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UNIrevista - Vol.

1, n° 3 : (julho 2006) ISSN 1809-4651

Cinema brasileiro contemporâneo: os embates


políticos na “patrimonialização”

do cinema pós-EMBRAFILME

Pedro Vinicius Asterito Lapera


plapera@gmail.com
UFF, RJ

Resumo
O artigo visa analisar os discursos em torno da produção cinematográfica a partir de 1990. Partindo dos conceitos
de “patrimonialização” e de “monumentalização”, pretende-se inquirir a respeito das imagens alçadas à categoria
de patrimônio no cinema nacional e das correntes de pensamento percebidas pela crítica contemporânea como “a
tradição” do pensamento cinematográfico brasileiro.

Palavras-chave: Cinema pós-EMBRAFILME, patrimônio, nação.

Mergulhando do cais (ou caos?) Collor na história do cinema brasileiro:


por uma “introdução” ao cinema brasileiro contemporâneo

Cinema é imagem, tudo bem. Mas eu acho que a palavra é um patrimônio; aliás, a linguagem... A
primeira formulação do ser humano foi a linguagem como organização do caos.1

Além da palavra, podemos considerar também a imagem enquanto patrimônio. “Nada nos é estrangeiro,

pois tudo o é”. A já clássica asserção de Paulo Emílio Salles Gomes a respeito da nossa condição cultural

funciona, aqui, como uma ótima introdução ao estudo do cinema pós-EMBRAFILME, uma vez que ela reflete

a busca constante realizada depois dos embates dos anos 50 e 60: a afirmação da nação brasileira e de seu
povo enquanto fonte temática, em contraposição à gigante “Roliude” (parafraseando Glauber Rocha) e seu
cinema de puro entretenimento.

O cinema brasileiro contemporâneo não poderia ser diferente. Analisado constantemente a partir de

uma perspectiva dual, na qual se alinham os adeptos de um neo-liberalismo que dominou os debates sobre

economia política após a irresistível ascensão de Fernando Collor à Presidência da República, de um lado, e
os investigadores e divulgadores de uma identidade nacional ou regional que apóiam um cinema de cunho

autoral e de “pesquisa de linguagem”, de outro, pode-se afirmar que existe nele um desejo de

“patrimonialização”. Isto é, em ambos os lados, faz-se o uso de um discurso que remete aos anseios,
dúvidas e fracassos ligados a uma história do cinema nacional e a paradigmas de cinema do mesmo.

1
Ruy Guerra, em entrevista concedida a José Carlos Avellar, Geraldo Sarno e Sérgio Sanz, publicada em Cinemais 21
(jan/fev 2000).
1
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Iniciemos pela indagação a respeito da utilização da categoria patrimônio e da sua possível aplicação

na área de estudos cinematográficos. Dentre os vários significados da palavra enumerados por José
Reginaldo Gonçalves2, dois são interessantes de serem aqui retomados: patrimônio cultural e patrimônio

imaterial, sobretudo o último.

“Dentro [do patrimônio imaterial] estão: lugares, festas, religiões, formas de medicina popular,
musica, dança, culinária, técnicas, etc. Como sugere o próprio termo, a ênfase recai menos nos

aspectos materiais e mais nos aspectos ideais e valorativos dessas formas de vida. Diferentemente
das concepções tradicionais, não se propõe “tombar” os bens listados nesse patrimônio. A proposta é

no sentido de se “registrar” essas práticas e representações e de se fazer um acompanhamento para


verificar sua permanência e transformações”3.

O desenvolvimento deste discurso, de certo modo, também encontra seus efeitos na área dos Cinema

Studies, o que pode ser constatado, em princípio, na relevância das histórias dos cinemas nacionais e na

preocupação de se ligar o processo de produção, exibição e recepção cinematográfica às realidades sócio-


econômicas de cada país/região.

Chegando ao cinema brasileiro contemporâneo, é possível estabelecermos indagações que poderão

nortear nossas abordagens iniciais: a) como se deu o processo histórico de transformação do cinema

brasileiro em patrimônio?; b) como os cineastas de hoje revitalizam o paradigma da “identidade nacional”?;

c) de que modo a crítica cinematográfica atualiza os discursos em torno da “patrimonialização” do cinema

brasileiro?; d) de que modo a nomenclatura “Retomada” define o tratamento à imagem do Brasil pelo
cinema atual?

A PATRIMONIALIZAÇÃO DO CINEMA NO DISCURSO: DIMENSÕES


MATERIAIS E IMATERIAIS NA PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA
AUDIOVISUAL BRASILEIRA E NA SUA ATUALIZAÇÃO.

É corriqueiro definirmos patrimônio em relação a uma nação ou qualquer outra forma de organização social

ou política (tribo; clã; família; instituições/ etc). Aliás, Huyssen, em seu texto Escape from Amnesia: The
museum as mass medium4, detectou corretamente que o projeto de modernidade é impensável sem a figura

do museu, sendo que a “sensibilidade museológica” seria a radicalização do anseio moderno de preservação

e de ligação com um passado, conduzindo ao seio das relações sociais experiências como moda “retrô”,
literatura biográfica, restaurações de sítios históricos; ao que o cinema certamente não ficaria imune, com

alguns de seus gêneros marcadamente históricos ou datados (western; filme noir; épico; romance histórico;
etc) e no sucesso da recepção destes por um público ávido por reconstituições históricas.

