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MESTRADO EM FILOSOFIA

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

LUGARES DO SILÊNCIO
A interface do sujeito larvar como campo intensivo de
individuação no pensamento da diferença

Carlos Henrique Machado

2021
Carlos Henrique Machado

Lugares do silêncio
A interface do sujeito larvar como campo
intensivo de individuação no pensamento da
diferença

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Filosofia Contemporânea, orientada


pelo(a) Professor(a) Doutor(a) Sofia Gabriela Assis de Morais Miguens Travis e pelo(a)
Professor(a) Doutor(a) Eduardo Anibal Pellejero

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Ano 2021

2
Carlos Henrique Machado

Lugares do silêncio
A interface do sujeito larvar como campo
intensivo de individuação no pensamento da
diferença
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Filosofia Contemporânea, orientada
pelo(a) Professor(a) Doutor(a) Sofia Gabriela Assis de Morais Miguens Travis e pelo(a)
Professor(a) Doutor(a) Eduardo Anibal Pellejero

Membros do Júri
Professor Doutor (escreva o nome do/a Professor/a)
Faculdade (nome da faculdade) - Universidade (nome da universidade)

Professor Doutor (escreva o nome do/a Professor/a)


Faculdade (nome da faculdade) - Universidade (nome da universidade)

Professor Doutor (escreva o nome do/a Professor/a)


Faculdade (nome da faculdade) - Universidade (nome da universidade)

Classificação obtida: (escreva o valor) Valores

3
SUMÁRIO

DECLARAÇÃO DE HONRA 5

AGRADECIMENTOS 6

RESUMO 7

ABSTRACT 8

INTRODUÇÃO 9

CAPÍTULO I – A POTÊNCIA DA DIFFERENÇA

Deleuze e o caminho da diferença 22

O jogo das singularidades 35

O virtual como nó de tendências 46

O processo de individuação 52

CAPÍTULO II – A FORÇAS DE UM CAMPO INTENSIVO

O lugar do sujeito que percebe, abstrai e diz 60

Para além do subjetivo 71

As formas de individuação intensivas 81

CAPÍTULO III – O LUGAR DA DIFERENÇA OU DA DIFERENÇA SEM LUGAR

A interface de um sujeito larvar. 96

Quando o homenzinho não está (ali) 105

Um corpo de expressões intensivas 115

CONCLUSÃO 132

REFERÊNCIAS BIBLIOBRÁFICAS 144

4
Declaração de honra

Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizado previamente
noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros
autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da
atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências
bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a
prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

5
Agradecimentos

Agradeço a minha filha Maria Sofia, cuja existência permitiu que este texto se tornasse
realidade

6
RESUMO

Nosso trabalho aqui será uma tentativa de seguir o rastro da diferença, na perspectiva de
processos de individuação que mantenham todo o potencial disruptivo das forças pré
individuais e metaestáveis. Por isso fui buscar nos corpos a deriva da experiência de
Fernand Deligny com crianças autistas não verbais em Cévennes, nos seus hábitos, gestos
e percepções livres de qualquer modelo simbólico, uma forma anônima de existência.
Parti em busca de um sujeito larvar, na perspectiva deleuzeana, como possibilidade de
individuação em um campo intensivo, onde localizam-se corpos para além de sua
eficiência funcional. Corpos sem finalidades determinadas, assumindo o agir de um
trajeto sempre inacabado e sem um projeto pensado. Corpos sem órgãos, corpos
desviantes, cujas forças encontram-se livres das relações formais do organismo e que
produzem gestos inadvertidos e sem finalidade. Corpos como interfaces onde o encontro
de forças faz vibrar uma frequência, um sinal em sua superfície sem se prolongar em uma
informação ou se desdobrar em uma finalidade. A grande questão aqui é: como lidar com
a diferença sem esmagar as singularidades que reivindicam sua potência, face a um plano
de organização que procede a adaptação dos indivíduos ao seu padrão de normalidade e
eficiência, forjando o homem-que-nós-somos. Não há de se tentar corrigir “deficiências”
a partir de um modelo funcional eficiente desejável, mas compreender a diferença como
uma abertura a produção de novos mundos sempre em ebulição. Ao invés de se cair na
tentação de buscar a reinserção a um modelo dominante como uma mera adaptação às
formas fixas de produzir “eficientemente” os padrões e os modos hegemônicos de existir,
pensar e viver, parto em busca de um espaço para a liberação de pensamentos e corpos,
que possam constituir novos olhares, escutas e linguagens, permitido deixar emergir aí
novas formas de vida.

Palavras chaves: Diferença; devir; campo intensivo; corpo sem órgãos; sujeito larvar

7
ABSTRACT

Our work is an attempt to trace difference. This will be done from the perspective of
individuation processes which maintain all the disruptive potential of pre-individual and
metastable forces. In Fernand Deligny's experience with non-verbal autistic children in
Cévennes I sought for bodies in drift in their habits, gestures and perceptions. These
bodies are free from any symbolic model, they are an anonymous form of existence. I
thus set out in search of a larval subject, in the Deleuzean perspective. By this I mean a
possibility of individuation in an intensive field, where bodies are located beyond their
functional efficiency. Bodies without definite purposes, assuming action in an always
unfinished path and without a thought project. Bodies without organs, deviant bodies,
whose forces are free from the formal relations of the organism and which produce
inadvertent and purposeless gestures. Bodies as interfaces where the meeting of forces
makes a frequency vibrate, a signal on its surface without extending into information or
unfolding into a purpose. The big question here is: how to deal with difference without
crushing the singularities that claim its potency, in the face of an organizational plan that
adapts individuals to their standard of normality and efficiency, forging the man- who-
we-are. There is no need to try to correct “deficiencies” based on a desirable efficient
functional model. The challenge is to understand difference as an opening to the
production of new worlds that are always on the boil. Rather than falling into the
temptation to seek reintegration into a dominant model as a mere adaptation to the fixed
ways of “efficiently” producing the hegemonic patterns and ways of existing, thinking
and living, in this work I search for a space of liberation of thoughts and bodies, which
may constitute new looks, listening and languages, allowing for new forms of life to
emerge.
Key words: Difference; becoming; intensive field; body without organs; larval subject

8
INTRODUÇÃO

Quando a voz falta, o indivíduo é, então privado do poder de expressar-se – e


expressar-se veio a ser o privilégio mais precioso, que todo o mundo ao que
parece revindica ou deveria reivindicar. Mas isso é não ver da voz senão o
ruído que sai do indivíduo. Se a voz falta, ela não penetra o indivíduo. Ora
antes de ela voltar a sair, é preciso que tenha entrado. Tudo indica que, se ao
ser autista, a voz falta, é porque em sua condição de ser, a voz o perdeu – ou
ele perdeu a voz -, como se diria de um jogador que não estivesse em sua
posição para receber a bola e reenvia-la (DELIGNY, 2018, p. 213).

Tenho tido com a diferença uma relação muito próxima. Se a diferença, desde cedo, em
minha pesquisa teórica ocupou um lugar de destaque, foi com o nascimento da minha
filha mais nova, com Síndrome de Down, que o conceito foi confrontado com uma prática
que passou a direcionar minha abordagem. Isso me fez investigá-la na perspectiva do
devir e da impermanência das formas. Tentava me colocar entre os meios onde eram
produzidas as desigualdades dos ritmos e, ao mesmo tempo, dizer tais desigualdades sem
me apoiar na identidade das medidas de cada forma já codificada nos limites de um
espaço qualquer. O cromossomo extra da Maria e as singularidades das pessoas que
vinham ao mundo desta forma eram a oportunidade de viver na prática aquilo que
ocupava um lugar central em meu pensamento. A tarefa tornou-se, então, encontrar a
dimensão onde a afirmação de modos de vidas singulares não fosse confundida com a
necessidade de se conformar aos padrões dominantes, mas que implicasse numa abertura
para uma nova maneira desses indivíduos contraírem a realidade ao seu redor,
encontrando soluções próprias de estarem no mundo.

A questão passou a ser, para mim, como lidar com as categorias dessas singularidades
minoritárias, articulando-as com os padrões majoritários de ser, estar e agir no mundo
liberando todo o seu potencial disruptivo e de não conformidade com o mesmo em sua
forma maior. Essa era uma das preocupações de Gilles Deleuze, que foi quem passou a
orientar grande parte de minha abordagem teórica, a partir da maneira como lidava com

9
a diferença no nível de um devir minoritário e desviante. Como percebeu Roberto
Machado, o pensamento de Deleuze pode ser considerado como “uma suma de
pensamentos que relaciona por expressarem, em maior ou menor grau, a diferença
(MACHADO, 1990, p. 225). Foi em Deleuze que encontrei inspiração e as vias a partir
das quais poderia desfilar conceitos que dessem conta da potência da diferença em forma
de “interruptores” que permitisse se escapar do controle. Como ele mesmo afirma: “É
preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante
talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao
controle" (DELEUZE, 1993, p. 14). O “escapar do controle” aqui vincula-se a conjuração
da representação e das suas formas de se fixar o mesmo. Quando tomamos a diferença a
partir dos critérios da representação fixamos os limites do mesmo que se quer comparar,
delimitando, deste modo o espaço onde cada ser se move. O primado do mesmo define o
mundo da representação. Na representação feita por um sujeito qualquer que só consegue
pensar o diferente a partir daquilo que é “idêntico, semelhante, análogo e oposto; é sempre
em relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição
imaginada, a uma similitude percebida que a diferença se torna objeto de representação”
(DELEUZE, 1988, p. 228). Se quisermos chegar à diferença no sentido dado por Deleuze
temos que chegar, portanto, a pensar a diferença em si mesma. Quando problematizamos
a diferença a partir de um campo virtual que não se confunde com os estados atualizados
nas qualidades e nas partes, mas que está sempre a deslizar em sua superfície,
reivindicamos esse campo como o espaço da contínua mudança. Como dizia Deleuze, um
“spatium intensivo” que preexiste a toda qualidade como a todo extenso:

Se bem que a experiência sempre nos coloque em presença de intensidades já


desenvolvidas em extensos, já recobertas por qualidades, devemos conceber
como condição da experiência intensidades puras envolvidas em uma
profundidade, em um Spatium intensivo que preexiste a toda qualidade e a todo
extenso. A profundidade é a potência do puro spatium inextenso: a intensidade
é apenas a potência da diferença ou do desigual em si” (DELEUZE, 2006, p.
132).

Meu trabalho aqui será uma tentativa de seguir o rastro da diferença, na perspectiva de
processos de individuação que mantenham todo o potencial disruptivo das forças pré-
individuais e metaestáveis, na forma como Deleuze identifica esses processos como uma

10
passagem do virtual para o atual, que mantem uma abertura para um campo intensivo.
Ester rastro me levou às experiências de Fernand Deligny com as crianças autistas não
verbais com as quais conviveu em Cévennes. Desde o início a atuação de Fernand
Deligny esteve vinculada a tentativas de se viabilizar novos modos de vida junto à
indivíduos que se encontravam fora dos padrões majoritários de existência. Entre os anos
de 1938 a 1967 ele vivenciou experiências diversas instituições francesas voltadas a
correção de comportamentos estranhos e inadaptados as regras de convivência aceitas
como normais e eficientes. Desde a sua atuação como educador em classes voltadas para
crianças com dificuldade de aprendizado nos arredores de Paris, passando pelo trabalho
com psicóticos no asilo de Armentières e com jovens delinquentes no Centro de
Observação e Triagem, em Lille, até a experiência da Grande Cordée 1 ele procurou
subverter as hierarquias e promover uma rede de ajuda mútua que confrontava de forma
libertária as estruturas institucionais corretivas em sua lógica pedagógica, clínica e
jurídica. Depois de passar uma temporada em La Borde onde realiza atividades
terapêuticas, mas onde falta o seu engajamento à ideia de diagnóstico, dossiês e
prontuários, retira-se para a região montanhosa de Cévennes, no sul da França, ode ira
viver uma experiência comunitária com crianças autistas, na sua maioria com um
mutismo severo, tendo a companhia voluntária de alguns operários, camponeses e
estudantes. Cévennes era uma grande área rural onde foram instalados núcleos
comunitários nos quais as crianças viviam em companhia de adultos por elas responsáveis
e onde eram realizadas atividades coletivas como a fabricação de pães, criação de ovelhas
e trabalhos com marcenaria, envolvendo o cuidado de si e do grupo. Se as experiências
de Deligny, desde o início, foram atravessados por uma resistência aos papéis instituídos,
foi a partir do seu encontro com os autistas não verbais e seu irremediável silêncio, que
sua produção é atravessada pela busca de se ir além da imagem que se forjou a partir de
uma estrutura que se apoiava em “milênios de dominação simbólica” e que tinha na
linguagem sua principal articulação, abrindo-se a encontros inusitados de indivíduos num
espaço comum.

1
Grande Cordée é como é referida a experiência de Deligny com jovens inadaptados socialmente fora
dos muros da instituição, que ele viveu depois de abandonar o Centro de Observação e Triagem de Lille
até aceitar o convite de Jean Oury e Felix Guattari para viver em La Borde.

11
Seus hábitos, gestos e trajetos, puseram-me diante de seres que se afastavam de um
2
modelo do “homem-que-nós-somos” , a partir da constatação que suas existências se
aproximavam na noção de sujeito larvar, na perspectiva deleuzeana, como uma
possibilidade de individuação que mantem a tensão das forças de um campo intensivo,
onde localizam-se corpos para além de sua eficiência funcional do organismo. Corpos
sem finalidades determinadas, assumindo o agir de um trajeto sempre inacabado de um
não querer sem um projeto pensado. Aqui o agir se afasta do fazer, pois este seria fruto
de uma finalidade domesticada pelo simbólico, enquanto aquele assumiria o sentido de
um movimento a deriva; o agir de um corpo a produzir linhas de errância. Corpos sem
órgãos, corpos desviantes, cujas forcas encontram-se livres das relações formais do
organismo. Olhos sem visão, ouvidos sem audição, pernas sem locomoção, bocas que não
produzem linguagem, corpos que produzem gestos inadvertidos e sem finalidade. Corpos
como interfaces, superfícies onde o encontro de forças faz vibrar uma frequência, um
sinal que as recobre sem se prolongar em uma informação ou se desdobrar em uma
finalidade. “(...) nada de boca, nada de língua, nada de dentes, nada de laringe, nada de
esôfago, nada de estômago, nada de barriga, nada de ânus: nada além de um corpo pleno
como uma molécula gigante ou um ovo indiferenciado” (DELEUZE, 2016, p. 24).

Em vez de sacrificar a positividade existencial de “populações inteiras de


seres” no altar de uma Verdade, seria o caso de multiplicar o mundo a fim de
acolhê-las – de onde o esforço em mobilizar conceitos diversos para garantir a
pluralidade e distinção entre os modos de existência, sem deles fazer etapas de
um único processo evolutivo, universal. Ademais, em vez de perguntar “Isso
existe?” e “De que modo?”, caberia saber se pode existir “um pouco, ou muito,
passionalmente, de modo algum”, em gradações diversas. Por exemplo, existir
como possível, em potência, ou prestes a emergir ao lado do atual, ou existir
balbuciantemente abaixo de um limiar de integridade – quantas maneiras
distintas de existir (PELBART, 2014, p. 252).

A questão dos vacúolos de solidão, colocado por Deleuze foi atravessada, na minha
pesquisa, pela presença de corpos à deriva de todo o costumeiro que, aos poucos, via
surgir diante da minha investigação sobre Deligny e inverteu o olhar que lançava sobre o
processo de ressignificação feita por Deleuze acerca dos corpos, que como linhas de fuga

2
Deligny utilizava essa expressão para designar a imagem do homem que se formou ao longo de milênios
de dominação simbólica, em contraposição ao humano que era, para ele, aquilo de inato que
determinaria as atitudes do indivíduo de uma espécie.

12
escapavam de toda tentativa totalizante por parte de uma subjetivação feita dominante.
Enquanto o problema inicial era desconstruir a hegemonia da ordem do organismo,
liberando experimentações sobre corpos sem órgãos, o trabalho agora era compreender
como bastaria uma pequena perturbação na ordem da cadeia que liga os órgãos em torno
das funções que esses assumem no organismo, para que os corpos entrassem em deriva.
Afastando-se da eficiência de seu funcionamento, cada órgão que se recusaria a assumir
apropriadamente seu lugar na estrutura do organismo, causaria um desarranjo que
comprometeria a finalidade da existência de um organismo eficiente. Se um organismo
depende do perfeito funcionamento dos órgãos em um corpo, a ausência de órgãos ou sua
disfunção, produz corpos para além de sua eficiência funcional. Isso me levou a pensar
nos corpos que sempre estiveram à deriva e de como é possível experimentarmos com
eles novas reterritorializações, que não partam do sujeito já individuado, mas de
categorias que caracterizam o pré-individual, que era o que levava Deligny a perseguir o
“inato” e o “pré reflexivo”, como uma abertura para o sujeito larvar nos moldes
concebidos por Deleuze, que apontava para o processo contínuo de produção de um
campo intensivo de individuação que nunca se esgota.

Quando conheci o trabalho de Fernand Deligny, algo confirmou um sentimento que já


me acompanhava há tempos em minhas leituras de Deleuze e não foi difícil encontrar em
suas experiências ingredientes importantes para continuar a perseguir a possibilidade de
tornar audível as forças inaudíveis e fazer dizível o indizível, que não figuravam no
espaço da representação. O silêncio sempre me inquietou, pois sempre acreditei ser
possível dizer esse silêncio como uma experiência com um “fora da linguagem”, cabendo
encontrar formas de expressão cujos enunciados escapassem das funções familiares da
língua. A experiência com as crianças autistas não verbais de Cévennes com as quais
Deligny conviveu e tudo que ele produziu na forma de textos, filmes e mapas, invertiam,
definitivamente, minha questão. Não se tratava mais de partir para a reformulação da
linguagem em sua ordinariedade para, por um desvio, atingir uma zona de silêncio e poder
exprimi-la como um “fora” para além do sujeito já constituído em seu lugar de fala. Não
precisaria me voltar contra a linguagem pois ela não estava ali. As crianças autistas de
Cévennes viviam sua vacância, estavam no silêncio irremediavelmente e de forma
definitiva. Quando a voz falta o falar já não é uma questão de uma nova via, mas uma
real impossibilidade. Se a voz falta cessa a necessidade de adequação entre as palavras e
as coisas, estabelecendo-se, então, novos limites para o mundo que se fecha sobre o

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indivíduo que não tem mais a linguagem como sua pátria. Explorar esse mundo, a partir
daí, não passa por nenhum projeto que a voz dite a direção, mas se transforma em uma
ação onde os sentidos nunca chegam antes do caminho. Trata-se de localizar cada parte
daquilo que está ao redor, fora de qualquer espaço significante, escapando de poder dizê-
lo ou de dizer-se nele. Quando a voz falta, desaparecem os atos da fala, pois já não há
significante a ser relacionado a qualquer significado de um enunciado a ser pronunciado
por um ser da linguagem. O que há é um ser silencioso diante das coisas que o rodeiam.
Em vão nos poríamos a chamá-lo, pois ele não nos daria nenhuma resposta, uma vez que
ao existir sem querer exprimir, requerer ou ordenar, se distancia de qualquer intenção
comunicativa que signifique o mundo ao qual está embaralhado. Quando a voz falta o
que sobra? Sobram os gestos inadvertidos que não se colocam a serviço de nenhuma
finalidade, gestos desviantes que não fazem parte de nenhum projeto, pois são a expressão
de um ser a-consciente. Gestos que não se relacionam a uma fazer, uma vez que esse
necessitaria de um objeto no qual pudesse se realizar como seu objetivo, mas que fazem
parte de um agir para nada, sem acabamento e como uma atividade não-significante.
Sobra, então, a potência de agir, ou apenas a potência; um ser que é pura potência.

Esse ser como pura potência foi o que sempre me vinculou ao pensamento de Deleuze, a
partir da maneira como ele explorava os desvios, as mobilidades, os interstícios e a falta
de medidas. Como assinalava Roberto Machado, um pensamento nômade que vem
funcionar como um contrapensamento, um pensamento do fora onde as forças se elevam
a enésima potência (MACHADO, 1990, p.14). Potência que se manifesta na ausência;
ausência de uma medida que confira numa cadência a forma unificante de se reproduzir
os sons; ausência que faz oscilar ritmos singulares a vibrar frequências de corpos
destituídos da fala em suas “ritmicidades diferentes” (DELEUZE, 2016, p. 165). A
potência se afirma a partir de uma frequência que é a oscilação da força manifesta nos
corpos no qual a voz falta; força inaudível cujos traços de sua passagem não se
materializam em palavras, mas deixam rastros silenciosos de sua presença no mundo.
Tornar esses rastros audíveis requer que possamos “dar uma voz que não seja
necessariamente palavras aqueles que são totalmente desprovidos de uma” (DELIGNY,
2018, p. 140). A experiência com as crianças autistas de Cévennes nos remete a um campo
intensivo de individuação onde as forças ainda não se relacionaram nas formas, campo

14
de forças pré-individuais, tal qual definiu Gilbert Simondon 3, em seu equilíbrio
metaestável 4. Forças que se prolongam nos corpos como sinais sensíveis ainda não
informados, onde a tensão e a disparidade dos potenciais permitem uma série de novas
resoluções, carregadas de possibilidades que dão o tom de suas diferentes ritmicidades,
numa individuação que se dá como um transbordamento a-centrado e sem medidas.
Desvia-se aqui da noção do sujeito em proveito das singularidades pré-individuais e das
individuações não-pessoais (DELEUZE, 2016, p. 372), chegando-se a um mundo
pululado de singularidades anônimas, nômades e impessoais (DELEUZE, 1994, p. 106).
Essa desmesura destaca aquilo que Simondon já assinalava como princípio fundamental
para o processo de individuação, na dimensão do fluxo de um devir intransitivo a revelar
um ser cujo a defasagem se dá em relação a si mesmo, na perspectiva de sua
metaestabilidade. Defasagem cuja diferença é diferença de si que nos leva de volta ao ser
pré-individuado. O pré-individuado é marcado pela disparidade de potenciais que tem
entre si relações de divergências ou de disjunção, como frisou Zoubrabichvli, só se
comunicam por vizinhanças e podem ser nomeados "intensidades", "afectos" ou mesmo
"hecceidades" (ZOUBRAVICHVLI, 2004, p. 54).

Precisarei, de saída, articular o campo intensivo descrito por Deleuze como abertura
virtual, onde o que existe são buracos de tempo, puras sínteses de velocidades, de direções
e de ritmos, instâncias de um sujeito larvar e de intensidades puras, ao estado metaestável
que caracteriza a dimensão pré-individual com sua permanente tensão da disparidades de
potenciais integrados, na forma como apresentada por Simondon, constatando que a partir
dessa articulação chegamos a uma estágio que não se confunde com a de um sujeito
individuado e suas formas de resolução da espécie humana, através do qual se pode supor
o “intato” e o “pré-reflexivo” do estado de humanidade assim como foi proposto por
Deligny a partir de sua experiência com as crianças autistas não verbais de Cévennes.

3
O pensamento de Gilbert Simondon (1924 -1989), filósofo e tecnólogo francês teve uma influência
decisiva em Deleuze, a partir do conceito de individuação, que desenvolveu em sua tese de doutorado,
orientada por Jean Hyppolite, intitulada: “O indivíduo e sua gênese físico-biológica”. Para Simondon, a
individuação deve ser considerada como uma resolução parcial de um sistema que abriga potenciais
abrangidos em uma incompatibilidade que se caracterizaria pela coexistência de forças sem interação e
mantidas sob tensão.
4
O equilíbrio metaestável foi colocado por Simondon em contraposição ao equilíbrio estável. O equilíbrio
estável se caracterizaria por um sistema onde todas as transformações possíveis já teriam sido realizadas,
todos os potenciais já teriam sido atualizados, atingindo, assim um o seu nível energético mais baixo. Já
o equilíbrio metaestável caracterizaria um sistema no máximo deu nível energético onde potências
díspares coexistem e entre as quais ainda não existem comunicação interativa.

15
Peter Pál Pelbart irá encontrar a convergência do pensamento de Deleuze e Deligny,
quando afirma que ambos buscam o inumano diante de tudo aquilo que acabou
caracterizando o humano - consciência, vontade, desejo, inconsciente, etc.., mas que
enquanto em Deligny saía-se a perseguir atingir uma dimensão pré-humana, em Deleuze
isso tratava de alcançar uma dimensão pós-humana. (PELBART, 2013, p. 282). Além
disso ele também relaciona Deleuze com Simondon a partir da noção de um ser pré-
individual que se abre para o fora caótico que cada indivíduo carrega consigo e que
exprime as virtualidades e os potenciais num ser individuado (PELBART, 2013, p. 62).
Essa convergência irá conduzir minha abordagem em direção a interface de um sujeito
larvar e me permitirá identificá-la aos processos de individuação de corpos autistas não
verbais, de modo a podermos reconhecer as singularidades de suas diferenças inatas em
um tipo de deriva de corpos que resistem a ordenação do organismo e da eficiência do
funcionamento de um padrão majoritário. As crianças de Cévennes nos colocam diante
desse potencial disruptivo do ser pré-individuado e o seu silêncio, sua voz que falta e suas
derivas nos levam para o campo intensivo onde seus corpos se movem e onde sua
expressão é o transbordamento de sinais sensíveis ainda desinformados. Eles são a
expressão da possibilidade de um ser ainda não repartido em fases, mas em um estado de
tensão pré-individual onde as resoluções crescem e se estendem em todas as direções. A
falta de sua voz é, justamente, o excesso de possibilidade que lhes sobram, “num ser que
é mais que unidade e mais que identidade” (SIMONDON, 2020, p. 29). A ausência da
linguagem nessas crianças desloca a função de representar o mundo através de um
perorar, que para Deligny é o que distingue a espécie humana a partir de sua capacidade
dizer a si mesma e tudo aquilo que de si se separa. Refratárias a função da linguagem -
de recortar, identificar e comunicar - as crianças de Cévennes, desprovidas do perorar que
significa e traduz, se inserem no mundo sem a domesticação simbólica que transforma os
olhares num ponto de vista.

Sem a domesticação do simbólico o agir assume a deriva de um corpo onde as forças


mantem a sua tensão metaestável sem formar tipos exprimíveis por signos. A expressão
desses corpos a deriva se dá por um traçar que insiste em marcar os seus desvios dos
trajetos costumeiros e que Deligny cartografou por mapas que visavam localizá-los no
espaço comum de Cévennes. Toda língua é um padrão, uma medida que estende os limites
no mundo de quem a articula. Sua ausência, então, é o apagamento das margens que
circunscrevem os espaços onde os corpos se movem, onde a presença das coisas se faz

16
sentir por sua espessura não mediada por qualquer significado que crie certa familiaridade
ao se seguir por entre elas. Assim a relação do indivíduo sem fala com cada uma das
coisas em seu percurso assume um carater singular e inusitado, pois elas estão sempre a
se abrir para a sua exploração sem contar com o suporte da palavra que determine o seu
valor de uso e a posição no espaço de quem as encontra.

Cabe então, a partir daí, seguir as derivas e através de suas linhas localizar os territórios
onde os corpos se movem e se arranjam com as coisas silenciosamente, tramando uma
rede, sem significante, significado, sentido e interpretação, mas uma rede onde as coisas
estão sempre a se abrir em sua singularidade e mantendo o potencial metaestável que
permite a todo tempo novas individuações. O espaço onde as coisas surgem e esvanecem
sem que possam ser ditas é o campo intensivo das forças pré-individuais, onde a força
relaciona-se consigo mesma sem engendrar uma forma, mas levando a força ao limite de
sua diferença e onde cada ato é a singularidade de uma potência díspar, num jogo de
singularidades e de distribuição de diferença, para além do querer e da intencionalidade.
“Nesse mundo, onde o balanço da pedra e o ruído da água não são menos relevantes do
que o murmúrio dos homens, Deligny coloca-se na posição de “não querer”, a fim de dar
lugar ao intervalo, ao tácito, à irrupção, ao extravagar” (PELBART, 2014b, p. 253. As
vibrações dos corpos se potencializam pela vibração das coisas e engendram frequências
de um sistema integrado onde a energia potencial desse sistema metaestável é mantida no
máximo de sua tensão como princípio de uma afirmação diferencial. Os gestos das
crianças de Cévennes não significavam nada, mas se constituíam por fios de metamorfose
de estados singulares, fios que traçavam seus trajetos costumeiros e seus desvios e
levavam a encontros inusitados com as coisas sem nome e portanto sem função; coisas
que se afirmavam pela intensidade das suas forças constitutivas, sempre a revelar sua
singularidade diante de olhos que as contemplam com a exultação de alguém que as
contemplasse pela primeira vez.

Janmari, como o conheço, seria bem capaz – estranho aprendiz – de passar a


maior parte de seu tempo nesse agir de manejar o martelo guiado para ressaltar,
entusiasmado até os ossos por esse ímpeto vindo do metal, Janmari todo a
vibrar, como lhe acontece por vezes diante do barulho de uma fonte, quando
uma de suas mãos se espalma sobre o bronze ou a pedra, provavelmente para
que se encontrem “em algum ponto” daquele que, conforme se diz, é ele – não
que ele próprio o diga – as vibrações vindas do ouvir ou do tocar. Então –

17
ponham-se no lugar dele – vocês serão capazes de se aproximar do que seria o
exultar (DELIGNY, 2018, p. 247).

Quando a voz falta, não se possui a capacidade de nomear as coisas ao redor e de invocá-
las por um nome qualquer para trazer sua presença. Elas só são reparadas à medida que
experimentadas, e que suas vibrações se estendem sobre o corpo que as vê, ouve ou toca,
seguindo o seu curso. Assim, pretendo demonstrar como a experiência de Cévennes
revela a consistência de um modo de existência como traços de devires minoritários que
se constituem a partir da deriva natural de corpos como experiência limite que revelam
modos menores de existir. Não se trata de fazer fugir a língua e tornar-se estrangeiro em
seu próprio espaço, pois a língua não está aí. Quando a voz falta nada tem um nome a que
se possa referir e o nome que se tem não serve ao que se propõem quando se nomeiam as
coisas. Ao nomear as coisas vai se constituindo o sentido de um mundo cujo significado
pode se compreender a cada palavra proferida. Junto com elas, vai se projetando o
homem-que-nós-somos. Quando a voz falta, falta esse “homenzinho” 5 que não está aí”;
esse modelo de palavras encarnadas a partir da convenção de todo acordo ao qual os
signos se dirigem e fazem menção, mas não determina os atos. “O que dizer então? Que
falta alguma coisa a esse ato? O que falta a criança cujo ato parece permanecer em
suspenso é, propriamente dizendo, o homenzinho, que, supostamente, é a finalidade”
(DELIGNY, 2018, p. 240). Quando o homenzinho não está aí somos confrontados com
uma desmedida que nos obriga a rever nossas mais elementares certezas. Isso significa
que contestar tudo aquilo que acreditávamos sobre a razão, a sociedade, o corpo e a
cultura, colocando em o que nos parecia evidente, dado e necessário, em especial o poder
da linguagem e da razão (PELBART, 2019, p. 284). Uma coisa é desconstruir a ordem
do organismo, outra coisa é nascer em um organismo desconstruído. Quando se trata de
corpos onde a voz falta, não porque ela se calou, mais porque nunca esteve aí - corpos
que nunca reivindicaram um eu e sempre estiveram fora de um perorar que se afirma por
sua capacidade de dizer a si mesmo e as coisas ao seu redor - trata-se de corpos a deriva,
estranhos a qualquer perspectiva de compreensão e de finalidade. Contudo, estão aí diante
de nós, com seus agires desviantes e seu silêncio ensurdecedor. “Trata-se do indivíduo
em ruptura de sujeito, detectando por vezes aquilo que de nós escapa, aquilo que não

5
Deligny chamava de homenzinho essa caricatura de homem que se formou por crenças e convicções
que deverão ser incorporadas a partir de milênios de dominação simbólica, em contraposição com o
“humano de natureza” que seria aquilo que escapa a toda imagem pronta que possa definir o “homem-
que-nós-somos”-

18
vemos porque falamos, e que eles enxergam porque não falam” (PELBART, 2014b, p.
253).

Talvez ninguém consiga com a desenvoltura de Deleuze, quebrar o silêncio de quando a


voz falta, tornando audíveis forças não audíveis e de lidando com individuações que
mantém a abertura para o deslizamento de uma dimensão virtual e intensiva de uma
realidade que seria composta, como nos diz Zoubrabichvli, de fluxos em vez de
substâncias e de linhas em vez de pessoas (ZOUBRABICHVLI, 2016, p. 26), que
revelaria um “fora” irrepresentável. Pretendemos demonstrar como o descentramento da
função de uma unidade primordial operado pelo pensamento de Deleuze desloca o sujeito
de seu centro e opõe a ele um campo onde irão figurar as singularidades pré individuais,
as individuações não pessoais e as hecceidades, como bem observou Peter Pál Pelbart
(PELBART, 2019, p. 153). Para se atingir o campo intensivo, onde se pudesse construir
um corpo sem órgãos, onde o único sujeito possível fosse um sujeito larvar, haveria de se
promover uma desterritorialização do corpo organizado e distribuído em partes, funções
e hierarquias para se chegar a experimentação de um corpo que se constitui a partir dos
fluxos e das linhas de força (PELBART, 2019, p. 280). Trata-se de desterritorializar o
corpo organizado em torno de um sujeito que diz a si e o mundo a partir da linguagem.
Isso só é possível se colocarmos os signos em um estado de vibração para liberar as forças
que se encontram aprisionadas pelas palavras. Assim cabe aqui, fazer a língua gaguejar
para liberar a potência de uma singularidade pré-individual como sinais sensíveis ainda
não informados de seres que, parafraseando Pelbart, antes pareciam reclusos a esfera
subjetiva, mas que passam a afirmar um outro estatuto e uma nova vida e seus meios de
expressão próprios, a partir de dispositivos que sirvam para dar-lhes voz ou o permitam
dá-los a ver ou deixá-los se esquivarem (PELBART, 2014b, p. 250). Esse novo estatuto
em Deleuze parte em busca do pós-humano, do inumano que está para além das formas
subjetivadas do eu e da linguagem. Podemos, a partir dele, explorar os desvios e
localizarmos os devires minoritários que desmantelam a formas fixas das identidades
padrão. É seguindo esses desvios que percorreremos, então o caminho da diferença até
chegamos às montanhas de Cévennes onde a diferença estava manifesta ali diante das
“presenças próximas” 6, passando pelas esquivas que insistiam em desarticular a linha de

6
Presenças próximas era como Deligny chamava os adultos que conviviam com as crianças autistas nas
comunidades de Cévennes.

19
um trajeto costumeiro, desprovidas de palavras, a-sujeitadas e larvares; modos de
existência anônimos, a-subjetivos e refratários a toda domesticação simbólica
(PELBART, 2014b, p. 253).

As questões aqui mencionadas serão abordadas em três capítulos. No primeiro procurarei


demostrar a potência da diferença. Situarei o percurso da diferença no pensamento de
Gilles Deleuze, indo descobrir de que maneira podemos explorar a potência que advêm
de um processo de individuação que mantenha o ser como uma abertura permanente para
o deslizamento do virtual e suas forças pré-individuais para um atual onde se manifesta
um jogo de singularidades e de encontros inusitados que nos levem para longe de um
sistema centrado, codificado e linear onde operam os centros dotados de estabilidade de
um padrão maior. Abordarei os limites da normalidade a partir das experiências de
Fernand Deligny, reivindicando novas possibilidades de vida que não se vinculem a
eficiência do organismo. Discutirei, então, o que mantêm aberto o espaço da diferença
onde se processam os agenciamentos maquínicos de corpos e os agenciamentos coletivos
de enunciação em sua pressuposição recíproca, a partir da potência do virtual como um
nó de tendências que está sempre a constituir diferentes modos de existência e inventando
novas possibilidades de vidas. Isso só é possível se pudermos compreender como a
individuação deve manter as tensões de um campo metaestável em cada uma de suas
atualizações. Assim, irei analisar como se estratificam os agenciamentos no plano de
organização, através de dispositivos que organizam linhas de modelos dominantes em
relação aos demais. Como contrapartida haverei de demonstrar como se manifesta a
potência de um estado metaestável em um processo de individuação continuo capaz de
produzir novas relações nos indivíduos, nos seus corpos e a sua relação como o mundo
ao seu redor.

O segundo capítulo irá situar a noção de um campo intensivo onde se realizam as


individuações que são fonte de estados metaestáveis futuros. Irei problematizar o
conceito da ação de forças em um campo onde a individuação não impõe limites, mas
estoura bordas, cria zonas de vizinhanças, deixando fervilhar intensidades, para além da
ordem da continuidade do plano de organização e do solo das identidades fixas. Diferente
de um processo de subjetivação que constrói o ponto de vista do sujeito, veremos como
o campo intensivo permite manter a tensão de forças livres e ainda não relacionadas nas
formas sensíveis, fora da cadeia representativa das significações de um organismo que

20
relaciona as forças nas unidades fundantes das formas majoritárias de uma subjetividade
dominante. E é exatamente nesse campo onde será possível a manifestação da diferença,
como potência que transcende as forças de conservação do organismo que visam
hierarquizar aquilo que pode os órgãos, no sentido de uma eficiência em prol da
preservação da espécie. Irei analisar, então, o corpo sob a ação de forças que trabalham
em função da manutenção e da ordem do organismo e, em oposição, o corpo sob a
influência de forças que o abre a produção de novas possibilidades de vida, a partir de sua
capacidade de se reinventar, procurando novas formas de expressar a potência de afetação
das forças que o atravessam.

O terceiro capítulo pretende situar o lugar da diferença como o espaço da interface do


sujeito larvar, em detrimento do lugar do sujeito do organismo articulado sob os extratos
do plano de organização. Veremos como é possível construir um corpo sem órgãos diante
do plano de organização que estratifica as formas, os sujeitos, os órgãos e as funções.
Analisaremos de que maneira a interface do sujeito larvar libera as potências pré-
individuais em sua metaestabilidade, a partir dos sinais sensíveis como rastros da
contração do mundo, na dimensão das intensidades desinformadas que agem como puras
intensidades. Se de um corpo sob a ordem do organismo, espera-se que as vibrações do
mundo sejam convertidas em impulsos que determinarão a função de cada órgão no
esquema do organismo, tentaremos compreender como num corpo sem órgãos, ou num
corpo a deriva, as vibrações se prolongam e mantêm a tensão das forças sem que a
resolução dessa disparidade original se traduza em uma forma fixa de uma função
determinada. Veremos como ao corpo sem órgãos não faltam órgãos, mas que sua
resolução não se define através das funções hierarquizaras do organismo, mas sim a partir
da potência da diferença como nó de tendências do virtual, que permite que as
articulações das forças relacionadas nas formas possam ir além das cadeias selecionadas
por cada plano de organização que se estabelece como fundamental e hegemônico,
verificando a possibilidade de novos modos de vida de quando o homenzinho não está
(aí) e de cujas expressões só podem ser expressões intensivas.

21
CAPÍTULO I – A POTÊNCIA DA DIFERENÇA

DELEUZE E O CAMINHO DA DIFERENÇA

Na introdução que escreveu para a edição italiana da Lógica do sentido (1969), Deleuze
afirma que as noções ali permaneciam as mesmas de Diferença e repetição (1968):
multiplicidade, singularidades, intensidade, acontecimentos, infinito, problemas,
paradoxos e proporções (DELEUZE, 2016, p. 68). Na décima quinta e na décima sexta
série de a Lógica do sentido (1969), Deleuze irá relacionar as singularidades anônimas,
nômades, impessoais e pré-individuais ao campo do transcendental, onde figurariam a
energia livre e não ligada que continuaria a percorrer os indivíduos quer fossem eles
homens, plantas ou animais. (DELEUZE, 1994, p. 110). Essa energia livre seria
responsável pelo salto do indivíduo para fora do campo transcendental sendo a primeira
parte de sua gênese (DELEUZE, 1994, p. 113). Essa gênese já tinha sido descrita por
Deleuze em Gilbert Simondon, O indivíduo e sua gênese físico-biológica (1966) quando
ele analisa o princípio de individuação como um princípio verdadeiramente genético e
não simples princípio de reflexão, que levará a passagem do ser pré-individual ao
indivíduo (DELEUZE, 2006, p. 117). A condição prévia para a individuação seria a
existência de um sistema metaestável que se caracterizaria como uma diferença de
potencial, diferença em si marcada por níveis díspares, ordens heterogêneas, que só mais
tarde entrarão em comunicação no ser individuado (DELEUZE, 2006, p. 118). O ser pré-
individual é singular sem ser individual. Segundo Simondon o ser individuado é o ser já

22
determinado em sua identidade que se afirma pela essência de cada coisa determinada
como um individuo inteiramente constituído, seja ela “o átomo, partícula indivisível e
eterna, a matéria prima, ou a forma” (SIMONDON, 2005, p. 23), cada uma delas
figurando como fase específica de um ser já individuado. Fora dessa unidade substancial
o que pode existir é uma “incompatibilidade rica em potenciais” (SIMONDON, 2005, p.
25), onde a diferença não se afirma enquanto oposição, mas a partir de uma diferença
original que se determina por intermédio de um princípio de impermanência. Tal
princípio imprime uma mobilidade primordial onde cada potência se afirma, como bem
descreve Deleuze, no limite de sua “velocidade infinita de nascimento e esvanescimento”
atuando em um campo intensivo. A caracterização dessa dimensão intensiva do ser por
Deleuze, vinculando-a aos impulsos ou forças inextensas ainda não relacionadas nas
formas ou a singularidades ainda não efetuadas, invoca o ser pré-individual de Simondon,
em contraste com o ser já individuado que se refere e a dimensão das formas extensas
onde já existe qualidades e partes. Esse duplo, em Deleuze se relaciona a ao duplo
virtual/atual. Teríamos então a virtualidade de um campo intensivo pré-individual face a
atualidade de um campo extenso individuado, onde o deslizamento entre estas duas
dimensões é que destacaria a diferença como elemento genético que está no cerne de toda
a sua filosofia.

Esse campo é intensivo, isto é, implica uma distribuição em profundidade de


diferenças de intensidade. Ainda que a experiência nos coloque sempre na
presença de intensidades já desenvolvidas em extensos, já recobertas por
qualidades, devemos conceber, precisamente como condição da experiência,
intensidade puras envolvidas uma profundidade, num spatium intensivo que
preexiste a toda qualidade assim como a todo extenso. A profundidade é a
potência do puro spatium intenso; a intensidade é tão somente a potência da
diferença ou do desigual em si, e cada intensidade é já diferença do tipo E-E',
em que E, por sua vez, remete a e-e' e e, a €-€’etc. Tal campo intensivo
constitui um meio de individuação. Eis porque não basta lembrar que a
individuação não opera nem por especificação prolongada (species ínfima),
nem por composição ou divisão das partes (pars ultima). Não basta descobrir
uma diferente de natureza entre a individuação, de um lado, e de outro, a
especificação e a partição, pois a individuação é, ademais, a condição prévia
sob a qual a especificação e a partição ou a composição operam no sistema. A
individuação é intensiva e se encontra suposta por todas as qualidades e
espécies, por todos os extensos e partes que vêm preencher ou desenvolver o
sistema (DELEUZE, 2006, p. 132).

