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Manoela Pedroza
2
Introdução
A maioria dos moradores do Rio de Janeiro até o final do século XIX, ricos ou
pobres, estabeleceram-se em algum lugar, alimentaram suas famílias com o que
conseguiram plantar ou vender, quando possível compraram escravos e buscaram novas
terras e, provavelmente, quiseram legar aos filhos aquilo que conquistaram ou
herdaram. Portanto, todos tiveram de tomar decisões quanto ao patrimônio material e
imaterial que conseguiram amealhar. Nossa questão de fundo neste capítulo é conhecer
um pouco das estratégias de reprodução social dessas famílias.
1
Discussão mais aprofundada do conceito de ‘sertões cariocas’ pode ser encontrada em Pedroza,
Manoela. Terra de resistência: táticas e estratégias camponesas nos sertões cariocas (1950-1968) PPG
História, UFRGS, Porto Alegre, 2003.
2
Os registros paroquiais utilizados neste artigo foram pinçados de uma amostragem maior que
compreende a totalidade dos assentos ACMARJ, AP-337 e AP-343.
3
AN. Fundo: Inventários (código 3J). Falecidos: Miguel Cardoso Castel Branco. Ano 1797. Notação
8993, e Ana Maria de Jesus. Inventariante: João Pereira Lemos. Ano 1795. Notação 10, caixa 3636.
4
AGCRJ, Documento notação 68-3-75.
5
Ordenações Filipinas, Rio de Janeiro. Editor Cândido Mendes de Almeida. 1870. livro 4. (O texto
integral das Ordenações pode ser acessado no sítio
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm. )
6
O conteúdo integral do Almanak Laemmert, anos de 1844 a 1889, está acessível no sítio
http://www.crl.edu/content/almanak2.htm.
4
primeiros ‘colonos’ em terra carioca7. Esse trabalho foi tabulado em computador pelo
LIPHIS, Laboratório de Pesquisas em História Social do IFCS-UFRJ, que compôs uma
base de dados com mais de 16.000 entradas nominais de moradores do Rio de Janeiro,
até o início do século XIX.
Precisamos definir alguns conceitos que serão usados ao longo deste capítulo.
Entendemos por reprodução social ou reprodução familiar o resultado do processo por
meio do qual uma população, sobre um dado território, consegue perpetuar as estruturas
e relações que a constituem.8 Podemos dizer que a reprodução social de um grupo se
constrói, microanaliticamente, por meio de estratégias – comportamentos demográficos,
jurídicos, sucessórios ou matrimoniais – utilizadas por uma família para transportar de
uma geração para outra um capital que permita o estabelecimento dos seus
descendentes.9 O conjunto desses mecanismos forma um sistema de transmissão, que
deve dialogar com os constrangimentos costumeiros e jurídicos que pesam sobre essa
operação e ditam suas fórmulas.10 Estudar as modalidades diversas da transmissão dos
bens de uma família de uma geração à outra nos ajuda a observar se a reprodução social
de grupos domésticos é assegurada ou não.11
7
Rheingantz, Carlos Grandmasson. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria
Brasiliana, 1965..
8
Bouchard, Gérard e Goy, Joseph (Dir). Transmettre, hériter, succéder: la reproduction sociale en milieu
rural France-Québec XVIIIe-XXe siècles. Lyon: PUL, 1992; Dérouet, Bernard. Territoire et parenté:
pour une mise en perspective de la communauté rurale et des formes de reproduction familiale. Annales
HSS, Paris: ano 50, 3, (645-686). 1995; Viret, Jérôme Luther. La réproduction familiale et sociale en
France sous l'Ancien Régime: le rapport au droit et aux valeurs. Histoire et Sociétés Rurales, 29, (165-
188). 2008.
9
Augustins, Georges. Esquisse d'une comparaison des systèmes de perpétuation des groupes domestiques
dans les sociétés paysannes européennes. Archives Européennes de Sociologie: XXIII, 1, (39-72).
1982; Bouchard, Gérard. Les systèmes de transmission des avoirs familiaux et le cycle de la société
rurale au Québec du XVII au XXe siècle. Histoire Sociale - Social History: 16, 31, (35-60). 1983.
10
Bouchard, Gérard. L'étude des structures familiales préindustrielles: pour un renversement des
perspectives. Revue d'histoire moderne et contemporaine: 28, (544-571). 1981.
11
Lavallée, Louis. La transmission du patrimoine selon le mode de partage dans la seigneurie de La
Prairie sous le régime français. In: Bouchard, G. e Goy, J. (Ed.). Transmettre, hériter, succéder: la
reproduction sociale en milieu rural France-Québec XVIIIe-XXe siècles. Lyon: PUL, (213-230), 1992.
5
açúcar em meio à floresta tropical, nativos rebelados e mosquitos, dependia muito mais
do empenho, da sorte e de investimentos pessoais do que de ‘costas quentes’. Mas não
nos deixemos enganar. Se isso pode ser verdade, digamos, num filme de faroeste, não
parecia ser o caso em uma sociedade em que a “política geria a economia”12, como a da
colônia. Por isso, vejamos mais de perto a trajetória desses sujeitos.
1659
Manoel Maria
Nunes Correia
Sousa (pt)
1676 Jacarepaguá - 8 filhos batizados em Irajá
1687 1691 1684 1687 1668 1679 1682 1676 1684 1681 1677 1680 1693
Pedro Galvez Helena Luís Apolônia Domingos Joanna Luisa Manoel Anna Antônio Manoel Maria Francisco
Palença de Soares Nunes Ferreira Nunes Nunes Antunes Correia Fernandes Nunes de Nunes de
(espanhol) Sousa Pereira (pt) Sousa (pt) Sousa Sousa Susano (pt) de Valqueire Sousa Sousa
Sousa (pt) (pe) (pe)
717 Sapop 1714 Sapop 1705 Irajá* 1706 Sapop 1711 Irajá
1713
Antônio
Fernandes
Valqueire
12
Essa é a tese clássica de João Fragoso a respeito da economia colonial. Cf. Fragoso, João Luís Ribeiro.
Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-
1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. Segundo ele, o funcionamento da economia
colonial não era ditado apenas pela oferta e pela procura, mas também pela política. “A Câmara, os
ofícios da coroa e as mercês, em geral, criavam para seus titulares possibilidades de acumulação de
riquezas à margem da produção e do comércio”. Para o caso específico dos engenhos de açúcar do Rio
de Janeiro, ver ______. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra
do Rio de Janeiro (século XVII). Algumas notas de pesquisa. Tempo - Revista do Departamento de
História da UFF, Niterói: 8, 15, (11-35). 2003.e, para uma visão mais geral,______. Homens de grossa
aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1998.
6
terras e escravos. Esses jovens casais se diferenciavam dos ‘principais da terra’, que
também casaram suas filhas com jovens portugueses, mas se aproveitaram de uma leva
anterior de jovens oficiais, e instalaram seus engenhos em outras paragens mais nobres,
como Irajá, Marapicu e Jacarepaguá.13 Lá sim encontramos a verdadeira elite
tupiniquim. Em Campo Grande, na falta de nobres, a instalação dos engenhos de açúcar
contou com o empenho de casais mais plebeus.
