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Dissertação de Mestrado
CIBERESPAÇO E DEPENDÊNCIA
Uma análise dos vínculos do humano com o glocal interativo como habitus
CIBERESPAÇO E DEPENDÊNCIA
Uma análise dos vínculos do humano com o glocal interativo como habitus
Área de Concentração:
Signo e significação nas mídias
Linha de Pesquisa:
Cultura e Ambientes Midiáticos
São Paulo/SP
2008
3
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
4
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .........................................................................................................................10
CAPÍTULO I –ABORDAGEM PRELIMINAR DA DEPENDÊNCIA E
CONTEXTUALIZAÇÃO DA CIBERCULTURA.....................................14
3. Dromocracia cibercultural............................................................................................30
3.1. Dromologia....................................................................................................31
3.2. Sistema dromocrático cibercultural...............................................................34
1. Fenômeno glocal...........................................................................................................38
1.1. Características gerais do fenômeno glocal....................................................39
1.2. Glocalização e cibercultura............................................................................43
CONCLUSÃO ..........................................................................................................................79
REFERÊNCIAS 82
8
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq e à CAPES,
pelo apoio no desenvolvimento desta Pesquisa;
CAPÍTULO I
Desde então deve-se sem dúvida ter começado a pensar que não havia centro,
que o centro não podia ser pensado na forma de um sendo-presente,
que o centro não tinha lugar natural, que não era um lugar fixo mas uma função,
uma espécie de não-lugar no qual se faziam indefinidamente substituições de signos.
Derrida (2002, p. 232)
Para caracterizar a dependência do glocal (ambiência que não é nem local nem
glocal e que pressupõe tecnologias capazes de transmissão em tempo real), deve-se ter em
mente o contexto da civilização hodierna, seu surgimento e estado atual, fincados na cultura
pós-moderna e no desenvolvimento da informática e dos meios de comunicação a distância.
Num primeiro momento, é importante frisar alguns esclarecimentos, no que tange ao
significado da dependência que será abordada nesta análise. Em seguida, será contextualizada a
cibercultura, buscando-se explicitar seu conceito e suas principais características.
Com esse intuito, recorrer-se-á às especificidades da pós-modernidade e da
comunicação como valor utópico, no sentido de apresentar a inter-relação entre cultura pós-
moderna, fenômeno comunicacional e de ambos com a cibercultura.
Posteriormente, será contextualizada a dromocacia cibercultural para a apreensão
da lógica da velocidade na cibercultura e a imbricação entre o mercado de produtos
informáticos e a estrutura sociocultural atual. Será abordado, igualmente, o conceito de
dromologia, necessário à compreensão da dromocracia cibercultural, especialmente em relação
à dinâmica de aceleração em todas as esferas da civilização tecnológica.
A abordagem desse panorama permitirá – quer-se crer – melhor apreensão do
fenômeno da dependência na civilização mediática atual, especialmente em se tratando de uma
dependência sociocultural e estrutural, como delineada a seguir.
Tendo em vista a grande recorrência que o termo dependência terá neste estudo,
fazem-se necessários alguns esclarecimentos sobre o respectivo significado no presente
contexto. O termo, como proposto, não corresponde ao conceito desenvolvido no campo da
economia, tampouco na área da psicologia e/ou psicanálise.
15
1
Nesta reflexão, utiliza-se o entendimento de Trivinho a respeito do conceito de técnica, abarcando objetos
(como utensílios, ferramentas etc.) e procedimentos orientados para a prática. O autor percebe esta concepção da
técnica como peça importante para a sua apreensão do ponto de vista histórico. No que se refere à tecnologia,
Trivinho evoca o sentido proposto por Marcuse (1967), que data o surgimento da tecnologia em fins do século
XVIII. O conceito está relacionado à “ideologia do progresso”, que se formou na intersecção do iluminismo
francês com o liberalismo inglês. (TRIVINHO, 2007, p. 50).
16
perpassadas por ela. Vem acompanhada de aspectos históricos relevantes a serem reconhecidos,
sem os quais não haveria uma adequada compreensão da dependência aqui formulada.
Ela se mostra, ainda, como fenômeno estrutural de época. Vale ressaltar, entretanto,
que não será tratada neste estudo como mero condicionamento, mas como fator de
dinamicidade, próprio das práticas perpassadas pela tecnologia.
Está relacionada, especialmente, à emergência dos meios de comunicação de massa
e, posteriormente, dos media interativos, pelo que se pode perceber o aspecto comunicacional
da dependência. Por esta razão, o presente estudo focará os meios de comunicação a distância
como tecnologias imprescindíveis à civilização humana, em sua fase mediática. Serão
abordados, mais especificamente, os media interativos, em virtude de serem a configuração
mais avançada de tecnologias capazes de tempo real e considerando a articulação societária que
eles engendram. A dependência aos meios de comunicação a distância é apresentada como
produto da constante utilização dos mesmos e da importância a eles conferida na civilização
mediática. Por sua vez, os hábitos comunicacionais, mediados tecnologicamente, são
referenciados como sendo, a um só tempo, produtos e produtores da dependência aos meios de
comunicação. Todo o contexto de dependência em conjunção com os hábitos comunicacionais
surge como fator preponderante de manutenção da civilização tecnológica atual.
Esta primeira abordagem da dependência pretende somente mostrar o
direcionamento a ser adotado para a análise deste fenômeno em seu aspecto sociocultural,
antropológico e comunicacional. Para o cumprimento deste objetivo, é necessário, antes de
tudo, conhecer-se o contexto civilizatório hodierno.
2.1. Pós-modernidade2
Isto não quer dizer que já não haja narrativas credíveis. Por metanarrativa,
ou grande narrativa, entendo precisamente narrações com uma função
legitimante. O seu declínio não impede que milhares de histórias, umas
pequenas e outras menos, continuem a ser a trama da vida cotidiana.
(LYOTARD, 1999, p. 33).
3
Neste tópico, as referências à teoria cibernética e à comunicação, como valor utópico, estão baseadas em
Philippe Breton. O autor aborda, em várias obras, questões históricas relacionadas à teoria cibernética, à
invenção do computador e ao caráter ideológico de que foram imbuídos esses fenômenos.
4
Este conceito é proveniente da 2ª lei da Termodinâmica, da Física, na qual os sistemas, sempre em crescente
estado de desorganização, tendem à destruição de si mesmos.
21
a cibernética, nasceu a maioria das grandes noções que alimentaram, posteriormente, as ciências
da comunicação (como, por exemplo, o conceito de retroação).
Breton destaca, inclusive, alguns aspectos que concorreram para o sucesso da
cibernética. Entre eles, está o fato de ela se constituir como verdadeira alternativa às ideologias
políticas tradicionais vigentes à época. A sociedade, renovada pelo livre fluxo de informações,
não requereria o combate a inimigos para se garantir o progresso; seu vigor residiria
simplesmente em libertar as forças comunicacionais do interior dos “seres comunicantes”.
Tratar-se-ia, assim, não de uma sociedade baseada no antagonismo ou no conflito, mas na
comunicação e no consenso racional. O único inimigo dessa sociedade não seria o humano, mas
a entropia, até porque humanos e “máquinas inteligentes” estariam participando,
conjuntamente, numa espécie de “ligação social unitária” no combate à entropia.
Por fim, Wiener acabou por transformar a comunicação em valor de amplo alcance
social e político. O fluxo descentrado de informações, interligado ao autocontrole desses fluxos,
formava os alicerces de uma espécie de “anarquismo racional”, cuja idéia muito agradava aos
cientistas desiludidos com os sistemas políticos que tinham fracassado em sua missão de bem
governar (ibid., p. 55-58).
