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Como as mulheres tém transformado o mundo € se transformado a si mesmas? Estas ques. tées norteiam o presente trabalho, que bus ca entender como os feminismos, nas tltimas quatro décadas, possibilitaram profundas e positivas mudangas na cultura e na sociedade brasileiras, Partindo das narrativas autobiogrd ficas de sete militantes feministas, nascidas entre os anos 1940 e 1950, a autora investiga a maneira como essas mulheres abriram novos espagos na esfera ptiblica e na vida politica do Brasil, desde os violentos anos da ditadura mi litar. Mais do que isso, visa dar visibilidade aos processos de invengdo da subjetividade pelos quais puderam afirmar novos modos de exis. téncia, mais integrados e libertarios. Nessa dire¢do, opera com os conceitos de “estéticas da existéncia” ou “artes do viver”, “parrésia” e “escrita de si" da filosofia de Foucault, assim como com operadores de Deleuze e da teoria feminista pés-estruturalista ISBN 978-e5-268-1017-% wn 85201810 MA ol 5 ES BY E 8 s Margareth Rago A aventura de contar-se Feminismos, escrita de sie invengdes da subjetividade | S Univenstpape Estapuar pe Casernas Retor Jost TapEu Jonce ‘Coordenador Ger da Universidade "AWWARO PENTEADO CROSTA ‘Constho Eivoril Preidence Enuanno GUIMARALS (Ctunis1awo Lyna Fito = Jost A.R-Goxryo. lJost Ronenro Zax ~ Lure ManQuis Makoto Knopst ~ Manco Axtowi0 Zaco ‘Sent HIRANO ~ SiEvIA HUNOLD Lana Margareth Rago A AVENTURA DE CONTAR-SE feminismos, escrita de sie invencées da subjetividade FICHA CATALOGRAFICA FLABORADA PELO DIRETORIA DE TRATAMENTO BAINFORMAGAO Reape Rag, Lesis Magacth, 2948 A avenue de contre: feminine, crite de of ivenes de iid Margatth Rag. ~ Campinas, SP Eto da Unie, 2011 2 Michel Foucale ps6984. 2 Tlosofa fancsa. 5. Feminime, 4: Subjervidade 5 Eagio minina 1 Tila. san 785680174 76 Indice par catiloge steric: 1. Michel Foucal 19262984 8 Bless fancon 94 » Feminismo yorane 4 Subjected saa SS uke fesinina m6 Copyright © by Margareh Rago Copyeight © 2005 by Ezra da Unicamp ( presente aba ei eliza crn o apo da Cape ented Governo Brasetovoiada para fornagio de ecusos humanos. igecosreservadon protgios pela Lei 6ro de 19.1998 proibida a eprodut orl ou parca sem aortas, resus dor deentores dort Printed in Brel Fol fee depésito ep Diseins esrvadord itor da Unica ‘Ros Calo Graco Prado, so Campos Unleamp, (Ce s3083-Hga ~ Campinas st Beal “Tel/Fax (19) s5n1-7718/7708 ‘wrmetincumicmpbr ~ vove@edoca nical AGRADECIMENTOS Fascinada e surpresa com a presenga expressiva ¢ colorida das mu- Iheres nas ruas, nas pragas, nos cinemas, nos teatros, nas escolas, nas universidades, nas empresas ou na midia, alegrando os espacos, carnavalizando a vida, subvertendo os cédigos morais ¢ transfor- mando positivamente a cultura no pafs, decidi, ha alguns anos, acompanhar as narrativas autobiogréficas de algumas “feministas histdricas”. Queria perceber como interpretam essas mutagdes culturais em nossa contemporaneidade e como veem suas proprias xeinvengdes subjetivas nesse contexto. Assim nasceu esta pesquisa, amplamente apoiada pelo Consetho Nacional de Desenvolvi- mento Cientifico e Tecnolégico (CNPq), ¢ agora transformada em livro. Muitas pessoas participaram diretamente desse projeto, a co- megar pelas prdprias feministas tematizadas, que nio hesicaram em abrir seus arquivos pessoais ¢ Albuns de recordagées, levando- ‘me para regides inesperadas do pasado e do presente. Sou muito grata a Amelinha, Criméia, Gabriela, Ivone, Maria, Normae'T’ pelo que me ensinaram com suas experiéncias de vida e reflexdes instigantes, nao apenas nos anos de pesquisa, mas desde décadas atris, quando ouvi falar em seus nomes, mas ainda nio havia en- contrado um motivo forte e convincente para me aproximar como desejava. No Programa de Pés-Graduagao em Historia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde trabalho com o grupo de pesquisa “Género, subjetividade, cultura material e cartografia’, temos desenvolvido intimeras investigagdes, dentre as quais des- taco as que focalizam as criag6es feministas na politica, na arte, na literatura e no cinema, no Brasil e na América Latina, inspiradas ‘no pensamento feminista pés-estruturalista, Trata-se de um insti- gante campo de pesquisas histéricas, a meu ver, que se reforga com ‘oencontro de outras produgées feministas orientadas pela filoso- fia de Foucault ¢ que também se nutre dos aportes de Deleuze € ‘Guattari. Assim sendo, com meus orientandos e pés-doutorandos, tenho tido trocas intelectuais e de amizade intensas e fecundas. Na Universidade de Coliimbia (NY), onde passei os anos de 2010 ¢ 2011, gracas ao Programa Ruth Cardoso da Comissao para o Intercimbio Educacional entre os Estados Unidos da América €o Brasil (Fulbright)/Fundagio de Amparo & Pesquisa do Estado de Sao Paulo (Fapesp)/Coordenagao de Aperfeigoamento do Pes- soal de Nivel Superior (Capes), contei com o apoio imprescindivel de Pablo Piccato ¢ José Moya, diretores do Institute of Latin Ame- rican Studies (Ilas), e com a amizade de Pamela Calla, antropélo- ga feminista ligada & New York University, que me apresentou 0 feminismo indigena latino-americano. Os historiadores “brasilia- nistas” Ralph Della Cava, James Green e June Hahner, pioneira dos estudos sobre as mulheres no Brasil, receberam-me de bragos abertos ¢ incentivaram meu trabalho, assim como os pesquisadores do “Brazil Seminar at Columbia” e do “Brazilian Center” dessa universidade, em especial a amiga Laura Randall, economista nova-iorquina, que teve a paciéncia de revisar meus textos. As pesquisas se estenderam por muitos outros arquivos ¢ bi- bliotecas, como o Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp, a Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas (IFCH) dessa mesma universidade ¢ 0 Arquivo Pablico do Estado de Sao Paulo, onde fui recebida com muito carinho. Finalmente, contei com o incentive do sociélogo e amigo Richard Miskolci, que leu a primeira versio do trabalho e fez. comentarios provocativos, que tentei incorporar na medida do possivel. Gabriel Kolniak foi de grande ajuda no erabalho minucioso da revisio, assim como Licia Helena Lahoz Morelli, da Editora da Unicamp. Conte fundamen- talmente com aacolhida do professor Paulo Franchetti, diretor da Editorada Unicamp quando da aprovagio deste titulo, aquem sou grata, assim como sou grata a Ricardo Lima, coordenador editorial desta mesma Editora, que acompanhou cuidadosamente a produ- gio deste trabalho. Marina, minha filha, tem sido um apoio incondicional, a0 lado dos meus irmios, Antonio Rago Filho e Elisabeth J. Rago, profes- sores como eu, e de muitos outros amigos. Nao tenho palavras para cexpressar minha gratidio a todas essas pessoas ¢ a muitas outras que nio mencionei neste momento. Em lugar de apostar na eterna impossibilidade da revolugéo eno retorno fascista de uma méqui~ nna de guerra em geral, por que ndo pensar que um nove tipo de revolugéo estd se tornando posstvel...? Gilles Deleuze SUMARIO B INTRODUGAO: BALIZAS ecneo— _ 23 Eitas miter cnn 34 Feminismos, artes do viver ¢ excita desi a 1 EXPERIMENTAGOES..... ee a O que a bistbria de wm Pls? nn 66 Desconstruindote no Recife. = 3 [Nas linhas de fuga da contract —— 88 Entre planicies ales colinas, a travessia de Marien nnnenenennnnes 97 Vivendo 0 feminise0 Om Pari econ nn nnn peeare A universidade ectava uo saco nn 2 2 CARTOGRAFIAS________— _ 7 Aborto versas qualquer oite, 120 ee 134 Oexllio de Maria ea opedoferinista a — A biblioteca de Norma: a : 159 tilia-Gabriela, “um teimaso passaporte” : — A desconstrigéo de Tai enone nn?) 3 “UMLUGAR NO Mara..! Novos modar de aséo politica Amelinba: univ as mulheres. Crimea ea bistbria a contrapelo Maria, por um feminismo senstoel Gabriela eo ‘prazer Davida’... Toone, o fo da liberdade eo cheiro do present. nia: ofeminismo como podtica do pentamento Imaginasio, potsia e aventura em Norma Tells... concLusio: BO TES 8 TAMBEM UM LUGAR NA HISTORIA” TOP JONAS nes Jomais — décadas de 1970-1990. Documentos divers05nannnnnnn ANG 05 nn BIBLIOGRAFIA eee ee 193 193 195 209 240 257 279 297 313 323 327 328 328 328 329 PREFACIO VIVER NO FEMININO — UMA MAIS SETE HISTORIAS DE VIDA A aventura de contar- -feminismos escrita de sie invengies da sub- jetividade, de Margareth Rago, devers surpreender até 0s leitores hhabituais dessa autora, que jé frequentaram outras de suas obras originais como Os prazeres da noite. Prostituigdo e cbdigos da se- xualidade feminina em Séo Paulo, 1890-1930. Este impressionante novo livro ¢ uma obra sui-generis que nao tem medo de desafiar certos academicismos. Ele mostra a maturidade intelectual cheia de insight e seguranga a que chegou Margareth, A autora foge a muitos dos formalismos e dispensa com certa autoironia modos padronizados e monotonamente repetidos da apresentagio aca- démica. Elege uma forma préxima 4 narrativa de estérias, no sen- tido da narrativa tradicional, sem preconceitos contra uma modu- ago que muitas vezes esté mais préxima da oralidade do que da escrita. Et pour cause. O leitor ficard, talvez, intrigado lendo estas paginas disruptivas, ao perceber por si mesmo que o formalismo desacreditado, 0 