Luísa era filha de Manoel Nunes de Sousa. Ela e suas irmãs casaram-se na
capela do engenho de Sapopemba em curto período: em 1706 Luiza casou-se com o
português Manoel; em 1714 Apolônia casou-se com outro português, Luiz Soares
Pereira; e Helena casou-se, em 1717, com Pedro Galvez Palença, espanhol.
Provavelmente uma quarta irmã, Joana, também se casara na mesma capela de
Sapopemba, em 1705. Apenas Ana, provável quinta filha, casou-se com senhor do
engenho dos Affonsos, em 1711.14 Desses genros, apenas um não constou como senhor
de nenhum engenho. Além disso, os novos casais foram todos apadrinhados pelo senhor
de Sapopemba, maior engenho da época.
Prov.
1669 - 1745 1703 1713 1706 1693 1708 1712 1715 1700 1722 1718 1725 - 1794
sesmeiro
76 307 15 304 317 302 298 295 310 288 292 69
Inez Herdeira de João Afonso Antônia Antônio Fernandes Feliciana Paulo Pereira Bárbara João Josefa Inácio Quitéria Vitória José
Luiz Paredes de Oliveira Coelho da Valqueire (nat. Barreta de Souza Barreta Coelho Souza Galvez Barreto Antunes
Senhora Engenho (port, vi) Assunção Cand) de Sene (port, vi) de Sene Borges (cp) Palença (d.) de Sena Susano
Afonsos 724 Irajá - 8fil 728 eng Afonsos 731 eng Afonsos 746 11fil 755 Coq
699 Cand 6fil
LEGENDA
13
Essa ‘nobreza da terra’ foi o objeto de estudo de João Fragoso (2000; 2003; 2006; 2007a). Sobre a
‘elite’ de Irajá, ver Coaraci, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio,
1944.
14
Cabe lembrar que o fato dessas moças serem ‘naturais da freguesia de Irajá’ não permite uma
localização mais precisa da residência desse casal, pois à época a freguesia compreendia os atuais
bairros de Irajá e Campo Grande, Jacarepaguá, Engenho Velho, Inhaúma, Realengo, Madureira,
Anchieta, Pavuna, Penha e Piedade. Cf www.ids.org.br/files/Cronologia_III.pdf e Rheingantz, Carlos
Grandmasson. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1965..
7
15
João Affonso de Oliveira, casado em segundas núpcias com Antônia, filha de Manoel Coelho Borges,
havia recebido como meação de sua primeira esposa um engenho em Irajá que seria mais tarde
conhecido como ‘dos Affonsos’. Cf ______. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Livraria Brasiliana, 1965.. Antônio Fernandes Valqueire, noivo de Feliciana, outra filha de Manoel,
tinha apenas 15 anos de idade, e sua noiva 21, quando se casaram, pista de um casamento arranjado. Ele
mais tarde fundaria o engenho do Valqueire. Sobre o outro genro de Manoel Coelho Borges, sabemos
apenas que era português, viúvo, e que se casou na Capela do Engenho dos Affonsos. Cf Fridman,
Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999; Rheingantz, Carlos Grandmasson. Primeiras Famílias do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1965..
16
Essas conclusões foram tiradas do livro de Carlos Rheingantz (1965), a partir das informações que
podem ser disponibilizadas nos registros de casamento e batismo: local e data do nascimento e do
casamento, naturalidade e profissão dos noivos, pais e sogros.
17
Na década de 1740, um padre chamado Francisco Nunes de Souza apareceu como proprietário de ao
menos dez escravos nos registros de batismo de escravos de Irajá. Ele seria filho de Manoel Nunes de
Souza, batizado em 1693. Na década de 1750, o mesmo padre batizou dois dos filhos do capitão João
Pereira Lemos, o que demonstra sua crescente intimidade. Cf Rheingantz, Carlos Grandmasson.
Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1965.; ACARJ. Livro de
registro de batismos de livres, Freguesia de Campo Grande, p. 59-frente; ACARJ, AP 343, folhas 52-
frente, 27-verso, 80-verso, 89-verso, 107-verso, 105-frente; e Livro de Batismo de Livres de Irajá,
folhas 94-frente e 106-frente.
8
No caso das filhas de Nunes de Souza, julgamos que formaram uma geração de ‘moças
pobres de Irajá’, espalhadas pelos casamentos, sem dotes nem memórias próprias, mas
que conseguiram unir pontos inicialmente muito distantes na hierarquia social da
colônia, por meio de uma teia miúda e elástica de contatos que criaram ligações entre
famílias através de gerações.
18
Usamos aqui o termo habitus conforme cunhado por Bourdieu: “produto do senso prático como sentido
do jogo, de um jogo social e particular, historicamente definido, que se adquire desde a infância”.
Bourdieu, Pierre. Das regras às estratégias in Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
9
não se casaram com filhos de conterrâneos, não se tornariam senhores de engenho. Seus
descendentes seriam posseiros, situados ou moradores na região, e permaneceriam na
constelação dos fornecedores de cana aos engenhos.
As fontes também nos mostram que até o final do século XVIII era em Irajá que
se celebrava a maior parte dos casamentos nas freguesias rurais do município. O pico
foi justamente nos últimos anos do século XVII e primeiros do século XVIII,
coincidindo com a data e o local dos casamentos dos ‘pioneiros’ de Campo Grande.
Esferas (espaço): cidade (sede) -- Irajá (nobreza tradicional) -- local (Campo Grande)
sogro- Hierarquia
genro Social
membro da
administração
colonial
(pt) compadres
casamento
Senhor de
Engenho de
Irajá ('nobreza
sogro-
da terra')
Futuro senhor genro
de engenho
em Campo
Filha Grande (pt)
com Moça
dote Pobre de
Irajá (sem
dote)
Irajá
Sogro lavrador
português não
proprietário
(pt)
LEGENDA
Aliança
Já vimos que esses novos casais, sempre depois de seus casamentos, tiveram
mais chances que outros de receber terras e formar engenhos, seguindo o percurso dos
seus ‘patrocinadores’. Portanto, a expansão da região colonial nada teve de espontânea,
isolada ou natural. Foi a partir das escolhas desses jovens futuros senhores, futuras
sinhás e suas famílias, que se expandiram as redes verticais que sustentavam as
hierarquias sociais da colônia nos territórios de ‘fronteira’. O casal que chegava àqueles
sertões, aparentemente apenas com uma carta de sesmaria, seus filhos pequenos e
poucos cabedais, julgava poder contar, para além de seus escravos, com as diversas
heranças materiais e imateriais que seriam acionadas em momentos diversos: bênçãos,
recomendações, padrinhos, sogros, dotes, heranças, mercês. Daí a importância de tecer
ciosamente suas redes.
Por outro lado, não esqueçamos que a ‘qualidade’ dos senhores se mostrava,
também, na amplitude de sua rede clientelar e nas várias possibilidades que tinham de
teatralizar sua generosidade para com parentes, afilhados e protegidos. Assim se
hierarquizava a sociedade, se fixavam corretamente as expectativas de todos,
diminuindo os sustos e as incertezas do cotidiano.
19
Rheingantz (1965, tomo II, p. 395).
20
ACMARJ AP 343: fls. 9-frente, 13-frente, 15-frente, 20-frente, 21-verso, 32-verso, 38-frente, 48-verso,
51-frente, 59-verso, 68-frente, 69-frente, 75-frente, 76-frente, 80-frente, 81-frente, 83-frente, 84-frente,
87-verso, 89-verso, 92-frente, 93-frente, 94-verso, 96-verso, 99-verso, 102-frente, 102-verso, 104-
frente, 109-verso, 110-verso, 111-frente, 112-frente, 113-frente, 118-verso, 120-frente.
