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O Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) e sua


função na hegemonia capitalista

01/2011

EDA 5032-1-3 Antonio Gramsci: a Educação Como Hegemonia

Profa. Dra. Carmen Sylvia V. Moraes

Auno: João Alves Pacheco

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

j.pacheco@terra.com.br
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O Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) e sua função na hegemonia


capitalista.

O tema desse trabalho é o Exame Nacional do Ensino Médio, política


pública implantada pelo Ministério da Educação no Brasil em 1998, que nos
propomos analisar sob a ótica de alguns conceitos elaborados pelo marxista
sardo Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere. Focaremos
particularmente as noções de hegemonia e as relações entre sociedade civil e
sociedade política.
Para encetar nossa análise, explicitaremos os conceitos de hegemonia,
sociedade civil, sociedade política. Em seguida, apresentaremos um breve
histórico sobre os sistemas nacionais de avaliação e resgataremos, por meio
de excertos de documentos, as funções e objetivos do Exame Nacional do
Ensino Médio - ENEM.
Iniciaremos pela leitura gramsciana da análise de Marx da relação entre
estrutura e superestrutura, também chamada de metáfora do edifício, na qual a
estrutura é a base econômica da sociedade, que condiciona a superestrutura,
constituída pelas formas do Estado e pela consciência social. Essa noção é
obtida no Prefácio (1859) à Contribuição para a crítica da Economia Política
(MARX s.d. apud MAGRONE, 2006, p. 356), que afirma:
Na produção social da sua vida os homens estabelecem determinadas
relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção
que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas
forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a
estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue a
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas
da consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o
processo da vida social, política e intelectual em geral.

Dore (2006) afirma que Marx atribui à estrutura econômica um papel


predominante, muito embora isso não se traduza numa relação mecânica entre
a base e a superestrutura. Gramsci (2001a apud Magrone, 2006, p. 356)
compreendia essas relações de outra forma, pois embora concebesse o
momento estrutural como o determinante, ampliou consideravelmente o
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conceito de superestrutura. Além disso, atribuiu aos fenômenos


superestruturais um papel decisivo para a compreensão do desenvolvimento
do capitalismo em países da Europa ocidental.
Um dos méritos da proposta gramsciana reside justamente na sua leitura
dialética dos momentos estrutural e superestrutural, compreendendo-os como
insolúveis racional ou metodologicamente. Sua proposta foi a de uma solução
histórica, ou seja, matéria e espírito, teoria e prática, sujeito e objeto se
unificam no processo histórico. Esse processo constitui o bloco histórico, no
qual a estrutura (economia) e superestrutura (ideologia) se relacionam
dialeticamente.
Segundo Portelli (1977), Gramsci distinguiu as seguintes esferas
essenciais na superestrutura do bloco histórico:

a) Sociedade Civil: definida como a direção intelectual e moral de um grupo


social. Caracterizá-a como “o conjunto dos organismos, vulgarmente
ditos privados, que correspondem à função de hegemonia que o grupo
dominante exerce em toda a sociedade” (PORTELLI, 1977, p. 22). E
conforme esse autor, esta deve ser considerada sob os seguintes
aspectos:

• Ideologia da classe dirigente, o que inclui arte, ciência, economia,


direito, etc.;
• Concepção de mundo – disseminada nas várias camadas sociais,
como forma de vínculo à classe dirigente. Em função desse
caráter eclético, se expressa nas seguintes formas qualitativas:
filosofia, religião, senso comum, folclore;
• Direção ideológica da sociedade para a qual é possível discernir
os seguintes elementos: a ideologia propriamente dita, as
organizações que a criam e difundem e os instrumentos técnicos
de difusão da ideologia, dentre os quais destacam-se o sistema
escolar, mass media, bibliotecas,etc..
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b) Sociedade Política: seria o oposto da sociedade civil e para a qual


PORTELLI (1977, p. 30) afirma que nos Quaderni podem ser
encontradas várias definições, dentre as quais destacamos:

