Você está na página 1de 13

O entrelaçamento entre arte, cinema e

subjetividade: possibilidades, impasses


e desafios na teoria crítica

The Intertwining Between Art, Cinema, and Subjectivity:


Possibilities, Impasses, and Challenges in Critical Theory

Resumo Esse trabalho objetiva discutir algumas elaborações sus-


citadas pela pesquisa “Trabalho, Arte e Autonomia”, coordenada
por mim, e ligada ao Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicologia,
Educação e Cultura (Neppec), da Faculdade de Educação da Uni-
versidade Federal de Goiás (UFG). Indagamos se há possibilidade
de o filme ser um produto cultural de não adaptação à reprodu-
ção da sociedade do capital. Se o filme pode ser constituído por
elementos da arte, ou seja, se ele pode ser um produto cultural
Juliana de Castro Chaves
que forma sujeitos para o inconformismo. Este artigo estabele- Universidade Federal
ce interlocuções com Theodor Adorno e Herbert Marcuse, com de Goiás/UFG.
questões advindas do processo da pesquisa e com diálogos com julichcastro@gmail.com
autores, educadores e cineastas que resultaram em desafios a se-
rem enfrentados.
Palavras-chave: arte; cinema; teoria crítica.

Abstract This work aims to discuss some elaborations raised


by a research entitled “Work, Art, and Autonomy”, coordinated
by me, and connected to the Center for Studies and Research in
Psychology, Education, and Culture (Neppec), from the College
of Education of the Federal University of Goiás (UFG). We ask
whether there is a possibility of the film being a cultural prod-
uct not adapted to the reproduction of the capitalist society; if
the film can be formed by art elements, i.e., if it can be a cultural
product that forms subjects to nonconformity. This article estab-
lishes dialogues with Theodor Adorno and Herbert Marcuse, with
issues arising from the research process and from conversations
with authors, educators, and filmmakers, which resulted in chal-
lenges to be faced
Keywords: art; cinema; critical theory.

Introdução

A
problematização realizada nesse artigo está vinculada à
psicologia social e à educação, pois considera a relação
entre indivíduo, sociedade e cultura e estabelece o filme
como mediador psicossocial da constituição de uma subjetivida-
de, de um sujeito (RESENDE, 2001). Nossa pre- crítica da sociedade, em articulação com es-
ocupação é com processos educacionais que sas polêmicas, com o intuito de desenvolver
formam sujeitos que resistam à lógica massi- questões e suscitar diálogos.
ficadora da sociedade atual. Na discussão do Nosso primeiro desafio foi delinear a
entrelaçamento entre arte, processos educa- arte em vinculação com o trabalho, pois am-
cionais e cinema, levamos em conta o cinema bos são objetivações dos sujeitos, mas apre-
como expressão artística produzida para uma sentam tensões que não podem ser esqueci-
tela grande e que envolve um corpo pequeno das. Este debate pode evitar a indiferenciação
em uma sala escura, bem como as discussões imediata entre arte e mercadoria, a dicotomia
mais centradas na estética do filme. entre arte e realidade e a reserva de um lugar
Muitas são as polêmicas e os debates inviolável à arte.
sobre cinema. Na educação, certos filmes são Embora tenha havido uma cisão entre
valorizados por apresentarem um tema rele- arte e trabalho como um dado histórico, e
vante a ser discutido ou por enfocar um deter- haja conceitos diferenciados para cada mani-
minado acontecimento histórico ou uma temá- festação, devemos ter cuidado para não su-
tica polêmica. Também encontramos análises pervalorizar a arte como expressão estética,
que se debruçam sobre um cineasta ou sobre separada da sociedade, perdendo a contradi-
uma abordagem teórica. No senso comum, é
ção de ela poder ser produzida como tal ou
predominante a valorização do filme a partir
ser transformada em uma mercadoria feti-
de sua repercussão e do gosto do expectador,
chizada (CHAVES; RIBEIRO, 2014). Ao mesmo
sendo, muitas vezes, preteridos os conceitos
tempo, também não podemos perder a possi-
ou a análise da experiência estética. Em alguns
bilidade da objetivação trabalho ser experiên-
debates vinculados ao marxismo que articulam
cia formativa, mesmo no capitalismo. O fazer
arte, sociedade e processos educacionais, en-
contramos enfoques que afirmam a necessi- artístico é trabalho como objetivação, como
dade de a arte ser engajada ou de ser pautada reconhecimento do ser humano.
em uma tendência realista reacionária ligada A força produtiva estética é a mes-
a aspectos ideológicos e políticos restritos ma que a do trabalho útil e possui
(VÁZQUEZ, 2011). Há, também, afirmativas que em si a mesma teleologia; e o que se
destinam à arte um lugar incólume, apartado deve chamar a relação de produção
da sociedade, que negligencia as próprias con- estética, tudo aquilo em que a força
tradições de seu surgimento, a relação com a
produtiva se encontra inserida e em
sociedade burguesa e, no que diz respeito ao
que se exerce, são sedimentos ou
cinema, ignoram as interfaces com a indústria
moldagens da força social. (ADOR-
cultural. Ou, ainda, as que equiparam a merca-
NO, 1970, p. 16).
doria cultural à arte, perdendo de vista a rela-
ção com o sistema produtivo capitalista. Nes- No entanto, é importante ressaltar que,
se caldo de ideias ainda encontramos os que quando Marcuse e Adorno discutem e criti-
afirmam que certos referenciais teóricos estão cam o trabalho nas determinações concretas
ultrapassados, que não conseguem analisar a e históricas da sociedade capitalista, portanto
arte na contemporaneidade em sua efemerida- sujeito à alienação, ao fetiche e à reificação, a
de, ou mesmo que Adorno é totalmente pessi- arte aparece como uma objetivação estética
mista com relação ao cinema. diferenciada.
Entrelaçamentos entre arte, cinema A arte não é unicamente o substitu-
e subjetividade: tensões to de uma práxis melhor do que a
na formação até agora dominante, mas também
Discutiremos alguns elementos que crítica da práxis enquanto domina-
podem contribuir com os debates da teoria ção da autoconservação brutal no