23
A diferença na perspectiva deleuzeana não contém nenhuma negação, ela é a afirmação
pura. Para além da prisão da identidade que aliena a experiência da vida, ela é a afirmação
do acaso – eterno retorno da possibilidade de novos modos, de novas formações no “aqui
e no agora”. Encontros de onde saem inesgotáveis, os “aqui” e os “agora” sempre novos,
diversamente distribuídos; afirmação da vitalidade da diferença que retorna extraviando
toda a reatividade do mesmo. A diferença como elemento genético da filosofia
deleuzeana, não se coloca como a distinção de um mesmo e um outro, mas como algo
que se afirma enquanto potência diferenciadora e motor de todo acontecimento levado ao
infinitivo; potência virtual que não para de se atualizar como uma nova possibilidade.
Quando tomada como oposição entre dois contrários a diferença serve para fixar a
identidade do que se quer comparar. Para Deleuze o primado da identidade define o
mundo da representação.

Diz-se que a diferença é mediatizada na medida em que se chega a submetê-la


à quádrupla raiz da identidade e da oposição, da analogia e da semelhança. A
partir de uma primeira impressão (a diferença é o mal), pode-se salvar a
diferença, representando-a e, para representá-la, relacioná-la às exigências do
conceito em geral (DELEUZE, 1988, p. 65).

Contudo, Deleuze irá problematizar a diferença em si mesma, como razão suficiente de


toda diversidade e mudança (DELEUZE, 1988, p. 355). A diferença está ligada ao devir
e este como o movimento de uma contínua mudança. Se a identidade determina o mesmo
de tudo aquilo que permanece, o devir é a fronteira, a linha de fuga por onde o ser se
move em sua absoluta diferença. A identificação se dá através da capacidade de se gerar
um quadro geral que limite e reparta em fases tudo aquilo que permanece e a partir daí se
possa traçar um princípio de identidade. Porém, aquilo que garante a identidade só pode
ser tido como efeito de uma diferença primeira, tornada possível pelo devir, e esse como
capacidade que o ser tem de se desfasar em relação a si mesmo. Em Deleuze, como bem
observou Michael Hardt:

O movimento do ser é uma progressão de diferenças internas na medida em


que a causa e sempre inerente ao seu efeito. Dessa maneira, o movimento
ontológico e libertado de quaisquer jogos de negações e é posto, ao invés disso,

24
como absolutamente positivo, como uma diferenciação interna (HARDT,
1996, p. 174).

Para Deleuze o primado da identidade define o mundo da representação. Assim, seu


trabalho visa descobrir todas as forças que agem sob a representação do idêntico
(DELEUZE, 1988, p. 16). O que Deleuze irá perseguir como condição de sua filosofia é
o que no ser se diz do devir, na identidade se diz do diferente e no uno se diz do múltiplo
(DELEUZE, 1988, p. 83). Para ele “o gênio de uma filosofia se mede em primeiro pelas
novas distribuições que impõe aos seres e aos conceitos” (DLELEUZE, 1994, p. 7). Daí
a força da filosofia da diferença residir em sua capacidade de lidar para além dos estados
de coisas e das misturas no fundo dos corpos, com a potência incorporal dos
acontecimentos no infinitivo e sua distribuição de singularidades; uma distribuição de
diferenças que determina a atualização de forças inextensas como uma atividade criadora
em relação aquilo que ela atualiza. Para entendermos a noção de passagem do virtual para
o atual é fundamental compreendermos como Deleuze se utiliza da noção do processo de
individuação formulado por Simondon , que supõe a existência de um sistema de
equilíbrio metaestável e que seria um estado de dissimetria onde a diferença existiria
como energia potencial de elementos que não se comunicam e mantêm o máximo da
energia potencial repartida em singularidades de um ser pré-individual (DELEUZE,
2006, p. 118) Através da individuação, duas ordens de grandeza ou duas escalas de
realidade heterogênea se comunicam, atualizando o potencial em qualidades e partes
(DLEUZE, 1988, p. 393). É com base nessa confrontação entre uma dimensão virtual de
um campo intensivo e uma dimensão atual de um campo preenchido por qualidades e
partes que Deleuze irá dar sentido ao deslizamento entre essas duas dimensões. É
importante notar como Deleuze conduz o problema da diferença como princípio genético,
forjando os conceitos sobre os seus dois aspectos, a partir do uso dos verbos
différentiation e différenciation, para caracterizar a distinção entre o virtual e o atual. A
diferenciação indicaria o estado das relações diferenciais como multiplicidade virtual,
enquanto a diferençação comportaria a atualização dessa multiplicidade a partir do
momento que estas relações diferenciais se encarnam em qualidades e partes.

Se é verdade que a qualificação e a partição constituem os dois aspectos da


diferenciação, dir-se-á que a Ideia se atualiza por diferençação. Para ela,
atualizar-se é diferençar-se. Nela mesma e na sua virtualidade, portanto, a Ideia
é totalmente indiferençada. Todavia, de modo algum ela é indeterminada. É

25
preciso atribuir a maior importância à diferença das duas operações, diferença
marcada pelo traço distintivo ç/ci: diferençar e diferenciar. Nela mesma, a
Ideia, ou a coisa em Ideia, de modo algum é diferençada, pois lhe faltam as
qualidades e as partes necessárias. Mas ela é plenamente e completamente
diferenciada, pois dispõe de relações e singularidades que se atualizarão sem
semelhança nas qualidades e partes. Então, parece que toda coisa tem como
que duas “metades” ímpares, dissemelhantes e dissimétricas, sendo que cada
uma dessas metades divide-se em duas: uma metade ideal, mergulhando no
virtual, e constituída, ao mesmo tempo, por relações diferençais e
singularidades concomitantes; uma metade atual, constituída pelas qualidades
que encarnam essas relações e, ao mesmo tempo, pelas partes que encarnam
essas singularidades (DELEUZE, 2006, p. 136).

A dimensão virtual estaria ligada a um estado distinto e obscuro. Nesse ponto Deleuze
apela para o conceito de pequenas percepções em Leibniz sobre o murmúrio do mar, que
seriam distintas e obscuras. Distintas por caracterizarem relações diferenciais (rapports
différentiels) e singularidades, obscuras, por não serem ainda “distinguidas”, não serem
ainda diferençadas (differenciées) (DELEUZE, 1988, p. 343). A noção de diferença em
Deleuze forja a compreensão de uma dimensão do ser sem fases, pré-individual, que não
se confunde com a identidade. Talvez Nietzsche seja a principal inspiração de Deleuze
para a sua tentativa de subverter o primado da identidade através do pensamento da
potência da diferença. Será de Nietzsche que Deleuze irá se apropriar de dois conceitos
que se tornaram fundamentais no seu edifício conceitual: o conceito de eterno retorno e
o conceito de vontade de potência. Ambos serviram para explicitar o percurso da
diferença como potência genética do seu pensamento. Utilizando seu procedimento de
levar o autor a ter dito aquilo que ele lhe fazia dizer, manifestando um conteúdo latente,
Deleuze chegara a uma definição do conceito de eterno retorno, sem que nunca Nietzsche
o tenha o feito. De acordo com Deleuze o eterno retorno não poderia manifestar um
sentido do retorno do mesmo. Ele se apercebe disso a partir do diálogo na terceira parte
de “Assim falava Zaratustra”, frente ao qual vê-se Zaratustra doente e depois
convalescente e quase curado.

O que faz com que Zaratustra esteja doente é precisamente a ideia do ciclo: a
ideia de que tudo volte, que o esmo volte, e que tudo volte ao mesmo. Porque
neste caso, o eterno retorno não passa de uma hipótese, uma hipótese ao mesmo
tempo banal e aterrorizadora (...) O que se passou quando Zaratustra estava

26
convalescendo? Apenas resolveu suportar o que não suportava há momentos?
Aceita o eterno retorno, apreende a sua alegria. Trata-se apenas de uma
mudança psicológica? Evidentemente que não. Trata-se de uma mudança na
compreensão e na significação do próprio eterno retorno. Zaratustra reconhece
que, doente, ele não compreendera nada sobre o eterno retorno. Que este não
é um ciclo, que não é retorno do mesmo nem retorno ao mesmo (DELEUZE,
1985, p. 32-33).

O eterno retorno, então, segundo Deleuze não seria o retorno do mesmo num ciclo onde
tudo retorna, mas sim como um pensamento nietzschiano sobre o puro devir. Como crítica
a um estado de equilíbrio estável. Se o devir tivesse um estado final ele já o teria atingido,
mas o instante atual, como instante que passa, mostra que esse estado ainda não foi
atingido e força-nos a pensar o devir como o que não pode começar e o que não pode
acabar de se tornar . Assim o eterno retorno segundo Deleuze seria voltar, o ser do que
devém (DELEUZE, 1976, p. 24). Dessa maneira, o eterno retorno é visto como o processo
de atualização das potências virtuais, que coexistem diferenciadas como determinações
heterogéneas e que irão se repartir em qualidades e partes diferençadas.

E, nesse sentido, não deve ser interpretado como o retorno de alguma coisa que
é, que é um ou que é o mesmo. Na expressão eterno retorno, fazemos um
contrassenso quando compreendemos retorno do mesmo. Não é o ser que
retorna, mas o próprio retornar constitui o ser enquanto é afirmado do devir e
daquilo que passa. Não é o um que retorna, mas o próprio retornar é o um
afirmado do diverso ou do múltiplo (DELEUZE, 1976, p. 25).

O eterno retorno na perspectiva deleuzeana do devir da diferença está intrinsecamente


relacionado com a vontade de poder (potência), e esta vista como o devir das forças ou
como próprio princípio da diferença – a vontade como retorno da potência da diferença.
Deleuze irá fazer uma distinção que não está explicita em Nietzsche que é a distinção
entre vontade e foça. Aqui, mais uma vez ele irá buscar a distinção entre o virtual e o
atual. O campo de relação das forças já repartidas a partir da sua capacidade de afetar e
ser afetada, como ativas e reativas, se relacionam com a qualidade e quantidade dessas
forças. (DELEUZE, 1976, p. 21). Já a vontade de poder é atribuída a força como uma
vontade interna ou elemento genealógico de sua diferenciação, virtual e intensivo. A
vontade de poder é a potência que age na força, princípio da síntese das forças, sendo essa
síntese tida como o eterno retorno (DELEUZE, 1976, 25).

27
A vontade de poder não é a força, mas o elemento diferencial que determina a
relação entre as forças (quantidade) e a qualidade respectiva das forças em
relação. É nesse elemento da diferença que a afirmação se manifesta e se
desenvolve enquanto criadora. A vontade de poder é o princípio doador ou a
virtude que doa (DELEUZE, 1976, p. 89).

O caminho da diferença é trilhado por Deleuze como um contraponto a um pensamento


representativo que se caracteriza a partir do ser como identidade. Tal oposição se faz por
intermédio da afirmação da equivalência entre o ser e a diferença e somente se essa
funcionar como um princípio de criação no novo, na passagem do virtual para o atual. A
atualização equivale, então, ao deslizamento da dimensão virtual intensiva, realidade
ideal plenamente diferenciada a partir de suas relações e singularidades, que será
diferençada em qualidades e partes. É através do plano de imanência que o pensamento é
capaz de lidar como essa zona de intensidade indiferençada onde as ideias fogem o tempo
todo ou se precipitam em outras como variabilidades infinitas. O plano de imanência é o
que dá consistência ao pensamento. É um crivo que recorta as variabilidades caóticas e
encarnam, através dos conceitos, as ideias indiferençadas, “Um conceito é um conjunto
de variações inseparáveis, que se produz ou se constrói sobre um plano de imanência, na
medida em que este recorta a variabilidade caótica e lhe dá consistência” (DELEUZE,
1992, p. 267). Não se trata de recolher as semelhanças através da identidade, mas atualizar
as diferenças mantendo a tensão original das forças que se relacionam nas formas
individuadas. Tais formas mantêm o potencial diferenciador à medida que preservam
como que duas metades ímpares, dissemelhantes e dissimétricas. Cada uma dessas
metades divide-se em duas: “uma metade ideal, mergulhada no virtual e constituída, ao
mesmo tempo, por relações diferenciais e singularidades concomitantes; uma metade
atual, constituída pelas qualidades que encarnam essas relações e, ao mesmo tempo, pelas
partes que encarnam essas singularidades” (DELEZUE, 2006, p.136).

Para Deleuze o pensamento da representação desvirtua a diferença subordinando-a à uma


quádrupla ilusão: a da identidade no conceito, da semelhança na percepção, da oposição
no predicado e a da analogia no juízo, sendo recoberta por uma imagem composta de
postulados que desnaturam seu exercício e sua gênese (DELEUZE, 1988, p. 415).
Restaurar a diferença passa por livrá-la dessas ilusões. Restaurar a diferença frente a
primeira ilusão trata-se de desfazer o nó que consiste em representar a diferença sob a

28
identidade do conceito e do sujeito pensante, pensando a profunda rachadura do Eu e
mesmo sua própria morte, na forma pura e vazia do tempo como virtualidade intensiva
(DELEUZE, 1988, p. 420). Como diferença de intensidade ela não é sensível e, portanto,
faz-se necessário que ela desfaça o nó que a subordinava ao semelhante na percepção que
a assimilava como um diverso tomado como matéria do conceito do idêntico (DELEUZE,
1988, p. 421). Livrar a diferença da ilusão da oposição do predicado é livrar a ideia da
subordinação ao negativo que atua produzindo predicados contrários ou limitando
predicados primeiros (DELEUZE, 1988, p. 425). E, finalmente, livrar a diferença da
ilusão da analogia, passa por desfazer a maneira como a representação funda-se na
identidade e a representa num número de conceitos determináveis que distribui a
diferença, traindo a natureza do ser como diferença individuante. Nesse caso “o indivíduo
só é e só é pensado como portador de diferenças em geral, ao mesmo tempo em que o
próprio ser se reparte nas formas fixas destas diferenças e se diz analogicamente daquilo
que é” (DELEUZE, 1988, p. 426). O pensamento da diferença irá recuperar a potência
das forças (vontade de potência) como um virtual em curso de atualização, que opera no
plano de imanência. O plano de imanência recorta a variabilidade caótica e comporta
tanto o virtual quanto a sua atualização, tanto a ideia indiferençada e sua encarnação em
qualidades e partes, tanto o conjunto de relações diferenciais, quanto as individualidades
constituídas. É sobre o plano de imanência que o virtual e o atual coexistem e que o
conceito é criado, conservando toda a potência da ideia diferenciada e sua atualidade
diferençada.

O plano de imanência contém a um só tempo a atualização como relação do


virtual com outros termos, e mesmo o atual como termo com o qual o virtual
se intercambia. Em todos os casos, a relação do atual com o virtual não é a que
se pode estabelecer entre dois atuais. Os atuais implicam indivíduos já
constituídos, e determinações por pontos ordinários; ao passo que a relação
entre o atual e a virtual forma uma individuação em ato ou uma singularização
por pontos relevantes a serem determinados em cada caso (DELEUZE, 1998,
p. 179).

Imaginemos a seguinte taxonomia: " os animais se dividem em: a) pertencentes ao


imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães
em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j)
inumeráveis, k) desenhamos com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) etecetera,

29
m) que acabam de quebrar a bolha, n) que de longe parecem moscas... (BORGES, 2000,
p.76). A taxinomia de Borges é, na verdade, uma provocação às tentativas de chegar a
um sentido preciso e a um conteúdo determinável de um espaço comum. O fato de todos
os itens distribuírem os conteúdos de forma que cada uma das classificações contém todas
as outras, faz seu absurdo não consistir na extravagância de encontros insólitos, mas na
impossibilidade da repartição de coisas enumeradas, desfazendo a possibilidade de
agrupamentos classificatórios e o sentido das identidades que os sustentam. "Sabemos
que entre um homem e uma mulher passam muitos seres, que vêm de outro mundo,
trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das raízes, e não se deixam compreender
em termos de produção, mas apenas de devir." (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p.19).
O pensamento da diferença, em Deleuze, não se propõe a organizar ou classificar por
identidade e semelhança, nem impor uma sequência e uma linearidade aos
acontecimentos e fenômenos. Trata-se de capturar movimentos de transformação da
realidade que abrem espaço para as novas produções de subjetividade, onde o indivíduo
pode expressar as marcas singulares de sua existência em suas diferentes maneiras de
pensar e viver. As formas de distribuição e classificação que utilizam modelos para
comparar, identificar e ordenar pela representação, negam modos singulares de
existências e percepções únicas de estados vividos. Sendo assim, as tentativas de inclusão
de indivíduos à um modelo de desenvolvimento, procurando adaptar e legitimar
significados e sentidos representativos, acabam instituindo os padrões de ser no mundo.
Longe disso, o pensamento de Deleuze busca afirmar a diferença como possibilidade de
transformação das práticas dominantes, gerando um espaço onde os modos de ser
escapam aos padrões preestabelecidos, transbordam a normalidade, desorientam os
modos de existências e os comportamentos instituídos. A diferença deleuzeana rompe
com a representação, com o modelo-referência e com a realidade compreendida de forma
majoritária, produzindo modos de existência que não se confundem com os sentidos e
significados adotados como regras universais. A afirmação de formas de vida singulares
passa pela abertura a um meio onde surjam encontros não determinados. Encontro de
corpos, ações, paixões, afetos e as expressões mais legítimas desses encontros, liberando
as diferenças dos esquemas comparativos a serviço da eficiência de um modelo
hegemônico, libertando os significantes da tirania dos significados ordenadores e
classificatórios. Chega-se, então, a partir daí, à recusa de uma adaptação às projeções de
um mundo já classificado e organizado, como forma de resgate de uma diferença que não
pode ser medida e que se manifesta pela expressão de mundos múltiplos e sempre

30
inimagináveis. Diferença que faz resistir; resistir às formas oficiais e de dentro delas,
através das criações que abrem espaços a devires minoritários, provocar articulações dos
sentidos, corpos, olhares, movimentos e expressão; novos encontros que fazem fugir das
formas padronizadas um elemento subversivo que afirma a novidade.

O elemento subversivo da diferença deleuzeana não pode ser reduzido a uma categoria
identitária que a classifique como falta ou deficiência a ser acolhida no seio das estruturas
majoritárias. Ele deve provocar a desorientação dos esquemas de submissão,
normalização, controle e reprodução, produzindo novas formas de se mover, pensar,
enxergar, falar e ouvir. Formas que não sejam rotuladas pelas categorias
homogeneizantes, mas que se propaguem por contágio em um corpus ordenado e estável
onde se pretenda incluir. A diferença para Deleuze, deve ser irredutível ao regime do
mesmo, do idêntico ou do semelhante, abrindo uma zona de vizinhança e de
indiscernibilidade onde o outro deixa de se opor ao mesmo, lançando-se com toda a sua
potência singular na tarefa de produzir novos mundos possíveis, desvendando paisagens
inesperadas a produzir efeitos que fazem da diferença uma potência para a vida. Não se
tem aqui o outro na perspectiva de uma oposição, onde o critério de diferenciação surja a
partir de um padrão de ser-no-mundo, mas como novidade absoluta em que a
singularidade do existir e a necessidade de afirmar a diferença ela mesma, com todos os
traços que não a confunde com os agenciamentos majoritários, libera os indivíduos para
criação de novas possibilidades de vida através de sua potência de agir. Potência que não
pode ser medida, classificada, avaliada na dimensão de estar apta a produzir a partir dos
pressupostos de uma lógica dominante, congregando as diferenças numa legitimada
normalidade, mas deve apenas ser vivida na dimensão mais fiel de sua liberdade de
existir. O pensamento de Deleuze a partir do exercício da diferença, nos auxilia a superar,
então, o discurso da normalidade que produz o deficiente, que produz a anormalidade,
que produz a ideia de que falta algo no outro, abrindo brechas por onde vazam as
potências incontroláveis, desconhecidas e insubmissas. Sair do ponto de vista da
normalidade, onde o diferente é tido como anormal, segundo o seu padrão de produção
da realidade e, portanto, limitado e deficiente. Só conseguimos isso se pensarmos a
diferença como o lugar da produção do novo, fora do padrão normatizado de uma única
forma de aprender, produzir e viver. Pensar a alteridade escapando, deslizando, não
situando a diferença como marginal em relação ao centro, mas imanentemente fora;

31
pensá-la de um não-lugar, algo como um entre-lugar que fica na dobra, no liame, na
fronteira, no interstício.

(...) a questão é que, para toda a alteridade que não se pode traduzir no Mesmo
da razão, no Mesmo do corpo que ouve, no Mesmo do corpo que enxerga, no
Mesmo do branco, no Mesmo do ocidente, no Mesmo do heterossexual, no
Mesmo do adulto etc., só é possível existir neste cenário de interioridade ou
exterioridade. Ou se está dentro deste cenário - desta espacialidade em que o
Mesmo é o centro e do qual, a partir dele, panopticamente, tudo é olhado e
determinado -, ou se está fora, na sua margem, na sua periferia. Este único
cenário que conduz a pensar apenas em termos de inclusão/exclusão produz
uma localização, no mínimo, arrogante, para não dizer perversa: nesta
oposição dentro/fora, a positividade está no “dentro” que, por sua vez, é o lugar
(natural) da mesmidade. Portanto, se por um lado, e por oposição, estar no
“fora” /excluído, significa a negatividade, ao mesmo tempo, a inclusão do
outro implica a sua captura para o lugar que é inerentemente do Mesmo, da sua
ordem, da sua forma de existir (WIACEK, 2004, p. 56).

A relação com a diferença não pode ser uma tentativa de restringir o seu espaço,
normalizá-la, adequando seus traços distintivos a uma média padrão eficiente. Ela deve
ser o inverso disso, um processo de transformação da realidade a partir de sua potência
de produzir o novo e o inimaginável. Não se deve buscar adaptar o indivíduo que está
fora das medidas tradicionais com que são produzidas as regras de funcionamento das
engrenagens que sustentam o desenvolvimento da espécie, mas sim abrir espaço a novas
espécies, com seus tempos próprios, habilidades específicas e ritmos singulares. Se as
estruturas corporais e cognitivas estão fora da média de normalidade e de funcionamento
do padrão eficiente, não cabe adaptá-las, mas fazer com que o seu devir altere o ritmo de
funcionamento das estruturas majoritárias, liberando novas habilidades, novas
funcionalidades e novos estados de ser. Um devir minoritário deve ser capaz de construir
uma nova forma de se mover, de se relacionar e de estar no mundo; uma nova forma de
expressão e uma nova discursividade, mantendo a potência de uma forma menor. Menor
não por ser um desenvolvimento considerado deficitário, frente a hegemonia do
desenvolvimento dito normal, mas porque não se deixa engolir pelas estruturas
majoritárias de saber e poder, mantendo a potência da diferença, força diferenciadora,
potência incontrolável, imprevisível de dispersão e de errância.

32
(...) é preciso que a diferença se torne o elemento, a última unidade, que ela
remeta, pois, para outras diferenças que nunca a identificam, mas a
diferenciam. É preciso que cada termo de uma série, sendo já diferença, seja
colocado numa relação variável com outros termos e constitua, assim, outras
séries desprovidas de centro e de convergência. É preciso afirmar a divergência
e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada ser deve ser a sua própria
identidade absorvida na diferença, cada qual sendo apenas uma diferença entre
as diferenças (DELEUZE, 1988, p. 107).

A partir de Deleuze, não cabe um olhar que se forme a partir do ponto de vista da
normalidade e que invista suas energias na tentativa de aceitar a diferença como uma
limitação acomodada no seio do espaço do mesmo. Ele procura, o tempo todo, desmontar
os esquemas reprodutores que consolidaram os matizes da anormalidade como defeito ou
deficiência, a partir de critérios que definem o normal e eficiente. A normalização das
características a partir dais quais se julga o diferente é uma construção que se consolidou
ao longo da história dos embates das forças no mundo, construção orgânica, social,
política e econômica, e visa afastar os ruídos que ameaçam atrapalhar a harmonia de um
corpo funcional; espaço disposto de forma ordenada, definida e produtiva, ordenada por
uma plano de organização e constituída por estratos. Produção e reprodução de um corpo
cujos órgãos cumprem os seus papéis no organismo, que reage a cada perturbação, através
de anticorpos que eliminam os invasores ou os adaptam de forma a reestabelecer a ordem
interrompida. Dessa forma, precisamos chegar a um corpo sem órgãos no sentido que o
conceito assume em Deleuze, que não se define pela ausência de órgãos, mas a partir da
insubmissão do copo à ordem do organismo que determina as funções em prol de um
trabalho útil. Trata-se de produzir um corpo a partir das múltiplas conexões que se
estabelecem em uma interface que se faz sujeito; sujeito larvar em um campo intensivo
de individuação que é uma abertura por onde não para de transbordar múltiplas
possibilidades, sempre como um jorro ininterrupto de uma imprevisível novidade.
Deleuze irá descrever esse processo a partir do princípio de individuação de Simondon,
por intermédio da possibilidade da construção de um corpo que mantenha a potência
virtual de suas determinações; individuação que não cessa de fazer passar as forças pré-
individuais que fazem dos encontros nas formas individuadas uma solução sempre
provisória e no infinitivo. Nesse corpo os órgãos se liberam das funções do organismo,
assumindo determinações singulares ricas em potenciais que não cessam de ultrapassar o

33
indivíduo constituído na dimensão atual das formas fixas; dimensão das forças pré-
individuais onde o ser ainda não se repartiu em fases, mas mantem a tensão de uma
incompatibilidade original. Esse corpo é sempre uma experimentação, uma prática ou um
conjunto de práticas ao qual nunca se pode chegar porque sempre leva a um limite
(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 9). Nele os órgãos não mais desempenham funções,
mas viabilizam encontros que deixam escoar as forças intensivas que o atravessam sua
superfície como impulso ainda não informado. Corpo que é interface onde os impulsos
circulam sem que o organismo os informe e os faça se desdobrar em funções presididas
pelos dispositivos de controle do plano de organização, mas se abra em uma diversidade
funcional que siga os ritmos das intensidades circulantes. “Por que não caminhar com a
cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar como o ventre” (DELEUZE;
GUATTARI, 1996, p. 11). Para Deleuze, deve-se buscar um corpo sem órgãos que de
alguma maneira só possa ser ocupado e povoado por intensidades, sendo um não-lugar
ou um lugar de passagem, capaz ele mesmo em sua feitura, produzi-las e distribuí-las
num espaço que é intensivo e não extenso (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 13). Por
isso o pensamento de Deleuze é um manifesto de um corpo aberto a conexões, circuitos,
conjunções, superposição e limiares que se descolam de uma realidade dominante e
majoritária comandada pelo organismo (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 22).

O conceito de diferença em Deleuze coloca-nos nas bordas do campo intensivo, onde a


única coisa que pode subsistir é a interface de um sujeito larvar, um sujeito que possa
suportar as pressões das intensidades e a tensão da incompatibilidade de potenciais
díspares de dinamismos que se distribuem como diferença de intensidades. Sujeito que
só pode se constituir como esboço ainda não qualificado nem composto (DELEUZE,
2006, p. 133), onde as intensidades não se rebatem e não assumem as informações do
organismo mas se propagam numa interface que as multiplicam de forma imprevisível e
descoladas dos pontos que fixam as formas de um padrão majoritário. O principio da
diferenciação deleuzeano nos põem a seguir às diferenças no percurso das intensidades
circulantes que não se sujeitam às formas que fixam as fases do ser, mas que invocam um
devir que agencia sujeitos larvares e seus corpos sem órgãos que se afastam das funções
do organismo, de suas sedimentações representativas e de suas organizações dominantes
e hierarquizadas. Se a desconstrução da ordem do organismo sobre os estratos de um
plano de organização escava um campo onde pode-se construir um corpo sem órgãos,
podemos inverter esse movimento e partir da percepção de corpos incapazes de serem

34
articulados pelas finalidades do organismo, propor uma saída que libere essas diferenças
da necessidade de se adequar a um modelo padrão e majoritário. Corpos onde a falta ou
o excesso desorientam as funções orgânicas. Partir de corpos naturalmente vazados,
desinformados e à deriva; corpos que se esquivam e não respondem aos estímulos, mas
os fazem circular em sua interface e que, no máximo, emitem sinais que podem ser
seguidos como rastro de uma errância natural. Corpos por onde as intensidades circulam,
sem que assumam uma função determinada por um padrão orgânico de funcionamento.
Corpos que não prolongam os estímulos em informações, mas que secretam vestígios de
um fluxo que os percorre sem serem rebatidos em anteparos que acumulam, coagulam,
sedimentam, organizam e lhe impõe formas. Copos desarticulados que espontaneamente
se abrem a frequências que os percorrem e que migram incessantemente através de suas
zonas de vizinhanças. Corpos estilhaçados, cujos fragmentos dispersos inviabilizam que
se meçam a amplitude das intensidades que sobre eles investem; desmesurados e
constituídos de matéria não formada, furtados à resoluções que fixem o seu lugar
(spatium) como ponto de partida ou de chegada, fendidos e carregados de sinais que sobre
ele oscilam sem encontrar anteparos que os rebatam, mantendo-se como vibrações,
variações contínuas e ruídos de fundo de um campo intensivo.

O JOGO DAS SINGULARIDADES

A visão surge a partir de uma vibração luminosa refletida em um corpo opaco e capturado
pela retina. A audição é fruto das ondas sonoras rebatidas nos anteparos do ouvido, o
movimento é a resposta dos estímulos neurológicos que transmite aos membros os
comandos de seu funcionamento. Tais processos geram um padrão que se estabelece
através de medidas que delimitam o nível de eficiência que de cada processo se deve
esperar. A ordem do organismo depende do perfeito funcionamento de cada um dos
órgãos em suas funções esperadas. Se em cada um dos processos surge uma interrupção
desse fluxo regular, a ordem do todo é ameaçada e precisa ser reestabelecida através da
correção do desvio. Os corpos cruzam o mundo ao seu redor e são atravessados por ele à
medida que se vai construindo uma ordem coletiva com suas normas de funcionamento e
produção. Conforme já nos descreviam Deleuze e Guattari, trata-se de agenciamentos
maquínicos (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 30 e 31). O cavaleiro adquiriu a
habilidade de montar a partir da adaptação do seu corpo ao corpo do animal que cavalga.

35
Do seu encontro com o estribo surge uma nova forma de cavalgar e de fazer guerra. Esse
encontro o torna mais eficiente na tarefa de guerrear contra seus inimigos. Com as mãos
liberadas ele é mais eficiente e eficaz, e assim é deixada para trás uma velha maneira
tornada deficiente a partir das novas formas. Se os encontros de corpos vão produzindo
as transformações no modo de ser do indivíduo no mundo, suas expressões e códigos
discursivos intervêm nos corpos, a exemplo de como os códigos de honra, o regime dos
brasões, dos juramentos e normas de obediência fizeram na produção da feudalidade.
Agenciamentos maquínicos de corpos e agenciamento coletivos de enunciação que
intervêm reciprocamente entre si e vão delineando as territorialidades de uma ordem.
(DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 32). Cada ordem possui seus excluídos, a partir sua
incapacidade de contribuírem a seu perfeito funcionamento. Tais medidas estão
relacionadas tanto aos corpos pela inaptidão do organismo, quando aos enunciados, pela
inaptidão as normas de convivência. E assim vão se constituindo os critérios de avaliação
da normalidade e daquilo que é esperado por parte dos indivíduos e de seus modos de ser
no mundo. Um conjunto de ações tais como racionalizar, regular, organizar, codificar,
selecionar, normatizar, normalizar, tornar coerente, classificar, distribuir, e que fazem da
máquina um instrumento eficiente e produtivo. Surgem, então os modelos e os padrões
que buscam harmonizar no interior de uma ordem a diferença de funcionamento dos
corpos e dos códigos discursivos discordantes.

Na tela Janmari 7 se balança como que agitado pelo vento. Parece não estar com frio, o
que faria o seu balançar uma forma de esquentar seu corpo. Seus movimentos aleatórios
parecem nada significar. Ele coloca suas mãos para traz e se movimenta, repetidamente
e num movimento estereotipado comum aqueles que, como ele são chamados de autistas.
A questão aqui, a partir de agora, será compreender como se dão em um modelo qualquer,
as misturas dos corpos e suas ações com o conjunto de enunciados que interferem
instantaneamente no processo de formação dos indivíduos nos estratos de um plano de
organização. Isso para verificar a possibilidade de intervir nas ordens majoritárias e em
suas estruturas simbólicas, para transformação das formas de ser, agir e entrar em conflito,
explorando todo o potencial de encontros singulares entre corpos e enunciados. Foi em

7
Janmari foi adotada por Deligny quando tinha 12 anos. Diagnosticado como um encefalopata profundo,
com retardo mental irreversível e aparece com destaque nas imagens de “Ce gamin lá”, filme que retrata
a vida das comunidades voltadas para as crianças autistas não verbais em Cévennes.

36
busca de experimentar essas novas formas de individuação que partiu Fernand Deligny,
entre suas experiências institucionais e seu vagar no mundo fora dos muros das
instituições, onde tratou de explorar a alteridade dos sujeitos excluídos das tramas de uma
ordem padrão majoritária.

Fernand Deligny dedicou sua vida à criação de espaços comuns junto às


crianças e aos adolescentes que, por um motivo ou outro, se tornaram o resto
em um processo de integração social que teve o preço da exclusão de toda
diferença mais ou menos inassimilável. Tendo passado por diferentes
instituições que integravam o tripé de sustentação dessa nova política - a
escola, o asilo e um centro sócio jurídico - e, posteriormente, tendo operado
uma transição para fora do quadro institucional do Estado, Deligny se tornou
um importante analisador sobre a constituição desse novo campo e sobre a luta
política em relação aos preceitos que o sustentavam (RESENDE, 2016, p. 8).

Tendo vivido os últimos anos de sua vida em uma comunidade voltada para crianças
autistas não verbais, Deligny procurou assinalar os trajetos desses seres sem linguagem,
longe de um fazer intencional e sempre a vagar, esquivando-se para além de um universo
simbólico que constitui o “homem-que-nós-somos”. As esquivas tratavam de escapar das
diferentes formas de sujeição de um sujeito como corpo que se enrola no mundo ao seu
redor, liberando os encontros desses corpos das tentativas de lhe imputarem um
significado através de certos traços de uma existência individual.

Que existam “indivíduos” para que a GENTE não existe, isso é algo que os
torna inoportunos, na medida em que a GENTE é a matriz do SE, que é
consciência pela qual se funda aquela identidade comum a todos os homens,
isto é, pela qual cada um é idêntico ao outro, ao passo que essa identidade
evoca também o fato, para uma pessoa, de ser determinado indivíduo, graças
aos elementos que o individualizam (DELIGNY, 2018, p. 137).

O-homem-que-nós-somos surge do encontro das formas de conteúdo e das formas de


expressão. Assumimos aqui, a partir da enunciação de Deleuze e Guattari, as misturas de
corpos, suas ações e paixões, como formas de conteúdo. Em contrapartida, o conjunto de
enunciados, discursos, signos e palavras, serão tidos como formas de expressão. A relação

37
entre essas duas formas se daria através de pressuposições recíprocas e instantâneas
produzindo as transformações que irão localizar a medida das coisas e sua existência no
mundo (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 26-27). Se minhas células carregam um
material genético diferente, meus membros possuem medidas distintas do padrão,
ausências ou adições, é pelo conjunto desses elementos agindo nos corpos, em seus
encontros, desdobramentos e agenciamentos maquínicos que se comporão as formas de
conteúdo. As formas discursivas que agem nos corpos, as sentenças que transformam,
instantaneamente o corpo em normal ou deficiente. As palavras de ordem delimitam os
comportamentos e as ações dos corpos a partir dos agenciamentos coletivos de
enunciação, que irão compor as formas de expressão. Vemos isso nas formações
discursivas de padrão majoritário ou no diagnóstico de um autista, a exemplo da
existência de quadros esquemáticos que definem as fases de um desenvolvimento de uma
criança, exprimindo o processo do desenvolvimento de cada função específica que
depende diretamente do funcionamento de cada órgão, membro ou estímulo cerebral -
uma criança deve andar por volta do primeiro ano, deve estar apta a falar por volta dos
dois anos ou ela possui um diagnóstico que a afirma como uma anormalidade.

Os estímulos investidos sobre o conjunto de um corpo com vistas a adapta-lo ao


cronograma que estipula o grupo de habilidades que deveria ser demonstrado pela média
de um desenvolvimento tido como normal, demonstram a intervenção das formas de
expressão nas formas de conteúdo. Não há nada em meu corpo que insinue que eu deva
estar de pé ao completar um ano de vida, a não ser a expectativa que isso aconteça,
reforçada por manuais de desenvolvimento que estipulam a idade certa para cada fase.
Da mesma forma, nada em meu corpo insinua que eu deva ser capaz de articular palavras
e de estar pronto para o ato da fala, nessa ou naquela idade, mas o processo de
desenvolvimento de um corpo é determinado pelas expectativas dos discursos em torno
da normalidade, da eficiência e do trabalho útil, que atravessam o processo dos encontros
de cada corpo com os conteúdos que os cercam. Dever ser capaz e se locomover ou falar
de forma eficiente é uma exigência que não se localiza nos corpos, mas sim nas formas
de expressão de cada campo social. A reivindicação da afirmação de singularidades que
invista na diferença deve permitir que sejam efetuadas as misturas dos corpos em uma
sociedade sem a seleção prévia do que é normal e do que não é. O singular deve
considerar “todas as atrações, repulsões, as simpatias e as antipatias, as alterações, as

38
alianças, as penetrações e expansões que afetam os corpos de todos os tipos, uns em
relações aos outros” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p.27). Lidar com a diferença não
é adapta-la as relações dominantes expressas pelos critérios do que é considerado normal
na forma de produção dominante, mas instituir novas relações que permitam que os
elementos heterogêneos entrem em simbiose e produzam outros padrões motores, outras
linguagens, outros olhares e outras escutas.

Tais padrões inusitados devem ser capazes de nos levar para longe de um sistema
centrado, codificado e linear onde operam os centros dotados de estabilidade de um
padrão maior. Tais encontros se caracterizam a partir do jogo de singularidades que
apresentam uma menor estabilidade de seus elementos e que possuem um caráter fugidio,
evasivo e descentrado. Se de certo modo eles estão submetidos as operações que os
alinham pelo modelo ou padrão maior, por outro lado liberam uma potência irredutível
ao padrão, reunindo todas as insurgências, fantasmas, recantos inimagináveis e produções
desejantes. No rastro de sua passagem esses encontros preparam a desagregação do
princípio central, substituindo as formas centrais pelo desenvolvimento de formas que
não param de se dissolver ou de se transformar. A impossibilidade de um ouvido capturar
as ondas sonoras, de uma boca produzir palavras, dos olhos refletirem as imagens no
fundo da retina, de um corpo caminhar sobre suas penas ou de seus membros se moverem
a cada comando específico do cérebro, não significa sua deficiência, mas deve permitir
sim um novo modo de articulação entre as formas de conteúdo dentro dos agenciamentos
maquínicos dos corpos. Expressar o mundo através dessas novas formas é mais do que se
valer dos expressos codificados a partir de um padrão dominante, pois é antes de tudo
deixar ouvir, ver, falar e se mover a partir da singularidade de cada corpo, deixando que
eles efetuem as operações que lhes são próprias e que possam secretar novos significados
para a vida. O corpo não precisa ser tido a partir do princípio da organicidade, onde os
estratos lhes impõem formas, funções, organizações dominantes e hierarquizadas para lhe
extrair um trabalho útil e eficiente. Há de se “abrir o corpo a conexões que supõem todo
um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições, limiares, passagens e
distribuições de intensidade (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 21).

Os estratos são formações que produzem pontos de subjetivação que nos fixam, que nos
pregam numa realidade dominante e determinam a percepção e a consciência, o ouvir e

39
o falar, o se mover e o agir. Os estratos são lugares de onde se selecionam o real ou o
sentido, tornando-o antecipadamente conforme a realidade de um padrão dominante. Ao
nos desprendermos deles (estratos), assumimos o risco da dissolução e da desorganização
do organismo e da função de cada ordem no funcionamento da almejada normalidade
ordinária. Mas sem correr esse risco não é possível encontrar um espaço onde novas
formas possam se desenvolver, liberando potências e criando novas conexões entre os
corpos e suas consciências, nova formas de subjetivação de um meio que não para de se
fazer e de pensar a vida para além do organismo. Se com a experiência da Grande Cordée,
Deligny se concentrou em viabilizar novas relações na trama social para jovens
inadaptados, num tipo de “engajamento que pudesse modificar as circunstâncias que
determinavam sua condição de inadaptação” (RESENDE, 2016, p. 33), em Cévennes ele
irá romper, definitivamente, com as formações discursivas dominantes que determinam
o homem-que-nós-somos a partir de processos de “semelhantização” que tentam tornar
homogêneas as diferenças, liberando um traçar que deixará rastro de uma deriva a-
significante, para longe da linguagem como fundadora da experiência humana. “De fato,
Deligny pensa no humano, nas espécies, nas linhas de errância, no indivíduo como o que
persiste, apesar do aspecto totalizador do homem, da cultura, das linhas de ação, do
sujeito” (MIGUEL, 2016, p. 491). Sua experiência com as crianças autistas não-verbais
nos faz encarar uma dimensão para fora das formas subjetivas articuladas pela linguagem.
Diferente da desconstrução de um discurso da sua base constituída a partir de um padrão
linguístico, a ausência da linguagem, a falta da inscrição de qualquer tipo de significante
e a impossibilidade de se assumir qualquer significado, deixa-nos diante de corpos à
deriva, corpos sem identidades ou qualquer característica comum, sempre anteriores “à
violência fundada na experiência da consciência de si que define um ter - propriedade -,
um querer – o projeto pensado -, e uma norma norteadora do corte entre humanos e não
humanos” (RESENDE, 2016, p. 40).

E agora o 'pano de fundo' do indivíduo humano não é o que se poderia


imaginar. É necessário ver para crer. Mas não o vê quem quer ou quem
gostaria. A palavra é mestre e nos dita o que ver para que a coerência de um
determinado mundo não seja quebrada a qualquer momento: neste mundo
sobre o qual não podemos fazer nada (DELIGNY, 2017, p. 708).