• “Sociedade política ou Estado, que corresponde à (função de)


“dominação direta” ou de comando que se exprime no Estado ou
governo jurídico”;

Essa esfera congrega as atividades da superestrutura que


correspondem à função de coerção. Sua finalidade básica é a manutenção,
pela força, do status quo. Mas não se trata apenas do domínio policial ou
militar, mas também do governo jurídico, a força “legal”. É portanto, uma
concepção de coerção abrangente, cujo grau varia de acordo com as situações
nas quais é aplicada, das quais Gramsci distingue as seguintes:

• Controle de grupos sociais das classes subalternas que não


“consentem” na direção hegemônica da classe fundamental
(burguesia). A dominação é mantida por meio de dispositivos
legais, tal como a proibição de uma greve por um tribunal ou sua
restrição por uma multa pecuniária;

• Crise orgânica na qual a classe dirigente perde o controle da


sociedade civil e apóia-se na sociedade política para manter sua
dominação. Um exemplo disso pode ser uma insurreição popular.

Evidencia-se nas situações mencionadas que a sociedade política é


suportada pelo aparelho de Estado. No entanto Gramsci alerta que não se
deve confundir a concepção de sociedade política com o Estado, ou seja,
sociedade política e sociedade civil são noções funcionais e não podem ser
materializadas em organizações superestruturais, como veremos mais adiante
em nossa análise do ENEM. Esquematicamente, poderíamos representar os
conceitos gramscianos da seguinte forma:
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BLOCO HISTÓRICO

SOCIEDADE SOCIEDADE
CIVIL POLÍTICA

CONSENSO / COERÇÃO
HEGEMONIA

Igreja Polícia
Sindicato Exército
Escolas Tribunais
Partidos Governo

SUPERESTRUTURA

Intelectuais Orgânicos

ESTRUTURA

Gráfico 1 – Elaborado pelo autor com base em notas das aulas da disciplina Antonio Gramsci: a
Educação Como Hegemonia, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Carmen Sylvia V. Moraes, 08/2010.
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O gráfico demonstra os dois momentos superestruturais nos quais a


sociedade civil expressa o momento da persuasão e a sociedade política o da
violência. Esses processos são responsáveis pela manutenção da reprodução
social e segundo PORTELLI (1977, p. 32), “[...] essa divisão funcional deve
situar-se no quadro de uma unidade dialética em que consenso e coerção são
utilizados alternativamente e em que o papel exato das organizações é mais
fluído do que parece”. Esse autor enfatiza a inexistência de uma separação
orgânica entre a sociedade civil e a política.
De acordo com Dore (2006), Gramsci avançou no conceito de Estado
feito por Marx e Engels em 1848 no Manifesto do Partido Comunista,
compreendendo que o Estado não poderia ser governado embasado apenas
na coerção, pois no final do século XIX, transformações resultantes do próprio
desenvolvimento capitalista, aliada à organização da classe trabalhadora,
permitiram a conquista de vários direitos, tais como o direito de greve, sindical,
políticos, etc.. Assim, ao ser forçada a ceder espaços aos seus adversários, a
classe dominante passa a atuar no terreno da persuasão para convencer as
classes subalternas à submissão. Essa nova forma de atuação foi estudada por
Gramsci, particularmente a luta pela hegemonia.
A obtenção do consenso implica em que a classe dominante permita
que as classes subalternas estabeleçam diversas mediações entre a economia
e o Estado, por meio das quais possam expressar seus projetos políticos e
sociais. Tais mediações se materializam em instituições da sociedade civil tais
como o partido político, o sindicato, a imprensa, a escola, etc. Tal
institucionalização levou Gramsci a nominar a sociedade civil de “aparelho
‘privado’ de hegemonia” (GRAMSCI, 1977 apud DORE, 2006, p. 337). Segundo
DORE (2006, p. 338):