A princípio, a comunicação como valor era restrita ao campo científico. Contudo, a
aceitação dos ideais da cibernética por alguns pesquisadores e, por conseguinte, a ampla
divulgação realizada – seja por meio da ficção científica, de textos científicos, ou pelos
ensaístas e futurólogos – impulsionaram a ampliação do sentido da comunicação como valor
utópico e central na sociedade. Breton afirma que a comunicação passou a viger como valor
pós-traumático em relação à barbárie ocorrida na primeira metade do século XX, tendo em vista
que ela se opunha à idéia das chamadas “teorias de exclusão” (nazismo e fascismo, por
exemplo) de que nem todos os seres humanos são seres humanos. Além disso, representava uma
solução à crise geral dos valores, especialmente porque o novo sentido conferido à comunicação
não trazia em si um conteúdo moralista. E, por fim, seria uma resposta à crise dos sistemas de
representação política, em virtude da queda das ideologias da modernidade.
Com o passar do tempo, a comunicação se tornou cada vez mais um valor de caráter
utópico. Breton aponta duas vias originais de difusão desse novo valor, que ele denominou de
“impregnação pela aplicação” e “influência intelectual” (ibid., p. 102-115).
A primeira via – “impregnação pela aplicação” – consistiria em três etapas. Iniciava
pela invenção de uma nova máquina ou técnica, depois se criava um discurso de
acompanhamento dessa tecnologia, que orientasse as pessoas na sua utilização e indicasse um
sentido que a ela deveria ser aplicado. Por fim, deixava-se que as técnicas agissem por si
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mesmas, por serem carregadas de sentido. Essa espécie de difusão pode não parecer, a priori,
tão eficaz, mas teve grande repercussão e rapidamente alcançou vários setores da sociedade.
A segunda via de difusão, de caráter intelectual, contaria com a influência da nova
noção de comunicação, a partir da “teoria da informação”, em certos campos disciplinares –
como a biologia, a antropologia, a psicologia e os estudos sobre complexidade –; com o
trabalho da literatura de divulgação, que consistia em textos acerca da própria cibernética; com
a difusão do imaginário da ficção científica, que alimentou a cultura e o imaginário social, bem
como o imaginário dos engenheiros ou dos criadores das novas tecnologias; e com a influência
dos ensaístas (entre eles, McLuhan, Alvin Toffler, Alain Minc etc.) da chamada “sociedade da
comunicação”, cujas teses foram largamente ampliadas através dos media.
Os avanços tecnológicos obtidos, principalmente no pós-guerra, impulsionaram a
percepção de que se começava a viver em uma nova sociedade fundada no conhecimento: a
“sociedade de informação”. Este seria, segundo alguns autores, o resultado da convergência das
tecnologias de informação e do advento das telecomunicações.
A informação – e aqui percebemos a influência da teoria cibernética – teria a função
essencial de produzir harmônica conexão entre conhecimento e comunicação. Daí supor que
“sociedade de informação” e a propalada “sociedade de comunicação” não só se
complementam, mas também se confundem. Os media, de massa e/ou interativos, estariam
envolvidos tanto no processo de geração de conhecimento, quanto na sua divulgação.
Breton nos mostra que o fato de se tomar a comunicação como valor utópico gera
certos “efeitos perversos”. A primeira conseqüência pode ser constatada no sentido da palavra
comunicação, que passa a significar tudo e, ao mesmo tempo, já não quer dizer nada. Sua noção
amplificada dificulta, inclusive, o estabelecimento de um objeto para a própria ciência da
Comunicação. O autor nos alerta, inclusive, para o caráter de orientação externa da ação
humana de que estariam imbuídos os media, reduzindo o ser humano a algo que mais “reage”
do que “age”. Em conseqüência, a comunicação como utopia traz consigo vários pontos
negativos, como por exemplo o aumento da ignorância acerca do mundo, por se ter a ilusão de
que se tem o saber; a ilusão da libertação pela comunicação; a busca de um mundo de harmonia
e consenso e, com isso, a eliminação da crítica. Além disso, vale ressaltar a utilização da
comunicação como máscara para o liberalismo, que o ajudou a recuperar a perda de
credibilidade resultante dos conflitos mundiais do século XX. Este regime se sustenta – é bom
lembrar –, especialmente, dos media e da informática (ibid., 117-141).
Uma vez delineado o contexto do surgimento da cibernética e da expansão da
comunicação como valor utópico, passaremos ao tópico seguinte, buscando estabelecer
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Afirma, ainda, que a comunicação se tornou um fenômeno totalitário, uma vez que a
sociedade se estrutura a partir da articulação das redes digitais e de telecomunicações. Em
contrapartida, a comunicação encontrou também na cultura pós-moderna o contexto ideal para a
aceleração da expansão de seu significado utópico. Esta era a mesma sociedade que buscava
respostas ao vazio deixado pelas duas guerras mundiais, como já explanado anteriormente no
item 2.2 deste capítulo. Assim, a comunicação se estabeleceu como o vínculo social que havia
sido prejudicado nos conflitos.
Breton, quando faz a inter-relação dos ideais da teoria cibernética com a
comunicação como valor utópico, remete-nos à questão da “ligação social”, que toda sociedade
necessita para sua sobrevivência, e seria encontrado, doravante, na comunicação. Nesse mesmo
sentido, Trivinho afirma que a comunicação, ao ocupar lugar central na sociedade pós-moderna,
tem nela sua própria forma de expansão:
24
Kumar (1997, p. 139) nos lembra, igualmente, que alguns pós-modernistas vêem nos
media um potencial emancipatório para o sujeito, pois só reforçariam nele a capacidade de se
autoconstituir, de criar sua autonomia. O caráter de personalização, relativo ao estilo pós-
moderno, encontrou guarida na publicidade e nas formas individualizadas de comunicação,
permitidas pelos meios interativos. A fluidez e a rapidez do que é imagético refletem, em muito,
a efemeridade e a descontinuidade pós-modernas.
O aspecto de hibridismo do pós-moderno, inclusive, reflete-se na fusão ensejada
pelos media entre o que está distante e o que está próximo, entre o público e o privado, entre o
humano e a máquina (TRIVINHO, ibid., p. 44-45). Até mesmo o discurso político, sem a
mesma força de convencimento ideológico da modernidade, passou a depender, em grande
parte, das estratégias de marketing para poder se mostrar convincente (id., p. 70-72). O advento
dos media interativos acentuou essas características, embora a cibercultura, como organização
societária atual, tenha tido a capacidade de “reconjuntizar” o que a pós-modernidade, também
engendrada pelos media, já havia dispersado (id., p. 61).
Ao mesmo tempo em que se engendrava a condição pós-moderna mesclada ao
fenômeno da comunicação, era gestada também a cultura tecnológica, que, mais recentemente,
encontra-se em sua fase informática. Trivinho (ibid., p. 79-91) nos mostra que o conceito de
sociedade tecnológica não é novo e que, nas perspectivas teóricas mais recentes, está associada
à “implosão das grandes metanarrativas modernas”, à “fabricação de uma história artificial
pelos media convencionais”, à simulação, ao simulacro, e, inclusive, à “espetacularização e
esvaziamento da política”. Vemos, assim, que ela se funde ao pós-moderno e à comunicação.
Nessa sociedade tecnológica, desenvolveu-se a passos largos a cultura informática,
que deve seu surgimento sobretudo aos ideais da cibernética, segundo Breton.5
Após seu sucesso inicial, a cibernética, como teoria, permaneceu no esquecimento.
Porém, seu princípio ideológico continuou sendo levado a termo por vários cientistas, que se
empenharam, cada vez mais, em desenvolver técnicas que possibilitassem a construção da
sociedade livre – pelo seu potencial informacional.
