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Sistemas de transmissão no município do Rio de Janeiro

In: Fragoso, João e Sampaio, Antônio Carlos Jucá (orgs).


Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar
atlântico luso (séculos XVI - XVIII). Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.
(pp. 165-200)

Manoela Pedroza
2

Introdução

A maioria dos moradores do Rio de Janeiro até o final do século XIX, ricos ou
pobres, estabeleceram-se em algum lugar, alimentaram suas famílias com o que
conseguiram plantar ou vender, quando possível compraram escravos e buscaram novas
terras e, provavelmente, quiseram legar aos filhos aquilo que conquistaram ou
herdaram. Portanto, todos tiveram de tomar decisões quanto ao patrimônio material e
imaterial que conseguiram amealhar. Nossa questão de fundo neste capítulo é conhecer
um pouco das estratégias de reprodução social dessas famílias.

Figura 1 – Engenho de Sapopemba e demais nos sertões cariocas do século XIX


Fonte: Fridman.Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio
de Janeiro. 1999)

Aqui, buscaremos discernir as escolhas estratégicas que deviam ser realizadas


nos momentos-chave em que se discutia o destino do patrimônio familiar: casamentos e
partilhas, momentos nos quais a família busca atingir objetivos bastante imediatos e
concretos: acumular terras; projetar-se localmente ou em redes de poder mais amplas;
demonstrar prestígio; permanecer em seus sítios; inserir-se numa rede clientelar;
conseguir bons padrinhos, bons dotes ou bons casamentos para os filhos; legar um
patrimônio suficiente para a manutenção do status familiar pelas gerações seguintes, e
assim por diante.
3

É fácil imaginar que, no início do século XVIII, os sertões cariocas chegassem


quase ao porto do Rio de Janeiro. A região colonial assumia feições capilares, graças ao
desenho dos rios e aos caminhos terrestres que contornavam as cadeias montanhosas,
ambos vetores da interiorização do território. A colônia estava estruturada de leste para
oeste (partindo do porto e do centro administrativo da vila) até a freguesia de Irajá,
enquanto o ‘campo grande’ e os ‘campos de Santa Cruz’, mais a oeste, pertenciam ao
que chamaremos, grosso modo, de sertões cariocas.1
A fonte principal deste trabalho são registros paroquiais de batismo, casamento e
óbito da freguesia de Campo Grande e os livros de batismos de escravos e livres da
freguesia de Irajá nas décadas de 1740 e 1750,2 depositados no Arquivo da Cúria
Metropolitana do Rio de Janeiro (doravante ACMARJ), dos quais foram analisados
dados como naturalidade e profissão dos noivos, os nomes de seus pais e sogros, além
das datas e locais desses acontecimentos. Ainda dois inventários, depositados no
Arquivo Nacional (doravante AN), servirão para comprovarmos os destinos e as
fortunas diferentes numa mesma fratria3. O Livro de Registro de Terras da Freguesia de
Campo Grande, depositado no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (doravante
AGCRJ),4 foi utilizado para chegarmos aos efeitos agrários das redes de parentela
anteriormente tecidas. Recorremos também ao texto das Ordenações Filipinas como
5
forma de conhecer a legislação sobre os bens de um casal e, finalmente, a alguns
registros no Almanak Laemmert, que nos permitiram conhecer a posição social de
alguns lavradores e entrever o efeito de suas redes de passado.6
Em se tratando do Rio de Janeiro colonial, os pesquisadores podem dispor da
obra do genealogista Carlos Rheigantz, que coletou sistematicamente todos os registros
paroquiais e compôs árvores genealógicas bastante ricas e completas, partindo dos

1
Discussão mais aprofundada do conceito de ‘sertões cariocas’ pode ser encontrada em Pedroza,
Manoela. Terra de resistência: táticas e estratégias camponesas nos sertões cariocas (1950-1968) PPG
História, UFRGS, Porto Alegre, 2003.
2
Os registros paroquiais utilizados neste artigo foram pinçados de uma amostragem maior que
compreende a totalidade dos assentos ACMARJ, AP-337 e AP-343.
3
AN. Fundo: Inventários (código 3J). Falecidos: Miguel Cardoso Castel Branco. Ano 1797. Notação
8993, e Ana Maria de Jesus. Inventariante: João Pereira Lemos. Ano 1795. Notação 10, caixa 3636.
4
AGCRJ, Documento notação 68-3-75.
5
Ordenações Filipinas, Rio de Janeiro. Editor Cândido Mendes de Almeida. 1870. livro 4. (O texto
integral das Ordenações pode ser acessado no sítio
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm. )
6
O conteúdo integral do Almanak Laemmert, anos de 1844 a 1889, está acessível no sítio
http://www.crl.edu/content/almanak2.htm.
4