A sociedade civil é o lugar no qual se dá a luta entre projetos sociais e


políticos que são contraditórios entre si, no quadro da disputa pela hegemonia
entre as classes fundamentais. O poder dos grupos dominantes é exercido de
forma repressora, mas também de forma “humana”, porque ele busca e educa
o consenso das classes subalternas. As duas dimensões do poder formam,
como sugere Gramsci retomando Maquiavel, a idéia de um centauro: meio
selvagem, a repressão, e meio humana, a busca e a educação do consenso.
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E a função mais importante desse trabalho de convencimento não se dá


apenas na esfera intelectiva, mas também ética, ou seja, no agir individual.
Esse é a passagem entre teoria e prática que Gramsci percebe no processo,
ou seja, a hegemonia como exercício da direção intelectual e moral da
sociedade. Daí a importância que atribui à ideologia, definida por ele como uma
concepção de mundo e da necessidade de um movimento intelectual que
propague novas concepções, capazes de elevar a consciência das classes
subalternas, a fim de que elas não se submetam à dominação.
E outra importante contribuição do marxista sardo foi a de desvelar o
vínculo orgânico que une a estrutura e a superestrutura. Assim, segundo
PORTELLI (1977, p. 48):

Qualquer ato ou ideologia orgânico deve ser “necessário” à estrutura, o que


significa que essas ideologias devem organizar os grupos sociais e dirigi-los
de acordo com as condições sócio-econômicas: “Enquanto historicamente
necessárias, têm elas uma validade “psicológica”; “organizam” as massas
humanas, formam o terreno onde os homens se movem, adquirem
consciência de sua posição, lutam, etc.

E;
Devido a isso, e esse é o segundo aspecto, os movimentos superestruturais
orgânicos adquirem caráter permanente. Representam a ideologia, a política
dos diversos grupos sociais e, nesse sentido, “dão lugar à crítica histórico-
social, que se dirige aos vastos agrupamentos, mais além das pessoas
diretamente responsáveis, mais além do pessoal dirigente”. Apenas na
medida em que os movimentos superestruturais respondam a essas condições
orgânicas, serão o “reflexo” da estrutura e formarão com ela um bloco
histórico.

E esse vínculo orgânico se consubstancia na camada social responsável


pela gestão da superestrutura do bloco histórico que Gramsci identifica como
intelectuais, conforme segue:

1) Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial


no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo,
organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão
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homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo


econômico, mas também no social e político: o empresário capitalista cria
consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador
de uma nova cultura, de um novo direito, etc. (GRAMSCI, 2000, p. 15).

Portanto, os intelectuais são os “funcionários” da superestrutura e


principais responsáveis pela função de hegemonia da classe dominante. Com o
conceito dos intelectuais orgânicos concluímos a introdução aos conceitos
gramscianos a que recorreremos para nossa análise do ENEM.
Contudo, antes de nos debruçarmos sobre o sistema de avaliação
propriamente dito, entendemos ser importante fazermos uma breve explanação
acerca da ideologia liberal clássica que fundamenta a meritocracia, idéia
bastante difundida no discurso capitalista, particularmente em ambientes
escolares. No século XVII, John Locke afirmou em seu Segundo Tratado sobre
o governo civil de 1690, que todos os homens são iguais perante Deus e
perante a lei, mas diferentes entre si, e que cada poderá demonstrar o seu
potencial por meio do trabalho, podendo assim ascender socialmente. A justiça
social caberia assegurar que cada um recebesse aquilo a que fez jus, por meio
de seu esforço individual, ou seja, cabe ao Estado o papel de regulador. E
também que é garantida a posse de propriedade para aqueles que nela
produzam e dela usufruam.
Essa concepção, na qual o Estado é neutro e a regulação se dá por
meio da competição entre os indivíduos que se mostrarem mais capazes,
traduz bem o espírito da classe que faria quase cem anos depois a Revolução
Francesa. A idéia do mérito pessoal em substituição a do direito divino era
ideologia que a classe que emergia precisava para constituir sua hegemonia.
Esse ideário fundamentou a criação dos Estados Nacionais e nesse
contexto, a escola surge como a instituição que assegurará a igualdade de
oportunidades para todos, de forma que a competição ao final seja justa.
Importante ressaltar que mesmo para essa concepção, a escola deveria ser
pública e acessível para todos.
Dessa forma, ao considerarmos a força dessa ideologia, não é estranho
que passados três séculos, esse trabalho ainda tenha como foco a
investigação de um sistema da avaliação no qual um dos objetivos é o de
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selecionar estudantes “mais capazes” para o cursarem universidades públicas.


