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TIAGO DE OLIVEIRA PINTO

idéia de organizar uma coletânea de trabalhos


de etnomusicologia para um dossiê temático da
Revista USP foi pela primeira vez pronunciada
por João Baptista Borges Pereira, professor
emérito do Departamento de Antropologia da
USP por ocasião do III Encontro Nacional da
Associação Brasileira de Etnomusicologia no Sesc
Pinheiros em São Paulo (novembro de 2006). A proposta era
interessante, pois foram raras até então as oportunidades de se
apresentar textos de especialistas na área dirigidos a um público
interessado e acadêmico, porém não necessariamente conhecedor
de antropologia da música1.
Os textos selecionados para compor o dossiê tratam de
vários aspectos e de diferentes formas de pesquisa e de se pensar
a etnomusicologia, que, grosso modo, pode ser entendida como o

TIAGO DE OLIVEIRA
PINTO é professor
da FFLCH-USP, do
Instituto de Musicologia
da Universidade de
Hamburgo, Alemanha,
e coordenador de curso
online de Etnomusicologia,
www.sonsdobrasil.org.
estudo do ser humano que faz música. O que distingue a etnomu-
sicologia da musicologia histórica – mais dedicada a fontes escritas
– é dar ênfase ao estudo do fazer musical e à criação que daí
surge, independente da origem cultural e do lugar geográfico da
respectiva manifestação. Dessa maneira, a etnomusicologia tem
uma afinidade muito grande com a antropologia, principalmente
também por tratar de manifestações ligadas a redes de relações
sociais ou culturais mais amplas e não necessariamente inseridas
no universo letrado.
Instituída há pouco mais de cem anos na Europa, a
etnomusicologia entende que há inúmeras formas de se fazer
música diferenciada dos cânones ocidentais. Buscar entender
essas manifestações musicais de outros continentes significa es-
tudá-las, e estudá-las exige um conhecimento mais aprofundado
da sociedade em foco, ao mesmo tempo que conhecer outras
civilizações é também emancipar-se das normas ao próprio redor,
relativizando-as, para, inclusive, enxergar a própria cultura com
outros olhos, e, por conseguinte, ouvi-la com outros ouvidos.
Na era das comunicações instantâneas e da globalização, uma 1 É significativo que a partir dos
anos 1980 algumas coletâneas
importantes com enfoque etno-
percepção como essa tinha que ganhar muita força e incentivar o musicológico sobre a música
brasileira tenham sido publicadas
debate em torno do entendimento (ou não) entre diferentes povos no exterior: Weltmusik: Brasilien.
Einführung in Musiktraditionen
Brasiliens, Mainz/New York/
e mentalidades. A etnomusicologia acompanhou esse desenvol- London, Schott, 1986 (org.
Tiago de Oliveira Pinto); Brazil.
vimento, quase que como uma disciplina irmã da antropologia The World of Music, 1988, vol.
30/2 (org. Tiago de Oliveira
Pinto); Die Musikkulturen der
cultural, sem abandonar por completo a musicologia histórica, Indianer Brasiliens (1). Musices
Aptatio. Líber Anuarius. Roma,
embora liberta do imperativo do pensamento musical ocidental CIMS, 1994-95 (org. Antonio
Alexandre Bispo); Brazilian Mu-
sics, Brazilian Identities. British
oitocentista, que perdura, largamente, nas grades curriculares Journal of Ethnomusicology,
Cambridge, 2000 (org. Suzel
dos conservatórios de música até hoje. Ana Reily).
Mais recentemente surgem
coletâneas com ensaios de
Os primeiros registros de música feitos em pesquisa de etnomusicologia brasileira edi-
tadas no país: Etnomusicologia:
campo antropológica no Brasil foram realizados entre 1907 e Lugares e Caminhos, Fronteiras e
Diálogos, Salvador, UFBA/Abet,
2005 (org. Angela Lühning &
1911 por pesquisadores antropólogos alemães, que gravaram Laila Andresa Cavalcante Rosa);
Músicas Africanas e Indígenas no
cânticos dos carajás, macuxis, taulipangues, iecuanas, entre outros Brasil, Belo Horizonte, UFMG
(org. Rosangela Pereira de Tugny
& Ruben Caixeta de Queiroz,
povos indígenas da Amazônia, para fins de pesquisa. Inicialmente 2006);“Etnomusicologia”, in An-
thropológicas 17 (1), 2006. Re-
a avaliação desse material sonoro, arquivado em museus de an- cife, UFPE (org. Carlos Sandroni).
Tiago de Oliveira Pinto

