Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
A
problematização realizada nesse artigo está vinculada à
psicologia social e à educação, pois considera a relação
entre indivíduo, sociedade e cultura e estabelece o filme
como mediador psicossocial da constituição de uma subjetivida-
de, de um sujeito (RESENDE, 2001). Nossa pre- crítica da sociedade, em articulação com es-
ocupação é com processos educacionais que sas polêmicas, com o intuito de desenvolver
formam sujeitos que resistam à lógica massi- questões e suscitar diálogos.
ficadora da sociedade atual. Na discussão do Nosso primeiro desafio foi delinear a
entrelaçamento entre arte, processos educa- arte em vinculação com o trabalho, pois am-
cionais e cinema, levamos em conta o cinema bos são objetivações dos sujeitos, mas apre-
como expressão artística produzida para uma sentam tensões que não podem ser esqueci-
tela grande e que envolve um corpo pequeno das. Este debate pode evitar a indiferenciação
em uma sala escura, bem como as discussões imediata entre arte e mercadoria, a dicotomia
mais centradas na estética do filme. entre arte e realidade e a reserva de um lugar
Muitas são as polêmicas e os debates inviolável à arte.
sobre cinema. Na educação, certos filmes são Embora tenha havido uma cisão entre
valorizados por apresentarem um tema rele- arte e trabalho como um dado histórico, e
vante a ser discutido ou por enfocar um deter- haja conceitos diferenciados para cada mani-
minado acontecimento histórico ou uma temá- festação, devemos ter cuidado para não su-
tica polêmica. Também encontramos análises pervalorizar a arte como expressão estética,
que se debruçam sobre um cineasta ou sobre separada da sociedade, perdendo a contradi-
uma abordagem teórica. No senso comum, é
ção de ela poder ser produzida como tal ou
predominante a valorização do filme a partir
ser transformada em uma mercadoria feti-
de sua repercussão e do gosto do expectador,
chizada (CHAVES; RIBEIRO, 2014). Ao mesmo
sendo, muitas vezes, preteridos os conceitos
tempo, também não podemos perder a possi-
ou a análise da experiência estética. Em alguns
bilidade da objetivação trabalho ser experiên-
debates vinculados ao marxismo que articulam
cia formativa, mesmo no capitalismo. O fazer
arte, sociedade e processos educacionais, en-
contramos enfoques que afirmam a necessi- artístico é trabalho como objetivação, como
dade de a arte ser engajada ou de ser pautada reconhecimento do ser humano.
em uma tendência realista reacionária ligada A força produtiva estética é a mes-
a aspectos ideológicos e políticos restritos ma que a do trabalho útil e possui
(VÁZQUEZ, 2011). Há, também, afirmativas que em si a mesma teleologia; e o que se
destinam à arte um lugar incólume, apartado deve chamar a relação de produção
da sociedade, que negligencia as próprias con- estética, tudo aquilo em que a força
tradições de seu surgimento, a relação com a
produtiva se encontra inserida e em
sociedade burguesa e, no que diz respeito ao
que se exerce, são sedimentos ou
cinema, ignoram as interfaces com a indústria
moldagens da força social. (ADOR-
cultural. Ou, ainda, as que equiparam a merca-
NO, 1970, p. 16).
doria cultural à arte, perdendo de vista a rela-
ção com o sistema produtivo capitalista. Nes- No entanto, é importante ressaltar que,
se caldo de ideias ainda encontramos os que quando Marcuse e Adorno discutem e criti-
afirmam que certos referenciais teóricos estão cam o trabalho nas determinações concretas
ultrapassados, que não conseguem analisar a e históricas da sociedade capitalista, portanto
arte na contemporaneidade em sua efemerida- sujeito à alienação, ao fetiche e à reificação, a
de, ou mesmo que Adorno é totalmente pessi- arte aparece como uma objetivação estética
mista com relação ao cinema. diferenciada.
Entrelaçamentos entre arte, cinema A arte não é unicamente o substitu-
e subjetividade: tensões to de uma práxis melhor do que a
na formação até agora dominante, mas também
Discutiremos alguns elementos que crítica da práxis enquanto domina-
podem contribuir com os debates da teoria ção da autoconservação brutal no
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
108
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
interior do estado de coisas vigente existiu; o problema apresenta-se quando ele
e por amor dele. Censura as men- se transforma em finalidade principal e decla-
tiras da produção por ela mesma, ra-se deliberada e orgulhosamente como tal,
opta por um estado da práxis situa- como um bem de consumo. É fundamental
do para além do anátema do traba- esclarecer que:
lho. (ADORNO, 1970, p. 23).
o fato de uma obra de arte ser ne-
A arte, ao ser enfocada como possibili- gociada não faz dela uma merca-
dade de resistência, apresenta contradições: doria cultural, uma vez que, no seu
projeto inicial, não se inscrevia ain-
O constrangimento à arte objectiva da essa possibilidade (a finalidade
nunca se satisfez com meios instru- sugerida pela harmonia formal não
mentais e invadiu os meios autôno- dependia da explicação de qualquer
mos. Ele desaprova, antes de mais, fim externo, como por exemplo ser
a arte como produto do trabalho vendida para enfeitar uma sala ou
humano, o qual, porém, não preten- preencher o vazio existencial de um
de ser um objecto, uma coisa entre consumidor culto). (DUARTE, 2010,
as coisas. (ADORNO, 1970, p. 73). p. 227-228).
