1.Introdução 2. Violência doméstica, feminicídio e pandemia: contextualização
dos termos e legislação específica 3. Análise de dados durante a Pandemia do Covid-19. 4. Conclusão
Violência de Gênero: a violência doméstica e o feminicídio
Através da Lei 13.979 de 06 de fevereiro de 2020 (BRASIL, 2020), o Governo
Brasileiro dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto de 2019. Uma das medidas sanitárias adotadas foi a quarentena, quando vários serviços considerados não essenciais foram temporariamente fechados e grande parcela da sociedade passou a viver em isolamento domiciliar. A pandemia trouxe vários impactos para a sociedade e traz à tona alguns debates, dentre eles a violência doméstica, um problema historicamente discutido no Brasil, que agora, porém, ganha novas implicações. O isolamento domiciliar, medida que é extremamente necessária para o controle da circulação do novo coronavírus, implica em uma maior convivência de mulheres com seus possíveis agressores. Uma das consequências do isolamento domiciliar foi o aumento do número de violência doméstica, em diferentes países do mundo como França, Itália, Espanha, Portugal, China, Estados Unidos, dentre outros (FORUM BRASILEIRO SEGURANÇA PÚBLICA, 2019, p. 3). Historicamente as mulheres são vítimas das mais diversas formas de violência, sendo elas de caráter psicológico, econômico, físico e sexual. A partir de condições históricas, são naturalizadas formas de discriminação contra a mulher e geradas práticas que permitem ataques contra a sua integridade, desenvolvimento, saúde, liberdade e vida (GEBRIM; BORGES, 2014, p. 59). A violência doméstica que faz inúmeras vítimas é uma das consequências do machismo e do patriarcado. A mulher é subjugada e colocada em uma situação de inferioridade ao homem. “A violência contra a mulher por razões de gênero é histórica e tem um caráter estrutural, que se perpetua devido à sua posição de subordinação na ordem sociocultural patriarcal” (GEBRIM; BORGES, 2014; p. 59). A violência contra a mulher é a personificação deste machismo exacerbado na sociedade brasileira. “O corpo das mulheres acaba sendo invadido e exterminado pelos pares de um eixo masculino voraz que nele inscrevem a assinatura de uma fratria inteira” (MACHADO; ELIAS, 2018, p. 289). Tragicamente, o sentimento de posse dos homens em relação às suas companheiras levam ao extermínio de suas vidas, “[...] o território corporal das mulheres é violado para consumar a morte ou efetivar sua tentativa” (MACHADO; ELIAS -2018, p. 289). A atuação do Estado no enfrentamento a mulher em situação de violência A grande violência sofrida historicamente pelas mulheres no Brasil, gera uma sensação de impunidade em toda a sociedade. O Estado passa a ser pressionado por grupos ativistas feministas com grande aporte da mídia, para que crie estratégias de enfrentamento à violência em razão de gênero. Desta forma foram criadas as leis Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, as duas maiores formas de enfrentamento à violência de gênero presentes no ordenamento jurídico brasileiro. A aprovação de leis especiais para o enfrentamento da violência baseada no gênero tem sido uma estratégia adotada pelos movimentos de mulheres em vários países para criar garantias formais de acesso à justiça e a direitos para mulheres em situação de violência (PASINATO, 2015, p. 408). A invocação do Direito Penal como garantidor de controle social é a forma que vem sendo utilizada pelo estado para responder à pressão da sociedade por sua intervenção. Há diversos trabalhos que tecem críticas à esta situação, reportando que se trata de mero simbolismo penal, ao analisar-se a efetividade da norma frente aos dados estatísticos de violência contra a mulher e feminicídio. A seguir crítica feita por Vera Regina Pereira de Andrade: O sistema penal não pode, pois, ser um referencial de coesão e unidade para as mulheres porque atua, ao contrário, como um fator de dispersão e uma estratégia seletiva na medida em que as divide, recriando as desigualdades e preconceitos sociais. E não pode ser um aliado no fortalecimento da autonomia feminina porque prioriza o fortalecimento da unidade familiar e sucessória segundo o modelo da família patriarcal, monogâmica, heterossexual, destinada à procriação legítima, etc., modelo este regulamentado em minúcias pelo Código Civil brasileiro, ainda que hoje passando por profundas transformações (ANDRADE, 2003, p. 104). Entretanto, argumenta-se que com a invocação do Direito Penal foi possível dar visibilidade à causa. A violência doméstica com frequência é vista como um “problema privado”, como sendo algo que ocorre dentro da relação de cada casal e não como um crime “público”, como um problema de toda a sociedade. No entanto, por meio das mobilizações de campanhas sociais, o problema antes visto como privado tornou-se público, até adentrar na esfera criminal (ANDRADE, 2003, p. 83). Como já mencionado, o ordenamento jurídico dispõe de duas grandes leis para enfrentamento da violência em questão de gênero, especificamente a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. Maria da Penha é o nome popularmente dado para a Lei de nº 11.340 de 2006 (BRASIL, 2006), que foi sancionada a fim de atender a recomendação que a Comissão de Direitos Humanos CIDH fez ao Brasil, após a grave omissão do judiciário brasileiro contra a brasileira Maria da Penha, que foi vítima de duas tentativas de feminicídio