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Capitulo! O Direito como Ordem Normativa e como Saber: Problemas Fundamentais Coordenagao: ANTONIO CARLOS DOS SANTOS Autoria: ANTONIO CARLOS DOS SANTOS, ANpbRE VENTURA E ELIONORA CarDoso*® 1. Direito, uma nogao polissémica “Estudo Direito” — responde um estudante a uns amigos que lhe per- guntavam o que fazia na UAL. “Tenho direito a defender os meus direitos que penso estarem a ser violados por praticas administrativas ilegais?” - interrogagao infelizmente frequente feita por alguém desesperado ao seu advogado, “O juiz, aplicando o direito vigente, condenou o Sr. Silva a uma indemnizagao a favor de um seu empregado” — informa o repérter no final de um julgamento. “Nao hd Direito...” - proclamou, a saida do Tribunal, o nosso Sr. Silva. “Odireito anglo-sax6nico é distinto do direito continenta?” - explica um professor nas suas aulas de Introdugao ao Direito. “Todo o homem luta com mais bravura pelos seus interesses do que pelos seus direitos” afirmou um dia © Embora partindo de textos individualizaveis (André Ventura, pontos 4 ¢ 7, Elionora Cardoso, pontos 5 e 6, A. Carlos dos Santos, os restantes), a producio deste capitulo é essencialmente um trabalho coletivo. INTRODUGAO AO DIREITO Napoledo Bonaparte. “Nenhum homem recebeu da natureza o direito de mandar nos outros” — escreveu 0 filésofo iluminista Diderot. Eis varias expressGes em que a palavra direito surge com sentidos muito diferentes (e outros ha, impréprios, como direitos aduaneiros), embora possam existir conexées entre esses sentidos. Assim, a frase “Estudo Dircito” significa “frequento 0 curso de direito para ter uma licenciatura que me dé habilitacdes académicas para aceder a profissées juridicas (advogado, juiz, notario, conservador, jurista, etc.). Mas ainda af, a expressao comporta uma certa ambiguidade. Direito tanto pode designar 0 conjunto de disciplinas juridicas a estudar a partir de uma metodologia especifica, como a propria realidade normativa (as nor- mas também fazem parte do real) a analisar (ou seja, o objeto de estudo propriamente dito). A questéo remete, deste modo, para uma outra: que objeto de estudo é este que da pelo nome de direito? Com que metodologia deverd ser estudado o direito para podermos afirmar que se trata de um estudo juridico? De facto, este ponto é importante pois é possivel estudar o mesmo objeto (0 “direito”) sob perspetivas nao juridicas muito diversas (econdmicas, sociolégicas, antropoldgicas, histéricas, etc.). S40, de facto, muitas as disciplinas nao juridicas que se debrugam sobre o direito, a partir de outras perspetivas, metodologias e técnicas. Por fim, uma questo muito debatida: sera o estudo juridico do direito um estudo cientifico? Por sua vez, quando alguém fala em defender os seus direitos suscita implicitamente a questo de saber qual o fundamento e a legitimidade desses direitos. Direitos previstos em Icis, incluindo na lei fundamental, a Constituigio? Direitos da pessoa enquanto cidada, enquanto contribuinte, enquanto trabalhador ou trabalhadora dependente, enquanto consumi- dor ou consumidora, enquanto pai, mae ou crianga? Direitos inerentes ao homem, a natureza ou 4 razao humana? E tém os animais direitos? Quando se fala de aplicagao do direito, a expressdo remete essencial- mente para o ordenamento juridico em vigor num certo territério (a ordem juridica), a concretizar, apés interpretagao, por um érgao (em regra) judi- cial competente para 0 efeito. Isto é, para a visio mais comum de direito que a faz equivaler as leis, aos cédigos, aos diplomas de origem estatal ou que o Estado recebe como seus. J& quando dizemos “Nao ha direito!”, queremos dizer que nao ha justica (a questao do direito injusto) ou que, num certo caso concreto, nao foi feita justia. Podem até ter sido observadas pelo julgador, no caso sub judice, a lei 18 © DIREITO COMO ORDEM NORMATIVA E COMO SABER: PROBLEMAS FUNDAMENTAIS eas metodologias de interpretagao ¢ aplicagao das leis, mas é a propria lei que se afigura como injusta, aos olhos do cidadao que perde o litigio, ou de forma mais ampla, aos olhos de grupos de cidadaos, de um grupo social ou, de forma global e como situagao limite, aos olhos da comunidade em geral. Quando comparamos o direito anglo-saxénico com o direito romano- -germanico referimo-nos a distintas familias de ordens juridicas. Muito embora atualmente essas familias existam em formag6es socioeconémicas idénticas (v. g., a sociedade global inglesa nfo é substancialmente