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
109
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
das obras de arte – torna-se seu úni- Resguardados os cuidados com a dico-
co valor de uso, a única qualidade tomia e com as especificidades de cada teóri-
que elas desfrutam. É assim que o co, esses autores auxiliam o nosso olhar para
caráter mercantil da arte se desfaz o produto do trabalho – cinema – tensionado
ao se realizar completamente […] entre a mercadoria da indústria cultural, que
Torna-se algo hipocritamente inven- provoca adaptação, uma mercadoria produ-
dível, tão logo o negócio deixa de zida para a massa, e o produto do trabalho
ser meramente sua intenção e passa – que carrega elementos da arte –, capaz de
a ser seu único princípio. (HORKHEI- instigar a resistência à sociedade unidimensio-
MER; ADORNO, 1985, p. 148). nal e administrada.
O segundo desafio foi não reproduzir
No cinema, muitas vezes, podemos a ideia dicotômica de que Adorno (1986a) é
observar o valor de troca sendo critério de completamente pessimista perante o cinema.
qualidade. Não é raro ver que a qualidade do É possível pensar o filme, em seu caráter for-
produto cultural é avaliada por seu impacto, mativo, a partir de textos mais específicos so-
pela bilheteria, pelo valor da propaganda ou bre cinema: Composição para os filmes, com
pelas cifras gastas na produção (HORKHEI- Hanns Eisler, de 1944, Notas sobre o filme e
MER; ADORNO, 1985, p. 114). Também pode Transparências sobre o cinema ambos, de 1966
ocorrer de o expectador, apreciador de cine- (SILVA, 1999), e em textos que refletem so-
ma, ao invés do valor de uso na recepção de bre arte, estética, literatura, música e cultura.
um filme, buscar estar informado ou inserir- Ao mesmo tempo, em textos que abordam
-se em um grupo seleto, fazendo do bem a indústria da cultura e a crítica da ideologia,
também conseguimos extrair contribuições.
cultural um valor de troca, e, consequente-
Nesse sentido, é importante destacar que
mente, um fetiche no qual cada um termina
os subsídios desse autor, no que diz respeito
por tratar o filme, a si e aos outros como uma
à análise de o cinema ser ou não produto de
mercadoria.
resistência, pode advir tanto da negação das
É importante ressaltar que o caráter de características do que é racionalidade dos pro-
mercadoria não pode ser buscado apenas da dutos da indústria da cultura como da confir-
recepção, mas na produção. O processo de mação de elementos que caracterizam a arte.
trabalho da produção de um filme também A crítica de Adorno (2003a) é dedi-
pode ser fragmentado. A divisão do trabalho, cada especialmente ao cinema padrão de
dos artistas e dos meios de produção, pauta- Hollywood, que se distancia da obra autôno-
da pela apropriação da força de trabalho dá, ma e que subordina a dimensão estética à
muitas vezes, um caráter individual, persona- lógica da tecnologia da reprodução. Mesmo
lista, ao filme. que Adorno tenha escrito antes da explosão
O fetichismo atinge o íntimo do indiví- midiática das últimas décadas, a crítica que
duo, a sua subjetividade, pois, ele e Horkheimer (1985) fizeram continua va-
lendo no contexto atual de consolidação da
não é somente como produtor que mundialização do capitalismo, iniciada entre
o indivíduo se defronta com as for- 1980 e 1990, pois ainda há hegemonia norte-
mas místicas da realidade, mas tam- -americana das produções, só que atualmen-
bém como sujeito que se objetiva te existem oligopólios e conglomerados com
e não se reconhece no objeto que o entrelaçamento de vários tipos de mídias
ganhou vida própria, como sujeito (DUARTE, 2008). Segundo Duarte (2008), o
individual e coletivo que não se re- movimento de fusão e aquisição, ocorrido na
conhece a si e tampouco os outros década de 1990, acirrou e ampliou ainda mais
indivíduos. (RESENDE, 2001, p. 521). essa hegemonia, fazendo com que todos os
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
110
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
estúdios de Hollywood terminassem por pos- tação nos filmes que a celebram e
suir vinculação com canais de televisão que que homogeneízam até tornar con-
ou são transmitidos por satélite ou são ofere- fundível o inconfundível de que se
cidos por TV a cabo. nutre. (ADORNO, 1986b, p. 97).
É exatamente por isso que é necessário
ter cautela com a ampliação do acesso ao O primado da técnica reúne e organiza
cinema para a grande massa. A tese de que estímulos que provocam o comportamento
a indústria cultural seria a arte dos consumi- reativo, autômato e sem memória (KANGUS-
dores é falsa, é a ideologia da ideologia. Para SU, 2010). A atrofia da imaginação e da espon-
Adorno (1970), essa equiparação não é pos- taneidade é propiciada pelo filme em sua pró-
sível, já que a recepção é realizada de forma pria constituição objetiva.
grosseira, estático-harmônica, segundo o mo-
delo da oferta e da procura. O autor pondera São feitos de tal forma que sua
a relação entre alcance das massas e cinema, apreensão adequada exige, é ver-
pois avalia que não é democratização a cultu- dade, presteza, dom de observa-
ra circular como mercadoria, se, nesse movi- ção, conhecimentos específicos,
mento, não houver concretização das pro- mas também […] proíbem a ativi-
messas – justiça e igualdade. Essa realidade, dade intelectual do espectador, se
prioritariamente, apressa a integração à lógi- ele não quiser perder os fatos que
ca mercantil capitalista e à redução do recep- desfilam velozmente diante de seus
tor ao estatuto de consumidor, expropriando olhos. (HORKHEIMER; ADORNO,
a possibilidade de autonomia. 1985, p. 119).