40
Na constituição da fronteira entre o humano e o não humano estabelece-se o jogo da
localização espacial dos corpos no mundo, a partir do qual as formações discursivas
dominantes orientam-se por uma determinação que opõe, de saída, o normal ao anormal.
O anormal qualifica o que não tem a regra ou o que contradiz a regra. Define-se o anormal
em função das características específicas ou genéricas que se afastam ou se aproximam
de um conjunto preestabelecido de características aptas a reproduzirem a ordem
dominante e suas estruturas comuns. O anormal perturba a ordem, pois ele afasta de um
padrão útil ao seu funcionamento e do significado atribuído ao conjunto de coisas que se
relacionam as suas estruturas. O campo de atuação dos indivíduos numa ordem qualquer
está ligado a aptidão de suas características físicas e mentais, às engrenagens que
reproduzem os padrões aceitáveis. Estas se definem pela finalidade de uma atuação
esperada no conjunto de características que envolvem o indivíduo normal. Espera-se dele
que cumpra seu papel já previsto e determinado de forma a preservar a ordem de qualquer
ameaça de dissolução. Através desse plano de organização desenvolvem-se formas e
indivíduos “normais” e aponta-se toda “anormalidade” que impede o seu
desenvolvimento. Canguilhem já criticava a tentativa de se asserir um estado fisiológico
normal que passa a ser admitido como pressuposto.

Definir o anormal por meio do que é de mais ou de menos é reconhecer o


caráter normativo do estado dito normal. Esse estado normal ou fisiológico
deixa de ser apenas uma disposição detectável e explicável como um fato para
ser a manifestação do apego a algum valor (CANGUILHEM, 2009, p. 20).

Cabe-nos, então, aqui, reinterpretar os significados dos limites entre o normal e o


anormal, invocando uma zona de indeterminação e incerteza que faz com que seja
impossível dizer até onde se estende essa fronteira. O anormal passa a ser visto pela
perspectiva da diferença, independente da direção que puxa para perto da normalidade,
abrindo, então, outras possibilidades de um desenvolvimento inovador fora do padrão
programado do hábito. É preciso conjugar todas as peças que fazem o mundo, longe das
divisões orgânicas que sedimentam as semelhanças. “(...) várias linhas que vão continuar
e conjugar-se com outras, para produzir imediatamente, diretamente, um mundo, no qual
é o mundo que entra em devir e nós nos tornando todo mundo” (DELEUZE; GUATTARI,
1997a, p.64). Assim, o anormal como aquilo que difere de um padrão se inscreve no jogo

41
da vida como uma legítima possibilidade. Nada falta ou sobra, mas tudo se abre como
uma nova forma de se inscrever na vida. Não há como definir, de saída, de que maneira
o indivíduo irá se desenvolver.

O princípio de individuação não pode partir do modelo de indivíduo para então buscar as
linhas que serão percorridas no processo de individuação. A individuação propriamente
dita, como processo que abre linhas de fuga percorridas pela interação das forças que
agem, se relacionam e devêm, produzirão o complexo jogo das estruturas do mundo e dos
modos de ser que se desenrolam nesse contexto. Não se deve partir da perspectiva de
reprodução de uma ordem qualquer, mas a individuação deve considerar todas as
possibilidades que se abrem em cada processo, constituindo assim os indivíduos a partir
dos traços que se cruzam, interagem e se lançam no interior e ao redor de cada indivíduo.
Simondon, definia a individuação como o processo que liga nas formas individuadas a
repartição de potenciais energéticos díspares, forças pré-individuais e metaestáveis. A
metaestabilidade, assim como definiu Simondon caracterizaria as potências pré-
individuais que coexistem em permanente tensão, mantendo o máximo de sua energia
potencial. O ser pré-individual seria a dimensão virtual do ser que ao se individuar se
reparte em fases na sua dimensão atual. Se num sistema em equilíbrio estável verifica-se
o mais baixo grau de energia potencial, uma vez que as forças se estabilizam nas formas
individuadas, no equilíbrio metaestável as foças agem no máximo de sua energia
potencial.

(...) o ser pré-individual é o ser no qual não existe fase; em cujo o seio se
completa uma individuação é aquele em que, ao ser repartido em fases,
aparece uma resolução – isso é o devir; o devir não é uma quadro no qual o
ser existe; ele é dimensão do ser, modo de resolução de uma incompatibilidade
inicial, rica em potenciais (SIMONDON, 2020, p .17).

A individuação é, precisamente, a articulação de forças que vem se relacionar nas formas


individuadas - força da luz que se propaga e força do olho que a captura na forma visão;
força sonora que se expande em ondas e força do ouvido que à modula na forma audição;
força dos impulsos transmitidos pelos nervos e força do cérebro que os processa na forma
perceptiva. As formas correspondem ao mais baixo nível de energia possível, quando

42
todas as transformações possíveis já foram realizadas e os potenciais já foram atualizados,
repartindo os potenciais em tais ou quais limites. Contudo, os potenciais energéticos
como forças pré-individuais continuam a operar no ser individuado, em cada uma de suas
fases, fazendo dele um composto aberto. Se o conjunto dos processos está inscrito numa
ordem referencial que determina seu curso, devemos voltar nossa atenção para as
inscrições significantes que irão orientar a formação dos indivíduos nessa ordem, visando
desobrigar o resultado dessa interação dos formatos predeterminados, liberando
inscrições singulares que obedecem um curso próprio, reinterpretando e reinscrevendo
cada relação do indivíduo com seu mundo, tomando essas possibilidades em conta e
explorando seus desdobramentos na coletividade. Daí surgirão novos significados que
emitirão signos próprios a serem interpretados a partir de novas relações que construirão
uma nova ordem de significância, pela multiplicação das formas de se pensar, agir, de
estar juntos e de entrar em conflito (LAZZARATO, 2004, p. 13).

Para tanto, é necessário que se reoriente as funções e as finalidades de cada ordem


determinada. O funcionamento eficiente de um órgão dentro de um organismo a partir da
finalidade de alcançar um ganho e o potencializar, precisa ser confrontado com as
diversas formas desse órgão reagir aos estímulos em seu funcionamento, investindo-se
nas respostas que criarão um meio onde se é possível liberar o organismo do padrão de
eficiência do hábito. Podemos sair dos esquemas reprodutores de imagens prontas, de
claros contornos que revelam as formas; dimensões fixas que relacionam o mesmo e de
onde se é capaz de deixar escapar o inapreensível. Sentir os toques, antes que eles se
estendam as peles; sentir o raio que aquece mais que ilumina, na potência livre do brilho,
antes dele se materializar em cor. Temos que abandonar a crença num modelo que
reivindica que os sistemas evoluem do menos eficiente para o mais eficiente, do menos
hierarquizado para o mais hierarquizado. Os sistemas devem ser abertos a atuação de
pressuposições recíprocas e das inserções mútuas; “forças formigando e emergindo
constantemente das bordas de uma rachadura, saindo e entrando sem parar, compondo-se
de mil maneiras” (DELEUZE; GUATTARI, 1998, p. 220). Devemos nos libertar de uma
representação que organiza o mundo através do esquadrinhamento de um espaço fechado,
onde os significantes inequívocos reproduzem as regularidades como forma de controle
absoluto e, portanto, como determinação exata e sem hesitação da ordem das causas e dos
efeitos. Precisaríamos, de saída, afirmar a errância de um mundo múltiplo pelo qual as

43
forças, sempre heterogêneas, sempre diferentes entre si, se movimentam
permanentemente. Esse mundo, que não está encerrado em um recinto de um sistema
fechado, abre espaço para as relações não lineares, para o imprevisível dos
desdobramentos do incerto e do informe.

Tudo se faz ao mesmo tempo, num sistema multilinear: a linha libera-se do


ponto como origem; a diagonal libera-se da vertical e da horizontal como
coordenadas; da mesma forma, a transversal libera-se da diagonal como
ligação localizável de um ponto a outro; em suma, uma linha bloco passa no
meio dos sons, e brota ela mesma por seu próprio meio não localizável”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p.85).

As crianças autistas de Cévennes se constituíam como seres fora da linguagem e por isso
“davam voz” a manifestações que se afastavam do campo semântico, que no máximo
deixavam rastros por seu traçado desviante, a partir do qual poderíamos fabricar mapas
com as descrições das diferentes linhas do extravagar dos indivíduos num território. “Não
se trata mais de interpretar os comportamentos das crianças, ou mesmo de explicá-las,
mas de localizar seus movimentos no espaço” (MIGUEL, 2016, 494).

Haveria, portanto, o órgão e haveria a fala: um ser autista pode muito bem dar
voz. (...) Resta o espanto diante do estranho uso desse órgão nosso. Mas esse
é, talvez, o destino desses órgãos, o de nem sempre conformar-se ao uso
traçado – para voltar à via – pelos predecessores. A via é traço? Se for, esse
traço, é preciso tomá-lo. Bem sabemos, no entanto, que o obrigatório convida
à esquiva; daí a liberdade. Mas todo traço convida à esquiva; o ser autista, em
presença da via, inova desvios no mínimo extravagantes, e nisso se poderia ver
o exercício de certo espírito de iniciativa. Poderíamos nos contentar com tal
interpretação e nos regozijar que o ser autista não seja um ser de procissão
(DELIGNY, 2018, p. 211 e 212).

As linhas cartografadas por Deligny não visavam ser decifradas a partir de nenhum
significado comum, mas eram a expressão de trajetos fora de qualquer finalidade de um
fazer intencional. Dessa forma não se pretendia interpretar as linhas traçadas pelos
trajetos das crianças de Cévennes, em especial aquelas fora dos seus movimentos
costumeiros das tarefas diárias como as de cortar lenha ou buscar água no poço, pois elas
simplesmente marcavam à deriva de corpos que se determinavam para fora dos estratos

44
do homem-que-nós-somos. A experiência de Cévennes revela uma tentativa que
convivência com a diferença na sua produção de singularidades para fora do plano de
organização que reivindica a semelhança e reproduz o mesmo, sem a intenção de incluir
os corpos/indivíduos em um padrão majoritário de contrair o mundo através de
organismos eficientes.

O método Deligny: produzir o mapa dos gestos e dos movimentos de uma


criança autista, combinar vários mapas para a mesma criança, para várias
crianças. (...) Um traço intensivo começa a trabalhar por sua conta, uma
percepção alucinatória, uma sinestesia, uma mutação perversa, um jogo de
imagens se destacam e a hegemonia do significante é recolocada em questão.
Semióticas gestuais, mímicas, lúdicas etc. retomam sua liberdade na criança e
se liberam do "decalque", quer dizer, da competência dominante da língua do
mestre — um acontecimento microscópico estremece o equilíbrio do poder
local (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 24).

Se quisermos nos referir aos corpos/indivíduos de Cévennes os diríamos estrangeiros.


Diferentes de Kafka, um judeu tcheco que escreveu em alemão, sendo um estrangeiro em
uma língua maior, as crianças ali eram estrangeiras à toda língua e sua minoração frente
a hegemonia do significante não se passava pela linguagem, por uma língua que a minoria
constrói numa língua maior (DELEUZE: GUATTARI, 2003, p. 38). O menor aqui
vincula-se à deriva de corpos cujo funcionamento não se liga a ordem do organismo
eficiente e as estruturas do simbólico. Corpos atravessados pelos estímulos sensíveis que
não se desdobram e um impulso que informa os órgãos, mas que fazem vibrar esse corpo
que se move através de seus trajetos sem intenção, finalidade ou significado, deixando
suas marcas e seus sinais.

Ei-lo, então, o ser autista, tornado em peregrino, palavra essa que já quis dizer
estrangeiro, antes de querer dizer viajante. Estrangeiro, o ser autista? É o
mínimo que ser poderia dizer; o mínimo e, talvez, o melhor. Mas será possível
que o estrangeiro o seja em tamanho grau que não sinta atração alguma por
nossa voz e que, sem fazer usa algum da sua, nos deixe, distante dele,
desmunidos do uso da nossa? (...) A voz que não podemos dar, vamos dela nos
servir para interpretar o estrangeiro? Mas o estrangeiro não é uma língua.
Trata-se de adivinhar o que o ser autista pode querer? E se, de todo querer, ele
fosse desprovido? Bem se vê então que intervêm o pressuposto da
semelhantidade, o que apaga em grande parte o respeito devido ao estrangeiro

45
e mesmo o simples reconhecimento de que um ser humano possa sê-lo,
estrangeiro. Considerar o outro semelhante – a si – é uma honra cujo peso
esmagou tantas etnias vivazes, que surge então a ideia de não descarregá-lo
(DELIGNY, 2018, p. 212 e 213).

O VRTUAL COMO NÓ DE TENDÊNCIAS

Segundo Deleuze, cada “partícula atual emite e absorve virtuais mais ou menos próximos,
de diferentes ordens” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 173). Esse complexo atual/virtual
é cortado pelo plano de imanência que comporta por um lado uma abertura para o virtual
e por outro uma abertura para o atual. “O atual e o virtual coexistem, e entram em um
estreito circuito que nos conduz, constantemente, de um a outro” (DELEUZE; PARNET,
1998, p. 178). Toda individuação corresponde a uma parcela virtual que insiste em se
manifestar sob toda e qualquer representação. A representação fixa os limites e as
fronteiras a partir do qual o indivíduo confronta o caos de todas as possibilidades de uma
pluralidade de mundos que emerge em seu estado contínuo de fluxo virtual. A
representação estende as medidas que confrontam lados, na unidade de pontos dispostos
de forma a conferir e regular a identidade das coisas. A partir dela medimos as distâncias
infinitas, através de pontos que representam posições a serem ocupadas. Delimitando o
espaço atual representado, livra-se do peso de uma dimensão infinita, onde aquilo que é,
se expande em todas as direções, tentando fugir da insignificação de um nada infinito, de
um espaço vazio ou de uma profundidade indiferençada. Busca-se representar as
identidades para ordenar e definir as partidas, as chegadas e a trajetória, através de pontos
que estabelecem limites que possam sem reconhecidos através do hábito de perceber e
descrever o mundo das coisas. Já em um fluxo contínuo de uma duração infinita, onde as
potências não param de produzir mundos diversos, encontramos um espaço onde as coisas
sempre estão se tornando em outra coisa, de forma incessante e em infinito devir. Nele
não há como fixar uma forma qualquer, pois o que é, não se dá a não ser por um contínuo
vir-a-ser. E o que move e viabiliza esse processo de contínua mudança é precisamente a
potência intensiva do virtual, como o conjunto de todas as possibilidades de um nó de
tendências, que é o motor do processo de produção de uma sempre imprevisível novidade.

Esta maneira de transpor a linha de forças, é o que se produz quando ela se


curva, forma meandros, se funde e se faz subterrânea, ou, dito de maneira

46
melhor, quando a força, em lugar de entrar em relação linear com outra força,
se volta para si mesma, exerce-se sobre si mesma ou afeta-se a si mesma. Esta
dimensão do si mesmo não é de maneira nenhuma uma determinação
preexistente que já estivesse acabada. Também aqui uma linha de subjetivação
é um processo, uma produção de subjetividade num dispositivo: ela está para
se fazer, na medida em que o dispositivo o deixe ou o faça possível. É uma
linha de fuga. Escapa às linhas anteriores, escapa-lhes” (DELEUZE, 1990,
p.3).

As linhas de fuga que permitirão uma nova produção de subjetividade são agitações
virtuais, singulares e pré-individuais, informes e dissipadas. Como um sistema longe do
equilíbrio estável onde as forças convivem no máximo de sua energia potencial, as novas
linhas de subjetivação operam a partir de sua potência virtual, sendo que o nó de
tendências ainda não atualizado nas formas dos dispositivos apontam para uma
multiplicidade de resoluções em devir. As resoluções aproveitam a potência virtual de
forças que se voltam para si e exploram a coexistência das variações de relações
diferenciais e distribuição de singularidades que lhes correspondem. Falamos aqui de um
processo de individuação que permita a afirmação de singularidade de forma criativa que
se sobreponha aos padrões dos dispositivos que os estabelecem como regra de
funcionamento. Segundo Deleuze, “os atuais implicam indivíduos já constituídos, e
determinações por pontos ordinários, enquanto a relação do atual e do virtual forma uma
individuação em ato ou uma singularização por pontos notáveis a serem determinados em
cada caso” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 179). Tal processo deve recorrer ao
intempestivo de uma potência virtual de criar o novo ainda não relacionado nas linhas
dominantes dos dispositivos que estabilizam as relações de forças. Os dispositivos
estabilizam as linhas de subjetivação através da organização das relações que irão conferir
aos fluxos de forças um funcionamento com base em modelos de eficiência. A
possibilidade de novas formas de subjetivação passa por deixar passar alguns fluxos,
ultrapassando os modelos e criando novas linhas de significação e de ligação entre as
coisas. Trata-se de se afastar da negatividade do conceito de falta como um
funcionamento deficiente. Se algo não se formou, tal incompletude é exatamente a
potência por onde passa a multiplicidade de um intenso fluxo de forças ainda não
relacionadas e, portanto, livres para produzirem seu efeito. A produção de novos
processos de individuação passa tanto pelos agenciamentos de conteúdos quanto de
enunciação. Passa pelo encontro de corpos quanto pela produção discursiva que irá

47
relacionar esses corpos. Novos corpos, cujas forças, diferindo de si mesma, sejam capazes
de secretar a novidade de sua formação, para além do padrão dominante.

A inclusão desses novos corpos no mundo, gera novas inscrições individuantes que não
se deixam codificar pelas linhas já relacionadas. Abrem, portanto, espaçamentos por onde
se inscrevem novas formas de expressão. Fluxos que passam por baixo dos códigos
estabelecidos, trazendo afirmação da novidade de novas formas de ser no mundo, que os
códigos tendem a traduzir, converter e transformar em um padrão. Daí a necessidade de
se apropriar do conceito de diferença que irá permitir que sigamos em um processo de
individuação que valorize a potência criativa da produção do novo, face a representação
identitária que visa capturar as diferenças em seu seio estabilizante. Esse caminho só é
possível a partir da afirmação da diferença. Diferença aqui não como aquilo que opõe os
termos de uma série, não como aquilo que difere de uma outra coisa, mas a diferença em
si mesma que é a tendência que produz a todo tempo o múltiplo, como aquilo que difere
de si. Temos, portanto que ir atrás da diferença, ou daquilo que difere, reencontrando a
tendência para além de seu produto. Encontramos aí a noção do virtual como nó de
tendências que se atualiza no estado de coisas. Diferenciar-se é então o movimento de um
virtual que se atualiza, carregando a imprevisibilidade e indeterminação que lhe é próprio.
Preservar o potencial criativo do virtual é, portanto, liberar as linhas de força só
relacionadas a si mesmas na intempestividade de seu acontecimento. Diferente das
determinações do atual, no virtual as tendências coexistem numa velocidade infinita.
Assim através do virtual como a capacidade de se diferenciar de si, preserva-se a potência
da novidade de novos modos de ser no mundo. Aqui é interessante perceber como a noção
do virtual se alia a uma capacidade da criação de novas formas de vida que não se
confunde com uma concepção ontológica a priori, não se dá pela pré-existência de uma
matéria ou forma, mas sim pelos novos encontros com o fora, na sua dimensão de uma
potência que está sempre a se atualizar e que, portanto mantem uma abertura por onde
escoa o indeterminado. Não há de se perguntar por um padrão o modelo, mas liberar as
linhas que se arremetem em todas as direções. Seguir a diferença o mais longe possível,
no acontecimento que é puro devir. O conceito de virtual traz à tona a possibilidade de
que sejam manifestas a resoluções intempestivas que não se fixam às direções
endereçadas a priori no plano de organização. Linhas de fuga que atravessam os territórios
e que deixam as marcas de sua passagem como aberturas por onde emergem resoluções

48
provisórias e singulares que só podem ser mapeadas caso não apelemos para as exigências
de se interpretar seus significados.

Carly Fleischmann 8, nascida no Canadá, na década de 1990, era uma menina


diagnosticada com autismo severo, nível três. O diagnóstico psiquiátrico para esse nível
de autismo aponta como suas principais características, o distanciamento social profundo,
vacância da linguagem e movimentos estereotipados e comportamentos autodestrutivos.
Ela vivia isolada em seu silêncio e na inacessibilidade de seu mundo, até que,
subitamente, aos onze anos de idade, começa a escrever e sua escrita é capaz de romper
esse isolamento e deixar transparecer as imagens que estavam enclausuradas em sua
profundidade ruidosa. Uma vez que vem a comunicar aquilo que se passa no seu interior,
somos postos diante de “crepitações explosões, ruídos explodidos dos órgãos internos”,
usando a discrição de Deleuze (DELEUZE, 1994, p. 197). Não poder ficar quieta por
parecer que partes dos corpos estão em chamas ou bater a cabeça contra uma parede para
“tentar se livrar que ela exploda”, eram algumas das descrições que Carly, agora, fazia do
seu mundo. Porém, muitos dos indivíduos que apresentam a mesma características como
as de Carly, permanecem no silêncio, sem dar a saber o que lhes vai por dentro. A maioria
das crianças de Cévennes mantinham-se vacantes de linguagem, sendo incapaz de
descrever seu mundo com palavras. Diante disso, a tentativa de Deligny não pretendia
vasculhar esse silêncio em busca de significados, mas deixar esse silêncio e essa ausência
de palavras se materializar num modo de vida, liberando devires que emergiam dessa
profundidade e reconfigurando o espaço onde os indivíduos pudessem se integrar ao dia
a dia das tarefas costumeiras da vida em comunidade, deixando-os se apropriarem do
lugar a partir das conexões que iam estabelecendo com ele. A partir daí podia-se dar
sentido e valor a territórios existenciais determinados a partir das singularidades que os
atinge (GUATTARI, 1992, p. 119).

Uma tentativa, portanto, para Deligny, é algo que acontece com o decorrer do
tempo, não a partir da intencionalidade e da vontade de um sujeito ou de um
coletivo responsáveis por sua elaboração. Ela tem lugar a partir das marcas
produzidas por pessoas, tentativas. Uma tentativa é um lugar que existe como
desdobramento de uma sucessão de fatos, acasos e encontros, sem que o mestre

8
https://youtu.be/M5MuuG-WQRk

49
que guia as ações seja um projeto formulado a partir de metas e objetivos
capazes de garantir a utilidade produtiva de tal empreitada (RESENDE, 2016,
p. 227).

Assim, as tentativas de dar conta desses corpos à deriva não se sujeitavam a interpretações
por não se vincularem a nenhum significado, mas procuravam seguir o rastro dos corpos
nos territórios que iam deixando os sinais de sua passagem. Linhas de errância que se
manifestam como um agir no infinitivo, singular e definitivamente ligado a suspensão da
possibilidade de significação. Em seu lugar eram traçados mapas com as linhas de
deslocamento das crianças no território e que deixavam ver as linhas que iam se formando
à medida que o território ia sendo experimentado e sendo atravessados pelas forças dos
corpos que neles se moviam. Para Guattari, essa alteridade se manifesta a partir de uma
“criatividade subjetiva que atravessa os povos e as gerações oprimidas, os guetos, as
minorias...” (GUATTARI, 1992, p. 115)

O fato de Janmari sentir muito medo e até experimentar a impossibilidade de


atravessar portas pode ser interpretado de mil maneiras diferentes. Em vez de
explicar esse fato, o mapa presta atenção à situação, descreve-a e observa como
Janmari se torna capaz de passar por essas portas assim que carrega um objeto.
O mapa mostra situações muito concretas vivenciadas por crianças e soluções
provisórias que são sempre feitas em todo o ambiente, território, espaço.
Certamente, podemos criticar a cartografia por não resolver problemas em um
nível mais profundo, mas é exatamente isso que ela pretende fazer. Porque,
para buscar atingir esse nível mais profundo, é inevitável recair na armadilha
super interpretativa e ser registrada em uma lógica ordenada "de cima para
baixo” (MIGUEL, 2016, p. 496)

Voltemos ao conceito de forças. Poderíamos dizer que uma força se afirma pela
capacidade de afetar e pela capacidade de ser afetada. Deleuze chama o poder de afetar
da força de função da força, enquanto que o poder de ser afetada ele chama de matéria da
força (DELEUZE, 1986, p. 79). Ao se caracterizar o virtual como dimensão da vontade
que age na força, sua vontade de potência ou seu devir Deleuze estará relacionando tal
dimensão à capacidade da força de produzir o novo, capacidade de não ser afetada a não
ser por si mesma, num campo intensivo onde prevalece o equilíbrio metaestável, fonte de
todo o potencial de sua afetação; forças que se constituem a partir do máximo de sua
energia potencial, e onde toda relação é uma relação informe e não-estratificada

50
(DELEUZE, 1986, p. 91). A partir daí situa-se a abertura de uma dimensão que se
constitui como campo intensivo, de onde podemos, então, pensar a questão de sua
determinação como força não relacionada, ou livre. A coexistência de forças não
relacionadas ou livres, relação onde o que persiste é a absoluta capacidade das forças de
afetar é exatamente o nó de tendências que caracteriza o virtual. Liberando as forças de
suas relações atuais, recupera-se delas a (vontade de) potência de produzir a novidade;
esse é o nó de tendências que carrega e emula todos os possíveis. Como que em um
sistema, que carrega o máximo de sua energia potencial, dada a não interação de forças
que não se relacionam, a não ser por vizinhança, delas se dizem ser livres e o campo do
virtual onde elas atuam na sua absoluta diferença pode ser descrito como um sistema
longe do equilíbrio estável. Ilya Prigonine já afirmava que:

Ao passo que, no equilíbrio e perto do equilíbrio, as leis da natureza são


universais, longe do equilíbrio elas se tornam especificas (…) Longe do
equilíbrio, a matéria adquire novas propriedades em que as flutuações, as
instabilidades, desempenham um papel essencial: a matéria torna-se mais ativa
(PRIGOGINE, 1996, p.68).

Essa atividade deve ser descrita pelo grau da liberdade de um sistema. Quanto maior a
liberdade mais ele se afasta dos sistemas não-integráveis, e assumem uma dimensão onde
as forças agem no máximo de sua energia potencial. Segundo Prigonine, quanto maior a
energia do sistema, o número de trajetórias aleatórias se torna cada vez maior e no final
o sistema se torna caótico. Podemos relacionar o caos aqui, com um sistema metaestável
e pré-individual, onde a coexistência de forças livres e sem interação, que carregam o
máximo de sua energia potencial, estando superpostas e simultâneas a si mesmo. Mas
será no processo de individuação dessas forças, onde se estabelece uma “comunicação
interativa entre as ordens na díspares de grandeza ou de realidade” (DELEUZE, 2006, p
.119), quando então a energia potencial é atualizada, e a força assume a sua matéria. Eis
aí a questão: como permitir que as forças não relacionadas (livres ou não ligadas)
mantenham o seu potencial subversivo, nas articulações das linhas de sua constituição,
criando uma nova realidade para além dos dispositivos de poder instituídos nas formas já
articuladas? Segundo Deleuze, quando analisa o modo de individuação conforme
Simondon, é partir da ideia fundamental de um pré-individual que permanece e deve
permanecer no indivíduo como fonte de estados metaestáveis futuros. Tal estado deve
permitir novas operações que liberem novas linhas desarticuladas que façam as forças

51
escapar de relações já individuadas que cristalizam as formas de ser no mundo. As linhas
do virtual com suas forças livres, vem se relacionar nas formas individuadas do mundo
através do plano de imanência. Nele, o máximo da energia potencial coexiste com as
relações ressonantes entre as forças, que as estabilizam e as fazem entrar equilíbrio. Esse
é o campo de atualização das diferenças pré-individuais, campo de resolução do indivíduo
e do mundo. As formas individuadas se estabilizam a partir dos agenciamentos de corpos
e de enunciados e se abrem para o virtual a partir do plano de imanência. Formas de
conteúdo e formas de expressão, em sua intervenção recíproca irão compor os territórios
onde atualizam-se os indivíduos e inscrevem-se as identidades. Se a diferença
metaestável é responsável pelo máximo de energia potencial a inscrição da identidade das
coisas é a resultante da estabilização do campo atual. No campo atual, o processo de
individuação aparece imediatamente ligado a presença dos dispositivos que organizam as
linhas em devir e estabilizam as forças que se relacionam em seu meio. Eles inscrevem
as identidades no plano de organização de forma a livrarem-se do incômodo da diferença
e da instabilidade que ameaça a sua preservação. Contudo, o campo atual, local da
consolidação dos agenciamentos de corpos e enunciados, das formas de conteúdo e
formas de expressão, pode se abrir para as potências metaestáveis de um campo intensivo,
constituindo, dessa forma, a profundidade de um plano de imanência que permite que
seja escrita a dinâmica da vida e do indivíduo a partir de um processo de individuação
ininterrupto. Tal plano, porém, possui bordas por onde emerge uma dimensão provisória
que não para de se transformar, e onde as forças se apresentam provisoriamente, de forma
a serem lidas em suas vizinhanças, dissolvendo-se, em seguida, para assumir uma nova
natureza. É o momento onde se libera “o instante à vertigem da emergência de Universos
ao mesmo tempo estranhos e familiares” (GUATTARI, 1992, p. 114). Assim, o processo
de individuação deve ser pensado como um processo através do qual o indivíduo
ininterruptamente se constitui a partir de um campo pré-individual de singularidades ou
potencialidades como puras tendências de forças não relacionadas. “São novas maneiras
de ser do ser, que criam os ritmos, as formas, as cores, as intensidades da dança. Nada
está pronto. Tudo deve ser sempre retomado do zero, do ponto de emergência. Potência
do eterno retorno do estado nascente” (GUATTARI, 1992, p. 119).

OS PROCESSOS DE INDIVIDUAÇÃO

52
Se por um lado a individuação irá relacionar as diferenças em um campo que
equilibra as forças em jogo, tal campo irá manter a indefinição e a instabilidade
que faz da individuação um processo ininterrupto, que faz do indivíduo, uma
resolução parcial e relativa. A individuação relaciona linhas que são direções
movediças escapando em n dimensões. Implicando um mapa que deve ser
produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível,
modificável, com múltiplas entradas e saídas (DELEUZE; GUATTARI,
1995b, p.32).

A articulação das linhas que se cruzam no processo de individuação pode ser posta a
partir da relação entre os agenciamentos maquínicos de corpos e os agenciamentos
coletivos de enunciação. Segundo Deleuze e Guattari, os agenciamentos maquínicos de
corpos seriam mistura de corpos reagindo uns sobre os outros, enquanto de outro lado os
agenciamentos coletivos de enunciação seriam o conjunto de atos e de enunciados,
transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Os agenciamentos inter-
relacionam-se a partir de uma intervenção recíproca à medida que vão produzindo as
formas individuadas. Suas linhas articulam corpos e produzem territórios que
circunscrevem espaços de significação onde são constituídos os modos de ser do
indivíduo no mundo. Os agenciamentos são acontecimentos que incidem tanto na
dimensão das modificações corporais quanto nas transformações incorporais dos regimes
coletivos de enunciação, efetuando, assim, os limites do que pode ser sentido, movido,
dito ou pensado. Se os agenciamentos possuem dinamismos que por um lado fixam
territórios eles possuem bordas por onde movimentam-se potências múltiplas que
desmancham as tramas e recriam a realidade. Daí o processo de individuação ser algo
ininterrupto, através de linhas a escapar sempre em n dimensões.

Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois


segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é
agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos
reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação,
de atos e de enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos.
Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo
tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de
desterritorialização que o impelem” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b,24).

53
Na conjugação dos agenciamentos forma-se um plano de organização onde atuam as
pressuposições recíprocas e as intercessões mútuas. Tal plano trabalha a partir da seleção
e da ordenação das forças que agem no seu interior, a partir de formações estratificadas
no quais atuam dispositivos de um diagrama que as estabiliza e as fixa. O organismo
seria um dos dispositivos do plano de organização da vida, a partir da seleção de forças
que resistem. A vida, nessa perspectiva seria um conjunto de forças que resistem na sua
matéria e passam a constituir a dimensão da eficiência orgânica como resultado do
processo de preservação da espécie. Ao mesmo tempo haveria um momento onde essa
resistência vira poder da vida, “poder-vital que vai além das espécies, dos meios e dos
caminhos desse ou daquele diagrama” (DELEUZE, 1998, p. 99). Nesse sentido, o
homem, como uma forma padronizada, aparece no lugar da vida, e esta como portadora
de singularidades tidas como a plenitude do possível. O “homem-que-nós-somos”, na
forma como descrito por Deligny, segundo Deleuze é o resultado da cristalização de uma
imagem em determinados estratos do plano de organização, a partir da intervenção de
formas de expressões sobre a natureza dos corpos me seus agenciamentos coletivos,
gerando propriedades que passam a definir sua estrutura. Como já assinalava Simondon:
“As propriedades não são substanciais, e sim relacionais; elas só existem pela interrupção
de um devir” (SIMONDON, 2020, p. 122). No mesmo sentido Deleuze considera as
propriedades como a encarnação que atualiza o devir, seus dinamismos espaço-temporais,
agitações no espaço, buracos no tempo e suas puras sínteses de velocidades, de direções
e ritmos, repartindo o ser em qualidades e partes (DELEUZE, 2006, p.132). Assim, a
partir do homem que nos tornamos, temos que adequar nosso corpo individuado ao plano
de organização que estrutura os códigos que garantem seu funcionamento, formando
assim indivíduos úteis a preservação de uma espécie. Tudo aquilo que não se adeque a
esse padrão é mantido excluído do processo e essa exclusão é legitimada pelo discurso da
eficiência e seus códigos de expressão. O funcionamento não adequado de um órgão,
compromete o funcionamento do corpo. Essa inadequação pode ser tida tanto em relação
à vida dos corpos/indivíduos em si quanto a preservação do corpo social onde o indivíduo
é formado. Tal critério de avaliação dessa inadequação não leva em consideração as
infinitas possibilidades de um corpo se relacionar com o meio, mas apenas reproduzem
os dispositivos que irão produzir conformidades desse corpo com os códigos de um
padrão de funcionamento eficiente, constantes de expressão que intervém nos conteúdos
e que agem como um metro padrão.

54
Deleuze e Guattari afirmam que os agenciamentos são estratificados no plano de
organização que os estabilizam mas que, ao mesmo tempo, possuem picos de
desterritorialização que os impelem, aberturas que permitam que sejam criadas e
recriadas em suas estruturas novas relações ainda desconhecidas, “inventando um devir
específico, autônomo e imprevisto” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p.45). Os estratos
se caracterizam por uma constituição que estabiliza os agenciamentos no plano de
organização. Tal constituição se estabelece através de dispositivos que estratificam as
linhas de modelos dominantes em relação aos demais. Os modelos irão estratificar os
corpos, selecionando os padrões de seu funcionamento. Os corpos por sua vez inscrevem
na sua relação com o meio a forma eficiente de suas ações, produzindo um resultado
economicamente satisfatório, distribuindo-o através de um organismo.
“O organismo não é o corpo, mas um estrato, quer dizer um fenômeno de acumulação, de
coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações
dominantes e hierarquizadas, transcendências organizaras para extrair um trabalho útil”
(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.20). No plano de organização os corpos são
disciplinados, os órgãos são instituídos de funções específicas a produção em relação às
finalidades determinadas. Na mesma esteira Simondon já verificava de que maneira a
continuidade seria um caso particular de realidade descontínua e de como a individuação
se cumpriria a partir de um sistema que comporta potenciais energéticos e germes
estruturais que engendraria aquilo que se nomeia uma substância (SIMONDON, 2020, p.
133). Assim, um processo de individuação, segundo ele, sempre mantém o potencial
metaestável de forças não relacionadas, provendo ao indivíduo uma capacidade de por a
fugir as linhas de sua constituição, fazendo-as entrar em novas relações nos estratos que
as organizam. Se nos agenciamentos individuantes as linhas relacionam-se num plano de
organização, elas irão se liberar num plano onde não param de fugir e precipitarem-se em
devires imperceptíveis. Liberadas das funções de conservação as forças passam a exercer
potências singulares e inusitadas de sua função. Um indivíduo é sempre uma abertura a
novas experimentações e novas combinações, povoado de multiplicidades. Um corpo
“atravessado por matérias instáveis não-formadas, fluxos em todos os sentidos,
intensidades livres ou singularidades nômades, partículas loucas ou transitórias”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995.a, p. 53). O plano de organização delimita o corpo a
partir dos dispositivos de identidade. A adequação do organismo reivindica a identidade
que fixa os códigos de funcionamento do corpo. Em contraposição a esse estatuto
majoritário existe os devires minoritários que servem para desarticular as relações

55
identitárias de um corpo. Novas relações, novas velocidades, novas precipitações, agindo
em novos agenciamentos. Picos de desterritorialização por onde brotam novas formas de
ser no mundo que quebram os códigos do funcionamento padrão. Somos remetidos
novamente, a partir daí, a taxinomia de Borges e sua insólita enumeração de seres
estranhos, na abertura que aponta para as inúmeras possibilidades que insistem em
escapar dos esquemas classificatórios, recusam a admitir a soberania das identidades
fixas, escoam de um abismo indiferenciado e vem fazer dos indivíduos um campo de
criação de novos encontros e significados. Tendências que se atualizam em corpos
diferenciados, cujo funcionamento não está dado por nenhum padrão, mas pela abertura
a novas atualizações. Distinções que não param de proliferar, liberando o corpo das
funções do organismo, abrindo-o a uma série de relações singulares que traçarão novas
linhas de segmentariedade sobre os estratos. “Uma sucessão sem fim de catatonia ou
desfalecimentos, e fulgurações ou precipitações” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b,
p.18). Esse corpo inscrito como composto que se diferencia por suas relações singulares
está ligado ao conceito de “corpo sem órgãos”, que Deleuze e Guattari dizem não se
caracterizar pela ausência de órgãos, mas pela recusa em admitir a harmonia do
funcionamento do organismo como um padrão identitário e estável. O corpo sem órgãos
precipita devires heterogêneos que se opõem ao estável, ao idêntico e o constante. Espaço
aberto onde as diferenças se distribuem. Ele é o acontecimento que desterritorializa as
forças de conservação do organismo, embaralhando as linhas articuladas nas formas,
inserindo relações diferenciais que fluidificam os laços da identidade, fazendo com que
o corpo não se reduza ao organismo, mas se componha como um conjunto de correlações,
temporárias e moveis, que determinam mudanças de orientação do percurso. O corpo sem
órgãos assume a diferença não como falta ou deficiência, mas como uma singularidade,
uma desvinculação das funções orgânicas, que se abre a toda diferenciação física,
sensorial, orgânica ou intelectual, numa dimensão que viabiliza novas relações do corpo
no plano de organização dos modos de ser no mundo. “Por que não caminhar com
a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre” (DELEUZE;
GUATTARI, 1996, p.11).

O corpo sem órgãos é a potência onde as intensidades passam e circulam e que extravasa
a extensão do organismo e a organização dos órgãos. Ele aparece como uma matriz
intensiva e:

56
(...) se define por eixos e vetores, gradientes e limiares, tendências dinâmicas
com mutação de energia, movimentos cinemáticos com deslocamento de
grupos, migrações, tudo isto independentemente das formas acessórias, pois os
órgãos somente aparecem e funcionam aqui como intensidades puras. O órgão
muda, transpondo um limiar, mudando de gradiente. Os órgãos perdem toda
constância, quer se trate de sua localização ou de sua função” (DELEUZE;
GUATTARI, 1996, p. 14).

O corpo sem órgãos é a abertura por onde a diferença se manifesta, desvinculando o


funcionamento do corpo dos padrões de eficiência reivindicados pelos dispositivos de
controle que agem no plano de organização. Ele se confunde com o plano de imanência
de matrizes produtivas, por onde se desenrola e se abre a experimentações, em contrastes
com os estratos do organismo que impõe formas, funções, ligações, organizações
dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil.
Se o indivíduo é fruto de um processo que estabiliza em territórios cristalizados pelos
dispositivos de controle do organismo, as potências pré-individuais permanecem agindo
nessa individuação, “num combate perpétuo e violento entre o plano de consistência, que
libera o corpo sem órgãos, atravessa e desfaz todos os estratos, e as superfícies de
estratificação que o bloqueiam ou rebaixam” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.21). À
hierarquia das funções padronizadas do organismo sobrepõem-se novos agenciamentos
de corpos que irão liberar linhas de fuga, criando novos limiares de passagem e
distribuição de intensidades. Contudo não se trata destruir o organismo, esvaziando
totalmente os órgãos de suas funções hierárquicas, mas opor a essa organização
dominante uma diversidade de funções a buscar novas linhas de fuga possíveis. Se as
funções de um organismo hierarquizado excluem a diferença como ausências e faltas que
obliteram a capacidade produtiva de um corpo, a ação de um corpo sem órgãos visa a
recuperação da potência do indivíduo a partir de novas relações de seus órgãos, afirmando
novas funções que não obedecem ou se limitam aos critérios de eficiência dos estratos
deitados sobre elas. A partir dos próprios estratos inserem-se aberturas que farão passar
intensidades distribuídas a despeito das formas dominantes do organismo. O corpo sem
órgãos é o corpo das singularidades, onde cada órgão é capaz de assumir novas e
diferentes funções face à hierarquia do organismo que estabelece as relações de um
trabalho útil. Ver além dos olhos que refletem as imagens nas retinas, se locomover para
além da falta de um órgão motor, pensar para além dos padrões das sinapses produzidas
pelo cérebro, falar ultrapassando as relações entre os significantes e significados

57
ordinários da linguagem. Desfazer o estatuto negativo que faz da diversidade uma
deficiência, tornando-a, a partir de novas relações dos indivíduos em seus diferentes
modos de ser no mundo, organizações corporais próprias. Mas uma vez, não se trata de
destruir o organismo ou a organização dos órgãos, mas sim introduzir novas
manifestações do corpo, abrir-se a variedade dessas manifestações como uma nova
dimensão da vida. “O homem, mesmo sob o aspecto físico, não se limita a seu organismo”
(CANGUILHEM, 2009, p. 79). Dessa forma há de se ter no corpo o meio de resolução
do processo de individuação. Isto porque no corpo as forças irão se relacionar na
qualidade de afetar e serem afetadas. Se no estado metaestável prevalecem as forças não
relacionadas em sua diferença absoluta, no corpo elas entram, em uma relação a partir de
sua capacidade de afetar e de serem afetadas. Compreender como se manifesta a potência
de um estado metaestável em um processo de individuação continuo só é possível se
situarmos a potência dos corpos a partir de forças liberadas em sua função de afetar e
produzir novas relações do próprio organismo e com outros corpos, já que, como Deleuze
afirmava, toda relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político.
Se no organismo prevalecem as forças de conservação e estabilidade o corpo em processo
de individuação contínuo deve liberar forças ativas, produtoras de novos sentidos e
criadoras de novas realidades. Forças que comandam o agir - e aí podemos recorrer à
perspectiva deligniana, que escapa da dominação do homem-que-nós-somos e que só se
deixa ser inscrito na sua diferença absoluta - restado apenas a possibilidade de mapeá-lo
em seus traços distintivos, na perspectiva de criar um espaço comum entre os indivíduos
onde possam ser produzidos, assim, afectos alegres que aumentam a potência desse agir.

Os mapas destacam constantemente a lacuna radical entre dois modos de ser:


o indivíduo e o sujeito, cada um capturado em dois modos distintos de ação, a
saber, agir e fazer. Nos mapas, vemos a ação das crianças, as linhas de erro,
distintamente traçadas às dos adultos, de modo que ambos mantêm sua própria
especificidade. Essas linhas se cruzam, se sobrepõem, mas se referem a modos
únicos de ser. Essa palavra de fissura, muito recorrente nos textos de Deligny,
especialmente quando ele fala de mapas, parece às vezes indicar a diferença
radical entre dois modos de ser inconciliáveis, outras como o que viola a
certeza de um modo. - O agir vem violar o fazer, ou o assimbólico atravessa
o simbólico (MIGUEL, 2016, p. 247).