5
A abordagem de Breton (1991, 1992) a respeito da história da informática é importante chave de compreensão
do contexto tecnológico atual, em razão de detalhar precisamente o caráter ideológico do processo de surgimento
e desenvolvimento da tecnologia informática.
25
Vale ressaltar que Breton analisa, nessa mesma direção, a invenção do computador
como possibilitadora da realização dos ideais aspirados, alguns anos antes, pelos cientistas.
6
Neste item, as referências à cibercultura estão fundamentadas nas obras de Eugênio Trivinho. Tal conceituação
será de extrema importância no presente estudo para a análise do fenômeno da dependência do glocal.
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Esse fenômeno social tecnológico teve origem após a Segunda Guerra Mundial,
quando, frente à grande crise de valores, formou-se gradativamente o discurso da “sociedade da
informação” (já referenciada no item 2.2). A referida definição engloba as transformações
tecnológicas, culturais, sociais e comunicacionais ocorridas nessa época. Ela compreende
mudanças no âmbito da microeletrônica, que deram ensejo ao surgimento do computador e que
foram propulsoras da expansão da informação em âmbito mundial, concomitantemente aos
avanços na área das telecomunicações. Da conjunção de tecnologia, comunicação, mercado,
iniciativas estatais e empresariais, somada à difusão dos ideais da teoria cibernética de fins da
década de 40, no século XX, sobreveio uma aceleração contínua na produção e utilização de
bens e serviços informáticos. Tal dinâmica, em breve espaço de tempo, implicou em profundas
mudanças na sociedade e no cotidiano dos indivíduos.
As inovações tecnológicas surgidas, sobretudo a partir da emergência da
informática, foram se fazendo presente em vários âmbitos da sociedade. Tiveram ampla
aceitação na medicina, na biologia, na engenharia, na economia, na agricultura, nas artes e,
como não poderia deixar de ser, no campo da comunicação (TRIVINHO, 2001a, p. 57-58). É
este último que mais nos interessa no presente enfoque.
Aquilo a que se chamou de “revolução informática” afetou de modo historicamente
inédito a comunicação e os media em si. Houve amplo deslocamento dos meios de massa para
os meios de comunicação interativos. Na verdade, hoje, os media de massa precisam passar por
reconfigurações que tenham por base a matriz infotecnológica, a fim de garantir a sua
sobrevivência na cibercultura. A partir da cultura digital, surge um novo modelo
comunicacional. Nele, não há as figuras do emissor e do receptor, mas a fusão dos dois,
considerando que a comunicação interativa permite a flexibilização do envio e recepção da
mensagem simultaneamente. A partir dos media interativos, o campo da Comunicação precisou
reformular grande parte de seus conceitos e abordagens.
Trivinho teoriza sobre a cibercultura, não a restringindo somente a um aspecto, seja
ele cultural, econômico ou político, mas a apresenta como a própria forma de organização social
hodierna, de cujo fenômeno a comunicação e o desenvolvimento tecnológico são vetores
essenciais:
3. Dromocacia cibercultural
3.1. Dromologia
corrida, movimento, deslocamento. Paul Virilio, em seu trajeto teórico, utiliza-se deste conceito
para explicitar de que forma a velocidade se apresenta como chave de interpretação do processo
de desenvolvimento das sociedades. Assim, o progresso das sociedades é analisado pelo autor
em proporção ao desenvolvimento do “progresso dromológico”, isto é, a partir da velocidade
como vetor estrutural de organização societária.
Virilio mostra que a velocidade de deslocamento/circulação esteve sempre presente
nas revoluções, na conquista de territórios e vias marítimas, no domínio do espaço aéreo, na
dinâmica dos corpos automotivos, nas formas de domesticação dos “veículos metabólicos” (os
corpos das crianças, das mulheres, das pessoas de outras raças, dos proletários etc.) e, agora,
com toda a potência da velocidade da luz, nas vias comunicacionais. Em todas essas situações, a
velocidade vigorou como fator essencial nas estratégias políticas e militares de cada época, não
se excetuando, evidentemente, os dias de hoje. A esta conjunção entre sociedade organizada e
velocidade, Paul Virilio denominou dromocracia.
A partir deste ponto de vista, o autor traça excelente panorama dos tipos de meios de
transporte ao longo da história. Estes meios ganharam, gradativamente, aceleração e
aperfeiçoamentos técnicos. O autor considera, inclusive, os meios comunicacionais como
veículos – o “último veículo” (1993a) –, uma vez que apresentam “formas de deslocamento”
sem se sair do lugar.
Com a aceleração contínua dos novos “veículos” – sejam eles de transporte ou
comunicacionais –, houve gradual desaparecimento do território. A movimentação
experimentada nesse sentido, ao longo dos séculos, apresentou-se como uma fase inicial da
desterritorialização – hoje em dia tão comum no ciberespaço. Na época das grandes
navegações, por exemplo, o mar foi sendo cada vez mais conhecido e mapeado, o que
pulverizou as fronteiras entre os continentes, em virtude da maior capacidade dos transportes
marítimos. Posteriormente, com a invenção do avião, o território foi de tal forma dominado, que
não há mais barreiras para as aeronaves sempre mais velozes e sofisticadas.
Por tudo isso, as concepções de espaço e tempo são reconfiguradas a partir do
referencial de velocidade desses meios. Virilio (2000) afirma que até a viagem do homem à lua
permitiu ao ser humano ter outro referencial de percepção da própria Terra. Uma vez que se vê
a Terra reduzida a um ponto, a percepção do espaço teria sido transformada, a partir dessa nova
referência. Aqui, também, se verifica a “redução” do território.
Com a aceleração dos meios de transporte e telecomunicacionais, além da supressão
do espaço, surge igualmente o tempo real. Ele não pode ser comparado ao tempo das sociedades
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sociais que estariam divididas entre aqueles que são providos das condições necessárias para
acompanhar as aceleradas mudanças e aqueles que não se encontram nessas condições, seja
porque não possuem qualquer acesso a tecnologias, seja porque, quando o têm, é realizado por
meio de produtos tecnologicamente defasados. Trivinho afirma que tais diferenças no modo e
capacidade de acesso aos bens ciberculturais inauguram a “estratificação
sociodromocrática” (2007, p. 108-109), regida pelo capital da “mais-potência” e geradora de
segregação social. Neste novo estilo de riqueza, o que está em jogo é a velocidade de acesso,
velocidade de atualização, velocidade de capacitação para utilização das infotecnologias.
À vista dos aspectos apontados, pode-se perceber que a configuração
sociodromocrática da cibercultura promove e reforça a suposta necessidade de se viver
constantemente em conexão. A comunicação tem papel primordial nesta sociedade, pois
funciona como motor para a renovação da ordem sociodromocrática. Como referenciado
anteriormente no item 2.4 deste capítulo, verificou-se que a cibercultura é também um
fenômeno comunicacional. A constante prática informacional presente na atualidade está
estritamente ligada à necessidade de aparatos mais velozes e que proporcionem maior
conectividade.
Trivinho nos recorda que o princípio dromocrático obteve enorme expansão com a
emergência da comunicação em tempo real, que mudou profundamente as bases socioculturais
a partir da primeira metade do século XX (id., p. 62-63). Constatamos, assim, que dromocracia
cibercultural, comunicação e velocidade são fenômenos correlatos, que convivem imbricados,
no momento histórico atual.
No sentido de concluir o arco da explanação acerca da época cibercultural, no
capítulo seguinte serão dedicados alguns tópicos à abordagem do fenômeno glocal e do conceito
de habitus, que servirão de fundamentação para a análise da dependência do glocal. Os
conceitos anteriormente referenciados encontram sua aplicação concreta no contexto glocal.