Outro aspecto intrigante é a capacidade da classe dominante em reinventar
sua ideologia. Podemos observar o fenômeno nesse breve histórico sobre o
surgimento da figura do “Estado Avaliador”, expressão cunhada pelo Professor
Almerindo Afonso Janela. A assunção dessa função pode ser temporalmente
situada nos anos 80 do século XX, em decorrência da adoção de políticas
neoliberais e neoconservadoras. Segundo AFONSO (2003, p. 44):

Ao longo da década de oitenta, a emergência de políticas neoliberais e


neoconservadoras veio dar novo impulso aos mecanismos de
responsabilização em grande medida porque se tornou evidente a
convergência de valores entre alguns modelos de prestação de contas e os
pressupostos daquelas políticas, nomeadamente entre o direito de escolha da
educação (educational choice) por parte dos pais, redefinidos como
consumidores, e a sua relação com a divulgação e escrutínio público dos
resultados (ou produtos) da educação escolar, necessários para a
fundamentação dessas mesmas escolhas.

É importante enfatizar que a atribuição dessa função para o Estado vem


no bojo de uma série de outras medidas, cujos pressupostos são o da redução
do tamanho do Estado e notadamente, da divulgação dos resultados, de forma
a permitir uma competição “sadia” entre as instituições avaliadas. Isso
permitiria aos pais escolherem, a partir dos resultados demonstrados, a melhor
escola para seus filhos. AFONSO (2003, p. 45) afirma que o fundamento para
essa proposta é a ideologia conhecida como individualismo possessivo, ou
seja, na postulação de que os indivíduos além de serem proprietários de seus
bens materiais, também são de suas capacidades, e que devem ser livres para
colocá-las em prática numa sociedade formada por outros indivíduos iguais e
também livres. Tal caracterização parece-nos mais com uma radicalização do
ideário liberal clássico.
Para tal ideologia, a inteligência, a individualidade, o desempenho e
mesmo a moralidade são assumidos como objetos, passíveis de serem
mensurados. O fato de essas “coisas” serem construídas relacionalmente pelas
pessoas em seus grupos sociais não é levada em consideração por essa
concepção. Daí a emergência de sistemas de avaliação com foco na
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mensuração de uma certa “qualidade”, cujos atributos raramente são