12
elites para a criação de redes clientelares e para a demonstração do seu prestígio. Além
disso, sabemos que mesmo membros da família ampliada e das escravarias dos senhores
se envolviam nessas redes e reproduziam, com algumas variações, a estrutura familiar
hierarquizada pelos compadrios.21 Esse parece ser também o perfil dos batizados em
que se envolveu o capitão João Pereira Lemos, senhor de Sapopemba, e seus próximos:
suas escravas foram madrinhas dos filhos dos escravos dos lavradores vizinhos, dentre
os quais, os de Antônio Cardoso Castel Branco.22
21
O objetivo de nosso trabalho não é a análise aprofundada do fenômeno do compadrio entre escravos.
Para uma discussão mais bem qualificada sobre esse assunto, ver Fragoso, João Luís Ribeiro. Capitão
Manuel Pimenta Sampaio, senhor do Engenho do Rio Grande, neto de conquistadores e compadre de
João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira (Rio de Janeiro, 1700 – 1760). XXIII
Simpósio Nacional da ANPUH. São Leopoldo, RS, 2007; Hameister, Martha Daisson. Para dar calor à
nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila do
Rio Grande (1738-63). PPG História, UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.
22
ACMARJ AP 343: fls. 33-frente e 39-verso.
13
1641 1629
1614 - 1674 1629
1692 1703
Antonio Maria
Manuel Maria de
Cardoso Bonsucesso
Martins Abreu Rangel
1721 1720 - 1776 Castel Branco Luz (nat. Sé)
1726 Irajá - 10 fil Ferreira (dona)
Maria Francisco João José Joaquim Luisa Luisa Francisca José de Emereciana
Teresa Pereira Pereira Pereira (ou Antunes Maria Santa Maria da
de Jesus Lemos de Lemos Lemos Maria Susano Conceição Maria Conceição
(pe) e Faria Teresa) (ten) (pe)
(cpm) 1797 Capoeiras
1799
1751
LEGENDA
Ano, Local e 1813 X esc Criança Exposta,
Número de (Número de com filiação Legados e compadrio
(sentido da Capitão Sargento- Padre Português senhor natural presumida
Filhos do escravos pela
transmissão (cp) Mor (pe) (pt) de de...
Casamento (fil) Desobriga de
do engenho de (sgm) engenho (nat.)
1813)
Sapopemba)
Antônio Cardoso Castel Branco e seus dez filhos gravitavam há muito em torno
do engenho de Sapopemba. Como Antônio, seu pai e seus filhos tinham alguns
escravos, mas não consta em nossos registros que tenham sido senhores de algum
engenho, julgamos que pudessem ter se especializado na plantação de cana para o
engenho de Sapopemba, o que explicaria a proximidade entre seus plantéis no eito e
seus consequentes compadrios cruzados. Nesse ponto, é preciso relembrar que a
estrutura de fornecimento da cana necessária para a produção de açúcar pressupunha
uma ampla rede de lavradores livres em seus partidos, ao redor do engenho.23 Antônio
23
Costa, Iraci. Notas sobre a posse de escravos nos engenhos e engenhocas fluminenses (1778). Revista
do Instituto de Estudos Brasileiros, 28. 1988; Fragoso, João Luís Ribeiro. Afogando em nomes: temas e
experiências da história econômica. Topoi: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da
UFRJ, Rio de Janeiro: 5, (41-70). 2002; Sampaio, Antonio Carlos Jucá De. Na encruzilhada do império:
14
Mas nem todos os lavradores vizinhos tinham os mesmos trunfos para aumentar
a proximidade com os senhores do engenho. Antônio Cardoso Castel Branco, lavrador,
e João Pereira Lemos, capitão e senhor, eram primos em segundo grau. Isso porque o
pai de Antônio havia se casado com uma prima pobre do pai do capitão João. Os
ascendentes comuns das duas famílias eram duas irmãs que se estabeleceram em Irajá,
onde nasceram e se casaram seus filhos25. Mais tarde, seus ramos se diferenciaram
economicamente em senhores (a família de Izabel, avó do capitão João) e lavradores
pobres (família de Andreza, mãe de Antônio), vizinhos necessários a esse mesmo
engenho.
hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (1650-1750). Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2003.
24
Pedroza, Manoela. O mundo dos fundos, ou quem eram os vizinhos dos engenhos de açúcar no Rio de
Janeiro colonial? (freguesia de Campo Grande, Rio de Janeiro, 1777-1813). Estudos Ibero-Americanos,
Porto Alegre: 35, 2, (59-83). 2009.
25
O avô do padre Luís era o capitão Gaspar Pereira de Carvalho, senhor de engenho em Pendotiba (atual
município de Niterói). Depois de casadas, duas filhas de Gaspar (Andreza de Oliveira e Izabel Pereira
de Carvalho) devem ter se estabelecido na freguesia de Irajá, onde ao menos um genro parece ter
fundado um engenho – de Sapopemba – e onde nasceram os netos de Gaspar – dentre os quais Luís. Em
1691 Luís de Lemos Pereira foi ordenado padre e, entre 1706 e 1717, nos registros de casamento da
freguesia, ele constava como proprietário da capela do engenho de Sapopemba. Por outro lado, ainda
nos últimos anos do século XVII, Eugênio Cardoso Castel Branco, português filho de capitão, se casou
em Campo Grande com Ana Ferreira. Um dos filhos desse casal, Antônio, continuava por lá em 1726,
visto seu casamento no mesmo local.
15
Oliveira, ambas filhas de Antônio Cardoso Castel Branco. Como se vê, Antônio
conseguiu se diferenciar dos outros lavradores ativando relações parentais longínquas,
mas estratégicas, para criar uma preferência matrimonial para suas filhas entre os
Pereira Lemos.
Por esses caminhos, Anna Maria de Jesus, filha de Antônio Cardoso Castel
Branco, foi meeira dos bens do marido, seu primo em terceiro grau, o capitão e senhor
do engenho de Sapopemba, João Pereira Lemos.26 Seu inventário, de 1794, nos dá uma
visão global do patrimônio do casal. A fazenda de Sapopemba, com 2.312 braças de
testada, àquela época tinha 130 escravos, mais de duzentas cabeças de gado, casa de
vivenda, capela, cavalariças, senzalas, engenho e dezenas de partidos de cana, tocados
por membros da família, por lavradores livres ou pelos próprios escravos. Já a fazenda
das Capoeiras (comprada pelo casal em Campo Grande) possuía 3.690 braças de testada
com seus respectivos sertoins, 112 escravos, engenho, capela, casa de farinha, casa de
fazer anil, gado em menor quantidade e muitos partidos de cana. No total, os bens de
Anna Maria de Jesus totalizavam 64.590.550 réis (19.377,16 libras).27
Mas não basta sabermos que seu casamento foi economicamente vantajoso
apenas para si própria. Pelos registros paroquiais, constatamos que os outros irmãos de
Anna Maria de Jesus tocaram suas vidas em terras contíguas ao engenho de Sapopemba
ou do novo engenho das Capoeiras, plantando cana. Mesmo tão diferentes
economicamente, esses lavradores alçados a parentes tiveram ao menos seus sítios e
partidos de cana em Sapopemba e Capoeiras assegurados. Afinal, mesmo pobres, eram
da família. Assim, na sombra da pujança do capitão João Pereira Lemos, senhor do
engenho de Sapopemba, parece terem vivido quase todos os irmãos, cunhados e
sobrinhos pobres de sua segunda esposa, Anna Maria de Jesus. Isso explicaria em parte
a existência de inúmeros sítios listados em seu inventário. Esses familiares, se não
tiveram a sorte de poder herdar o patrimônio de Sapopemba, como a irmã felizarda,
26
As Ordenações Filipinas, vigentes no império português a partir de 1603, sancionavam o costume de
que os casamentos fossem contratos de meação, ou seja, que o casal partilhasse todos os seus bens. Cf.