Além disso, é nele que se dá, de fato, o relacionamento do ser humano com as tecnologias
digitais.
35
CAPÍTULO II
GLOCAL E HABITUS
36
1. Fenômeno glocal7
7
O desenvolvimento deste tópico está baseado nas obras de Eugênio Trivinho (2001b, 2007), nas quais o autor
formula a definição de glocal como categoria teórica para a crítica da civilização mediática.
37
ainda, ao glocal digital ou ciberespacial, que indica o glocal próprio da presente época. Trivinho
afirma que a “saga da comunicação instrumental a distância” é a saga planetária do próprio
glocal (2007, p. 245).
O fenômeno glocal é selo genuíno da civilização mediática, “capaz de diferi-la [...]
das outras fases sociotecnológicas” (ibid., p. 258). Ele está na base da existência dessa
civilização e da forma como ela se expressa e, por isso, configura-se como o “modo
predominante de irradiação sociossemiótica [...] e transmissão cultural na história
contemporânea” (ibid., p. 292-293).
O glocal é, assim, uma “invenção tecnocultural original da era das
telecomunicações”, embora tenha sido percebido com mais clareza no âmbito ciberespacial (cf.
TRIVINHO, 2007), devido ao fato de o contexto de acesso ao cyberspace8 envolver
acoplamento mais significativo do que em qualquer outro contexto glocal, tanto no que diz
respeito à indexação à “técnica eletronicamente objetalizada” (material) quanto ao
“acoplamento simbólico e imaginário” (imaterial) (ibid., p. 246). A cibercultura seria, assim, a
fase social-histórica mais avançada da civilização glocal, na qual se faz presente a convergência
dos vários meios de comunicação em um só, os “unimedia satelizados”, e conta com um
“desenvolvimento tecnológico integrado” (ibid., p. 287, grifo do autor).
Ao analisar a indexação existente entre global e local, proporcionada pela
glocalização, Trivinho afirma que é neste âmbito que o glocal se mostra como realmente é: um
“implante tecnológico”, que uma vez fixado no “reduto imediato de ação do corpo”, dá
sustentação para a “irradiação simbólica e imaginária” daquilo que é próprio da ordem global.
Com isso, percebe-se que a acepção do glocal ultrapassa o glocal técnico – que
supõe a conexão em tempo real –, e chega ao âmbito cultural e econômico. Este aspecto
configura o glocal em sentido lato.
8
O autor dá preferência à utilização do termo em língua inglesa por razões de “política da teoria”, ou seja, para
expressar a origem do conceito que remonta às tensões políticas e militares no período da Guerra-fria.
Permanece, assim, manifestada a relação que o conceito guarda com o campo bélico (TRIVINHO, 2007, p. 337).
39
Dessa forma, o espaço se converte num “bunker glocal” (ibid., p. 253). Trivinho
utiliza a metáfora do bunker para significar a infra-estrutura tecnológica estabelecida no campo
próprio de ação do sujeito para possibilitar o acesso e a troca glocais (ibid., p. 310). O bunker
(considerando a origem bélica do termo) não seria somente construção material, mas abrange o
imaginário social de necessidade de defesa em relação ao mundo fora do contexto glocal. É
sobretudo no bunker glocal interativo que se percebe esta configuração como uma espécie de
proteção e confinamento do “sujeito interativo”.
9
Bunker significa um reduto cavado no solo como proteção/defesa contra ataques inimigos em contextos de
guerra (ibid., 2007). Trivinho aponta Virilio como o primeiro autor a utilizar a metáfora do bunker nas ciências
humanas e sociais contemporâneas.
40
Não raro, os equipamentos envolvidos [...] são fixados de maneira tal que o
sujeito, assim tecnologicamente “rodeado”, como numa arquitetura mínima e
glacialmente rústica a lhe fazer cerco justamente para melhor resguardá-lo
de ameaças exógenas, vê-se realmente autocartografado numa redoma (em
geral, invisível ao si-próprio) cujo ponto capital (o seu lugar como sujeito
interativo) é, por assim dizer, percebido, ao mesmo tempo, como
relativamente sitiado por quem observa o cenário de fora. (TRIVINHO,
2007, p. 310).
Também a categoria do tempo sofre reconfiguração em sua representação. Torna-se
“um tempo tecnicamente produzido, o tempo da instantaneidade da luz, o tempo real”. Um
tempo que Virilio já havia detectado como o “tempo sem tempo” porque infinitesimal, gerado
pela velocidade da luz (ibid., p. 255-256).
O fenômeno glocal se traduz, assim, em uma cadeia de “anulações empíricas”,
quando espaço e tempo, por exemplo, são reduzidos a “puro fluxo”. Trivinho reforça, inclusive,
que a “interface” vigora como “vértice mediático-operacional entre o espaço destruído e o
tempo nulo” (ibid., p. 257).
Dentre as anulações empíricas forjadas pelo glocal, Trivinho nos recorda também a
dissolução dos conteúdos das informações e imagens que, a princípio, vigeram como motivo da
“invenção sociotecnológica” do glocal, em virtude da necessidade de multiplicação e
proliferação das mesmas. Porém, uma vez envolvidas na lógica de “hipercircularidade” própria
da ambiência do glocal, são absorvidas pelo fenômeno glocal. Por conseguinte, perdem muito
de sua força de expressão e reforçam o glocal como sendo a própria informação e a própria
imagem (ibid., p. 262-266).
Dessa forma, as informações e imagens não vigem mais como o principal valor de
troca na era mediática, mas antes como “uma espécie de energia básica do glocal, o seu
capital”, e contribuem para a sustentação do processo civilizatório do glocal (ibid., p. 265).
O glocal, segundo Trivinho, rege-se pela “lógica do objeto”10, isto é, significa que o
objeto passa a ocupar mais o centro da cena que o sujeito, o que registra o encontro da
civilização glocal com a descentralização em relação ao sujeito da condição pós-moderna.
Assim, o glocal atinge sua “consagração histórica” e seu desenvolvimento engloba um estilo de
vida baseado na “teleexistência”. A “existência em tempo real” permeia o processo de
glocalização da existência.
10
O autor utiliza o termo objeto em sentido lato para significar “[...] todo e qualquer ente formalmente
constituído [...] e todo e qualquer processo plena ou tendencialmente configurado”.
41
transmitida através das redes comunicacionais. Essa dinâmica faz parte do processo
dromológico inerente à cibercultura.
O glocal seria, assim, responsável pela indexação dos contextos locais ao “processo
de glocalização capilarizada do planeta” e que culmina no âmbito da experiência do ser,
envolvendo o corpo, o psiquismo e a existência (ibid., p. 262). Nesse sentido, Trivinho ressalta
que o processo de glocalização da existência seria a “forma de articulação sociocultural e
transpolítica da experiência humana correspondente a uma época marcada por redes
comunicacionais, em especial o cyberspace” (ibid., p. 295). Na atualidade, a existência em
tempo real é amplamente propagada fazendo com que a “condição glocal bidirecional” seja a
experiência de mundo mais difundida e aceita (ibid., p. 269).
A “glocalização da experiência” faz referência ao modo como se dá, concretamente,
a glocalização da existência. Para Trivinho, a vida humana está passando por uma “reescritura
mediática absoluta", considerando que a utilização crescente de tecnologias capazes de rede
engendra uma reestruturação dos processos sociais, políticos, econômicos e culturais, a partir do
contexto glocal. O estilo de vida na atualidade, por conseguinte, é fortemente marcado pelas
experiências apreendidas nas práticas glocais.