Procissão de
Festa de Reis
em Jaborandi,
São Paulo,
1987

tropologia, ficava a cargo de musicólo- de pós-graduação na área. Hoje diversos


gos, que transcreviam para partituras os centros de pesquisa e uma instituição como
sons registrados. No momento em que a Associação Brasileira de Etnomusicologia
esses musicólogos perceberam que so- (Abet) já refletem um grande potencial de
mente a transcrição para a pauta musical pesquisa e de projetos no Brasil através da
não possibilitaria compreender e apreciar atuação de profissionais em instituições
as músicas registradas – sendo necessário de ensino e graças a uma nova e engajada
que o pesquisador mergulhasse também na geração de etnomusicólogos.
cultura onde soavam as músicas – nasce Embora posterior às mencionadas pri-
uma etnomusicologia que já se distancia da meiras experiências de gravação sonora
pesquisa histórica para adotar perspectivas na Amazônia, o surgimento de nomes
antropológicas. É da necessidade de uma importantes na história da pesquisa etno-
redefinição metodológica, do abandono de musicológica no Brasil é mais antigo do
códigos estabelecidos e, assim, da ruptura que a criação de cátedras correspondentes
com verdades instituídas, que surge a dis- na última década do século XX, ou da ins-
ciplina. É sintomático, portanto, que um titucionalização da Abet em 2001. Basta
dos expoentes do modernismo brasileiro, recordar que, sem dúvida, foi Mário de
Mário de Andrade, também compreendesse e Andrade quem deu importância às múlti-
difundisse a pesquisa etnomusicológica (ob- plas tradições orais de música no país de
viamente sem usar o termo, pois a disciplina forma mais sistemática, como professor de
se firmou como “etnomusicologia” somente história da música e pesquisador da cultu-
a partir dos anos 1950 com a fundação da ra brasileira. Mário não só reconheceu a
Society for Etnomusicology nos EUA). riqueza da diversidade musical brasileira,
Atividades etnomusicológicas brasilei- como também a sua fragilidade. A emprei-
ras recentes tomaram vulto na década de tada de pesquisa e de registros musicais
1990, quando universidades incluíram a que organizou em 1938 – a célebre Missão
etnomusicologia nos currículos dos depar- de Pesquisas Folclóricas – é um exemplo
tamentos de música e de antropologia, inau- eloqüente da pesquisa etnomusicológica
gurando os primeiros programas brasileiros brasileira daquele tempo.