Ordenações Filipinas, 1870 (livro 4, título XCIV: Como o marido ou mulher casados sucedem um ao
outro; e título XLVI: Como o marido e mulher são meeiros em seus bens, p. 832).
27
AN. Fundo Inventários. Nome: Anna Maria de Jesus. Inventariante: João Pereira Lemos. Ano 1795,
notação 10, caixa 3.636. Como não temos informações para a conversão de valores do real para a libra
esterlina entre os anos de 1770 e 1808, usamos neste caso a cotação existente mais próxima, relativa ao
ano de 1808 (um real = 72 pence inglês).
16
tiveram pequenos outros consolos, como dotes, legados e esperanças de que suas filhas
se casassem com os primos ricos.28
Esses ‘casamentos desiguais’ não traziam conforto material apenas para a ‘moça
pobre’ felizarda. Toda sua família de origem se beneficiava em algum grau por fazer
parte, mesmo de maneira subordinada, de uma rede de parentela senhorial. Benefício
que pode ser lido, por exemplo, na estabilidade adquirida pelos segmentos de sitiantes
28
Aliás, como fizeram a própria Anna Maria de Jesus, em 1751, e Emerenciana, filha do irmão dela, que
se casaria com o primo José Joaquim, filho de Anna Maria de Jesus, herdeiro e senhor da fazenda
Tingui, em Campo Grande, em 1799 (essa é a data de batismo do primeiro filho do casal, que não deve
se distanciar muito de seu casamento). Cf. ACMARJ AP 287: fls. 60 e 60-verso.
29
Fragoso, João Luís Ribeiro. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da
terra do Rio de Janeiro (século XVII). Algumas notas de pesquisa. Tempo - Revista do Departamento
de História da UFF, Niterói: 8, 15, (11-35). 2003.
30
______. Afogando em nomes: temas e experiências da história econômica. Topoi: Revista do Programa
de Pós-Graduação em História da UFRJ, Rio de Janeiro: 5, (41-70). 2002.
31
Usamos a noção de ‘rede social densa’ como um similar menos abrangente do conceito de ‘rede social
total’ proposto por Barnes, J. A. Networks and Political Process. In: Mitchell, J. C. (Ed.). Social
Networks in urban situations. Manchester: Manchester University Press, 1969.
17
nas franjas das terras dos engenhos. Portanto, esses casamentos acrescentaram o
elemento de ascensão social, mobilidade espacial e mesmo estabilidade da estrutura
agrária, concentradora e excludente, na medida em que uniram na mesma ‘casa’ e nas
mesmas terras, via parentela por aliança, grupos sociais inicialmente muito díspares,
como lavradores e senhores de engenho. Assim, com a meação dos bens de Sapopemba
entre o rico capitão e sua prima pobre, seus novos parentes por afinidade puderam
garantir, entre outros benefícios, uma importante fonte de recursos (quem sabe o mais
precioso, no caso de lavradores): o acesso à terra de trabalho.
Castro Faria, para Campos dos Goytacazes) parecem concordar que a legislação
portuguesa que pressupunha a partilha igualitária das terras era frequentemente
desrespeitada. Segundo Carlos Bacellar, o conflito entre uma legislação ultramarina,
criada à revelia da sociedade colonial, e a realidade cotidiana de um sistema econômico
monocultor, em que o vultoso capital investido nos engenhos de açúcar não era
divisível, criou práticas diversas da lei, adaptadas às necessidades do momento e
virtualmente desconhecidas pelos historiadores.33 Ele defende que, embora a legislação
guiasse para a partilha igualitária dos bens entre todos os filhos, nas regiões açucareiras
paulistas a prática das famílias da elite seguia em direção contrária, lançando mão de
dotes, de adiantamentos de heranças e do uso da terça testamentária para inviabilizar o
igualitarismo. Para Sheila Faria, a explicação de tal procedimento, ao menos para áreas
açucareiras fluminenses no século XIX, era que a sobrevivência material e a
continuação do padrão de vida das famílias dependiam da manutenção do conjunto do
engenho. Mantendo-se os bens sob o controle de um, todos poderiam usufruir deles.34
Na cidade do Rio de Janeiro, segundo João Fragoso, para burlar a lei de
heranças, que supostamente fragmentaria os bens da família, os pais transferiam em
vida seus bens entre cunhados e irmãos selecionados, ou recorriam aos tabelionatos para
vender o patrimônio em cartório para um parente cuidadosamente escolhido.35 Silvia
Brugger também relativizou as práticas igualitárias de herança vigentes (precisamente
em Minas Gerais), ressaltando a necessidade de se pensar a transmissão de bens em
outros momentos que não a sucessão post mortem.36 Carla Almeida, estudando as
estratégias da elite mineira setecentista, mostrou que essas famílias também tinham por
hábito vender todos os bens do casal para um membro escolhido como sucessor, como
forma de impedir a dispersão na partilha.37
No Brasil, a eficiência do dote como atrativo de bons cônjuges era proporcional
ao seu valor, mas sua composição foi variável, dentro da mesma família, dependendo da
33
Bacellar, Carlos De Almeida Prado. Os senhores da terra. (série Campiniana). Campinas: CMU, 1997.
34
Faria, Sheila Siqueira De Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial
(Sudeste, século XVIII). PPGHIST, UFF, Niterói, 1994.
35
Fragoso, João Luís Ribeiro. Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor do Engenho do Rio Grande, neto
de conquistadores e compadre de João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira (Rio
de Janeiro, 1700 – 1760). XXIII Simpósio Nacional da ANPUH. São Leopoldo, RS, 2007.
36
Brugger, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei, séculos XVIII e
XIX). São Paulo: Annablume, 2007.
37
Almeida, Carla Maria Carvalho. Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira
Leite e seus aparentados. In: Fragoso, J. L. R., Almeida, C. M. C., et al (Ed.). Conquistadores e
negociantes: história das elites no Antigo Regime nos Trópicos (América Lusa, séculos XVI a XVIII).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (121-194), 2007.
19
vontade paterna ou do momento do ciclo de vida familiar. Sem que houvesse regras que
fixassem seu montante, os pais repassavam aos filhos noivos o que queriam ou o quanto
podiam, mostrando que os filhos já eram tratados desigualmente. A importância
decrescente do dote entre meados do século XVIII e meados do século XIX já foi
destacada por alguns autores.38 Segundo João Fragoso, as famílias senhoriais cariocas
preferiram restringir suas alianças matrimoniais e reforçar elos com algumas poucas
famílias amigas através do tempo, reproduzindo casamentos entre aparentados.39
38
Bacellar, Carlos De Almeida Prado. Os senhores da terra. (série Campiniana). Campinas: CMU, 1997;
Kuznesof, Elizabeth Anne. Household economy and urban developement: São Paulo, 1765 to 1836.