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A individuação que situa o ser fora da perspectiva do homem-que-nós-somos assume a
abertura de um corpo que não se organiza pelo rebatimento dos potenciais díspares em
anteparos que irão escavar uma interioridade que se constitui como lugar próprio daquele
que diferencia seu espaço de onde enxerga o mundo e dele se separa, constituindo seu
ponto de vista. Diferente disso, essa abertura mantém a disparidade do potencial como
uma diferença absoluta e irreconciliável com qualquer forma simbólica que circunscreva
um ponto de vista de onde parta um fazer que se situe a parti de um centro fundante e
carregado de intencionalidade. Nessa perspectiva o que está em jogo é a deriva de uma
agir que não se sustenta a partir das determinações dos dispositivos de um plano de
organização e que se caracteriza pela liberdade das forças que agem no infinitivo sem que
delas possa se determinar qualquer significado relacionado as funções do organismo que
instancie leis de funcionamento do corpo e seus órgãos. Tal indivíduo aparece em sua
diferença radical, quando as marcas do movimento de seus corpos, enrolados ao mundo
ao redor de si, traçam linhas que se afastam das linhas articuladas a partir dos critérios de
eficiência dos estratos que as organizam. A experiência das crianças de Cévennes
mostram como as linhas traçadas por elas nas áreas de convivência, quer fossem em seu
trajeto costumeiro ou mesmo em sua errância, marcam um agir que se afasta de qualquer
ponto de vista intencional, de um sujeito determinado pelo processamento dos impulsos
sensíveis em interfaces que os pudessem informar na percepção das qualidades sensíveis
a partir de uma padrão cognitivo de semelhantização. Daí estarmos diante de indivíduos
a-sujeitados que agem a partir do seu ponto de ver, fora da linguagem que marca a
distinção entre o indivíduo e o sujeito e que deixam seu rastro de sua errância no mundo
a partir do qual inauguramos nossos novos modos de existir com eles, modos de existir
comandados pelas forças ativas, absolutamente livres, que mantêm todo o potencial
disruptivo de sua metaestabilidade e que se relacionam por vizinhança se deixarem se
fixarem nas formas. Forças de vidas que se encontram em seu campo metaestável e pré-
individual, sem se repartirem em fases; ser do devir, ser da diferença, diferença de ser
uma diversidade individuante que não para de saltar de uma fase a outra, pois não poderia
ser fixado dado o seu estado de equilíbrio. Ser que se resolve agindo na defasagem de sua
errância, individuo rachado cujo encontro com aquele que lhe é comum celebra a alegria
de um bom encontro.

59
CAPÍTULO II – OS MEIOS INTENSIVOS

O LUGAR DO SUJEITO QUE PERCEBE, ABSTRAI E DIZ

De acordo com Simondon o ser pré-individual é o ser no qual não existem fases. A
individuação seria uma resolução de uma incompatibilidade inicial do ser pré-individual
através da sua repartição em fases. Essa resolução daria conta de uma incompatibilidade
em relação as forças em tensão no sistema e da impossibilidade de uma interação entre
termos extremos das suas dimensões (SIMONDON, 2005, p. 25). O ser pré-individual se
caracterizaria por um equilíbrio metaestável onde não haveria a interação entre suas
dimensões subjacentes que manteriam as forças tensionadas no máximo de sua energia
potencial. Com a individuação as potências dispares das forças passam a se relacionar nas
formas individuadas, caracterizando, a partir daí, um sistema de equilíbrio estável. As
relações das forças, das partículas, dos corpos, dos indivíduos, das leis, das instituições e
das formas sociais são resoluções do ser que estão sempre diante da incompatibilidade
representada pela diferença absoluta dos termos e das dimensões que caracteriza o caos
metaestável. No caos, as forças coexistem no máximo de sua energia potencial em um
sistema longe do equilíbrio estável. Já as formas individuadas, relacionam as forças
díspares a partir de mecanismos de conservação que se reproduzem nos agenciamentos
estabilizantes que garantem a preservação do indivíduo e das espécies em suas fases
específicas. Tudo que ameace essa sobrevivência deve ser expugnado de modo a não
comprometer a ordem da vida orgânica ou social. Não foi à toa que Platão expulsou os
poetas de sua República. O conhecimento advindo do delírio inspirado pelas musas,
comprometia o funcionamento de seu Estado idealizado, estruturado sobre bases

60
estritamente racionais. Foi assim também que os loucos foram banidos do espaço de
convivência comum, desterrados a princípio, para no fim serem encarcerados, livrando-
se assim a sociedade da ameaça de sua desrazão. Os exemplos se multiplicam e seguem
a lógica que determina que todo indivíduo que carregue no seu corpo algo que
comprometa o funcionamento orgânico das estruturas da vida individual e coletiva, deve
ser banido ou adaptado às regras de funcionamento deste espaço construído sobre uma
identidade padrão do equilíbrio estável. A reivindicação de uma identidade, qualquer que
seja ela, sempre obedece a uma lógica classificatória que parte de um ponto fixo para
aproximar ou afastar as diferenças constituídas no seu em torno. Nossa tarefa aqui é seguir
as linhas de errância que levam os indivíduos para longe desse esquema estabilizante das
identidades fixas. Encontrar as relações e as conexões dessas linhas que se afastam de
uma produção eficiente em prol do equilíbrio dessa ordem estabilizante de funções
padronizadas. Se meus órgãos ou a ausência deles interrompem a produção eficiente da
ordem, se minha linguagem ou a ausência dela interfere no equilíbrio da produção de uma
subjetividade dominante, devemos seguir os seus movimentos, tagarelice ou silêncio,
longe de um centro produtor de sentidos, acolhendo toda nova forma de expressão que se
relaciona aos corpos e seus encontros no mundo. Deixar que surjam gestos que não
obedeçam a dinâmica de um padrão eficiente e útil, mas que carreguem e emulem novos
sentidos. Seria, como nos diz Deligny, “vagar um infinitivo que não requer complemento”
(DELIGNY, 2018, p. 20). Estar sempre na perspectiva de um acontecimento que não para
de produzir novas realidades; longe de um centro fundante ou das categorias que
aprisionam as formas em relações dadas a priori. Um centro de identidade produz ações
a partir de uma determinação fundante cujo resultado é o prolongamento de pontos sobre
os quais as linhas se direcionam. Centros produtores de sentido aos quais nada escapa e
que estão, a todo tempo, produzindo linhas corretivas ajustando as trajetórias às
coordenadas preestabelecidas de um plano de organização e suas finalidades originais. O
plano de organização sempre obedece a uma finalidade que direciona as forças que nele
se relacionam e as vão modulando no sentido de retirar daí o que interessa a preservação
de sentidos majoritários e nexos causais que representam respostas adequadas a estímulos
que orientam a composição dos estratos onde as formas se fixam. O plano de organização
definirá as identidades que viabilizarão o reconhecimento de traços que comporão os
limites dos indivíduos e seus modos de ser no mundo. A identidade carrega o peso de
várias gerações, onde o mesmo reaparece insistentemente como conforto às expectativas
de se poder reconhece-lo a qualquer tempo. As repetições formam um padrão que é

61
classificado por esquemas reprodutores que os solicitam a todo instante. Dos encontros,
por mais fortuitos que sejam, espera-se minimamente que se possa recolher as respostas
adequadas aos estímulos com os quais já guardam uma conformidade. As surpresas não
são desprezadas desde que não desviem os estímulos de suas finalidades originais.
Respostas adequadas determinam lados, alturas, profundidade e direções. Elas permitem
que se possa situar no espaço e no tempo aquilo que se espera reencontrar a todo o instante
como algo capaz de ser re-conhecido. Se os estímulos engendram a ação, em um meio
que não se cansa de produzir intensidades, as finalidades originais de um padrão de
resposta vão produzindo meios próprios para que estas respostas sejam possíveis. Se os
meios são os lugares onde as tendências se insinuam, o seu controle e a sua obstinada
reprodução visa recuperar os efeitos esperados a despeito da própria tendência que é
apenas uma insinuação; altera-la o quanto seja possível para que se estabeleça a
adequação de uma causa ao seu efeito, tirando da tendência aquilo que lhe é mais caro.

Como fugir dos limites da identidade se ela é que permite que as coisas permaneçam
diante de mim a partir dos seus traços comuns? Se assim não fosse, cada vez que eu
piscasse o olho veria um mundo novo, sem que nada pudesse reconhecer. Não se trata
aqui de destruir os estratos onde as coisas se organizam e se fixam, mas de produzir linhas
de fuga que me permitam estabelecer novas conexões com as forças ainda não
relacionadas nas formas fixas do idêntico. Liberar as forças pré-individuais do ainda não
formado, onde não é possível se dizer “isso” ou “aquilo”. Lá onde a vacância dos sentidos
permite imprimir um sentido novo as forças face ao reiterado idêntico. Não há de se
querer reconhecer aquilo que aparece como um sinal de semelhança que evoca uma
permanência qualquer, mais como novidade que se abre a exploração de tendências antes
nuca manifestas. Não é preciso evocar um velho conhecido, mas saudar a aparição como
uma nova inscrição de uma trama que insiste em se anunciar. Liberar a diferença como
aquilo que produz sempre o novo ou como o motor mesmo da produção, pois ao
diferenciar-se ela não faz oposição, mas detona singularidades; singularidades errantes,
pois abolem as partidas e chegadas, traçando redes singulares; indecidíveis, pois não
reivindicam um núcleo fundante que direciona o sentido; a-centradas, pois trabalham
sempre como um meio de individuação e não como um centro produtor já individuado.
Cabe aqui alterar o traçado que inverte a noção de individuação, pois caímos sempre na
tentação de pesa-la como produto de um ser já individuado., concepção que é fruto de
relações de forças que se fixam nas formas cristalizadas da estrutura de um plano de

62
organização; resultado das forças de conservação que se afirmam a partir da identidade.
O indivíduo formado não carrega uma essência que o determina dessa ou daquela forma,
mas vai assumindo uma essência ao longo de sua inserção nos estratos onde se move. O
indivíduo é a resolução da disparidade dos potencias de um equilíbrio metaestável. O
indivíduo mantém a tensão das potências de diferenciação do ser pré-individual que se
manifestam como sua tendência. As tendências se insinuam sempre pelos meios
intensivos. Os meios intensivos são preenchidos por potenciais e reivindicam
acontecimentos. A individuação é um acontecimento que funciona por agitação dos meios
intensivos. “Há no mundo alguma coisa que força a pensar. Esta algo é o objeto de um
encontro fundamental e não de uma recognição” (DELEUZE, 1988, p. 231).

Os meios intensivos não possuem localização. Não estão aqui ou aí em algum lugar
determinado. São não-lugares que não possuem nenhuma relação identitária que remetam
a qualquer categoria espacial. São agitações onde vibram frequências. E o que são as
forças se não frequências que vibram? Quando se relacionam nas formas as forças já
assumem essa ou aquela direção, enquanto não relacionadas são forças livres, pura
vibração de frequências, puras agitações. O indivíduo já formado é um conjunto de forças
relacionadas que assumem está ou aquela forma nos estratos onde se move, enquanto o
não-lugar da individuação é um meio intensivo de forças livres, um campo de intensidade
que não para de se agitar preenchido de singularidades nômades que são as potências da
diferença. Meio como agitações sem nenhum traço identitário que relacione categorias
carregadas de sentidos prévios. Meio onde não se efetuam trajetórias, mas sim o traçar de
um acontecimento singular. Se não há partidas ou chegadas, a trajetória é substituída por
uma errância não intencional e a-significante destituída de forma. Oscilações
turbilhonares, sem medidas, desmesuradas. É nesse meio quem vem se constituir a
individuação. Individuação que não impõe limites, mas estoura bordas, cria zonas de
vizinhanças, deixa fervilhar intensidades, para além da ordem da continuidade do plano
de organização e do solo das identidades fixas. Nele a diferença não opera por oposição
ao mesmo, pois se assim o fizesse estabeleceria um outro já carregado de identidades
fundantes. Ao invés disso, a diferença deve operar por sínteses disjuntivas, pois o seu
traçar arrasta forças coexistentes em ininterrupta diferenciação de si, que não se
comunicam a não ser por vizinhanças. Tratando-se do indivíduo já formado, onde as
forças entram em relação nas formas do corpo que as retém e reproduzem, caberá
encontrar as fronteiras, que diferente dos limites que sustentam sua identidade, são as

63
viradas através da qual as forças podem transbordar singularidades, fazendo vazar as
singularidades de um plano intensivo que se mantém sob os estratos do organismo
individuado.

As forças pré-individuais não agem por finalidade, mas por sua pura tendência. Por não
estarem relacionada e agirem como forças livres, sua tendência é a potência de afetar. Ao
se individuarem, estas forças entram em relação com outras forças e o resultado é uma
forma que resolve sua disparidade pré-individual. A resolução de uma disparidade
original se dá pela repartição em fases onde se as forças se relacionam nas formas. As
formas constituem-se, portanto como a via de atualização de uma determinada potência
quando esta é reduzida a uma função atual. Pense num indivíduo que se locomova sobre
quatro apoios. Sua boca, então, assume uma função de capturar os objetos ao seu redor.
Imagine este indivíduo posto em pé, sobre dois apoios. Os membros superiores que
tinham a função de apoio passaram a exercer a função de captura, originalmente da boca,
que desviada de sua função original, estará livre para assumir novas funções. As potências
são as tendências de uma força. Chamaremos aqui de forças livres, as potências não
ligadas, aquelas que ao atuarem em um sistema liberam as formas de sua função original,
levando ao aumento da função de afetar das forças em jogo. Se livres, ou não
relacionadas, não encontram oposição, pois ainda não se formaram. E é nessa lacuna ou
espaçamento, onde a identidade ainda não foi formada, na brancura desse horizonte
indeterminado, que a força traça sua potência, livre dos fantasmas do mesmo e da
hierarquia das categorias de um sujeito fundante. No silêncio de um espaço a ocupar-se,
longe dos ecos que reivindicam o padrão de uma modelo de corpos e de uma subjetividade
dominante.

A intensidade não se reduz a antecipar a percepção, mas é bem mais o elemento


que engendra a sensibilidade. Para Deleuze, é, então, este elemento que faz
nascer, que deflagra, que dispara, a sensibilidade. É no acaso de um encontro
que a sensibilidade é engendrada e, sob o violento impacto desse encontro, tem
início a gênese do ato de pensar no próprio pensamento (SILVA, 2017, p. 23).

Partamos então de um meio intensivo, onde a individuação não opera identidade das
formas fixas, mas a partir da liberação de potências resultantes de forças livres e, portanto,
não relacionadas. Na novidade que afirma a diferença, não em relação a um outro, mas
como uma diferença de si, traçando linhas de fuga produtoras de novos sentidos para o

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corpo. Forças a-subjetivas, uma vez que não se trata aqui do sujeito como unidade
reflexiva, mas de forças livres que dissolvem as formas e as liberam de sua função
original. Não se trata de um centro produtor pois as forças livres invadem os limites por
todos os lados e a todo tempo. Elas estão ali e preenchem todos os limites, fazendo passar
as singularidades múltiplas como sua potência. Trata-se apenas de liberar sua potência
para que o novo apareça de forma inusitada. O novo é a dimensão da atualidade onde as
forças já encontram sua ressonância dada a relação de suas frequências, mas onde a
potência de diferenciação atravessa todas as suas dimensões. A potência da novidade
reside na capacidade de diferenciação que não cessa de ser produzida e é o motor do
próprio ser. O indivíduo que percebe o mundo ao seu redor apoia-se na identidade para
olhar representar o mundo a sua volta. É através dela que o mundo permanece e não
escapa a todo tempo diante dos olhos que o veem. Porém o mundo não está separado do
indivíduo que o representa. Seu corpo se mistura com outros corpos em agenciamentos
maquínicos, ao mesmo tempo que esses conteúdos se agenciam com toda a sorte de
enunciados coletivos. Indivíduo que percebe, abstrai e diz o mundo do qual seu ser
participa como limite de sua objetividade; fundamento identitário que o permite dizer o
Eu e o Outro enquanto sujeito do enunciado. Sujeito cujo conjunto de percepções está
articulado definitivamente em um plano de organização atravessado por forças
relacionadas nas formas. Força da luz que se propaga e força do olho que a captura; força
sonora que se expande em ondas e força do ouvido que à modula; força das massas das
partículas aceleradas, força das peles que as tocam e força do nome que o identifica. Ao
dizer a realidade a qual está enrolado o sujeito se prolonga através de uma cadeia de
significados que o remete, o tempo todo, as formas de conteúdo e as formas de expressão
agenciadas nos estratos do plano de organização, onde vão sendo determinadas a
qualificação ou a especificação e a partição ou organização, como condições de toda
representação de suas ideias. “A ideia só se atualiza, precisamente, à medida que suas
relações diferenciais se encarnam em espécies ou qualidades separaras, e na medida e,
que as singularidades concomitantes se encarnam num extenso que corresponde a essa
qualidade” (DELEUZE, 2006, p. 136). As potências virtuais das forças pré-individuais
se atualizam no indivíduo formado e a partir daí se é possível dizer o claro e o escuro ou
alto e o baixo, por alguém que ouve, vê, se recorda e diz. Estabelecem-se, pois, os limites
do sujeito que conhece e diz mundo. O sujeito que percebe, abstrai e diz o mundo é a
articulação das forças relacionadas no indivíduo, sob o desenrolar de uma cadeia de
signos que significa esta relação e prolonga a articulação nos limites da representação. O

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sujeito que percebe, abstrai e diz é o último limite a partir do qual irá se fundar a
possibilidade de representar o real. A condição dessa representação é a identidade, pois a
partir dela opera-se a adequação entre o percebido, o abstraído e o dito, no centro de
unidade daquele que percebe, abstrai e diz.

A unidade que funda toda a possibilidade de perceber, abstrair e dizer a realidade do


sujeito é o resultado da intervenção recíproca dos agenciamentos maquínicos de corpos e
os agenciamentos coletivos de enunciação, produto da relação de forças que agem nos
corpos e nos enunciados produzidos nos estratos do plano de organização. Dessa forma,
toda subjetividade reproduz um modo determinado de perceber, abstrair e dizer, a
reatividade dos modos de ser do indivíduo apela a um princípio de permanência que possa
confrontar a transitoriedade das forças relacionadas nas formas, da qual sua vida é o
principal exemplo. Daí, tudo que é confrontado com o indivíduo no plano de organização
só pode ser fixado quando percebido, abstraído e dito. A regularidade das aparições não
pode ser alcançada a não ser que algo apareça para a percepção e que o indivíduo seja
capaz de abstrair seus traços essenciais e possa dizer cada uma das aparições, prolongando
as regularidades que permanecem para além da aparição, mesmo quando ela desvanece.
Fora desse círculo o que existe são encontro de forças em um tipo de sensibilidade que
pode ser tida como primária.

Mais, na ordem da passividade constituinte, as sínteses perceptivas remetem a


sínteses orgânicas, como a sensibilidade dos sentidos remete a uma
sensibilidade primária que somos. Somos água, terra, luz e ar contraídos, não
só antes de reconhecê-los ou de representá-los, mas antes de senti-los. Em seus
elementos receptivos e perceptivos, como também em suas vísceras, todo
organismo é uma soma de contrações, de retenções e de expectativas
(DELEUZE, 1988, p. 131).

A força luminosa que se encontra com a força de corpos opacos sendo refletida e indo se
relacionar com a força da pupila, dilatando-a para formar a imagem na retina como sinal
visual; a força de uma onda sonora se relaciona com a força do tímpano, fazendo-o vibrar
até que as células ciliares se contraiam, gerando sinais auditivos; a força do ar carregados
de moléculas aromáticas vem se relacionar com a força do epitélio olfativo, produzindo
sinais olfatórios; a força térmica que atravessa a pele se relaciona com axônios que geram
sinais tácteis. Todas essas operações são contrações do corpo que sente as excitações de

66
diferentes forças que o atravessa gerando sinais que são processados pelo cérebro que
produz, a partir daí, as formas sensíveis.

Os sinais sensíveis são o resultado de uma síntese passiva, que deixam, no máximo,
rastros do encontro das forças. Já as formas sensíveis ou as percepções sensíveis são o
resultado da forma como para cada sinal que se prolonga como uma percepção.

Bem mais: estas sínteses orgânicas, combinando-se com as sínteses


perceptivas erguidas sobre elas, tornam a se desdobrar nas sínteses ativas de
uma memória e de uma inteligência psicoorgânicas (instinto e aprendizagem).
Portanto, não devemos apenas distinguir formas de repetição em relação à
síntese passiva, mas níveis de sínteses passivas, combinações destes níveis
entre si e combinações destes níveis com as sínteses ativas. Tudo isto forma
um rico domínio de signos, envolvendo sempre o heterogêneo e animando o
comportamento, pois cada contração, cada síntese passiva é constituída de um
signo que se interpreta ou se desdobra nas sínteses ativas. Os signos, em
relação aos quais o animal "sente" a presença da água, não se assemelham aos
elementos dos quais carece o organismo sedento do animal. A maneira pela
qual a sensação, a percepção, assim como a necessidade e a hereditariedade, a
aprendizagem e o instinto, a inteligência e a memória participam da repetição
é medida, em cada caso, pela combinação das formas de repetição, pelos níveis
em que estas combinações se elaboram, pelo relacionamento destes níveis, pela
interferência das sínteses ativas com as sínteses passivas (DELEUZE, 1988, p.
131 e 132).

Cada coisa que aparece ao indivíduo que se posiciona como um sujeito nos limites de sua
forma de ser-no-mundo, chega até ele através dos mecanismos que operam no plano de
organização da realidade. Percepção, abstração, linguagem podem ser tomadas como
operações do sujeito quando este manifesta sua presença no mundo. A invocação dessa
“presença”, de saída é proposital. Ela nos livra da ideia do sujeito como uma unidade
fundamental de onde tudo partiria. Cada forma é um emaranhado de dobras onde
misturam-se inúmero elementos; visíveis, invisíveis, audíveis, inaudíveis, enunciados ou
silenciosos. Se a percepção dá conta dos sinais sensíveis, organizando suas impressões e
a abstração fixa o ponto exato desses encontros e o projeta para além das vibrações de
cada coisa percebida, é a linguagem que irá reproduzir as imagens abstraídas através das
impressões gravadas da memória, estabelecendo a relação que ligará os significados as
ideias por ela representadas. Percepção, abstração e linguagem se refeririam a sínteses

67
ativas uma vez que evocam a ação de um sujeito que percebe, abstrai e diz. Diferente das
excitações que produzem os sinais sensíveis, resultados do encontro de corpos e das
forças que neles se relacionam. Esse bloco de sensações só será transformado em
percepções, ideias e linguagem a partir da operação de uma cadeia de significação que
atravessa a relação do indivíduo com a realidade que o enrola, expondo os limites onde
os sinais são impressos, processados, recuperados e enunciados pelo sujeito. Se os sinais
sensíveis são produzidos pelo encontro de forças, a percepção já é um exercício que
seleciona aquilo que do bloco de sensações “sobe” ao sujeito que percebe e é impresso
como sensação. Os sinais sensíveis seriam o elemento mínimo das sensações, uma
sensação primária. “Antes de saber se estou diante de uma cor e de qual cor, a minha
sensibilidade já é movida de alguma maneira, ou ocupada de alguma maneira: isto é a
intensidade como antecipação da percepção” (SILVA, 2017, p. 22). Um sinal sensível
não é ainda uma qualidade ou parte, mas sim uma intensidade. Deleuze chama-o de
“insensível contingente”, que pequeno demais, distante demais para nossos sentidos no
exercício empírico, opõe-se como um insensível essencial (DELEUZE, 1988, 233).

Já ao abstrair a sensação o material impresso é transformado em ideias ou conceitos que


passarão a representar a percepção original. Ao dizê-la o que se recupera não é a sensação
original, mas sua representação, uma vez que ela atravessa uma cadeia que transforma o
sinal original em uma sensação propriamente dita. Daí a importância de compreendermos
como se interelacionam reciprocamente as formas de conteúdo e as formas de expressão,
nos agenciamentos maquínicos de corpos e nos agenciamentos coletivos de enunciação,
destacando as sínteses passivas e ativas dos indivíduos que participam desse jogo de
significação. Na determinação de locais de onde se pode perceber, abstrair e dizer a
realidade vai se operando a especificação do real em qualidades e a separação em partes,
dando a ele sua visibilidade e legibilidade. Percebo, não aquilo que está diante de mim,
mas aquilo que é notado pelos limites da minha percepção. Se não percebo algo, não é
porque não esteja diante de mim, mas porque para mim é invisível. Não são os órgãos do
meu sentido que dão a perceber, mas o que torna as coisas presentes ao sujeito da
percepção são os anteparos de visibilidade produzidos no plano de organização. Traduzir
os sinais sensíveis em percepção é uma articulação que se dá na atualização do indivíduo
no plano de organização. A cadeia de percepções que se enrola ao indivíduo nos estratos
do plano de organização se dobra até formar um sítio de visão de onde se erguem pontos
de vista se poderá traduzir os sinais sensíveis em percepção, e esta como síntese ativa que

68
imprimirá na memória seu conteúdo sensível a ser prolongado pela abstração. “O
conhecimento não é o nexo entre uma substância objeto e uma substância sujeito, mas
relação entre duas relações, uma estando no domínio do objeto e outra no domínio do
sujeito” (SIMONDON, 2020, p. 111).

A inflexão do ponto de vista se opera a partir daquilo que se organiza e articula como o
sujeito que percebe, sem essa inflexão os sinais sensíveis são vazios de qualquer função
sobre o plano de organização. Sob o ponto de vista se conectam uma cadeia de sinais
sensíveis que permitem que estes tornem-se percepção. “Assim, a informação, na
transmissão de uma mensagem, é aquilo que se opõe ao nivelamento geral da energia
modulada pelo sinal (SIMONDON, 2020, p. 329). A percepção, dessa forma, pode ser
considerada como uma síntese ativa que articula os sinais sensíveis e lhes informa. “O
sinal de informação, é o poder de decisão, e a quantidade de informação que pode ser
transmitida ou registrada por um sistema é proporcional ao número de decisões
significativas que esse sistema pode transmitir ou registrar” (SIMONDON, 2020, p. 330).
A partir daí a informação impressa na memória é articulada de maneira a permitir que se
prolongue os sinais sensíveis para além das forças que o geraram, abstraindo-os de suas
impressões originais e atualizando a ideia que traduzirá o seu sentido. Um sinal sensível
não “é uma qualidade, mas um signo. Não é um ser sensível, mas o ser do sensível. Não
é o dado, mas aquilo pelo qual o dado é dado” (DELEUZE, 1988, p. 231). A abstração
prolonga a unidade de uma percepção particular e projeta seus traços sensíveis para a
ideia que passará a representá-la. Ao evocar uma ideia, abstraio a particularidade da
aparição da realidade para a percepção para poder encontrar esses traços na ideia geral
que formulo. A percepção sempre traz para o sujeito a coisa particular. O sujeito que
percebe a chuva, percebe uma chuva específica. Contudo ao abstrair a ideia de chuva ele
chega a uma ideia geral que representa fodas as aparições particulares: “a chuva”. “O
pensamento da generalidade é expressão de um processo de abstração do sensível, seja
isso feito de modo explícito ou implícito, quer dizer, pensado como abstração de dados
empíricos ou fundado em um sujeito de natureza transcendental” (CHEDIAK, 2006, p.
162). Chega-se a uma ideia geral sobre a coisa percebida, através da reunião de traços
distintivos que permitem que o sujeito possa representar uma percepção. A coisa
percebida é sempre um particular enquanto a ideia é sempre uma generalidade ou um
“universal”. Esses traços distintivos não existem no sinal sensível, mas sim na percepção.
Enquanto os sinais sensíveis são resultado de sínteses passivas do indivíduo que contrai

69
a realidade em suas relações de força, a percepção já é o resultado de uma inflexão do
sujeito articulado nos limites dos estratos do plano de organização. Se a abstração exprime
uma ideia é a linguagem que ordena as regularidades e confere a elas um significado.
Através de uma redução das variáveis que aparecem na abstração a linguagem relaciona
as ideias de forma a ordenar o pensamento através de significantes. Os significantes
reproduzem os sinais sensíveis abstraídos da percepção e dão a ele um significado fixo,
reconhecível e reproduzível. Se a percepção torna visíveis os sinais sensíveis e a
abstração os expressam em generalidades a linguagem é o local da legibilidade das ideias
expressas pela abstração, transformando-as em signos linguísticos. Os signos linguísticos
nascem da relação entre as ideias e a ordenação de significantes como orientação e sentido
de uma ideia abstraída. Aquilo que uma ideia significa está condicionado a um regime de
signos que funciona como anteparo de legibilidade dos enunciados produzidos pela
linguagem. Nesse espaço de significação, as ideias carregam sentidos que são produzidos
nos estratos do plano de organização. “Além disso, é absurdo acreditar que a linguagem
enquanto tal possa veicular uma mensagem. Uma língua está sempre presa a rostos
que anunciam os enunciados dela, que os lastreiam em relação aos significantes em curso
e aos sujeitos concernidos” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 47).

Os rostos aqui são os limites dos sujeitos e de suas expressões de sentido que atravessa
os significantes em operação na linguagem. O sujeito só consegue dizer alguma coisa se
se estiver dentro dessa cadeia de significação que ordena o sentido das percepções e
formaliza as ideias através dos dispositivos da língua. As expressões linguísticas só
funcionam amarrados a uma cadeia de significação e fora delas são apenas formas
significantes vazias de um sentido representativo. A percepção, a abstração e a linguagem
são sínteses ativas da representação. Através de suas operações se é capaz de formular
um sujeito consciente que representa a si mesmo e o mundo em torno de si. A
representação se funda na identidade das formas fixadas nos estratos do plano de
organização e o princípio de identidade confere uma unidade substancial que relaciona o
conjunto de sinais sensíveis à percepções especificais, a uma ideia como expressão de um
processo de abstração e aos signos linguísticos que represam essa unidade representativa
de um sujeito consciente de si o do mundo. O corpo, então, é articulado sob esta cadeia e
posto a serviço da significação, seus órgãos assumem uma função de sustentar o sentido
de um padrão de subjetividade dominante.

70
PARA ALÉM DO SUBJETIVO

Fora da cadeia representativa das percepções de um indivíduo e por trás da unidade de


um sujeito, temos apenas agitações; vibrações; frequências de forças que se agitam e que
atravessam as formas. Vibrações de pequenas estruturas, a exemplo dos alvéolos, que se
insinuam face a rede de pequenos capilares sanguíneos, como tendência de ambos para
difundir moléculas de oxigênio e dióxido de carbono que permitem a troca de gases
distintos; agitação dos alvéolos, dos capilares sanguíneos e dos gases antes de que se
formalizem na função de respiração e de circulação dos pulmões e do coração. Para além
da ordem que as funções assumem nos estratos de um plano de organização temos a
multiplicidade daquilo que neles são insinuados em um estado metaestável e pré-
individual. Um princípio de individuação que pretenda liberar a potência da diferença das
forças que se atualizam no plano de organização deve fazer deslizá-la para fora do campo
preenchido por estratos de segmentariedade por onde se articulam as cadeias de
significação dominante. Esse espaço do “fora” é a zona do indeterminável, onde tudo se
faz e se desfaz, lugar em que as aparições e os esvanecimentos deixem apenas rastros e
onde a instantaneidade dos encontros está sempre a dissolver os limites entre o visto e o
dito; fora de onde se formam os significados que orientam a visão e a língua. Os signos
aí não mais estariam encobertos de registros da memória evocados por semelhança ou
equivalência em cada uma de suas aparições. Seriam signos puros, uma vez que emitiriam
sempre uma novidade que não se pode antecipar, definir ou corresponder, pois mudariam
a cada encontro, tornando-se irreconhecíveis a partir do conjunto de registros prévios.
Meio intensivo onde as forças se relacionam por vizinhança, se insinuam silenciosamente
na duração pura de suas tendências; sem passado, presente ou futuro, mas como
intensidades sempre a produzirem o novo. O falar nesse meio só se tornaria possível caso
as palavras fossem transmutadas em intensidades em cada uma de suas aparições, sem
evocar significados, mas compondo uma fala que levasse o sujeito para longe dos espaços
de significação onde se encontram as identidades recolhidas nos registros de sua
memória. Meio natural, onde os encontros de tendências intempestivas produzem
agitações - tendências que se insinuam e que antes de poderem ser designadas se
transmutam em uma novidade. Expressar essas tendências e seus meios requer uma fala
que se afirme pela combinação de palavras esvaziadas dos significados registrados

71
através da memória, palavras que apareçam como signos puros preenchidos pela
intensidade das agitações. Chamemos os meios naturais de meios intensivos, onde os
signos não designam ou representam, mas insinuam intensidades de tendências. Se ao
dizer a realidade na qual se encontra imersa, a consciência já carrega os significados,
teríamos que buscar palavras não vinculadas as formas conscientes de linguagem, onde
os signos estivessem esvaziados dos seus sentidos originais, na brancura onde se rompe
as relações entre significantes e significados. Brancura que faz parte do esquecimento,
que se afasta da consciência e vem se localizar longe da abstração e onde os signos não
mais evocariam lembranças que afirmassem um sujeito determinado.

As tendências não se reduzem aos espaços de significação produzidos pelas faculdades


responsáveis por construir a subjetividade dos indivíduos, nos termos das operações de
sua percepção sensível, abstração e linguagem. Elas seriam as vibrações de um meio
intensivo, impossíveis de serem diferenciadas a partir de um processo de comparação que
explicite suas semelhanças ou contradições a partir de qualquer identidade. Sem traços
comuns ou oposições sobra apenas uma diferença que é uma manifestação intempestiva
e instantânea que se dissolve em sua obscuridade antes que dela se possa ter qualquer
clareza. Se as imagens da consciência são claras e distintas, permitindo assim sua
representação por signos que designam significados inequívocos, as tendências insinuam
ideias distintas, mas obscuras. Distintas à medida que sempre diferentes e obscuras por
não carregarem identidades que possam ser recordadas ou designadas. Assim, a palavra
que pretenda se deixar preencher pela intensidade dos meios naturais deve ser capaz de
se libertar das teias da subjetividade que permite a aparição de um Eu que percebe,
registra, recorda e designa. Ao invés de surgir como um significante, ela deve brotar como
uma agitação no meio do caos, antes que se possa fixar sua identidade. Se originalmente
as coisas supostamente apresentavam um aspecto caótico, foi através de uma ação precisa
que elas foram arranjadas e dispostas em uma forma organizada e seu funcionamento
passou a obedecer a um ritmo regular impresso na natureza de tudo que existe. Ao lugar
que cada coisa passou a ocupar no mundo juntou-se o ente que se viu consciente do
processo e que desde cedo tratou de dar conta desse conjunto, tentando entender e explicar
o que estava por trás dessa ordem aparente. A capacidade de se situar na realidade a partir
de ações capazes de interferi-la, dissipava cada vez mais a confusão que se suponha existir
no início e auxiliava a expugnação do caos original. “Somente os seres com uma
inervação muito sumária, e uma estrutura pouco diferenciada, não tem nenhum limite em

72
suas durações de vida” (SIMONDON, 2020, p. 353). Ao conseguir narrar o curso das
coisas que iam sendo registradas em sua memória o sujeito refletia o mundo a mediada
que o brilho emitido dos corpos opacos, as vibrações sonoras e a textura dos corpos
invadiam os seus sentidos, encarnando as inflexões de suas palavras ao lado das inflexões
da realidade e constituindo assim a sua história. As narrativas sobre a origem do mundo
traziam o sujeito dessa narrativa colado ao fluxo das coisas. Surgido ao acaso ou como
obra de um deus particular caberia a ele testemunhar aquilo em que vinha se tornando no
curso de suas ações. Sua memória era fundamental e somente através de suas faculdades
particulares poderia dar conta de narrar os acontecimentos que o traziam de saída
embrulhado em suas lembranças. Estar consciente de si e de tudo a sua volta era um
grande trunfo. A tarefa agora consistia em multiplicar os registros da consciência e
inscreve-los na realidade ao lado das demais coisas, até que a escuridão repentinamente
cerrasse seus olhos, aniquilasse seus sentidos e ele não pudesse mais falar, retornando ao
silêncio original.

O caos como o conjunto de todas as determinações possíveis ameaça a consciência como


centro produtor de sentidos. Daí a importância da memória como um órgão a partir do
qual o sujeito possa significar o mundo a partir das imagens por ele distribuídas em forma
de narrativas. As narrativas produzidas pelos sujeitos ao longo do processo de
constituição de uma natureza humana passam a resguardá-lo da ameaça do silêncio.
Quanto mais se fala, mais consciente se torna o sujeito. Quanto mais se preserva sua
narrativa mais se inscrevem em sua memória os registros do curso do mundo ao redor de
um sujeito que o contraia e se inscrevia ao seu lado através de um espaço significado por
suas palavras. Espaço de inscrição da memória que distanciava o homem da condição
natural das demais coisas, centro produtor das faculdades de formar ideias e centro
produtor de sentidos, com seu poder de antecipação que excede o dado sensível e a
experiência.

Como Nietzsche já descrevera, os animais podem ser tidos como entes lançados no fluxo
de um meio natural, sem registros conscientes, silenciados por estarem fora da cadeia de
significantes que confere sentido às suas percepções (NIETZSCHE, 2003, p. 7). No caso de
sujeitos que são capazes de dizer a si mesmos como um Eu e todo o resto como um Outro,
as faculdades representativas se atualizam através da memória, como órgão que recolhe
os registros das impressões sensíveis, ideias e signos linguísticos e através da recognição

73
recupera e ordena os conteúdos, efetuando as sínteses identitárias que determinam o lugar
de cada elemento na cadeia de significantes que irão organizar o mundo pela sua
linguagem e a partir de uma concepção generalizada do homem-que-nós-somos. Os
sujeitos humanos possuem um modo de existência que se relaciona com tudo aquilo que
lhes tornam semelhantes. Acontece que esses modos de existência familiares, vez por
outro, são atravessados por modos singulares de contrair o mundo experimentados por
indivíduos que não se incluem nas medidas padrão desse modelo de humanidade
formatado nos estratos do plano de organização das sociedades humanas. Foi a partir do
trabalho com esses inadaptados que Deligny dirigiu sua atuação que culminou com sua
experiência em Cévennes com crianças autistas não verbais. Seu trabalho consistia em
explorar modos de existência que escapavam a essas medidas padrão de humanidade,
questionando os meios de semelhentizar (semblabiliser) os indivíduos a partir dos códigos
de conduta e significação que definiram os sujeitos humanos. “Tratá-los como sujeitos é,
em verdade, assujeitá-los, projetar sobre eles um modo de ser específico e ao qual eles
terão que corresponder. Eis o campo problemático de Deligny” (MIGUEL, 2015a, p. 58).
As tentativas de Deligny visavam construir um espaço onde a diferença pudesse ser
explorada não como o negativo do mesmo, mas como forma de expressão de pessoas que
funcionam de forma radicalmente diferente, tomando como ponto de partida essa
diversidade para a construção dos territórios em torno dela. Para Deligny, não se tratava
de criar instrumentos adaptativos e utilitários para humanizar modos de vida diferentes,
reconhecendo-os a partir de um modelo majoritário, mas sim de liberar linhas de fuga de
qualquer centro identitário produtor de significados dominantes de um modelo
recognitivo.

Dessa forma, o que se torna reconhecido irá constituir o “nosso” mundo, para
o qual formamos as ações necessárias ou possíveis e por meio das quais
tiramos proveito dele. Assim, o mundo que recortamos e percebemos como
pronto, que permite reconhecermo-nos como distintos dele, que garante a
manutenção da sensação de permanência e “identidade”, é tributário do
modelo recognitivo. Esta maneira de recortar o mundo material a partir dos
interesses adaptativos e utilitários irá constituir um mundo “humanizado” que
tomaremos como o mundo, no qual o pressuposto subjetivo todo mundo sabe
se torna um imperativo dogmático” (MELO, 2015, p. 78 e 79)

74
As formas majoritárias de uma subjetividade dominante a partir de seu modelo
recognitivo, estabelecem o limite e entre o humano e o inumano. Os limites da
consciência do sujeito preservam a ordem que se distancia do caos da insignificação. A
ordem da representação permite que se reconheça e se traduza as sensações, as ideias e
os signos. Como bem observou Deleuze e Guattari:

Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais
doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo,
ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo
esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. São
variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 259).

Na cadeia dos significantes a realidade é representada de forma a permitir o acesso do


sujeito que se atualiza à medida que expugna o caos da insignificação que dissolve os
indivíduos no fluxo indeterminado das forças pré-individuais que subsistem de forma
ininteligível sem essa instância subjetiva. O lugar do sujeito que se dá na inflexão que
abre a profundidade do “Eu”, está atrelada à cadeia de significantes a partir do qual toda
a subjetividade é processada por uma série de recognições que fixa o lugar do sujeito que
percebe, abstrai e diz, bem como o sentido do que é percebido, abstraído e dito. Se o
indivíduo contrai as tendências que se insinuam nas forças que o atravessam o sujeito
contai o sentido dos significantes que o enrolam a um plano de representação de um
mundo que lhe a dado a conhecer o significado. Porém, se este indivíduo não tem a
capacidade de se reconhecer no mundo por ele percebido, que traz de volta sempre um
novo sinal sensível que vai se metamorfoseando a cada percepção, está rompida a unidade
e dissolvido o fundamento onde se apoiavam todas as percepções. “O limite à quantidade
de sinais é certamente o caráter descontínuo do suporte de informação, o número finito
de elementos representativos distintos ordenados segundo o espaço ou o tempo e nos
quais a informação encontra seu suporte” (SIMONDON, 2020, p. 358). Admitir que por
baixo da superfície do Eu que percebe, abstrai e diz a realidade, existe uma dinâmica
indeterminada que se abre em “n” dimensões, num jogo não consciente que se processa
longe de qualquer centro, faz o sujeito se dilacerar em múltiplos impulsos difusos. A
partir daí a realidade se transforma num grande estranhamento, onde o que apenas
permanece é a capacidade do indivíduo contrair a realidade em seu “meio natural”. Aí,

75
nenhuma correspondência é possível, nenhuma recognição viável, mas apenas o marulhar
de frequências que agitam as forças não relacionadas e, portanto, livres de qualquer
forma. Longe de um centro subjetivo não há mais distâncias a percorrer nem identidades
a se apontar. Não se é capaz de se descrever os dias e separá-lo das noites, pois o tempo
parou de passar. Não se consegue perceber a diferença entre o céu e os abismos, uma vez
que tudo se aproxima e se distancia imediatamente, todas as partes se repetem muitas
vezes e todo lugar é um outro lugar. Inútil é o esforço de tentar recolher um evento
qualquer na tentativa de fixar os instantes, pois sem a memória torna-se um emaranhado
indistinto de novidades que não param de se dissolver. Sem o suporte do Eu que percebe,
abstrai e diz a realidade, é perdida a capacidade de se distanciar o indivíduo das demais
coisas e ele misturado a elas em uma única duração, onde já não é mais possível precisar
onde começa ou termina o sujeito. O indivíduo, então, está confrontado com as forças do
caos, e sem poder lançar sobre ele a luz da consciência é empurrado para fora do plano
representativo num “universal aturdimento” (DELEUZE, 2009, p. 132). Para fora dos
limites, para fora da consciência, para fora das formas, para além do tempo onde a
extensão não configura mais qualquer espaço. Nas bordas do caos fulguram apenas
intensidades. Intensidades que não se deixam capturar. Vorazes, indeclináveis nos
predicados ou na falta de um significante que consiga capturar qualquer significado.
Potentes em dissolver sem reivindicar uma essência; vibrantes sem se apoiar em qualquer
superfície onde o contato provoque uma relação ressonante; fora que se afasta
irredutivelmente e que não possui nenhum interior ou exterior, na afirmação da
virtualidade que multiplica todas as possibilidades afirmadas simultaneamente como
numa insistência incessante. Fora dos limites das formas e dos significados; sempre a
escapar, onde as figuras são inapreensíveis pelos modelos óticos e representativos;
impronunciáveis sob qualquer gramática; indiscerníveis pelas marcações da clássica
geometria. Obscuridade desconhecida cuja distinção se porta apenas como uma
virtualidade de uma zona indecidível e indiscernível.