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
108
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
interior do estado de coisas vigente existiu; o problema apresenta-se quando ele
e por amor dele. Censura as men- se transforma em finalidade principal e decla-
tiras da produção por ela mesma, ra-se deliberada e orgulhosamente como tal,
opta por um estado da práxis situa- como um bem de consumo. É fundamental
do para além do anátema do traba- esclarecer que:
lho. (ADORNO, 1970, p. 23).
o fato de uma obra de arte ser ne-
A arte, ao ser enfocada como possibili- gociada não faz dela uma merca-
dade de resistência, apresenta contradições: doria cultural, uma vez que, no seu
projeto inicial, não se inscrevia ain-
O constrangimento à arte objectiva da essa possibilidade (a finalidade
nunca se satisfez com meios instru- sugerida pela harmonia formal não
mentais e invadiu os meios autôno- dependia da explicação de qualquer
mos. Ele desaprova, antes de mais, fim externo, como por exemplo ser
a arte como produto do trabalho vendida para enfeitar uma sala ou
humano, o qual, porém, não preten- preencher o vazio existencial de um
de ser um objecto, uma coisa entre consumidor culto). (DUARTE, 2010,
as coisas. (ADORNO, 1970, p. 73). p. 227-228).

Então, o consumo não delineia total-


Ao mesmo tempo, Adorno (1970) afirma mente a sua finalidade:
que a própria separação entre útil/necessário
e belo, e entre as dimensões do plano da cul- Mesmo na flor da idade dos ne-
tura espiritual e da civilização consolidam-se gócios, o valor de troca não arras-
na práxis burguesa e dão base tanto à ideia de tou o valor de uso como um mero
autonomia da arte como ao caráter mercantil apêndice, mas também o desen-
do produto cultural. Isso significa que a arte volveu como o pressuposto de sua
não se constitui pura e asséptica. Ela apre- própria existência, e isso foi social-
senta mediações sociais que a determinam, mente vantajoso para as obras de
“enquanto artefactos, produtos do trabalho arte. (HORKHEIMER; ADORNO,
social, comunicam igualmente com a empiria, 1985, p. 150).
que renegam, e da qual tiram o seu conteú-
do” (ADORNO, 1970, p. 15). O que pode acontecer é a sociedade ca-
pitalista absorver a falta de finalidade da obra.
As puras obras de arte, que negam Assim, a utilidade “é justamente a existência
o caráter mercantil da socieda- do inútil que, no entanto, é abolido pela
de pelo simples fato de seguirem subsunção à utilidade” (HORKHEIMER; ADOR-
sua própria lei, sempre foram ao NO, 1985, p. 147-148). Nesse sentido, a não
mesmo tempo mercadorias: até utilidade pode se transformar em um valor
o século dezoito, a proteção dos de troca, um fetiche. Mesmo que a obra, em
patronos preservava os artistas do sua produção, não tenha esse delineamento,
mercado, mas, em comparação, pode ser tomada por um valor de troca que
eles ficavam nesta mesma medida determina progressiva e inexoravelmente o
submetidos a seus patronos e aos lugar do valor de uso, deixando clara a contra-
objetivos destes. (HORKHEIMER; dição da própria obra em relação à sociedade
ADORNO, 1985, p. 147). capitalista, produtora de mercadorias.

Nesse contexto, podemos afirmar que A avaliação social que é erronea-


o caráter “mercantil” da obra de arte sempre mente entendida como hierarquia

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
109
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
das obras de arte – torna-se seu úni- Resguardados os cuidados com a dico-
co valor de uso, a única qualidade tomia e com as especificidades de cada teóri-
que elas desfrutam. É assim que o co, esses autores auxiliam o nosso olhar para
caráter mercantil da arte se desfaz o produto do trabalho – cinema – tensionado
ao se realizar completamente […] entre a mercadoria da indústria cultural, que
Torna-se algo hipocritamente inven- provoca adaptação, uma mercadoria produ-
dível, tão logo o negócio deixa de zida para a massa, e o produto do trabalho
ser meramente sua intenção e passa – que carrega elementos da arte –, capaz de
a ser seu único princípio. (HORKHEI- instigar a resistência à sociedade unidimensio-
MER; ADORNO, 1985, p. 148). nal e administrada.
O segundo desafio foi não reproduzir
No cinema, muitas vezes, podemos a ideia dicotômica de que Adorno (1986a) é
observar o valor de troca sendo critério de completamente pessimista perante o cinema.
qualidade. Não é raro ver que a qualidade do É possível pensar o filme, em seu caráter for-
produto cultural é avaliada por seu impacto, mativo, a partir de textos mais específicos so-
pela bilheteria, pelo valor da propaganda ou bre cinema: Composição para os filmes, com
pelas cifras gastas na produção (HORKHEI- Hanns Eisler, de 1944, Notas sobre o filme e
MER; ADORNO, 1985, p. 114). Também pode Transparências sobre o cinema ambos, de 1966
ocorrer de o expectador, apreciador de cine- (SILVA, 1999), e em textos que refletem so-
ma, ao invés do valor de uso na recepção de bre arte, estética, literatura, música e cultura.
um filme, buscar estar informado ou inserir- Ao mesmo tempo, em textos que abordam
-se em um grupo seleto, fazendo do bem a indústria da cultura e a crítica da ideologia,
também conseguimos extrair contribuições.
cultural um valor de troca, e, consequente-
Nesse sentido, é importante destacar que
mente, um fetiche no qual cada um termina
os subsídios desse autor, no que diz respeito
por tratar o filme, a si e aos outros como uma
à análise de o cinema ser ou não produto de
mercadoria.
resistência, pode advir tanto da negação das
É importante ressaltar que o caráter de características do que é racionalidade dos pro-
mercadoria não pode ser buscado apenas da dutos da indústria da cultura como da confir-
recepção, mas na produção. O processo de mação de elementos que caracterizam a arte.
trabalho da produção de um filme também A crítica de Adorno (2003a) é dedi-
pode ser fragmentado. A divisão do trabalho, cada especialmente ao cinema padrão de
dos artistas e dos meios de produção, pauta- Hollywood, que se distancia da obra autôno-
da pela apropriação da força de trabalho dá, ma e que subordina a dimensão estética à
muitas vezes, um caráter individual, persona- lógica da tecnologia da reprodução. Mesmo
lista, ao filme. que Adorno tenha escrito antes da explosão
O fetichismo atinge o íntimo do indiví- midiática das últimas décadas, a crítica que
duo, a sua subjetividade, pois, ele e Horkheimer (1985) fizeram continua va-
lendo no contexto atual de consolidação da
não é somente como produtor que mundialização do capitalismo, iniciada entre
o indivíduo se defronta com as for- 1980 e 1990, pois ainda há hegemonia norte-
mas místicas da realidade, mas tam- -americana das produções, só que atualmen-
bém como sujeito que se objetiva te existem oligopólios e conglomerados com
e não se reconhece no objeto que o entrelaçamento de vários tipos de mídias
ganhou vida própria, como sujeito (DUARTE, 2008). Segundo Duarte (2008), o
individual e coletivo que não se re- movimento de fusão e aquisição, ocorrido na
conhece a si e tampouco os outros década de 1990, acirrou e ampliou ainda mais
indivíduos. (RESENDE, 2001, p. 521). essa hegemonia, fazendo com que todos os