expressos. No entanto é bastante difícil aparecerem manifestações
questionando o discurso de uma educação de qualidade.
No Brasil, a Constituição de 1988 estabeleceu uma série de direitos
sociais, significando um aumento considerável no escopo de atuação do
Estado. Por outro lado, no mesmo período houve um acirramento da crise
econômica e também tomaram corpo às teses de enxugamento do Estado
defendidas pelos neoliberais e neoconservadores. De acordo com CAMPOS
(2000, p. 7), é nesse período que começa a ser disseminada a idéia da
“substituição do conceito da universalidade das políticas sociais pela estratégia
de direcioná-las a segmentos limitados da população”.
Segundo essa autora, também pode ser datada no mesmo período uma
preocupação com a qualidade na área educacional no país. Nos anos 90,
conceitos de qualidade oriundos dos ambientes empresariais começam a
migrar para o pensamento educacional. A qualidade inclusive é mencionada
em diversos trechos do texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, assim
como a necessidade de aferi-la passa a fazer parte da agenda de grandes
agências de financiamento como o Banco Mundial. A forma como isso ocorre é
por meio da implantação da versão neoliberal da globalização por organismos
bilaterais, multilaterais e internacionais, que também a sustentam
ideologicamente. Os mecanismos que materializam esse discurso são: certas
políticas de avaliação, financiamento, padrões, formação de professores,
currículo, instrução e testes.
Nesse contexto, é na década de 90 que surgem como políticas
patrocinadas pelo Estado, diversos sistemas de avaliação. O primeiro deles foi
o SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, implantado em
1990 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e que
conforme Campos (2000) tem a função de coletar dados que permitam a
avaliação do conhecimento e habilidades dos alunos em diferentes séries e
áreas curriculares. O Ministério da Educação implantou outros sistemas e
dentre eles, o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), que começou a ser
aplicado em 1998 e que será objeto de nossa análise.
É importante enfatizar que esse sistema é voluntário e para ao qual a
adesão dos estudantes, que foi pífia no início, foi crescendo ao longo dos anos
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e que em sua edição de 2009 chegou a quatro milhões de inscritos. Tal fato se
deve a uma série de funções que foram sendo atribuídas a esse processo,
principalmente a de ser um requisito para a obtenção de bolsas de estudo pelo
Programa Universidade para Todos (PROUNI) do governo federal. Esse
programa concede bolsas integrais ou parciais para o acesso de estudantes
em instituições de ensino superior privadas. A nota obtida pelos alunos é
utilizada como critério para a admissão e seleção dos alunos no programa de
bolsas. No 1º semestre de 2010 foram ofertadas 85.208 bolsas integrais 79.388
parciais, totalizando 164.596 bolsas. E a partir de 2011, O ENEM vai se tornar
requisito obrigatório para o acesso ao Fundo de Financiamento ao Estudante
do Ensino Superior (FIES) do governo federal, que concede empréstimos para
o pagamento de cursos em instituições de ensino superior privadas.
Em 2009 ocorre outra mudança importante que foi a de atribuir aos
resultados obtidos pelos estudantes no ENEM a função de seleção para o
acesso nos Institutos Federais de Ensino Superior (IFES) e também para
outras universidades públicas que aderissem ao sistema. Para tanto, o governo
instituiu o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), no qual os alunos que fizeram
o ENEM podem se candidatar aos cursos das instituições de ensino superior
(IES) que adotaram a nota obtida no ENEM para seu processo seletivo.
O processo é realizado por página da internet e de acordo com relatório
emitido em junho de 2010, foram admitidos 16.549 alunos, sendo que 10.968
na 1ª opção de curso e IES e 5.581 na 2ª opção. Das 35 instituições que
participaram do processo, 09 delas foram responsáveis pela admissão de cerca
de 70% dos candidatos. A adesão de universidades públicas e privadas tem
sido crescente, variando como cada instituição utiliza a nota obtida no exame
para a seleção dos ingressantes.
Os objetivos do ENEM estão explicitados nas diversas legislações e na
página da internet do exame. Para o presente trabalho, seguem extratos do
Edital nº 01 de 18 de Junho de 2010, EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO
– ENEM 2010, que expressa o que é o exame:

1.5. O Enem 2010 será realizado como procedimento de avaliação do


desempenho escolar e acadêmico com o objetivo de aferir se o participante
do Exame, ao final do Ensino Médio, demonstra domínio dos princípios
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científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna e conhecimento


das formas contemporâneas de linguagem (2010, p. 1).