Nessa experiência do tempo já não podemos falar de alguém ou de um sujeito


que experimenta, pois, a relação com o devir pressupõe uma fissura no EU.
Portanto, trata-se de se elevar das percepções vividas ao percepto, de afecções
vividas ao afecto; pois é preciso pensar a instauração de um plano
indiferenciado de forças no qual o EU fissurado se dissolve numa
multiplicidade de linhas sensíveis que captam não mais um recorte de formas,
mas um conjunto de variações intensivas. Desse modo, somos lançados numa

76
experiência sem referência, onde o EU perde o caráter de instância
centralizadora e se encontra dissolvido numa multiplicidade de “eus larvares”
que se definem por um puro sentir, pequenos eus contemplativos e contraentes
que captam linhas distintas de vibração do plano material. (MELO, 2015, p 82
e 83).

Sigamos para fora da realidade do sujeito, da consciência e da linguagem, no profundo


silêncio da ausência de significantes que remetam o indivíduo ao mundo dos homens,
onde o agir não se fia em qualquer finalidade, mas se faz como uma deriva que se afasta
de qualquer significado, no silencio, no vazio e no esquecimento dos indivíduos sem
memória. Indivíduos cujo pensamento não está atrelado a qualquer subjetividade, mas
aparece como o puro processamento de sinais sensíveis de um corpo que não para de se
confrontar com as forças ainda não relacionadas nas formas da realidade. Meio natural
onde o que insiste é a potência dos encontros de cada nova presença. Ausência de
representação, onde não é possível evocar velhos conhecidos pois nada permanece na
vacância de signos identitários, senão a brancura de uma sempre presente novidade.
Espaço onde o agir é um trajeto sem partidas ou chegadas, mas uma agitação num meio
onde vibram as tendências que não cansam de se insinuar. Linhas de errância que levam
o indivíduo para fora da narrativa do sujeito, num trajeto que não inscreve palavras, mas
apenas gestos singulares misturados às forças não conservativas, forças que dissipam a
sentença e o enunciado, as quais só se é possível seguir a partir de sua intensidade. Forças
que se atualizam em sua potência de afetar, livres para expressar suas tendências, difusas
em suas direções, não relacionadas a sua matéria, mas totalmente abertas a sua função 9.
Encontro de forças que não entram em relação senão por vizinhanças e que por isso
multiplicam sua função como capacidade de afetar, na livre expressão de suas tendências.
Os sinais sensíveis, antes de serem traduzidos em percepções, ideias ou significados,
articulam-se em uma dimensão que não se confunde com a consciência pois não foram
ainda embrulhados às cadeias de significantes que operam sua tradução. O fato de ainda
não haver a inflexão do Eu que determina o lugar de onde o sujeito pensa e fala, faz dessa
dimensão o lugar do puro acontecimento, onde o que subsiste é apenas o agir de forças
que vão deixando o seu rastro quando de sua vibração. Se pudermos supor esse espaço a-
subjetivo como um lugar da coexistência de forças livres, não relacionadas em nenhuma

9
Referimo-nos aqui, a distinção feita por Deleuze entre a função da força e seu poder de afetar e a
matéria da força e seu poder de ser afetada, em sua obra sobre Foucault. DELEUZE, Gilles. Foucault. São
Paulo: Brasiliense. 1986. p. 79).

77
forma, diríamos que ele é o campo onde as forças se encontram por vizinhança, vibram e
afirmam-se em sua absoluta diferença, operando sínteses disjuntivas que vão deixando
seus sinais em vez de se formalizarem em uma relação identitária Voltamos, aí, ao
processo de individuação como processo que carrega a potência de estados metaestáveis
futuros., onde o resultado não se confunde com uma forma fixa, mas são apenas sinais
dos encontros das forças em sua vizinhança.

(...) se esse aparecimento do indivíduo não destrói o potencial de


metaestabilidade do sistema, então o indivíduo está vivo e seu equilíbrio é
aquele que conserva a metaestabilidade: nesse caso, ele é um equilíbrio
dinâmico que supões, em geral, uma série de novas estruturações sucessivas
sem as quais o equilíbrio de metaestabilidade não poderia se manter
(SIMONDON, 2020, p. 352).

Voltemos ao exemplo das forças luminosas. Se estas, a serem refletidas nos corpos
opacos, se projetam sobre o olho e ali atravessarem a retina sem que ser forme nenhuma
imagem, o que permanece são apenas rastros de sua passagem que não se confundem com
nenhuma forma relacionada. Sem imagem o que subsiste são apenas os sinais desse
encontro de forças que coexistem na liberdade do seu poder de afetar. Essas forças se
processam numa interface que resguarda sua disparidade, mantendo o seu potencial
metaestável. Assim, é necessária uma interface que confira uma consistência a esses
encontros insólitos e que retire do caos alguma consistência mesmo que ainda não reparta
os potenciais em qualidades e partes. Tal interface deve aguentar a pressão da tensão das
disparidades “irreconciliáveis com um sujeito formado, qualificado e composto. “Há
movimentos que somente o embrião pode suportar, e aí está a verdade da embriologia: a
qui o sujeito só pode ser larvar” (DELEUZE, 2006, p. 133)

O encontro do indivíduo com o mundo, longe da ação do sujeito e da consciência, se dá


num plano em constante fuga, onde as forças não cessam de produzir novas realidades.
Fora dos esquemas representativos sobra o silêncio que só é quebrado pelo marulhar ao
fundo do fluxo de “partículas loucas” em seu movimento absoluto. As forças em jogo são
as forças do indivíduo no mundo, do seu corpo em ebulição que exerce pressões sobre o
mundo que dele recebe suas pressões, numa determinação recíproca que não para de
produzir sinais e rastros. Entre eles o que existe é uma interface que permite a
comunicação de séries heterogêneas que se agenciam na produção de singularidades

78
nômades. O plano desses encontros é uma região de passagem onde cada acontecimento
singular existe no infinitivo. A quem se referem estas regiões do silêncio? Elas não se
vinculam ao plano de organização mais ao virtual, onde o único sujeito capaz de resistir
as intensidades pré-individuais é o sujeito larvar. O sujeito larvar é composto de domínios
que permitirão a individuação ininterrupta a partir dos encontros que se processam em
suas interfaces. Séries heterogêneas que se distribuem; forca luminosa, força infra-
molecular, forças químicas. Na interface de um sujeito larvar são constituídos e se
dissolvem, aparecem e desaparecem, organizam-se e desmontam-se encontros entre as
forças em jogo, que se mantem enquanto multiplicidades circulantes que carregam o
mundo em suas vibrações.

O erro, do qual é preciso preservar-se, é o de acreditar numa espécie de ordem


lógica nessa enfiada, nessas passagens ou transformações. Já é muito postular
uma ordem que iria do animal ao vegetal, depois às moléculas, às partículas.
Cada multiplicidade é simbiótica e reúne em seu devir animais, vegetais,
micro-organismos, partículas loucas, toda uma galáxia (DELEUZE,
GUATTARI, 1997, p. 34).

Se nesse jogo de forças os encontros não forem traduzidos a partir dos códigos
dominantes das formas instituídas no plano de organização que arranja o organismo, abre-
se uma lacuna ou se produzem os excessos onde as funções originárias são alteradas.
Basta que na divisão celular, um cromossomo não se junte ao seu par, dando origem a um
cromossomo extra, ou que um axônio não traga a possibilidade de processar o intervalo
que consistirá na unidade motora, para que as funções do organismo padrão de uma
espécie se alterem. Se os sinais sensíveis não conseguem ser processados na forma de
uma percepção padronizada na interação das relações codificadas pelo organismo,
inviabilizando o desdobramento das abstrações e da linguagem, chega-se a uma zona de
errância, onde o indivíduo se atualiza em um corpo que não se encaixa no padrão de
execução das funções da espécie que determinam sua identidade. Se o desenvolvimento
padrão é a regra, essas exceções são reduzidas a anormalidade de suas funções, onde a
diferença, ao invés de ser manifesta como uma singularidade é fixada em um padrão
deficiente. Rompendo o princípio de uma realidade que se estabelece pela adequação das
funções em estratos que se estendem ao longo do plano de organização das espécies, a
diferença pode ser tomada como um desvio degenerante que compromete a ordem das
identidades. Essa perspectiva isola os indivíduos “desviantes” em um círculo que separa

79
o “normal” do “anormal”, levando a buscar a sua integração a ordem sob o risco de sua
sucumbência. O padrão sensório-motor eficiente viabiliza não só as trocas materiais de
uma sociedade, mas as trocas simbólicas que as animam. Se não consigo ver uma
determinada figura, se não consigo, ao menos dizê-la, ou se não estou apto a me apropriar
dela por meus movimentos padrões, sou empurrado para fora do círculo que reúne as
potências responsáveis por excitarem as funções dominantes que preservam a forma
original da espécie. Diferenças reduzidas a patologias, que devem ficar relegadas a suas
funções desviantes, longe de uma eficiência funcional.

Janmari estava lá, constantemente com seu “ponto de ver” sensivelmente


distante e diferente do nosso ponto de vista um tanto unânime, em se tratando
de todos os que, desde nascidos e mesmo antes disso, foram iniciados à
existência simbólica (...) Se nós nos encontramos ali em nossas maneiras de
dizer, é porque já estamos ali, de posição tomada e ponto de ver ocultado,
eclipsado. Quem expressará, e em que linguagem, a distância entre dois
corpos, um que só existe de ser visto, e sabe disso, e ou outra que só existe de
ver, sem consciência de ser (DELIGNY, 2018, p. 178 e 181).

O ponto de ver era para Deligny o que definiria o olhar da criança autista que estava
ausente da linguagem e fora dos limites que definem o homem-que-nós-somos. Era o que
separava as diferenças específicas de um indivíduo da unanimidade estabelecida pelas
trocas simbólicas que alimentam as produções subjetivas de uma sociedade específica e
seus modos de ser eficientes. O padrão da eficiência é a referência de normalidade que
obedece a fins específicos e fora dele só resta o vazio de gestos que multiplicam o silêncio.
“A bem dizer, melhor acostumar-se a isso: os gestos de Janmari não querem dizer nada e
não significam, gesto nenhum, nunca (DELIGNY, 2018, p.183). Gestos que não querem
dizer nada, que nada significam, gestos que são a expressão de sinais sensíveis não
informados pelo organismo, resultado do encontro de forças heterogêneas que se
precipitam para fora do plano de organização e se afirmam a partir do caos de todas as
possibilidades e cujo crivo que o recorta não produz as mesmas percepções, as mesmas
ideias ou mesmo qualquer palavra, num mundo sem tempo e sem memória, mas onde lá
fora “chove com poderosa lentidão”.

Segurando a mão deles na nossa, pelo que eles são estranhos, podemos sentir.
No nó das mãos entrelaçadas, pode-se prever a distância, espaço contraído que

80
talvez seja o da palavra. Para dizer a verdade, não acredito: há uma abundância
de palavras em todo o mundo, abundância proliferativa e o poder que exerce
não deve ser duvidado. Mas é de outra coisa essa pequena porção de coisa seca
animada está desprovida. E do que ela é privada ao ponto de se retrair, é
realmente algo que aconteceria entre nós. Mas a distância teríamos que
percorrer esse longo processo apesar de tudo, enquanto tudo isso está em todos
nós, de uma maneira ou de outra, um ídolo exigente, que eu acho que é a
palavra. E nós nos apegamos loucamente a ela. O controle que ela tem de nós
vem do vigor inato que nos empurra para aproveitá-lo e por que não pensar:
falta de outra coisa? Inato, sem dúvida, a necessidade deste 'algo mais' que eu
digo deve ser descoberto. Essas crianças que nos chegam aí nos convidam a
fazê-lo. Eles não confiam nisso, na palavra. Quando vejo o que ela fez conosco,
confio na desconfiança delas (DELIGNY, 2017, p 781).

AS FORMAS DE INDIVIDUAÇÃO INTENSIVAS

Saiamos em busca da possibilidade da afirmação dos corpos, a partir da liberação de suas


forças ativas, como potência que transcenda as forças de conservação do organismo que
visam hierarquizar aquilo que pode os órgãos, no sentido de uma eficiência em prol da
preservação da espécie. Sigamos as linhas que irão situar sua deriva em um território da
diferença e das singularidades. A partir daí, confrontemos o organismo e suas funções
eficientes com a diferença como potência do múltiplo, capacidade de instaurar novas
relações dos corpos, numa diferença que cria novos sentidos aos modos de existir, novos
traços e suas linhas de errância.

O indivíduo, a partir da unidade do organismo, é dado como um meio onde se encontram


forças que ao entrarem em relação determinam as formas relacionadas nas funções que
unificam as tendências que se relacionam. As funções são o resultado das próprias
relações entre os conjuntos de forças em movimento, na inclinação mínima como
disparador que viabiliza essa relação em formas específicas. A força do raio luminoso se
relaciona com a força do olho e como resultado desta relação temos a forma da visão cuja
função é ver. A força da expansão do oxigênio se relaciona com a força dos pulmões e
como resultado desta relação temos a forma respiração cuja função é respirar. O conjunto
dessas relações de forças no indivíduo passa pelo corpo que se abre aos estímulos do
meio, determinando as formas que se prolongam nas funções orgânicas que constituem o
organismo. O organismo é a unidade das relações de forças e suas funções, numa estrutura

81
cujo funcionamento segue um padrão seletivo que foi se consolidando à medida que o
resultado dessas relações garantia a preservação do próprio corpo e do meio onde este
estava inserido. Contudo, de saída, para além da constituição de um organismo o corpo
se revela como uma relação de forças na sua capacidade de afetar e ser afetada, resultando
num composto de forças, forças de expansão e forças de conservação. O processo da vida
é um conjunto de relações onde as forças de conservação vão produzindo unidades cada
vez maiores, que vão formando os órgãos e sua relação no organismo, reproduzindo,
dessa forma, um padrão eficiente de funções que determina os limites do indivíduo. Se
pensarmos a situação das forças pré-individuais, em sua diferença absoluta de um estado
de não-relação e metaestabilidade, contrastamos essa dimensão virtual, onde coexistem
todas as possibilidades, com os limites estabilizantes do organismo e da vida, onde as
forças passam a se relacionar, em última instância, nos limites do corpo. Os limites dos
corpos se estabelecem através da relação entre os órgãos e suas funções, em sua ação e
reação continua em relação ao meio que o confronta. Os limites dos corpos permitem que
eles não se dissolvam frente ao movimento incessante das forças que os constituem e das
forças que não param de incidir sobre eles. A reação dos órgãos aos estímulos do meio
gera as formas e as funções orgânicas. A exposição às forças luminosas, sonoras, tácteis
e motora geram as formas da visão, da audição, do tato e da locomoção, nas funções de
enxergar, ouvir, tocar e se locomover. O corpo secreta as funções orgânicas, que em
constante troca com outros corpos e outros elementos, vão delimitando o espaço de sua
atuação afetando o meio ao redor de si. As funções orgânicas carregam o resultado de um
processo de conservação dos indivíduos. O corpo dos indivíduos no seu arranjo orgânico
é regulado pelos regimes de conservação que o formatam em relação ao plano de
organização no qual estão inseridos; regimes alimentares, regimes familiares, regimes de
bens. Os regimes são o conjunto de dispositivos que organizam as tendências dos corpos
e direcionam as funções orgânicas para a manutenção do organismo. O corpo, assim, deve
estar pronto para produzir em prol do organismo. O organismo, por sua vez, trabalha em
função da ordem no qual se insere. O critério regulador dessa produção leva em conta a
utilidade de cada corpo na manutenção do equilíbrio da ordem constituída ao longo de
sua evolução. O princípio da organicidade está na base da construção dos corpos, onde

82
cada função é determinada em prol de sua utilidade produtiva. Porém, a pergunta que se
faz sob a inspiração espinosista é: o que pode um corpo e quais são suas possibilidades? 10

Se o indivíduo é um processo sempre em formação, deve-se procurar as aberturas por


onde sejam liberadas a capacidade de afetar das forças que estão em jogo nessa relação,
saindo em busca de um corpo cujas funções transcendam a reatividade do funcionamento
de um organismo que procura se adequar a finalidades úteis a ordem, superando a
“concepção do corpo como um organismo já́ dado, fechado e determinado pela
causalidade natural reduzida à lei da evolução natural, às funções orgânicas e ao
funcionamento dos órgãos” (LUCCHESI, 2012, p. 121,122). Se as funções dos corpos se
dão a partir da forma de relacionar as forças em jogo e se essas forças se multiplicam ao
infinito, diversas são as formas de relação e diversas devem ser as possibilidades desse
corpo. A diferença abre o copo a novas relações com o meio e produz novos sentidos ao
processo de interação do indivíduo nos estratos do plano de organização. Busca-se, a
partir daí uma abertura que faça circular as multiplicidades nômades, imponderáveis,
sempre em movimento, na perspectiva espinosista “enquanto força, esforço, potência ou
intensidade produzida na relação de afetar e ser afetado” (LUCCHESI, 2012, p. 121). A
capacidade de um corpo em afetar não deve ser determinada pelos dispositivos que o
molda em função de sua utilidade para uma ordem qualquer. As diferentes formas de se
relacionar com o mundo devem inscrever diferentes possibilidades para um corpo,
abrindo-o a novas sensações, novas percepções, novas abstrações e a uma nova linguagem
que explorem todo o seu potencial. A existência específica de um órgão não deve ser
confundindo com sua funcionalidade dentro de um modelo padrão a serviço do organismo
e esse a serviço de uma ordem qualquer. Aquilo que um corpo pode deve ser buscado não
na aptidão do mesmo em um organismo útil, mas na diferença que o caracteriza. Uma
diferença não deve ser tida como uma anormalidade, defeito, perda ou outro desvio
importante relativamente a um padrão das estruturas do corpo, mas sim como uma
abertura ao imponderável, a uma nova possibilidade de ação, como uma preservação do
potencial de forças não relacionadas e, portanto, agindo no máximo de sua energia
potencial. Uma diferença não deve ser considerada um desvio relativamente ao que é

10
“O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém
ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas
corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer” (ESPINOSA,
Baruch, Ética. Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora. 2016. p. 131).

83
geralmente aceito como estado padrão do corpo e das suas funções, ela deve ser levada
ao máximo de sua possibilidade como um estado de produção do novo. Não há de se
tentar reconduzir essa diversidade ao seio da normalidade estabelecida, adaptando-a
como se algo faltasse ao seu desempenho. Toda tentativa de tomar a diferença em um
sentido negativo surge de uma ação reativa que se funda na necessidade de garantir a
ordem e o equilíbrio de um organismo numa ordem determinada e reduz a potência do
corpo obliterando seu o processo individuação ininterrupta.

O corpo sob a ação de forças conservativas trabalha em função da estabilidade e da


manutenção da ordem do organismo. Ao contrário, o corpo sob a influência de forças
livres se abre a produção de novas possibilidades de vida. A diferença aqui é a máxima
da capacidade de um corpo de se reinventar, procurando novas formas de expressar a
potência de afetação das forças que o atravessam. Um órgão pode mais que o papel que
ocupa na funcionalidade de um organismo, quando dobrado em um estrato que lhe impõe
formas e funções dominantes e hierarquizadas. Um corpo onde prevalecem as forças
livres se abre a experimentação e “atravessa e desfaz todos os estratos, e as superfícies de
estratificação que o bloqueiam ou rebaixam” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 20). Um
corpo onde prevalecem as forças livres é um corpo produtor de sentidos sempre novos,
um corpo que se projeta sobre a vida expandindo os limites estabelecidos pelo organismo
e pelos regimes que organizam o meio. Um corpo onde prevalecem as forças livres se
abre como um meio intensivo onde se dá ininterruptos processos de individuação. Um
campo intensivo de individuação é marcado pela ação de forças livres que se relacionam
por vizinhanças, na sua dimensão pré-individual e, portanto, atuando no o máximo de sua
energia potencial. Forças que agem como forças livres. Um indivíduo dominado por
forças livres pode explorar as diversas possibilidades de se relacionar com o meio de
forma criativa, onde o corpo se abre a uma diversidade de novas funções que
determinaram sua forma de ser no mundo. O corpo sob a ação das forças livres é um
corpo pleno que desarticula o organismo. Seu funcionamento se abre a uma
experimentação que não para de deixar passar as singularidades inarticuladas, que estão
sempre prontas a explodir os estratos que articulam as formas determinadas por um
padrão eficiente. Tais singularidades criam novas formas de perceber, de ver, de ouvir,
de se locomover e de pensar e vão imprimindo no mundo novas funções de existir. Um
corpo pleno ė um corpo em devir, sempre inacabado cuja forma tende a encontrar zonas
de vizinhança, de indeterminação e de indiscernibilidade. Ele se constrói por intermédio

84
das singularidades que não se deixam capturar pelos estratos que organizam as séries
repetitivas das funções regulares do organismo. O corpo pleno é um corpo que não está
sujeito a utilidade produtiva. Ele é um devir-outro, uma linha de fuga minorativa que
escapa do sistema dominante. O corpo pleno é um acontecimento que libera as linhas
virtuais das forças pré-individuais que produzem novos encontros e abrem novas
passagens por onde as singularidades irão inscrever novas articulações. Aquilo que um
corpo pode não se mede pelas funções padronizadas a partir de um diagrama que
seleciona as funções pelo critério de eficiência que sustenta os modelos dominantes de se
relacionar e estar no mundo. O “que pode” num corpo é a sua capacidade de interferir na
natureza das coisas, afetando o mundo a sua volta, secretando singularidades e
produzindo novas possibilidades As possibilidades de um corpo pleno fogem dos estratos
que codificam as formas fixas de ser no mundo. É um corpo que se move num plano de
consistência que faz passar as forças livres que se projetam em todas as direções. Sua
consistência é abertura por onde passam as multiplicidades nômades e sua potência e a
capacidade de fazê-las circular. “(...) fazer passar algo que não se deixa e não se deixará
codificar. Fazê-lo passar num novo corpo, inventar um novo corpo no qual isso possa
passar e fluir” (DELEUZE, 2006, p.320).

O corpo reinventado em suas funções, a partir de um processo de individuação que libera


as singularidades, na potência de forças livres a produzir novas possibilidades de vida,
deve ser capaz de inscrever sobre os estratos codificados de um plano de organização,
uma nova produção material e imaterial, deslocando, assim, as fronteiras do indivíduo
no mundo. "(...) todos e qualquer, detêm a força de invenção, a forca-invenção, cada
cérebro-corpo é fonte de valor, cada parte da rede pode tornar-se vetor de
autovalorização" (PELBART, 2008, p.39). Como um corpo sem órgãos, ele é atravessado
por devires que mantém a potência das forças pré-individuais de um ilimitado vir-a-ser,
variações subterrâneas, contágios e contaminações. O indivíduo se forma na inter-relação
dos agenciamentos maquínicos de corpos e os agenciamentos coletivos de enunciação:
ações, paixões e enunciados agindo reciprocamente na produção de novos modos de vida.
Sob a dominação de forças relacionadas os agenciamentos produzem territórios estáveis
que circunscrevem os indivíduos nos limites da identidade e do mesmo. Mas é a partir do
corpo sem órgãos, como um plano de consistência, que se processará a individuação
impelida pelas forças livres, forças livres para criar e produzir o diferente. “Porque o
corpo sem órgãos é tudo isso: necessariamente um lugar, necessariamente um plano,

85
necessariamente um coletivo, agenciando elementos, coisas, vegetais, animais, utensílios,
homens, potências, fragmentos de tudo isso, porque não existe meu corpo sem órgãos,
mas eu sobre ele” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.24). Esse “eu” aqui não deve ser
tomado na perspectiva de um indivíduo constituído como o centro de uma unidade
substancial, individuo autodeterminado ou autoconsciente, mas como agente embrionário
sobre esse corpo sem órgãos. E como tal, como um sujeito larvar ele traz as marcas de
um território móvel, intercambiante sempre em formação.

Do mesmo modo que você não sabe o que pode um corpo, há muitas coisas no
corpo que você não conhece, que vão além de seu conhecimento, há na alma
muitas coisas que vão além de sua consciência. A questão é a seguinte: o que
pode um corpo? (...) Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao
organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p. 75).

Aquilo que pode um corpo no sentido que Deleuze atribui a Espinosa está ligado a
produção de novas formas de vida ou dos afectos que ele é capaz.

O afectos são devires: ora eles nos enfraquecem, quando diminuem nossa
potência de agir e decompões nossas relações, ora nos tornam mais fortes
quando aumentam nossa potência e nos fazem entrar em um indivíduo mais
vasto ou superior (...) Os corpos não se definem por seu gênero ou sua espécie,
por seus órgãos e suas funções, mas por aquilo que podem, pelos afectos dos
quais são capazes, tanto na paixão quanto na ação (DELEUZE; PARNET,
1998, p. 74).

Romper as categorias da identidade e do mesmo, onde o indivíduo é fruto de forças


relacionadas é viver a possibilidade da produção de novos modos de agir, pensar e sentir,
ou seja, novos modos de existência que produzem sinais sensíveis desinformados como
resultado dos processos de singularização que desencadeia os afectos.

Chama-se sinal o que desencadeia um afeto, o que vem efetuar um poder de


ser afetado: a teia se agita, o crânio se dobra, um pouco de pele se desnuda.
Nada a não ser sinais como estrelas em uma noite negra imensa. Tornar-se
aranha, tornar.se piolho, tornar-se carrapato uma vida desconhecida, forte,
obscura, obstinada (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 74).

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Na formação do indivíduo operam as linhas de estratificação que irão estender os
territórios existenciais que delimitam os perfis e os padrões individuais em uma
determinada ordem. Através de dispositivos de equilíbrio a resultante dos agenciamentos
configura as formas fixas de existir, a partir de coordenadas de articulação entre os
conteúdos e as expressões. Ao mesmo tempo, as singularidades pré-individuais não
param de atravessar os campos de subjetivação dominante, arrebatando a identidade e
abrindo linhas de fuga inventivas que operam rupturas em direção ao novo. Daí a
individuação ser um processo aberto que não está conforme a estabilidade de um modelo
padrão que diminui a potência do indivíduo de agir.

A questão é a seguinte: o que pode um corpo? De que afectos você é capaz?


Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar. Vimemos em
um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes
estabelecidos têm interesse em nos comunicar afectos tristes. A tristeza, os
afectos tristes, são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir
(DELEUZE; PARNET, 1998, p. 75).

É importante buscar uma individuação que não se submete a um centro produtor de


sentidos uma vez que as singularidades apontam várias direções, investindo em um
sistema de conexões “aberto”, em contraposição a uma concepção estrutural centralizada.
Tanto são as possibilidades do indivíduo quanto são as forças livres que irão se relacionar
no processo de individuação. Liberadas em sua capacidade de afetar as forças vão
dobrando os corpos e deixando rastros de sua passagem como limites moveis que não
param de se redobrar e se desdobrar. Quando as singularidades são capturadas num
sistema hierárquico e fechado, elas passam a ser estratificadas num sistema organizado,
que impõe cadeias (inflexíveis) de códigos e regras.

É, portanto, a partir dos processos de estratificação que podemos compreender


a “gênese” do organismo em suas ordens hierarquizadas. Uma boca para
comer, um nariz para respirar, um ânus para defecar. Corpo orgânico, corpo
estratificado (…) Mas há́ um “segundo” plano, subjacente a este. É o plano de
imanência ou plano de consistência das multiplicidades (…) Ele é antes um
limite imanente, enquanto a própria condição da experiência. E não comporta
sequer sujeitos ou objetos, mas somente fluxos e partículas, velocidades e
lentidões, gradientes de intensidade. Fluxos de comida, fluxos de moléculas,
fluxos de fezes (SAVAZZONI, 2012, p.78).

87
Se as estratificações capturam as singularidades em estruturas organizadas e centros de
poder hierarquizados, o corpo sem órgãos é o plano onde atuam as linhas que fogem às
capturas dos processos de organização e estratificação. O corpo sem órgãos é a abertura
para a produção de multiplicidades sempre novas, não idênticas e animadas pela potência
de afetar a realidade, sempre abertas a experimentação.

Assim ele oscila entre dois pólos: de um lado, as superfícies de estratificação


sobre as quais ele é rebaixado e submetido ao juízo, e, por outro lado, o plano
de consistência no qual ele se desenrola e se abre à experimentação. E se o
corpo sem órgãos é um limite, se não se termina nunca de chegar a ele, é porque
há sempre um estrato atrás de outro estrato, um estrato engastado em outro
estrato” (DELEUZE, GUATTARI, 1996, p.21).

É importante compreender como os estratos se estendem sobre esse plano de consistência


onde se movem as forças pré-individuais do corpo sem órgãos na articulação das formas
de conteúdo e expressão que recortam os territórios do ser individuado. Os territórios
como limites dos indivíduos são o resultado das forças de conservação que buscam um
padrão de funcionamento sobre o qual se constituirão as relações do indivíduo com o
mundo. Contudo, a abertura do corpo sem órgãos à potência das multiplicidades
singulares das forças pré-individuais está sempre pronta a operar uma desterritorialização
que torna o processo de individuação algo contínuo, um jorro ininterrupto de uma
imprevisível novidade. Num contínuo vir-a-ser, a individuação se processa a partir das
zonas de vizinhanças por onde as singularidades fazem-se e desfazem-se através num
fluxo que devem incessantemente.

Já não se extrai uma estrutura comum a elementos quaisquer, resgata-se um


acontecimento, contra efetua-se um acontecimento que corta diferentes corpos
e se efetua em diversas estruturas. Há nesse caso, como que verbos no
infinitivo, linhas devir, linhas que correm entre domínios, e saltam de um
domínio a outro, inter-reinos (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 81).

O devir é a multiplicidade e a heterogeneidade de linhas que não param de fugir em todas


as direções, linhas que escapam do controle da dominação e desarticulam os estratos
majoritários. Se a individuação por intermédio dos estratos produz limites do tipo
território, organismo e sujeito, a individuação por multiplicidades intensivas irão produzir

88
latitudes e longitudes, enquanto conjuntos de velocidades e lentidões de partículas ainda
não formadas bem como de afectos não subjetivados. Os estratos estão do lado do plano
de organização, do território, do organismo e do sujeito, enquanto o devir está do lado do
plano de consistência, das multiplicidades, dos corpos sem órgãos e das singularidades.
O indivíduo circunscrito em um território fixo, centrado num “Eu”’ ou sujeito como
fundamento identitário do ser, dá lugar a um plano de composição de forças, a-centrado
e intensivo, no qual se processa uma individuação singular e impessoal, como abertura
virtual por onde escoam sempre novas possibilidades de vida. O plano de organização se
estrutura a partir da representação do mesmo que se repete a partir de uma essência
fundante. Homem, animal, racional, sujeito objeto. A identidade das coisas é o elemento
estabilizante que fixa o território do possível e do real e a passagem entre esses dois
termos se dá a partir de uma ligação linear onde não há espaço para a diferença uma vez
que tudo aquilo que se realiza já estava presente como possibilidade. Diferente disso, uma
virtualidade é a coexistência de todas as possibilidades como um acontecimento que se
abre como um nó de tendências que se atualiza a partir de lados territoriais que as
estabilizam e picos de desterritorialização que as arrebatam. Um indivíduo não esgota as
possibilidades desde que ele não pare de se individuar, abrindo-se num campo de
experimentação onde as potências virtuais façam do sujeito um sujeito-lavrar, sobre o
qual não parem de atuar as forças pré-individuais, fluxo a-centrado de singularidades
intercambiantes. As forças relacionadas nas formas individuais devem poder escapar ao
controle de um fundamento organizador, encontrando novos caminhos para se expressar,
para além dos dispositivos de controle que as estabilizam, homogeneízam e conservam
sua forma. O sentido da individuação que nunca termina é a perspectiva de uma mudança
incessante, de um vir-a-ser de um devir ilimitado, de um acontecimento nunca se esgota,
já que se expande por todos os lados, até “o futuro e o passado, o mais e o menos, o
demasiado e o insuficiente na simultaneidade de sua matéria indócil (DELEUZE, 1994,
p. 1 e 2).

O que é um acontecimento? É uma multiplicidade que comporta muitos termos


heterogêneos, e que estabelece ligações, relações entre eles, através das épocas,
dos sexos, dos reinos – naturezas diferentes. Por isso a única unidade do
agenciamento é de co-funcionamento: é uma simbiose, uma “simpatia”. O que
é importante não são nunca as filiações, mas as alianças e as ligas: não são os
hereditários, os descendentes, mas os contágios, as epidemias, o vento
(DELEUZE; PARNET, 1998).

89
A variação das possibilidades que se entrecruzam continuamente num meio intensivo de
individuação se dá na desarticulação das formas fixas designadas pela identidade que as
constituem desta ou daquela maneira. O que se procura seguir aqui são as formas
infinitivas em seus picos de desterritorialização, abertura que permite que uma força não
pare de se atualizar em novas relações diferenciais. O devir não se fecha em uma forma
determinada, mas está sempre pronto a provocar erupções de onde brotam tendências
indeterminadas, pressões e retrações imprevisíveis, sempre irredutíveis a um sujeito já
composto, qualificado ou formado. O sujeito do corpo sem órgãos é um sujeito larvar,
único capaz de responder ao dinamismo das forças pré-individuais, desarticulando as
relações identitárias e deixando-se produzir para além dos estratos e dos centros de poder
hierarquizados. O plano da identidade é o da afirmação do mesmo, a partir de categorias
que seguem a máxima: o “ser é” e o não-ser não é”. O ser visto a partir de todos as fases
que o caracterizam, nada mais é do que o recorte de um conjunto de atributos
determinados por uma lógica homogeneizante extraída de um determinado plano de
organização. A partir de uma rede de filiações vai se constituindo uma forma dominante
e atribuindo ao ser uma “essência” supostamente identificada com aquilo que o “ser é”.
Em oposição a isso, o devir pode ser tido como uma desconstrução de um ser repartido
em fases ou partes que o caracterizam. O devir faz do ser um meio provido de
singularidades, repartido em potenciais de um estado metaestável, forças livres e não
relacionadas, cujo máximo de sua energia potencial é a possibilidade de diferentes
combinações, no jogo que constitui o indivíduo em sua imprevisibilidade.

Nessa perspectiva o indivíduo não é mais um resultado, mas meio intensivo de


individuação contínua. Meio porque ele não cerra os limites de uma forma determinada,
mas viabiliza um processo contínuo de individuação, como um plano onde circulam as
forças pré-individuais, a-centradas, livres, informes e no máximo de sua energia
potencial. Se os limites da identidade instituem uma média padrão para o funcionamento
do indivíduo o devir se apoia na diferença como desmedida do ser. Trata-se então de
desfazer o sentido estratificado do indivíduo a partir de categorias que subvertam as
constituições dominantes cujas formas de expressão relegam a diferença ao negativo, à
falta, à ausência e a anormalidade.

90
Fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas
privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A
normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta
no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger –
arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação ao
qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa
atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em
relação as quais as outras identidades só́ podem ser avaliadas de forma
negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da
identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas
simplesmente como a identidade” (SILVA, 2000, p, 82).

A identidade impõe limites, determina o essencial, estabelece fundamentos. As


identidades dos indivíduos destacam aquilo que permanece a partir de uma média padrão
que evoca funções e características fundamentais como critérios de uma “normalidade”
desejável. A identidade do indivíduo passa pela crença numa unidade substancial que
funciona como centro ontológico, significado absoluto ou sentido transcendente. Para
rompermos os limites da identidade há de se colocar a potência da diferença, não como
aquilo que difere de um outro, mas como força diferenciadora, potência incontrolável e
imprevisível de dispersão e errância. É preciso que a diferença se torne o elemento, a
última unidade, que ela remeta, pois, para outras diferenças que nunca a identificam, mas
a diferenciam. É preciso que cada termo de uma série, sendo já́ diferença, seja colocado
numa relação variável com outros termos e constitua, assim, outras series desprovidas de
centro e de convergência. É preciso afirmar a divergência e o descentramento na própria
série. Cada coisa, cada ser deve ser a sua própria identidade absorvida na diferença, cada
qual sendo apenas uma diferença entre as diferenças. É preciso explorar a diferença
diferindo. A potência da diferença reside na compreensão de que ela não demarca a
oposição entre o mesmo e o outro, pois se assim o fizesse demarcaria o lugar do idêntico.
Como um lugar daquilo que difere como um fora, a diferença é a potência mesma que
atravessa a identidade dos indivíduos e torna a própria individuação um processo de
criação do novo num contínuo vir-a-ser. Diferença que não se deixa capturar pela
oposição pois está sempre diferindo, saltando de um lado a outro sem que se possa fixar
seu lugar. O lugar do mesmo não é constituído pela diferença, mas sim pela identidade
que supõe que aquilo que escapa ao equilíbrio das formas identitárias essenciais é uma
equivocidade que deve ser evitada pois abala a estabilidade orgânica do idêntico, do
padrão e do dominante. Estranhos ao regular funcionamento eficiente, o que difere no

91
plano de organização é excluído como desvio e deficiência que desconcerta a ordem
categorizada do mesmo.

Aí, para mais uma vez apagar a instabilidade, as fraturas da identidade, o olhar-
Mesmo inventa sua normalidade traduzindo esses meio-humanos-
intraduzíveis em anormal-outro, em deficiente-outro, tornando-os, de alguma
forma, classificáveis e, por conseguinte, mais digeríveis à fome da norma, mais
próximos da ordem” (WIACEK,2004, p. 94).

Assim, não há de se fixar um lugar para a diferença uma vez que ela se constitui como
um processo em devir. O que difere, não difere nunca de um outro, mas difere sempre de
si mesmo. As tentativas de se fixar um lugar para a diferença, surgem da necessidade de
classificar o que escapa da ordem da identidade.

O estar sendo é um acontecimento da alteridade que retira de nossas bocas as


palavras habituais, as frases precisas, a gramaticalidade correta. Inibe-nos,
como mesmidade, de dizer o que é e o que não é o outro, o que é ou o que não
é sua identidade. E fecha as portas de nossos laboratórios, observatórios e
reservatórios. (SKLIAR, 2003, p. 47).

A diferença ameaça o equilíbrio da ordem da identidade pois insere um elemento


perturbador que é a impossibilidade de ser fixada, prevista, antecipada ou representada.
As representações do idêntico precisam de uma regularidade que permita dizer aquilo que
permanece, estabelecendo os limites entre o mesmo e todo o resto que passa a figurar
como outro. O devir do diferente lança-se sobre o mesmo como um caos que carrega
consigo a coexistência de infinitas possibilidades, sem que delas posam supor uma
qualquer. O peso da diferença está na incerteza e na impossibilidade de se estabelecer um
padrão que fixe as medidas daquilo que permanece. Devir-louco, indecifrável e ilimitada
desmedida de onde nada se pode fixar, pois tudo se foi para retornar mais uma vez como
uma nova e imprevisível novidade; eterno retorno da diferença que não para de se
proliferar. A diferença é tida como fratura, desvio ou deficiência, pois embaralha as linhas
que ligam os pontos no tempo e no espaço, desorienta as partidas e as chegadas e deixa
apenas os rastros através do qual se podem seguir as trajetórias. É por conta disso que no
reino das identidades fixas se trava a luta para demarcar a diferença como um outro que
dela se destaca ou se desvia. Desta forma, o que está em jogo não é a diferença em sua

92
potência de diferir de si mesma, mas apenas a identificação do outro como aquilo que o
idêntico não é. Assim a identidade mais uma vez se organiza através da oposição,
colocando de um lado o que permanece idêntico ao de outro aquilo que dele se afasta.
Isso acaba retirando da diferença sua potência uma vez que a identidade do diferente é
alcançada por oposição: o ser é e o não-ser não é. A identidade demarca a contradição
ressaltando a negatividade de tudo aquilo que difere. Por isso precisamos chegar à
concepção de uma diferença sem negação, que não contenha o negativo, para chegarmos
a um indivíduo variando de uma infinidade de maneiras, variação essa que não se
confunde com um oposto do mesmo, mas como uma variação de si mesma; uma variação
em-si.

É a partir dessa deriva do indivíduo como única possibilidade de lugar no mundo que
podemos pensar a experiência de Deligny em Cévennes. A rede que se formou com as
crianças autistas não verbais explorava a singularidade dessa presença no mundo, em
silêncio e sem constituir sua existência a partir de um centro produtor de significado a
por intermédio de um sujeito que percebe, vê e abstrai o mundo ao redor de si. Tudo se
resumia em se voltar e olhar o mundo com as crianças, tentando se aperceber do seu
“ponto de ver”, que não se tratava de uma posição subjetiva, mas de um lugar de
pertencimento no mundo a elas enrolado e a partir do qual elas existiam.

Portanto, toda a nossa pesquisa se concentrará no que é visto do ponto de ver


das crianças que não vivem de acordo com o uso da linguagem. É óbvio que
esse ponto de ver é completamente diferente do nosso ponto de vista dos
sujeitos, para o qual existimos. Existe o que pode ser visto e isso é um ponto
de vista "nosso". Há uma diferença gritante entre detectar e perceber. O ponto
de ver de um indivíduo - eu uso essa palavra para designar o que pode ser de
um ser que vive em ruptura com o alguém/ - nos escapa radicalmente (...) Pode
ser que a identificação seja um "infinitivo primordial" que persista em
prenunciar fora de nomear o que diz respeito ao sujeito, enquanto que é por
essa função orgânica de localizar que mobiliza, "se une" - se apenas às vezes -
diz o indivíduo propriamente dito, capaz então de iniciativas que nada têm a
ver com o que seria do projeto de um sujeito (DELIGNY, 2017, p. 1147 e
1151).