Adorno também pondera que o cinema
padrão não amplia a capacidade perceptiva O espectador fica absorvido pelo uni-
do espectador (LOUREIRO, 2010). Critica a verso do filme, pelos gestos, imagens e pa-
técnica1 que vira segunda natureza e que é lavras, sem lhes acrescentar algo. Eles ficam
enaltecida sem vinculação com o restante dos tão familiarizados com os desempenhos exi-
elementos estéticos. Também pondera que, gidos da atenção, que esta se coloca automa-
embora a técnica tenha potencialidades de ticamente. “Os produtos da indústria cultural
ampliar a apreensão da realidade, de mostrar podem ter a certeza de que até mesmo os
contradições e intencionalidades inquietan- distraídos vão consumi-los alertadamente”
tes, de mostrar elementos não visíveis ao olho (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 119), não
nu, na indústria cultural ela difunde e aprimo- oferecendo folga e nem descanso da raciona-
ra apreensões imediatas do real e realiza o lidade do capital.
empobrecimento da percepção. Muitas vezes Adorno (1986a) critica o primado do
a realidade é demonstrada em cores vivas e caráter tecnológico do cinema padrão que é
em 3D, mas, na verdade, ela oculta as media- tomado de forma isolada, abstraindo a lingua-
ções que a constituem: gem do filme, sem relação com a organização
imanente da coisa. Para o autor, a indústria
A boa velha estalagem sofreu uma
cinematográfica da época reunia a música e
demolição mais total no filme em
o close-up como técnicas que se sobressaíam
cores do que pelas bombas. Pátria
diante do conteúdo. Desse modo, seria impor-
alguma sobrevive à sua apresen-
tante fugir dos efeitos que se tornam conven-
Para Adorno, em razão do nascimento tardio do
1 ções, que não respeitam a produção individual
cinema, há a difícil diferenciação entre técnica e, por isso, tornam-se kitsch. Na época, ele es-
(intrínseca à obra) e tecnologia (execução). “Como tava se referindo tanto às técnicas repetidas
no cinema não há original sobre o qual se faz a
reprodução, o produto é a própria coisa em si”
que se opunham ao realismo, entre as quais
(2003a, p. 183). a filmagem desfocada, as sobreposições e os
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
111
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
flashbacks, quanto ao artificialismo comercial As críticas de Adorno não significam que
(ADORNO, 2003a). Nessa discussão, Adorno todo filme deve ser expurgado e não possa
(1986a) indica a necessidade de sair do mero vir a ser formativo, mesmo que certos auto-
documentário que carece de ofício artístico. res ponderem mais a produção cinematográ-
Para ele, “a saída está em fazer uma monta- fica como expressão da degradação cultural
gem que recoloca as coisas em constelações (LOUREIRO, 2005). As discussões que indi-
espirituais” (p. 105). cam a possibilidade de o filme ser formativo,
Essas ponderações auxiliam-nos a ter em Adorno, são mais explícitas na década de
cuidado com os modismos e as recorrências 1960, em que ele se deparou, em seu próprio
no que diz respeito ao uso da técnica. Para país, com um movimento organizado e críti-
ele, não é que o filme-resistência não tenha co chamado Novo Cinema Alemão. Adorno
técnica, mas essas obras “não dominam intei- (1986a) defende o Novo Cinema Alemão, em
ramente sua técnica e que, por isso, deixam contraposição ao cinema do papai (cunhado
passar algo de incontrolado, de ocasional, pelo movimento Oberhausen3). Para ele, o
têm o seu lado libertador” (ADORNO, 1986a, novo cinema alemão condensa a crítica ao
p. 101). O filme pode conter diferentes com- lixo que a indústria cinematográfica havia pro-
portamentos, e a variação entre intenção e duzido desde o início do século XX. Ele com-
efeito é determinada por ele. A técnica deve preende que a difamação desse movimento,
aparecer como lei negada. chamando-o de cinema de guri, para ressaltar
Segundo Loureiro (2010), nas confluên- a imaturidade dos jovens cineastas alemães,
cias entre a teoria estética de Adorno (1970) e em oposição à experiência dos cineastas do
os filmes de Alexandre Kluge,2 o filme é deline- 3
Loureiro (2005), ao discutir Hake (2002), ressalta que a
ado como uma espécie de ensaio artístico que filmografia alemã do pós-Segunda Guerra Mundial, no
privilegia a forma de apresentação, no qual período de 1945 a 1961, reproduzia a mesma lógica dos
se mantém resguardada a experimentação filmes produzidos sob o Terceiro Reich. Os filmes, em
artística. Nesse sentido, é fundamental trair e geral, eram conservadores e reacionários no que se
refere a valores sociais e crenças políticas. Os estudos
desafiar a técnica e provocar uma experiência apontam para um público que possuía necessidade
subjetiva capaz de produzir um tom artístico psicológica de esquecer os danos do passado e
no filme. Fazer imagens que não se sobrepõem ignorar os problemas do presente. “Em 1961, a partir
continuamente, uma após outra. É exatamen- de uma proclamação oficial do governo, assistiu-se à
falência do cinema artístico da Alemanha Ocidental.