Para continuarmos nossa breve análise, será preciso limitarmos e definirmos os usos de duas

palavras - “patrimonialização” e “monumentalização” - a fim de melhor segmentarmos as estratégias

discursivas do cinema brasileiro contemporâneo. Entendemos por patrimonialização toda tentativa de

2
Cf: GONÇALVES, José Reginaldo. O patrimônio enquanto categoria de pensamento. Versão apresentada na 26a. Reunião
Anual da ANPOCS, Caxambu, 2002.
3
Op. cit., pág. 4-5.
4
In: HUYSSEN, Andreas. Twilight Memories: Marking Time in a Culture of Amnesia. New York and London, Routledge,
1995.
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incorporar algum personagem ou temática a uma meta-narrativa (normalmente de cunho histórico), seja

pela via da retórica, da preservação stricto sensu (incorporação de filmes, livros, artigos de jornais e outras
fontes ao acervo de cinematecas ou instituições ligadas ao cinema) ou, ainda da representação fílmica de

aspectos de uma realidade próxima de se tornar patrimônio; por sua vez, a monumentalização é tida aqui
como uma deturpação da patrimonialização (sendo que, no cinema, isso ocorre, via de regra, pela eleição

radical de cânones artísticos e estilísticos e de “idades de ouro” ou “períodos áureos” do cinema), visto que
esta implica o ostracismo de vastos períodos históricos e de outros realizadores não canonizados e, por
conseguinte, a obliteração da dimensão política deste processo.

5
Richard Handler define os três aspectos de significação do patrimônio: a) antiguidade; b)

propriedade; e c) coletividade. Sendo o cinema brasileiro contemporâneo, como seu nome já diz, algo que

vivenciamos no quotidiano e, portanto, difícil de ser isolado temporal e espacialmente, assumimos a

dificuldade de enumerar todas as possibilidades de patrimonialização contidas no mesmo. Almejando à


superação desta dificuldade, é preciso explanar que podemos somente tentar encontrar vestígios desse

processo, não sendo possível afirmar categoricamente que filmes irão de fato fazer parte do “panteão” do
cinema brasileiro pós-EMBRAFILME.

A lógica do patrimônio encontra ecos na reflexão de Gopal Balakrishnan a respeito da imaginação


nacional6. Ao relatar que a nação é constituída através de uma tensão entre secularidade e perpetuidade, a

elaboração de um patrimônio passa a ser um processo político no qual as influências da primeira terão
desdobramentos na segunda. Desse modo, é possível indagar: como o discurso de hoje assume seu caráter

político no sentido de eleger que deve fazer parte ou não da história do cinema brasileiro? Mais
explicitamente, quem determina o que deve fazer parte desta? Com que finalidades?

Aliada a esses questionamentos, a inquirição de Katherine Verdery sobre o conceito de nação pode
nos ser útil para melhor abordar os discursos sobre os filmes e o cinema brasileiros:

“Considero nação, antropologicamente, como um operador básico num vasto sistema de

classificação social. Os sistemas de classificação social não fazem apenas classificar; na forma
institucionalizada, também estabelecem as bases da autoridade e da legitimidade através das

categorias que estipulam; fazem suas categorias parecerem naturais e socialmente reais”( VERDERY,
Rio de Janeiro, Contraponto, 2000, pág. 239).

Anos 50-60: a fornalha intelectual e as faíscas temporais...

Em primeiro lugar, faz-se necessária a pergunta: por que voltar a esses tempos em um trabalho sobre

cinema brasileiro contemporâneo? A resposta é quase imediata: foi neles em que se traçou boa parte das

discussões ora empreendidas na arena crítica, acadêmica e institucional. A urgência de se definir o que é um

filme “brasileiro”; qual o papel das instituições relacionadas a este; que modelo econômico poderia viabilizá-

5
Cf: HANDLER, Richard. On having a culture: Nationalism and the Preservation of Quebec’s Patrimoine. In: STOCKING JR.,
George W. (org). Objects and Others: Essays on Museum and Material Culture. Wisconsin, The University of Wisconsin
Press, ?
6
BALAKRISHNAN, Gopal (org). A Imaginação nacional. In: Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro, Contraponto,
2000, pág. 209-225.
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lo; que movimentos seriam capazes de projetá-lo para platéias nacionais e internacionais (a velha questão

do “público”), ganhou força nos congressos de cinema realizados, em sua maioria, em São Paulo e no Rio de
Janeiro, ao longo da década de 50, seguindo uma orientação ideológica à esquerda.