Ao nos aproximarmos desses indivíduos silenciosos, para quem falta a dimensão


simbólica do sujeito que percebe, abstrai e diz o mundo, não podemos apelar para um

93
meio de intersubjetividade ou para qualquer uso que fazemos da língua, mas apenas ao
percurso constituído a partir das suas relações com o seu em torno, a partir do qual se
constitui seu ponto de ver. “E então eu tive que perceber que meus vizinhos autistas que
eu disse, refratários à domesticação simbólica, privados dessa imagem do homem que
nos compete, eram, francamente, estranhos” (DELIGNY, 2017, p. 1249). O ponto de ver
dos indivíduos autistas não verbais se relaciona ao detectar (repérer) que está ligado a sua
localização espacial, meio de contração dos impulsos sensíveis que não irão informar
qualquer percepção mas que vão deixando sinais sensíveis como rastros do mundo
contraído nas interfaces de um esboço que não se constitui como sujeito acabado mas
como um sujeito larvar. A dimensão do sujeito larvar é a dimensão a-subjetiva que se
chega ao se fabricar para si um corpo sem órgãos. Ao colocarmos Deligny diante de
Deleuze e Guattari podemos perceber uma certa tensão entre suas problematizações. Peter
Pál Pelbart, que avalia essa tensão, a partir da hipótese de que em Deligny a questão seria
atingir uma dimensão pré-humana, enquanto para Deleuze e Guattari a questão trataria
de alcançar uma dimensão pós-humana (PELBART, 2013, p. 282). Enquanto o problema
inicial sob a inspiração de Deleuze e Guattari era desconstruir a hegemonia da ordem do
organismo, liberando experimentações sobre corpos sem órgãos, o trabalho agora, a partir
de Deligny, era compreender como bastaria uma pequena perturbação na ordem da cadeia
que liga os órgãos em torno das funções que esses assumem no organismo, para que os
corpos assumissem, naturalmente, sua deriva. Corpos como interfaces onde o encontro
de forças faz vibrar uma frequência, um sinal que os recobre sem se prolongar em uma
informação ou se desdobrar em uma finalidade. Interfaces provisórias onde subsiste o
pré-individual que será responsável por manter a individuação como um processo
ininterrupto. Por isso essa dimensão provisória que carrega com ela a potência das forças
pré-individuais pode ser relacionada com os esboços deleuzeano, aos quais ele chama de
sujeitos larvares, e que no caso de Deligny não é fruto de uma desarticulação do
organismo e do plano de organização, mas é tomado em sua dimensão inata.

Assim, é preciso dizer que a primazia das linhas, das ligaduras, das trajetórias,
do infinitivo, das iniciativas, a importância do meio, tão valorizadas por
Deligny, encontram em Deleuze e Guattari total ressonância, mesmo que os
nomes por vezes se alterem – em vez de ligadura, o nó (do rizoma), ao invés
de iniciativa, devir, ou acontecimento, ao invés de ser-de-rede, adjacência do
rizoma, agenciamento biopsíquico, semiótico etc... O desafio de pensar em
termos de linhas, de movimentos, e fluxos, de lineamentos, de territórios e

94
desterritorializações, não impede de pensar, muito pelo contrário, os territórios
existenciais que se constituem ou desmancham, nas escalas as mais diversas,
e que Deligny sustenta no plano que é o seu, inclusive pragmático, da maneira
a mais tocante. Em todo o caso, em ambos os experimentos, ou em ambas as
topologias, o sujeito se eclipsa, mesmo se de maneira mais categórica e
assertiva em Deligny, enquanto para Deleuze e Guattari trata-se menos de
negá-lo, denegá-lo, ou mesmo evacuá-lo frontalmente, do que acompanhar
sua gênese e falência, seu engendramento e os processos que o tornam caduco,
na adjacência das linhas, precisamente, dos lineamentos, dos entrecruzamentos
(PELBART, 2013, p. 283).

O esforço de Deligny sempre esteve concentrado em identificar os desvios de sujeitos


frente aos padrões majoritários da normalidade diante dos quais se viam como
inadaptados. Menores infratores, jovens delinquentes, crianças retardadas; este era o
público alvo das preocupações de Deligny ao longo de seu trabalho institucional e
tentativas fora dos muros das instituições - sujeitos inadaptados. É a partir do seu encontro
com Janmari que o sujeito se eclipsa de forma definitiva e tudo que se pode ter a partir
dessa relação se dá com o radicalmente diferente, que não se constitui a partir de nenhuma
construção simbólica que passe pela palavra. Dessa forma, chega-se ao último bastião do
padrão majoritário que é a linguagem, que também será criticada por Deligny como
elemento de constituição de uma subjetividade fundante do homem-que-nós-somos. “A
crítica à linguagem feita por Deligny é na verdade uma crítica ao sujeito formado, que
alcançou o simbólico, que é por ele estruturado e que impõe seu modo de ser como o
único possível e existente (MIGUEL, 2015a, p. 62). A experiência de Deligny é a
experiência com os sujeitos larvares e seus corpos sem órgãos em sua dimensão a-
simbólica, a-significante, a-subjetiva, a-consciente e inata.

Os homens fizeram uma imagem que se reproduz com nuances. Pelo que
penso, é essa mesma imagem adquirida, aprendida, integrada, inveterada que
ofusca o resto. É esse restante que escrevo, tento evocar. É esse resto,
considerado resíduo, uma sobrevivência que vai atrofiar, que eu considero
como um esboço do que poderia ser do humano se, desde sempre, a crença no
que o homem imagina ser passou a suplantar, a supor esse outro algo que
aparece quando uma criança acaba sendo, como se costuma dizer, autista
(DELIGNY, 2017, p. 1249)

95
CAPÍTULO III – O LUGAR DA DIFERENÇA OU DA DIFERENÇA SEM LUGAR

A INTERFACE DE UM SUJEITO LARVAR

A representação da realidade coincide com o ponto de vista que se dobra como inflexão
do sujeito que percebe, abstrai e cria juízos sobre o mundo que confronta. Fora dessa
dobra só existe uma zona de indeterminação onde o Eu ainda não se estabeleceu
colocando o olho do lado do sujeito e a visão ao lado do objeto. A inflexão do sujeito é o
intervalo onde o visível se corresponde com o visto e onde a percepção já se vê informada
como percepção sensível. Intervalo onde “sou o próprio céu que se reúne, recolhe-se e
põe-se a existir para si, (onde) minha consciência é obstruída por esse azul ilimitado”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 289). Fora desse intervalo temos apenas a interface onde
se prolongam os sinais gerados pelos estímulos sensíveis e que são, na verdade “(...)
tentativas de visão ou de olfato primeiros, antes de serem percebidas ou mesmo sentidas
por um agente nervoso e cerebrado” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 271). Fora desse
intervalo o que temos são apenas “sujeitos larvares” como interfaces, únicas capazes de
suportar as pressões das forças sem se dobrarem em uma dimensão onde já se demarca o
interior e um exterior de um Eu que percebe, abstrai e diz. O sujeito larvar manifesta a
pura tendência de forças não relacionadas que coexistem em um sistema de equilíbrio
metaestável. Por serem livres e não estarem relacionadas em nenhuma forma, essas forças
não cessam de transformar sua natureza a medida de que vão se diferenciando de si
mesmas. O sujeito larvar é uma interface onde as forças não relacionadas trafegam e vão
deixando os sinais de sua passagem, numa dimensão que se caracteriza pela ebulição de
vibrações aleatórias. Sem uma consciência subjetiva como intervalo, que recolhe os
sinais, os rebate em sua interioridade fundante e os organiza em formas de impressões, o
sujeito larvar é um espaço de passagem, um esboço ainda não qualificado ou composto,
onde os sinais deixados pela circulação das forças em jogo é o seu rastro. Ao invés da

96
inflexão do ponto de vista que onde o visível se corresponde com o visto, o que temos
são pontos de ver onde a percepção ainda não formou suas imagens e a sensação ainda
não foi informada por um “agente nervoso e cerebrado”. Sinais sensíveis não processados
pelo esquema sensório-motor e ainda não transformados em percepção, mas apenas
presentes na brancura de sua potência intensiva. Um estímulo sensível que não é
informado como percepção é apenas um sinal que brilha e se apaga sem que dele se tenha
uma imagem. Sinal carregado de vibrações que coexistem na interface, porém sem
correspondê-lo na sensação. Chegar a esse espaço de silêncio torna-se muito difícil
quando as vozes já se puseram a falar e preencher o mundo com significados. Chegar ao
sujeito esvaziado de toda consciência exige um esforço de se livrar das impressões
sensíveis que alimentam a percepção e que não param de produzir sentido a realidade
sensível. Porém, quando se trata de um corpo que se diferencia na sua própria constituição
e onde seus genes e seus órgãos não se desenvolvem dentro dos desdobramentos do plano
evolutivo da espécie, esse silêncio mais que algo visado é uma deriva natural; meio
natural de errância. Não um desvio da espécie mais um meio natural de sua diversidade.
A hipotonia dos músculos, a desorganização de uma unidade motora, a alteração do nervo
ótico, enfim, cada caso específico que inviabiliza o deslizar dos sinais sensíveis para
dentro do esquema sensório motor, produz um esvaziamento de significância, onde a
vacância da linguagem, a vacância da visão, a vacância do movimento, faz dos indivíduos
diferentes, um meio natural para a produção de novas maneiras de estar no mundo. “Por
aí se vê que a ordem das coisas não é tão imperiosa que não ceda, eventualmente, ao
manejável” (DELIGNY, 2018, p. 227). A dimensão de um “sujeito larvar” tem a ver com
sua não relação com as trocas do universo simbólico que escavam uma interioridade de
onde o Eu fundante se apropria do lugar de onde exerce suas funções cognitivas. Como
campo intensivo de individuação ele opera fora da representação do organismo e suas
funções. Seus sinais sensíveis não se desdobram a partir de um centro produtor de
sentidos embutidos de finalidades. Seu corpo é um corpo “intensivo, anarquista, que só
comporta polos, zonas, limiares e gradientes” (DELEUZE, 1997, p. 148). O sujeito larvar
é um composto de intensidades, uma interface aberta que se compõem com os mais
diferentes estímulos. Nele o estímulo não se desdobra em uma percepção, ideia ou
palavra, mas percorre todo o campo como intensidade pura. Corpo sem órgãos; não
porque o órgão falte, mas porque ele não está submetido a ordem das funções do
organismo. Órgãos que não se constituem a partir do padrão de um organismo eficiente

97
de indivíduos normais. Sobre esses indivíduos que recortam o mundo de uma maneira
diferente, Deligny escreveu:

Ele perdeu a voz ou a voz o perdeu. Mas como se pode dizer então que o ser
autista se cala? Seria como dizer que o jogador que não está presente quando
a bola chega não quer repassá-la; como poderia repassar uma coisa que ele não
recebeu? O que percebemos quando a voz falta, é que o órgão persiste e que
seus sons modulados são a prova de que as cordas vocais estão realmente
presentes e vibram. Mas também percebemos outra coisa: que, no lugar do
instrumento abandonado pelo uso, brota outro, que, curiosamente, não se
destina a substituir o que se encontra fora de uso” (DELIGNY 2018, p. 213).

O plano do sujeito larvar é o campo onde operam as singularidades a-significantes que,


como intensidades, não produzem registros prévios, impressões codificadas, mas
expressam diferenças combinatórias que produzem estranhamento. Longe do organismo
como um estrato que impõe formas, funções ligações, organizações dominantes e
hierarquizadas, visando um trabalho útil, o corpo como interface de um sujeito larvar
recebe as pressões por todos os lados e as processa de modo a preservar sua intensidade.
Ele se defronta com as vibrações do meio exterior sem informá-las a partir da cadeia de
significantes que as traduz em funções adequadas à constituição da espécie. Diante de um
estímulo sensível o corpo não o relaciona com os elementos qualificadores que os
separam em espécies ou enumeram sua manifestação em partes definidas, apenas emitem
sinais intensivos, informes e a-significantes, sem que estes sejam capturados por um
centro produtor de sentidos. Tais sinais circulam na interface como um fluxo de energia
potencial dissipada, sempre a produzir excitações que independem dos mecanismos
sensoriais de um automatismo perceptivo. As excitações são variações contínuas da força
em ação em um corpo, ao longo das quais ela se dissipa e não para de liberar afectos. Os
afectos comunicam os sinais sensíveis sem semelhança, apenas por vizinhanças; são
emulações que percorrem o corpo sob a forma de forças intensivas. Contraindo as
vibrações do meio, a partir de resoluções que são próprias de um corpo que vibra, o trajeto
dos sinais sensíveis não segue por uma rede organizada, mas faz-se por sobrevoos e por
linhas de errância. Os sinais sensíveis como resultado da vibração do corpo contraente
são frequências que se estendem sobre a interface sem que sejam prolongadas através da
cadeia sensório-motora, dissipando-se em blocos dessemelhantes que emulam os afectos.
Um afecto não é a tradução de uma vibração do meio, mas sim o resultado de um sinal

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que se dissipa em seu trajeto e ganha uma nova amplitude ao ser processado na interface.
Um raio luminoso que ao invadir a retina não se traduz na visão de uma figura, mas
acalma e faz dormir; uma onda sonora que ao invadir os ouvidos o preenche de um
silêncio que arrepia a pele; o toque de uma carícia na pele que não arranca sorrisos, mas
produz dor. “Afectos são devires que transbordam daquele que passa por eles, que
excedem as forças daquele que passa por eles”. (DELEUZE; PARNET, 1995, p. 53). O
sujeito larvar é a interface de um corpo sem órgãos, percorrida por afectos. Interface que
manifesta o meio onde as coisas existem fora do esquema sensório-motor, onde as
vibrações do mundo, em seu estado bruto encontram o meio natural para que sua presença
se dê na multiplicidade de inusitados encontros de forças em permanente circulação e
variação intensiva. O afecto é uma realidade em devir, um fluxo dissipativo, um
transbordamento dos sinais sensíveis; transbordamento de agitações que percorrem o
corpo. Não há ligação hierarquizada entre os estímulos sensíveis e os afectos, mas sim
bifurcações percorridas através de saltos aleatórios que se processam na interface do
corpo como sinais emuladores. Um afecto é um estranhamento, já que não existe uma
linearidade que o ligue se forma previa a qualquer partida originária, pois ele “emerge
como um clarão” de um bloco de sinais sensíveis vizinhos. O que existe entre o estímulo
sensível e o afecto são zonas indiscerníveis de forças livres, a deriva de sinais sensíveis
sem semelhança que vibram, reverberam, saltam e se transformam a todo o instante. O
afecto habita a zona de indiscernibilidade entre o sensível e o sentido e é emulado pelos
sinais que fazem passar o mundo numa profundidade infinita, sem fundo, sem centro e
sem anteparo. Fora da inflexão que produz um crivo sobre o caos temos apenas as
variações infinitas que agitam o corpo e o fazem vibrar. Sem registros impressos o que
temos são passagens, rastros e sinais que não param de se fazer e se desfazer, no devir
absoluto de uma diferença pura. A zona dos afectos é um campo de forças livres em
circulação. Forças que não param de vibrar e emitir os seus sinais. A interface do sujeito
larvar sintetiza o mundo através do corpo de um indivíduo que o contempla, sem que o
resultado dessa operação seja uma percepção clara e distinta. Contemplação aqui deve ser
entendida na acepção de Deleuze para o termo em Plotino, que não se relacionaria com a
contemplação de ideias pelo conceito, mas de elementos da matéria pela sensação
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 272). O que ela produz são sinais da presença do
mundo diante do corpo que o contrai. O resultado da contração do mundo pelo sujeito
larvar não vem na forma de uma cor, de um toque, de um odor, de um ruído ou um peso,
mas através de sinais luminosos, sinais olfativos, sinais auditivos e sinais tácteis que

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podem se misturar na interface que os processam. É o momento em que o mundo se fecha
sobre o indivíduo e que o indivíduo se abre para o mundo. Entre o mundo é o indivíduo
existiria então uma relação de sinais ainda não informados na percepção. Deleuze definiu
esse momento como momento pathico da sensação:

Os níveis de sensação seriam verdadeiramente domínios sensíveis remetendo


aos diferentes órgãos dos sentidos; mas cada nível, cada domínio teria uma
maneira de remeter aos outros, independente do objeto comum representado.
Entre uma cor, um gosto, um toque, um odor, um ruído, um peso, existiria uma
comunicação existencial que construiria o momento “pathico” (não
representativo) da sensação (DELEUZE, 2007, p. 49).

Os sinais sensíveis só podem ser compreendidos quando ultrapassamos o organismo com


suas funções hierarquizaras e ligações significantes. O corpo do sujeito larvar é um corpo
intensivo que se abre ao ritmo das vibrações do mundo. O sujeito larvar não tem, portanto,
funções orgânicas, mas é percorrido pelos ritmos do mundo em sua matéria intensa e não
formada.

Por isto tratamos o CsO como o ovo pleno anterior à extensão do organismo e
à organização dos órgãos, antes da formação dos estratos, o ovo intenso que se
define por eixos e vetores, gradientes e limiares, tendências dinâmicas com
mutação de energia, movimentos cinemáticos com deslocamento de grupos,
migrações, tudo isto independentemente das formas acessórias, pois os órgãos
somente aparecem e funcionam aqui como intensidades puras (DELEUZE;
GUATTARI, 1996, p. 13 e 14).

O sujeito larvar é um estado do corpo antes da representação orgânica, funcionando a


partir de eixos, vetores, gradientes, zonas, movimentos cinemáticos e tendências
dinâmicas (DELEUZE, 2007, p. 51) Não faltam órgãos ao corpo, mas sua resolução não
se define através das funções hierarquizaras do organismo. Os órgãos de um sujeito larvar
se definirão a partir dos encontros em sua interface. Encontros insólitos e indeterminados
que farão os órgãos exercer funções inusitadas e singulares.

Uma onda de amplitude variável percorre o corpo sem órgãos; traça zonas e
níveis segundo as variações de amplitude. No encontro da onda, a tal nível, e
de forças exteriores, aparece a sensação. Um órgão será então determinado por

100
este encontro, mas é um órgão provisório, que não dura a não ser a duração da
passagem da onda e da ação da força, e que se deslocará para se colocar em
outro lugar (DELEUZE, 2007, p. 53).

A contemplação do mundo por um sujeito larvar se dá quando as excitações diante do


corpo contraente geram sinais indiferenciados e não organizados ao nível de uma
consciência perceptiva. Ondas sensoriais que não se confundem com percepções
sensíveis, mas que se distribuem em uma zona de circulação incessante das diferenças
intensivas, não qualificadas, agindo como potências virtuais. Nesse plano indiferenciado
de forças o que se capta não são os recortes das formas, mas a variação intensiva de cada
vibração que se estende sobre o corpo que as contrai. O corpo que contempla e contrai as
excitações do mundo assim o faz sem fazer que estas passem às cadeias hierarquizaras do
organismo sensório motor. O que passa pela interface de um corpo sem órgãos é a
intensidade de blocos de sensações a secretarem afectos. Os afectos são ritmos do corpo
contraente que sintetiza as vibrações do mundo. Dai a interface de um sujeito larvar se
situar num campo aberto a diferença, que multiplica os encontros pré-individuais de
forças livres e não relacionadas. Encontro que carrega a virtualidade de um nó de
tendências a produzir multiplicidade inexprimíveis.

As multiplicidades são a própria realidade e não supõe nenhuma unidade, não


entram em nenhuma totalidade e tampouco pouco remetem a um sujeito. As
subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que
se produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das
multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades; as suas
relações, que são devires; a seus agenciamentos, que são hecceidades (quer
dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos que são espaços e
tempos livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao
modelo da arvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de
intensidade continua); aos vetores que as atravessam, e que constituem
territórios e graus de desterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p.
8).

O que atravessa a interface do sujeito larvar são intensidades e, portanto, o que são por
ele produzidas são hecceidades. As hecceidades são individuações que não fixam a
identidade de um sujeito cognoscente que se funda na adequação entre uma impressão
sensível e sua percepção. Se quisermos seguir os rastros a partir de uma cartografia dessa

101
interface teremos que seguir os ritmos que nela vibram e que nos levarão alhures. O que
existe na intensidade, de fato, é uma pura tendência; uma natureza naturante como uma
pura diferença de natureza de algo que ainda não se dividiu em qualidade ou em partes.
A intensidade não é uma causa ou um efeito, mas antes uma pura tendência. Ela não se
define a partir de uma articulação entre a causa e o efeito, mas é a condição de
possibilidade dessa articulação.

(...) a tendência é primeira não só́ em relação ao seu produto, mas em relação
às causas deste no tempo, sendo as causas sempre obtidas retroativamente a
partir do próprio produto: em si mesma e em sua verdadeira natureza, uma
coisa é a expressão de uma tendência antes de ser o efeito de uma causa”
(DELEUZE, 2006, p. 50).

Se o organismo atua no nível do plano de organização que padroniza o funcionamento do


corpo, o sujeito larvar ocupa o plano de imanência onde atuam as puras tendências; forças
que subsistem na sua diferença, que não param de diferenciar-se e que desta forma não
param de mudar de natureza; infinito devir, jorro ininterrupto de uma imprevisível
novidade, devir que é princípio produtivo da diferença e que viabiliza que as tendências
se mantenham indeterminadas, produzindo as sínteses e as misturas. Se concebermos o
estado pré-individual como a coexistência de forças livres e ainda não relacionadas em
um equilíbrio metaestável, a individuação que se dá a partir dos processos produzidos na
interface larvar enquanto tendência pura, corpo-sem-órgãos defasado e sempre aberto,
está sempre a produzir inusitadas relações. É na interface larvar que a virtualidade se
atualiza como o próprio princípio de diferenciar-se das tendências. Se a metaestabilidade
pressupõe a tensão de forças não relacionadas, frequências que vibram integradas na
ausência de uma relação ressonante, a interface é a dimensão da resolução dessa tensão,
criando as direções divergentes por onde se distribuirão as frequências. Por conta disso
temos a importância da interface enquanto dimensão da individuação dos sinais sensíveis,
antes que esses se atualizem em percepções e impressões, no ritmo da explosão de
tendências que carregam as vidas e os sujeitos, onde a variação das tendências se dá a
partir de sua própria natureza que é a potência de diferir-se de si mesmo. Por conta disso
a vida não cansa de produzir atualizações que não se restringem ao padrão e ao hábito
dos organismos de uma espécie determinada pela repetição de atualizações convergentes.
Assim um indivíduo que se atualiza está sempre pronto a fugir da organização hierárquica

102
de um padrão, onde cada órgão carrega o princípio fundamental que é a causa de suas
próprias variações.

A essência de uma tendência vital é desenvolver-se em forma de feixe, criando,


tão-só́ pelo fato do seu crescimento, direções divergentes entre as quais se
distribuirá́ o impulso: a virtualidade existe de tal modo que se realiza
dissociando-se, sendo forcada a dissociar-se para se realizar. Diferenciar-se é
o movimento de uma virtualidade que se atualiza. A vida difere de si mesma,
de tal modo que nos acharemos diante de linhas de evolução divergentes e, em
cada linha, diante de procedimentos originais; mas é ainda e somente de si
mesma que ela difere, de tal modo que, também em cada linha acharemos
certos aparelhos, certas estruturas de órgãos idênticos obtidos por meios
diferentes (DELEUZE, 2006, p. 57).

Na individuação intensiva, o que está em jogo é a potência da diferença como nó de


tendências do virtual, que permite que as articulações das forças relacionadas nas formas
possam ir além das cadeias selecionadas por cada plano de organização que se estabelece
como fundamental e hegemônico. É isso que permite que os sinais sensíveis sejam
emulados em interfaces que produzem individuações para além do padrão do organismo,
onde os órgãos assumam funções singulares de um corpo que não se cansa de diferenciar-
se. Em sendo assim, o que trabalha num corpo sem órgãos é a assunção de todas as
possibilidades dos nós de tendências do virtual, onde a diferenciação é a atualização das
tendências que coexistem como forças não relacionadas. O corpo do sujeito larvar não é
o corpo do organismo e das funções hierarquizaras, mas o corpo da pura experimentação,
o corpo sem órgãos. O corpo sem órgãos é a própria interface onde são produzidas as
experimentações que levarão esse sujeito para longe das significações dominantes. É o
espaçamento que se abre para as intensidades e onde os sinais sensíveis assumem a
potência que levam o corpo a novas experimentações. Um corpo que se abre as
intensidades circulantes que não param de passar. E o que são essas intensidades se não
as tendências que se insinuam nos sinais sensíveis, lembrando que esses não se
confundem com as percepções. Os sinais aparecem quando uma intensidade passa. Ao
invés de traduzi-los numa sensação já informada ele deve ser emulado em um corpo onde
as forças circulam sem já estarem relacionadas em formas fixas. A relação dessas forças
na interface se dá por vizinhanças, pelas vibrações de frequências que não se limitam a
se relacionarem na medida exata de seu múltiplo ressonante. Daí uma linha que atravessa

103
esse corpo estar sempre a fugir sem se deixar capturar pelas segmentariedade de um
estrato, mas atravessando-o com a potência liberar novas tendências, mantendo o
potencial virtual de desfazer seus nós. “Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode
ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam”
(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 13). Na interface do sujeito larvar o que são emuladas
não são as percepções do mundo, mas as intensidades, as ondas e as vibrações que são as
frequências das forças. Ali as forças se encontram livres, em sua forma pré-individual e
metaestável. Nela o que circulam são os sinais sensíveis, produto da atuação de forças
por vizinhanças. Os sinais sensíveis são informes em sua natureza, emulados por
vibrações que ainda não desdobradas em sensações ou percepções.

É a partir dessa dimensão provisória do indivíduo que podemos pensar as derivas das
crianças de Cévennes, que ao serem cartografadas por Deligny deixavam suas marcas
através de linhas erráticas que se desviavam das linhas costumeiras que marcavam seus
trajetos, em suas tarefas diárias acompanhadas por presença próximas. 11 Era comum que
na realização de um trajeto costumeiro algo acontecesse que provocasse uma interrupção
e um desvio que não seguia a nenhuma lógica pré-determinada ou aparente e que
passavam a dominar o comportamento das crianças. A forma como eram absorvidas por
determinadas coisas (chevêtres) e a relação que estabeleciam com elas não funcionavam
a partir dos desdobramentos familiares que certas coisas provocam nos sujeitos.
Contraiam o mundo que se fechava sobre eles e não era decodificado a partir das cadeias
de finalidade e sentido de um plano de organização, mas se prolongava em vibrações que
deixavam seus sinais através de corpos a produzirem seus gestos não intencionais. Os
estímulos sensíveis percorrem os corpos autistas não se desdobram em uma percepção
familiar que um corpo obteria através das funções padronizadas de seu organismo, mas
geram sinais que poder ser grafados através de linhas que surgem da manifestação de um
“momento phatico”.

Perceber, como diz Deligny, que essas linhas não querem dizer nada. É uma
questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso mapa.
Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra. Rizoma.
Certamente não têm nada a ver com a linguagem, é ao contrário a linguagem

11
Era assim que Deligny se referia aos adultos que conviviam com as crianças e coordenavam as tarefas
diárias (présences proches).

104
que deve segui-las, é a escrita que deve se alimentar delas entre suas próprias
linhas. Certamente não têm nada a ver com um significante, com uma
determinação de um sujeito pelo significante; é, antes, o significante que surge
no nível mais endurecido de uma dessas linhas, o sujeito que nasce no nível
mais baixo. Certamente não têm nada a ver com uma estrutura, que sempre se
ocupou apenas de pontos e de posições, de arborescências, e que sempre
fechou um sistema, exatamente para impedi-lo de fugir. Deligny evoca um
Corpo comum no qual essas linhas se inscrevem, como segmentos, limiares ou
quanta, territorialidades, desterritorializações ou reterritorializações. As linhas
se inscrevem em um Corpo sem órgãos, no qual tudo se traça e foge, ele mesmo
uma linha abstrata, sem figuras imaginárias nem funções simbólicas
(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 77).

Cabe, então, seguir o traço dessas linhas para descobrir o território onde o indivíduo se
localiza no mundo, deixando que elas nos levem o mais longe possível de qualquer
imposição do ponto de vista de um sistema simbólico que pretenda tornar o outro um
semelhante. Fazer um mapa que possibilite marcar os gestos na singularidade de todos os
seus aspectos inusitados; intensidades que percorrer as interfaces, sem finalidade, errantes
e vagas, dentro de uma rede de convivência onde o comum não se confunde com o mesmo
mas sim com o partilhar de um ponto de ver de onde se pode contemplar o mundo de
maneiras diversas. “Ao pensar sobre o humano e o homem-que-nós-somos, sobre a rede
e o projeto pensado, o agir e o fazer, Deligny parece reivindicar algo que nos reconecte
com o que existe de animal, de inato e de instinto em nós (MENDES, 2017, p. 75). Assim
os mapas vão deixando as marcas das linhas de um agir que é um mover sem o objetivo
da atividade de fazer e que não carrega em si uma intencionalidade que o dirige. O agir
carrega a potência do inadvertido que farão as suas linhas se desviarem das linhas
costumeiras. Janmari vivia a partir desse agir no infinitivo, sempre no limite do
inesperado, do imprevisto, sempre a olhar o mundo sem objetivo. O seu autismo lhe abre
as fronteiras de uma agir sem intenções e livre de sentido. “Para que tal involuntário
advenha, para sustentar o inquerer, é preciso proceder por muitos desvios, pois cabe
driblar o dado, para inadvertidamente topar com” (PELBART, 2020, p.144).

QUANDO O HOMENZINHO NÃO ESTÁ (AÍ)

O homenzinho para Deligny seria essa imagem do homem que foi fixada após milênios
de domesticação simbólica enquanto o fora teria lugar a partir daquilo que do humano

105
seria refratário ao que funciona no simbólico. O fora como o lugar onde se pode existir
longe do sentido que o homem sempre deu a realidade. Tal sentido foi resumido por
Deligny como “aquilo que se encontra na hora certa; sempre na mesma hora da noite tal
estrela em tal meridiano, ela tornara a voltar lá, ela está sempre justamente lá, é sempre a
mesma” (DELIGNY, 2018, p. 218). Longe daí, o que temos é o espaço (ali) do fora como
aquilo que não se pode fixar a partir de qualquer palavra, mas que se constitui como uma
ausência que se afasta quanto mais tentamos localizá-lo. Fora não localizável, cujos
pontos são singularidades não determináveis, saindo e entrando sem parar, como
produções intempestivas. O fora pode ser descrito, conforme observa Peter Pál Pelbart,
como “caos do mundo, fúria da morte, fim dos tempos, bestialidade do homem,
inumanidade, força do desejo, sagrado dos elementos, fascínio das miragens, violência
do desmesurado, ameaça do nada” (PELBART, 2009, p. 149). Percebemos a partir dessas
descrições que tal lugar figura como a coexistência de determinações, como uma
dimensão que não pode ser localizada, um (não)lugar de irrupção de forças. Já o lugar do
homenzinho foi fixado a partir das crenças e convicções passaram a representar
determinadas formas de se estar no mundo. O fora, então, nesse sentido, seria a ausência
de formas determinadas do homem-que-nós-somos. Na perspectiva das crianças autistas
de Cévennes sobre as quais Deligny escreve, trataria de se chegar a ele a partir de um
espaçamento por onde as convicções possam passar, venham de onde venham, e ao largo
delas se possa derivar a partir de esquivas às crenças e seus excessos (DELIGNY, 2018,
p. 232). O fora seria tido, então, a partir das grandes vagas que atravessam as crenças e
as convicções, como potência de diferenciação do mesmo e do idêntico. O fora com
desvio do costumeiro, estranho ao homenzinho, fissura que evoca um agir que é a própria
errância que desvirtua o trajeto pensado.

Essas linhas de errância fazem desvia; será possível dizer que a criança –
autista – que as toma faça um desvio, quando é antes o inelutável do desvio
que a toma, que a captura, e o que é o “a”, que se poderia dizer, “quem”? Não
se trata de cada um; esses desvios-chevêtres são com frequência comuns, e se
é o desvio que se apodera do garoto, eis que o desvio se torna assim uma
entidade dotada de intenção para com essas crianças, se torna um malefício,
por assim dizer, que plana acima delas para impedi-las de simplesmente fazer
como nós e de passar onde passamos por hábito (DELIGNY, 2018, p. 238).

106
O fora é, assim, o (não)lugar da diferença, onde o devir exerce a sua potência sem que
alguma parte ou qualidade seja diferençada. O fora seria, desse modo, a deriva que
introduz no idêntico uma diferença como seu campo problemático que se abre num
múltiplo de singularidades pré-individuais, para além do individual, para além do
particular, e para além do geral; dimensão que se constitui para além das qualidades e das
partes. Liberar a potência das singularidades pré-individuais é fazer circular as forças do
fora que estejam sempre a produzirem mundos em profusão e modos de vida onde o
homenzinho não está (aí). O fora produz resistências que não se confundem com a
contradição, mas que operam a partir da diferença como a força de uma deriva
ininterrupta. Esquivas sempre a revelar novidades inimagináveis, singularidades nômades
e devires minoritários, forças a atravessarem as formas majoritárias de se estar no mundo
e se vincular a ele, “pois as forças operam num espaço que não é o das formas, no espaço
do Lado de Fora, precisamente onde a relação é uma não-reação, o lugar um não-lugar, a
história um devir (DELEUZE, 1986, p. 93). Espaço não estratificado que não se encontra
subjugado pelas crenças do homenzinho e que liberam “forças que vêm do lado de fora e
que só existem em estado de agitação, de mistura e de recombinação, de mutação”
(DELEUZE, 1986, p. 94). Zoubrabichvli indica que o fora deleuzeano pode se tomado a
partir da noção de plano de imanência, como um campo transcendental onde nada está
suposto de antemão e que, por isso, recusa todo pressuposto (ZOURABICHVILI, 2016,
p. 75). Para ele o fora é a condição de possibilidade de uma imanência radical
(ZOURABICHVILI, 2016, p. 97). Para Deleuze a imanência é o campo de resolução das
séries incompossíveis onde opera o virtual como um nó de tendências que se desdobra
num plano onde a diferença opera como diferença absoluta de forças não relacionadas
afirmando absolutamente sua potência. Potência do virtual operando num plano onde os
“seres estão esquartejados, mantidos abertos pelas séries divergentes e pelos conjuntos
incompossíveis que os arrastam para fora, em vez de se fecharem sobre o mundo
compossível e convergente que expressam de dentro” (DELEUZE, 2009, p. 140). O plano
de imanência na filosofia de Deleuze é o campo intensivo onde se processam as
individuações que mantem o potencial disruptivo das forças pré-individuais e
metaestáveis. O plano de imanência é o campo transcendental que escapa a qualquer
transcendência do sujeito ou do objeto (DELEUZE, 2016, p. 408), onde iremos encontrar
as forças impessoais e as hecceidades operando singularizações que não se confundem
com o ser individuado como sujeito, mas que se manifestam como “pura imanência,
neutra, para além do bem e do mal” (DELEUZE, 2016, p. 410) e das crenças do

107
homenzinho que não está (aí). O plano de imanência “é ele mesmo virtual, tanto quanto
são virtualidades os acontecimentos que o povoam. Os acontecimentos ou singularidades
dão ao plano toda sua virtualidade, assim como o plano de imanência dá aos
acontecimentos virtuais uma realidade plena” (DELEUZE, 2016, p. 411). E é a potência
virtual dos acontecimentos do plano de imanência que faz passar as vagas que abrem as
derivas que desvirtuam os trajetos costumeiros construídos pelas crenças e convicções
que compõe o universo simbólico que define a transcendência tanto do sujeito quanto do
objeto, fixados nas formas majoritárias de se estar no mundo. As vidas manifestas no
plano de imanência são vidas impessoais, individuadas de forma singular e liberadas “dos
acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade daquilo
que ocorre (DELEUZE, 2016, p. 410), da subjetividade e da objetividade que constituem
o homem que nós somos, para além dos quais pode prescindir do ser individualizado a
partir das crenças do homenzinho.

O mundo do homenzinho é o lugar das diretrizes que orientam uma relação de cuidado
baseada na palavra, na reciprocidade, na adequação e no esforço de adaptação e à
normatividade e às dinâmicas de poder e de constituição institucional que configuram a
ideia de um mundo “normal” (MENDES, 2017, p. 51). A experiência de Cévennes irá
romper com o lugar do homenzinho a partir da criação de “lugares da existência” onde as
crianças possam criar seus modos de vida como acontecimentos singulares que geram um
ritmo que irá produzir um meio outro a partir dos gestos e dos agires de cada um e de
todos (MENDES, 2017, p. 53). A tentativa visava encontrar um modo de ser que
permitisse as crianças autistas existirem e a partir do qual o homenzinho ia sendo
deslocado. As concepções de homem, quaisquer que fossem elas não eram substituídas
por outras, mas as práticas permitiam que fosse excluída qualquer interpretação
referenciada num código majoritário de comportamentos estabelecidos como padrão
(DELIGNY, 2018, p. 70). A rede de Cévennes foi constituída a parti da deriva, dos
desvios e da diferença. Não se buscava adaptar, tratar, curar ou reinserir as crianças em
uma normalidade funcional que permitisse integrá-las a um padrão de comportamento
eficiente. A relação de Deligny com a “inadaptação” remonta os tempos em que vivenciou
suas experiências nas escolas especiais, no asilo de Armentiéres, no Centro de
Observação e Triagem (COT) e em La Borde. Sua trajetória sempre privilegiou “modos
de ser diferentes que buscavam se aproximar, viver junto, sem fazer desaparecer uma
diferença em prol de outra, mas conviver a partir do “entre” essas diferenças (MENDES,

108
2017, p. 54). Essas trajetórias estavam “ornadas” de agires singulares que não se
vinculavam a nenhuma utilidade ordinária, mas eram revestidos pelo sentido dos desvios,
das esquivas e das derivas de quando o homenzinho não está (aí).

Ato contínuo, o clima se clareou. Fôramos libertados da perplexidade e da


consternação, e a vida costumeira das pequenas unidades da rede estabeleceu-
se com base nesse modo inovado por Janmari, conforme o qual nossos gestos
urdiam o que havia por fazer e tinham, além disso, uma espécie particular de
respeito às crianças sem falar que vêm viver perto de nós, e que denominamos:
o ornado. Vê-se de que se trata: nossas atitudes e maneiras de ser ornam-se de
"desvios" que não são nem um pouco necessários e que nada expressam, nada
representam. Eis que se revela a instauração de uma tradição bastante leve, e o
ornado se vê incessantemente reforçado por minúsculos acontecimentos que
lhe servem de húmus: os agires multiplicam-se, diversificam-se, ganham em
amplidão. Basta ver o que acontece quando suprimimos o ornado e voltamos
a tocar o signo, como nos foi mostrado que devíamos fazer, desde sempre e
desde antes de nosso nascimento: os agires definham e desaparecem
(DELIGNY, 2018, p. 183 e 184).

O ornado se vincula a ideia do agir para nada, sem objeto e sem sujeito que dispara gestos
inadvertidos das crianças em sua abertura ao imprevisto. O agir desviante se livra, assim,
do peso das convicções do homenzinho e traz a vida a sua imanência impessoal,
liberando-a dos acidentes da vida interior e exterior, fazendo dela um ato de criação de
inesgotáveis possibilidades. Circunscreve-se, assim, um espaço onde “não implicasse na
imposição do ponto de vista da normalidade, das exigências de tornar o outro um mesmo,
um semelhante, da função de cura ou de readequação dos seres inadaptados a uma forma
de vida considerada adequada” (RESENDE, 2016, p. 268). O que prevalece nesse espaço
é um agir no infinitivo que não se conjuga a nenhum sujeito ou a qualquer objeto, de um
modelo de existência anônimo, a-subjetivo e assujeitado.

O homenzinho ergue o guarda sol que protegerá seu mundo das forças do caos, colore
seu lado interno e faz dele o seu firmamento. Debaixo dele desfila, vive e morre
(LAWRENCE, 2016, p. 22). Longe daí apenas o fora que se afasta e prescinde de
qualquer forma. O homenzinho não pode viver no caos. Ele “precisa embrulhar a si numa
visão, fazer uma casa com uma forma visível e com estabilidade, com fixidez.”
(LAWRENCE, 2016, p. 22). O mundo do homenzinho e cercado de estabilidade a partir

109
de seus significados claros que afastam toda contradição. Mundo das palavras
inequívocas que determinam os nomes e conferem a identidade entre elas e as coisas.
Longe daí, nas montanhas de Cévennes as crianças autistas produziam as esquivas de uma
existência singular, rasgando o guarda sol das determinações das estruturas do
homenzinho.

Entre uma e outra estrutura, diferenças que parecem intransponíveis. O polo


autista, marcado pelo encontro direto com o espaço, pela não intermediação do
simbólico, pelo infinitivo, pelo agir, pelas referências vividas. O polo do
homem-que-nós-somos, determinado pela nomeação, pela normalidade, pela
vontade, pela propriedade, pela relação com o mundo intermediada pela
dominação inescapável do dizer o mundo, dizer o outro. Se Janmari pode ir
não importa aonde atrás de um tijolo que falta para que ele localize um corpo,
que não é propriamente seu corpo, mas sim a possibilidade de se referenciar
no espaço; a gente cria leis, regras morais, padrões de normalidade, instituições
para a garantia dessa normalidade e para a exclusão da anormalidade. A gente
cria direitos e deveres capazes de definir quem somos e o que podemos fazer;
criamos nações, grupos, coletivos; criamos contornos que não são mais
espaços, lugares para habitar, mas sim palavras que podem nos dizer, elas
também imutáveis, imutavelmente dominantes, capazes de ordenar quem
somos, como podemos ser, o que podemos fazer (RESENDE, 2016, p. 275).

O lugar do homenzinho é o lugar da representação do mesmo sobre o fundamento da


identidade. A identidade vem garantir a representação, tanto daquilo que o ser é, quanto
daquilo que o ser não é. Delimita-se, dessa forma o espaço onde se reúnem tudo aquilo
que se mantem como o mesmo em oposição aquilo que se distingue como outro. Dessa
forma a identidade representa o limite daquilo que permanece e serve para descartar
aquilo que desse limite se afasta. Sob a estrutura da representação o sujeito faz uso da
linguagem para nomear o mesmo e o outro, tudo aquilo que é e tudo aquilo que não é,
marcando sempre uma operação de inclusão e de exclusão do espaço representado.
“Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que
fica dentro e o que fica fora” (TADEU, 2000, p. 81). O mundo do homenzinho é o mundo
da palavra que ordena os espaços em torno daquilo que define o que se é, daquilo que se
pode ser e daquilo que se pode fazer, estabelecendo parâmetros em relação aos quais o
outro se afasta como negação. O mundo do homenzinho é o padrão que funciona como
norma e que inclui aquilo que dele se aproxima e exclui aquilo que dele se afasta. O fora

110
como o espaço onde o homenzinho não está, não se define pela negação do mesmo, mas
por uma esquiva ou estranhamento que “sempre desliza, escapole e essa condição meio
de liquidez nunca permitirá um seguro e total (re)conhecimento” (WIACEK, 2004, p. 77).
É com esse estranhamento que a experiência de Cévennes nos faz deparar; estranhamento
que se esquiva de dizer aquilo que permanece, não por oposição ou negação, mas pelo
silêncio que faz parte de sua natureza. A ausência de palavras não é uma forma de recusa,
mas é uma manifestação de um mundo singular. Sobram, (ali) todas as pausas, os
espaçamentos e as lacunas onde multiplica-se a potência do virtual como esse nó de
tendências sempre pronto a produzir um novo modo de vida, mantendo-se a abertura para
novas formas de individuação onde a diferença não é diferença em relação a um outro
como sua negação, mas uma diferença de si que está sempre a escapolir, que não se pode
controlar e que está sempre a escorregar, evitando ser codificada, regulada e normalizada
a partir de um padrão identitário. Podemos inferir, a partir daí, a diferença como uma
experiência radical que não se confunde com as “representações da bela alma”. Trata-se
de dizer o diferente numa língua sem sujeito, com uma voz que ainda não se formou na
boca, no silêncio intempestivo que aguarda os encontros de onde saem inesgotáveis os
aqui e os agora.