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
110
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
estúdios de Hollywood terminassem por pos- tação nos filmes que a celebram e
suir vinculação com canais de televisão que que homogeneízam até tornar con-
ou são transmitidos por satélite ou são ofere- fundível o inconfundível de que se
cidos por TV a cabo. nutre. (ADORNO, 1986b, p. 97).
É exatamente por isso que é necessário
ter cautela com a ampliação do acesso ao O primado da técnica reúne e organiza
cinema para a grande massa. A tese de que estímulos que provocam o comportamento
a indústria cultural seria a arte dos consumi- reativo, autômato e sem memória (KANGUS-
dores é falsa, é a ideologia da ideologia. Para SU, 2010). A atrofia da imaginação e da espon-
Adorno (1970), essa equiparação não é pos- taneidade é propiciada pelo filme em sua pró-
sível, já que a recepção é realizada de forma pria constituição objetiva.
grosseira, estático-harmônica, segundo o mo-
delo da oferta e da procura. O autor pondera São feitos de tal forma que sua
a relação entre alcance das massas e cinema, apreensão adequada exige, é ver-
pois avalia que não é democratização a cultu- dade, presteza, dom de observa-
ra circular como mercadoria, se, nesse movi- ção, conhecimentos específicos,
mento, não houver concretização das pro- mas também […] proíbem a ativi-
messas – justiça e igualdade. Essa realidade, dade intelectual do espectador, se
prioritariamente, apressa a integração à lógi- ele não quiser perder os fatos que
ca mercantil capitalista e à redução do recep- desfilam velozmente diante de seus
tor ao estatuto de consumidor, expropriando olhos. (HORKHEIMER; ADORNO,
a possibilidade de autonomia. 1985, p. 119).
Adorno também pondera que o cinema
padrão não amplia a capacidade perceptiva O espectador fica absorvido pelo uni-
do espectador (LOUREIRO, 2010). Critica a verso do filme, pelos gestos, imagens e pa-
técnica1 que vira segunda natureza e que é lavras, sem lhes acrescentar algo. Eles ficam
enaltecida sem vinculação com o restante dos tão familiarizados com os desempenhos exi-
elementos estéticos. Também pondera que, gidos da atenção, que esta se coloca automa-
embora a técnica tenha potencialidades de ticamente. “Os produtos da indústria cultural
ampliar a apreensão da realidade, de mostrar podem ter a certeza de que até mesmo os
contradições e intencionalidades inquietan- distraídos vão consumi-los alertadamente”
tes, de mostrar elementos não visíveis ao olho (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 119), não
nu, na indústria cultural ela difunde e aprimo- oferecendo folga e nem descanso da raciona-
ra apreensões imediatas do real e realiza o lidade do capital.
empobrecimento da percepção. Muitas vezes Adorno (1986a) critica o primado do
a realidade é demonstrada em cores vivas e caráter tecnológico do cinema padrão que é
em 3D, mas, na verdade, ela oculta as media- tomado de forma isolada, abstraindo a lingua-
ções que a constituem: gem do filme, sem relação com a organização
imanente da coisa. Para o autor, a indústria
A boa velha estalagem sofreu uma
cinematográfica da época reunia a música e
demolição mais total no filme em
o close-up como técnicas que se sobressaíam
cores do que pelas bombas. Pátria
diante do conteúdo. Desse modo, seria impor-
alguma sobrevive à sua apresen-
tante fugir dos efeitos que se tornam conven-
Para Adorno, em razão do nascimento tardio do
1 ções, que não respeitam a produção individual
cinema, há a difícil diferenciação entre técnica e, por isso, tornam-se kitsch. Na época, ele es-
(intrínseca à obra) e tecnologia (execução). “Como tava se referindo tanto às técnicas repetidas
no cinema não há original sobre o qual se faz a
reprodução, o produto é a própria coisa em si”
que se opunham ao realismo, entre as quais
(2003a, p. 183). a filmagem desfocada, as sobreposições e os