[...] não é senão através do fenômeno glocal e das práticas glocais que se
realiza a reprodução social-histórica da civilização mediática, em especial
no que isso agora concerne ao seu braço mais avançado, o cyberspace; é
através do glocal que se aprofunda e se sofistica cada vez mais o modelo
comunicacional-publicitário de mundo, de vida e de ser. (TRIVINHO,
2007, p. 274).
11
Os autores recordam que o conceito de hábito foi, também, tratado por Tomás de Aquino, exegeta de
Aristóteles, para o qual o hábito seria um mediador entre “a possibilidade do conhecimento e sua efetivação”. O
hábito seria, assim, mediação entre potência e ato. Outro autor que abordou este conceito foi Wittgenstein, uma
das fontes filósóficas de Bourdieu. Em sua concepção, o hábito estaria vinculado a um repertório cognitivo, que
uma vez incorporado passa a gerar estruturas lógicas para percepção e compreensão da realidade. (BARROS
FILHO; MARTINO, 2003, p. 66-67).
44
fixadas a priori, mas que, posteriormente, no embate das forças concorrenciais entre os vários
atores do respectivo campo, adquirem novas posições.
A teoria da prática, erigida por Bourdieu, está fundamentada no conhecimento
praxiológico, que considera tanto as estruturas objetivas do mundo social, as disposições
estruturadas nas quais elas se atualizam, bem como as “relações dialéticas” entre ambas. De
fato, considera tanto as “necessidades dos agentes” (regidas por “sistemas de disposições
duráveis”, ou seja, o habitus) quanto a “objetividade da sociedade” (ORTIZ, 1983, p. 19). Com
efeito, Bourdieu buscou a superação, no âmbito da teoria social, tanto da perspectiva
fenomenológica, que parte da experiência do indivíduo, quanto da perspectiva objetivista, que
parte das relações objetivas que estruturam as práticas individuais (ibid., p. 8), e chegou à
seguinte definição de habitus:
Neste ponto, pode-se retomar a reflexão de Barros Filho e Martino (2003, p. 62-63),
que frisam a limitação na capacidade de atribuição de sentido em virtude do habitus, que estará
sempre condicionada pelas experiências anteriores do indivíduo. A “exposição sensorial a um
determinado recorte da realidade” prevê esta dimensão limitante do habitus, uma vez que
haverá “caráter seletivo” no contato entre o sujeito e qualquer realidade. Uma vez que o hábito
aristotélico na práxis do cidadão comum, como na práxis científica, é experienciado
45
“a mediação universalizante que faz com que as práticas sem razão explícita
e sem intenção significante de um agente singular sejam, no entanto,
“sensatas”, “razoáveis” e objetivamente orquestradas. (BOURDIEU, 1983,
p. 73).
46
exemplo, o capital simbólico na comunicação mediática como visão de mundo, como forma de
representação da realidade.
O capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de capital, físico,
econômico, cultural, social), percebida pelos agentes sociais cujas categorias de percepção são
tais que eles podem percebê-las, entendê-las e reconhecê-las, atribuindo-lhes valor
(BOURDIEU, 2007, p. 107).
Uma vez abordado satisfatoriamente o conceito de habitus na teoria da ação de
Bourdieu, resta averiguar em quais aspectos este conceito poderia auxiliar na análise da
intersecção entre habitus e fenômeno glocal. A apreensão das características do habitus em
Bourdieu permite captar suas confluências com o habitus glocalizado, conforme explanação a
seguir.
padronizados (sobre outra matriz: a digital), que faz parecer até “decepcionantes” os efeitos que
não utilizem as novas tecnologias.
Os habitus glocalizados se inserem no cotidiano dos indivíduos e são internalizados
na mente (para não dizer no corpo) e objetivados em sociedade. Ocorre, assim, gradativamente,
uma espécie de “exposição seletiva” por parte do indivíduo, na qual as mensagens que não se
coadunem ao novo habitus vão sendo deixadas de lado. Como na civilização mediática, o
sujeito está exposto contínua e seletivamente às mensagens mediáticas, esses habitus
engendrados a partir dessa exposição influem no “processo de construção de representação do
mundo” (BOURDIEU, 1983; BARROS FILHO e MARTINO, 2003), que passa a ser mapeado,
visualizado e percebido através da via mediática.
O habitus, para Bourdieu (1983, p. 76), perfaz-se como produtor de história. No
âmbito do habitus glocalizado, não é bem o que ocorre. Na verdade, o habitus glocalizado é
repetição de si, expressa na e para a sociedade como um todo em desdobramento contínuo. Vê-
se pressuposta a característica de “hipercircularidade” do glocal, como algo que se reitera para a
própria sobrevivência (TRIVINHO, 2007, p. 262-266). Assim, o habitus glocalizado é
perpetuação de si mesmo.
Esta breve análise do habitus glocalizado servirá de base para a reflexão no âmbito
mais específico da cibercultura e na inter-relação do habitus do glocal com o fenômeno da
dependência.
51
CAPÍTULO III
DEPENDÊNCIA DO GLOCAL
NA CIBERCULTURA
52
Quase nada é feito sem a utilização de máquinas. O pensar que se pode fazer
algo sem ela se com eficácia e sucesso tornou-se idílico.[...] Essa condição
revela, no início do século mais cientificamente avançado, a extrema
dependência do ente humano em relação à máquina. (TRIVINHO, 2001a, p.
82).
eletrodoméstico que não se pode deixar de utilizar, não é da mesma ordem da adesão a um
programa televisivo que passa a fazer parte da vida cultural de um indivíduo, ou à facilidade de
consulta a sites de busca regularmente acessados, que determinam a precisão e a agilidade de
obtenção de informações. No segundo caso, a dependência é bem mais profunda, implicando
um objeto abstrato que, à medida do uso, é internalizado como habitus.
A dependência, como fruto do habitus glocalizado, é adquirida no processo de
reprodução dos sistemas de disposições glocais, interiorizadas e objetivadas a partir dos
diversos contextos glocais. A dependência do glocal deve sua natureza, igualmente, à própria
dinâmica da civilização mediática, fincada no ponto de “não-retorno”. Ela se alimenta do
excesso produzido pelo fenômeno glocal. Por isso mesmo, a repetição é fator primordial de seu
engendramento.
Baudrillard (1996), em sua análise sobre a obesidade como metáfora da sociedade
do excesso, afirma que a redundância gera uma sociabilidade saturada e vazia. Sua lógica seria
a da potencialização, “da elevação aos extremos na ausência de uma regra do jogo” (p. 23-31).
Pode-se concluir que a dependência vige como parte do processo de saturação mediática. Ela é
motor para a reiteração de ações no contexto glocal rumo ao excesso. Quanto mais se acessa o
glocal, maior ainda a “necessidade” de utilizá-lo, de tê-lo disponível para si.
Na abordagem à natureza da dependência do glocal, vale suscitar a devida tensão em
relação ao aspecto do vício. Parece óbvio o fato de que uma dependência, no uso habitual deste
conceito, está relacionada diretamente ao vício. Entretanto, quando se trata de utilizar a
conceituação em relação ao glocal, o que era óbvio, torna-se obliterado. Por exemplo, quando
um produto considerado ilícito é objeto de dependência, geralmente existe um dispositivo legal
que estabelece sua utilização como criminosa. Com isso, aplicam-se penalidades ao indivíduo
que cometer a infração de utilizá-lo. Na dependência do glocal, o objeto ao qual se encontra
atrelada não é ilícito. Pelo contrário, o glocal é fenômeno amplamente aceito e celebrado. Em
conseqüência, não há norma legal que o proíba, nem penalidades para o indivíduo que
(constantemente) faça uso dele, sendo bem maior a possibilidade de serem criadas leis que
estimulem o acesso ao glocal, que em sentido contrário. Com isso, a dependência do glocal
recebe aprovação coletiva, com efêmeras manifestações a seu desfavor, mas que não chegam a
desfazer a aura do glocal como objeto desejado e necessário à vida cotidiana. A aceitação
oblitera a dependência e tem o efeito de apagar da mente das pessoas o caráter de dependência,
que sai da esfera de percepção dos indivíduos. O esquecimento fica evidente, especialmente,
quando as pessoas nem sequer se questionam quando buscam prioritariamente o acesso glocal.