(série Dellplain Latin American Studies). Boulder: Westview Press, 1986; Nazzari, Muriel. Women and
property in the transition to capitalism: decline of the dowry in São Paulo, Brazil (1640-1870).
American Historical Association. Chicago, 1984; Samara, Eni De Mesquita. O dote na sociedade
paulista do século XIX: legislação e evidências. Anais do Museu Paulista: 30, (41-53). 1980.
39
Fragoso, João Luís Ribeiro. Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor do Engenho do Rio Grande, neto
de conquistadores e compadre de João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira (Rio
de Janeiro, 1700 – 1760). XXIII Simpósio Nacional da ANPUH. São Leopoldo, RS, 2007.
40
Segundo Jorge Luiz Silveira, situações eram pequenas propriedades localizadas dentro de terras alheias.
Hebe Mattos pondera que, em Capivari, a propriedade de situação (isto é, ter lavouras ou benfeitorias
em terras alheias ou devolutas) era legalmente reconhecida pela organização judiciária local, não só
para efeito de herança, como em transações comerciais registradas em cartórios locais à revelia do
proprietário legal. Cf. Mattos, Hebe Maria. Ao Sul da História: lavradores pobres na crise do
escravismo. São Paulo: Brasiliense, 1987; Silveira, Jorge Luiz Rocha. Transformações na estrutura
fundiária do município de Nova Iguaçu durante a crise do escravismo fluminense (1850-1890). PPG
História, Uff, Niterói, 1998.
41
AN. Fundo: Inventários. Falecida: Anna Maria de Jesus. Inventariante: João Pereira Lemos. Ano 1795,
notação 10, caixa 3.636; Falecido: Antônio de Oliveira Galindo. Ano 1871, notação 28, caixa 3.644;
Falecido: José Antunes Pereira Susano. Ano 1876, notação 4.458, caixa 3.610 e notação 35, caixa
3.610.
20
dissessem o contrário. Devemos lembrar aqui que lidamos com uma sociedade em que
parecia natural que os indivíduos não fossem iguais e que não tivessem os mesmos
direitos. Todos sabiam que possuíam qualidades, status e posições sociais muito
distintas a zelar.42
Se a preservação do patrimônio e a sucessão única foi uma constante, dois
comportamentos fizeram as estratégias patri-matrimoniais das famílias senhoriais
diferentes das congêneres européias. Primeiro, no que tange ao papel do dote e das
filhas para selar alianças verticais com grupos mais abastados. De fato, as famílias
senhoriais de Campo Grande se relacionariam com famílias mais nobres, de fora da
freguesia, apenas esporadicamente. As alianças matrimoniais que miravam para fora
foram pensadas para poucos ou para um único membro da fratria, que era ‘excluído’ do
patrimônio da família de origem, mudando de residência. Apenas em poucos casos o
matrimônio de uma filha local com um noivo de fora trazia rapazes mais nobres para se
estabelecer em terras dos sogros.43 De resto, em Campo Grande todos os outros filhos e
filhas, mesmo de pais sesmeiros ou senhores, teriam como horizonte casar com
congêneres locais, sobretudo com primas e vizinhas mais pobres.
Percebemos ainda que nos arranjos dos casamentos dos filhos definia a relação
entre duas famílias e seus respectivos patrimônios. Além disso, casamentos fizeram
circular mulheres e terras para além das fronteiras das famílias originais, mas se
mantiveram majoritariamente circunscritos às fronteiras da freguesia. Esse sistema de
alianças matrimoniais num contexto local restrito, eivado por direitos de propriedade
senhoriais, com espaços ainda ociosos e famílias de poucos recursos, não se ateve
exclusivamente à barganha financeira, à exclusão feminina ou à cessão de terras como
transação isolada. Parece ter prevalecido a lógica do equilíbrio em longo prazo, ou seja,
de que numa ponte entre famílias senhoriais circulariam mulheres por várias gerações,
mesmo sem dotes expressivos, que se compensariam no episódio seguinte,
reequilibrando a balança.
Também podemos notar que as famílias senhoriais tiveram de encontrar saídas
para reproduzir endogenamente tanto as hierarquias sociais quanto a legitimidade para
42
Hespanha, António Manuel. Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro.
Direito comum e direito colonial, AMH AR. 2005; ______. A mobilidade social na sociedade de
Antigo Regime. Tempo: 11, 21, (121-143). 2006; Magalhães, Joaquim Romero. A persistência
senhorial. In: Mattoso, J. D. (Ed.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, v.III, 2006.
43
Fragoso, João Luís Ribeiro. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da
terra do Rio de Janeiro (século XVII). Algumas notas de pesquisa. Tempo - Revista do Departamento
de História da UFF, Niterói: 8, 15, (11-35). 2003.
21
tanta desigualdade. Além de bons casamentos, também tiveram de produzir seus ‘bons
partidos’, bons chefes e bons padres. Na impossibilidade de importá-los, os oficiais e
conselheiros de Campo Grande eram produção própria da freguesia: filhos e netos dos
primeiros senhores, cujo título de ‘capitão de ordenanças’ era a prova da ascensão
econômica e da consolidação do status local de suas famílias, pois “davam a categoria
de cavaleiros aos que tais postos tivessem, mesmo que o não fossem”. 44
As câmaras
vão também ser chamadas a escolher o capitão-mor, o sargento-mor, os capitães e
alferes entre os que residem nos ‘concelhos’. Nada destoante do que previam as
Ordenações de 1603.
Como primeiros exemplos, o sargento-mor José Cardoso dos Santos, herdeiro da
fazenda de Cabuçu, desde ao menos 1797;45 o capitão Antônio Antunes, senhor de
Inhoaíba, em 1777;46 o capitão José Antunes Susano, senhor de Capoeiras e Inhoaíba,
em 1797; e seu irmão alferes, em 1818. Também não é coincidência que as famílias
senhoriais tenham seus padres na primeira geração: Luís de Lemos Pereira, senhor de
Sapopemba, em 1706, Miguel Antunes Susano (filho do sesmeiro e proprietário de
escravos em 1758),47 Francisco Pereira Lemos (filho de João Pereira Lemos e também
senhor de engenho, em 1797),48 e Martino Fernandes (que recebeu sesmaria em 1773).49
Mais tarde, numa segunda geração, haveria ainda Belisário Cardoso dos Santos e
Antônio Garcia de Oliveira Durão (herdeiro dos Garcia do Amaral). 50 Todos padres,
filhos de famílias senhoriais, moradores da freguesia, senhores de engenho e donos de
escravos, que ajudavam a construir o status e a riqueza da família, diante de seus
‘rebanhos’, sem levar muito em conta as restrições do comportamento clerical.
Há que se ressaltar as potencialidades tangíveis desses cargos e patentes. O fato
das mesmas famílias senhoriais concentrarem em poucos filhos tantas insígnias de
poder – sucessores, senhores de terras, donos de escravos, capitães de ordenanças,
líderes espirituais – sobrepunha vínculos verticais orientados para uma mesma pessoa,
44
Magalhães, Joaquim Romero. A persistência senhorial. In: Mattoso, J. D. (Ed.). História de Portugal.