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
111
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
flashbacks, quanto ao artificialismo comercial As críticas de Adorno não significam que
(ADORNO, 2003a). Nessa discussão, Adorno todo filme deve ser expurgado e não possa
(1986a) indica a necessidade de sair do mero vir a ser formativo, mesmo que certos auto-
documentário que carece de ofício artístico. res ponderem mais a produção cinematográ-
Para ele, “a saída está em fazer uma monta- fica como expressão da degradação cultural
gem que recoloca as coisas em constelações (LOUREIRO, 2005). As discussões que indi-
espirituais” (p. 105). cam a possibilidade de o filme ser formativo,
Essas ponderações auxiliam-nos a ter em Adorno, são mais explícitas na década de
cuidado com os modismos e as recorrências 1960, em que ele se deparou, em seu próprio
no que diz respeito ao uso da técnica. Para país, com um movimento organizado e críti-
ele, não é que o filme-resistência não tenha co chamado Novo Cinema Alemão. Adorno
técnica, mas essas obras “não dominam intei- (1986a) defende o Novo Cinema Alemão, em
ramente sua técnica e que, por isso, deixam contraposição ao cinema do papai (cunhado
passar algo de incontrolado, de ocasional, pelo movimento Oberhausen3). Para ele, o
têm o seu lado libertador” (ADORNO, 1986a, novo cinema alemão condensa a crítica ao
p. 101). O filme pode conter diferentes com- lixo que a indústria cinematográfica havia pro-
portamentos, e a variação entre intenção e duzido desde o início do século XX. Ele com-
efeito é determinada por ele. A técnica deve preende que a difamação desse movimento,
aparecer como lei negada. chamando-o de cinema de guri, para ressaltar
Segundo Loureiro (2010), nas confluên- a imaturidade dos jovens cineastas alemães,
cias entre a teoria estética de Adorno (1970) e em oposição à experiência dos cineastas do
os filmes de Alexandre Kluge,2 o filme é deline- 3
Loureiro (2005), ao discutir Hake (2002), ressalta que a
ado como uma espécie de ensaio artístico que filmografia alemã do pós-Segunda Guerra Mundial, no
privilegia a forma de apresentação, no qual período de 1945 a 1961, reproduzia a mesma lógica dos
se mantém resguardada a experimentação filmes produzidos sob o Terceiro Reich. Os filmes, em
artística. Nesse sentido, é fundamental trair e geral, eram conservadores e reacionários no que se
refere a valores sociais e crenças políticas. Os estudos
desafiar a técnica e provocar uma experiência apontam para um público que possuía necessidade
subjetiva capaz de produzir um tom artístico psicológica de esquecer os danos do passado e
no filme. Fazer imagens que não se sobrepõem ignorar os problemas do presente. “Em 1961, a partir
continuamente, uma após outra. É exatamen- de uma proclamação oficial do governo, assistiu-se à
falência do cinema artístico da Alemanha Ocidental.
te na parada do movimento que “as imagens Não houve, naquele ano, nenhuma premiação, pois
do monólogo interior devem a sua semelhança o Ministério do Interior entendeu que não havia
à escrita: também ela é algo que se move sob obra digna de tal honra” (p. 130). É aí que surge
o olho e, ao mesmo tempo, é algo paralisado uma nova geração que realizava, especialmente,
curtas-metragens. Em fevereiro de 1962, 26 jovens
em seus signos individuais” (ADORNO, 1986a, cineastas publicaram um manifesto durante o VIII
p. 102). Ele diz que é como se uma pessoa, de- Festival de Cinema de Oberhausen (ADORNO, 2003a),
pois de um ano na cidade, permanecesse, por morte do antigo cinema alemão, tornando possível
várias semanas, de repouso em uma região o surgimento de um novo gênero de filmes e de um
cinema liberado das convenções tradicionais. Eles
montanhosa e, no sono ou no devaneio, en- se colocavam contra os grandes monopólios de
trasse em contato com imagens de paisagem cinema da Alemanha Ocidental e defendiam um filme
que passam à sua frente sem ser uma após a inspirado pela imaginação e concepção estética de
outra, mas com intervalos (ADORNO, 1986a). seus criadores (cinema de autor). Eles defendiam
as seguintes características: “baixo custo das
Alexander Kluge conviveu na juventude com Adorno
2
produções; recusa das formas estéticas do cinema
e Fritz Lang. Ele foi um dos autores do Manifesto tradicional, com sua narrativa linear e sínteses fáceis;
de Oberhausen, que deslanchou o movimento do uso do preto e do branco recorrente, na tentativa de
Novo Cinema Alemão, do qual participaram também não tornar o filme um retrato fiel da realidade; fusão
Fassbinder, Werner Herzog, Margarethe Von entre documentário e ficção (cinema-verdade, cinema
Trotta, Volker Schlöndorff, Wim Wenders e outros direto); preocupação com a tematização de questões
(LOUREIRO, 2010). históricas e sociais” (Loureiro, 2005, p. 130).