E alguns de seus objetivos que consideraremos na análise:

1.6.4. O estabelecimento de critérios de acesso do participante a programas


governamentais;

1.6.5. A sua utilização como mecanismo único, alternativo ou complementar


de acesso à Educação Superior ou processos de seleção nos diferentes setores
do mundo do trabalho;

Um propósito do sistema não expresso na legislação, mas afirmado


pelas autoridades do MEC no documento intitulado “Proposta à Associação
Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior”, é o da
democratização do acesso às universidades, particularmente aos Institutos
Federais de Ensino Superior (IFES) uma vez que um exame aplicado em todo
o território nacional permitiria que estudantes dos diversos estados pleiteassem
vagas nas diferentes instituições que aderissem ao sistema. Segundo o
documento, o vestibular tradicional possui alguns inconvenientes, e destaca:

[...] a descentralização dos processos seletivos, que, por um lado, limita o


pleito e favorece candidatos com maior poder aquisitivo, capazes de
diversificar suas opções na disputa por uma das vagas oferecidas. Por outro
lado, restringe a capacidade de recrutamento pelas IFES, desfavorecendo
aquelas localizadas em centros menores. (Proposta à Associação Nacional
dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, 2009, p. 1)

A nosso ver, apesar dessa aparente boa intenção, o foco de uma política
pública comprometida com a transformação social não seria a do Estado
assumir para si a tarefa de operar um vestibular nacional, mas sim a de
oferecer vagas nas universidades públicas para todos que desejassem fazer
um curso superior. O fato de que um sistema de seleção aplicado em escala
nacional possa permitir que estudantes das classes subalternas se candidatem
às universidades de outros estados ou regiões não deve mudar nossa triste
realidade, pois é muito provável que continuem a serem os mesmos a serem
admitidos nas universidades públicas mais renomadas, ou seja, os estudantes
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das famílias mais abastadas, que tiveram as melhores condições para


“competirem”, seja nos vestibulares descentralizados, seja no ENEM. Tal fato
já pode ser constatado nos famigerados “rankings” das escolas com os alunos
mais bem classificados nesse e em outros sistemas de avaliação conforme
podemos observar no Anexo 1 desse trabalho.
No que diz respeito à análise proposta neste estudo, evidenciou-se ao
longo do texto a assunção, ainda que parcial, pelo Ministério da Educação,
uma instituição da sociedade política, de uma função da sociedade civil, qual
seja, a de selecionar os estudantes que terão acesso ao ensino superior. E
para tanto, modificou a finalidade de um sistema avaliativo para que este passe
de um instrumento de verificação para um processo de seleção dos alunos
mais “capazes”. Outra inferência que podemos extrair da análise é que com
isso o governo endossou a ideologia subjacente ao processo.
Cabe observar também que o mesmo sistema já serve para a concessão
de bolsas em instituições particulares e que passará a servir de critério para o
financiamento de crédito educativo. Fecha-se assim o círculo e fica
absolutamente clara a fluidez das relações entre as esferas superestruturais
propostas por Gramsci.
Mas o que nos parece importante nessa análise é perceber como a
questão central, ou seja, o acesso à educação superior para todos fica velado.
A “opinião pública” passa a discutir as dificuldades em operacionalizar um
exame em escala nacional, a efetividade do ENEM em avaliar de forma justa e
deixamos de questionar porque investimos menos por aluno que a maioria de
nossos vizinhos na América Latina ou porque o montante investido está longe
dos 6% do PIB (Produto Interno Bruto), percentual há muito ultrapassado por
economias de vários países emergentes.
Concluímos nossa análise refletindo que talvez um dos grandes méritos
da obra de Gramsci seja a de permitir que percebamos o quanto é fácil nos
deixarmos enredar pelos discursos ideológicos e da dificuldade em nos
desfazermos de algumas de nossas certezas, principalmente daquelas
adquiridas do senso comum e que muitas vezes parecem fazer sentido na
prática.
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Bibliografia

AFONSO, A. J. Avaliação Educacional – Regulação e Emancipação. 3 ed.