grafocentrismo com sua mania de documentacéo, 1 desdém pela oralidade ¢ os rigorosos cédigos académicos fazem parte de uma mesma cultura positivista e falocéntrica que este livro 13 PREFACIO justamente busca criticar e desconstruir. A visada feminista desta obra no quer construir um novo poder, no feminino, mas, antes, desconstruir poderes ¢ mostrar como certos dispositivos académi- cos esto profundamente comprometidos com o dominio mascu- lino e falocéntrico. Mas esse aspecto, digamos, epistemoldgico, que escova a con- trapelo nossos habitos arraigados, é na verdade para ser observado na prética aqui. Margareth nao o aborda de modo explicito: opta pela performance como o melhor meio didatico. E acertaem cheio. Esse aspecto performativo na verdade caracteriza todo 0 texto. Ele tem a ver com um modo de eserita que nao hesita em se deixar cletrizar pela paixio e mesmo pelas correntes de éxtase ou de terror que podem porventura percorrer nosso corpo quando tratamos de temas tio impregnados de vida e morte. Temos aqui uma escrita animica: animada (e nao morta-viva), que nos contagia com sua cenergia. A autora, uma colecionadora de vozes, como que se torna presente em carne c’osso para seu leitor. Performance, mise en action: letra viva. Esta sim talvez seja uma escrita no feminino. Nio porque escrita por uma mulher, mas por se abrir a essas ondas de forsa desestruturantes, por se deixar abalar pela paixio e pela com- paixio, Nao se trata, no encanto, de pieguice, longe disso, e sim de correr 0 risco de abrir a escrita a tudo aquilo a que a pratica acadé- mica sempre resistiu, com seu medo das emogoes, da sensibilidade, das subjetividades ¢ mesmo das dividas. Essa abertura no implica tampouco abrir mio do rigor. Mar- garcth é rigorosa, meticulosa e percorreu uma enormidade de fontes para escrever esta obra. Mas o modo como ela presenta sua escrita recusa a retérica da documentagio e do empilhamento de provas. Essa escrita esta comprometida com a verdade, mas néo com a verdade do positivista, representacionista, que vé na lin- guagem puro meio de comunicagio ¢ despreza seu momento sen- sual, denso. A verdade de que se trata aqui é aquela & qual Foucaule “4 A AVENTURA DE CONTAR-SE se referia ao reviver 0 conceito antigo de parrhesia, o dizer a ver- dade sem medo, Trata-se de uma verdade eminentemente politica, que fere, provoca e desmonta o establishment. Quem pratica esse falar franco sabe que averdade que emite é também a sua prépria opinido, que defende com palavras claras e diretas. Essa é a verda- de essencial que normalmente nossos trabalhos, vindos da acade- sia, infelizmente, desprezam ou nem reconhecem existir. ‘Nossa escritora, essa autora pés-autoral, dé a voz neste livro a coutras sete mulheres. Ela acolhe as narrativas das vidas dessas sete “personagens”, Cada uma dessas mulheres, todas nascidas cerca de 60 anos atrés, tem sua vida, sua obra e suas atividades escrutinadas com iguais doses de rigor e de carinho. O que poderia parecer uma simples reencenagéo do género tradicional das “histérias de vida” de Plutarco ou Suet6nio é, antes, uma desconstrugio das biografias tradicionais. Estas eram calcadas na ideia de grandes vidas exem- plares, exaltavam o heroismo e as enormes faganhas de “grandes homens”, em histérias lineares que mostravam suas ascens6es sem ambiguidades. Jé nas histérias de mulheres tratadas por Mar- gareth, aluz ndo recua diante dos acidentes, das quebras e rupturas, nao deleta as ambiguidades das situages vividas e néo nos furta dos momentos de derrota, com todo o custo que representaram. Ao invés da via ascendente do estilo sublime, das narrativas de vida tradicionais, Margareth recria esse género de um ponto de vista feminista ¢ engajado. As passagens (de vida) abjetas, quando a vida se reduz a quase nada ea carne € os fluidos do corpo ganham um espago que ofusca as ideias e emboraa fala, sio igualmente lembra- das, 20 lado das vitérias e das luras que vingaram dessas sete bravas personagens. Elas fazem parte da geracio de mulheres que intro- duziu no Brasil, em larga escala, o idedrio eas bandeiras feminiscas, responsdveis por mudangas gigantescas em uma sociedade ar- quipatriarcal, ainda predominantemente machista, mas que aos 1s PREFACIO poucos referendou importantes conquistas em termos de univer- salizagao da igualdade de dircito. Essas mulheres tiveram que enfrentar muitas batalhas. Antes de mais nada, elas foram obrigadas a reinventar a politica. Em vez das grandes lutas revolucionarias, do ideal politico centrado na figura do Estado e do Governo, erigiram as micropoliticas. Como as ades dentro das préprias familias, em bairros ¢ em grupos es- pecificos. Margareth destaca muitas dessas agdes, como, por exem- plo, a atuagio de Amélia de Almeida Teles, a Amelinha (uma das, sete mulheres apresentadas), que ajudou a criar o Grupo de apoio As bolivianas de Sao Paulo. Amelinha foi uma sobrevivente da luta contra a ditadura, e seu engajamento, como o de algumas outras mulheres estudadas aqui, justamente migrou da atuagio partidatia para a politica mais voleada as questées locais, ou de uma politica que inclui aquilo que até hé pouco era considerado parte apenas da esfera privada, “feminina’, Margareth estuda essas sete vidas a partir de depoimentos que colheu delas, mas também de muitos escritos ¢ entrevistas de ca- réter autobiografico. Este livro é, portanto, uma colegao € monta- gem dessas “eseritas de si”. Assim como essas mulheres recorreram a pritica da escrita de si para tentar se reinventar, costurando suas, subjetividades a partir de suas trajetérias, conffitos, frustragoes € vitérias, utilizando essa escrita como ferramenta politica, inspira- das pelas lutas feministas, do mesmo modo Margareth, ao reins- crever essas-vivéncias, dando a clas uma acolhida abertae generosa, perfilando-as lado a lado, contextualizando essas nacrativas, justa- mente destaca 0 aspecto feminista e disruptivo dessas experiéncias. Elas sio, assim, potencializadas, apresentadas como parte de his- t6rias locais, mas ainda de uma histéria nacional ¢ internacional. (A mirada feminista também tende a ser pés-nacional, j4 que & basicamente eritica das identidades estanques.) O mérodo de cons- trugio desse quadro histérico é original por ser amplamente sub- 16 A AVENTURA DE CONTAR-SE jetivante (¢ nao positivisea ¢ alérgico aos testemunhos orais ¢ as escritas de si); por enfatizar programaticamente o aspecto liber- tario ¢ feminista dessas histrias de vida; por cixcular entre elas como em uma narrativa literdria ou filmica, alternando momentos ce aspectos do cotidiano e do trabalho de cada uma dessas mulhe- res, conformando um rico painel 3 imagem de um caleidosedpio. ‘Trata-se de uma narrativa em forma de short cuts, lombrando do filme homénimo de Robert Altman, na qual as cartas da vida de cada personagem sao embaralhadas umas as outras. Vale notar também que, como nao poderia deixar de ser, vendo em vista a proposta do livro ¢ seu mencionado carater performdtico, existe uma oitava carta nesse baralho, uma outra vida que se mis- tura A dessas personagens: essa vida é a da prépria Margareth. Nao que cla faga uma escrita de si, narrando em primeira pessoa sua vida; antes, wata-se de uma heteroautobiografia, ou seja, de uma escrita de si que se di através da reinserigio das vidas de outras mulheres. Margareth é da mesma geragao que esté retratando, € seu modo de narrar, a referida energia de sua escrita (auto)performd- tica, advém justamente dessa sua participacao nesse grupo de mu- Iheres. Trata-se de um caso raro de “autoinseri ‘0 heterodiegética’, ou seja, de uma obra na qual a narradora nao ¢ personagem expli- cita da histéria, mas, mesmo assim, estd presente e de modo central Ao invés de se antepor e colocar sua vida em primeiro plano, a aurora recua e mostra-se como uma coletora ¢ apresentadora de outras vidas. Ela surge diante do leitor como uma contadora de histérias que também dizem respeito a cla de modo essencial. Mas se falo aqui de outridade é porque Margareth tanto enfa- tiza a singularidade de cada vida narrada, como constréi uma ¢o- munidade matcada pelas lutas contra a ditadura, pelo inicial en- gajamento nas esquerdas e posterior virada feminista, quando discursos micropoliticos so entronizados. Essas sete (mais uma) vidas narradas de mulheres sio um modo de apresentar 50 anos de v7 histéria. Assim comp na politica elas abandonaram os grandes partidos, conceitos e motes abstratos a favor da luta pelo direito a uma maternidade mais digna e plena (licenga-maternidade, cteches exc.), contra o feminicidio, pela dignidade no trabalho e pela me- méria dos feitos das mulheres (artistas, escritoras, esquecidas em nossos livros e antologias, ou aquelas que se engajaram contra a dicadura), por novas formas de vida e subjetivacao (némades e im- pertinentes contra os poderes, avessas aos tabus sexuais), contra a exploragao sexual ¢ pela igualdade no mercado de trabalho, do mesmo modo, a cimara de Margareth foca na maior parte do tem- po no microlégico. Para Margareth, os fatos de vida narrados jé so teoria: uma série de lig6es paradigmaticas de vida. Mas sua cimara também passa com desenvoltura, quando sente necessi- dade, para 0 enquadramento panoramico, recuando entéo para tragar contextos ¢ apontar entrecruzamentos nas vidas de suas per- sonagens. Conccitos advindos de Foucault, Benjamin ¢ Deleuze ainda enriquecem e cimentam suas anilises. Essa passagem da grande politica para as ages de carter mais comunitirio ja havia sido retratada em um belo filme de Liicia Murat, Que bom te ver viva, lembrado por Margarcth, no qual aparece Criméia Alice de Almeida Schmidt. Criméia também é personagem deste livro, Ela é uma sobrevivente da Guerrilha do ‘Araguaia que lé perdeu seu companheiro e pai de seu filho. Falando de Criméia, a narradora do filme de Murat destaca a passagem da onipoténcia da guerrilha para as reunides de mulheres onde se discute a politica do dia a dia. “A dimensio trigica virou coisa do passado. E qualquer tentativa de ligagio lembra um erro de roteiro.” Isso ja nos anos 1980. Esse filme, alids, apresenta ainda semelhangas formais com 0 livro de Margareth, ja que também trata da vida de mulheres que lutaram contra a ditadura, embaralhando essas his- torias & vida da diretora, Liicia Murat (encarnada na atriz. Irene Ravache). 