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
112
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
cinema de papai, era inapropriada (LOUREI- mente a partir do julgamento do gosto e nem
RO, 2010). De acordo com Adorno (1986b), a partir da avaliação do deleite do expectador.
tal crítica era incabível, pois a questão posta
era combater a imaturidade do próprio cine- As obras de arte estão ligadas a um
ma “experiente”, combater sua infantilidade comportamento de admiração por
e sua regressão, portanto esse ataque reali- ela ser o que é, e não para quem
zado pelo cinema experiente é ingênuo por as contempla, e não porque realiza
responder com o mesmo xingamento, com o deleite ou alguém a saboreia. O
as mesmas palavras que lhe foram atribuídas, movimento não é o de incorpora-
esquecendo de uma sabedoria que até as ção da obra, mas o de desapareci-
crianças, em suas brincadeiras de xingamen- mento do contemplador. (ADOR-
to, seguem. NO, 1970, p. 24).
Segundo Silva (1999), mesmo sabendo
que existem críticas a Adorno indicando que Para Adorno e Marcuse, a arte apresen-
ele não dialogou com tradições do cinema ta um caráter político, não por configurar os
que se opuseram à hegemonia de Hollywood, interesses de uma determinada classe. Segun-
tais como neorrealismo italiano, nouvelle va- do Marcuse, a arte essencialmente política é
gue na França, o ciclo dos chamados cinemas aquela que, em sua forma estética, “rompe
novos (na Alemanha, no Leste Europeu, no com a consciência dominante e revoluciona
Brasil), as vanguardas, o cinema experimen- a experiência” (1977, p. 11). De acordo com
tal nos Estados Unidos dos anos 1940, dentre Adorno (2003b), ver o social não é ter na mira,
outros, não devemos nos fixar no que Adorno sem mediação, a posição social ou a inserção
não fez, mas tentar enxergar suas contribui- social dos interesses das obras, ou, até, de
ções a partir do cinema por ele debatido. Se- seus autores. É necessário perceber como a
guindo esse caminho, Loureiro (2010) aponta sociedade, em si contraditória, aparece. “A
que é possível identificar, a partir do entrela- referência do social não deve levar para fora
çamento das ideias do autor, princípios filosó- da arte, mas sim levar mais a fundo para den-
ficos potencializadores de uma teoria estética tro dela” (2003b, p. 66).
crítica relacionada à produção e à apreciação Marcuse (1977, p. 14) alerta para o cui-
do espectador de cinema. dado que se deve tomar com a arte engaja-
O terceiro desafio foi delinear como o da, pois “quanto mais imediatamente política
cinema pode constituir-se como resistência for a obra de arte, mais ela reduz o poder de
em interconexão com a arte e em oposição afastamento e os objetivos radicais e trans-
a um cinema como mercadoria da indústria cendentes de mudança”. Adorno (2003c), ao
cultural. Nos dois autores, esse debate requer debater essa questão, alerta-nos de que as
a análise da presença de elementos estéticos obras de arte “estão acima da controvérsia
que caracterizam o que eles denominam arte, entre arte engajada e arte pela arte, acima da
e a discussão dos elementos que indicam a ne- alternativa entre a vulgaridade da arte ten-
gação da racionalidade da indústria cultural, denciosa e a vulgaridade da arte desfrutável”
da sociedade unidimensional. Essa discussão (p. 62-63).
oferecerá elementos tanto para a reflexão so- A arte é revolucionária quando apresen-
bre a atualidade da contribuição desses auto- ta uma mudança radical no estilo e na técni-
res como para o delineamento de elementos ca (vanguarda), “antecipando ou refletindo
estéticos que consideram importantes para a mudanças substanciais na sociedade” (MAR-
experiência formativa. CUSE, 1977, p. 12), e quando apresenta a re-
Inicialmente, é necessário esclarecer que alidade em suas mediações. Nesse contexto,
a discussão de Adorno sobre estética dá-nos reproduzir fórmulas de sucesso, êxitos de
base para analisar o cinema ou o filme, não so- bilheteria, descartando o que é risco, é empo-

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
113
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
brecedor. Realizar a padronização da forma e jeito com a objetividade” (ADORNO, 2003b, p.
do estilo de um filme a serviço de uma socie- 72). Expressando o indivíduo ou a coletivida-
dade almejada também empobrece o conteú- de, a arte ultrapassa a mera individualidade.
do e o produto estético. Nesse contexto, o filme formativo não
A arte apresenta universalidade, pois ar- estabelece a articulação entre o todo e o de-
ticula a humanidade concreta e universal dos talhe como se fossem idênticos. Há a comu-
seres genéricos, homens e mulheres, capazes nicação de coisas distintas e dialeticamente
de viverem em liberdade (MARCUSE, 1977). interligadas. O universal não pode substituir o
Na arte, os personagens são apresentados particular e vice-versa (HORKHEIMER, ADOR-
como tipos que representam as tendências NO, 1985). Assim, o trailer do filme não dá
objetivas do desenvolvimento da sociedade, conta do que o filme é. Para Horkheimer e
de todo o desenvolvimento da humanidade. Adorno (1985), o filme comercial é o trailer
A arte resguarda a relação entre parti- daquilo que promete e em função de que ele
cular e universal. Ela extrai, da mais irrestrita simultaneamente engana. Ele é a propagan-
individuação, o universal: da de si mesma quando atesta na cara o ca-
ráter mercantil como um estigma (ADORNO,
O teor de um poema não é a mera 2003a): “Cada filme é um trailer do filme se-
expressão de emoções e experi- guinte, que promete reunir mais uma vez sob
ências individuais. Pelo contrário, o mesmo sol exótico o mesmo par de heróis;
estas só se tornam artísticas quan- o retardatário não sabe se está assistindo ao
do, justamente em virtude da espe- trailer ou ao filme mesmo” (HORKHEIMER;
cificação que adquirem ao ganhar ADORNO, 1985, p. 153). Assim, perder uma
forma estética, conquistam sua par- parte do filme não traz prejuízos ao sentido
ticipação universal. Não que aquilo do todo. Mesmo que as distinções de um fil-
que o poema lírico exprima tenha me sejam enfatizadas na tentativa de ressal-
de ser imediatamente aquilo que tar que algo novo está sendo oferecido, na
todos vivenciam […] Não é a mera verdade ele segue a mesma racionalidade. Ao
comunicação daquilo que os outros mesmo tempo, personagens tipificados e re-
simplesmente não são capazes de alidade estereotipada, que difundem clichês
comunicar. Ao contrário, o mergu- e tiques, e experiência previamente categori-
lho no individuado eleva o poema zada e valorizada, que preserve os indivíduos
lírico ao universal por tornar mani- da ansiedade suscitada pela reflexão e pela
festo algo de não distorcido, e não experiência, também oferecem base para
captado, de ainda não subsumido, uma subjetividade reificada. Ter tiques impli-
anunciado desse modo, por ante- ca dizer que as pessoas organizam a percep-
cipação, algo de um estado em que ção do mundo dividindo-o em campos admi-
nenhum universal ruim, ou seja, no nistrativos esquemáticos, fazendo com que
fundo algo particular, acorrente o se posicionem sobre tudo, sem, na verdade,
outro, o universal humano. (ADOR- entrar em contato com nada (HORKHEIMER;
NO, 2003b, p. 66). ADORNO, 1985).
Duarte (2010) afirma que Adorno com-
Só escuta o universal quem, em sua so- bate os estereótipos com a alegoria: “Podía-
lidão, escuta a voz da humanidade. Não é um mos dizer que, exatamente onde a narrativa
vago sentimento de algo universal e abran- de uma obra contemporânea ameaça rebaixá-
gente. A arte tem de apresentar “totalidade -la à condição de mercadoria cultural, o proce-
ou universalidade, tem de oferecer, em sua dimento alegórico pode atuar de modo deci-
limitação, o todo; em sua finitude, o infinito, sivo no revigoramento de sua linguagem” (p.
[…] os sedimentos da relação histórica do su- 110).