Lisboa: Estampa, v.III, 2006.
45
Rheingantz (1965).
46
Fróes, José Nazareth De Souza; Gelabert, Odaléa Ranauro Enseñat. Rumo ao Campo Grande por trilhas
e caminhos (1565-1965). Rio de Janeiro, 2004; Várzea, Affonso. Engenhos dentre Guanabara-Sepetiba.
Brasil Açucareiro. 1945.
47
Para ver os batizados dos escravos de Miguel Antunes Susano, ACMARJ AP 285: fls. 121-verso e 122-
frente.
48
Fróes, José Nazareth De Souza; Gelabert, Odaléa Ranauro Enseñat. Rumo ao Campo Grande por trilhas
e caminhos (1565-1965). Rio de Janeiro, 2004.
49
AGCRJ 68-3-75, 4º volume (Escrituras de terras que estão dentro do atual Distrito Federal, na praça
limítrofe com o estado do Rio de Janeiro ou nas proximidades).
50
AN. Fundo Processos SDJ Diversos. Ano 1823, número 510, caixa 1.145.
22
LEGENDA
1720 - 1773
53
Cecília Marcos Antonio Ana João Angélica Joaquim José Teixeira Rita Maria Manoel Maria Joaquim Ana
Rosa de Cardoso Carneiro da Maria de Vieira Inácia Cardoso dos da Fonseca de Paiva Cardoso Tereza Cardoso Maria da
Oliveira (d.) dos Santos Silva Moreira Paiva Borges de Paiva Santos (@) (ten) (des) dos Santos de Jesus dos Santos Conceição
(sgm)
1796 Juari 1797
Os Cardoso dos Santos, por sua vez, inverteram toda essa lógica. Em 1748
compraram uma sesmaria inteira “e mais 500 braças de terras”, estabeleceram-se em
Campo Grande com vasto cabedal e tinham o maior plantel da freguesia. Mantinham-se
vários casais sob o mesmo teto e controlava-se tudo – família, terras e escravos – com
mão de ferro. Foram estritos na defesa do imenso patrimônio, envolvendo-se em vários
conflitos com vizinhos, usando de violência em alguns deles. Foram estritos também na
prescrição de casamentos estratégicos, sobretudo alianças com famílias de fora, mais
nobres, e deserdaram os descontentes. Assim, não construíram vínculos com outras
famílias senhoriais locais, via casamentos, nem com famílias de lavradores, via
compadrios de crianças livres, e muito menos criaram condições para que seus escravos
se relacionassem com os plantéis vizinhos.
51
Uma análise mais aprofundada da trajetória de membros da família Antunes Susano encontra-se em
minha tese de doutorado. Cf Pedroza, Manoela. Engenhocas da Moral: uma leitura sobre a dinâmica
agrária tradicional. PPG Ciências Sociais, UNICAMP, Campinas, 2008.
24
52
Para maiores detalhes ver Augustins, Georges. Esquisse d'une comparaison des systèmes de
perpétuation des groupes domestiques dans les sociétés paysannes européennes. Archives Européennes
de Sociologie: XXIII, 1, (39-72). 1982; Barthelemy, Tiphaine. Les modes de transmission du
patrimoine: synthèse des travaux effectués depuis quinze ans par les ethnologues de la France. Études
Rurales: 110-111-112, La terre: Succession et héritage, (195-212). 1988; Bourdieu, Pierre. Célibat et
condition paysanne. Études Rurales, 5-6, (32-135). 1962.
25
53
Em 1997, historiadores franceses e quebequenses se reuniram para discutir precisamente esse
problema, na tentativa de traçar continuidades e rupturas entre a França e sua colônia americana. Seu
principal desafio era entender os efeitos da exclusão da herança e o destino dos excluídos nas famílias
camponesas. Como pontos em comum, os pesquisadores remarcaram a raridade da exclusão total de um
filho baseada somente na vontade testamentária do pai e a disseminação da exclusão das filhas pela
concessão de um dote de casamento. Os trabalhos foram reunidos em um livro, Cf. Bouchard, Gérard,
Dickinson, John A, et al. Les exclus de la terre en France et au Québec XVIIe-XXe siècles. La
reproduction familiale dans la différence. Sillery: Septentrion, 1998.
54
Aqui, usamos a mesma definição de ‘excluído da herança’ de Sylvie Dépatie e John Dickinson. Ver
Dépatie, Sylvie. La transmission du patrimoine au Canada (XVIIe -XVIIIe siècle): qui sont les
défavorisés? RHAF: Revue d'Histoire de l'Amérique Française: 54, 4, (558-570). 2001; Dickinson,
John. Destins familiaux dans de gouvernement de Montréal sous le régime français: les Brunet. In:
Bouchard, G., Dickinson, J., et al (Ed.). Les exclus de la terre en France et au Québec XVIIe-XXe
siècles. La reproduction familiale dans la différence. Sillery: Septentrion, 1998.
26
Mas, nos anos seguintes, Mateus não apareceu nos relatórios como senhor de
engenho, como seus irmãos, o que indica o fato de ter sido um ‘excluído senhorial’.
Mateus e Mariana se estabeleceram em terras da Fazenda das Capoeiras, propriedade da
‘casa’ dos Pereira Lemos. Nesse sítio tiveram dois filhos, Luiz e Maria Thereza, e
depois desapareceram completamente dos nossos registros, o que indica o seu destino
de lavradores pobres. Mas, mesmo pobres, eles e seus filhos faziam parte de duas
importantes famílias senhoriais locais, e tiveram direito de estabelecer sítios nas terras
desses parentes.
A partir de 1798. o senhor das Capoeiras passara a ser um primo do casal, este
sim capitão e senhor de engenho: José Antunes Susano. Seguramente a família de
Mateus Antunes Susano assistiu de perto as peripécias desse primo capitão, sua viuvez,
o crescimento de suas crianças, e festejaram seu segundo casamento com Maria Tereza,
sua filha e também prima do capitão. Infelizmente, a moça morreu logo e não tiveram
filhos.
27
1706 Sapop
1726 Irajá
Anna Joaquim Manoel Francisca Matheus José Manoel Maria Teresa Evaristo José Rodrigues
Maria Vieira Vieira de Maria da Antunes Antunes Antunes de Jesus da Silva Susano
Trindade Aguiar Aguiar Conceição Susano Susano Susano Susano (dona) Álvares (Amorim)
(dona) (credor) (Trabalha Eng (Trabalha
1820 - primo 2o Lamarão depois em Inhoaíba)
na Fazenda
Itacuruçá)
Maria Luís Matheus
Vieira de Antunes Rodrigues
Aguiar Susano Neto Susano
(Susano) 1842 Itaguaí
1876
Benedita
LEGENDA
Já Luiz, o outro filho de Matheus, casou-se com uma prima pobre, Francisca, na
capela da Fazenda das Capoeiras, em 1797. Pouco antes Francisca recebera ajuda em
dinheiro da tia, Ana Maria de Jesus (senhora do Engenho de Sapopemba), para seu dote.
