragmentada ou
teoria social da segunda metade do mesmo dotada de motivações metate-
século XX”. Em 2017, a obra finalmen- óricas menos aparentes −, por outro,
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essa abertura vem acompanhada de A despeito de tais diferenças estru-


uma surpreendente amplitude de es- turais, Joas e Knöbl não deixam de se-
copo. Com quase o dobro de páginas, guir Alexander em alguns pontos im-
as vinte lições propostas por Joas e portantes. Eles compreendem, tal co-
Knöbl cobrem não só o desenvolvi- mo seu colega estadunidense, que a
mento da sociologia norte-americana tarefa científica é animada por um es-
no pós-Segunda Guerra Mundial, como forço que oscila permanentemente
era o caso de Alexander, mas também entre um “ambiente empírico” (obser-
os mais importantes desdobramentos vações) e um “ambiente metafísico”
da teoria social europeia. (pressupostos teóricos e metateóricos)
Nesse sentido, a estrutura geral do (p. 24) e que, no caso da teoria socioló-
livro pode ser dividida em duas grandes gica, esse movimento se direciona à
partes: nas primeiras oito lições, os au- resposta de três questões fundamen-
tores abarcam basicamente o mesmo tais: “o que é a ação social?”; “o que é
período analisado por Alexander, isto é, a ordem social?”; e “o que determina a
aquele da hegemonia parsoniana du- mudança social?” (p. 33). Eis o eixo de
rante os anos 1940 e 1950 (lições II, III e leitura do livro: as teorias analisadas
IV) e as respostas críticas que emergi- são confrontadas a todo momento
ram em solo americano nas décadas com essas três grandes questões.
seguintes, tais como o neoutilitarismo Estabelecida essa grade geral (lição
(lição V), o interacionismo simbólico I), os autores − mais uma vez em con-
(lição VI), a etnometodologia (lição VII) vergência com Alexander (1987: 22-
e a teoria do conflito (lição VIII); na se- 110) − reconhecem a figura de Talcott
gunda parte do livro, a reconstrução Parsons como ponto de partida privi-
volta-se para a teoria social europeia legiado da história sociológica do sé-
por meio da análise de algumas figuras culo XX, motivo pelo qual são dedica-
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centrais que emergem nos anos 1970 e das a ele três lições inteiras. A lição II
1980, tais como Habermas (lições IX e X), volta-se à contextualização e à análi-
Luhmann (lição XI), Giddens (lição XII) se da primeira grande obra de Parsons
e Bourdieu (lição XV), assim como para (1937), A estrutura da ação social. Nesse
uma série de desdobramentos ou tradi- livro fundador da sociologia moderna,
ções igualmente importantes naquele Parsons não apenas acabaria por esta-
contexto: estruturalismo e pós-estrutu- belecer o cânone da sociologia clássi-
ralismo (lição XIV), teorias antiestrutu- ca (Durkheim e Weber), mas também o
ralistas (lição XVI), teoria feminista famoso “quadro geral de referência”
(lição XVII), teóricos da (crise da) mo- da ação, contra e em referência ao
dernidade (lição XVIII) e neopragmatis- qual se elaborariam os principais de-
mo (lição XIX). Essa mudança de eixo da senvolvimentos da teoria sociológica
teoria sociológica − que se volta nova- subsequente.
mente para a Europa depois dos anos O esquema “Ação/Ordem/Mudança”
1970 − constitui, aliás, uma das teses acompanha as análises da obra parso-
centrais do livro. niana. O argumento da lição III mostra
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como a teoria da ação parsoniana, turalistas franceses (XVI). A respeito