São Paulo: Cortez, 2005.
CAMPOS, M.M. – A Qualidade da Educação em Debate in Estudos em
Avaliação Educacional, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, jul-dez,2000, nº
22.
CAPPELLETTI, I. F. Avaliação de Políticas e Práticas Educacionais. São
Paulo: Articulação Universidade Escola, 2002.
DORE, R. Gramsci e o debate sobre a escola pública no Brasil in Cadernos
Cedes, vol. 26,n.70,p. 329-352, Campinas: Unicamp, set-dez, 2006.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: introdução ao estudo da filosofia e a
filosofia de Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v.1.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: intelectuais, o princípio educativo,
jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v.2.
MAGRONE, E. Gramsci e a educação: a renovação de uma agenda
esquecida in Cadernos Cedes, vol. 26, n.70,p. 353-372, Campinas: Unicamp,
set-dez, 2006.
PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Paz & Terra,
1977.
VEIGA, E.B. O.; VEIGA, E.F.O. Tudo sobre o Novo Enem. São Paulo:DCL,
2010.

Documento intitulado “Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das


Instituições Federais de Ensino Superior” Webpage do MEC obtida em
26/07/2010:
http://portal.mec.gov.br/index.php?
option=com_docman&task=doc_download&gid=768&Itemid=

Anexo 1 – Portal IG – consultado em 22/07/2010:


http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/rede+privada+domina+melhores+do+
enem+2009/n1237721690404.html
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Anexo I
Notícias Veiculadas em Portal IG sobre o ENEM – 22/07/2010.

Entre as mil escolas com melhor desempenho no exame, 91% são


particulares. Todas as estaduais da lista são técnicas

Priscilla Borges, iG Brasília | 19/07/2010 00:00


Os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2009 revelam uma
supremacia das particulares no topo do ranking. Entre as mil escolas que
oferecem ensino médio regular com melhor desempenho nas provas objetivas
e na redação, 91% são da rede privada. As médias dos 912 colégios em
questão variaram de 641,11 a 749,70 pontos. (Veja no fim da reportagem o
ranking completo das escolas no Enem)

Leia também:
Vértice, de São Paulo, obtém a melhor média no Enem
Federais são as melhores públicas no Enem
São Paulo: entre campeãs, só privadas
Escolas do Rio caem no ranking do Enem, mas mantém topo estadual
Tricampeão São Bento perde a ponta, mas continua na elite
Enem: melhor do ranking tem lista de espera para 2014
Enem: Dom Barreto sobe do 15º para o 2º lugar no ranking
Escola indígena do AM é a pior no ranking do Enem
Português é a matéria com pior resultado no Enem

Nessa lista, apenas 88 escolas públicas aparecem. Sessenta delas são


federais, 26 estaduais e apenas duas municipais. Entre as estaduais e
municipais, todas são técnicas ou coordenadas por universidades, exceto o
Colégio Municipal Castro Alves, em Posse (GO) e o Centro Estadual de Ensino
Médio Tiradentes, em Porto Alegre (RS).
Essas escolas públicas representam apenas 8,8% dos colégios que aparecem
no topo do desempenho no Enem, apesar de a rede pública ser responsável
por 88% das matrículas do País no ensino médio. Os resultados serão
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liberados nesta segunda-feira pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas


Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Do lado oposto, a lista das 1 mil escolas com desempenho mais baixo no Enem
2009 é composta, em sua maioria por escolas estaduais. Há 979 colégios de
todos os estados, exceto o Distrito Federal, nesse grupo. As médias variam de
249,25 a 461,45. Vale lembrar que nota 500 é média de todos os estudantes
concluintes do ensino médio, segundo o Inep. Além das estaduais, entre as
piores, há 18 escolas municipais e apenas três privadas (duas são rurais).
O ranking elaborado pelo iG considerou apenas as médias do ensino médio
regular das escolas com mais de dez alunos participantes no Enem. O Inep
não divulga médias totais, que englobam o desempenho dos alunos nas provas
objetivas (matemática, ciências da natureza, ciências humanas e língua
portuguesa) e na redação, dos colégios em que menos dez estudantes tenham
feito todas as avaliações. A lista não inclui ainda escolas com menos de 10
estudantes matriculados na etapa.
Seguindo esses critérios, o desempenho de 17.882 escolas foi analisado.
Desse total, 12.935 são estaduais, 4.551 são particulares, 164 federais e 232
municipais. Os 912 colégios entre os 1 mil melhores representam 20% da rede
privada avaliada no ranking.