O primeiro grande esforço metodológico de patrimonializar e historicizar o cinema brasileiro partiu

de Alex Viany, em seu livro Introdução ao Cinema Brasileiro. Fruto de um desejo de uma “visão de
conjunto”7, sintomática de sua atividade de jornalista e de seus embates com críticos como Moniz Viana,

Almeida Salles, Rubem Biáfora e J.D. Duarte, contrapunha-se ao paradigma hollywoodiano, alinhando-se aos
que pregavam a necessidade de o filme brasileiro representar a realidade nacional. Lembrando que o livro

foi lançado em uma época em que o cinema ainda não havia alcançado sua legitimação cultural (visto que,
em meados da década de 50, ainda havia a discussão do status de arte do cinema nas páginas de revistas

como Cahiers du cinéma, Positif, na França, sendo que o debate será conduzido no Brasil através de figuras

como o próprio Viany, P.E. Salles Gomes, Salvyano Cavalcanti de Paiva, Alinor Azevedo, Nelson Pereira dos
Santos; etc), é importante frisar que a construção de uma tradição na filmografia nacional era condição

retórica sine qua non da inserção do cinema no panorama artístico nacional e, portanto, digno das atenções

do Estado e dos acadêmicos (no segundo caso, os estudos cinematográficos, no Brasil, ganham força em
fins da década de 60, ao mesmo tempo em que se criam cursos de comunicação nas universidades públicas).

E que tradição constituída é esta? Nas palavras de Arthur Autran:

“Além do nacionalismo, entra em cena a cultura popular, tendo no samba um de seus

representantes máximos. (...) Alex Viany, na constituição da sua narrativa histórica, inspirado por

Georges Sadoul, utilizou-se de dois eixos principais: um que historiciza a falta de industrialização do
cinema brasileiro e outro no qual indica a formação de um cânone artístico”( Op. cit., pág. 200).

Dotado de uma visão “essencialista” da identidade brasileira, enumera o que deveria ser considerado ou não
um filme brasileiro de acordo com critérios objetivos e definidos a priori: diretor brasileiro ou há muito

residente no Brasil; falta da influência de gêneros do cinema norte-americano; temática ligada à realidade
nacional; atores brasileiros; dentre outros.

Com o advento do Cinema Novo, radicalizaram-se as tendências já anunciadas na formação de uma


historiografia do cinema brasileiro, sendo esse movimento sintetizado na publicação, em 1963, da Revisão

Crítica do Cinema Brasileiro empreendida por Glauber Rocha. Eis o início da monumentalização da figura de

Humberto Mauro, alçado à categoria de “Pai” do cinema tupiniquim e a tentativa de ostracismo de figuras

como Anselmo Duarte, Walter Hugo Khouri e Alberto Cavalcanti, simbolizando projetos incompatíveis com a
retórica cinemanovista de um cinema genuinamente brasileiro, imerso no imaginário popular e tecnicamente

“imperfeito” (aliás, fato já elogiado por Viany e aqui levado aos extremos por Glauber). Nem mesmo Mário

Peixoto saiu ileso, visto que sua postura “artista na torre de marfim” não atraía a simpatia do autor e sua
relutância ante o trabalho de restauração de Limite era identificada a um artista pedante e “alienado”.

Sobre as dificuldades técnicas, percebidas como um fator positivo por esse movimento, é

interessante contrastar com a postura de Khouri, que via nelas algo nefasto ao desenvolvimento do cinema

7
Expressão do próprio autor. In: AUTRAN, Arthur. Alex Viany: crítico e historiador. São Paulo, Perspectiva, 2003.
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nacional, sendo este fato lembrado por Fernão Ramos em seu texto Os novos rumos do cinema brasileiro
(1955-1970) 8 . Como veremos posteriormente, o debate a respeito do cinema brasileiro contemporâneo

encontra suas origens no embate entre a decadência do modelo Vera Cruz e sua leitura pelo Cinema Novo

como algo “estrangeiro”, que desconhecia a realidade nacional e de seu cinema e que, portanto, se mostrou
uma tentativa malograda de industrializar o cinema no Brasil.

Cinema brasileiro contemporâneo versus “Retomada”: uma questão de


nomenclatura?

Corroborando o pensamento da epígrafe, acreditamos que as palavras carregam o peso de seus significados

originais, sendo passíveis, portanto, de se tornarem um patrimônio. À época do lançamento de Carlota

Joaquina, princesa do Brasil, de Carla Camurati, era comum referir-se ao mesmo enquanto a retomada da
produção do cinema brasileiro, sendo alçado à categoria de “período” atual do cinema brasileiro.

Em virtude do “trauma” provocado na classe cinematográfica pela extinção, literalmente “da noite

pro dia”, de instituições que já vinham enfrentando crises internas desde meados da década de 80, tende-se

a relegar os cinco anos “tenebrosos” (1990-1994) às notas de rodapé ou a pequenas observações, sendo a
fala de Hernadez bastante sintomática:

“Mais de uma década se passou desde o desastre “collorido” que se abateu sobre o cinema brasileiro,
desmantelando toda a organização existente, as relações ainda incipientes duramente construídas no

exterior e a capacidade desenvolvida de administrar, controlar e fiscalizar uma atividade que


movimenta milhões de reais.