18 A autobiografia, lembra Margareth, é um género literatio com uma tradigo masculina, O contraponto aqui foi justamente o de dar um rosto feminino a uma histéria que é normalmente narrada por homens, para homens e sobre homens. Para tanto, ela recupe- ra. “escrita de si’, no sentido foucaultiano de construgio da sub- jetividade que mantém sua abertura ¢ 0 caréter processual do ser como devir. Vale lembrar que também 0 testemunho tradicional, juridico € religioso tem uma face masculina ¢ falocéntrica. Nas sociedades tradicionais as mulheres nao sio reconhecidas como cestemunhas. O testemunho fazia parte de um dispositivo de con- trole dos corpos e da mente de pessoas que tinham de testemunhar “verdades” diante de autoridades que assim eram ratificadas na mesma medida em que culpas eram estabelecidas. Na escrita de si, por sua vez, vemos atuar um testemunho mais auricular do que visual e espetacular. Em vez da légica falocénerica do aciimulo de provas, predomina o trabalho mais sutil da reconstrugio do sujei- to e de sua rede de relagées. © individual muitas vezes cede a0 coletivo — como nesta autohetero narrativa de Margareth. A cena do testemunho, 0 face a face, a constelagio de Forgas do presente deixam suas marcas no testemunh, tanto quanto a perspectiva dos fatos, a entonagio da voz, os siléncios ¢ os gestos de quem fala. passado, nesse testemunho auricular, é antes de mais nada um pretérito do e no presente. A posigio de quem fala e seu objetivo politico também sto constitutivos de sua narrativa. Assim, Mar- gareth escreve este livro ndo apenas para fazer uma brilhante his- téria do feminismo no Brasil, de sua irrupgio nos tltimos 40 anos, ‘para nos apresentar sete maravilhosas hist6rias de vida, para retirar as mulheres do anonimato da histéria, mas também para dac forga a um movimento que visa revolucionar 0 modo de pensar e fazer a politica, de trabalhar intelectualmente, de se relacionar com 0 corpo e de interagir em seu meio. 9 PREFACIO ‘A postura autocritica precoce dessas mulheres com relagao as lucas dos partidos e grupos de oposigio e revoluciondrios nos anos 1970 faz também com que se descortine o fato de que no Brasil surgiu uma autocritica muito préxima ainda aos movimentos re- voluciondrios. Muitas dessas mulheres foram vitimas do carter machisea c autoritério dos partidos e das organizag6es de esquerda. Esses modelos politicos tedricos (como em parte o préprio mar- xismo) estavam presos a um modo teolégico-politico de pensar a ago na sociedade, com seu desejo escatoldgico de redengio toval da humanidade. Desse dispositivo revolucionario 0 autossacrificio eavioléncia eram elementos essenciais. Em parte foi esse falocen- trismo que fez essas mulheres despertarem para a necessidade de estabelecer novos padxdes de pensamento ¢ de atividade politica, znos quais uma verdadeira liberdade poderia ser visada. Essa auto- critica extremamente precoce quanto As esquerdas ¢ seu projeto revolucionirio ¢ singular na América Latina e merece ser mais ¢s- tudada de perto como fenémeno. Essa autocritica também se estendeu ao periodo pés-ditadura, quando essas personagens jd estavam engajadas em suas lutas € per- ceberam que os partidos que antes eram de oposigo € mesmo os de esquerda nao foram capazes sequer de dar forma a um movi- mento por justiga com relagéo A politica de terror de Estado de 1964 a 1985. Percebe-se uma alianga e até mesmo uma fusio dos partidos em torno dese pacto de siléncio, bem como de outros pontos falcrais das demandas politicas, que suspende a diferenga efetiva entre “esquerda” e “direita’ Todas as mulheres retratadas aqui, sempre referidas pela auto- ranaconcretude de seus prenomes, Tania Navarro Swain, Norma de Abreu Telles, Maria Lygia Quartim de Moraes, Ivone Gebara, Gabricla Silva Leite ¢ as jé mencionadas Criméia ¢ Amelinha, sio fonte de inspiragéo que, como Margareth, a oitava mulher nesta histéria, devem se tornar parte de nossa histéria viva ¢ concreta, 20 A AVENTURA DE CONTAR-SE Para além dos discursos da historiografia do poder, essas mulheres apresentam em suas escritas de si um contrapoder. Essas historias precisam ser divulgadas, lidas em nossas escolas ¢ faculdades, ten- do cm vista sua potencial transformagio em outras agées disrup- tivas, via contaminacio e polinizagio. Li neste livro hist6rias de mulheres de uma geragio préxima & de minha mie, Edith Seligmann-Silva, que, apesar de nao se auto- declarar feminista, foi e é uma mulher fortissima, que deixou uma marca na antipsiquiatria no Brasil e que tem trabalhos de referén- cia nos estudos sobre satide mental do trabalhador. Ela educou cinco filhos ¢ orientou intimeros alunos, escreveu dezenas de arti- gos livros, publicados em vatios paises. Desde os anos 1970, atuou em nticleos comunitarios de periferias em Séo Paulo e regides ad- jacentes e deu assisténcia a sindicatos, como seu saber sobre a sate de do trabalhador. Vejo que este livro também me ajudou a loca- lizar a luca feminista de minha propria mie, que nio foi e nao é nada fécil, jd que, nas instituicdes em que trabalhou como profes- sora — a Medicina da USP e a Fundagao Gevilio Vargas —, teve que enfrentar um establishment de peso, sendo que ela continua sua luta pela melhoria das condigdes de trabalho entre nés. Este momento autorreflexivo que me permiti aqui decerto se deve a0 contagio da escrita de si, cujo bacilo peguci ao ler esta im- pecivel obra. Que a epidemia se espalhe: é s6 0 que posso desejar. Marcio Seligmann-Silva 21 INTRODUGKO BALIZAS Em 1902, num texto intitulado “Cultura feminina’, 0 sociélogo berlinense Georg Simmel (1993), preocupado com o fendmeno da modernizagio e com as novas formas de interagio social desenvol- vidas no mundo urbano, perguntava-se pelos efeitos resultantes da entrada maciga das mulheres no mundo piblico. Observava que, num meio no qual as formas sociais, as atividades profissionais ¢ as expressées artisticas haviam sido moldadas pelos homens, a ex- pressio feminina nao seria nada facil. Considerando a criagio li- terdria, por exemplo, afirmava que a exteriorizagao da singularida- de feminina seria dificil na eserita, j& que as formas gerais da criagio pottica sao produtos masculinos “e mostram, provavelmente por essa razio, uma reticéncia interna ao serem preenchidas por um. contetido especificamente feminino” (Simmel, 1993, p.78). Simmel antevia, pelo menos, duas saidas, quando pensava nos efeitos da entrada feminina no mundo publico: por um lado, a continuidade das priticas e dos modos jd existentes, no que acre- ditava pouco. Ao participarem de todas as Areas profissionais € politicas, as mulheres repetiriam os mesmos jogos de poder, repro- 23 MARGARETH RAGO duziriam as formas da.sociabilidade existentes, conservariam a organizagao social masculina, dando prosseguimento ao insti- tuido? Talvez. Por outro, suspeitava de resultados mais positivos: clas inovariam e transformariam a cultura masculina, objetiva ¢ racional, deixando suas marcas com tudo aquilo que thes é pré- prio: a dimensao subjetiva, as emogées,a afetividade, os sentimen- tos, de modo a complementar ¢a melhorar a ordem masculina do mundo: “Porque as mulheres possuem, com sua constituigao idén- tica, uma ferramenta de conhecimento recusada aos homens” (1993, p. 76). Ferramenta que anuneiava uma capacidade maior de perceber o mundo exterior ede sensibilizar-se diante dos sofrimen- 105, da dor do outro e das demandas sociais. Desde entio, mais de um século se passou e foram muitas as transformagées na diregio do que Simmel desejava e vislumbrava. © Brasil se tornou conhecido, dentre outras dimens6es, por possuir um dos movimentos feministas mais importantes da atualidade, Desde 0s anos 1970, em meio A violenta dicadura militar que se estabeleceu no pals entre 1964 e 1985, muitas mulheres se uniram € passaram progressivamente a criar novos modos de existir, ocu- pando os espagos piiblicos, desenvolvendo novas formas de socia- bilidade, reivindicando direitos e transformando