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Uma das várias orientações da disciplina O estudo da presença das culturas africanas
que contribuíram aos estudos acadêmicos da no Brasil é sem dúvida um campo que se
música com resultados de pesquisa verda- beneficia dos resultados da pesquisa etno-
deiramente interdisciplinares e inovadores musicológicas. Na sua busca pela compre-
é a etnomusicologia da música indígena no ensão dos processos históricos e sociais que
Brasil. Mítica e músicas amazônicas como marcam as populações afro-americanas, as
fenômenos simultâneos, infensos à escrita e ciências sociais podem considerar a etno-
inseparáveis da sua performance, represen- musicologia, pois seus métodos de trabalho
tam um código que exige dos pesquisadores complementam e ampliam grandemente
uma percepção aguçada para acontecimen- teorias da cultura e da miscigenação, visto
tos que vão muito além de qualquer con- que “a cor do som” não coincide, necessa-
senso preestabelecido do que seja a prática riamente, com supostas realidades baseadas
musical. Os trabalhos de etnomusicólogos em critérios raciais. Gerhard Kubik, cuja
como Rafael José de Menezes Bastos, An- fala aqui reproduzida abriu o III Encontro
thony Seeger, Acácio Tadeu Piedade, Deisy Nacional da Abet de 2006, é o estudioso que,
Lucy Montardo – para citar apenas alguns em meados dos anos 1970, pela primeira
nomes – documentam o lugar consistente vez apontou para as origens conceituais e
desse campo dentro da disciplina no Brasil. sonoras do samba e de outras manifestações
Guilherme Werlang dá conta dessa aborda- afro-brasileiras (Kubik, 1979). Hoje já se vê
gem no presente dossiê com o seu ensaio uma continuidade dessa orientação teórica
sobre os mito-cantos marubos, expressão de em trabalhos que tratam de conceitos e de
um povo amazônico cujo universo mítico estruturas performáticas, cuja importância
– e portanto musical – acompanha desde o está em possibilitar um olhar diferenciado
início dos anos 1990. sobre a presença africana no Brasil justa-
Uma outra vertente etnomusicológica, mente através da dimensão da escuta. A
cuja originalidade também se faz perceptível etnomusicologia confere às manifestações
fora do campo da disciplina, é aquela que afro-brasileiras um lugar muito mais amplo
tem o estudo das complexas tramas sonoras do que aquele que comumente ainda se
transatlânticas como seu foco de interesse. apega à idéia de resistência, de um lado,

Tiago de Oliveira Pinto

Cena de jongo
na Serrinha,
com Darcy
da Serrinha
(ao centro),
Madureira,
Rio de Janeiro,
1982

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ou de mera contribuição cultural, ou seja, submetido pelo MinC-Iphan à Unesco e
folclórica, de outro. que levou ao reconhecimento internacio-
Além da sua crescente presença em nal da relevância cultural da manifestação
programas acadêmicos, a etnomusicologia (Iphan, 2006).
brasileira se caracteriza mais recentemente Algumas das principais tendências da
também por sua aplicabilidade junto a etnomusicologia no Brasil que se confi-
comunidades cujas práticas musicais são guram nítidas nos nossos dias podem ser
documentadas e estudadas, ao mesmo resumidas a seguir:
tempo que difundidas in loco. A experi-
ência da disciplina no Brasil começa a 1) Uma pergunta que cada vez menos
apresentar exemplos em que o saber do se pronuncia entre etnomusicólogos é “o
pesquisador leva ao auto-reconhecimento que é música?”. Interessa antes disso saber
e mesmo a uma forma de “autopesquisa” para que é feita ou qual a proposta da sua
de determinados grupos. Assim, a primeira performance, momento em que toda música
experiência pedagógica bem-sucedida no está viva e portanto não “congelada” em
contexto de uma etnomusicologia aplicada partitura ou registro sonoro.
realizou-se na Bahia, sob a coordenação de 2) Se não existe uma prática da música
Francisca Marques, que trabalha na região de validade universal (a execução a partir
desde 2001. Outros projetos congêneres da leitura de uma partitura é apenas uma
incluem também comunidades da periferia de muitas práticas), há o consenso de que
das grandes cidades, como a da Maré no a expressão cultural viva se insere em dife-
Rio de Janeiro (Araújo et al., 2006). Já a rentes momentos, meios e contextos, todos
recente nomeação do samba de roda do importantes para a gênese e manutenção de
Recôncavo como masterpiece do patrimô- práticas musicais. Isso terá, necessariamen-
nio imaterial da humanidade pela Unesco te, conseqüências também para o trabalho
deve-se ao trabalho de etnomusicólogos etnomusicológico.
no país, que não apenas dispõem dos 3) Muito mais do que a possível auten-
principais registros sonoros e documen- ticidade da música – a singularidade da sua
tais da manifestação, como também são forma – é a especificidade da ocasião em
responsáveis pelo dossiê fundamentado que é realizada que ganha a atenção dos
Tiago de Oliveira Pinto