O setor cinematográfico, durante todos esses anos, foi alimentando seu difícil renascimento, graças
às leis de incentivo criadas e ao esforço que o Ministério da Cultura fez para suprir a falta dos
organismos vitais de controle da atividade”( HERNANDEZ, 2001, pág. 50).

Mesmo assim, a produtora deixa claro que existiu atividade cinematográfica nesses anos. Quais as

implicações políticas de se colocar o termo “Retomada” em voga? Em primeiro lugar, privilegia-se, mais uma
vez, a produção, em detrimento de outros aspectos tão importantes quanto a mesma: instituições

governamentais; exibição; distribuição; etc. Além disso, a recepção banal do termo esconde um aspecto que

poderia ajudar na inserção do cinema brasileiro dentro do panorama político e econômico do Estado pós-

ditadura: a vitória das concepções neoliberais (marcadamente ligadas a uma direita) na agenda política. Se
antes tínhamos a ditadura do poder armado, agora teríamos a ditadura do mercado...

Como essa ideologia se refletiu no campo cinematográfico? Até a eleição de Collor, a atividade

cinematográfica nacional era conduzida pela EMBRAFILME, uma empresa de economia mista cujas funções

iam desde a seleção de filmes a serem produzidos até a divulgação e comercialização dos filmes em

território nacional e no exterior. Todavia, com a vitória de uma concepção neoliberal do Estado, esta foi

8
RAMOS, Fernão (org.). História do Cinema Brasileiro. São Paulo, Art Editora, 1990, pág.299-398.
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extinta pela lei 8012/90, provocando uma desestabilização na produção cinematográfica nacional que a
reduziu a níveis alarmantes.

Logo, propõe-se aqui a nomenclatura “cinema brasileiro contemporâneo”, que abarcaria o período de
1990 até os dias de hoje, uma vez que o processo da investida neoliberal no cinema, na área cultural e na

economia política, muito longe de ter sido interrompido, parece estar sendo consolidado seja pelo discurso
“industrial” de alguns setores da classe cinematográfica, seja pela importação do modelo norte-americano

de agências reguladoras (traduzida, aqui, pela implantação da ANCINE e, de acordo com a vontade
governamental, da futura ANCINAV).

Além disso, o termo “Retomada” estabelece um problema de periodização do cinema brasileiro:

como a EMBRAFILME foi extinta em 1990 e este termo só engloba filmes realizados a partir de 1995, como
enquadrar os filmes produzidos entre 1990 e 1995? Corre-se o sério risco de um “ostracismo fílmico” ao se

adotar essa nomenclatura, sendo importante lembrar que Oricchio enumera quais foram os filmes

produzidos nesse período, com base em um catálogo da mostra Cinema brasileiro. anos 90: 9 questões,
realizada no Centro Cultural Banco do Brasil - Rio9. Uma teoria historiográfica não pode “se dar ao luxo” de

simplesmente ignorar cinco anos de atividade cinematográfica.

É possível afirmar que o “cinema brasileiro contemporâneo” enquanto categoria analítica se mostra

mais eficaz no sentido de se estudar a história do cinema brasileiro a partir de várias perspectivas: exibição;

crítica; público; relação entre cinema e outras áreas (Filosofia, Comunicação, História, Pedagogia, Ciências

Sociais, etc); inserção do cinema no panorama político e cultural contemporâneo. Ademais, esta também

conseguiria dar conta, parcialmente, do debate entre aqueles que defendem um engajamento em prol da

industrialização do cinema nacional e os que defendem um cinema supostamente “de conteúdo”, “crítico” e
(por que não dizer?) “autoral”.

Sobre o mesmo, seria interessante analisá-lo partindo do ponto de vista defendido por Igor Kopytoff:

“In no system is everything so singular as to preclude even the hint of exchange. And in no system,
except in some extravagant Marxian image of an utterly commoditized capitalism, is everything a

commodity and exchangeable for everything else. Such a construction of the world - in the first case
as totally heterogeneous in terms of valuation and, in the second, as totally homogeneous – would

be humanly and culturally impossible. But they are two extremes between which every real economy
occupies its own real place” (KOPYTOFF, Cambridge University Press, ?, pág. 70).