a vida social, politica e cultural, Passados mais de 40 anos, é possivel perceber essas profundas mutagées em miltiplas dieses, da politica sub- jetividade, da ciéncia A religiao, desde os mais longinquos espagos geograficos do pais até o centro do poder politico, na conquista do posto da Presidéncia da Repiiblica c de alguns ministérios. Hoje, ¢ possivel constatar que o feminismo introduzit: outras maneiras de organizar 0 espago, ourras “artes de fazer” (Certeau, 1994, p. 42) no cotidiano e outros modos de pensar, desde a pro- dugio cientifica e a formulacio das politicas piblicas até as relages corporais, subjetivas, amorosas ¢ sexuais. Conferiu novos sentidos as ages das mulheres e & sua participacio na vida social, politica, 24 ‘A AVENTURA DE CONTAR-SE econémica e cultural, ranto quanto na esfera privada, Alids, desfez as tradicionais fronteiras instituidas entre essas dimensdes da vida em sociedade, afirmando que os problemas domésticos deveriam ser denunciados como questées de dominio piblico, o que alterou profandamente a imagem de si mesmas que as mulheres podiam construir. A ctitica femninista foi — e tem sido — radical ao buscar a libe- ragio das formas de sujeigio impostas as mulheres pelo contrato sexual e pela cultura de massas, , se num primeiro momento 0 corpo foi negado ou negligenciado como eseratégia dessa recusa das normatizagées burguesas, desde os anos 1980 percebem-se uma mutagio nessas atitudes e uma busca de ressignificagao do femi- nino? De um lugar estigmatizado ¢ inferiorizado, destituido de historicidade ¢ excluido para o mundo da nacureza, associado & ingenuidade, ao romantismo ¢ & pureza, o femninino foi recriado social, cultural ehistoricamente pelas préprias mulheres. A cultura feminina, nessa direcio, foi repensada em sua importdncia, redes- coberta em sua novidade, revalorizada em suas possibilidades de contribuigao, antes ignoradas e subestimadas." Em nossos dias, poucos duvidam da profunda transformacio cultural provocada pela maior insercéo das mulheres na vida pi- blica. E impossivel nao perceber 0 processo de femninizagio cultural gue temos vivenciado, isto é, a maneira pela qual as ideias, os temas, os valores, as questdes, as atitudes, as priticas ¢ os comportamentos femininos foram incorporados na cultura masculina, considerada objetiva, racional e realista, como um resultado muito positivo das presses histéricas do feminismo, num mundo que reconheceu a faléncia dos modos falocéntricos de pensar e agir’. 1. Sobre a feminizasio culeural no Brasil no século XIX, of Flores (2007); no século 22, ef Rago (2001). 25 Nessa dizegio, buscando a construgio de um novo conceito de cidadania, Sonia Alvarez (1990) ¢ Eleonora Menicucci de Oliveira (1990) moseraram como a atuagio das mulheres ¢ sua interferéncia nacsfera publica, no Brasil das ultimas décadas, forgaram a incor poracio de suas demandas, levando a que se ampliassem seus espa- 0s de aruagio c representagao. As mulheres passaram a participar de todos os campos da vida social e politica: seus temas foram le- vados aos sindicatos, As centrais de trabalhadores, aos partidos politicos, a0s coletivos es universidades, e eriaram-se instituigdes cespecificamente voltadas para as questdes femininas ¢, posterior- mente, para as de género. Evidentemiente, sio muitos os problemas que emergem a partir de entio, mas, sem diivida alguma, a visibi- lidade que a “questio feminina” ganhaé um ponto de partida fun- damental para qualquer didlogo ou negociagio possiveis Mas nio sé do mundo publico ¢ da esfera politica institucional ocuparam-se os feminismos, que também passaram a problemati- zar as concepsées de subjetividade e as estratégias que tém mobi- lizado para crié-las. Varias feministas perguntaram e continuam perguntando pelas éenicas e praticas de proditgio de si propostas por um movimento que luta justamente para libertar as mulheres da colonizasio de seus corpos e psiques. Enfim, criticando a iden- tidade Mulher como forma opressiva instaurada pela Iégica mas- culina, os feminismos resistiram a determinadas formas de con- dugio das condutas ¢ promoveram novos modelos de subjetividade ¢ novos modos de existéncia miltiplos ¢ libertarios para as mulheres. Basta lembrar que, algumas décadas atrds, estas eram divididas em “castas” "piblicas”, Este ultimo termo di ava um setor social estigmatizado e marginalizado, ligado a pros- tituigao nos bairros do submundo das cidades. “Mulher puiblica” era sinénimo de “mulher alegre” ou “mulher da vida’, e todas essas expressées, apenas sussurradas, longe de remeterem as imagens 26 A AVENTURA DE CONTAR-SE positivas que insinuam, nomeavam as prostitutas, “esgotos semi- nais’, na triste € miségina definiggo de Agostinho. Pode-se dizer, portanto, que os feminismos criaram modos es- pecificos de existéncia mais integrados e humanizados, desfazendo as oposigoes bindrias que hierarquizam razio ¢ emogio, piblico ¢ privado, masculino ¢ feminino, heterossexualidade ¢ homosse- xualidade. Inventaram eticamente, ao defenderem outros lugares sociais para as mulheres e sua cultura, ¢ operaram no sentido de renovar 0 imagindrio politico cultural de nossa época, principal mente em relagao aos feminismos do século XIX e do inicio do século XX. ‘Contudo, ao mesmo tempo, jé de algum tempo os feminismos brasileiros também tém sido criticados por profissionalizarem-se ¢ institucionalizarem-se na medida em que se expandiram e forta- Ieceram, em grande parte gragas ao apoio financciro das agéncias internacionais, e em que adentraram as instincias do Estado em processo de democratizagao. Afirma-se que virios grupos feminis- tas se transformaram em poderosas ONGs, distanciando-se, em cetta medida, tanto das propostas iniciais de funcionamento como coletives baseados em relagées horizontalizadas, quanto da arti- culacio com os movimentos sociais de base, deixando de ser cons- trutores do movimento social para tornarem-sc agentes promoto- res de politicas pitblicas (Thayer, 2010, p. 144). As rcivindicagoes ¢ demandas apresentadas seriam apropriadas ¢ reclaboradas pelo Estado, deslocando-se desse modo a iniciativa do movimento fe- minista, que, assim, teria perdido sua radicalidade. Essas criticas acenam para os limites ¢ 0s perigos que significam as ameagas de captura ¢ esvaziamento do potencial criativo dos feminismos pelas redes invisiveis do poder, pelos procedimentos c tecnologias da governamentalidade conceitualizados por Michel Foucault — para quem o poder deve ser pensado em termos estra- 27 tégicos mais do que juridicos (2008b, p. 258)* — e discutidos por Rafael de la Dehesa (2010) em rclagao 20 movimento gay no Brasil eno México. O presente trabalho nio tem como objetivo avaliar essa critica nem aprofundar essa discussio, tampouco visa estabelecer qualquer juizo de valor em relagio aos processos paradoxais vividos pelos feminismos no Brasil contemporanco. Ao contritio, pretende dar visibilidade a priticas ¢ modos de aco politica ¢ cultural menos percepttveis eanalisados, mas nao menos importantes e impactan- tes, Visa descacar e refletir sobre experiéncias que tém sido menos teorizadas ¢ estudadas na drea dos estudos feministas, experiéncias intensas, mitidas e constantes de construgio de outros modos de pensar, agir e existir em prol da auronomia feminina. Nesse sentido, vale dizer, considero os feminismos como lin- guagens que no se restringem aos movimentos organizados que se autodenominam feministas, mas que se referem a préticas so- ciais, culturais, politicas e linguisticas, que atuam no sentido de libertar as mulheres de uma cultura miségina ¢ da imposicio de ‘um modo de ser ditado pela l6gica masculina nos marcos da hete- rossexualidade compulséria. Como analisam importantes filésofas feministas, a exemplo de Elisabeth Grosz, ao discutir as perspec- tivas que pode ter o pensamento para “produzir futuros” — im- previstveis ¢ prazerosos, mas nao temiveis —, uma das principais finalidades dos feminismos é libertar as mulheres da figura da Mu- Iher, modelo universal construido pelos discursos cientificos ¢ religiosos, desde 0 século XIX. Nesse sentido, essa filésofa aponta, a0 lado de Rosi Braidotti e de outras conceituadas teéricas femi- nistas, para as iniimeras possibilidades de um “devir-mulher”, no 2 Sobre a governamentalidade em Foucaule (2008b; 2008), cf. as instigantes reflexées de Alfredo Veiga-Neto ¢ Maura C, Lopes (2011). 