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
114
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
Segundo Adorno (2003a), é necessário de dominação, ou seja, ela critica a aparência
ter certos cuidados com as diferenças na lin- da realidade, pois apresenta suas mediações
guagem entre cinema e literatura: ocultas (CHAVES; RIBEIRO, 2014). A presença
da sociedade está na arte como matéria-pri-
Num romance, mesmo quando se ma, como historicidade do material conceitu-
utiliza o diálogo, a palavra falada al, linguístico e sensível, nos processos impli-
não é diretamente falada, mas antes cados no fazer e nos modos de produzir.
distanciada pelo acto da narração Para Adorno (1970), o caráter mimético
– eventualmente até a tipografia –, da arte não se iguala à realidade. Ao tentar
pelo que abstrai da presença física aderir e igualar-se à realidade, à natureza, a
das pessoas vivas. Assim, as perso- arte torna-se outra realidade, ou seja, ao que-
nagens de ficção nunca se asseme- rer transformar-se em um outro, semelhante
lham aos seus homólogos empíri- ao objeto, a obra de arte torna-se dele desse-
cos, por mais minuciosamente que melhante. Ao mesmo tempo em que o filme
sejam descritas. De facto, a própria resistência não é mera reprodução da realida-
precisão da sua apresentação pode de, ele também não é mera tradução de uma
muito bem afastá-las ainda mais da teoria. A arte não é a mera duplicação do que
realidade empírica: tornam-se esteti- a teoria traduz: “Quanto mais as obras de arte
camente autônomas. Essa distância esperam ser explicadas, tanto mais cada uma
é abolida nos filmes; na medida em delas acaba traindo seu conformismo, mesmo
que um filme é realista, a aparência que essa não tenha sido sua intenção” (ADOR-
da imediatidade não se pode evitar. NO, 2003d, p. 135). O vigor da arte não está na
Em resultado disso, frases que se subsunção de intuições a conceitos, mas no li-
justificavam pela dicção da narrati- vre jogo da imaginação e do entendimento. O
va, que as distingue da falsa quoti- imprevisto da arte contemporânea, que desa-
dianeidade da simples reportagem, fia a percepção comum, parece ser um antído-
soam pomposas e inautênticas no to contra o procedimento da indústria cultural:
cinema. O cinema tem, pois, de pro- “As grandes obras de arte são aquelas que, em
curar outras formas de transmitir a seus pontos mais problemáticos, acabam sen-
imediatidade. Entre elas, pode ocu- do felizes” (ADORNO, 2003b, p. 88).
par um elevado grau de prioridade a O produto cultural cinema resistência
improvisação que intencionalmente apresenta identidade consigo mesmo. Ele
se abandona ao acaso de uma ex- fala aquilo que a ideologia esconde, por isso
periência empírica não perturbada. se distancia da mera existência. Nesse senti-
(ADORNO, 2003a, p. 182-183). do, o expectador de cinema não “percebe a
rua como um prolongamento do filme que
O cineasta deve se exercer como narra- acabou de ver ou vice-versa” (HORKHEI-
dor de uma experiência que revele um mundo MER; ADORNO, 1985, p. 118). A realidade é
que puxe para o espaço interior, onde haja um abordada em sua complexidade e, com isso,
fluxo da consciência protegido da refutação a percepção é ampliada.
da ordem espaço-temporal, por isso capaz de O filme formativo não realiza a expro-
surpreender (ADORNO, 2003c). priação do esquematismo kantiano, pois não
A arte carrega alteridade diante da rea- oferece ao expectador os esquemas pré-fixa-
lidade, pois comunica verdades que não são dos que ele deve expressar (DUARTE, 2008).
comunicáveis em nenhuma outra linguagem. Não apresenta um filme que
Marcuse (1977) entende que a arte realiza o
combate ao fetichismo das forças produtivas desde o começo […] já se sabe
do indivíduo diante das condições objetivas como termina, quem é recompensa-