É lugar comum a crítica feita aos filmes de Hollywood, apontados como meramente comerciais e desprovidos

de conteúdo, “intenção artística” ou “pesquisa de linguagem”. Entretanto, é preciso ressaltar que os termos

desse debate foram arregimentados nas linhas dos críticos franceses, que perseguiram ao longo de mais de

uma década a legitimação cultural do cinema, num panorama de crise da própria cultura francesa (tendo em
vista, dentre outros, a derrota na guerra e a ocupação humilhante imposta pelos alemães, a decadência do

etnocentrismo europeu, os movimentos de descolonização). Sendo assim, havia duas necessidades desse

embate político: além da afirmação do status artístico do cinema, re-inserir a cena cultural francesa nos

9
Cf: ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo, Estação Liberdade, 2003, pág.
26.

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mesmos termos de importância desta do período entre as guerras mundiais. Logo, o aspecto “mercadoria”

do filme foi cada vez mais rechaçado, relegado a segundo plano, e mesmo os “autores” hollywoodianos
(Hitchcock, Hawks, Wilder, Lewis, etc) só o eram porque conseguiam superar os entraves do aparato de

produção e afirmar um “estilo” peculiar, sendo o produto “filme” levado ao pólo da singularidade, do
patrimônio cultural. Como os termos desse debate no Brasil já foram explicitados neste trabalho, não iremos
tornar nossa escrita repetitiva (conferir parte anterior).

Todavia, seria importante considerar como ocorreu a atualização desta discussão. O livro já citado
de Oricchio sobre o período atual do cinema brasileiro funciona como um “resumo” das imagens construídas

pelo cinema a respeito do Brasil, sendo esta a preocupação principal do livro. Pelos títulos dos capítulos – “A
representação da História”; “Eu e o Outro”; “A esfera privada”; “A esfera pública”; “O sertão e a favela”;

“Classes em choque”; “A arte da violência”; e “A crítica e o cinema puro” – percebe-se que o autor

pretendeu mapear as discussões críticas a respeito do nosso cinema e dialogar com elas. É bastante
significativa a escolha por analisar filmes de ficção, filiando-se a uma metodologia de Sadoul e de outros que

se aventuraram a condensar a história do cinema mundial, sendo que a mesma possui três grandes

problemas: o privilégio do papel da produção (característico dos defensores da “Retomada”); a obliteração


do intercâmbio entre documentário e ficção (além do ostracismo do primeiro numa tentativa de história do
cinema); e, finalmente, a dimensão apolítica do estudo face às instituições oficiais.

No primeiro capítulo, são questionados os tratamentos concedidos à história oficial, seja pela via
cômica ou dramática. Mesmo com uma postura crítica, o autor não atentou para um detalhe: todas as

representações expostas tinham sido anteriormente “patrimonializadas” pelo discurso nacional. Nenhum

filme citado por ele traz à tona um episódio ou fato fora dessa meta-narrativa: não se questionou o fato de o

cinema brasileiro não representar movimentos de cunho separatista ou que questione o mito da brasilidade

per si. Parece que temos um “buraco” na representação histórica (mais precisamente, o Período Regencial, a

República de Campos Sales, o Rio “afrancesado” de Pereira Passos, os movimentos de resistência negra à

escravidão, etc). Ou será Brava Gente Brasileira (Lúcia Murat) a única exceção, ao evocar uma vitória militar
de índios perante os brancos?

No tocante ao capítulo “Eu e o Outro”, temos a análise de como nossos filmes retratam o papel do
estrangeiro. Com referências quase “clássicas” dos filmes (norte-americanos, em sua maioria; franceses e
portugueses “correndo por fora”), Oricchio estabelece, de forma competente, como o “Eu” nacional se

constrói. Aproveitamos, no entanto, para estender o questionamento: por que monumentalizar a presença

norte-americana e esquecermos nossos hermanos argentinos, chilenos, bolivianos, paraguaios, equatorianos

que não apenas se relacionam diretamente conosco como muitas vezes se fazem presentes em nosso país

(por exemplo, caso dos argentinos que migram todos os verões para os balneários sulistas; dos paraguaios,
bolivianos e chilenos que imigraram nos últimos 15 anos)? Por que não representar angolanos,

moçambicanos e nacionais de outros países africanos acolhidos no Brasil como refugiados políticos? Onde

estão os ucranianos, poloneses, russos, japoneses, coreanos, chineses, espanhóis, italianos, judeus,

alemães, dentre outros, que para aqui vieram em movimentos migratórios os mais diversos possíveis? Onde
estão as representações das nossas fronteiras externas e internas (o baiano e o paraibano deixam de ser o

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outro quando está em São Paulo ou no Rio só por que também é brasileiro?)? Representações essas que
escaparam, em sua maioria, ao cinema nacional contemporâneo.

Retornando a Kopytoff, este disserta que, na dialética entre mercadoria e cultura, alguns objetos são
“discriminados” ou “singularizados”:

“The counterdrive to this potential onrush of commoditization is culture. In the sense that

commoditization homogenizes value, while the essence of culture is discrimination, excessive


commoditization is anti-cultural – as indeed so many have perceived it or sensed it to be. And if, as

Durkheim (1915; original publication 1912) saw it, societies need to set apart a certain portion of
their environment, marking it as “sacred”, singularization is one means to this end. Culture ensures

that some things remain unambiguously singular, it resists the commoditization of others; and it
sometimes resingularizes what has been commoditized”.10

Sendo o movimento descrito apenas com relação a objetos, podemos afirmar que o mesmo também ocorre
com idéias, valores e, no caso em questão, imagens (aliás, o marketing, hoje em dia, não “mercantiliza”
apenas objetos, como também o que foi citado). Como o cinema atual “patrimonializa” determinadas
imagens? De que modo ele lida com a circulação das mesmas? Vejamos a parte seguinte...