28 A AVENTURA DE CONTAR-SE sentido deleuziano, de um “devir-ndmade” que tornaria a vida mais eve e alegre de ser vivida (Grosz, 2002; Braidotti, 2000). Como se constroem esses feminismos que escapam as estraté- gias moleculares do poder, is sofisticadas tecnologias biopoliticas de produgio da individualidade na “sociedade de controle” (De- leuze, 1992, p. 220) ¢ onde eles podem ser percebidos sio as ques- tes que abordo neste livro. Pergunto, na esteira de Foucault ¢ respaldada por Margaret McLaren, Nelly Richard e Leonor Ar- ~ fuch, como se constroem “artes feministas da existéncia” (Rago, 2001), atendo-me A consideragao da trajetéria de algumas “fe- ministas histbricas’, pervencentes a diferentes {reas e atividades: ‘Maria Amélia de Almeida Teles, a “Amelinha’, e Criméia Alice de Almeida Schmidr, ex-presas politicas ¢ fundadoras da “Uniéo de Mulheres de Sao Paulo” (UMSP), associacéo feminista que luta pelos direitos das mulheres; Gabriela Silva Leite, lider do mo- vimento das prostitutas brasileiras, fundadora da ONG Davida, no Rio de Janeiro; Ivone Gebara, filésofa e uma das principais ex poentes da Teologia Feminista na América Latina, vinculada associagéo feminista “Catélicas pelo direito de decidir”; Maria Lygia Quartim de Moraes, socidloga, exilada politica, fundadora do jornal feminista Nas Mulheres, professora livre-docente do Pro- grama de Pés-Graduagao em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas; Norma de Abreu Telles, historiadora e antropéloga, professora do Programa de Pés-Graduacio da Pontificia Univer- sidade Catélica de Sao Paulo por 30 anos ¢ autora de varios livros artigos nos quais traz importantes pesquisas feministas; Tania ‘Navarro Swain, historiadora ¢ te6rica feminista, professora do De- partamento de Historia e do Programa de Pés-Graduagio da Uni- versidade de Brasilia por 27 anos, editora da revista digital incer- nacional Labrys, estudos feministas, j& com dez anos de existéncia. Mais do que me centrar em suas trajetérias de vida propria- mente ditas, tomo como referéncia suas narrativas autobiogréficas, 29 MARGARETH RAGO abordando-as na chave aberta por Foucault quando discute a “es- crita de si” como pratica da liberdade constitutiva das “estéticas da existéncia” dos antigos gregos ¢ romanos, como mostro ao longo do trabalho. Pretendo explorar os espagos que se abrem a partir da linguagem e da escrita como pritica de relagio renovada de si para consigo e também para com 0 outro. Para tanto, colhi relatos autobiogréficos em entrevistas grava- das por mim, ou jé publicadas, ¢ reuni os artigos e livros que essas milicantes escreveram, além de processos penais, quando existiam, a fim de constituir um corpus docamental pertinente. Desejo pro- blematizar as natrativas vivenciais constitutivas da propria sub- jetividade c cxplorar a dimensio narrativa da construgao do eu na objetivagio da experiéncia, isto é, a maneira pela qual essas mu- heres se constituem discursivamente como sujeitos feministas, como recortam o passado, que experiéncias valorizam ou silen- ciam (Salmerdn e Zamorano, 2006, p. 12). Como observa Arfuch, critica literdria especialista em estudos de biografia e de autobio- grafia, “a narracéo de uma vida, longe de vir ‘representar’ algo jé cexistente, impée sua forma (e seu sentido) & prépria vida” (Arfuch, 2007, p. 30). ‘Assim sendo, exploro os relatos autobiogrificos produzidos por essas ativistas, considerando as narrativas nas quais reconstroem 0 proprio passado, avaliam as experiéncias vividas e dao sentido ao presente, Parto da concepgio de que a linguagem e 0 discurso sto, instrumentos fundamentais por meio dos quais as representacées sociais sio formuladas, veiculadas, assimiladas, e de que o real- social é construfdo discursivamente. Como diz Nelly Richard (2002, p. 143), referindo-se & questo do género, |] o modo como cada sujeito concebe e pratica seu genero est me diado por todo um sistema de representagdes que articula o proceso de subjecividade através de formas culeurais. Os signos “homem” e “mulher” 30 A AVENTURA DE CONTAR-SE siio construgdes discursivas que a linguagem da cultura projeta einscreve na superficie anacomica dos corpos, disfargando sua condigio de signos atrés de uma falsa aparéncia de verdades naturais, a-histéricas Compreender que esse sistema de imagens, representagdes ¢ signos compée 0 pensamento da Idgica discursiva da identidade social dominante é fundamental para que os feminismos possam transformé-lo e abrir novas possibilidades de ser. Se entendemos que os feminismos abrem outras possibilidades de subjetivaséo ¢ de existéncia para as mulheres, é necessdrio que levemos cm conta a linguagem e o discurso, meios pelos quais se organizam adominacao cultural e a resisténcia. Nao se trata de negara “rea- lidade” ea “experiéncia’, reduzindo-as & existéncia linguistica, nem a agio social, ao determinar a “morte do sujeito”, como atacam os criticos do pés-estruturalismo, mas de desconstruir essas nogées consideradas pré-discursivas, apontando para a sua historicidade, como analisa Joan W. Scott (1991), em relagio A nogio de expe- rigncia. Vale lembrar com Beatriz, Sarlo que “justamente porque o discurso ea vida sio incomensuriveis é que se colocao problema da representagio da vida no discurso” (apud Asfuch, 1995, p. 12). “A experiéncia, portanto, deixa de ser vista como autenticidade do vivido, como evidéncia em si mesma, assim como 0 discurso deixa de ser considerado como mera abstragio conceitual, reflexo da realidade, a partir de uma oposigao binéria que hicrarquiza teoria e pritica, pensamento ¢ ago. Como explica Hayden White (1994, p. 8), [.-] enredar eventos reais como uma estéria de tipo especifico (ou ‘como uma mistura de estérias de tipos especificos) ¢ operat tropica- mente esses eventos. Isto acontece porque as estérias nao sio vividas; no existe uma estéria “real”. As estérias sio contadas ou escritas, néo encontradas. a1 Assim, seja no discusso autobiogrifico publicado como livro, seja em entrevistas escritas ¢ orais, nos relatos nos quais essas mi- licantes narram suas vidas, noca-se que desfazem as linhas da con- tinuidade histérica, questionam as identidades construidas constituem-se relacionalmente como sujeitos miltiplos. Demons- tram, assim, uma forte preocupagio com a reinvengio de si e da relagio com 0 outro, na perspectiva ética que abrem a partir das lutas feministas. Escrever, observa Artiéres (1998), € inscrever-se, ¢ fazer existir publicamente, 0 que no caso das mulheres assume uma grande impoitincia, jé que o anonimato caracterizou a condigao feminina até algumas décadas atrds, Pesquisas atuais revelam, alids, as imiime- ras estratégias a que recorriam as escritoras para colocarem-se no papel, a exemplo de George Sand, Julia Lopes de Almeida, ou Vir- ginia Woolf, que abordou veementemente a questo em Ur teto todo sex (1928). Mais do que isso, se recentemente aparecem biogra- fias femininas escritas por mulheres, ainda sio raras as autobiogra- fias de mulheres transgressoras,seja as politicamente engajadas em movimentos sociais, ja as que se rebclaram de outros modos con- tra os codigos normativos hegeménicos, especialmente no Brasil. ‘a esse contexto, utilizo seus relatos orais ¢ escritos como textos autobiogrificos, apoiando-me nas teorizagées de Phi- lippe Lejeune (2008) e Jean Peneff (1990). Segundo o primeiro, “escrever ¢ publicar a narrativa da propria vida foi por muito tem- ‘Tendo em vi po, ainda continua sendo, em grande medida, um privilégio re- servado aos membros das classes dominantes’, 0 que estaria sendo compensado mais recentemente por relatos de vida gravados ¢ pu- blicados, que procuram transformar a palavra ouvida em escrita (Lejeune, 2008, p. 114). Esse autor se refere ao silencio de operitios, camponeses ¢ de outras figuras sociais impedidas de escrever a pré- pria vida — “a aucobiografia nio faz parte da cultura dos pobres’, argumenta. No entanto, nas tltimas décadas, estes tém sido levados 32 A AVENTURA DE CONTAR-SE a produzir suas préprias leituras do passado por meio de entrevis- tas orais realizadas por pesquisadores. Peneff (1990, p. 103) associa esse tipo de produgio autobiogré- fica que exige a intervengao do pesquisador & tradigao da Escola de Chicago, envolvida inicialmente com setores sociais marginais com intimeros conflitos resultantes das dificuldades de integragao dos imigrantes. Procurando caracterizar a autobiografia e reconhe- cendo o enorme alargamento desse campo, diferencia-a das histé- rias ou dos relatos de vida, entendendo que, nestes, 0 narrador evoca o seu passado sem diregio precisa, sem elaboragao prévia ¢ sem controle, enquanto 0 pesquisador nao se preocupa em limicar a expresso da imaginagéo ¢ a fantasia narrativa, nem rejeita as descrigdes ingnuas ou astuciosas, ou as manifestagées as mais sub- jetivas dadas a um entrevistador, no contexto de um encontro fre quentemente acidental. Ao contrério, na autobiografia trabalha-se com relatos elaborados ¢ construidos segundo “um esquema prees- tabelecido, com uma durago consequente com as precisées e uma cronologia, relatos obtidos a partir de um esforgo de pes- quisa empreendido com a ajuda de um sociélogo ow a iniciativa do narrador que entende fazer um documento demonstrativo” (Peneff, 1990, p. 102). Em discusses mais recentes, contudo, essas diferengas que implicam 0s préprios questionamentos dos limites entre ficgio ¢ realidade so relativizadas, ja que o genero autobiogréfico se expandiu muito, atingindo inclusive os grupos indigenas, o que exigiu que esse género recebesse novas conceitualizaécs ¢ aber- turas. A discussio é intensa ¢ complexa, ¢, nos limites deste es- tudo, importa destacar que pretendo trabalhar com a nogao de espago autobiogrifico, entendido a partir dos diferentes tipos de s de si, entre memérias, depoimentos, entrevistas, cor- respondéncias, didrios ou blogs, que permitem cartografar a pré- pria subjetividade. 