56
12
Neste ponto, vale a referência a Baudrillard (op. cit., p. 23-31), que indica o “esvaziamento dialético” como
proveniente da redundância mediática.
13
Notas de aula do dia 05/07/2007, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da
PUC-SP.
57
acesso à Internet, cujos equipamentos deixem de funcionar por alguns instantes (o que se dirá se
perdurar por alguns dias). O fato é quase uma afronta a um “ser teleinteragente” (para usar a
expressão de Trivinho), que todo mês salda a mensalidade junto a seu provedor para ter a
garantia do precioso acesso. Também o fato de um usuário acessar sua caixa de entrada do
endereço eletrônico, à espera do recebimento de e-mail’s, e se deparar com a caixa vazia, já se
configura como motivo de estranhamento para aquele indivíduo. É algo que se precisava ter
naquele momento e não em outro. O imediatismo é próprio dos dias atuais no acesso
glocalizado.
A ansiedade e/ou frustação, causada(s) pelo fato de não se poder ter acesso ao glocal
interativo, demonstra que se apresenta uma necessidade inconsciente de estar conectado. Este
aspecto faz parte do que Trivinho nomeia como “desejo do glocal” que, ainda que não esteja
presente o glocal tecnológico – a base operacional formada pelo aparato tecnológico capaz de
rede e a transmissão em tempo real –, já se vislumbra a possibilidade de possuí-lo.
Inconscientemente – ou conscientemente –, pretende-se estar glocalizado. O desejo do glocal,
portanto, é um sinal de dependência.
Se no âmbito particular, o transtorno é profundamente vivido, quanto mais no
âmbito corporativo das grandes empresas e instituições, que dependem estritamente do
funcionamento de seus sistemas e banco de dados em perfeito estado. O drama, seguramente,
repercute em larga escala, além de ser coletivo.
Com efeito, constata-se que a dependência do glocal é evidenciada claramente nas
diversas situações citadas, ou seja, em diferentes âmbitos, em setor privado ou público, em nível
individual ou social, com tecnologia glocal ou não. E, sobretudo, na era cibercultural, está
ligada estritamente à falta das senhas infotécnicas, que são causa também de drama marcante.
No entanto, esta relação será especificada posteriormente para dar lugar, na seqüência, à
reflexão acerca dos elementos que favorecem a dependência.
Uma vez delineada a natureza da dependência do glocal, serão analisados neste item
os fatores que contribuem para a ocorrência de tal fenômeno. Destacam-se aqueles que se
considera de maior importância e que estão na base de outros elementos que também
influenciem nesse panorama.
Faz-se necessário retomar, sucintamente, a contextualização do capítulo I referente à
pós-modernidade e ao fenômeno comunicacional, uma vez que suas características são
primordiais para a consolidação da dependência do glocal.
58
Vale frisar, ainda, que a reflexão acerca da imagem se encontra baseada em Vilém
Flusser, em virtude da concisa, mas abrangente, releitura acerca da imagem que o autor
inaugurou em sua “filosofia da fotografia”. Esta confere os pontos necessários para a
compreensão da importância do imagético na sociedade tecnológica.
b) A era da imagem
14
Significa a rede World Wide Web em toda sua “extensão virtual”.
60
15
Utiliza-se o próprio glossário que Flusser construiu para a “Filosofia da fotografia”. “Imagem técnica: imagem
produzida por aparelho”; “Aparelho: brinquedo que simula um tipo de pensamento” (FLUSSER, 2002, p.
77-78). Esclarece-se que o sentido dado ao conceito de aparelho, por Flusser, faz referência a todo equipamento
capaz de produzir imagem e, assim, refletir uma visão de mundo através dessa imagem.
16
“Brinquedo: objeto para jogar”. (ibid., p. 77).
17
“Funcionário: pessoa que brinca com aparelho e age em função dele”. (ibid.).
18
“Jogo: “atividade que tem fim em si mesma”. (ibid., p. 78).
19
Para Huizinga (2001), por exemplo, na sua definição do homo ludens, o jogo é considerado fenômeno cultural,
como fator fundamental para o surgimento e desenvolvimento da civilização.
61
essa união não só salvou a televisão de ser posta um dia de lado em relação ao aparelho
interativo, mas aprofundou ainda mais seu caráter de entretenimento.
Percebe-se, assim, o quanto a imagem técnica é chave de compreensão do próprio
fenômeno glocal, que teve grande parte de sua inserção na civilização humana pelo prisma do
imagético. Afinal, foi a imagem técnica que perdurou ao longo do século XX, forjando a
sociedade pós-moderna e aprofundando o fenômeno comunicacional. De fato, foi a imagem que
prendeu a atenção de milhares de pessoas, sobretudo após a II Guerra Mundial, quando os
aparelhos de televisão foram sendo inseridos, paulatinamente, nos lares. Enfim, foi a imagem
técnica que contribuiu na difusão dos ideais da propaganda de globalização socioeconômica e
cultural. Assim, imagem técnica e glocal se fundem em uma só coisa. O glocal não sobrevive
sem a imagem técnica. A imagem técnica necessita do fenômeno glocal para reproduzir-se ad
infinitum (TRIVINHO, 2007, p. 262). Nesta inter-relação estão comprometidos vários, senão
todos, seguimentos da civilização mediática, uma vez que a imagem técnica e o glocal
engendram a maioria das práticas hodiernas.
Dessa forma, a dependência do glocal está estritamente ligada à imagem técnica, em
virtude de sua fluidez, luminosidade e virtualidade (no caso da fotografia, a imagem pode ser
materializada). Tais qualidades fazem da imagem técnica objeto de atenção de qualquer
indivíduo. A imagem, técnica ou não, por si só capta a atenção. No caso da imagem técnica, a
atração aumenta consideravelmente. De fato, o processo de dependência se descortina e se
aprofunda à medida que o sujeito se expõe (ou é exposto) às imagens técnicas. A habitualidade
da exposição do indivíduo às imagens é capaz de fazê-lo pensar imageticamente. A imagem
técnica, pela repetição, reforça a interiorização de padrões imagéticos aos quais o sujeito já foi
exposto em sua “trajetória particular” (para lembrar Bourdieu).
A dependência produzida pelo imagético pode ser constatada em vários casos, não
só patológicos, de videodependência. Pode-se chamar também de iconodependência, ou ainda,
tecnoiconodependência, para se aproximar mais da esfera da imagem técnica. Essa dependência
é também estrutural. A imagem técnica se torna imprescindível à civilização mediática para que
esta se organize e se articule glocalmente (TRIVINHO, 2007, p. 251). O que seria da
propaganda sem a imagem técnica, por exemplo? E do marketing? O mercado teria sério
processo de “desaparição” (no que tange à “visibilidade mediática”) sem as imagens. Evidente,
portanto, que imagem e dependência do glocal caminham juntas. A dependência se alimenta da
cultura da imagem, engendra o social pelo imagético e forja a história da própria imagem
técnica, que se realiza como história de dependência do glocal.
62
As características tratadas neste item foram um pouco mais restritas aos glocais
produtores de imagem técnica, como é o caso dos glocais audiovisuais. Nos dois itens
seguintes, é necessário frisar, que os fatores abordados dirão respeito, mais especificamente, aos
glocais interativos, uma vez que já abarcam, em grande parte, os glocais da cultura de massa.