O casal também se estabeleceria dentro da imensa fazenda das Capoeiras, vizinho aos
pais de Luiz55. Luiz Antunes Susano chegou a ser tenente, mas não tinha terras, apenas
o direito a um pequeno sítio, de 49 braças, dentro da fazenda do primo. Portanto, os
seus filhos dependeriam desses contatos para terem acesso à terra de trabalho, se
quisessem se estabelecer no local. Em nossa opinião, não por outro motivo o tenente
Luiz deu o seu filho mais velho para ser batizado pelo capitão José Antunes Susano,
com o mesmo nome dele. Esse filho sempre trabalhou no engenho de Inhoaíba, como
55
Rheingantz, Carlos Grandmasson. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria
Brasiliana, 1965.
28
1706 Sapop
1726 Irajá
Ana Joaquim Manoel Francisca Mateus Antunes José Luiz Antunes Manoel Maria Tereza Evaristo José Rodrigues
Maria Vieira Vieira de Maria da Susano (Antes Antunes Susano Antunes de Jesus da Silva Susano
Trindade Aguiar Aguiar Conceição Eng Lamarão Susano (Filho) Susano (Susano) Alvares (Amorim)
(d.) (credor) depois adm Faz (Trab
1820 - primo 2o Itacuruçá) Inhoaíba)
1876
134
Benedita
LEGENDA
Declarante Confrontante
nos compadrio Credor-Devedor Deixou Declarante Vizinhos, senhor
RPT inventário nos Confrontantes de
RPT nos engenho
RPT
notícia56.
No fim da vida desses primos, tenente Luiz e capitão José, quase como um
coroamento por tanta proximidade e fidelidade, o capitão José escolheu como terceira
esposa a segunda filha de Luiz, Francisca como a mãe, com a qual teve um filho.
Portanto, ao morrer o capitão José Antunes Susano, em 1827, era sua viúva e
inventariante Francisca, filha do tenente Luiz. Além de ele ter dois outros filhos como
administradores de engenhos do falecido, era ainda tutor do neto e pai da viúva.
56
AN. Fundo Inventários. Falecido: José Antunes Susano. Inventariante: Francisca Maria da Conceição.
Notação 39, caixa 3610.
29
57
Dotes e contrato de arras são tipos de contratos pré-nupciais, diferentes da carta de ametade, o regime
mais comum de casamento com comunhão de bens. No texto das Ordenações Filipinas consta que
“poderá cada hum em o contracto dotal prometter e dar à sua mulher a quantia ou quantidade certa, que
quizer, ou certos bens, assí como de raiz, ou certa cousa de sua fazenda, contanto que não passe o tal
promettimento, ou doação de arras, da terça parte do que a mulher trouxer em seu dote. (..)” Cf.
Ordenações Filipinas, livro 4, título XLVII: Das arras e camera cerrada (fl. 835-837). Para mais
detalhes ver Melo, Hildete Pereira; Marques, Teresa Cristina Novaes. A partilha da riqueza na ordem
patriarcal. Revista de Economia Contemporânea: 5, 2. 2001. (pg. 4, nota 15). Para uma análise mais
geral do sistema matrimonial no Brasil, ver Silva, Maria Beatriz Nizza Da. Sistema de casamento no
Brasil colonial. (série Coroa vermelha (estudos brasileiros)). São Paulo: EdUSP, v.06, 1984. (sobretudo
capítulo VI: o regime de bens). Para uma análise das estratégias matrimoniais da ‘nobreza da terra’
carioca ver Fragoso, João Luís Ribeiro. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira
elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi: Revista do Programa de Pós-Graduação
em História da UFRJ: 1, (45-122). 2000; ______. A nobreza vive em bandos: a economia política das
melhores famílias da terra do Rio de Janeiro (século XVII). Algumas notas de pesquisa. Tempo -
Revista do Departamento de História da UFF, Niterói: 8, 15, (11-35). 2003. Para uma avaliação do uso
do dote na freguesia de Campo Grande, e de suas diferenças para outros estudos de caso, ver Pedroza,
Manoela. Engenhocas da Moral: uma leitura sobre a dinâmica agrária tradicional. PPG Ciências
Sociais, UNICAMP, Campinas, 2008.
30
Rodrigues e o capitão José Antunes Susano) e outro genro, além de ter família na
propriedade vizinha, era também credor do casal de sogros58.
Podemos concluir que Luiz Antunes Susano e sua mulher, primos entre si, eram
claramente lavradores pobres, o que afetava diretamente as possibilidades de ascensão
sócio-econômica de sua descendência masculina, que devia, por princípio, permanecer e
perpetuar o (parco) patrimônio da família de origem. Mesmo assim, eles se
aproveitaram de relações vicinais antigas e bem consolidadas, do status de suas famílias
extensas e de pontes parentais que lhes permitissem catapultar as filhas por horizontes
mais amplos que os de seus pais e irmãos.
Nossa hipótese é que, para as famílias de lavradores que conseguiram casar seus
filhos com os filhos de famílias senhoriais, isso pode ter aberto a possibilidade de sua
colocação nos sítios e partidos no interior das fazendas, ou garantido a permanência
onde já estavam, caso seus sítios precedessem a chegada dos senhores-sesmeiros. Isso
porque esses casamentos, criando vínculos entre as duas famílias, possibilitavam a
inserção de toda a família do lavrador numa nova rede, mais poderosa, mesmo que
numa posição claramente subordinada.
A trajetória de Mateus Antunes Susano e sua descendência, sitiantes no Rio da
Prata do Pau Picado, nos remete à desigualdade econômica dos ‘excluídos senhoriais’,
atenuada, ou mascarada, pela proximidade com seus parentes ricos. Como vimos,
Mateus, excluído dos Antunes Susano, havia se estabelecido em terras do capitão João
Pereira Lemos graças ao casamento com a cunhada daquele. Seus filhos, tenente Luiz e
Maria Tereza, dependeriam das benesses de outro primo capitão, José Antunes Susano,
para conseguirem terra, trabalho e bons casamentos. O tenente Luiz conseguiu se
relacionar mais proximamente com o primo capitão, beneficiando a si e aos filhos com
essa proximidade. Como se percebe, a desigualdade se reproduzia de uma geração para
a outra, através da herança preferencial, mas ela também era instrumentalizada pelos
próprios excluídos.
Como regra geral, todos os sitiantes tentavam casar seus filhos com vizinhos,
espalhando as filhas pobres pelos arredores ou recebendo noras também pobres em seus
58
A viúva Francisca Maria da Conceição (mãe) declarou, no inventário do marido, que seu casal possuía
dívidas ativas para com Joaquim Vieira de Aguiar. Esse Joaquim era irmão de Manoel Vieira de
Aguiar, que se casaria com a filha de Francisca em 1842. As duas famílias—Antunes Susano e Vieira
de Aguiar—foram confrontantes reconhecidos no registro paroquial de terras, em 1854. Cf. Cf. AN.
Fundo Inventários. Nome: Luiz Antunes Susano. Ano 1835. Notação 5261, caixa 4124; AN. Fundo
Inventários. Falecido: José Antunes Susano. Inventariante: Francisca Maria da Conceição (filha).
Notação 39, caixa 3610; e AGCRJ. 68-3-75, 4º volume.
31
pequenos sítios. Mas os sitiantes excluídos senhoriais tinham um trunfo para suas
estratégias: o pertencimento à parentela senhorial.