33 MARGARETH RAGO Para além do recorte de classe, é fundamental considerar a di- mensio do género na avaliagéo da produgio autobiogeafica, lem- brando que as biografias e aucobiografias masculinas se encontram muito mais disponiveis nas livrarias, nas bibliorecas e nos arquivos do que aquelas escritas por mulheres ¢, mais ainda, das que assu- mem uma perspectiva feminisea (Salmerén e Zamorano, 2006; ‘Smith ¢ Watson, 1998). Trata-se, portant, de perceber a dimensio feminista na propria construgio discursiva da subjetividade ¢ na subversio dos padrées literdrios socialmente instituidos, a exemplo do género aucobiogrifico, tradicionalmente masculino. Essas mulheres Neste livro, procuro pensar os efeitos produzidos pela irrupgio do feminino na culvura brasileira, nos tiltimos 40 anos, tendo como foco privilegiado de observagio as experiéncias de invengio sub- jetiva e de insergio politica dessas mulheres, nascidas entre os anos 1940 € 0 inicio da década seguinte. Jovens estudantes ou universi- tarias, no final da década de 1960 ¢ inicio da de 1970, Amelinha, Criméia, Gabriela, Ivone, Maria, Norma e Tania romperam, cada qual a seu modo, com os padrées tradicionais de condura impostos as mulheres, com os valores e eddigos morais estabelecidos, ques- tionando o regime de verdades da época, a dirciea e 4 esquerda, ‘Trilharam caminhos préprios, novos, dissidentes, dissonantes, abertos com trabalho arduo e com as sofisticadas ferramentas das desbravadoras. Assumidamente de esquerda, mas em ruptura com 0 que se convencionou chamar de “esquerda tradicional’, desconfortiveis com a estrutura politico-partidéria masculina, tiveram ativa par- ticipagio politica na luta contra a ditadura militar e continuam Iutando no regime democritico. Algumas foram encarceradas, 34 A AVENTURA DE CONTAR-SE outras, exiladas. Feministas, denunciaram e continuam denun- ciando as intimeras formas de violéncia sexual, fisica ou simbélica, que aniquilam as possibilidades de inscrigao diferenciada das mulheres no mundo publico ¢ no privado. Na literatura, na pro- dusao académica, na religiéo, nas lutas que promovem no movi- mento feminisea organizado ¢ fora dele, os espagos em que atuam foram construidos, a0 longo dessas décadas, com “méquinas de guerta”® ¢ estratégias de combate mobilizadas contra o poder dos homens, dos partidos, do Estado, da Igreja e da ciéncia. Liberts- trias, a eritica as relagdes de poder na vida cotidiana e ao autori- tarismo nos miiltiplos espacos de sociabilidade ganha forsa em suas manifestagoes. Educadas, entre os anos de 1950 e 1960, para a virgindade, 0 casamento monogimico indissohivel, a maternidade eos cuidados com a familia e para a passividade ¢ o siléncio, abriram caminhos proprios, singulares, sem contar com a referéncia de modelos an- teriores, tanto em suas trajetérias profissionais quanto nas expe- rigncias vivenciadas em outras dimensées da vida pessoal. Com suas priticas coneretas ¢ com seus modos de pensar feministas, produziram importantes rupturas € sucessivos deslocamentos no imagindrio social, especialmente no que tange As questées da mo- ral, da sexualidade ¢ dos modelos de feminilidade e corporeidade que lhes deveriam ter servido de referencia. Criticaram e descons- truiram os modos tradicionais de produgo da subjetividade propuseram outros. Contribuiram e contribuem decisivamente para a construgio de um pensamento eritico. 3 Para Deleuze e Guattari, “maquinas de guersa” referem-se 20s flaxos de inten- sidade que escapam as formas de capcuraereterrtorilizagio do Estado, “Quan co Amdquina de guerra em si mesma, parece efetivamente irredutivel a0 apare- Iho de Estado, exterior & sua soberania, anterior a seu direto: ea vem de ousra parte [.] Seria antes como a maltiplicidade pura e sem medida, a malta, ierup- iodo eftmero e poréncia da meramorfose” (Deleuze ¢ Guattei, 19978, p13). 35 MARGARETH RAGO Tvone, Maria, Norma-e Tania optaram pelo trabalho acadé- ‘mico, que combinam com a militancia feminista informal; Ame- linha, Criméia e Gabriela fundaram suas associagdes « ONGs, dedicando-se a atividades sociais, especialmente com a populagio feminina pobre. Todas se voltam, portanto, para as quest6es polt- ticas ¢ sociais; escrevem ou escreveram em algum momento de suas vidas, ¢ foram de algum modo punidas, sendo mais ou menos afe- tadas também fisicamente. Essas mulheres tém uma relagio com a vida e consigo mesmas muito diferente umas das outras, embora todas registrem uma ex: perigncia de incémodo ¢ inadaptasio diante dos modelos tra- dicionais de feminilidade, um sentimenco de estrangeiridade vivi- do desde cedo em suas vidas. Todas, entio, tiveram de construit novos espagos subjetivos, sociais e de género, ¢ 0 feminismo foi a grande porta de entrada para seus deslocamentos e reinveng6es. Nesse sentido, suas experiéncias convergem, mantendo, a0 mesmo tempo, suas disperses: Amelinha, alegre, cheia de vida, sorridente, mantém ha anos os cabelos curtos, avermelhados e um Jook que combina militancia politica com pés-Modernidade. E ligada a experiéncia cotidiana, €uma mulher do ativismo politico ininterrupto, dentro ou fora de casa. Alias, é na parte da frente do terreno de sua residéncia que se localiza Unio de Mutheres de Sio Paulo. Desse projet politico, inspiracdo e energia para prosseguie, para resolver impasses, superar obstaculos ¢ manter sua eterna juventude. Gosta de andar, circular, participar de intimeras atividades sociais e politicas, prin- cipalmente das que envolvem a luta pelos direitos das mulheres ¢ a reparagio contra os danos causados pela ditadura militar. Con- sidera importante dialogar e cobrar dos poderes piblicos suas res- ponsabil dades, ao mesmo tempo em que deseja autonomia para sie paraa UMSP. Sabe lidar bem com os limites entre o puiblico € © privado, sabe como por os pés dentro e manter-se independente. 36 AAVENTURA DE CONTAR-SE Criméia é cixcunspecta, alegre ¢ muito irénica. Feminisca radi- cal, critica do governo, do Estado, dos costumes, da moral, mais parece uma anarquista. Muito ativa, em constantes viagens para fins politicos, quando se trata da questao da justiga aos sobreviven- tes da Guerrilha do Araguaia, torna-se mais intimista ¢ mistcriosa, “Tem uma experigncia de vida também muito dolorosa, pela perda do companheiro, quando a vida mal se iniciava e quando tivera um filho, num momento em que as forgas da repressio ditarorial cau- saram um curto-circuito numa relacao de amor, de companheitis- moc de constituigio de uma familia que poderia ter durado para sempre. Criméia fala de isolamento e solidao, de inexisténcia na clandestinidade, da luca para preservar uma identidade fortemen- te ameagada entre os anos de 1960 e 1970. Mesmo na prisio, sua experiéncia é de maior solidao do que a de outras nao apenas por causa da gravidez, mas por confinamentos em solieiias, impondo menos relagies de convivio e solidariedade. Gabriela esté longe de aparentar ser ou ter sido prostituca, ou, ainda, de ser uma das mais importantes liderangas do “movimento das prostitutas” no mundo, pioneira, no Brasil, na luta pelos direi- tos civis dessas mulheres ¢ no combate 4 Aids entre elas. Pequena, uimida, delicada, sua rebeldia se exprime de maneira muito es- pecial, nas ativudes, nas palavras, na fala ou na eserita, Emotiva, ti ¢ chora sem constrangimento. Publica, nio se preocupa em se esconder. Sua casa fica no alto ¢ tem uma linda vista da cidade do Rio de Janeiro e do mar. Estavel, sua relagao com 0 companheiro vem de longa data. Lutadora incansivel, mais recentemente re- solveu enfrentar 0 mundo da politica partiddria institucional, depois de tantos anos de experiéncia na luta cotidiana dos movi- -mentos sociais. De origem sirio-libanesa, Ivone tem os olhos grandes ¢ claros, trazendo uma expressio facial bem definida, como uma fildsofa 37 MARGARETH RAGO que sabe organizar 0 pensamento ¢ traduzis as coisas dificeis com simplicidade. Firme e doce, ocupada com as questdes religiosas € feministas, tenta abrir a Igreja ea religiéo para os problemas deste mundo, para escutar as vores dos oprimidos, em especial as das mulheres, Escreve continuamente tanto textos tedticos, como uma fildsofa, quanto poemas, que nao gosta de mostrar. Simples edes- pojada, como se espera de uma freira, mas longe do que se imagi- na, é uma freira socialista e feminista, Assusta o entrevistador Antonio Abujamra, no programa “Provocasées” da TV Cultura, por sua defesa da descriminalizagio do aborto e por suas posigoes politicas radicais. Mora em Camaragibe, municipio da Grande Recife, mas também no baitro da Aclimagio, em Sao Paulo. Viaja constantemente para realizar palestras, semindrios, reunides, como. uma boa militante politica, envolvida com intimeros grupos € movimentos populares, especialmente o de mulheres, na América Latina. Maria me surpreendeu profundamente ao longo da pesquisa que originou este livro. Fui procurar a sociéloga e militante femi- nista, envolvida com as quest6es sociais contemporaneas, que co- nhecia de longe, e encontrei uma mulher amorosa ¢ emocionada, preocupada em criar um “feminismo sensivel”. Também descobri sua enorme experiéncia em virar a pagina do passado ¢ lidar com ador, especialmente por ter perdido muito cedo o primeiro eama- do companheiro da juventude, com quem fez politica, casou-se € teve uma filha, Maria viveu muitos anos no exterior, num pri- meito momento em situagao de exilio politico, depois pelas redes construidas, pela paixio pelos deslocamentos geogrificos e pela visita a novas paisagens. Teve uma sélida formagao intelectual e marxista, reforgada pela presenga constante do irmao filésofo ¢ milicante politico experiente. Descobriu a importancia de Althus- ser e de Freud; sem perder de vista psicanilise ea literatura, tran- sita entre a economia, a sociologia c a politica. 