te na parada do movimento que “as imagens Não houve, naquele ano, nenhuma premiação, pois
do monólogo interior devem a sua semelhança o Ministério do Interior entendeu que não havia
à escrita: também ela é algo que se move sob obra digna de tal honra” (p. 130). É aí que surge
o olho e, ao mesmo tempo, é algo paralisado uma nova geração que realizava, especialmente,
curtas-metragens. Em fevereiro de 1962, 26 jovens
em seus signos individuais” (ADORNO, 1986a, cineastas publicaram um manifesto durante o VIII
p. 102). Ele diz que é como se uma pessoa, de- Festival de Cinema de Oberhausen (ADORNO, 2003a),
pois de um ano na cidade, permanecesse, por morte do antigo cinema alemão, tornando possível
várias semanas, de repouso em uma região o surgimento de um novo gênero de filmes e de um
cinema liberado das convenções tradicionais. Eles
montanhosa e, no sono ou no devaneio, en- se colocavam contra os grandes monopólios de
trasse em contato com imagens de paisagem cinema da Alemanha Ocidental e defendiam um filme
que passam à sua frente sem ser uma após a inspirado pela imaginação e concepção estética de
outra, mas com intervalos (ADORNO, 1986a). seus criadores (cinema de autor). Eles defendiam
as seguintes características: “baixo custo das
Alexander Kluge conviveu na juventude com Adorno
2
produções; recusa das formas estéticas do cinema
e Fritz Lang. Ele foi um dos autores do Manifesto tradicional, com sua narrativa linear e sínteses fáceis;
de Oberhausen, que deslanchou o movimento do uso do preto e do branco recorrente, na tentativa de
Novo Cinema Alemão, do qual participaram também não tornar o filme um retrato fiel da realidade; fusão
Fassbinder, Werner Herzog, Margarethe Von entre documentário e ficção (cinema-verdade, cinema
Trotta, Volker Schlöndorff, Wim Wenders e outros direto); preocupação com a tematização de questões
(LOUREIRO, 2010). históricas e sociais” (Loureiro, 2005, p. 130).
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
112
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
cinema de papai, era inapropriada (LOUREI- mente a partir do julgamento do gosto e nem
RO, 2010). De acordo com Adorno (1986b), a partir da avaliação do deleite do expectador.
tal crítica era incabível, pois a questão posta
era combater a imaturidade do próprio cine- As obras de arte estão ligadas a um
ma “experiente”, combater sua infantilidade comportamento de admiração por
e sua regressão, portanto esse ataque reali- ela ser o que é, e não para quem
zado pelo cinema experiente é ingênuo por as contempla, e não porque realiza
responder com o mesmo xingamento, com o deleite ou alguém a saboreia. O
as mesmas palavras que lhe foram atribuídas, movimento não é o de incorpora-
esquecendo de uma sabedoria que até as ção da obra, mas o de desapareci-
crianças, em suas brincadeiras de xingamen- mento do contemplador. (ADOR-
to, seguem. NO, 1970, p. 24).
Segundo Silva (1999), mesmo sabendo
que existem críticas a Adorno indicando que Para Adorno e Marcuse, a arte apresen-
ele não dialogou com tradições do cinema ta um caráter político, não por configurar os
que se opuseram à hegemonia de Hollywood, interesses de uma determinada classe. Segun-
tais como neorrealismo italiano, nouvelle va- do Marcuse, a arte essencialmente política é
gue na França, o ciclo dos chamados cinemas aquela que, em sua forma estética, “rompe
novos (na Alemanha, no Leste Europeu, no com a consciência dominante e revoluciona
Brasil), as vanguardas, o cinema experimen- a experiência” (1977, p. 11). De acordo com
tal nos Estados Unidos dos anos 1940, dentre Adorno (2003b), ver o social não é ter na mira,
outros, não devemos nos fixar no que Adorno sem mediação, a posição social ou a inserção
não fez, mas tentar enxergar suas contribui- social dos interesses das obras, ou, até, de
ções a partir do cinema por ele debatido. Se- seus autores. É necessário perceber como a
guindo esse caminho, Loureiro (2010) aponta sociedade, em si contraditória, aparece. “A
que é possível identificar, a partir do entrela- referência do social não deve levar para fora
çamento das ideias do autor, princípios filosó- da arte, mas sim levar mais a fundo para den-
ficos potencializadores de uma teoria estética tro dela” (2003b, p. 66).
crítica relacionada à produção e à apreciação Marcuse (1977, p. 14) alerta para o cui-
do espectador de cinema. dado que se deve tomar com a arte engaja-
O terceiro desafio foi delinear como o da, pois “quanto mais imediatamente política
cinema pode constituir-se como resistência for a obra de arte, mais ela reduz o poder de
em interconexão com a arte e em oposição afastamento e os objetivos radicais e trans-
a um cinema como mercadoria da indústria cendentes de mudança”. Adorno (2003c), ao
cultural. Nos dois autores, esse debate requer debater essa questão, alerta-nos de que as
a análise da presença de elementos estéticos obras de arte “estão acima da controvérsia
que caracterizam o que eles denominam arte, entre arte engajada e arte pela arte, acima da
e a discussão dos elementos que indicam a ne- alternativa entre a vulgaridade da arte ten-
gação da racionalidade da indústria cultural, denciosa e a vulgaridade da arte desfrutável”
da sociedade unidimensional. Essa discussão (p. 62-63).