distinta da escocesa) ou similares, esses direitos distinguem-se pela importancia atribuida, no primeiro caso, ao costume (0 peso da tradicao) e as decisées jurisprudenciais (a regra do precedente judiciario) e, no segundo, a lei em sentido amplo como expresso da vontade dos cidadaos, ponto que implica a consagracao de um regime democritico. Mais complexas sao as frases de Napoledo e de Diderot. A primeira remete para a contraposicio entre direitos e interesses, privilegiando, num assomo de realpolitik, estes perante aqueles. Veremos que a conside- rac4o dos interesses pelo direito é uma pedra de toque de juristas como Rudolf von Jhering (1812-1892) e Philipp Heck (1858-1943), defensores da chamada “jurisprudéncia dos interesses”. A segunda indica-nos que a relacdo assimétrica entre o direito de mandar ¢ o dever de obediéncia nao tem origem direta na natureza, mas no tecido social, em particular mediante a juridificagao, a positivagio dessa relacao. Assim ocorre, por exemplo, em todos os casos em que na sociedade estamos perante a juri- dificagao de uma relacao de poder. Essa juridificagao possui as duas faces de Janus: legitima e limita ao mesmo tempo as relacGes de poder (politico, laboral, de género, familiar, etc). Subjacente 4 expressao de Diderot esta a convicgao, proveniente do iluminismo, que, de acordo com a natureza, os homens nascem livres e iguais. Note-se que, em muitos dos casos explicitados, ressalta uma primeira nogao de direito, que é também (em parte) a do senso comum: 0 direito como um conjunto de normas (englobando principios e regras) existentes num determinado tempo ¢ espago que devem ser observadas pelos cida- daos, pelo conjunto dos grupos, pela sociedade global, pois que tal conjunto exprime, nao 0 que é, o ser (Sein), mas 0 que deve ser (Sollen). Como bem nota Saraiva (2009: 13), esta nogao é também aquela que decorre da ctimo- logia dos varios termos que designam o direito: “O vocabulario portugués direito - do mesmo modo que o francés droit, o inglés right, o alemao Recht 1» INTRODUGAO AO DIREITO ~ tem a sua primitiva origem na raiz reg, que traduz a ideia de movimento em linha reta”, E acrescenta: “Dircito seria pois, segundo o elemento eti- molégico, o que é conforme linha reta, o que nao apresenta desvio em relacdo a determinada linha ideal, a qual exprime o que deve ser.” Isto nao significa necessariamente que o mundo do ser e do dever ser sejam absolu- tamente distintos ou mesmo irremediavelmente contrapostos. Existe uma certa tensfo e uma influéncia reciproca entre estes dois mundos. Pode, contudo, quanto a nés retirar-se uma primeira conclusio, subli- nhada, entre outros, por R, Siches (1961: 153 e ss.): uma norma juridica,em si mesma, nao é verdadeira nem falsa. Ela pode existir ou no e, existindo, ser valida ou invdlida ou, consoante as perspetivas de anilise, ser conside- rada como mais ou menos justa, correta, util, adequada, praticavel, eficiente ou eficaz. Pode ser observada ou violada, sem com isso deixar de ser uma norma juridica. No limite, porém, pode ser letra morta ou cair em desuso. Do mesmo modo, a linguagem juridica, podendo fazé-lo, nao tem pretensoes de descrever 0 ser. Um animal para o direito é visto, antes de tudo, como uma coisa (tal como 0 era 0 escravo), isto é, como objeto de negécios (sé recentemente se fala dos direitos dos animais), um filho bio- légico mas ilegitimo, nascido na constancia do matriménio, pode ser visto como filho do marido e¢ nao do pai natural, uma igreja ou um sindicato podem ser vistos, para o direito da concorréncia, como empresas, alguém desaparecido, mas ainda vivo, pode ser considerado juridicamente como morto (0 romeiro do Frei Luis de Sousa), ¢ os exemplos poderiam continuar. O direito usa frequentemente ficgdes, conceitos indeterminados (bom pai de familia, distorcéo de concorréncia, etc.), recorre mesmo a mitos (por exemplo, a separacio de poderes) como forma de facilitar a interpretacio das normas, concedendo alguma flexibilidade (uma flexibilidade contida, nao arbitraria) na sua aplicagao. Muitas vezes os conceitos variam com 0 contexto ou segundo o ramo de direito, pois nao tém natureza ontoldgica, mas sim natureza funcional. Isto é: t¢m por finalidade primeira prevenir ou resolver problemas ou litigios. 2. As experiéncias juridicas Quando se pergunta aos alunos do primeiro ano da licenciatura em Direito se jé tiveram alguma experiéncia juridica a resposta é, em regra, 20

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