Há muitos perigos em invocar diferenças puras, liberadas do idêntico, tornadas


independentes do negativo. O maior perigo é cair nas representações da bela-
alma: apenas diferenças, conciliáveis e federáveis, longe das lutas sangrentas.
A bela-alma diz: somos diferentes, mas não opostos... E a noção de problema,
que veremos estar ligada à noção de diferença, também parece nutrir os estados
de uma bela-alma: só contam os problemas e as questões... Todavia,
acreditamos que, quando os problemas atingem o grau de positividade que lhes
é próprio e quando a diferença se torna objeto de uma afirmação
correspondente, eles liberam uma potência de agressão e de seleção que destrói
a bela-alma, destituindo-a de sua própria identidade e alquebrando sua boa
vontade. O problemático e o diferencial determinam lutas ou destruições em
relação às quais as do negativo não passam de aparência e os votos da bela-
alma não passam igualmente de mistificações na aparência (DELEUZE, 1988,
p. 17).

Assim, a experiência de Cévennes nos exorta a nos livrar de uma prática que vise conciliar
a diferença, para tentar fugir da exclusão do diferente. O diferente é o que a tentativa ali
irá perseguir. Ela (experiência) não se propunha criar um espaço de socialização, de

111
inclusão, ou de cura, mas, sim um lugar de evasão ou uma distância daquilo que sufoca
(PELBART, 2013, p. 264). Ela (experiência) não era um caminho pronto que se seguia
como um trajeto, mas um campo de forças que procedia por resolução de tensões
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 268). Ali, são variações que se produzem sobre um
plano que recorta o caos de todas as possibilidades e lhe dá consistência. Nele se vai
tramando uma teia que produz uma rede onde são possíveis novos modos de vida. A rede
de Cévennes não é um projeto pensado, mas uma tentativa que visa criar “táticas de
esquiva; esquivar-se de tudo o que solicita, tudo o que inclui, que obriga, que amarra,
esquivar de tudo aquilo que implica numa interação intersubjetiva, o que ele chama de
um semblabiliser, “semelhancear”, essa identificação incessante pela qual nos
constituímos” (PELBART, 2013, p. 265). Tal tentativa pretende abrir um espaço para o
inadvertido como acontecimento que surge como um desvio mínimo de movimentos
costumeiros, movimentos a-sujeitados que conduzem o olhar como um ponto de ver, sem
centro fundante como ponto de vista, uma vez que está ausente o sujeito que visa, mas
sobra esse olhar que vê.

Não Se ver, mas esse ver, um ver neutro ou indefinido, que não implica,
precisamente, um centro subjetivo. É o indivíduo em ruptura de sujeito. Nós
somos sempre impelidos a sinalizar, emitir signos, e com isso construímos um
Dentro da comunicação, dos sinais, dos signos ou da linguagem, e incluímos
os autistas nesse nosso espaço do Dentro, do qual forçosamente ele se sente
excluído. Deligny, ao contrário, sustenta que eles não estão Dentro desse
circuito, e não nos cabe incluí-los, mas estão expostos, expostos ao Fora
(PELBART, 2013, p. 266).

Movendo-se no fora, as crianças autistas de Cévennes valem-se de seu agir para o nada,
sem finalidade ou qualquer palavra se quer. Elas não nomeiam, pois a linguagem lhes
falta, encontrando personagens anônimos a partir do seu próprio anonimato, pois seus
nomes não lhe cabem bem uma vez que não se pode chamar-lhes por eles e a palavra é
aquilo que se furta de ser dita. Seu mundo é sempre um acontecimento em cada encontro,
para longe do projeto pensado, num “extravagar” que nos aponta caminhos possíveis.
Nós, homens que não suportamos o caos e que estendemos um guarda sol como
firmamento que nos proteja da avalanche de sua transitoriedade. Nós, seres que se dizem
a si mesmos humanos e a partir daí revelamos a tirania do homenzinho que dita as regras
de semelhança que reúnem em torno do mesmo homem-que-nós-somos.

112
Deligny recusa toda forma de convicção absoluta e definitiva concernente ao
homem, e sua reflexão se dá a tarefa simultânea de desfazer essas ideias-
imagens e procurar inventar dispositivos nos quais outras formas podem
emergir (camerar, traçar, escrever). Ser próximo das crianças autistas lhe
revelou a impossibilidade dessa totalização visada pela figura do “Homem”.
Mesmo a palavra não pode ser fonte de esgotamento do humano, seu
fundamento, sua explicação e definição. É por isso que todo indivíduo é
primeiro: incomparável humano na sua singularidade, não podendo ser medido
senão por ele próprio – e, no entanto, sempre capaz de fazer comum com os
outros da mesma espécie. Pois o comum da espécie não supõe a semelhança,
mas a diversidade. (MIGUEL; ROCHA, 2018, p. 184).

O lugar do homenzinho cristaliza as formas do homem-que-nós-somos, a partir das


imagens adquiridas do homem consciente de si, em contraste com a imagem estranha do
humano, inata e singular. Deligny irá explorar esta contradição a partir das construções
de esquivas que pudessem expressar a lacunas e os deslocamentos contínuos de
indivíduos privados dos laços identitários que os vinculassem a qualquer tipo de formação
discursiva que estruturasse o real em que se movem erraticamente. Os autistas de
Cévennes provocam reações que servem para redirecionar a abordagem de toda uma ética
que vem repensar as relações com um espaço comum de convivência que trazem o
humano em contraste com as formas do homenzinho.

Eles são formas de traçar, de plantar derivas, de construir costumes e levam à


consideração do “homem” (ou do indivíduo subjetivado que caiu no simbólico)
e do “humano” (a memória da espécie, o imutável, a vacância da linguagem),
enfim, diante do mutismo que força a pensar a condição humana aquém/além
da linguagem, o “humano” aparecerá como gesto e forma (um “agir”
intransitivo e não um “fazer” transitivo e finalizado), antes de ser linguagem.
Daí a vida em rede contraposta às imagens do humano (MIGUEL; ROCHA,
2018, p. 186).

Esta abordagem traz à tona a dualidade entre o homem estruturado pelo simbólico e o
humano de natureza como pulsão imanente do ser. Aqui a dimensão do ethos inerente a
rede que foi possível se forma a partir das convivência entre as crianças e as presenças
próximas traz vinculadas a ela a função de um pathos que permeia todo o agir, sempre no
infinitivo que vem ressaltar a deriva em relação ao homem-que nós somos e ao logos que

113
sustenta suas formas. Se quero construir um discurso que legitima a prática das esquivas
às palavras que consolidam o universo simbólico do homenzinho, não posso prescindir
de uma linguagem do fora que se afasta mais do que qualquer exterioridade que possa ser
pensada e de onde os ecos vem trazer murmúrios, palavras-murmúrios ou palavras
silenciosas. A radicalidade da deriva das experiências de Deligny se apresenta em meio a
tentativas de fazer emergir as forças do humano-inumano em uma individuação que
mantem a tensão entre as realidades pré-individuais e metaestáveis. Chega-se, então, a
um espaço como momento pathico que se confunde com a potência de um ethos que se
dá a partir da ação de forças que circulam nesse (não) lugar da mais longínqua
exterioridade. A potência das experiências de Deligny está na expressão dessa diferença
radical que não é intermediada por nenhuma finalidade, por menor que ela seja ou por
qualquer que seja o elemento do simbólico que ela manifesta. A ausência de um lugar de
fala que é a erosão indefinida do exterior que que se manifesta como um calafrio da
plenitude do vazio

(...) seguir essas linhas erráticas da vida, que Deligny defendeu com tamanha
obstinação na sua fuga incessante para o deserto, nessa escapada, nesse exílio
coletivo para onde sempre conduziu seu “povo de autistas” ou para onde foi
conduzido por eles, cada vez mais longe das instituições, das pedagogias, das
ideologias, das palavras de ordem, da linguagem, da cidade (PELBART, 2013,
p. 286).

Escapando ao domínio da linguagem os modos de vida das crianças de Cévennes


apresentam gestos que nada dizem e por isso escapam de um fazer intencional e dirigido
por um sentido prévio. O homenzinho pensa através da linguagem que habita, a partir dos
seus sentidos, encadeamentos e significados. O fora como lugar em que o homenzinho
não está vem trazer um agir não submetido a qualquer sistema simbólico, cujos traços
vivos revelam uma existência nua que tem a ver com o inato que Deligny perseguia no
humano e ligam o individuo ao mundo sem passar pelas crenças, convicções ou palavras.
Essa ligação se dá a partir daquilo que ultrapassa as formas e dá a conhecer novos modos
de perceber a realidade, onde a experiência perceptiva ultrapassa as percepções
familiares, indo das formas as forças. Para além das formas há um conjunto de
possibilidades ainda não relacionadas e que coexistem como possíveis que circulam como
impulsos desinformados de um campo intensivo de forças como puras vibrações. Quando
o homenzinho não está (aí) cabe-se perguntar sobre a possibilidade dos padrões

114
perceptivos serem alterados, permitindo novas visões, novas escutas e novas texturas que
ultrapassem a regularidade de uma forma familiar. Isso significaria não olhar mais nos
olhos do mundo do homem-que-nós-somos, mas ver por trás de suas orbitas, onde se
estendem imagens do inexplorado, onde tudo sempre é novo e as formas fixas estão
ausentes. Perseguir uma certa ausência nos contornos de tudo que se faz e desfaz,
deixando o rastro de novidades sempre diferentes. Para tanto, trataria aqui de abandonar
o padrão de uma visão que se acostumou com as imagens impressas na retina e de uma
boca que não se cansa de nomeá-las, abrindo uma nova perspectiva que foge e se afasta
tão longe quando possível, do mesmo que não cansa de se oferecer docilmente a captura
de olhos adestrados a procurar as semelhanças e das bocas sempre pronta para dizê-las.

UM CORPO DE EXPRESSÕES INTENSIVAS

E o que dizer dos mundos que se constituem a partir de um novo padrão perceptivo. No
caso de Cévennes trataria de compreender como um mundo sem o suporte dos enunciados
pode se estabelecer em torno dos indivíduos que vivem sua vacância da linguagem como
uma deriva natural. Como este mundo pode ser constituído, uma vez que nele nada se
pode nomear, e como os indivíduos se ligam a ele sem que haja correspondência entre as
palavras e as coisas? O silêncio das crianças de Cévennes é a abertura para a criação de
novos mundos que provém do rumor imemorial de um marulhar ao fundo, que no espaço
de significação do homenzinho é abafado por um silêncio incessante. Se qualquer
linguagem for capaz de falar dessa experiência é preciso que ela seja uma palavra distinta,
um murmurar que dê conta da erosão do fora em seu esquecimento sem registros se não
os traços das esquivas silenciosas. Dessa necessidade de dizer esse silêncio é que Deligny
pode ser tido muito mais como um poeta do que como um pedagogo, como ele mesmo
preferia se identificado, uma vez que tenta dar conta da composição de forças e de sua
atuação. A palavra que pretendesse falar desse campo intensivo não haveria de ser uma
palavra qualquer mais uma palavra distinta, e justa ao alcance daqueles que dela se
aproximassem (FOULCAULT, 1990, p. 29). Qualquer palavra que pretenda fazer
reverberar as esquivas dos indivíduos silenciosos do espaço onde o homenzinho não está,
deve se articular com as forças pré-individuais do campo transcendental como
acontecimentos singulares. Cada um desses acontecimentos é responsável pelos
inesgotáveis mundos que se abrem num espaço que é fonte de uma sempre presente

115
alteridade. Espaço da diferença onde as forças em jogo não podem ser traduzidas a partir
de qualquer significado, mas são capturadas como sinais que circulam na interface larvar
onde são produzidos. Dizer esses sinais exige das palavras um recomeço que coloque a
linguagem fora dela mesma. Seria como que um exercício de esquecimento que lança o
sujeito longe de sua identidade e dos significados que o permite dizer a si e ao mundo, no
silêncio da palavra impronunciável que produz apenas murmúrios. A fala organizada na
estrutura significante da língua deve ceder espaço aos ruídos de um marulhar sempre ao
fundo, como no canto das sereias que arrastam os navegantes para o fundo de um oceano
de trevas. Porém diferentemente de Ulisses não devemos estar amarrados ao mastro do
navio, mas sim à deriva das vozes que não param de balbuciar um canto que só se ouve
no silêncio, e que revelam encontros não mediados por qualquer significado. Se as
palavras são signos com os quais o sujeito representa o mundo sobre o qual tem
consciência, parece impossível utilizar esses signos sem que estes já apontem os
significados arquivados na memória e que vêm à tona a cada olhar que o sujeito lança
sobre a realidade. Se ao dizer a realidade na qual se encontra imersa o sujeito já carrega
os significados da língua, teríamos que buscar palavras não vinculadas as formas
estruturadas da linguagem, onde os signos estivessem esvaziados dos seus sentidos
originais, na brancura onde se rompem as relações entre significantes e significados.
Brancura que faz parte do esquecimento, onde os signos não mais evocam lembranças
que afirmam um Eu determinado mais são aptos a emular sempre uma nova realidade.

Não mais reflexão, apenas o esquecimento; não mais contradição apenas a


refutação que anula; não mais reconciliação apenas a reiteração; não mais o
intelecto na conquista laboriosa da sua unidade, apenas a erosão indefinida do
exterior; não mais a verdade resplandecendo no fim, senão o brilho e a angústia
de uma linguagem sempre recomeçada (FOUCAULT, 1990, p. 29).

Caso fosse viável penetrar nesse espaço, zona do indeterminável onde tudo se faz e se
desfaz, sem que as aparições e os desvanecimentos deixem qualquer registro, a
instantaneidade dos encontros estaria sempre a dissolver os limites entre o visto e o dito,
onde se formam os significados que orientam a visão e a língua. Os signos aí não mais
estariam encobertos de registros evocados por semelhança ou equivalência em cada uma
de suas aparições; seriam signos puros uma vez que emitiriam sempre uma novidade que
não se pode antecipar, definir ou corresponder, pois mudariam a cada encontro, tornando-
se impronunciáveis a partir do conjunto de registros prévios. Como no meio onde as

116
coisas se encontram e se insinuam, se fazem e desfazem silenciosamente em uma
interface onde nada é registrado e onde apenas pulsam os sinais sensíveis. O falar nesse
meio só se tornaria possível caso as palavras fossem transmutadas em intensidades, em
cada uma de suas aparições, sem evocar significados, mas compondo uma fala que
levasse o sujeito para longe dos espaços de significação onde se encontram as identidades
recolhidas como registros de impressões sensíveis. Meio onde os encontros de tendências
intempestivas produzem agitações; tendências que se insinuam e que antes de poderem
ser designadas sem transmutam em uma novidade. Expressar essas tendências e seus
meios requer uma fala que se afirme pela combinação de palavras esvaziadas dos
significados; palavras que apareçam como signos puros preenchidos pela intensidade das
agitações e que não designam ou representam, mas insinuam intensidades de tendências.
As tendências escapam dos espaços de significação produzidos pelo sujeito que
representa a realidade, nos termos das operações da percepção sensível, memória,
abstração e linguagem. Elas seriam como vibrações de um campo intensivo, impossíveis
de serem diferenciadas a partir de um processo de comparação que explicite suas
semelhanças ou contradições a partir de qualquer identidade entre os termos. Sem traços
comuns ou oposições sobra apenas uma diferença que é uma manifestação intempestiva
e instantânea que se dissolve em sua obscuridade antes que dela se possa ter qualquer
clareza. Se os signos da linguagem são claros e distintos, permitindo assim a
representação do mundo através de significados inequívocos, as tendências insinuam
ideias distintas, mas obscuras. Distintas à medida que sempre diferentes e obscuras por
não carregarem identidades que possam ser recordadas ou designadas. Assim, a palavra
que pretenda se deixar preencher pela vibração dos meios intensivos deve ser capaz de se
libertar das teias da subjetividade que permite a aparição de um Eu que percebe, registra,
recorda e designa. Ao invés de surgir como um significante, ela deve brotar também como
uma agitação do meio onde se encontra com as demais coisas, antes que se possa fixar
seu significado. Palavra que se apresenta como a forma sempre desfeita do fora, numa
oscilação indefinida que não permite que ela represente, designe ou signifique, mas está
sempre pronta a produzir uma nova realidade.

No seu ser que espera e esquece, nesse poder de dissimulação que mancha toda
a significação determinada e a existência mesma daquele que fala, nessa
neutralidade cinza que é o refugio essencial de todo o ser e que libera o espaço

117
da imagem, a linguagem não é nem o tempo, nem a eternidade nem o homem,
mas a forma sempre desfeita do exterior (FOUCALT, 1990, p. 73).

O (não) lugar, o fora (ali) onde o homenzinho não está, se abre como um campo intensivo
onde o que se compõe são as forças em suas oscilações e onde a individuação se faz por
hecceidades, sempre a viabilizar um modo distinto de ocupar o mundo e se vincular a
ele. Quando pensamos nas crianças de Cévennes e em suas derivas naturais, torna-se mais
evidente como o seu agir ressalta o imprevisível de encontros não determinados por
qualquer finalidade, que mantem uma individuação singular da forma sempre desfeita do
exterior. Ele (agir) percorre as singularidades incluindo toda a distância entre elas, nesse
nó de tendências que caracteriza o virtual e sua potência de produzir sempre um novo
modo. O agir no sentido dado por Deligny pode ser aproximado do que Deleuze chama
de esgotamento dos possíveis, quando avalia os personagens de Beckett. Aqui, o
esgotamento se confrontaria com o cansaço, na perspectiva que este se põe sob a
possibilidade da escolha e esgotando toda a realização se vê refém de uma escolha que se
dirige por objetivos, projetos e preferências, o que faz com que a realização do possível
proceda sempre por exclusão (DELEUZE, 2010, p. 68). Em relação ao esgotamento ele
seria o esgotamento dos possíveis na medida em que combina todas as possibilidades
como conjunto de variáveis “com a condição de renunciar a qualquer ordem de
preferência e a qualquer objetivo, a qualquer significação” (DELEUZE, 2010, p.69). O
esgotado, não assume uma posição de passividade, ele estaria, sim, em atividade, mas
para nada. “Estava-se cansado de alguma coisa, mas esgotado de nada” (DELEUZE,
2010, P. 69). Para Deleuze o esgotamento seria aquilo que caracterizaria um “espinosismo
obstinado”, à medida que ele traz a ideia de Deus como conjunto de todas a
possibilidades, no modo de uma disjunção inclusiva, onde os termos disjuntos são
distintos e afirmam-se em sua distância indecomponível e são totalmente permutáveis.
Os personagens esgotados de Beckett descritos por Deleuze, remetem às experiências de
Deligny em Cévennes como as crianças autistas não verbais. Essa vacância da linguagem
e as derivas marcadas por um agir não intencional, sem objetivos, projetos ou
preferências. Ao mesmo tempo, esse campo de disjunções inclusivas pode ser relacionado
como a metaestabilidade de Simondon, através da ideia de forças ainda não relacionadas
nas formas, e carregadas de todo o potencial virtual, como um nó de tendências
incompatíveis ou o conjunto de todas a possibilidades ainda não atualizadas em

118
qualidades e partes. Manter a tensão desse campo, agora já remetidos a um plano de
imanência que mantem a potência do virtual como esse nó de tendências numa
individuação que traz para o jogo a potência das forças pré-individuais, nos põe diante da
obstinação espinosista de uma realidade que esteja sempre a produzir novos modos de
vida; obstinação de esgotar todos os possíveis por disjunções inclusivas, renunciando
“toda necessidade, preferência, finalidade ou significação” (DELEUZE, 2010, p. 71).

A ideia deleuzeana de esgotamento e a referência aos personagens de Beckett com a única


necessidade de não ter necessidade, o que os lança para fora de qualquer combinação a
um uso particular que pudesse excluir os outros, e que por isso estivesse vinculado às
circunstâncias. Seu modo vem se cruzar com às experiências de Cévennes no sentido do
agir das crianças autistas vacantes de linguagem. Deleuze nos fala de um tipo de língua
que não remete a linguagem, a objetos enumeráveis, ou a vozes emissoras, “mas a limites
imanentes que não cessam de se deslocar, hiatos, buracos ou rasgões, dos quais não se
daria conta, atribuindo-os ao simples cansaço se eles não crescessem de uma vez, de
maneira a acolher alguma coisa que vem de fora ou de outro lugar” (DELEUZE, 2010, p.
78). As imagens que nos chegam de Cévennes trazem as derivas das crianças, revelando
um agir pode estar além de todo sistema simbólico, esgotado de todas as possibilidades.
Numa cena de Ce Gamin, lá 12, de braços para trás um menino anda em círculos, girando
em torno de si mesmo repetidamente, na descrição de Deligny, “como se alguém lhe
segurasse no fim de uma corda numa arena”. Diria o homenzinho: ele vai mal! Mas mal
ou bem a ele não diz respeito, uma vez ausente, na vacância de um sujeito que representa
o homem-que-nós-somos e seus significados. Quando o homenzinho está (aí) ele traz o
cansaço das escolhas pelo projeto pensado. Longe daí temos o nada de objetivos, projetos
ou preferências, um esgotamento que se manifesta pela tensão entre as forças que
coexistem num campo intensivo e virtual. Espaço onde o sujeito se dissolve, assim como
qualquer lugar de onde se possa dizer a si mesmo ou a um outro. Interface percorrida por
intensidades, esburacada, por entram e saem mundos em profusão, como um jorro
ininterrupto de uma imprevisível novidade. Interface onde circulam forças não
relacionadas no máximo da potência de sua função de afetar, “força que mobiliza para
esvaziar ou esburacar, aliviar a opressão das palavras, interromper a manifestação das

12
Filme rodado a partir das experiências de Deligny em Cévennes e que apresenta as imagens das
crianças autistas convivendo com as presenças próximas.

119
vozes, para desprender da memória e da razão, pequena imagem alógica, amnésica quase
afásica, ora se sustentando no vazio, ora estremecendo no aberto” (DELEUZE, 2010, p.
81). Lugar onde os discursos se tornam vãos e onde a subjetividade não pode ser escavada
a partir de qualquer lugar de fala, já que ele inexiste. A ausência de linguagem empurra-
nos para os traços que são deixados pelas intensidades de corpos esgotados que se movem
por nada, abrem-se em esquivas; traços que não significam e que não podem ser
traduzidos em nenhum significado, por serem feitos de um silêncio insondável; “leve
recuo em relação ao centro, nesse esgueirar-se, nesse desvio, nesse hiato, nessa
pontuação, nessa síncope, nessa rápida esquiva ou pequeno salto” (DELEUZE, 2010, p.
90). Ao nos confrontarmos com esse espaço vazio, temos que no livrar do desejo de
construir pontes para atravessá-lo. No máximo o que nos cabe, é lançar sobre esse abismo
o fio do equilibrista de Nietzsche e suportar a vertigem de estar sobre ele sem qualquer
suporte que nos remeta à terra firme. A convivência em Cévennes não se baseava numa
tentativa de decifrar o comportamento das crianças pela interpretação de seus sinais, mais
uma tentativa de deixar que o esgotamento pudesse produzir uma potência de vida que as
livrassem do peso da exclusão a partir das táticas do homenzinho. Seu silêncio não era
um demérito, mas uma abertura para a manifestação de novos modos de expressão que
esburacavam os agenciamentos coletivos de enunciação em busca de inventar o
impossível, uma vez que todos os possíveis estavam esgotados. A ausência do sujeito da
enunciação fazia dos corpos uma interface larvar que era atravessada pelas forças, onde
emulavam-se sinais sensíveis que a percorriam por inteiro. Em vão era a tentativa de
recolher daí qualquer informação, pois o que restava desse fluxo de forças eram puros
afectos, resultado da coexistência de todos os possíveis que não reivindicavam nenhuma
escolha. Elas estavam livres dela e assim não precisariam se cansar na tentativa de realizar
qualquer projeto atendendo a qualquer tipo de objetivo que fosse. Retiravam das coisas
sua frequência e deixavam se conduzir por ela, ao tempo que iam deixando rastro que
Deligny cartografava através de seus mapas. Os mapas revelavam traçados, linhas
singulares que iam se destacando do decalque das linhas costumeiras que as crianças
seguiam com as presenças próxima, linhas que revelavam desvios para o nada, caminhos
em círculos e agitações. Era tudo que se tinha para se poder seguir.

As pessoas com autismo carregariam um traço atípico, frente aos


neurologicamente típicos. Esse traço é o não engajamento no mundo social e
nas relações com o outro. Um total desinteresse pelo outro. O outro. Parece

120
que não podemos estar em situação de provocar evidências. O outro, não
autista, nesse caso, estaria em uma relação de absentia do ponto de vista do
autista. O autista, por sua vez, é descrito pela ciência como fechado em si
mesmo, ausente. Em condição de absentia, como estar próximo? A
possibilidade de estar em presença próxima de autistas se abre quando parece
se desistir de procurar nos humanos autistas as ausências: a linguagem verbal,
o interesse pelo outro e o engajamento no mundo social. Não procurar, mas
render-se lá, ao pé da brecha da linguagem e da brecha dos padrões de
sociabilidade ou modos de existências mais conhecidos, para experimentar o
que há como possível lá. A relação entre autistas e não-autistas emergiam em
relação de presentia, quando o outro, típico, movia-se de algum lugar para
transformar-se em outro ser, propondo-se inclusive a experimentar outra
relação com a linguagem e com o mundo de significações que a acompanha.
Era uma relação inscrita no espaço, irreprodutível, incapturável. Não era a
existência humana com um traço atípico que interessava. Era a brecha que esse
traço atípico abria para pensar as possibilidades de humano. Era o vir a furo da
existência humana (CRUZ, 2017, p. 31).

É justamente através dessa brecha na estrutura simbólica do homenzinho, que


chegaremos àquilo no mundo “que não tomou ainda a palavra” (PELLEJERO, 2019, p.
30). Esses seres nascidos com uma incapacidade inata de estabelecer relação com o outro,
uma vez que esse outro não existe assim como qualquer lugar de onde eles possam dizer
um “eu”, não produzem qualquer significante que venha estruturar as articulações
simbólicas que preenchem os requisitos de uma linguagem e suas aspirações de
significação. Como seria possível, a partir daí, falar de uma língua, qualquer que seja ela,
sem a linguagem. A ausência de enunciados, de palavras de ordem ou de qualquer
significante, parece abolir qualquer possibilidade de fala e por conseguinte, de uma
língua, mesmo que menor. As crianças de Cévennes encontram-se fora da linguagem, e
aí sem o sentido de recomeço que esse fora assume em trabalhos como o de Blanchot, de
Foucalt e do próprio Deleuze. O fora das crianças autistas não verbais de Cévennes era
um fora que aparece de fato como uma ausência irreparável. Ele radicaliza o sentido do
exterior uma vez que não possibilita qualquer palavra, de que tipo seja. O que temos são
corpos como interfaces larvares onde são emulados os sinais das forças que as atravessam.
Sinais sensíveis que não são prolongados em qualquer informação, mas que se
manifestam como vibrações e que possuem uma frequência. O máximo que conseguimos
é vibrar com elas, numa afecção entre corpos que se tocam e que vão deixando seu rastro
no mundo. Esses rastros não são pistas que possam ser interpretadas, mas traços que nos

121
levam às derivas de uma vacância que não pode ser preenchida por qualquer significado.
Não existe palavra, não existe frase, pois não existe o que seja dito. Sobram, contudo,
afectos de corpos que se movem no mundo ao léu, por nada, sem qualquer projeto,
finalidade ou objetivo. Acontecimentos singulares que a linguagem não pode prescindir
e que são manifestações da “expressão criadora" (PELLEJERO, 2019, p. 26). Seria como
falarmos em formas de expressão sem a presença de enunciados, mas contendo apenas
sinais sensíveis que vão deixando no mundo seu rastro. Por isso não podemos atribuir a
cartografia de Deligny o status de significação. Talvez, nem mesmo possamos aproximar
a expressão das crianças autistas não verbais a qualquer tipo de linguagem, nem mesmo
da linguagem poética com todas as suspensões e seus acordos com o silêncio. Teríamos,
então, puras expressões afetivas, expressões que são fruto de corpos afetados em seu
silêncio e sem qualquer mediação simbólica A questão é ter expresso em modos de vida
silenciosos aquilo que a linguagem poética persegue, esse rumor imemorial que nos deixa
sem palavras (PELLEJERO, 2019, p. 24). Contudo, mergulhar nesse silêncio insondável
significa descer ao Hades como Orfeu em busca de Eurídice, mas saber que ela não mais
retornará ao mundo dos vivos, ou mesmo entrar no labirinto sem nenhum fio de Ariadne
que nos aponte qualquer saída. Tal experiência nos leva àquilo que não se fez ainda
palavra.

Em resumo, os nossos atos expressivos tendem a ultrapassar a linguagem da


qual nos valemos em direção a outra linguagem – quiçá em direção a uma
linguagem destinada a ser por sempre um sonho de linguagem, na medida em
que se trata de conduzir sempre mais longe a experiência. E, como assinala
Jean Luc Nancy , o naufrágio dessa linguagem está sempre garantido: a sua
abertura radical, que escapa a qualquer medida, fora da medida que impõe a
sua forma, a condena a perder-se, a diluir-se na mesma linguagem que contorna
e torce, que enrarece e alimenta (só que essa linguagem já não é a mesma e,
balbuciante, dirige-se àquilo que não tomou ainda a palavra: ao leitor ou ao
mundo (PELLEJERO, 2019, p. 29).

E quando o indivíduo nunca toma a palavra para poder dizer sobre aquilo que se passa
nesse lado de fora da linguagem? Sem ser sujeito, sem manter qualquer unidade simbólica
de onde possa dizer “Eu” e sem ser capaz de notar qualquer coisa que signifique como
outro para além de si, sobra apenas as intensidades, elas mesmo, não mediadas, não
significadas e só passíveis de serem experimentadas por um corpo que se deixe deslocar
de qualquer centro significante e mergulhe no espaço onde essas frequências são

122
emuladas. A ausência da fala faz do silêncio um lugar de encontros consistentes de um
plano intensivo. Ele desarticula os estratos que dão uma organização à troca recíproca
entre as formas de conteúdo e as formas de expressão, uma vez que os agenciamentos
coletivos de enunciação carecem da intervenção dos enunciados. Qualquer tipo de
linguagem se estrutura a partir das linhas de segmentariedade que se articulam nos
estrados de um campo extensivo. Para chegar nas linhas de fuga de uma desestratificação
que se abre ao campo das intensidades puras, chegamos ao lugar onde a linguagem se
esgota em direção ao silêncio, onde se busca a suspensão de um recomeço e corre-se o
risco, o tempo todo, de recomeçar cedo demais, antes de desfazer-se dos clichês de uma
“tagarelice em que se compraz o mundo” (PELEJJERO, 2019, p. 53). Na vacância de
qualquer linguagem, como um silêncio original de vozes ausentes, mantêm-se o campo
intensivo como interface larvar que faz passar os agenciamentos coletivos de enunciação
agarrados aos estratos, como uma abertura que só processa as partículas a-significantes
de um agenciamento impessoal. A experiência de Cévennes é uma tentativa de ocupação
de um território que delimitava o encontro de corpos que não produziam palavras em seus
agenciamentos, mas sinais a-significantes que escapavam da formalização em estratos
sedimentários e suas medidas padrão, distanciando-se de qualquer horizonte dado de
sentido e todos os seus vetores de estabilização a partir da linguagem e de sedimentação
do imaginário, colocando os corpos em contato com um nada comum livre dos clichês de
qualquer tagarelice. (PELLEJERO, 2019, p. 53). E o que temos aí se não uma vida no
sentido dado por Deleuze a essa força vital imanente e essência singular que traz uma
dimensão impessoal? Campo transcendental sem consciência, sem sujeito, sem objeto e
que se afirma como pura potência do ser em seu devir; ser sem fases, rico em sua
metaestabilidade e preenchido por forças livres e pré-individuais, desinformadas,
desestratificadas e dessubjetivada. Lugar da “pura corrente de consciência a-subjetiva,
consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem um eu”
(DELEUZE, 2016, p, 407). Lugar “onde o poder hegemônico e asfixiante da linguagem
e o imperativo da norma possam ser esvaziados” (NAQUET, 2017, p. 6) e onde possam
ser liberadas novas modalidades de existir para além da vida presa aos acidentes da
consciência.

Ao pensarmos num lugar onde a linguagem possa ser esvaziada de seu poder hegemônico
e asfixiante, somos impelidos a relacioná-lo a um fora. Num primeiro momento, somos
tentados a pensar esse fora como algo exterior a linguagem ou algo que a negue. Contudo,

123
veremos que esse fora pode se apresentar, na verdade, como um limite conduzido por
uma tensão que escava um silêncio no interior da própria língua como uma dimensão
virtual. Desta forma, só se atingiria este fora desarticulando o ato linguístico, para que
então pudéssemos atingir a potência desse silêncio em seu interior. Tal abordagem
aproxima as análises que fazem Agamben e Deleuze figura de Bartleby no conto de
Melville. Agamben irá relacionar a figura de Bartleby, o escriba que não escreve, com a
potência perfeita de uma ausência que não se confunde com o ato. “Como escriba que
cessou de escrever, ele é a figura extrema do nada do qual procede toda criação e, ao
mesmo tempo, a mais implacável reivindicação desse nada como pura, absoluta potência”
(AGAMBEN, 2015, p. 26). Fazendo uma análise do conceito de potência em Aristóteles
Agamben a tomará como algo que quando se tem, pode-se pô-la em ato ou não de forma
que ela seria definida pela possibilidade do seu não exercício, sendo a potência, num certo
sentido, uma suspensão do ato, uma “potência-de-não” que se opõe a expressão. “O
impessoal é a potência-de-não, o gênio que impele para a obra e a expressão”
(AGAMBEN, 2018, p. 56). A potência-de-não não é uma negação, mas uma ausência que
libera a potência impessoal que resiste ao ato e a forma individuada. (AGAMBEN, 2018,
p. 59). A potência-de-não é uma resistência interna à potência, que impede que esta se
esgote simplesmente no ato e a impele a voltar-se para si mesma (AGAMBEN, 2018, p.
59). Se a potência-de-não é aquilo que insiste em permanecer de fora do ato e da
expressão, seu elemento fundamental é a ausência e a vacância, onde tudo o que subsiste
ainda não se formou mais aparece como um dinamismo virtual que é pura intensidade,
pura potência. Ainda sobre Aristóteles Agamben analisa a noção de potência a partir da
ideia de que toda potência de ser ou de fazer algo é, segundo ele, sempre também potência
de não ser ou de não fazer, uma vez que se contrário fosse a potência passaria desde
sempre ao ato e com este se confundiria (AGAMBEN, 2015, p. 14). Quando passamos
para a análise de Bartleby por Deleuze, nela destaca-se a fórmula agramatical da sua
sentença “eu preferia não”, que não seria nem afirmativa nem negativa para a solicitação
que lhe chega, abrindo uma zona de indiscernibilidade que faz a linguagem fugir e que
cava nela um fora que desarticula todo ato de fala. Um escriturário que para de copiar,
isto é, de reproduzir palavras; cava uma zona de indeterminação que faz com que as
palavras já não se distingam e produz o vazio na linguagem (DELEUZE, 1997, p. 85). É
nesse sentido que a fórmula de Bartleby, segundo Deleuze, em sua agramaticalidade
desconecta as palavras e as coisas, pondo seu ser suspenso no nada e subsistindo no vazio.

124
Diríamos de preferência que uma zona de indistinção, de indiscernibilidade,
de ambiguidade se estabelece entre dois termos, como se eles tivessem atingido
o ponto que precede imediatamente sua respectiva diferenciação: não uma
similitude, mas um deslizamento, uma vizinhança extrema, uma contiguidade
absoluta; não uma filiação natural, mas uma aliança contranatureza. Trata-se
de uma zona hiperbórea, ática. Já não é uma questão de Mimese, porém de
devir” (DELEUZE, 1997, p. 90).

Deleuze tenta ver na fórmula de Bartleby a descrição da desarticulação dos atos da fala,
que para ele se relaciona com as tentativas de cavar na língua uma espécie de língua
estrangeira, que em última instância seria fazer a língua cair no silêncio, descobrindo nela
o seu fora. “Quando a língua está tão tensionada a ponto de gaguejar ou de murmurar,
balbuciar..., a linguagem inteira atinge o limite que desenha o seu fora e se confronta com
o silêncio (DELEUZE, 1997, p. 128). A preocupação de Deleuze é mostrar de que
maneira se pode criar uma outra língua no interior da língua, empurrando a linguagem
para um limite assintático e agramatical que confronta com o seu próprio fora. Ele não
estaria fora da linguagem, mas seria o seu fora, a partir de elementos “não-linguageiros”
que só a linguagem torna possíveis. Se a fórmula de Bartleby, segundo Deleuze, revelaria
um nada de vontade em oposição a vontade de nada, segundo Agamben ela se relaciona
com a potência-de-não. Bartleby não consente, mas também não refuta, mantendo o ato
em suspenso. Sua fórmula tem como efeito “arrastar toda a linguagem, em fazê-la fugir,
em impeli-la para seu limite próprio a fim de lhe descobrir o Fora, silêncio ou música”
(DELEUZE, 1997, p. 84). Concomitante ao ato de proferir sua fórmula ambígua, ele parar
de copiar, num movimento que “desloca a linguagem do registro da proposição, que
predica algo de algo, para aquele do anúncio, que não predica nada de nada”.
(AGAMBEN, 2015, p. 31). Esse é o sentido da resistência, que não se confunde com uma
negação. O que temos é a suspensão a partir de uma fórmula agramatical e um não-fazer
que mergulha o ser num conjunto de todas as possibilidades como sua dimensão virtual.
Deleuze nos faz deparar, como a ideia de um fora dentro da própria língua, enquanto
Agamben nos apresenta aa potência ainda não prolongada no ato, mas no que diz respeito
a linguagem, tal potência não subsistiria fora dela como uma realidade pré-linguística.
Vemos em ambos um horizonte limite que coloca em suspensão o ato para que o novo
enquanto criação possa ocorrer; resistência que libera a potência de um ato de criação.
Contudo, tudo isso se passaria no interior da própria linguagem. E o que dizer da
experiência das crianças autistas não verbais em Cévennes que se colocam ausentes da

125
linguagem, uma vez que sua vacância não encontra um fora no interior da linguagem mas
na impossibilidade de dizer, quer seja a si ou a qualquer outro, sendo indivíduos
absolutamente não-linguageiros dos quais todo ato é um ato não-linguístico e toda a
expressão é uma expressão não-discursiva de um individuo que não se tornou um sujeito
falante.

Num universo habitado por deuses, quando ainda a terra era sem forma e vazia e havia
trevas sobre a face do abismo, um deus, cuja palavra era potente e criadora, disse: haja
luz! E houve luz, fazendo deus a separação entre a luz e as trevas, seguindo, assim, o dia
primeiro. Antes disso, só trevas sobre a face do abismo, até que a palavra, enquanto
sentença de um deus criador, quebrasse o silêncio e inaugurasse os dias sobre a terra. A
palavra criadora, produtora de significados avançou sobre o mundo das coisas e fez dele
a morada dos homens. Palavras que escavam os territórios e que compõe enunciados que
vão delimitando os limites entre si e as coisas. Foi dizendo o mundo ao seu redor que os
indivíduos foram desvelando os seus significados e ordenando-os de forma a poder
identificá-lo em cada uma de suas aparições. E o mundo não parava de emitir signos que
o falante tinha que traduzir em palavras, manifestando, dessa maneira, seu sentido e o
tornando parte do mundo dos homens. Palavras, capazes de delimitar, instantaneamente,
os limites do “homem-que-nos-tornamos”. E os limites surgem da capacidade dos
homens, feitos sujeitos falantes, de transmitirem as palavras como aquilo que os
distinguia de outros seres, comunicando não apenas aquilo que veem, mas
principalmente, transmitindo aquilo que lhes é comunicado aos outros homens. Palavras
que compõe enunciados. Enunciados que não são atos de fala isolados, mas o produto de
“agenciamentos coletivos de enunciação”. Se as palavras não só explicitam o mundo que
chega até os sujeitos falantes, mas também transmitem aquilo desse mundo que lhe é
comunicado, o conjunto de enunciados, a partir do convívio entre sujeitos falantes e suas
ações coletivas, faz a constituição de seu espaço comum entre o Eu e o Outro. Mas
acontece que nasceram indivíduos que eram refratários a linguagem ou a qualquer
compreensão e que por isso não se tornaram sujeitos falantes ou adquiriram a capacidade
de dizer a si mesmos sujeitos ou o mundo a sua volta como objeto. Seus corpos mudos
vagavam por um universo organizado por uma unidade simbólica que criava a expectativa
de que todo indivíduo nele pudesse ser inserido através de uma língua comum a partir da
qual viessem a poder perorar no mundo. Indivíduos que em nada tinham a ver com
qualquer tipo de sujeito, mas que, no entanto, eram tomados de iniciativa que empurravam

126
seus corpos mundo a fora, fora de qualquer função simbólica, no silêncio de sua voz
faltante, alheios a qualquer linguagem e longe do homem-que-nós-somos. Seriam esses
indivíduos menos humanos por estarem fora da linguagem? Deligny diria que: “É fora,
portanto, que tem lugar o que, do humano, seria refratário ao que funciona no simbólico”
(DELIGNY, 2018, p. 222). Se a função simbólica cria um universo, esses indivíduos
estariam fora dele, no limiar de um outro universo real, em que se exerce uma outra
função (DELIGNY, 2018, p. 225).

O cotidiano gera manifestações, em geral, violentas: elas batem, mordem,


arranham, põem os dedos nos olhos, puxam os cabelos... as grandes funções
podem estar alteradas... devemos supor que essas crianças nasceram com a
incapacidade de se relacionar com o outro, como outras nascem com
deficiências físicas ou intelectuais...sua audição e as possibilidades intelectuais
virtuais são normais (Legenda inicial do filme “Ce gamin là de Fernand
Deligny e Renaud Victor – 1976).