38 A AVENTURA DE CONTAR-SE ‘Norma parece fazer da vida uma fonte de inspiragio para sua cxiagio e forga imaginativa. Também fora dos parimetros tradicio- nais desde cedo, encontra pontos de referencia na literatura inglesa, mas também nas viagens, na psicandlise, nas experimentagbes cor- porais ¢ mentais vivenciadas no Instituto de Esalen, nos textos de Gaston Bachelard ¢ James Hillman. £ intuitiva como ninguém, sensivel aos fluxos de energia, atenta auilo que escapa as palavras, € que nio se deixa compreender c explicar facilmente. Sua criativi- dade ganha forma na escrita e na arte. Na escrita, sempre traz figu- ras desconhecidas, como as escritoras, as artistas ou as viajantes do pasado, de quem nunca tinhamos ouvido falar, ao menos no Brasil Elas so, no entanto, suas velhas companheiras e antigas amizades. Sua arte se expressa na produgio de livros-objetos, mitidos, colori dos, misteriosos, recortados, compostos por pequenos fragmentos ¢ referéncias cultivados ao longo da vida. Seu espaco ¢ intimisea, mas abre-se para dentro: 0 caminho que, na casa, passa por biblio- tecas lotadas de livros de alguns videos, levando do escritério & ampla sala, desemboca num pequeno jardim, com gramas e plantas que sobem pelas paredes em torno de um espelho d’égua retangula, onde as carpas, pequenas e grandes, se divertem, ‘Tania expressa radicalmente o seu feminismo, estampado no préprio corpo, nas roupas, nos cabelos longos ¢ soltos, agora bran- 0s, no rosto sem maquiagem, mas também no gosto pelas aven- turas e viagens. Escreve incansavelmente. So textos complexos de teoria feminista, em que se encontra ¢ desliza com fluidez, mas também pesquisas histéricas com mulheres diferentes como ela, que ousaram “virar a mesa’, desbravar novas terras, sem temer os riscos e os preconceitos. Desde a infancia gosta do contato direto com a natureza, ¢,em sua ampla casa que se estende por um jardim, com drvores ¢ um pequeno lago, cerca-se de muitas cadelas e gatas. Viagens so necessidades absolutas para sua maneira exploratéria de viver, viagens para lugares distantes, pouco visitados pelos bra- 39 | | | | sileiros, is vezes,isolados, como o Alasca. Tania gosta mesmo é de paisagens naturais, selvagens e deslumbrantes. Considero a emergéncia dessa geragao de mulheres como um “acontecimento’, isto é, como forgas que irrompem ¢ alteram 0 curso da histéria, como explicita Foucault, quando pergunta: “A que acontecimento ou a que lei obedecem essas mutagées que fa- zem com que de stibito as coisas nio sejam mais percebidas, des- critas, caracterizadas, classificadas e sabidas do mesmo modo?” (Foucault, 1981, p.231). Ou, em outras palavras, quando define o acontecimento como ruptura, como “entrada em cena das forgas [...]osalto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro” (Fou- cault, 1979, p. 24). Nessa diresio, pergunto pelas condiges de possibilidade dessa emergéncia, com todas as suas poderosas im- plicagdes e sua procedéncia. Uma vez. que nao focalizo um grupo organizado de mulheres, mas lido com uma multiplicidade de subjetividades, com disper- ses de pensamentos ¢ priticas, esse trabalho abre-se para varias reas de expresso, das lutas feministas ao amor pela literatura, na tentativa de mapear interpretagdes de mundo ¢ experiéncias di- ferenciadas, mas, de certo modo, simultaneas e atravessadas pelo descjo de transformacao individual coletiva. E possivel afirmar que essas mulheres fazem parte de uma mesma geragio, se levamos em conta no apenas as datas de seus nascimentos, mas a contem- porancidade de influéncias, processos soc polfticos € rupturas subjetivas que marcaram suas experiéncias. ‘Nesse sentido, a participagio em uma série de acontecimentos — is, acontecimentos em especial, a luta contra a ditadura militar e, a0 mesmo tempo, os impactos das bruscas transformagdes decorrentes de um ace- lerado proceso de modernizagao vivido no pais, desde os anos 1970 — cria um “tempo intersubjetivo”, em que se conforma um destino comum: “Um pasado lembrado, um presente vivido eum futuro antecipado”, como sugere Reis (1994, p. 75). 40 A AVENTURA DE CONTAR-SE Além disso, essas mulheres conhecem-se hé muitos anos ¢, de ‘mancira direta ou indireta, tém inceragido entre si, jé que praticam uma militancia de esquerda, fora dos quadros tradicionais da mi- litancia politico-partidéria. Consideram-se feministas libertirias, © que implica uma atitude de insistente critica aos micropoderes na vida cotidiana. O questionamento do estatuto da mulher ¢ a fuga das identidades marcam suas préprias interpretages de si ‘mesmas, & excegio de certa identificagio com um feminismo liber- tario de esquerda, mas em diferentes modalidades. Essa questo suscita algumas ponderagdes. Alguns anos atrés, as feministas tinham em seus horizonees uma “comunidade ima- sginada” de mulheres, reunidas em torno de um mesmo objetivo de uma mesma identidade (Ledoux-Beaugrand, 2005). Hoje, a dis- cussio suscita outros olhares e tende a privilegiar as dispersdes, as diferengas ¢ as fragmentagées, e nao mais a unidade. Ainda assim, alguns aspectos comuns a essas mulheres podem ser destacados. Para além das posigées ideoldgicas de esquerda ¢ da opgio femi- nista, pode-se dizer que a criatividade e a capacidade de invengao ‘marcam intensamente seus modos de pensar, suas priticas e reali- zages, fazendo com que se destaquem em seu meio social, politi- co ¢ cultural a0 cabo de algumas décadas ¢ tornem-se objetos de estudos recentemente (Pedro, 2006). Além do mais, é posstvel perceber um nomadismo constante em suas trajetérias,jé que, vivendo constantes desterritorializagées subjetivas, desenvolvem enorme potencial de transformagao e de invengao de novos espacos pessoais, subjetivos e coletivos. Destaco, ainda, a maneira como trazem o corpo, a sexualidade ¢ a subjeti- vidade para o centro de suas produgées, entre priticas discursivas endo discursivas, o que, de modo geral, caracteriza a chamada se- gunda onda do movimento feminista (Goldberg, 1987). A luta pelos direitos reprodutivos; contra o assédio sexual, a violencia doméstica, o estupro; pela descriminalizagao do aborto, pelos di- a MARGARETH RAGO reitos das “prostitutas’, pelos direitos ao corpo € ao controle da prépria vida; a busca de construgao de uma linguagem feminista corporificada; a critica das hierarquias de género presentes nos modos modernos de organizagio social — sio essas as principais bandeiras que as feministas levantam hoje, no Brasil e no mundo. Finalmente, acredito, com Elaine Showalter (2002), que preci- samos construir nossa meméria coletiva, dando a conhecer nossos “icones feministas” locais, figuras que marcaram incisivamente a histéria dos feminismos no Brasil e que evidentemente nao se li- mitam As mulheres aqui estudadas. Afirma a autora: A medida que chegamos ao fim de um século no qual as mulheres tiveram enormes ganhos, ainda carecemos de um sentido do passado feminista. Outros grupos celebram suas figuras heroicas, mas as mulhe- tes nao tém feriados nacionais, dias de celebragio de nascimentos € mortes de grandes heroinas. [..] necessitamos conhecer melhor os pa- drdes de nossa propria tradigao intelectual, comprometer-se e debater com as escolhas feitas por mulheres cujas vidas icdnicas, incanséveis, aventurciras, fazem delas nossas heroinas, nossas irmis, nossas contem- porineas. (p. 19) Feminismos, artes do viver e escrita de si Para o desdobramento destas reflexes, utilizo conceitos ¢ proble- matizagGes de Foucault, especialmente quando discute a consti- tuigao do individuo ético eas “artes da existéncia” (1984, p. 15) dos antigos gregos ¢ romanos, no contexto de suas reflexdes sobre a governamentalidade, isco é, sobre as formas pelas quais se mani- festam 0 governo das condutas e a luta pela autonomia (2004b, 2008c, 2011b). Vale lembrar que, para ele, 0 sujeito nao é condigo de possibilidade da experiéncia, nio preexiste aos acontecimentos; a0 contrario, constitui-se na agao ¢ em redes de relagées em que a A AVENTURA DE CONTAR-SE vivencia a experiéncia‘, Nessa perspectiva, Foucault entende por “modos de subjetivagio” os processos pelos quais se obtém a cons- tituigao de uma subjetividade, a0 contrario dos “modos de sujei- 40", que supdem obediéncia e submissio aos cédigos normativos, como ocorre desde a ascensio do cristianismo com a emergéncia da sociedade disciplinar, na Modernidade (Foucault, 1984, p. 28; 1994, p. 706). Problematizando as formas modernas ¢ contemporaneas de produgao da subjetividade, ¢ entendendo que o Estado investe fortemente no controle da vida do individuo, de seus gestos, con- dutas ¢ crengas, esse fildsofo-historiador pergunta pelas possi- bilidades de invengao de novos modos de existéncia, construidos a partir de outras relagoes de si para consigo ¢ para com 0 outro, capazes de escapar as tecnologias do dispositivo biopolitico de controle individual ¢ coletivo. Esses modos se distanciam da concepgio crista do individuo cindido em seu préprio eu, aquele em que a alma tem primazia sobre 0 corpo. Segundo Foucault, a constituigio de uma ética de si talvez seja, hoje, “uma tarcfa urgen- te, fundamental, politicamente indispensivel, se for verdade que, afinal, nao hé outro ponto, primeiro ¢ iltimo, de resisténcia a0 poder politico senao na relagio de si para consigo” (Foucault, 2004b, p. 306). Ele, entao, introduz o conceito de “estéticas da existéncia” ou “artes do viver” ao estudar a experiéncia de subjetivagao dos an- tigos, os modos pelos quais investiram na produgao da subjeti- vidade, na formagio dos jovens e na nogio de cidadania de uma maneira surpreendentemente diferente da que prosperou na Mo- dernidade ¢ que vigora na atualidade. As “estéticas da existéncia” dos gregos ¢ romanos eram constituidas por “técnicas de si”, como 4 Sobre a diferenga entre os termos individuo e sujeito em Foucaul, ef. M. A. da Fonseca, 2003, p.26. 