Favelas, sertões, subúrbios e “genéricos”: quando a auto-referência


temática se transforma em paranóia nacional...

Em “Comunidade Imaginada por quem?”, Partha Chatterjee afirma a necessidade de as regiões periféricas

do mundo encontrarem suas formas de imaginação nacional, contrapondo-se ao pensamento de Benedict


Anderson, que ilustra as formas possíveis de essa imaginação ser ativada. É bastante irônico reconhecer a
tentativa de se fazer isso no plano da cultura brasileira mais de quarenta anos antes do diagnóstico do autor.

Exatamente por isso os intelectuais ligados ao cinema não saíram nem um pouco incólumes aos

anseios de desenvolvimento do mesmo, afirmando a importância de uma cinematografia que representasse


o brasileiro e que, portanto, dialogasse com as platéias locais. Através da escolha de duas imagens

referenciais do Brasil – favela e sertão – o cinema gravitou, nos anos 60, na descoberta do popular, haja em

vista os vários filmes ambientados nos mesmos (Rio 40 Graus, o “marco zero” do Cinema Novo; Cinco vezes
favela – produção do CPC; Deus e o Diabo na Terra do Sol; Terra em Transe; etc). Mesmo não olvidando o

espaço urbano (Viramundo; Assalto ao trem pagador; Os cafajestes), a presença destes dois cenários seria
revitalizada ao longo do cinema brasileiro, sendo, portanto, alvo de uma monumentalização.

Ao contrário do Cinema Novo, o cinema atual se atrela a um discurso que prega a melhoria técnica
como forma de atingir o público que freqüenta o cinema hoje (leia-se, classe média, visto que a

transformação de cinemas populares em igrejas evangélicas e o encarecimento do ingresso inibiram a

presença das camadas populares nas salas de exibição). Enquanto o primeiro tentou unir a dimensão

material e espiritual do cinema na afirmação de uma cinematografia independente, o segundo tenta a todo

10
Idem, ibidem, pág. 73.
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custo diferenciar-se das outras cinematografias no plano espiritual, atitude que retoma o pensamento de
Chatterjee sobre as possibilidades de resistência das culturas terceiro-mundistas:

“Segundo minha interpretação, o nacionalismo anticolonial cria seu próprio campo de soberania,
dentro da sociedade colonial, muito antes de iniciar sua luta política contra o poder imperial. Ele o

faz dividindo o mundo das instituições e práticas sociais em dois domínios, o material e o espiritual.
O material é o domínio do “externo”, da economia e da política, da ciência e tecnologia, um campo

em que o Ocidente provou sua superioridade em que o Oriente sucumbiu. Nesse campo, portanto, a
superioridade ocidental teve que ser reconhecida, e suas realizações, criteriosamente estudadas e

reproduzidas. O espiritual, por outro lado, é um domínio “interno”, que traz as marcas essenciais da
identidade cultural. Quanto mais sucesso se obtém na imitação das aptidões ocidentais no campo

material, maior a necessidade de se preservar a singularidade da cultura espiritual” (CHATTERJEE,


Partha. Op. cit., pág. 230).

Não é raro algum membro do alto escalão do governo relembrar o objetivo de transformar o cinema

brasileiro em uma indústria nem o apoio de parte da classe cinematográfica a esse discurso. Tendo sido a

primazia técnica do cinema norte-americano reconhecida em terras tupiniquins, cai-se na operação descrita
por Chatterjee: a busca de uma afirmação de identidade face ao cinema alienígena.

Não é à toa o título do livro de Oricchio ser Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada, uma

vez que se recorre à tradição representada pelo cinema dos anos 60 para construir imagens do cinema
brasileiro atual, patrimonializando-as e, em alguns casos, monumentalizando-as.

Muito sintomático disto é não apenas um dos capítulos do livro ser “O sertão e a favela”, como
também a presença destes nos filmes atuais ser preponderante (de filmes de ficção comerciais 11 a

documentários experimentais 12 ) e a análise dos mesmos em artigos acadêmicos e em publicações de

circulação de massa. A polêmica produzida em torno do filme Cidade de Deus ilustrou bem as posições
binariamente impostas: seguir os cânones artísticos de parte da intelectualidade acadêmica ou adaptar o

cinema nacional a fórmulas comerciais que supostamente dialoguem com um público cada vez mais
“massificado”? A primeira corrente percebeu o filme como uma “estetização” da pobreza, da violência e um

desvirtuamento perante a tradição cinematográfica nacional, atacando o filme em jornais de grande

circulação, lançando manifestos e fomentando o debate acadêmico. Já seus defensores, respaldados no


sucesso comercial do filme (mais de três milhões de espectadores, a então maior bilheteria do cinema

brasileiro pós-EMBRAFILME), viam nele uma possibilidade de concretizar a tão sonhada “industrialização”,
sendo que Oricchio, ao afirmar que o mesmo foi um “divisor de águas”, parece partilhar dessa visão.