Quando chegou a Deligny Janmari tinha 12 anos e trazia um laudo psiquiátrico que
atestava tratar-se de um encelofata profundo incurável que apresentava traços psicóticos
e que por sua agitação e atenção dispersa não era passível de ter seu cotidiano mental
avaliado. Pouco tempo depois Deligny inicia sua tentativa com crianças autistas em
Cévennes onde Janmari o acompanha. Foi por conhecer os locais de segregação que
estavam preparados para acolher os incuráveis, os insuportáveis e os invivíveis que
Deligny ousou em experimentar uma vida comum com indivíduos refratários a qualquer
interação com o outro e seu universo simbólico definido pela palavra. Sobravam para elas
na sociedade o espaço segregado, assim como foi destinado tal espaço a Bartleby,
primeiro diante da janela que abria para parede de tijolos no escritório e depois nos seus
dias na prisão até a sua morte, que fez Melville exclamar no final do conto: “Ah, Bartleby!
Ah, humanidade (MELVILLE, 2008, p. 89). Humanidade que fez de Bartleby, segundo
Deleuze, um “puro excluído”, uma. vez que “o próprio Bartleby só tinha como saída
calar-se e retirar-se para trás de seu biombo cada vez que pronunciava a fórmula, até o
seu silêncio final na prisão” (DELEUZE, 1997, p. 85). Silêncio em que se encontravam
as crianças autistas de Cévennes que eram ausentes da linguagem, mas não por uma opção
ou por uma resistência, pois sua agramaticalidade era uma deriva natural de seus corpos.
Corpos mudos, privados de qualquer expressão discursiva e do mundo construído pela
função simbólica da linguagem. Corpos cuja expressão manifesta a ação das forças do

127
mundo sobre si e que se afastam das expressões de “um sujeito formado e composto como
o do cogito da representação”, mas manifestam, sim, intensidades de um “adormecido em
um sono profundo” num esboço que só pode ser “larvar” (DELEUZE, 2006. p. 133);
expressões que se caracterizam por serem intensivas, expressões que não comunicam,
mas que vão deixando um rastro no mundo; expressões que apresentam corpos em deriva,
sem finalidade, sem um projeto pensado e sem um fazer intencional.

Esse menino aí, que não é falante, traça, durante meses. A sua mão desenhou
círculos. Círculos e nada mais. E ainda os desenha. Nós passamos a desenhar.
Nossas mãos seguindo, no rastro, o que nossos olhos viam. Os nossos olhos, o
que o nosso olhar era capaz de ver, de apreender, de nos relatar. E aí estão os
trajetos desse menino, ao longo de um dia, de setembro de 1967. Ele gira. Ele
gira ou sobre si mesmo, com as mãos nas costas, uma segurando a outra. Ou
correndo. Como se alguém estivesse no centro do seu carrossel, segurando-o
pela ponta de uma corda. Dizem que um menino gira mal. Ele girava sem
parar... Em torno dele mesmo. A linguagem nos faz dizer: ele gira em torno
dele mesmo. Mas se esse famoso ELE MESMO estiver, de fato, ausente,
vacante, essa criança aí gira ao redor de nada. Em torno de nada. Perdidamente.
Perdido. Será, então, que ele procuraria esse "ele mesmo"? Que ele "se"
procuraria? Não adotamos essa pista. Esse menino aí girava. Nem bem nem
mal. Além, para além do bem e do mal, que são assunto da palavra (DELIGNY,
2017, p. 876 e 876).

A expressão desses indivíduos é a expressão de um agir para nada; iniciativas movidas


por sinais do mundo que se lança sobre eles e que os atravessam como interfaces larvares;
intensidades a-significantes que podem sem expressas por mãos que desenham, traçam e
deixam rastros. Rastros que podem ser seguidos quando ao se traçar seus trajetos
costumeiros e suas derivas. Formavam com as presenças próximas uma rede, que estava
longe de uma instituição, mas que ao contrário trava-se de uma tentativa que, como
descreveu Guattari, visava exercer a função de um agenciamento coletivo que não
procurava fazer com que as pessoas em quadro preestabelecidos, para então adaptá-las a
finalidades universais e eternas

É sob esta condição que as singularidades do desejo poderão ser respeitadas.


Tomemos o exemplo de Fernand Deligny em Cévennes. Ele não criou ali uma
instituição para as crianças autistas. Ele tornou possível que um grupo de
adultos e de crianças autistas pudessem viver juntos segundo seus próprios

128
desejos. Ele agenciou uma economia coletiva de desejo articulando pessoas,
gestos, circuitos econômicos relacionais, etc. (GUATTARI, 1985, p. 66).

De nada adiantaria se aproximarem delas no intuito de fazê-las ingressar no universo


simbólico da linguagem, mas o que se tentava era permitir que elas pudessem expressar
sua singularidade de estarem no mundo de uma forma própria, mesmo que silenciosa,
onde iam inventando modos de viver junto, não tentando decodificar seus gestos, mas
grafando seus trajetos para poderem seguir as linhas de suas derivas. A tentativa era
subverter as relações de controle, liberando gestos que nada significavam, mas que eram
puras expressões intensivas, sem que se submetessem as análises de técnicas de
interpretação do discurso. O que se buscava era localizar no espaço e no tempo o
movimento delas, sem lhe impor regras de funcionamento do universo simbólico que
formou o homem-que-nós-somos.

O agir autista é representado pelo que Deligny chama de linhas de erro. Em


diversos mapas, o que vemos então é como as linhas do agir atravessam as
linhas do fazer, como a ordem do fazer permite que o agir irrompa e o pontue
de nova forma. Trata-se de linhas de erro, pois elas parecem incompreensíveis
para o adulto e os projetos por ele formulados. Por que uma criança faria um
desvio extremamente longo pelo rio se ele está carregado de madeira para o
forno e se poderia seguir uma linha reta e mais curta? Por que ele descasca
uma laranja se não quer comê-la? São, pois, linhas de errância, linhas erráticas
que inscrevem o erro no “bom senso” do adulto “normal” (MIGUEL, 2015, p.
60).

Como os mapas era possível alcançar o ver das crianças sem interpretá-lo, localizando
tudo aquilo que as atrai e as conecta ao seu agir. Às linhas dos trajetos das crianças,
Deligny dava o peso de uma linguagem não verbal cujos traços eram rastros de sua
expressão no mundo (DELIGNY, 2018, p. 148). A partir deles era possível notar como
as crianças se derivam e erram, seus movimentos “ornamentados” que eram movimentos
de uma rotina comum aos quais eram dados por elas uma amplitude desmedida bem como
aquilo que atrai sua atenção (chevêtres). A partir daí é possível perceber o que as crianças
localizam (répère) no espaço de forma a configurá-lo um espaço comum.

129
Os mapas falam de um Nós produzido pela rede e não por um sujeito específico
e isolado. Os mapas são mapas de trajetos, mas também de gestos (fazer o pão
ou lavar a louça, varrer a cozinha...), mapas onde vemos micro-
acontecimentos: a passagem da criança ao agir a partir de um fazer cotidiano
proposto pelos adultos, passagem que se denota em uma linha de erro. E é
preciso entender o sentido desses micro-acontecimentos. As crianças que
vivem na rede são autistas mudas profundas, algumas delas consideradas por
psiquiatras “incuráveis” e “ineducáveis”; crianças movidas por impulsos
extremamente violentos de autodestruição e completamente presas em seus
movimentos estereotípicos. Dessa forma, abandonar tais movimentos e tomar
parte em atividades – mesmo que da maneira própria delas, isto é, sem a
intenção de realmente realizar essas atividades – consiste em um verdadeiro
acontecimento. Enfim, o território, o corpo comum, o Nós, é o resultado da
trama da vida costumeira dividida por adultos normais e crianças autistas, é o
que existe entre eles. No entanto, o movimento dessa trama lhes escapa no
sentido em que ele não é um código reprodutível. Por isso, o mapa é o modo
mesmo de traçar o corpo comum (MIGUEL, 2015a, p. 61).

Os mapas constroem uma outra semiótica que funciona por um regime a-significante que
agencia signos e corpos em movimento em um espaço de convivência entre as crianças e
suas presenças próximas. Ele traça as linhas do movimento de indivíduos singulares,
sujeitos larvares e seus corpos sem órgãos nesse território-corpo-comum de uma rede de
convivência onde as presenças próximas introduzem gestos que são signos sem
significados, capazes de fazer as crianças abandonarem seus movimentos estereotípicos,
organizando o espaço onde elas possam fabricar seu território. Sem intervir no agir das
crianças as presenças próximas vivem a rearranjar o espaço com o intuito que ele possa
ser, de fato, um lugar comum onde o agir delas encontrem condições de acontecer sem
que se diga aquilo em que elas devem se tornar; agir para nada no qual nada falta, agir
sem fim, muitas vezes ornados de arabescos que se assemelham a uma produção estética,
que faz com que possamos ir das formas as forças que produzem esse “modo de existência
outro”.

O território é assim fabricado ao longo do tempo segundo uma precisão total e


refletida. Esse aspecto aparentemente “estético” é, entretanto, essencial: tudo
no espaço (disposição de coisas e de corpos, gestos, movimentações), tudo é
pensado, e, em seu limite, coreografado. É essa a condição de estabelecimento
do costumeiro. (MIGUEL, 2015a, p. 66).

130
O lugar comum não é o território do homem-que-somos e de suas estruturas simbólicas.
Cada coisa ali não corresponde a um significado, mas a uma frequência que se estende ao
longo do espaço e sem um significante para expressá-las elas passam a reverberar sobre
os corpos mudos das crianças que vão estabelecendo com elas relações singulares. Da
mesma forma os gestos tidos como simulacros, como um bater de palmas, bater em uma
pedra, por a vibrar um objeto qualquer, estratégias para liberar um agir e fazer com que
as crianças pudessem sair do encurralamento repetitivo de suas estereotipias. Esse lugar
constituía enquanto um território para a deriva de indivíduos que nele faziam seus trajetos
costumeiros e seus desvios erráticos, livres de sua consciência de si e da dominação do
simbólico. Nele a existência era feita de encontro, encontro entre os indivíduos mudos
com as coisas, dos indivíduos mudos com as presenças próximas, encontro entre as
presenças próximas. Tudo se desenrolava sem obedecer a um projeto pensado, mas fluía
de acordo com os ritmos de cada encontro de corpos que se tocavam em silêncio, na
dimensão de um campo de forças, onde cada individuação era intensiva, cada encontro
era único em seus desdobramentos, longe da rigidez dos traços do sujeito formado por
milênios de civilização e da vivência da normalidade normativa, o que fazia desse campo,
sempre, o lugar de um jorro ininterrupto de uma imprevisível novidade.

131
CONCLUSÃO

Ao longo de todo o trabalho procuramos descobrir o que pode um indivíduo, tomando o


indivíduo como um “campo de possibilidades em que um modo de vida pode se fazer”
(AZEVEDO, 2009, p. 132) , evitando, assim, partir do indivíduo já constituído e tomá-lo
não como um simples resultado, mas como meio de individuação (DELEUZE, 2006, p.
117). Simondon já especificava a importância de considerar a individuação como um
processo onde o pré-individual permanece associado ao indivíduo como “fonte de estados
metaestáveis futuros” (SIMONDON, 2020, p. 22), compondo o par “indivíduo-meio”. A
metaestabilidade, segundo ele, confronta um estado de equilíbrio estável, onde todas as
transformações possíveis foram realizadas e onde o nível de energia potencial atinge seu
nível mais baixo. Num equilíbrio metaestável manifestar-se-ia um sistema em seu mais
alto grau de energia potencial, onde as forças díspares coexistem em um estado de tensão
formando um complexo problemático. Pensar o indivíduo enquanto meio de individuação
permite que possamos propor uma experimentação com o corpo sem órgãos, na
perspectiva de Deleuze. Esta se propõe a partir de um processo de desterritorialização que
desarticula as determinações do individuo a partir da construção de um plano de
imanência que deixa emergir linhas de fuga que liberam todo potencial disruptivo de um
campo intensivo em sua dimensão virtual, metaestável e pré-individual. Segundo
Deleuze, um plano de imanência recorta a variabilidade metaestável e passa a comportar
tanto a dimensão virtual quanto a atual, tanto a ideia indiferençada quanto a sua
encarnação em qualidades e partes, tanto o conjunto de relações diferenciais, quanto as
individualidades constituídas. Um indivíduo constituído em sua atualidade assim o é sob
as determinações rebatidas sobre um plano de organização que forma uma unidade em
torno dos diversos elementos que se ligam para formar um organismo em seu regime de
totalização. Deleuze assim afirmava que quando a questão é de como construir um corpo
sem órgãos, “não se acreditará que o verdadeiro inimigo do corpo sem órgãos sejam os
próprios órgãos. O inimigo é o organismo, ou seja, a organização que impõe aos órgãos
um regime de totalização” (DELEUZE, 2016, p. 25). É esta organização que cabe ser
desarticulada, uma vez que se queira fazer os órgãos funcionarem em um outro regime.
A luta do corpo sem órgãos é contra o organismo e contra tudo aquilo que produz uma
organização totalitária, para poder chegar a um corpo como um ovo pleno, interface larvar
atravessada por um “fluxo de intensidades variável” (DELEUZE. 2016, p. 26). Foi em
busca dessa desarticulação que Deleuze partiu atrás, em especial com seu trabalho com

132
Guattari. Para isso, foi preciso demonstrar de que forma os territórios se compõem em
torno de agenciamentos que relacionam modos de existência, estados de forças e
expressões e enunciados, estratificados através do funcionamento das máquinas sociais,
suas filiações, alianças e repulsões. A partir daí, caberia encontrar as brechas nas
estruturas dos estratos onde se atualizam os indivíduos para fazer as linhas fugirem, mas
sempre com a preocupação que esse movimento não seja um mergulho suicida e que a
“brecha não devenha colapso” (DELEUZE, 2016, p. 32). Encontrar brechas nos padrões
maiores e na clausura das representações, desconstruindo-as e deixando emergir linhas
de fuga que liberam a potência do indefinido e do impessoal que esta sempre em via de
fazer-se. Chegar a um campo intensivo, como um “fora” nos modelos hegemônicos da
representação, encontrando um (não) lugar como elemento genético que se afirma
enquanto potência diferenciadora e motor de todo acontecimento levado ao infinitivo, ou
como uma potência virtual que não para de se atualizar a partir da coexistência de todas
as possibilidades.

A questão da individuação e do que pode um indivíduo, a partir da dimensão virtual, veio


se cruzar ao longo desse trabalho com as experiências de Fernand Deligny, em especial
em Cévennes. Em ambos os casos se chega a um (sem) fundo ou a um fundo
indiferençado de onde se originam as singularidades que se veem livre do peso das
estruturas que delineiam uma forma-homem que assumiu a prevalência em suas
subjetivações. A diferença, segundo o próprio Deligny, é que a mesma vacância, a mesma
lacuna é buscada por uns e sofridas por outros (DELIGNY, 21018, p. 172). Se o lugar
do corpo sem órgãos para Deleuze passa por uma experimentação que esburaca os
estratos das estruturas majoritárias no caso das crianças autistas de Deligny a dimensão
de um sujeito larvar passa por corpos que sofrem de uma vacância pela ausência da
linguagem e o seu silêncio imutável se constitui como uma superfície que resiste à
ordenação do organismo e à eficiência do funcionamento de um padrão majoritário -
“corpos refratários a toda imagem pronta e a toda matriz capaz de definir de uma vez por
todas o homem como tal (ROCHA; MIGUEL, 2016, p. 187). A experiência de Cévennes
funciona como um pano de fundo para a tentativa de se construir um olhar “buscando
pensar o indivíduo por aquilo que o singulariza” (AZEVEDO, 2009, p. 128). Longe da
concepção universalizada de indivíduo que reflita o “homem-que-nós-somos”, Deligny
reivindica um humano que transcende as formas majoritárias de se estar no mundo e faz
da sua expressão uma nova língua, não discursiva e com palavras transmutadas em uma

133
pura expressão intensiva, “sem sujeito, nem projeto, e sem objeto” (DELIGNY, 2018, p.
164). Deligny chama isso de “tentativa” e diz que ela está mais próxima de uma obra de
arte do que de qualquer coisa, isso porque diz respeito a um “criar” que se afasta de um
“fazer como”. Criar um lugar comum onde as crianças autistas pudessem localizar seus
corpos e se relacionar com as demais coisas que as cercam. Fazer desse lugar um espaço
onde estejam integradas, fazer desse espaço um território que as captura e que seja por
elas capturado. Fazer da relação com esses indivíduos singulares, longe da dominação
simbólica, uma relação intensiva a partir das forças que atravessam a existência, tocam-
se e transformam o espaço ao seu redor. Relações que se estabelecem não a partir de
palavras de ordem, mas de encontros silenciosos que secretam afectos e criam novos
modos de vida. A partir daí torna-se fundamental criar territórios onde novos modos de
vida possam ser “localizados” na manifestação de suas singularidades. Trata-se de liberar
modos de estar no mundo, que vão deixando rastros de “deslocamentos silenciosos”.
Seguir esses rastros leva a “elementos inesperados” que sustentam linhas de errâncias de
indivíduos “infames” e lança-nos nuns “topos” onde se localizam, na sua experiência
existencial singular, onde podem se relacionar longe das designações simbólicas dos
nomes que os definem. Nos darmos conta desses indivíduos a partir de seus corpos que
vibram nesse lugar “obscuro e mudo” (AZEVEDO; HENZ; RODIGUES, 2009, p. 113),
e frequentam um campo intensivo de individuação que podemos transformar num lugar
comum. Nesse (não) lugar temos acesso aos sinais sensíveis que são a pura expressão
intensiva que vão deixando as marcas e tecendo uma trama com seus traços de vida.

Essa dimensão “obscura” e “muda”, longe da “contiguidade” e da “semelhança” que


constituem o homem conformado por “milênios de civilização”, já era descrito por
Deleuze como as “profundidades infranqueáveis, das distâncias e das diferenças
absolutas” (DELEUZE, 1994, p. 316), que podem ser vislumbrados, segundo ele, no
romance “Sexta-feira ou os limbos do Pacífico”, de Michel Tournier. Recontando a saga
de Robinson Crusoé de Daniel Defoe, pela perspectiva de um isolamento que irá lhe fazer
confrontar com completa ausência de outrem, durante sua completa solidão na ilha. É a
partir daí que o personagem se “desumaniza” e irá entrar em contato com elementos livres
e com a “energia cósmica” que o levará a uma “grande Saúde elementar” (DELEUZE,
1994, p. 313). Na perspectiva de Tournier “a história de Robinson deixa de ser a da
tentativa de reconstruir uma microssociedade a partir das condições de um naufrágio
numa ilha deserta para se tornar a história da erosão de todas as estruturas sociais

134
internalizadas num homem” (SIVA; KASPER, 2014, p. 714). Assim, o outrem descrito
por Deleuze em relação ao qual Robinson se afasta não é nem um objeto em seu campo
perceptivo, nem um sujeito que o percebe, mas funcionaria como a estrutura de um campo
perceptivo que permite que um possível apareça em sua obstinação de passar por real e
que é a própria condição de possibilidade da perceção que o indivíduo tem de si e do
mundo que se constitui a sua volta. É essa estrutura que permite a distinção da consciência
do Eu e de seu objeto. É uma face com seus grandes olhos, que demarcam a posição do
sujeito e através dos quais, como verdadeiras janelas, descortina-se diante dele os mundos
que lhe são possíveis. Mas outrem, não é uma presença tranquila. “Antes que outrem
apareça havia, por exemplo, um mundo tranquilizante, do qual não distinguíamos minha
consciência, outrem surge, exprimindo a possibilidade de um mundo assustador (...) Na
ausência de outrem, a consciência e seu objeto não fazem mais do que um”. (DELEUZE,
1994, p. 319 e 320). Longe da estrutura de um campo perceptivo, só a solidão de uma
indiscernibilidade entre o Eu e o mundo, longe da consciência de si e do outro só o
silêncio insondável. E é exatamente neste estado que vivem os autistas vacantes da
linguagem, na solidão de seu silêncio, longe da distinção entre o sujeito e o objeto, uma
vez que a consciência deixou de seu uma luz que visa as coisas e tornou-se um brilho das
coisas mesma. Tudo o que aparece para o indivíduo sem a presença de outrem, não é
rebatido como um reflexo do mundo, mas libera “uma imagem sem semelhança, um
duplo delas próprias” (DELEUZE, 1994, p. 328) que atravessa seu corpo tido como
interface e se prolonga em um sinal sensível. No romance de Tournier, segundo Deleuze,
a perda de outrem é experimentada, primeiramente, como uma perturbação, mas aos
poucos, Robinson descobre que é outrem que perturbava seu mundo e se vê diante do
infinito com toda a sua potência de criação, fazendo da ilha de Speranza um campo
intensivo e a-subjetivo. Sem a presença de outrem, contudo, o infinito de possibilidades
corre o risco de transformar-se num caos tempestuoso da coexistência de todos os
possíveis, capaz de lançar o indivíduo numa na espiral de um fundo indiferenciado,
fazendo-o entrar em colapso. É aí que as narrativas de Robinson e das crianças autistas
de Cévennes se cruzam, na dimensão de um território que se constrói como um lugar onde
seja possível evitar o isolamento total sem, contudo, apelar para a estrutura outrem. Tanto
Speranza quanto Cévennes figuram como o território que permite uma integração que
evitará que o distanciamento das estruturas de sentido de outrem em que esses indivíduos
se encontram, não os dissolva nem os desintegre por inteiro num caos selvagem. Ao
contrário, eles irão experimentar uma reterritorialização que os permita romper os muros

135
de seu isolamento e solidão que vem encurralá-los. E é com a entrada de Sexta-feira na
narrativa de Robinson, um ser fronteiriço entre a humanidade e a animalidade, que a sua
integração nessa realidade, que foi perdendo os vestígios de sua antiga ordenação, se
completa. Sexta-feira libera Robinson para se fazer elementar em sua ilha, ela própria
entregue aos elementos livres. Ele é uma força que participa dos mesmos elementos da
ilha. Sua presença viabiliza aquilo que de inumano passou a dominar a existência de um
homem distanciado das estruturas de outrem e termina de destruir qualquer organização
que ainda insista em permanecer. Nesse sentido, transportando essa experiência insular
para Cévennes, ela pode ser relacionada àquilo que ali foi constituído como uma tentativa
de evitar que a estrutura de outrem pudesse encurralar as crianças autistas com o peso de
anos de dominação simbólica. Deligny teve o cuidado de fazer com que as crianças
pusessem conviver, não com a presença de outrem, mas com a de “presenças próximas”.
Em ambos os casos, mantem-se o distanciamento necessário para o estabelecimento de
um lugar comum, sem a presença de outrem que traga o peso da estrutura de mundos
prévios. Presença indiscernível que mantem o distanciamento de um estranho cúmplice.
Quaisquer presenças ali, não seriam mais as senhas para uma realidade perdida como
possibilidade, uma vez que o outrem já está ausente, mas abririam as brechas por onde
podem irromper o impossível daquilo que ainda não se atualizou, ainda não se constituiu
em qualidades ou partes e que coloca os indivíduos em uma relação intensiva a partir de
mundos inumanos, mudos e esvaziados de sentido, em contato direto com as coisas, sem
a presença de sujeitos ou objetos. Tudo se passa como uma deriva de corpos liberados
de seus limites e desviados quanto aos seus fins, apenas conectados “com os elementos
tornados celestiais, solares ou aéreos” (SIVA; KASPER, 2014, p. 724). É a partir daí que
se pergunta sobre a possibilidade de um lugar onde o outrem não faça sombra, não
perturbe com suas solicitações e com o peso de suas crenças que carregam o peso da re-
produção de um mundo que reivindica seu sentido. A experiência de Cévennes lança luz
sobre um espaço que se torna comum, a partir da ausência de reivindicações de um ponto
de vista ou de uma finalidade. Ela libera os indivíduos para o seu agir, sem intenção,
objetivo, mas como puro afeto. Nesse lugar, qualquer expressão faz brotar intensidades,
frequências que não se desdobram em informação, mas que só podem ser experimentadas
a partir do silenciamento de qualquer sentido prévio. Frequências que deixam rastros que
revelam um modo de existir singular, rastros que só podem ser traçados e lidos a partir
de um mapa, através do qual se demarcam territórios existenciais. Assim, está lançado
um convite para discutirmos modos de individuação singulares, a partir de nossa

136
experiência com indivíduos que se encontrem em um isolamento, ao redor dos quais
foram erguidas paredes das quais não conseguem se livrar. Assim como Bartleby no conto
de Melville. Indivíduos que “prefeririam não” fazer, por um puro esgotamento de
possibilidades. Ajudar tais indivíduos a “operar uma brecha nas paredes” e deixar circular
um pouco de ar que passa do caos impetuoso cuidando para que “dessa brecha não
devenha colapso”. Achar a dimensão do humano que se afasta das convenções
estabelecidas em torno da sua adaptação ao meio e faça dessa adaptação não uma
adequação aos padrões majoritários, mas um modo próprio de vida a partir das
singularidades expressas por seus corpos particulares. Encontrar brechas nos padrões
majoritários que possibilitem que vida explore todas as suas potencialidades, para além
de qualquer forma dominante, mas que considere modos próprios de articulação do corpo.
Para isso é necessário estabelecer tentativas que criem um espaço comum para o encontro
de corpos que aumente a potência de agir dos indivíduos em seus modos de vida
singulares a produzir o máximo de afectos alegres.

Ao contrapor a noção de utopia pela de uma comunidade idiorrítimica, Barthes introduz


uma ideia que preconiza que se viva uma deriva singular em relação aos códigos sociais
determinados. Barthes não se refere a uma utopia social, mas sim a uma “boa relação”, a
melhor possível. Isso nos leva a pensar na questão sobre a constituição de um território
em que o espaçamento seja fundamental para viabilizar um ritmo próprio de vida com um
tipo de expressão que não passe pelo simbólico ou qualquer tipo de organização
discursiva. Na ausência da palavra o único tipo de expressão possível seria uma expressão
intensiva, resultado do encontro de corpos individuados para além da relação sujeito e
objeto. Assim para que tal expressão seja possível há de se abrir um distanciamento nesse
viver-junto que torne possível fazer desse território compartilhado um lugar comum.
Comum que só se viabiliza por essa distância que se configura como um abismo entre o
peso do simbólico e sua completa ausência, apontando a diferença dos tipos que se
distinguem enquanto se tocam, estabelecendo novas configurações do sensível ao seu
redor. Longe de ter que aderir às identidades coletivas compulsoriamente, as crianças em
Cévennes podiam viver sua idiorritmia de que tanto necessitavam na qual o simbólico
insistia em interferir, preservando a imutabilidade solitária da ausência de outrem que
tanto lhes é cara, sem, contudo, estarem em um exílio existencial. Como no viver-junto
suposto por Barthes, as presenças próximas em Cévennes mantinham uma distância sem
quebrar o afeto, uma distância penetrada e irrigada de “ternura” como Barthes supunha,

137
suficiente para que as crianças pudessem seguir com elas em seus trajetos costumeiros e
permiti-las derivar nos trajetos de suas esquivas. De nada adiantaria se aproximarem delas
no intuito de fazê-las ingressar no universo simbólico da linguagem, mas o que se tentava
era permitir que elas pudessem expressar sua singularidade de estarem no mundo de uma
forma própria, mesmo que silenciosa, onde iam inventando modos de viver junto, não
tentando decodificar seus gestos, mas grafando seus trajetos para poderem seguir as linhas
de suas derivas. A intenção era subverter as relações de controle, liberando gestos que
nada significavam, mas que eram puras expressões intensivas, sem que se submetessem
às análises de técnicas de interpretação do discurso. O que se buscava era localizar no
espaço e no tempo o movimento delas, sem lhe impor regras de funcionamento do
universo simbólico que formou o homem-que-nós-somos, renunciando essa imagem e
liberando afectos que vão aumentando a potência de um agir não intencional mas que se
lance ao nada. Só assim:

Alcançaríamos, aqui, aquele valor que tento pouco a pouco definir sob o nome
de "delicadeza” (palavra um tanto provocadora no mundo atual). Delicadeza
seria: distância e cuidado, ausência de peso na relação, e, entretanto, calor
intenso dessa relação. O princípio seria: lidar com o outro, os outros, não os
manipular, renunciar ativamente às imagens (de uns, de outros), evitar tudo o
que pode alimentar o imaginário da relação" (BARTHES, 2003, p. 260).

Pensar esse espaço a partir dos afectos, de saída, requer um esforço para separar o sentido
do afecto da noção de sentimentos ou afecções. Deleuze fala que os “afectos transbordam
as forças daqueles que são atravessados por eles” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.
213). Nesse sentido um afecto ativa uma potência. Por isso um afecto aumenta ou diminui
a potência de agir de um indivíduo. O espaço de Cévennes é o lugar de uma tentativa que
trata do aprendizado dos afectos de um corpo e dá a conhecer que há sempre uma
variação afetiva que o torna mais fraco ou mais forte, mostrando como esse corpo se
aproximam e se afasta das potências que lhe são próprias (AZEVEDO, 2013, p. 12). São
esses afectos, segundo Espinosa, enquanto devires produzidos em nossos encontros com
o mundo, que ativam a potência (esforço) do indivíduo em preservar ao seu ser. Isso está
muito ligado ao sentido que Deligny dá ao inato, como potência que está para além do
sujeito e da consciência, e que é parte da natureza essencial dos corpos e de seu agir nas
relações da vida, inato como potência. Daí a importância de se criar relações com o
mundo que aumente essa potência de agir e não a oblitere. Dessa forma, há de se propiciar

138
bons encontros como uma tentativa de emular essa potência nos corpos e não de os
semelhantizar. Tal potência se relaciona com o inato ou daquilo que está distante do
subjetivo, ausente de um “si mesmo” e que se manifesta em formas de gestos para nada.
Gestos podem ser comuns e podem ter, segundo ele, fundos diversos. É possível tomar a
noção de forma e de fundo como colocada por Deligny, na perspectiva deleuziana, a partir
da ideia de um fundo virtual diferenciado e uma forma atual diferençada. O fundo diria
respeito as intensidades, as forças não ligadas, pré-individuais e metaestáveis que se
atualizam em formas atuais, suas qualidades e partes. Dinamismos que trabalham sob
todas as formas e extensões qualificadas (DELEUZE, 2006, p. 134). Deligny afirma que
uma mesma forma pode ter vários fundos (DELIGNY, 2018, p. 171), mas podem ter
também um fundo comum, a partir do momento que o fundo se define a partir da
multiplicidade de potenciais repartidos. É assim que ele irá enxergar um fundo comum
para as experiências com o sobrenatural religioso que “vem do céu” e a das crianças
autistas não verbais “desprovidas de um pingo de intenção”. Ele irá aproximar então o
gesto característico de balançar o corpo que advêm das crianças autistas sem fala e que
está presente, também, em certas religiões. Em ambos os casos as atitudes são oriundas
do abandono do sujeito no caso dos religiosos e no caso das crianças autista são
totalmente involuntárias uma vez que a consciência de si neles esta ausente. “A mesma
atitude corresponde o mesmo fundo a mesma vacância, a mesma lacuna, sofrida por uns,
buscada por outros (DELEIGNY, 2018, p. 172). Em ambas as formas, por a consciência
estar abolida ela não exerce controle sobre as atitudes que advêm aos corpos, sendo eles
agitados pelo vento do espírito. Esse espírito não se constituiria a partir das articulações
de sentido de um universo simbólico da linguagem, mais se caracterizaria a partir do inato
que faz parte do humano, que pode ser comparado aquilo que Espinosa chamava de
substância ou potência causal de auto-produção e de produção de todas as coisas,
absolutamente infinita, causa ativa de toda existência. As experiências de Deligny em
Cévennes nos poem diante da noção de vontade livre para escolher o nosso próprio
destino, que segundo alguns, distinguiria o homem das espécies cujas atitudes seriam
programadas. Ele pergunta se isso não seria mesmo um engodo. “O que equivaleria a
dizer que o sujeito, o si de cada um ao qual tanto nos apegamos, é o reflexo sentido de
um engodo” (DELIGNY, 2018, p. 172). Mas uma vez podemos aproximar essa noção a
Espinosa, para quem a faculdade de querer não passaria de um ente metafísico formado
a partir de eventos particulares. Dessa forma, a verdadeira liberdade que caracterizaria o
humano para Deligny, não derivaria da liberdade da vontade de um sujeito, mas da

139
adequação do agir ao esforço (conatus) inato do indivíduo em preservar seu ser
(ESPINOZA, 2016, p. 228). Nesse ponto Deligny confronta, a partir da noção de
imutável, aquilo que é inato e entregue a si mesmo e aquilo que é uma imagem que o
homem deu a si mesmo depois de milênios de dominação simbólica (DELIGNY, 2018,
p. 174). Desse modo Deligny vai demarcado a diferença entre o homem e o humano,
ficando o homem como uma caricatura que Deligny irá chamar de “homenzinho” e o
humano como aquilo que se relaciona com o inato e que estaria no fundo das formas de
vida longe da imagem dos homenzinho e do sujeito e da consciência. Deligny recoloca,
insistentemente, sua grande questão que atravessa todo o seu trabalho e diz respeito a um
humano que não se relacionaria ao homem-que-nós-somos (DELIGNY, 2018, p. 101) e
às formas manifestas do homenzinho (DELIGNY, 2018, p. 162), chegando, então, ao
conceito de humano como um acontecimento singular, onde corpos estruturados de uma
forma específica e não vinculados a qualquer imagem, “corpos refratários a toda imagem
pronta e a toda matriz capaz de definir de uma vez por todas o homem como tal (ROCHA;
MIGUEL, 2016, p. 187), liberam todo o potencial de um agir inato que é parte de suas
naturezas nas relações essenciais da vida. Foi isso que Deligny promoveu em Cévennes.
Um lugar propício a bons encontros, encontros capazes de produzir afectos que
aumentassem a capacidade inata de agir das crianças autistas. Longe do peso do simbólico
e cercado de presenças próximas, que mantinham o distanciamento necessário para as
crianças cultivarem a imutabilidade que lhes era tão cara. Lugar da composição de corpos
e da sua articulação num lugar onde podiam viver junto e existir de modo singular. A
tentativa em Cévennes se liga a ideia de aprendizado relativo à capacidade de um corpo
e de seu poder de afetar e ser afetado, preservando, dessa forma, sua natureza substancial
de causa ativa das próprias ações, como dizia Deleuze, “da força explosiva interna que a
vida traz em si” (DELEUZE, 2006, p. 57). Fazer o indivíduo atingir um lugar que só se
alcança, como diria Deligny, com o “abandono do sujeito”, abrindo uma “lacuna” que faz
surgir o inato, sua natureza substancial, onde a consciência abolida não exerça o seu
controle (DELIGNY, 2018, p. 173 e 174). Desta feita o indivíduo não só se deixa dominar
por afecções produzidas do exterior, mas deixa-se tomar por “afecções ativas”, que são
inatas, conquistando "aquilo que pertence a sua essência” (DELEUZE, 2017, p. 213 e
214). Tal exercício só é possível nas experiências de Cévennes a partir do acolhimento
das “variações de intensidades de cada corpo em sua diversidade afetiva” (AZEVEDO,
2013, p. 70). Cada corpo é uma singularidade que compõe o espaço como um território
comum sem que se pretenda semelhantizar ou adequar o que se produz a uma imagem

140
prévia de homem. A individuação intensiva mantém a tensão dos dinamismos sob as
formas do corpo, seus gestos e suas expressões como novos modos de vida.

Não temos a menor razão para pensar que os modos de existência tenham
necessidade de valores transcendentes que os comparariam, os selecionariam
e decidiriam que um é “melhor” que o outro. Ao contrário, não há critérios
senão imanentes, e uma possibilidade de vida se avalia nela mesma, pelos
movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria, sobre um plano de
imanência; é rejeitado o que não traça nem cria. Um modo de existência é bom
ou mau, nobre ou vulgar, cheio ou vazio, independente do Bem e do Mal e de
todo valor transcendente: não há nunca outro critério senão o teor da
existência, a intensificação da vida (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 98).

No sentido de tomar a experiência de Deligny em Cévennes como uma tentativa


afirmativa que buscava construi um espaço de convivência onde indivíduos que viviam
uma vacância em relação as estruturas de outrem pudessem ser acolhidos a partir de seus
modos de vida singulares, silenciosos e a-significantes, concluímos que ele só se
viabilizaria a partir de uma prática que busca permitir a composição integrada entre os
indivíduos autistas, presenças próximas e seu meio. A condição de possibilidade dessa
integração passa pela valorização do corpo como uma interface percorrida pelos sinais
sensíveis produzidos pelo encontro dos corpos no mundo. Neste sentido, os encontros não
produzem significados, mas afectos que liberam forças como prolongamento nas
interfaces dos sinais das excitações corporais. Essas excitações dependem da diversidade
dos corpos e da especificidade de seus órgãos, o que faz com que os sinais não se
confundam com informações. Eles não se traduzem em um fazer que se fia em crenças e
desejos e que se desdobrariam numa ação intencional, pois podem se dispersar ao
percorrerem a superfície do corpo. Daí a importância de localizá-los através do
movimento dos corpos no território, sua atividade rítmica não codificada em informações,
em cada uma de suas expressões intensivas. Tais movimentos vão deixando marcas nos
territórios, daí a importância de cartografá-los assim como fez Deligny, para através
dessas marcas, não obter informações, mas para seguir os traços que os corpos deixam ao
longo de seus trajetos costumeiros ou de suas errâncias. Esses traços apontam para um
movimento de corpos que investem reciprocamente entre si num processo que foi descrito
por Deleuze como uma dupla captura de evolução a-paralela. Segundo ele, as pessoas são
compostas por linhas bastante diversas, sem que se saiba ao certo sobre qual linha elas

141
mesmo estão e onde fazer passar as linhas que estão traçando (DELEUZE; PARNET,
1998, p. 18). Assim essa dupla captura se daria, justamente, no embaralhar dessas linhas,
ou melhor, fazer as linhas passarem por todas as variações, a partir do modo como cada
uma se desterritorializa na outra, “segundo uma linha ou linhas que não estão nem em
uma nem na outra, e que carregam um bloco (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 27). Tal
encontro, num espaço feito através de um viver junto que mantem o potencial da criação
do novo, colocaria em contato indivíduos em uma relação ativa e permanente como o
mundo e, portanto, faria desse encontro sempre uma imprevisível novidade, mantendo a
abertura de um virtual que não para de se atualizar e que desmantela o plano de
organização e os dispositivos que fixam um padrão majoritário de se perceber e
representar a realidade em torno do sujeito que foi constituído a partir de uma imagem
projetada e perseguida com afinco. Encontros que permitem uma humanização que passa
por estar aquém do homem ou além dele, num processo que contempla tanto a
desumanização quanto a sobre-humanização que nos leve das formas às forças livres,
das qualidades e das partes às agitações de espaço e aos buracos de tempo como pura
síntese de velocidades, direções e ritmos, para que aí, então, seja possível se experimentar
uma individuação que seja intensiva, carregada da potência de produção de novos modos
de vida. O novo, aqui, é a pura expressão da diferença. Diferença que é o movimento de
uma virtualidade que está se efetivando a si mesma. Diferente da ultrapassagem do
possível para o real, o novo que atualiza um virtual é a irrupção de algo que difere no
próprio movimento de atualização. Diferente de um possível que ao se realizar, nada
muda, pois apenas é acrescentada a ele uma existência individual que realiza essa
possibilidade determinada, um virtual é um nó de tendências, um campo problemático
cuja dinâmica de forças ira constituir uma solução que não se assemelha ao problema,
mas determina sua atualização desdobrando-o. Assim, neste sentido, a atualização como
diferenciação é sempre a expressão de um virtual que se dá como uma criação. Essa
expressão manifesta linhas divergentes que se articularam no indivíduo, como uma
coordenada atravessada por diferentes velocidades, direções, tamanhos e intensidades
(MIGUEL, 2015b, p. 105). O indivíduo, neste caso, aparece como um campo aberto
atravessado por linhas que entram e saem e que o vão compondo ao mesmo tempo que
compõem o território que o circunscreve numa zona determinada, ao mesmo tempo que
a desorganiza e a faz explodir. Assim o atual carrega toda a carga genética do virtual e o
indivíduo funciona como uma abertura para que os dinamismos espaço temporais
continuem a atuar, o que permite um processo ininterrupto de produção do novo. Novas

142
linhas que desarticulam os estratos do plano de organização e ao fugir, fazem do indivíduo
um campo aberto a novas experimentações. Acontece que uma linha de fuga pode devir
em alguma coisa criativa ou pode ser uma linha de abolição improdutível se
transformando numa linha de morte. Além disso, ao se darem os encontros, uma linha de
fuga de um indivíduo ou de um grupo pode barrar e interditar a linha de fuga de um outro,
lançando-o, ainda mais de forma segmentarizada nos estratos (DELEUZE; GUATTARI,
1996, p. 79). Encontros que aumentam ou diminuem a potência de agir, liberam linhas de
fuga, segmentarizam ou criam linhas de abolição. Trata-se, então de descobrir as
compatibilidades entre as linhas em cada encontro, tornar-se uma presença próxima,
sendo um emulador de linhas criativas. Saber reconhecer a natureza dos sinais emitidos
pelos corpos bem como a natureza das linhas que entram e saem de cada plano de
organização, compondo com elas linhas que desarticulam os territórios estratificados por
linhas que segmentarizam por oposições binárias, que constroem os padrões majoritários,
ou por linearidades que fazem passar de um segmento ao outro, onde atuam os
dispositivos que formatam as funções e as finalidades. Saber seguir as linhas e perceber
quando uma linha de fuga se torna linha de morte, linha dura, ou diferente disso, quando
a linha costumeira se desprende como linha de errância. Não procurar decodificar os
sinais, mas deixa-se tomar por eles, sem tentar extrair daí qualquer significado; aprender
a lê-los fora das formas significantes, sabendo seguir seus rastros como linha traçadas
num mapa. A experiência de Deligny em Cévennes foi marcada pela confecção de mapas,
que iam registrando o movimento das crianças e de suas presenças próximas no território,
seus deslocamentos diários no espaço feito comum. Os mapas eram “um modo de desviar
da linguagem e de ver o que não se pode ser visto por um sujeito justamente por causa da
sua linguagem um modo de se desviar da linguagem” (MIGUEL, 2015b, p. 114). Os
mapas criam um novo regime semiótico, outro regime de signos e outro regime de corpos
a ocupar um espaço cuja produção de sentido é a-significante e ao invés de palavras temos
os traços que marcam os trajetos dos corpos. Não corpos estratificados, mas corpos sem
órgãos, desconstruídos e desarticulados. Espaço comum, não a sujeitos, mas a indivíduos
larvares a serem atravessados por intensidades, agitados pelos dinamismos e exprimindo-
as através de vibrações que percorrem todo o corpo e que permitem encontros que
produzam ressonâncias que escavam um lugar onde o singular devêm, silencioso, autista
e fazendo do espaço um território de inscrição de gestos para nada de corpos carregados
da força explosiva de vida, para além de seus órgãos e das funções inerentes ao
organismo, como uma abertura ética, estética e política.

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