oferecerá elementos tanto para a reflexão so- A arte é revolucionária quando apresen-
bre a atualidade da contribuição desses auto- ta uma mudança radical no estilo e na técni-
res como para o delineamento de elementos ca (vanguarda), “antecipando ou refletindo
estéticos que consideram importantes para a mudanças substanciais na sociedade” (MAR-
experiência formativa. CUSE, 1977, p. 12), e quando apresenta a re-
Inicialmente, é necessário esclarecer que alidade em suas mediações. Nesse contexto,
a discussão de Adorno sobre estética dá-nos reproduzir fórmulas de sucesso, êxitos de
base para analisar o cinema ou o filme, não so- bilheteria, descartando o que é risco, é empo-
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
113
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
brecedor. Realizar a padronização da forma e jeito com a objetividade” (ADORNO, 2003b, p.
do estilo de um filme a serviço de uma socie- 72). Expressando o indivíduo ou a coletivida-
dade almejada também empobrece o conteú- de, a arte ultrapassa a mera individualidade.
do e o produto estético. Nesse contexto, o filme formativo não
A arte apresenta universalidade, pois ar- estabelece a articulação entre o todo e o de-
ticula a humanidade concreta e universal dos talhe como se fossem idênticos. Há a comu-
seres genéricos, homens e mulheres, capazes nicação de coisas distintas e dialeticamente
de viverem em liberdade (MARCUSE, 1977). interligadas. O universal não pode substituir o
Na arte, os personagens são apresentados particular e vice-versa (HORKHEIMER, ADOR-
como tipos que representam as tendências NO, 1985). Assim, o trailer do filme não dá
objetivas do desenvolvimento da sociedade, conta do que o filme é. Para Horkheimer e
de todo o desenvolvimento da humanidade. Adorno (1985), o filme comercial é o trailer
A arte resguarda a relação entre parti- daquilo que promete e em função de que ele
cular e universal. Ela extrai, da mais irrestrita simultaneamente engana. Ele é a propagan-
individuação, o universal: da de si mesma quando atesta na cara o ca-
ráter mercantil como um estigma (ADORNO,
O teor de um poema não é a mera 2003a): “Cada filme é um trailer do filme se-
expressão de emoções e experi- guinte, que promete reunir mais uma vez sob
ências individuais. Pelo contrário, o mesmo sol exótico o mesmo par de heróis;
estas só se tornam artísticas quan- o retardatário não sabe se está assistindo ao
do, justamente em virtude da espe- trailer ou ao filme mesmo” (HORKHEIMER;
cificação que adquirem ao ganhar ADORNO, 1985, p. 153). Assim, perder uma
forma estética, conquistam sua par- parte do filme não traz prejuízos ao sentido
ticipação universal. Não que aquilo do todo. Mesmo que as distinções de um fil-
que o poema lírico exprima tenha me sejam enfatizadas na tentativa de ressal-
de ser imediatamente aquilo que tar que algo novo está sendo oferecido, na
todos vivenciam […] Não é a mera verdade ele segue a mesma racionalidade. Ao
comunicação daquilo que os outros mesmo tempo, personagens tipificados e re-
simplesmente não são capazes de alidade estereotipada, que difundem clichês
comunicar. Ao contrário, o mergu- e tiques, e experiência previamente categori-
lho no individuado eleva o poema zada e valorizada, que preserve os indivíduos
lírico ao universal por tornar mani- da ansiedade suscitada pela reflexão e pela
festo algo de não distorcido, e não experiência, também oferecem base para
captado, de ainda não subsumido, uma subjetividade reificada. Ter tiques impli-
anunciado desse modo, por ante- ca dizer que as pessoas organizam a percep-
cipação, algo de um estado em que ção do mundo dividindo-o em campos admi-
nenhum universal ruim, ou seja, no nistrativos esquemáticos, fazendo com que
fundo algo particular, acorrente o se posicionem sobre tudo, sem, na verdade,
outro, o universal humano. (ADOR- entrar em contato com nada (HORKHEIMER;
NO, 2003b, p. 66). ADORNO, 1985).
Duarte (2010) afirma que Adorno com-
Só escuta o universal quem, em sua so- bate os estereótipos com a alegoria: “Podía-
lidão, escuta a voz da humanidade. Não é um mos dizer que, exatamente onde a narrativa
vago sentimento de algo universal e abran- de uma obra contemporânea ameaça rebaixá-
gente. A arte tem de apresentar “totalidade -la à condição de mercadoria cultural, o proce-
ou universalidade, tem de oferecer, em sua dimento alegórico pode atuar de modo deci-
limitação, o todo; em sua finitude, o infinito, sivo no revigoramento de sua linguagem” (p.
[…] os sedimentos da relação histórica do su- 110).
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
114
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
Segundo Adorno (2003a), é necessário de dominação, ou seja, ela critica a aparência
ter certos cuidados com as diferenças na lin- da realidade, pois apresenta suas mediações
guagem entre cinema e literatura: ocultas (CHAVES; RIBEIRO, 2014). A presença
da sociedade está na arte como matéria-pri-
Num romance, mesmo quando se ma, como historicidade do material conceitu-
utiliza o diálogo, a palavra falada al, linguístico e sensível, nos processos impli-
não é diretamente falada, mas antes cados no fazer e nos modos de produzir.