Maracatu
“Piaba de
Ouro” em
apresentação de
rua em Cidade
Tabajara, PE,
1990

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pesquisadores, a autenticidade (ou não) da Concluindo, o presente dossiê ainda
música sendo apenas de relevância secun- abre espaço para a chamada world music,
dária para a sua análise. apresentando aos leitores uma entrevista
4) Assim, questões básicas estarão vol- exclusiva com Gerald Seligman. Além de
tadas ao mix, ou seja, à mistura sonoro-mu- presidente da World Wide Music Expo
sical, mais do que à possível originalidade (Womex.com), de exímio conhecedor da
de partes distintas desse mix, emancipando música popular brasileira e de produtor
a discussão contemporânea sobre música de musical, Gerald Seligman também é
idéias de hibridismo, aculturação etc. (con- amigo pessoal de vários representantes
ceitos, aliás, de relevância questionável para importantes da MPB. Poucos profissio-
um entendimento cultural de música). nais têm o domínio que tem o entrevis-
5) Ao invés de priorizar a desconstrução tado sobre a relação da música popular
objetiva e analítica da manifestação musical brasileira com o advento da world music.
como principal labor do musicólogo – essen- A hipótese que surge é que nada melhor
cialmente daquele que lida com o aspecto do que a própria pesquisa etnomusicoló-
histórico da música –, importa ao etnomusi- gica para detectar o plano sonoro como
cólogo considerar a impressão geral que essa elemento decisivo para o vertiginoso de-
manifestação expressa, uma preocupação senvolvimento da world music na mídia
que antecede e orienta o foco dirigido a ele- em todo o mundo.
mentos mais propriamente sonoro-musicais Se, finalmente, as primeiras gravações
(a análise de ritmos, timbres, etc.). de música, de tradição oral brasileira
6) Um interesse de destaque dado aos feitas por antropólogos alemães no início
significados da música, em detrimento do do século XX contribuíram ao desenvol-
entendimento de suas estruturas sonoras, vimento da etnomusicologia como nova
tem caracterizado muitos trabalhos recentes ciência da cultura, é a manifestação mu-
de etnomusicólogos, mais notadamente nos sical brasileira resgatada por produtores
EUA, influenciados pela antropologia de e artistas nacionais e estrangeiros a partir
Clifford Geertz. Diferente dessa tendência, do final desse mesmo século XX que irá
o olhar mais equilibrado sobre ambos os reafirmar uma renovada musicalidade
aspectos – sobre a estrutura sonora e, si- brasileira, dando-lhe cada vez mais ouvi-
multaneamente, sobre os seus significados do internacional através da globalização
– ganha maior importância entre nós. das mídias.
7) Investigações etnomusicológicas Este dossiê pretende estimular a dis-
recentes valorizam a dinâmica social, na cussão em curso, sem reclamar para si,
medida em que a pesquisa da música em obviamente, esgotá-la, mesmo porque ouvir
dada comunidade representa, simultanea- é uma experiência sensória inserida no tem-
mente, um projeto comunitário. Ao invés po e, por esse motivo, inesgotável. Assim,
da retórica acadêmica, prevalece aqui a voz enquanto há tempo, existe música e, dessa
dos membros dessa comunidade. forma, a reflexão sobre a mesma.

BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, Samuel et al. “Conflict and Violence as Theoretical Tools in Present-Day Ethnomusicology: Notes on a Dialogic
Ethnography of Sound Practices in Rio de Janeiro”, in Ethnomusicology, vol. 50, no 2, 2006, pp. 287-313.
DOSSIÊ IPHAN 4: Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Brasília, Minc/Iphan, 2006 (coord. de pesquisa Carlos San-
droni).
KUBIK, Gerhard. Angolan Traits in Black Music, Games and Dances of Brazil. Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar,
1979.

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