pouco a pouco cede lugar a um funcio- destes últimos, aliás, é digno de nota
nalismo normativo no qual a ordem o fato de que autores por vezes margi-
sobrevém e, de certo modo, elimina-a nalizados em relação aos grandes de-
como elemento dotado de autonomia bates da teoria social (Catoriadis e
analítica. Na lição IV, os autores mos- Ricoeur) tenham sido resgatados de
tram como esse movimento desembo- maneira tão entusiasmada. Coadu-
ca em uma teoria dos sistemas que, a nam-se ainda com essa orientação
despeito de sua enorme sofisticação, geral da obra a não aparição de Robert
parece conceber a mudança social em Merton − talvez a ausência mais signi-
meio a um problemático evolucionis- ficativa do livro ao lado de Norbert
mo de fundo. No fim das contas, o ver- Elias −, as duras críticas feitas à cha-
dadeiro ponto alto da teoria parsonia- mada teoria da modernização (XIII) e
na teria sido sua teoria da ação, a par- o tratamento relativamente menos
tir do que a obra do sociólogo ameri- simpático e mais superficial dedicado
cano experimentaria uma espécie de a Luhmann (XI) quando comparado a
declínio sofisticado. seu concorrente alemão Habermas (IX
Nas lições subsequentes (V-VIII) Jo- e X). E mesmo este último, que apare-
as e Knöbl mostram como o neoutilita- ce como figura destacada que teria
rismo, o interacionismo simbólico, a fornecido talvez a maior contribuição
etnomedotologia e a teoria do conflito à teoria da ação desde Parsons − e não
identificam e respondem, embora sem- por acaso o único, além de Parsons, a
pre de maneira parcial, a certas antino- receber mais de uma lição −, é critica-
mias do pensamento parsoniano, seja do por ter cedido demasiadamente às
elaborando e reformulando seu esque- investidas de Luhmann, incorporando
ma da ação, seja identificando proble- a linguagem sistêmica de maneira
mas em suas análises macrossociológi- problemática em seu quadro teórico.
cas. No entanto, para além da funciona- Uma segunda dimensão estratégi-
lidade dessa narrativa, colocar as coi- ca da montagem feita por Joas e Knöbl,
sas desse modo parece estratégico aos que só se torna mais clara ao final do
olhos dos autores por pelo menos dois livro, diz respeito à tentativa de mos-
motivos − que só se evidenciam nas li- trar como a ação social, de Parsons a
ções subsequentes. Habermas, tem sido trabalhada num
Em primeiro lugar, a montagem mesmo paradigma (teleológico-racio-
histórica centrada na teoria da ação nal). Em sua primeira reformulação
parsoniana aparece como mote de moderna, por meio do “quadro geral
uma radical crítica ao funcionalismo − de referência”, Parsons teria chamado
compreendido como uma espécie de a atenção para os elementos normati-
anti-humanismo estéril; crítica que vos, em contraposição à dimensão pu-
reaparecerá várias vezes ao longo do ramente utilitária da ação. Esse movi-
livro, principalmente nas lições dedi- mento teria obrigado a uma reformu-
cadas a Giddens (XII) e aos antiestru- lação do utilitarismo clássico por par-
a teoria social no século xx: novas “vinte lições”

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te de todas as teorias que, de um mo- mais bem acabada, no interior da teo-


do ou outro, ainda buscavam insistir ria social contemporânea, no neoprag-
nos aspectos instrumentais e estraté- matismo (XIX) de Bernstein e, princi-
gicos da ação social. Segundo Joas e palmente, do próprio Joas.
Knöbl, esse foi o caso do neoutilitaris- Insistir nas motivações subjacen-
mo, da chamada teoria do conflito e, tes à reconstrução feita pelos autores,
para espanto de alguns, do próprio no entanto, não significa argumentar
Bourdieu (XV) que, a despeito de suas em nome de uma suposta imparciali-
críticas ao utilitarismo, não se encon- dade − algo que os autores não preten-
traria inteiramente livre dessa ten- dem e que sequer seria possível num
dência. Em todos esses casos, o que empreendimento desse tipo. Tal insis-
estaria em jogo seria sempre um parâ- tência é, antes, resultado da tentativa
metro de racionalidade que concebe- de fornecer a um projeto dessa magni-
ria a existência de metas (instrumen- tude uma unidade que de outro modo
tais ou normativas) preconcebidas (de seria de difícil visualização. Pois o pro-
maneira mais ou menos consciente). jeto de Joas e Knöbl é, de fato, resulta-
Por fim, até mesmo Habermas, que ex- do de um monumental esforço de sín-
pande a compreensão da ação de mo- tese, no qual são abarcadas com pro-
do a abarcar seu potencial dialógico- priedade, inteligência e erudição as
-comunicativo, não deixaria de partir, mais diversas correntes das ciências
na base de seu esquema, de um mode- sociais. Por fim, vale dizer que mesmo
lo de ação racional e teleológico. quando adentram correntes em rela-
Ao contar a história da teoria da ção às quais mantêm uma posição crí-
ação dessa forma, os autores preparam tica, os autores nunca cedem a redu-
o terreno para uma “reestruturação cionismos ou leituras apressadas, pro-
fundamental dos princípios subjacen- va de seriedade e honestidade intelec-
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tes à teoria social dominante” (p. 546) tual notáveis.


mediante um programa de pesquisa
capaz de focar sua dimensão propria- Recebida 5/4/2018 |
mente expressiva e criativa. Trata-se Aprovada 3/5/2018
de uma vertente subterrânea que en-
contra herdeiros no pragmatismo clás-
sico (tais como Mead e Dewey), notada-
mente ausentes do cânone parsonia-
no; que se vale de contribuições de
precursores e aliados discutidos ao
longo do livro, tais como Blumer, Gar-
finkel, Castoriadis e Touraine; que en-
contra no contexto filosófico contem-
porâneo uma aliança com as obras de
Rorty, Taylor e, sobretudo, Putnam; e
que, por fim, se realizaria de maneira
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Alexander, Jeffrey C. (1987). Twenty


lectures. Sociological theory since World
War II. New York: Columbia Univer-
sity Press.
Parsons, Talcott. (1937). The structure
of social action. New York: McGraw
Hill.

Jayme Gomes Neto é mestre em sociologia pela


Universidade de São Paulo (USP) e doutorando
em sociologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS).

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