distanciada pelo acto da narração Para Adorno (1970), o caráter mimético
– eventualmente até a tipografia –, da arte não se iguala à realidade. Ao tentar
pelo que abstrai da presença física aderir e igualar-se à realidade, à natureza, a
das pessoas vivas. Assim, as perso- arte torna-se outra realidade, ou seja, ao que-
nagens de ficção nunca se asseme- rer transformar-se em um outro, semelhante
lham aos seus homólogos empíri- ao objeto, a obra de arte torna-se dele desse-
cos, por mais minuciosamente que melhante. Ao mesmo tempo em que o filme
sejam descritas. De facto, a própria resistência não é mera reprodução da realida-
precisão da sua apresentação pode de, ele também não é mera tradução de uma
muito bem afastá-las ainda mais da teoria. A arte não é a mera duplicação do que
realidade empírica: tornam-se esteti- a teoria traduz: “Quanto mais as obras de arte
camente autônomas. Essa distância esperam ser explicadas, tanto mais cada uma
é abolida nos filmes; na medida em delas acaba traindo seu conformismo, mesmo
que um filme é realista, a aparência que essa não tenha sido sua intenção” (ADOR-
da imediatidade não se pode evitar. NO, 2003d, p. 135). O vigor da arte não está na
Em resultado disso, frases que se subsunção de intuições a conceitos, mas no li-
justificavam pela dicção da narrati- vre jogo da imaginação e do entendimento. O
va, que as distingue da falsa quoti- imprevisto da arte contemporânea, que desa-
dianeidade da simples reportagem, fia a percepção comum, parece ser um antído-
soam pomposas e inautênticas no to contra o procedimento da indústria cultural:
cinema. O cinema tem, pois, de pro- “As grandes obras de arte são aquelas que, em
curar outras formas de transmitir a seus pontos mais problemáticos, acabam sen-
imediatidade. Entre elas, pode ocu- do felizes” (ADORNO, 2003b, p. 88).
par um elevado grau de prioridade a O produto cultural cinema resistência
improvisação que intencionalmente apresenta identidade consigo mesmo. Ele
se abandona ao acaso de uma ex- fala aquilo que a ideologia esconde, por isso
periência empírica não perturbada. se distancia da mera existência. Nesse senti-
(ADORNO, 2003a, p. 182-183). do, o expectador de cinema não “percebe a
rua como um prolongamento do filme que
O cineasta deve se exercer como narra- acabou de ver ou vice-versa” (HORKHEI-
dor de uma experiência que revele um mundo MER; ADORNO, 1985, p. 118). A realidade é
que puxe para o espaço interior, onde haja um abordada em sua complexidade e, com isso,
fluxo da consciência protegido da refutação a percepção é ampliada.
da ordem espaço-temporal, por isso capaz de O filme formativo não realiza a expro-
surpreender (ADORNO, 2003c). priação do esquematismo kantiano, pois não
A arte carrega alteridade diante da rea- oferece ao expectador os esquemas pré-fixa-
lidade, pois comunica verdades que não são dos que ele deve expressar (DUARTE, 2008).
comunicáveis em nenhuma outra linguagem. Não apresenta um filme que
Marcuse (1977) entende que a arte realiza o
combate ao fetichismo das forças produtivas desde o começo […] já se sabe
do indivíduo diante das condições objetivas como termina, quem é recompensa-
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
115
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
do, e, ao escutar a música ligeira, o ídas mirabolantes para personagens que ir-
ouvido treinado é perfeitamente ca- rompem a ação fílmica, quando recorrem ao
paz, desde os primeiros compassos, puro absurdo, provocando o contentamento
de adivinhar o desenvolvimento do do expectador com as situações precariamen-
tema e sente-se feliz quando ele tem te interligadas ou quando oferecem experiên-
lugar como previsto. (HORKHEI- cias substitutivas de reconstrução social insti-
MER; ADORNO, 1985, p. 118). gando os choques e ocultando a experiência
mutilada da realidade.
É por isso que o filme figura uma realida- A autonomia da arte está tradicional-
de em sua essência, e não em sua manifesta- mente ligada à concepção kantiana de finali-
ção imediata (MARCUSE, 1977); suscita outra dade sem fim, como contraparte objetiva do
sensibilidade, imaginação e razão. prazer desinteressado que o sujeito contem-
No texto em que Loureiro (2012) discute plador experimenta no juízo de gosto (ADOR-
as afluências entre a teoria estética de Ador- NO, 1970). De acordo com Duarte (2010),
no (1970) e os filmes de Alexandre Kluge, fica Adorno faz uma releitura da crítica da facul-
evidente a importância da presença do enig- dade do juízo e reforça a vinculação entre o
ma nas obras. Há algo que salta, que não pode desinteresse no juízo de gosto e a caracte-
ser tomado como evidência do real, ou seja, rística formal do objeto que o ocasiona, que
há algo que instiga a sensibilidade estética e sinaliza uma finalidade pela harmonia de suas
que desmente o que quer ser. O enigmático partes sem explicar um propósito concreto a
não está na intenção do artista, mas no que ela relacionado: “As obras de arte são finalís-
a obra expressa, que, muitas vezes, é perce- ticas enquanto totalidades dinâmicas na qual
bido pelo desprovido de experiência estética, todos os momentos singulares existem para o
como uma grande confusão. “O expectador seu fim, o todo, do mesmo modo que o todo
desconfia de que há algo mais que ele precisa para o seu fim” (ADORNO, 1970, p. 105). Elas
saber e conhecer” (p. 89), e é instigado a des- são sem fim, se considerar-se a finalidade fun-
vendar o enigma que surpreende e que não cional, o primado meio-fim da realidade empí-
pode ser devorado, explicado pela formalida- rica, da realidade exterior.