primeiros ‘colonos’ em terra carioca7. Esse trabalho foi tabulado em computador pelo
LIPHIS, Laboratório de Pesquisas em História Social do IFCS-UFRJ, que compôs uma
base de dados com mais de 16.000 entradas nominais de moradores do Rio de Janeiro,
até o início do século XIX.
Precisamos definir alguns conceitos que serão usados ao longo deste capítulo.
Entendemos por reprodução social ou reprodução familiar o resultado do processo por
meio do qual uma população, sobre um dado território, consegue perpetuar as estruturas
e relações que a constituem.8 Podemos dizer que a reprodução social de um grupo se
constrói, microanaliticamente, por meio de estratégias – comportamentos demográficos,
jurídicos, sucessórios ou matrimoniais – utilizadas por uma família para transportar de
uma geração para outra um capital que permita o estabelecimento dos seus
descendentes.9 O conjunto desses mecanismos forma um sistema de transmissão, que
deve dialogar com os constrangimentos costumeiros e jurídicos que pesam sobre essa
operação e ditam suas fórmulas.10 Estudar as modalidades diversas da transmissão dos
bens de uma família de uma geração à outra nos ajuda a observar se a reprodução social
de grupos domésticos é assegurada ou não.11

Parte 1 – Os casamentos desiguais e a formação da região colonial

Sobre os primeiros colonos que estabeleceram seus engenhos em Campo


Grande, durante o século XVIII, as dificuldades do meio físico por vezes nos criam uma
imagem de homens ‘primitivos’, que viveram num contexto de dispersão, brutalidade e
‘instintos naturais’ indomados. Poderia se pensar que a fundação de um engenho de

7
Rheingantz, Carlos Grandmasson. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria
Brasiliana, 1965..
8
Bouchard, Gérard e Goy, Joseph (Dir). Transmettre, hériter, succéder: la reproduction sociale en milieu
rural France-Québec XVIIIe-XXe siècles. Lyon: PUL, 1992; Dérouet, Bernard. Territoire et parenté:
pour une mise en perspective de la communauté rurale et des formes de reproduction familiale. Annales
HSS, Paris: ano 50, 3, (645-686). 1995; Viret, Jérôme Luther. La réproduction familiale et sociale en
France sous l'Ancien Régime: le rapport au droit et aux valeurs. Histoire et Sociétés Rurales, 29, (165-
188). 2008.
9
Augustins, Georges. Esquisse d'une comparaison des systèmes de perpétuation des groupes domestiques
dans les sociétés paysannes européennes. Archives Européennes de Sociologie: XXIII, 1, (39-72).
1982; Bouchard, Gérard. Les systèmes de transmission des avoirs familiaux et le cycle de la société
rurale au Québec du XVII au XXe siècle. Histoire Sociale - Social History: 16, 31, (35-60). 1983.
10
Bouchard, Gérard. L'étude des structures familiales préindustrielles: pour un renversement des
perspectives. Revue d'histoire moderne et contemporaine: 28, (544-571). 1981.
11
Lavallée, Louis. La transmission du patrimoine selon le mode de partage dans la seigneurie de La
Prairie sous le régime français. In: Bouchard, G. e Goy, J. (Ed.). Transmettre, hériter, succéder: la
reproduction sociale en milieu rural France-Québec XVIIIe-XXe siècles. Lyon: PUL, (213-230), 1992.
5

açúcar em meio à floresta tropical, nativos rebelados e mosquitos, dependia muito mais
do empenho, da sorte e de investimentos pessoais do que de ‘costas quentes’. Mas não
nos deixemos enganar. Se isso pode ser verdade, digamos, num filme de faroeste, não
parecia ser o caso em uma sociedade em que a “política geria a economia”12, como a da
colônia. Por isso, vejamos mais de perto a trajetória desses sujeitos.

1659

Manoel Maria
Nunes Correia
Sousa (pt)
1676 Jacarepaguá - 8 filhos batizados em Irajá

1687 1691 1684 1687 1668 1679 1682 1676 1684 1681 1677 1680 1693

Pedro Galvez Helena Luís Apolônia Domingos Joanna Luisa Manoel Anna Antônio Manoel Maria Francisco
Palença de Soares Nunes Ferreira Nunes Nunes Antunes Correia Fernandes Nunes de Nunes de
(espanhol) Sousa Pereira (pt) Sousa (pt) Sousa Sousa Susano (pt) de Valqueire Sousa Sousa
Sousa (pt) (pe) (pe)
717 Sapop 1714 Sapop 1705 Irajá* 1706 Sapop 1711 Irajá

1713

Antônio
Fernandes
Valqueire

LEGENDA Locais dos Casamentos:


Sapop - Capela do Engenho de
Sapopemba
Coq - Capela do Engenho dos
Padre Português senhor Natural
Coqueiros
(pe) (pt) de de
Ira - Irajá
engenho Irajá
CG - Campo Grande
Cand - Igreja da Candelária
Irajá* - prov. capela de Sapopemba

Figura 2 - Família de Manoel Nunes de Souza


Fonte: Rheingantz 1965 (Tomo II, p. 107 a 114); ACARJ, livros de registro de batismos
de livres e escravos (passim).