Possivelmente Cidade de Deus foi tornado patrimônio, figurando no cinema brasileiro contemporâneo como

objeto de cisão entre as duas correntes (e poucos conseguiram fazê-lo de modo tão contundente), mas se

pode dizer que ele próprio seria um “marco” do fim da Retomada? Parece-nos, à primeira vista, uma

estratégia de monumentalização. Vejamos os argumentos enumerados por Oricchio (e amparados por boa

11
Eu, tu, eles; Central do Brasil; Cidade de Deus; etc.
12
O Rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas; Baile Perfumado; Fala Tu; etc.
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parte da crítica): qualidade técnica do filme; a “circularidade” da narrativa (leia-se: o filme é estruturado a

partir de um grande flashback); “articula por completo a linguagem contemporânea do cinema e da


sociedade”13; financiamento em ínfima parte pelas leis de incentivo fiscal; o sucesso de bilheteria, mesmo

sendo um filme com temática social; presença de atores negros desconhecidos do grande público e ausência
de atores “globais”.

Já foi dito que a qualidade técnica é algo inerente ao discurso “neo-desenvolvimentista” do cinema

tupiniquim; logo, outros filmes anteriores a ele também empreenderam essa busca; filmes estruturados a
partir de um grande flashback não são propriamente novidades; a relação entre cinema e linguagens de

comunicação contemporânea também não foi inaugurada pelo filme; o fato de não ter sido financiado por
mecanismos fiscais não o libera das engrenagens neoliberais; o recrutamento dos atores (oriundos, em sua

maioria, das favelas e comunidades pobres do Rio) seguiu padrões quase hollywoodianos, com uma pequena
dose de neo-realismo.

Qual a dimensão política dessa escolha de alçar Cidade de Deus a marco cronológico? Ao
estetizarmos a história do cinema, perdemos de vista fatos como os mecanismos de economia política que

gerem a atividade e a inserção do cinema no panorama da cultura e da realidade brasileira contemporâneas,

além do fato de o filme construir uma imagem de Brasil totalizadora, que não questiona os conflitos

interclasses, interétnicos, religiosos, sendo uma visão marcadamente “classe média” a respeito dos pobres

(algo que não é nem um pouco novidade por aqui). Enfim, os ventos neoliberais não pararam de soprar; ao
contrário, ganham força, podendo transformar-se em furacões (afinal, quem sabe o destino de uma agência

reguladora caso ela “caia em mãos erradas”?) e a “Retomada”, por ser uma categoria frágil, não acabou

porque simplesmente nunca existiu. Entretanto, é preciso dizer que a escolha de um dado filme como marco

de uma estética ou período não é somente algo corriqueiro, como também parece ser o que estrutura as
grandes narrativas sobre a história do cinema mundial.

Retornando ao binômio “favela-sertão”, vejamos como este é retratado pela crítica acadêmica e
pelos próprios diretores.O artigo de Márcia Pereira Leite14 é muito ilustrativo em relação à abordagem da

favela: amparando-se na tradição patrimonializada do Cinema Novo, analisa dois filmes contemporâneos

(Orfeu, de Carlos Diegues e Como nascem os anjos, de Murilo Salles) a partir de uma exigência de realismo,

sendo isso claramente percebido na comparação feita pela autora entre Orfeu Negro (de Marcel Camus) e o
Orfeu de Diegues:

“A primeira versão cinematográfica, Orfeu Negro, foi realizada por Marcel Camus em 1959,

ganhando a Palma de Ouro no Festival de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro no mesmo
ano. Apresenta uma visão quase folclórica, de tão idealizada, dos morros e favelas cariocas. Seus

personagens vivem saltitantes em uma espécie de paraíso original, marcado por samba, amor e
alegria. Os conflitos de amor são os únicos que perpassam a vida dos personagens; nada lhes
preocupa, exceto a morte. Novamente a favela é apenas cenário. (...)

13
Op. cit., pág. 160.
14
LEITE, Márcia Pereira. Vozes e imagens do morro: as favelas cariocas no cinema brasileiro. In: Cadernos de
Antropologia e Imagem no. 11. Rio de Janeiro, UERJ, NAI, 2001.
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Em Orfeu, ao contrário, deparamo-nos com uma favela heterogênea, urbanizada, densamente

povoada, que tanto abriga o miserável e o pobre, como famílias remediadas, e que não se deixa
captar por uma leitura linear e unívoca” (Op. cit., pág. 62).