Entre as 20 melhores escolas do País, apenas duas são públicas

As médias da Educação de Jovens e Adultos (EJA), o antigo supletivo, foram


excluídas da lista já que a participação dos estudantes dessa etapa é pequena.
Nas escolas que oferecem EJA e obtiveram médias totais calculadas pelo Inep,
havia 625.214 matriculados em condições de participar do Enem. Porém,
apenas 4,7% do total (pouco mais de 29 mil) fizeram o exame.

Sem surpresas

O desempenho superior dos estudantes da rede privada – que possui 12% dos
alunos matriculados no ensino médio (973 mil alunos) em suas salas de aula –
não surpreende os especialistas. Em edições anteriores do Enem, os colégios
particulares também apareciam liderando as listas das melhores notas. Além
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disso, as diferenças de investimento, infraestrutura e condições de ensino entre


as escolas das duas redes são bastante conhecidas pela população.
César Callegari, integrante do Conselho Nacional de Educação (CNE), ressalta
que não se pode ignorar os problemas “estruturais” que afetam as escolas
públicas há anos: falta de material didático, de estrutura física adequada, de
professores (especialmente na área de ciências), de recursos financeiros. Ele
pondera, no entanto, que considera outro fator fundamental para o melhor
desempenho das privadas: a origem dos estudantes.

“As escolas privadas são seletivas em relação a seus alunos. Eles são,
basicamente, os filhos da classe média, que tem condições de oferecer desde
o início da vida, estímulo à leitura, acesso à cultura. Isso faz muita diferença.
Provavelmente, esses mesmos estudantes que estão na rede privada teriam
desempenho tão bom quanto se estivessem matriculados em escolas
públicas”, opina o conselheiro.
Angela Soligo, professora da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), ressalta que o ritmo das escolas das duas
redes é muito diferente. “Quando o governo anunciou mudanças no Enem, os
colégios privados correram para preparar seus alunos para essa nova
avaliação. A escola privada precisa desses resultados para se manter no
mercado”, pondera. Para a especialista, a perspectiva da escola pública é
outra, porque atende demandas distintas.
A professora critica os ranqueamentos das escolas e afirma que o objetivo da
divulgação das notas deveria ser o de diagnosticar problemas e corrigi-los.
“Esses dados não devem ser vistos como indicadores únicos de qualidade dos
sistemas de ensino, que têm condições tão diferentes. As notas são
indicadores de desempenho, não de qualidade”, afirma.
José Augusto de Mattos Lourenço, presidente da Federação Nacional das
Escolas Particulares (Fenep), ressalta, em defesa da rede privada, que os
resultados do Enem se assemelham ao de outras avaliações, como o Saresp e
o Saeb. “A rede particular tem se destacado em todas elas. Acho que o
diferencial entre as duas redes é a gestão. Não é uma questão de dinheiro”,
aponta.
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Ele comenta que muitas escolas privadas contratam avaliações próprias, que
apresentam diagnósticos de problemas. “Assim, elas podem fazer um
planejamento e sanar deficiências rapidamente. A rede privada consegue
resolver seus problemas de forma mais rápida”, admite. Para ele, outro ponto
importante é o tempo de “sobrevivência” das más escolas privadas. “Elas não
duram”, garante.
Mesmo com os bons resultados, José Augusto garante que a Fenep é contra
os ranqueamentos. Na opinião dele, eles não revelam a realidade de todas as
escolas. “Não são todos os alunos que têm interesse e fazem o Enem. Ele não
é uma avaliação nacional. Há ainda, infelizmente, maus educadores que
escolhem os estudantes que farão as provas, e tendenciam as médias”, diz.

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