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
115
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
do, e, ao escutar a música ligeira, o ídas mirabolantes para personagens que ir-
ouvido treinado é perfeitamente ca- rompem a ação fílmica, quando recorrem ao
paz, desde os primeiros compassos, puro absurdo, provocando o contentamento
de adivinhar o desenvolvimento do do expectador com as situações precariamen-
tema e sente-se feliz quando ele tem te interligadas ou quando oferecem experiên-
lugar como previsto. (HORKHEI- cias substitutivas de reconstrução social insti-
MER; ADORNO, 1985, p. 118). gando os choques e ocultando a experiência
mutilada da realidade.
É por isso que o filme figura uma realida- A autonomia da arte está tradicional-
de em sua essência, e não em sua manifesta- mente ligada à concepção kantiana de finali-
ção imediata (MARCUSE, 1977); suscita outra dade sem fim, como contraparte objetiva do
sensibilidade, imaginação e razão. prazer desinteressado que o sujeito contem-
No texto em que Loureiro (2012) discute plador experimenta no juízo de gosto (ADOR-
as afluências entre a teoria estética de Ador- NO, 1970). De acordo com Duarte (2010),
no (1970) e os filmes de Alexandre Kluge, fica Adorno faz uma releitura da crítica da facul-
evidente a importância da presença do enig- dade do juízo e reforça a vinculação entre o
ma nas obras. Há algo que salta, que não pode desinteresse no juízo de gosto e a caracte-
ser tomado como evidência do real, ou seja, rística formal do objeto que o ocasiona, que
há algo que instiga a sensibilidade estética e sinaliza uma finalidade pela harmonia de suas
que desmente o que quer ser. O enigmático partes sem explicar um propósito concreto a
não está na intenção do artista, mas no que ela relacionado: “As obras de arte são finalís-
a obra expressa, que, muitas vezes, é perce- ticas enquanto totalidades dinâmicas na qual
bido pelo desprovido de experiência estética, todos os momentos singulares existem para o
como uma grande confusão. “O expectador seu fim, o todo, do mesmo modo que o todo
desconfia de que há algo mais que ele precisa para o seu fim” (ADORNO, 1970, p. 105). Elas
saber e conhecer” (p. 89), e é instigado a des- são sem fim, se considerar-se a finalidade fun-
vendar o enigma que surpreende e que não cional, o primado meio-fim da realidade empí-
pode ser devorado, explicado pela formalida- rica, da realidade exterior.
de da consciência. “Não posso perceber uma Assim, o cinema que se apresenta sob
poça na qual a chuva cai, só posso vê-la. Dizer medida para suprir a necessidade imediata
que compreendo uma poça é sem sentido” do lucro, do entretenimento, já segue a lógi-
(KLUGE apud LOUREIRO, 2012, p. 89). O enig- ca funcional da distração e, por isso, “favore-
ma do filme pode estar em sua montagem e ce a resignação que nela quer se esquecer”
nos cortes. “O corte exclui o que não é mos- (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 133). A di-
trado pela câmera, mas sempre retém o ocul- versão é o prolongamento do trabalho. Ela é
to” (LOUREIRO, 2012, p. 90). procurada por quem quer escapar ao processo
A partir de Horkheimer e Adorno (1985, de trabalho mecanizado para pôr-se de novo
p. 119), podemos afirmar que um filme que em condições de enfrentá-lo. Nesse sentido, o
não possibilite a fantasia, o pensamento e o prazer acaba por congelar-se no aborrecimen-
estranhamento dos expectadores, que não to (HORKHEIMER; ADORNO, 1985). A indústria
instigue o passear e a divagação livres do do prazer gera o esquecimento do que nos faz
controle dos dados exatos, e que realize a sofrer. A gargalhada realiza uma reconciliação
identificação imediata com a realidade, não falsa, pois ridiculariza a humanidade.
apresenta alteridade. O empobrecimento do A transcendência do produto é outro
conteúdo também pode ser observado quan- elemento importante para pensar o cinema
do informações são difundidas sem quadro como resistência. Ela se revela quando se
de referência que lhes dê sentido, como se esboça no contexto de condições sociais de-
fossem neutras, quando a trama oferece sa- terminadas, ao mesmo tempo em que reve-

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
116
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
la forças não imputáveis, atribuíveis a essas O belo, na sua forma estética, realiza
mesmas condições específicas. A historicida- uma espécie de mimese transformadora.
de da arte articula uma temporalidade que “Pode-se falar da beleza de uma festa fascista
congrega o presente, o passado e o futuro, in- (Leni Riefensthal até filmou uma!), mas a neu-
corpora “prospecção, retrospecção, tempos tralidade do belo revela-se como decepção de
diversos, dinamicidade, rupturas, continuida- se reconhecer o que está suprimido ou ocul-
des” (RESENDE, 2001, p. 81). Ela é “histórica to” (MARCUSE, 1977, p. 66). A forma captura
porque vem de um tempo passado e revela e dá permanência ao terror: “a representação
no presente o passado que o futuro poderá do fascismo torna-se possível na literatura
ou não acolher, da mesma maneira que revela porque a palavra, não silenciada nem apaga-
no passado um gérmen do tempo presente, da pela imagem, medeia o conhecimento e
porque ainda desperta o encanto, ou o prazer conduz à denúncia” (MARCUSE, 1977, p. 66).
ou o conhecimento” (p. 80). Nesse caso, o belo evoca o terror chamando-
A dimensão da história está presente tan- -o pelo nome no momento em que reconhece
to na teoria estética de Adorno (1970) como a infame realidade do fascismo em sua práti-
nos filmes de Alexandre Kluge. A importância ca diária e, assim, testemunha e denuncia as
de o filme ter diálogo com a tradição, com a atrocidades. Assim, não há como ver beleza
elaboração do passado, é clara nos dois (LOU- em produtos culturais que façam a defesa de
REIRO, 2012). Não se parte de um ponto histó- irracionalidades violentas de sistemas totali-
rico zero. “A negação dialética da tradição re- tários em apologia a si mesmos sem apresen-
quer libertar-se do passado por incorporação” tar as tensões necessárias. A mimese trans-
(LOUREIRO, 2012, p. 92), o que contribui para o formadora reconhece a infame realidade e
esclarecimento da suposta novidade oferecida permite o prazer se sua ordem não for repres-
pelos produtos da indústria cultural e para ela- siva. “O regresso do recalcado, conseguido e
boração da irracionalidade do mundo. preservado na obra de arte, pode intensificar
A transcendência da arte está ligada ao esta rebelião” (MARCUSE, 1977, p. 67). Nesse
seu caráter de afirmação e de negação da processo, rejeitam-se as promessas falsas e o
realidade. Mesmo as obras mais críticas “aju- aliviamento do final feliz, mas também a mera
dam” a recepção da realidade adversa, ama- reprodução e integração do que existe.
ciam a miséria e, “mesmo a mais conformista Segundo Marcuse (1977), a substância
das obras constitui uma crítica à insuficiência do belo é preservada na sublimação estéti-
da realidade dada simplesmente por existir ca. Na forma estética, a realidade é sublima-
tão ilusória e fantasiosamente” (KANGUSSU, da em uma forma não conformista. A subli-
2010, p. 206). Para Marcuse (1977), o belo per- mação possui um componente afirmativo à
tence às imagens de libertação, e medida que realiza uma reconciliação e é um
veículo de negação na proporção em que re-
sob a sua lei, “mesmo o grito de de- aliza a crítica e apresenta as potencialidades
sespero… paga ainda tributo à infa- reprimidas.
me afirmação” e uma representação Horkheimer e Adorno (1985) afirmam
do mais intenso sofrimento “ainda que a mercadoria humilha a pulsão e a arte
contém o potencial de onde se pode faz “retroceder a humilhação da pulsão e sal-
extrair prazer”. Assim, mesmo a va o recalcado como algo mediatizado” (p.
cena da prisão no Fausto é bela, tal 161-162). O segredo da sublimação estética é
como a lúcida loucura no “Lenz” de apresentar a satisfação como interrompida.
Buchner ou a história de Teresa so- “A sublimação torna a apreciação estética
bre a morte de sua mãe em América, compatível com o modelo kantiano do juízo
de Kafka, ou o Fim de partida, de Be- de gosto, com seu prazer desinteressado”
ckett. (MARCUSE, 1977, p. 68). (DUARTE, 2010, p. 108).