Deve-se afirmar, em primeiro lugar, que o tema trata de uma lenda grega, que foi re-codificada por uma

peça teatral (Orfeu da Conceição, de Vinícius de Morais) e transposta a um filme. Portanto, a cobrança de
um “realismo” ou de uma “verossimilhança” aqui soa quase anacrônica. No filme de Camus, fica evidente o

aspecto ficcional: não estamos “na” favela, porém em “uma” favela irreal. E a representação dele é válida na
medida em que foi dirigido de forma competente, com uma boa fotografia, um bom roteiro e cujos atores

tiveram um desempenho razoável; não porque é “a” favela carioca. Que razão nos leva a adotar o
“realismo” como um “tique” na análise de filmes brasileiros? Quem sabe a encenação de Camus não seja

mais “reveladora” que um filme mal dirigido, com péssima atuação e com imagens totalmente clichês da
favela, porém que se presta a retratar como seria supostamente a favela carioca?

De uma forma mais flexível, os realizadores de Baile Perfumado, em entrevista a Cinemais, explicam
que, se filiando aos objetivos e à estética proposta pelo movimento Mangue Beach: “o que eu quero dizer é

que tem um lado do filme que é em cima disso: modernizar tradições. Trabalhar uma coisa tradicional numa
linguagem que se aproxime mais do público de hoje”15. Mesmo não esquecendo a pesquisa histórica e a

mostrando no filme (as imagens de Lampião feitas por Benjamin Abraão), a linguagem do filme incorpora

elementos do vídeo-clipe, da publicidade e das representações tradicionais (a fragmentação, além de ser


ligada às novas estéticas, também se refere à realidade do interior - Caldas lembra que as pessoas vêem

muito através das janelas no interior – e à própria história – só se conhece a história de Abraão por
pedaços). Eis uma patrimonialização moderna!

Sobre o paradigma da identidade nacional, Ferreira o dribla com uma sagacidade invejável: “quando

se trabalha isso pra dentro, o resultado é uma coisa mais regionalista. Fizemos uma coisa regional,

completamente diferente do regionalista. Cinema é regional, é pra fora, conversa com outras coisas,

inclusive com a cultura popular que é a base. O regional é aberto à mistura: o desenho dos punhais de
Lampião é uma mistura de desenhos, a música de rabeca é uma coisa árabe...”(Op. cit., pág. 26). Suas

palavras são reveladoras no sentido de afirmar a identidade como intrinsecamente fluida, temporal, ao
contrário da dimensão “essencialista” que o discurso assume nas Histórias nacionais e seus congêneres.

O próprio filme guarda essa concepção de patrimônio, sem ser monumental. Ao representar a

história de Abraão e suas desventuras pelo sertão, o mesmo transmite ao espectador um sertão clássico-pop

(sendo a cena inicial do rio bastante elucidativa). Revela-nos um Lampião vaidoso que, inclusive, quer
controlar a sua própria imagem (muitas vezes dizendo a Abraão o que e como queria ser filmado), dentro do

objetivo do filme de retratar como a modernidade chega ao sertão (e não fazer um filme de cangaço, gênero
já alçado ao patrimônio da nação – conferir, a título exemplificativo, Memórias do Cangaço (1965), de Paulo
Gil Soares).

15
Entrevista de Paulo Caldas e Lírio Ferreira a José Carlos Avellar, Geraldo Sarno, Ivana Bentes e Carlos Alberto de Mattos.
In: Cinemais 4. Rio de Janeiro, UENF/CTAV-FUNARTE, março-abril 1997, pág. 16.
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POR UMA CONCLUSÃO INCOMPLETA: OS LIMITES DA RETÓRICA DA


PATRIMONIALIZAÇÃO

Como epílogo, poderíamos dissertar sobre o papel da preservação de uma memória coletiva. A constituição
de uma memória só tem implicações se visar a um futuro; do contrário, caso fique atrelada a um passado,

não passa de mera retórica, paralisante, retrógrada e desconexa com o presente histórico. O “toque de
Midas”, nesse contexto, teria o efeito perverso de não permitir a dialética passado-presente, formando um
patrimônio audiovisual feito de imagens-foto, cristalizadas, sem vida...

Ao longo deste breve ensaio, tentou-se evidenciar como a retórica da patrimonialização e da

monumentalização é capaz, de um lado, tornar crível ao espectador contemporâneo as imagens e

representações tradicionais e, por outro, pode assumir um aspecto nefasto se radicalizada por uma
interpretação unívoca.

Sem desmerecer as referências tidas como “clássicas” pela historiografia e pelos cineastas, o cinema
atual mostrou-se mais profícuo ao atualizá-las, porém concede espaço também a discursos e imagens

saudosistas, ultrapassadas e que em nada auxiliam ao seu desenvolvimento. Defender a industrialização


virando as costas para o passado é postura irresponsável, para com o público, com os próprios realizadores
e jogar no ostracismo as imagens já produzidas. Pregar o retorno de um passado “mítico” e de cânones

imersos na poeira do tempo é ilusório, antiprodutivo e nem um pouco revelador das boas surpresas que o

presente nos traz. Este pode nos mostrar outras regiões, lugares, formas de representação, personagens,

etc, ainda não patrimonializados e que, no entanto, seriam capazes de nos fazer chegar ao Paraíso, ao Éden

de uma cinematografia forte dramatúrgica e economicamente. Afinal, que História queremos para o cinema
brasileiro contemporâneo?

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