21
Pesquisa de Ana L. C. Bazzan, sob o título Traffic as a Complex System: Four Challenges for Computer
Science and Engineering, apresentado no Seminário Integrado de Software e Hardware, no XXVII Congresso da
Sociedade Brasileira de Computação - SBC 2007, ocorrido de 30 de junho a 6 de julho de 2007, na cidade do
Rio de Janeiro.
22
Pesquisa de Leila Ribeiro, sob o título “Os Desafios da Computação Biológica”, apresentado também por
ocasião do evento acima citado.
23
Pesquisa de Antônio Carlos da Rocha Costa e Graçaliz Pereira Dimuro, sob o título On the Notion of
Developmental Computing Machine, apresentado na mesma ocasião.
65
Neste aspecto, a dependência se mostra como mero habitus, como simples relação
entre ser humano e aparato capaz de tempo real, o que garante que o indivíduo volte a atuar no
contexto glocal, por necessidade ou não. O fenômeno glocal necessita da dependência na
modalidade de habitus aceito para a perpetuação da civilização mediática.
É sob este prisma que se vislumbra a dependência como sendo a própria relação
entre ser humano e máquina. Ela se torna objetivamente regular, ainda que não seja “produto da
obediência a regras” (para lembrar Bourdieu). Aliás, ela mesma é a regra. Na civilização atual,
ou o ser humano é dependente do glocal digital ou não é cibercidadão. A ação do indivíduo está
orientada por esse habitus de dependência, sem “intenção consciente”24 de sua parte.
24
As expressões estão em grifo para recordar que constam na definição de habitus da teoria social de Bourdieu
(1983, p. 61).
66
À primeira vista, pode parecer que somente aqueles que mantém contato direto com
a ambiência glocal seriam por ela afetados. Entretanto, é importante frisar que a dependência
acontece com ou sem a anuência do ser interagente, pois o habitus glocalizado traz inscritas em
si as exigências da “condição glocal”. Esta, por ser espírito de época, atinge o indivíduo ainda
que ele não faça utilização (ou quase não faça) do glocal tecnológico propriamente dito. Na
verdade, o sujeito está envolvido pela mentalidade glocal, de que nos fala Trivinho (2007). Há,
igualmente, o desejo do glocal que impulsiona a realizar as práticas da civilização mediática,
amplamente celebradas e, por isso, culturalmente conservadoras.
25
A diferenciação entre vício e hábito está baseada no autor Oliver Egger, cujo estudo sobre comportamento na
Internet é citado na pesquisa de Oliver Zancul Prado, entitulada “Pesquisa Internet e Comportamento – Um
estudo Exploratório sobre as características de uso da Internet, uso patológico e sobre a pesquisa on-line”,
disponível em: http://www.netpesquisa.com.
26
A palavra estruturação é considerada no sentido tomado por Bourdieu, que traz toda a dinamicidade
característica do habitus, que é disposição estruturada e estruturante que se internaliza sem a necessária
conscientização do sujeito. Estas disposições são abertas a uma infinidade de possibilidades de produção de
outros habitus, em virtude dos “esquemas generativos” a que o sujeito submete as práticas já incorporadas.
Considerando-se a “exposição seletiva” a que ele se expõe com base em habitus internalizados primariamente.
67
Neste ínterim, cabe lembrar que, ainda que a pessoa nem sequer deseje estar inserido
no processo de glocalização, a dependência acontece em virtude da compulsoriedade
característica do estilo de organização societária que é a cibercultura, como citado no item 1.2
deste capítulo.
Nas três características acima indicadas, pode-se constatar sempre a dependência
como relação entre o ser interagente e o glocal. Inclusive no processo de gestação do habitus,
pode-se admitir que surgem vários níveis de dependência. Entretanto, não é foco deste estudo
pontuar distinções no que toca ao tipo de relação de dependência, uma vez que se tratariam de
questões empíricas e seriam requeridas análises também dessa natureza. Porém, isso não
impede que se constate uma classificação desses níveis de dependência relacionada tanto à
espécie de glocal envolvido (telefônico, televisivo, interativo etc), quanto ao nível de estruturas
já internalizadas pelo sujeito na ação glocalizada, mas levando sempre em consideração a
dependência como fenômeno sociocultural.
Vale ressaltar que a dependência de uso patológico da tecnologia é de outra
natureza. Ela, ao contrário da dependência do glocal, é reconhecida como negativa e pode estar
relacionada também ao vício. É bem verdade que a dependência de uso patológico da Internet,
por exemplo, inicia como dependência do glocal. Porém, é preciso registrar a mudança da
natureza da dependência nesse processo de migração de um tipo de dependência para o outro,
pois não se pode aplicar a mesma análise a ambos.
Em face do panorama apresentado neste item acerca do aspecto de relação da
dependência, podem ser apontadas três formas de mediação inerentes ao fenômeno da
dependência do glocal: em primeiro lugar, o habitus glocalizado é mediação do processo de
dependência, isto é, em se realizando o habitus glocalizado, engendra-se simultaneamente a
relação de dependência; segundo, a dependência consta como mediação da relação humano-
máquina, sendo ela própria, como relação, a manter a assiduidade do sujeito ao ambiente glocal,
ainda que não desejada; terceiro, a dependência é mediação na estruturação sociodromocrática
da cibercultura, ou seja, o processo de dependência atua como elemento de conservação da
lógica estrutural na cibercultura.
Esta última forma de mediação da dependência será objeto de detalhamento no
tópico seguinte, visando constatar sua inter-relação com o sistema dromocrático cibercultural.
Programa é destinado a estudantes que não possuam condições de arcar com o ensino em
Faculdades particulares. Entretanto, a inscrição só pode ser efetivada via Internet e não de outra
forma, o que, obviamente, obrigará estes mesmos estudantes a acessarem o glocal interativo
para efetuarem suas inscrições.
Interessante, também, as muitas faculdades, universidades e escolas que já
estabelecem aos alunos a realização de tarefas escolares por via do glocal digital. Aqueles
alunos que, por algum motivo, não possam ter acesso ao glocal ou, que o fazendo, não possuam
o “domínio pleno” das senhas infotécnicas de acesso à cibercultura, terão possíveis dificuldades
e, talvez, graves resultados para seu desempenho escolar.
Os Bancos são exemplo claro de instituições que não sobrevivem mais sem a
infotecnologia. Seria impensável o fato de um Banco ter problemas em seus servidores de
Banco de Dados ou em algum aplicativo necessário ao funcionamento de suas transações. Com
efeito, percebe-se que a dependência do glocal tem um caráter institucional. O Banco não mais
funcionará sem o glocal, sem o tempo real. Outro exemplo a que se pode referir neste contexto,
é o caso de uma pane ocorrida no sistema de uma empresa do Estado de São Paulo, responsável
por 68% das conexões à Internet, em 3 julho de 2008, que afetou diretamente o funcionamento
de todos os provedores que delas dependem, causando grandes transtornos aos usuários.28
A dependência, também sociotécnica, que surge em contextos como esses,
configura-se como transpolítica precisamente pelo fato de não depender das instituições para ser
plasmada, para tomar forma. Pelo contrário, as instituições é que necessitam se revestir do
glocal para ser parte da cibercultura. E a dependência do glocal vige, assim, como motor de
estruturação tecnológica (aqui implícito o seu caráter mediador) para cada ente institucional.