pelo marido. No primeiro julgamento, após a denúncia do crime, o acusado foi condenado a oito anos, saindo em liberdade. No segundo julgamento, foi condenado a 10 anos e 6 meses de prisão, também saiu em liberdade. Desde então, Maria da Penha se tornou uma grande ativista na causa de violência doméstica (INSTITUTO MARIA DA PENHA - IMP, 2021). As medidas previstas na Lei Maria da Penha abordam o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher de forma integral, com intervenções para punir os agentes responsáveis pela violência, proteger os direitos das mulheres e promover seu acesso à assistência e a seus direitos. “A lei também prevê a prevenção da violência por meio de campanhas e processos de mudança cultural baseados no rompimento dos padrões de relacionamento entre homens e mulheres em favor da igualdade de gênero” (PASINATO, 2015, p. 415). Referida lei foi um grande avanço, sendo que um dos principais desdobramentos foi a criação das Medidas Protetivas de urgência, que se configura como um dos primeiros mecanismos de afastamento do agressor até a vítima. Criadas pela Lei Maria da Penha, as medidas protetivas de urgência surgiram como um dos mecanismos propostos pela legislação para coibir os vários tipos de violência cometidas contra a mulher em situação doméstica ou familiar (FORUM BRASILEIRO SEGURANÇA PÚBLICA, 2020, p. 8)
A segunda lei é a Lei nº 13.104 de 2015 (BRASIL, 2015), que trata do
feminicídio. Esta norma “é reconhecida como um marco para o processo histórico de construção e reconhecimento dos direitos das mulheres como direitos humanos no Brasil” (PASINATO, 2015, p. 409). O termo feminicide foi utilizado pela primeira vez por Diana Russel, no ano de 1976 em Bruxelas, no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres. A partir daí, na América Latina, o referido termo passou a ser utilizado por movimentos feministas com fins políticos, denunciando e tornando pública a violência que sofrem as mulheres e a impunidade de seus agressores (GEBRIM, BORGES, 2014, p. 62). A Lei do Feminicídio altera o Código Penal para incluir no rol dos crimes hediondos o homicídio de mulheres, que sejam assassinadas pela condição de serem do sexo feminino, conforme previsto no § 2º, do art. 1º da referida lei (BRASIL, 2015). Traz ainda condições de aumento da pena (de ⅓ até a metade) caso o crime seja praticado: “I) durante gestação ou nos três meses posteriores ao parto; II) contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima” (BRASIL, 2015) É possível verificar, que o Brasil possui no ordenamento jurídico normas duras de enfrentamento a violência sofrida por mulheres. Tal endurecimento foi necessário diante de tantas mulheres sendo vítimas de seus companheiros, dentro de suas próprias casas e longe dos olhares da sociedade. O que se busca com a criminalização destas condutas é, em primeiro lugar, a discussão e a conscientização pública acerca do caráter nocivo delas e, a seguir, a mudança da percepção pública a respeito (ANDRADE, 2003, p. 83).
Com a tipificação das condutas abre-se a possibilidade de obter dados estatísticos sobre a efetividade da norma, uma vez que anteriormente à promulgação da lei do feminicídio, por exemplo, não era possível saber quais deles poderiam ser enquadrados dentro da tipificação do feminicídio, pois os dados contabilizavam apenas o homicídio de mulheres, não sendo considerada a motivação do criminoso. No entanto, com a Pandemia do COVID-19, novas abordagens precisaram ser consideradas quando se analisa dados quantitativos de aumento ou redução em denúncias de violência doméstica, uma vez que o isolamento domiciliar acarreta em uma maior convivência da mulher com o agressor, uma situação atípica para as famílias, alterando toda a rotina familiar, incidindo em maior suscetibilidade da mulher em ser vítima de violência doméstica.
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ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x Cidadania mínima: códigos de violência na Era da globalização. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2003.
BRASIL, Lei Federal nº 11.340, de 07 de agosto de 2006. Disponível em:
FORUM BRASILEIRO SEGURANÇA PÚBLICA(FBSP). Violência Doméstica
Durante a Pandemia - Nota Técnica. 2020. Disponível em:https://drive.google. com/drive/folders/1pKIrBYDb4zx14nUIDmfCBgR-I9nREwn9. Acesso em: 27 jul. 2021.
GEBRIM, Luciana Maibashi &; BORGES, Paulo Cesar Correa. Violência de
Gênero: tipificar ou não o femicídio/feminicídio?, 2014. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/51/202/ril_v51_n202_p59.pdf. Acesso em: 20 de jul. 2021.
INSTITUTO MARIA DA PENHA (IMP). Quem é Maria da Penha. Disponível em:
MACHADO, Isadora Vier & ELIAS, Maria Lígia G. G. Rodrigues, Feminicídio em
cena-Da dimensão simbólica à política, 2018, Disponível em: https://www.scielo.br/j/ts/a/JXYftZgQZYr645Xrwc79Jvh/abstract/?lang=pt. Acesso em: 17 de jul. 2021.
PASINATO, Wania; Acesso à justiça e violência doméstica e familiar contra as
mulheres: As percepções dos operadores Jurídicos e os limites para a aplicação da lei Maria Penha, 2015. Disponível em: file:///C:/Users/PMC/Downloads/ Acesso%20a%20Justica.pdf. Acesso em: 20 jul. 2021. ROICHMAN, Carlos Barreto Campello, Faca, peixeira, canivete: uma análise da lei do feminicídio no Brasil, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufsc. br/index.php/katalysis/article/view/1982-02592020v23n2p357/ 43326. Acesso em: 15 de jul. 2021.