de da consciência. “Não posso perceber uma Assim, o cinema que se apresenta sob
poça na qual a chuva cai, só posso vê-la. Dizer medida para suprir a necessidade imediata
que compreendo uma poça é sem sentido” do lucro, do entretenimento, já segue a lógi-
(KLUGE apud LOUREIRO, 2012, p. 89). O enig- ca funcional da distração e, por isso, “favore-
ma do filme pode estar em sua montagem e ce a resignação que nela quer se esquecer”
nos cortes. “O corte exclui o que não é mos- (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 133). A di-
trado pela câmera, mas sempre retém o ocul- versão é o prolongamento do trabalho. Ela é
to” (LOUREIRO, 2012, p. 90). procurada por quem quer escapar ao processo
A partir de Horkheimer e Adorno (1985, de trabalho mecanizado para pôr-se de novo
p. 119), podemos afirmar que um filme que em condições de enfrentá-lo. Nesse sentido, o
não possibilite a fantasia, o pensamento e o prazer acaba por congelar-se no aborrecimen-
estranhamento dos expectadores, que não to (HORKHEIMER; ADORNO, 1985). A indústria
instigue o passear e a divagação livres do do prazer gera o esquecimento do que nos faz
controle dos dados exatos, e que realize a sofrer. A gargalhada realiza uma reconciliação
identificação imediata com a realidade, não falsa, pois ridiculariza a humanidade.
apresenta alteridade. O empobrecimento do A transcendência do produto é outro
conteúdo também pode ser observado quan- elemento importante para pensar o cinema
do informações são difundidas sem quadro como resistência. Ela se revela quando se
de referência que lhes dê sentido, como se esboça no contexto de condições sociais de-
fossem neutras, quando a trama oferece sa- terminadas, ao mesmo tempo em que reve-
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
116
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
la forças não imputáveis, atribuíveis a essas O belo, na sua forma estética, realiza
mesmas condições específicas. A historicida- uma espécie de mimese transformadora.
de da arte articula uma temporalidade que “Pode-se falar da beleza de uma festa fascista
congrega o presente, o passado e o futuro, in- (Leni Riefensthal até filmou uma!), mas a neu-
corpora “prospecção, retrospecção, tempos tralidade do belo revela-se como decepção de
diversos, dinamicidade, rupturas, continuida- se reconhecer o que está suprimido ou ocul-
des” (RESENDE, 2001, p. 81). Ela é “histórica to” (MARCUSE, 1977, p. 66). A forma captura
porque vem de um tempo passado e revela e dá permanência ao terror: “a representação
no presente o passado que o futuro poderá do fascismo torna-se possível na literatura
ou não acolher, da mesma maneira que revela porque a palavra, não silenciada nem apaga-
no passado um gérmen do tempo presente, da pela imagem, medeia o conhecimento e
porque ainda desperta o encanto, ou o prazer conduz à denúncia” (MARCUSE, 1977, p. 66).
ou o conhecimento” (p. 80). Nesse caso, o belo evoca o terror chamando-
A dimensão da história está presente tan- -o pelo nome no momento em que reconhece
to na teoria estética de Adorno (1970) como a infame realidade do fascismo em sua práti-
nos filmes de Alexandre Kluge. A importância ca diária e, assim, testemunha e denuncia as
de o filme ter diálogo com a tradição, com a atrocidades. Assim, não há como ver beleza
elaboração do passado, é clara nos dois (LOU- em produtos culturais que façam a defesa de
REIRO, 2012). Não se parte de um ponto histó- irracionalidades violentas de sistemas totali-
rico zero. “A negação dialética da tradição re- tários em apologia a si mesmos sem apresen-
quer libertar-se do passado por incorporação” tar as tensões necessárias. A mimese trans-
(LOUREIRO, 2012, p. 92), o que contribui para o formadora reconhece a infame realidade e
esclarecimento da suposta novidade oferecida permite o prazer se sua ordem não for repres-
pelos produtos da indústria cultural e para ela- siva. “O regresso do recalcado, conseguido e
boração da irracionalidade do mundo. preservado na obra de arte, pode intensificar
A transcendência da arte está ligada ao esta rebelião” (MARCUSE, 1977, p. 67). Nesse
seu caráter de afirmação e de negação da processo, rejeitam-se as promessas falsas e o
realidade. Mesmo as obras mais críticas “aju- aliviamento do final feliz, mas também a mera
dam” a recepção da realidade adversa, ama- reprodução e integração do que existe.
ciam a miséria e, “mesmo a mais conformista Segundo Marcuse (1977), a substância
das obras constitui uma crítica à insuficiência do belo é preservada na sublimação estéti-
da realidade dada simplesmente por existir ca. Na forma estética, a realidade é sublima-
tão ilusória e fantasiosamente” (KANGUSSU, da em uma forma não conformista. A subli-
2010, p. 206). Para Marcuse (1977), o belo per- mação possui um componente afirmativo à
tence às imagens de libertação, e medida que realiza uma reconciliação e é um
veículo de negação na proporção em que re-
sob a sua lei, “mesmo o grito de de- aliza a crítica e apresenta as potencialidades
sespero… paga ainda tributo à infa- reprimidas.
me afirmação” e uma representação Horkheimer e Adorno (1985) afirmam
do mais intenso sofrimento “ainda que a mercadoria humilha a pulsão e a arte
contém o potencial de onde se pode faz “retroceder a humilhação da pulsão e sal-
extrair prazer”. Assim, mesmo a va o recalcado como algo mediatizado” (p.
cena da prisão no Fausto é bela, tal 161-162). O segredo da sublimação estética é
como a lúcida loucura no “Lenz” de apresentar a satisfação como interrompida.