43 MARGARETH RAGO a meditagdo, a escrita de si, a dieta, os exercicios fisicos e espiri- cuais, a parrésia ou coragem da verdade, que envolviam 0 cuidado de si edo outro, isto é, por préticas relacionais de construgao sub- jetiva como um trabalho ético-politico. Foucault marca com insisténcia essas diferengas que separam antigos ¢ modernos, jé que, ao contririo de visar & produgao de “corpos déccis" por meio de uma pedagogia do corpo ¢ dos senti- dos que ensina a passividade, a obediéncia ¢ a submissio, como , hoje, a lexibilidade e a ca- pacidade de adaptagio —, a formagio do cidadao implicavaa pro- mostra em Vigiar e punir (1977) — mogio de condigdes especiais de vida, de modo que pudesse de- tudes, Diz ele: senvolver suas aptidées e adquirir Sabe-se que o principal objetivo das escolas filoséficas gregas ndo consistia na elaboragio, no ensino de teoria. O objetivo das escolas flo- séficas gregas era.a transformagio do individuo [..] era dar a0 individuo ‘a qualidade que lhe permitiria viver diferentemence, melhor, mais feliz do que as outras pessoas. (Foucault, 2011a, p. 157) A cidadania, naquele contexto, néo era uma questao de ades- tramento do corpo e de rentincia aos prazeres, nem visava 4 forma- Gao de sujeitos destinados a repetir 0 regime de verdade dominan- re ease submeterem ale. Alids, comparando antigos e modernos, M. A. da Fonseca afirma: “Pode-se dizer que esses dois individuos nao sé diferem entre si, mas opdem-se quanto a matétia integrante da consticuigao de cada um: em um, tal matéria & a norma, em outro, a ética” (2003, p. 139). Portanto, os gregos ¢ romanos desenvolveram técnicas de cons- tituigéo de si baseadas em préticas da liberdade que envolviam a conquista da temperanga, isto é, do equilibrio entre o lado racional 0 emocional do individuo por um meticuloso trabalho cotidiano de autotransformasio. Ser belo significava ser temperante e ser 4“ A AVENTURA DE CONTAR-SE capaz de agir com autonomia, sem ser governado pelo outro e sem submissio aos préprios instincos e paixdes; portanto, diferencia-se radicalmente da “cultura do narcisismo” do mundo contempo- neo, em que o individuo se torna incapaz de sair de dentro de si mesmo ¢ de ter distancia em relagéo 20 mundo, tamanho o grau de projegio e.identificacao que estabelece com o mundo exterior (Lasch, 1983). Nem tirano, nem eseravo, o individuo deveria ser capaz de governar-se a si mesmo para tornar-se um ser politico apto a participar da vida na pélis. Na Antiguidade, a vontade de ser um individuo ético estava ligada, pois, afirmagio da propria liberda- dee a0 desejo de constituir uma vida exemplar, que pudesse ser reconhecida no presente e na posteridade, Nas palavras de Foucault (1994, p.731): Essa claborasdo da prdpria vida como uma obra de arte pessoal, mes- mo que obedecesse a cinones coletivos, creio eu, estava no centro da experiéncia moral, da vontade de moral na Antiguidade, a0 passo que, ‘no Cristianismo, com a religito do texto, a ideia de uma vontade de Deus, © principio de uma obedigncia, a moral assumiu muito mais a forma de tum cédigo de regras. A questo da formagio de um “homem novo", construido fora da légica do mercado e dos valores capitalistas, também esteve presente nos projetos revolucionarios desde o século XIX. Tratava- se de formar revolucionérios, entre homens ¢ mulheres, isto é, in- dividuos justos, livres, integros, dotados de vidas exemplares, nos quais se poderia mirar. Nesse sentido, entendia-se que o trabalho de autoconstituigio do individuo deveria ocorrer desde o interior do partido politico revolucionario, visto como espago da liberdade ¢ da emergéncia de formas libertérias de sociabilidade. Contudo, essa proposta nao se realizou da mancira como se desejou, muito ‘embora tenha trazido a questio da ética pata a esfera piiblica. Para 45 MARGARETH RAGO muitos, essa experiénciade vida politica foi afetada pelo empo- brecimento do mundo piblico, de modo que a dimensio discipli- nar das priticas da militancia nos grupos de esquerda acabou se sobrepondo as experiéncias ¢ experimentagdes que possibilitariam a produgio de subjetividades livres e de relagées sociais pautadas pela dtica e pelo respeito a diferenga. Na experiéncia histérica brasileira, ndo so poucos os teste- munhos que convocam a perceber as priticas excludentes ¢ hierar- quicas desenvolvidas no interior dos partidos politicos de esquer- da,a partir de um angulo muito diferente do que pretendiam suas liderangas. O partido revolucionétio instituiu-se como instancia capaz de formular e abrigar a verdade cientifica de interpretagio da chamada “realidade objetiva’, jé que dorado da nica ciéncia “verdadeiramente revolucionéria’, pois situada na perspectiva da classe revolucionaria por exceléncia, o proletariado urbano. Os militantes deveriam, portanto, praticar uma série de investigagées a respeito de si mesmos — a famosa “autoctitica” —, para aban- donar velhos habitos, concepgdes c crengas arraigadas, incorpo- rar o novo regime de verdades, superando que se considerava “desvios pequeno-burgueses”, Assim, a militancia se tornou uma forma de vida pronta e organizada para amplo consumo (Figuei- redo, 1995). Problematizando essas questdes, ao discutir as técnicas de si claboradas na tradigao ocidental e as formas imaginadas de cons- trugio de outros modos de ser, Foucault aborda o tema da produ- io da “subjetividade revolucionaria’, Ao historicizar essa expe- riéncia, sugere que, desde meados do século XIX, 0 antigo tema de um trabalho sobre si se conecta com a ideia da revolugio polt- tica, da “conversio & revolucao”. Em suas instigantes palavras: Parece-me que &a partir do século XIX [...], seguramente por volta dos anos 1830-40, ¢ justamente em referencia aquele acontecimento 46 A AVENTURA DE CONTAR-SE fundador, histérico-mitico que foi (para 0) século XIX a Revolusao Francesa, que se comesaram a definir esquemas de experiéncia indi- vidual e subjetiva que consistiriam na “conversio A revolugso”, Parece-me ainda que nao se pode compreender 0 que foi, ao longo do século XIX, a pritica revolucionéria, 0 que foi 0 individuo revolucionirio ¢ 0 que foi para ele a experitncia da revolugio se nao se levar em conta a nogio, o esquema-fundamental da conversio & revolusio. (Foucault, 2004b, p. 256) Na sequéncia, Foucault aponta que, dentre os modos de subje- tivagao existentes na tradigio greco-romana — as priticas de si dos estoicos, epicuristas ou cinicos, entre outros grupos filoséficos —, os movimentos revoluciondrios apropriaram-se daquele que foi reforcado pelo cristianismo, ponto sobre o qual falarei adiante. Mais do que isso, transformou-se o que deveria ser um movimento de criagao libertéria, a partir das préprias potencialidades do in- dividuo, em submissio 3s verdades ditadas c impostas autoritaria- mente de fora e do exterior. Diz ele: © problema entao estaria em examinar de que modo introduzi-se este elemento que procedia da mais tradicional —[...] pois que remonta A Antiguidade — tecnologia de si queé a conversio, de que modo atrelou- se cle a este dominio novo ¢ a este campo de atividade nova que era a politica, de que modo este elemento da conversio ligou-se necessaria- mente, sc nao exclusivamente, & escolha revolucionacia, & pritica revolu- ciondria, Seria preciso examinar também de que modo esta nogio de conversio foi pouco a pouco sendo validada — depois absorvida, depois enxugada e enfim anulada — pela prépria existéncia de um partido re- voluciondrio. E de que modo passamos do percencimento a revolugio pelo esquema de conversao ao pertencimento a revolugio pela adesio a um partido. (Foucaule, 2004b, pp. 256-7) ‘Varios autores, como Cornelius Castoriadis, Jacques Ranciére, Claude Leffort ¢ E. P. Thompson, criticaram veementemente a "7

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