Na esteira da dependência em seu viés transpolítico, vislumbra-se a necessidade de
acompanhamento das mudanças tecnológicas vigentes na civilização cibercultural. É a “lógica
da reciclagem estrutural”, de que nos fala Trivinho, que direciona o “gerenciamento infotécnico
da existência” das atualizações informáticas que regem o habitus do indivíduo. Este habitus
tenderá a ser o de possuir as senhas infotécnicas de acesso à cibercultura. O indivíduo buscará
adquirir para si o aparato infotecnológico que represente um continuum de potencialidade glocal
interativa. Responderá, dessa forma, ao progresso dromológico próprio da cibercultura, regido
pela “mais potência” (TRIVINHO, 2001a., 2007).
28
Para detalhes, acessar: http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u419105.shtml ou
http://www.estadao.com.br/cidades/not_cid200088,0.htm.
70
dinâmica. Para muitos, são imprescindíveis as relações criadas através desses estilos
glocalizados de vida, ainda que não se conheça pessoalmente o interlocutor com quem se troca
experiências. Aliás, no ciberespaço, confere-se grande importância à possibilidade de se poder
permanecer, se assim se desejar, no anonimato.
No ambiente das salas de bate papo, muitos dos elementos que compõem,
segundo Goffman (1995), as interações sociais, estão suprimidos, tais como
a visão dos gestos, da expressão facial do ator etc. Os elementos
expressivos não controláveis ficam praticamente excluídos e pouco da
fachada pessoal realmente fica exposta durante o encontro entre as pessoas.
(LOPES in FARAH, 2004, 133-141).
29
Para detalhes, acessar www.transhumanism.org/index.php/WTA/more/207/.
72
pode ser envolvida pelo habitus glocalizado em qualquer situação, mesmo nas utilizações mais
comuns da tecnologia glocal.
No caso do bunker glocal, por exemplo, a tendência do indivíduo é passar a
perceber, no campo imediato de ação, prioritariamente o entorno tecnológico, aquilo que lhe dá
acesso ao glocal, como no caso de uma criança que, entretida em frente a uma tela de
computador, atende sua irmã – que lhe chama – somente quando ela (a irmã) utiliza a telefonia
celular para entrar em contato.30 Tal é a atenção que o humano dispensa ao ambiente
mediatizado, a ponto de não perceber seu entorno imediato, mas seu entorno mediado.
Nesse contexto cibercultural, o processo de bunkerização glocal vigora como
resposta ao desejo do acesso glocal, à necessidade premente de se estar conectado ao glocal, sob
qualquer motivo (dos mais justificados aos mais banais possíveis). A bunkerização glocal, ou
seja, a construção do reduto glocal, da “fortificação” glocal, já é resultado do fenômeno da
dependência estrutural que acontece na cibercultura. É necessário construir a “fortaleza”
tecnológica glocalizada, na qual possa acontecer o contato com o glocal ciberespacial. O
“acesso ao mundo inteiro” acontece neste contato. Assim, quer queira o indivíduo quer não, ele
precisará/é impelido a montar para si o bunker glocal.
Podemos constatar esta dependência, igualmente, na massiva aquisição de
tecnologias digitais por parte dos indivíduos/instituições – atitude que, obviamente, está
justificada em nome da praticidade e agilidade – e que prevê a implantação dos contextos
glocais necessários às transações da atualidade. Viver glocalmente significa viver
dromologicamente. Sem a tecnologia capaz de tempo real não há velocidade adequada para se
viver na dromocracia cibercultural. Por isso mesmo, em virtude da corrida (dromos) à
bunkerização glocal, há uma excessiva produção de “habitus de aquisição” de dispositivos
digitais de última geração, que permitam uma conexão glocal potencializada. É a relação de
dependência expressa na necessidade da velocidade para se viver ciberculturalmente.
Por oportuno, seria interessante fazer novamente referência ao que Virilio nos diz
sobre o conceito de inércia, porque está estritamente relacionado ao conceito de velocidade. A
vertiginosa aceleração em todos os âmbitos da experiência humana, sobretudo no que se refere
à utilização das tecnologias comunicacionais, impõe ao ser humano, paradoxalmente, a
“sedenterização terminal” (conforme expressão de Virilio, já referenciada no item 3.1 no
30
Exemplo citado no painel da profª. Maria Cristina Franco Ferraz (UFF), com o título “O estatuto da imagem
no século XIX: por uma genealogia da cibercultura contemporânea”, no I Simpósio Nacional de Pesquisadores
em Comunicação e Cibercultura, ocorrido no período de 25 a 29 de setembro de 2006, na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
73
capítulo I). O autor enfatiza que o ser sedentário é aquele para quem não prevalece o trajeto,
mas sim o sujeito e o objeto, e o seu movimento seria em direção à inércia.
Historicamente nos encontramos portanto diante de uma espécie de divisão
do conhecimento do “ser no mundo”: de um lado, o nômade das origens,
para quem predomina o trajeto, a trajetória do ser; de outro, o sedentário,
para quem prevalece o sujeito e o objeto, movimento em direção ao imóvel,
ao inerte, que caracteriza o “civil” sedentário e urbano, em oposição ao
“guerreiro” nômade. Movimento este que se amplifica hoje diante das
tecnologias de telecomando e telepresença à distância, para alcançar em
breve um estado de sedentariedade última, em que o controle do meio
ambiente em tempo real prevalecerá sobre a organização do espaço real do
território. (VIRILIO, 1993b, p. 108, grifo do autor).
32
Para detalhes, acessar os sites http://superpink.com/interface/index.php?itemid=41 e http://www.htmlstaff.org/
ver.php?id=207.
75
tempo em que uma roupa servir para vestir o usuário, servirá também para conectá-lo ao
ciberespaço.
O corpo tecnologicamente vestido, fruto da dependência do glocal cibercultural, soa
como resposta ao crescente contexto de expurgo do qual o corpo humano é objeto, em virtude
das experiências virtuais. Le Breton chama atenção para o fato de que:
É como se o corpo humano, para não se tornar obsoleto, como já prenunciado por Le
Breton (2003) e Sibilia (2002), precisasse ser potencializado pela tecnologia para se
salvaguardar da obsolescência. Ainda que de certa forma velada, a cultura de rejeição do corpo
humano passa por práticas muito simples que vêm tomando lugar há algumas décadas, como a
excessiva preocupação estética com o corpo no sentido de “corrigi-lo”. A concepção da “saúde
perfeita”, de que trata Sfez (1996), traz indícios de uma cultura pautada no aperfeiçoamento do
humano pela via da tecnologia. Essa linha de pensamento e a práxis dela decorrente adquirem
grande aprofundamento com as experiências virtuais, que alimentam ainda mais o imaginário
do ser perfeito.
Com base nos argumentos tecidos neste item, torna-se óbvio que a dependência do
glocal interativo contribui, como elemento sociocultural, para a manutenção do estilo de vida
cibercultural. Ela reitera as práticas glocais ocorridas no ciberespaço. A construção do habitus
glocalizado é ensejada pela relação de dependência do humano em função do glocal e ao
mesmo tempo, ela (dependência) é reforçada pela objetivação dos habitus já internalizados.
Vislumbra-se que a dependência que se perfaz a partir do habitus do glocal é
condição sine qua non para manutenção do regime dromocrático na cibercultura. Ela perpetua a
estrutura dromológica presente na era tecnológica, reproduzindo as estruturas objetivas da
dromocracia cibercultural, das quais ela mesma é, paradoxalmente, produto.33 Enquanto relação
compulsória entre humano e glocal interativo, a dependência é também fator de estruturação da
lógica da reciclagem estrutural. Ela contribui para a reiteração da necessidade das senhas
infotécnicas e para o reforço das neo-utopias ciberculturais. A civilização tecnológica toma
33
Referência ao conceito de habitus, que reproduz as estruturas objetivas dos sistemas que lhes deram ensejo
(BOURDIEU, 1983, p. 61).
76
CONCLUSÃO
78
REFERÊNCIAS
1. Livros e artigos
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