Os excluídos senhoriais eram mais do que apenas filhos excluídos da
propriedade da terra: eram pontes entre o mundo dos senhores e dos lavradores, além de
corporificarem práticas culturais e morais e uma hierarquia de acesso aos recursos
naturais locais únicos. Eram o resultado da mediação entre desigualdade econômica,
desigualdade de direitos sobre as terras, de uma moral familiar particular e das diversas
possibilidades de ascensão ou queda de status social, naquele contexto59.
Os sítios
59
Para uma análise da ‘mobilidade social’ no Antigo Regime, ver Hespanha, António Manuel. A
mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. Tempo: 11, 21, (121-143). 2006; Levi, Giovanni.
Carrières d'artisans et marché du travail à Turin (XVIII-XIX siècles). Annales ESC: ano 45, 6, (1351-
1402). 1990.
32
60
Para uma melhor discussão sobre o conceito de ‘casa’ ver Monteiro, Nuno Gonçalo. Casa e Linhagem:
o vocabulário aristocrático em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Penélope, Lisboa, 12, (43-63). 1993;
______. O 'Ethos' nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário
social. Almanack Braziliense, 2, (4-20). 2005.
61
Sobre o processo histórico de construção da propriedade privada no mundo moderno, ver Congost,
Rosa. Tierras, leyes, historia: estudios sobre "la gran obra de la propriedad". (série Crítica del mundo
moderno). Barcelona: Crítica, 2007. Para o caso brasileiro ver Varela, Laura Beck. Das sesmarias à
propriedade moderna: um estudo de história do direito brasileiro. (série Biblioteca de teses). Rio de
Janeiro: Renovar, 2005..
33
casados. Portanto, seu direito ao sítio costumava ser ratificado nos rituais de morte,
disfarçado de doação, sob o verniz da generosidade senhorial.
Devemos deixar claro que, no caso dos sítios, não podemos falar em pequenas
propriedades herdadas em torno (isto é, fora) de uma área determinada, como uma
fazenda. Tratava-se de sítios não titulados, não de propriedades formais, que passavam
de pai para filho não como posses autônomas (que se tornavam propriedade, pela lei 62),
e sim como direito que emana do vínculo com uma família senhorial, legitimados pela
moral local que, nos testamentos, apareciam maquiados como legados, favores ou
benesses concedidas pelo senhor das terras, que era quase sempre um compadre ou
aparentado.
Mas os sítios eram encarados localmente como herança familiar aos seus
membros menos sortudos. Por isso, no momento dos registros paroquiais de terras, em
1854, os sitiantes declararam direitos, plenamente legitimados pela ‘economia moral’63
local, e não propriedades, nem posses, segundo o código jurídico formal. Nossa
hipótese é que os sítios faziam parte de um mesmo pacote de direitos de propriedade—
sítios-engenho-plantações-matas-rios—adquiridos no momento em que uma sesmaria
territorialmente imprecisa foi concedida a uma família senhorial. Esse conjunto de
recursos era acessível a outras famílias, desde que pertencentes à mesma rede de
parentela senhorial, e segundo uma hierarquia de direitos de propriedade e de uso que
marcava a desigualdade sócio-econômica entre seus membros.
Importante lembrar que esses sítios só conseguiram se estabelecer ou se manter
em terras sob jurisdição alheia, na condição mais favorável do que a de meros
agregados, não porque tivessem títulos, mas porque eram respeitados e reconhecidos
pela comunidade do seu entorno. Ou seja, esses sitiantes eram pobres mas estavam
perfeitamente inseridos na dinâmica socioeconômica local, e faziam parte dos circuitos
parentais e patrimoniais mais amplos, sobretudo via casamentos e compadrios.
62
Sobre a transformação da posse em propriedade ver estudo de Márcia Motta in Lara, Silvia Hunold e
Mendonça, Joseli Maria Nunes (Orgs). Direitos e justiça no Brasil: ensaios de história social.
Campinas: UNICAMP, 2006.
63
Chamaremos esse código local de 'economia moral' no sentido original empregado por E. P. Thompson,
já que orientava as ações de todo o corpo social e submetia os interesses puramente econômicos e
oportunidades individuais no curto prazo aos interesses da ‘casa’, às soluções de compromisso, ao
equilíbrio entre desiguais, a salvaguardar posições, exigências sociais e compromissos selados (Cf.
Thompson, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.). Aliás, algo comum na dinâmica de sociedades não capitalistas
(Cf. Polanyi, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980.).
Para uma melhor discussão dessa ‘economia moral’ local, ver Pedroza, Manoela. Terres en indivis,
économie morale et réciprocités inégales au Brésil du XIXe siècle (paroise de Campo Grande, Rio de
Janeiro). Histoire & Sociétés Rurales, Caen: 33, (81-116). 2010.
34
Conclusão
estabelecer sítios do interior dos domínios senhoriais. Essa dinâmica foi ativada pelas
escolhas dos sujeitos envolvidos, movidas por objetivos individuais ou familiares que
acabaram por tecer uma rede de relações sociais bastante complexa.
Não desconsideramos a reprodução da desigualdade socioeconômica, das
hierarquias sociais costumeiras e de tantos outros mecanismos de uma sociedade
excludente. Constatamos que até meados do século XIX, a dinâmica local de Campo
Grande conseguiu reproduzir endogenamente as desigualdades e hierarquias sociais
através de mecanismos como a transmissão desigual de bens entre herdeiros; o
monopólio das terras, crédito e fábricas por poucas famílias; a concentração de patentes
e do poder político e espiritual local em poucos indivíduos; o arranjo de casamentos
desiguais; a colocação dos excluídos em sítios; e a sobreposição de vínculos de
subordinação dos mais pobres – crédito, trabalho, compadrio, vizinhança e batalhões.
Mas também vimos que, por linhas tortas e imprevistas, algumas práticas e leis
de uma sociedade estamental e excludente (como a endogamia, os casamentos
desiguais, a concessão de sítios e a meação entre casais) se traduziram em terra,
trabalho, casamento e alguma ascensão social para alguns lavradores. Em outras
palavras, foram toscamente distribuídos recursos – terra e status – que seriam, a priori,
monopólio das famílias senhoriais. As ações microscópicas dos indivíduos e grupos
sociais em constante movimento colocaram furos, ou abriram brechas, na fortaleza
estamental da imobilidade social do ‘Antigo Regime nos Trópicos’.
O elemento que gostaríamos de ressaltar é que, ao menos até aquela época, essa
subordinação não parecia ser devida apenas ao fato de ‘morarem’ em ‘propriedade’ do
senhor, ou seja, de não serem proprietários autônomos de seus terrenos. Num momento
em que a propriedade privada da terra não estava dada nem nos códigos legais e nem na
cultura senhorial, a subordinação política e econômica do que poderia ser chamado de
“campesinato” no Brasil parecia se construir por outros meios que não o monopólio da
propriedade da terra.
No campo da reprodução social, vimos que a parentela senhorial, extremamente
diferenciada social e economicamente, parecia concordar em ter direitos diversos sobre
o patrimônio. Além disso, mesmo inseridas na cultura senhorial da época, as famílias
senhoriais de Campo Grande puderam agir com outros recursos para atenuar as
dificuldades vividas por seus setores excluídos da herança. Essa dinâmica própria teve
de lidar com os termos específicos da negociação local, no caso, com a existência de
uma ampla camada de sitiantes ligados tanto ao fornecimento de cana aos engenhos
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Apresentação de José de Souza Martins in Moura, Margarida Maria. Os herdeiros da terra: parentesco e
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