Buchner ou a história de Teresa so- “A sublimação torna a apreciação estética
bre a morte de sua mãe em América, compatível com o modelo kantiano do juízo
de Kafka, ou o Fim de partida, de Be- de gosto, com seu prazer desinteressado”
ckett. (MARCUSE, 1977, p. 68). (DUARTE, 2010, p. 108).
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
117
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
Para Adorno (1986a, p. 105), “o filme produzido para ser vendido e consumido dentre
emancipado teria que retirar o seu caráter a os ditames do valor de troca, uma mercadoria
priori coletivo do contexto de atuação incons- que segue a racionalidade instrumental e
ciente e irracional, colocando-o serviço da in- estabelece-se como entretenimento ou la-
tenção iluminista”. Nesse contexto, o autor zer apazigua o sujeito para a adaptação. Mas,
ressalta as experiências estéticas dos cineas- como resistência, ele pode ser capaz de revelar
tas Charles Chaplin, Michelangelo Antonioni e contradições ocultas, mediar outra subjetivida-
Volker Schlöndorff – um dos principais repre- de, outra sensibilidade que não seja integrada
sentantes da segunda geração pós-movimento e submissa à lógica hegemônica. Assim, se o
de Oberhausen, de 1962 (LOUREIRO, 2005). filme realiza-se em uma perspectiva crítica, ele
Esperamos ter oferecido alguns elemen- pode ser uma experiência formativa voltada
tos para a continuidade da articulação entre para a educação do sujeito e para a transfor-
arte, cinema e subjetividade. O filme que é mação cultural da realidade.
Referências
ADORNO, T. W. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 1970.
ADORNO, T. W. Notas sobre o filme. In: COHN, G. (Org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática,
1986a. p. 100-107. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
ADORNO, T. W. A indústria cultural. In: COHN, G. (Org.). Comunicação e indústria cultural. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986b. p. 92-99.
ADORNO, T. W. Transparências sobre o cinema. In: ADORNO, T. W. Sobre a indústria da cultura.
Coimbra: Ângelus Novus, 2003a. p. 181-190.
ADORNO, T. W. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ADORNO, T. W. Notas de literatura I. São
Paulo: Duas cidades/Editora 34, 2003b. p. 65-89.
ADORNO, T. W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ADORNO, T. W. Notas de
literatura I. São Paulo: Duas cidades/ Editora 34, 2003c. p. 55-63.
ADORNO, T. W. Revendo o surrealismo. In: ADORNO, T. W. Notas de literatura I. São Paulo:
Duas cidades/ Editora 34, 2003d. p. 135-140.
CHAVES, J. C.; RIBEIRO, D. R. Arte em Herbert Marcuse: formação e resistência à sociedade
unidimensional. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, abr. 2014. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822014000100003&lng=pt&
nrm=iso>. Acesso em: 28 jan. 2015.
DUARTE, R. A indústria cultural hoje. In: VAZ, A. F.; ZUIN, A.; DURÃO, F. A. A indústria cultural
hoje. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 97-110.
DUARTE, R. O que está vivo na estética de T. W. Adorno. In: HADDOCK-LOBO, R. (Org.). Os filó-
sofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. p. 221-244.
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
KANGUSSU, I. Marcuse, vida e arte. In: HADDOCK-LOBO, R. (Org.). Os filósofos e a arte. Rio de
Janeiro: Rocco, 2010. p. 205-219.
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
118
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
LOUREIRO, R. Considerações sobre o cinema na teoria crítica. Adorno e Kluge: um diálogo pos-
sível. Impulso, Piracicaba, v. 16, n. 39, p. 123-134, 2005.
LOUREIRO, R. Adorno e o cinema: a conversa continua. In: LOUREIRO, R.; ZUIN, A. A. S. (Orgs.).
A teoria crítica vai ao cinema. Vitória: Edufes, 2010. p. 53-83.
LOUREIRO, R. Theodor Adorno e Alexandre Kluge: conferências estéticas em torno do Novo
Cinema Alemão. In: PUCCI, B.; COSTA. B. C. G. da C.; DURÃO, F. A. (Orgs.). Teoria crítica e crises:
reflexões sobre cultura, estética e educação. Campinas: Autores Associados, 2012. p. 79-95.
MARCUSE, H. A dimensão estética. Lisboa: Edições 70, 1977.
RESENDE, A. C. A. Arte e conhecimento. In: RESENDE, A. C. A.; CHAVES, J. de C. (Orgs.). Psicolo-
gia social: crítica socialmente orientada. Goiânia: PUC Goiás, 2010. p. 77-76.
RESENDE, A. C. A. Subjetividade em tempos de reificação: um tema para a psicologia social.
Estudos: Vida e Saúde, Goiânia, v. 28, n. 4, p. 511-538, jul.-ago. 2001.
SILVA, M. A. Adorno e o cinema: um início de conversa. Novos Estudos, São Paulo, n. 54, p. 114-
126, jul. 1999.
VÁZQUEZ, A. S. As ideias estéticas de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
Dados autorais
Juliana de Castro Chaves
Universidade Federal de Goiás/UFG. Graduada em Psicologia
pela Universidade Federal do Ceará (1993), mestrado em Psicologia
Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999) e doutorado
em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (2007). É professor Adjunto da Universidade
Federal de Goiás, Faculdade de Educação.
Recebido: 25/02/2015
Aprovado: 08/05/2015
Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
119
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119