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
117
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
Para Adorno (1986a, p. 105), “o filme produzido para ser vendido e consumido dentre
emancipado teria que retirar o seu caráter a os ditames do valor de troca, uma mercadoria
priori coletivo do contexto de atuação incons- que segue a racionalidade instrumental e
ciente e irracional, colocando-o serviço da in- estabelece-se como entretenimento ou la-
tenção iluminista”. Nesse contexto, o autor zer apazigua o sujeito para a adaptação. Mas,
ressalta as experiências estéticas dos cineas- como resistência, ele pode ser capaz de revelar
tas Charles Chaplin, Michelangelo Antonioni e contradições ocultas, mediar outra subjetivida-
Volker Schlöndorff – um dos principais repre- de, outra sensibilidade que não seja integrada
sentantes da segunda geração pós-movimento e submissa à lógica hegemônica. Assim, se o
de Oberhausen, de 1962 (LOUREIRO, 2005). filme realiza-se em uma perspectiva crítica, ele
Esperamos ter oferecido alguns elemen- pode ser uma experiência formativa voltada
tos para a continuidade da articulação entre para a educação do sujeito e para a transfor-
arte, cinema e subjetividade. O filme que é mação cultural da realidade.

Referências
ADORNO, T. W. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 1970.
ADORNO, T. W. Notas sobre o filme. In: COHN, G. (Org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática,
1986a. p. 100-107. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
ADORNO, T. W. A indústria cultural. In: COHN, G. (Org.). Comunicação e indústria cultural. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986b. p. 92-99.
ADORNO, T. W. Transparências sobre o cinema. In: ADORNO, T. W. Sobre a indústria da cultura.
Coimbra: Ângelus Novus, 2003a. p. 181-190.
ADORNO, T. W. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ADORNO, T. W. Notas de literatura I. São
Paulo: Duas cidades/Editora 34, 2003b. p. 65-89.
ADORNO, T. W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ADORNO, T. W. Notas de
literatura I. São Paulo: Duas cidades/ Editora 34, 2003c. p. 55-63.
ADORNO, T. W. Revendo o surrealismo. In: ADORNO, T. W. Notas de literatura I. São Paulo:
Duas cidades/ Editora 34, 2003d. p. 135-140.
CHAVES, J. C.; RIBEIRO, D. R. Arte em Herbert Marcuse: formação e resistência à sociedade
unidimensional. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, abr. 2014. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822014000100003&lng=pt&
nrm=iso>. Acesso em: 28 jan. 2015.
DUARTE, R. A indústria cultural hoje. In: VAZ, A. F.; ZUIN, A.; DURÃO, F. A. A indústria cultural
hoje. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 97-110.
DUARTE, R. O que está vivo na estética de T. W. Adorno. In: HADDOCK-LOBO, R. (Org.). Os filó-
sofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. p. 221-244.
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
KANGUSSU, I. Marcuse, vida e arte. In: HADDOCK-LOBO, R. (Org.). Os filósofos e a arte. Rio de
Janeiro: Rocco, 2010. p. 205-219.

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
118
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119
LOUREIRO, R. Considerações sobre o cinema na teoria crítica. Adorno e Kluge: um diálogo pos-
sível. Impulso, Piracicaba, v. 16, n. 39, p. 123-134, 2005.
LOUREIRO, R. Adorno e o cinema: a conversa continua. In: LOUREIRO, R.; ZUIN, A. A. S. (Orgs.).
A teoria crítica vai ao cinema. Vitória: Edufes, 2010. p. 53-83.
LOUREIRO, R. Theodor Adorno e Alexandre Kluge: conferências estéticas em torno do Novo
Cinema Alemão. In: PUCCI, B.; COSTA. B. C. G. da C.; DURÃO, F. A. (Orgs.). Teoria crítica e crises:
reflexões sobre cultura, estética e educação. Campinas: Autores Associados, 2012. p. 79-95.
MARCUSE, H. A dimensão estética. Lisboa: Edições 70, 1977.
RESENDE, A. C. A. Arte e conhecimento. In: RESENDE, A. C. A.; CHAVES, J. de C. (Orgs.). Psicolo-
gia social: crítica socialmente orientada. Goiânia: PUC Goiás, 2010. p. 77-76.
RESENDE, A. C. A. Subjetividade em tempos de reificação: um tema para a psicologia social.
Estudos: Vida e Saúde, Goiânia, v. 28, n. 4, p. 511-538, jul.-ago. 2001.
SILVA, M. A. Adorno e o cinema: um início de conversa. Novos Estudos, São Paulo, n. 54, p. 114-
126, jul. 1999.
VÁZQUEZ, A. S. As ideias estéticas de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

Dados autorais
Juliana de Castro Chaves
Universidade Federal de Goiás/UFG. Graduada em Psicologia
pela Universidade Federal do Ceará (1993), mestrado em Psicologia
Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999) e doutorado
em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (2007). É professor Adjunto da Universidade
Federal de Goiás, Faculdade de Educação.

Recebido: 25/02/2015
Aprovado: 08/05/2015

Impulso, Piracicaba • 25(62), 107-119, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
119
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p107-119

Você também pode gostar