Manoel Antunes Susano e Luísa Nunes de Sousa, casados na capela do engenho


de Sapopemba, em Irajá, no ano de 1706, faziam parte da primeira geração de casais
que viriam a se estabelecer em engenhos de açúcar em Campo Grande. Geração essa
que tinha perfil bastante marcado na primeira metade do século XVIII: filhas de
lavradores pobres com ascendência portuguesa unindo-se a jovens recém-chegados do
Reino, com ou sem patentes, mas que pretendiam se estabelecer como senhores de

12
Essa é a tese clássica de João Fragoso a respeito da economia colonial. Cf. Fragoso, João Luís Ribeiro.
Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-
1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. Segundo ele, o funcionamento da economia
colonial não era ditado apenas pela oferta e pela procura, mas também pela política. “A Câmara, os
ofícios da coroa e as mercês, em geral, criavam para seus titulares possibilidades de acumulação de
riquezas à margem da produção e do comércio”. Para o caso específico dos engenhos de açúcar do Rio
de Janeiro, ver ______. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra
do Rio de Janeiro (século XVII). Algumas notas de pesquisa. Tempo - Revista do Departamento de
História da UFF, Niterói: 8, 15, (11-35). 2003.e, para uma visão mais geral,______. Homens de grossa
aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1998.
6

terras e escravos. Esses jovens casais se diferenciavam dos ‘principais da terra’, que
também casaram suas filhas com jovens portugueses, mas se aproveitaram de uma leva
anterior de jovens oficiais, e instalaram seus engenhos em outras paragens mais nobres,
como Irajá, Marapicu e Jacarepaguá.13 Lá sim encontramos a verdadeira elite
tupiniquim. Em Campo Grande, na falta de nobres, a instalação dos engenhos de açúcar
contou com o empenho de casais mais plebeus.

Luísa era filha de Manoel Nunes de Sousa. Ela e suas irmãs casaram-se na
capela do engenho de Sapopemba em curto período: em 1706 Luiza casou-se com o
português Manoel; em 1714 Apolônia casou-se com outro português, Luiz Soares
Pereira; e Helena casou-se, em 1717, com Pedro Galvez Palença, espanhol.
Provavelmente uma quarta irmã, Joana, também se casara na mesma capela de
Sapopemba, em 1705. Apenas Ana, provável quinta filha, casou-se com senhor do
engenho dos Affonsos, em 1711.14 Desses genros, apenas um não constou como senhor
de nenhum engenho. Além disso, os novos casais foram todos apadrinhados pelo senhor
de Sapopemba, maior engenho da época.

No final da década de 1720, também Manoel Coelho Borges e Joana Barreto de

1646 - 1700 1635 - 1689


54 54

Bento Coelho Manoel


Borges Coelho
(port) Borges

1680 1666 - 1738 1687 1691 1687 1676


330 72 323 319 323 334

Antônio Joana Manoel Pedro Galvez Helena Luiza Manoel


Afonso Leitão Barreto de Coelho Palença de Nunes Antunes
(port, cp) Sena (nat RJ) Borges (alf) (esp) Souza de Souza Susano
717 Sapop 706 Sapop
696 RJ - primo irmão - 8 fil

Prov.
1669 - 1745 1703 1713 1706 1693 1708 1712 1715 1700 1722 1718 1725 - 1794
sesmeiro
76 307 15 304 317 302 298 295 310 288 292 69

Inez Herdeira de João Afonso Antônia Antônio Fernandes Feliciana Paulo Pereira Bárbara João Josefa Inácio Quitéria Vitória José
Luiz Paredes de Oliveira Coelho da Valqueire (nat. Barreta de Souza Barreta Coelho Souza Galvez Barreto Antunes
Senhora Engenho (port, vi) Assunção Cand) de Sene (port, vi) de Sene Borges (cp) Palença (d.) de Sena Susano
Afonsos 724 Irajá - 8fil 728 eng Afonsos 731 eng Afonsos 746 11fil 755 Coq
699 Cand 6fil

LEGENDA

Capitão senhor Natural Português


de de Irajá
engenho ou CG

Proximidade, amizade, Amancebados


compadrio

13
Essa ‘nobreza da terra’ foi o objeto de estudo de João Fragoso (2000; 2003; 2006; 2007a). Sobre a
‘elite’ de Irajá, ver Coaraci, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio,
1944.
14
Cabe lembrar que o fato dessas moças serem ‘naturais da freguesia de Irajá’ não permite uma
localização mais precisa da residência desse casal, pois à época a freguesia compreendia os atuais
bairros de Irajá e Campo Grande, Jacarepaguá, Engenho Velho, Inhaúma, Realengo, Madureira,
Anchieta, Pavuna, Penha e Piedade. Cf www.ids.org.br/files/Cronologia_III.pdf e Rheingantz, Carlos
Grandmasson. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1965..
7

Figura 3 - Família de Manoel Coelho Borges e Joana Barreto de Sena


Fonte: Rheingantz.Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. 1965)

Sena começaram a casar suas filhas. Destas, três se casaram, sucessivamente,


com o senhor e dois apadrinhados no engenho dos Affonsos.15 Essa coincidência
aproxima as estratégias matrimoniais dessas famílias: com diferença de alguns anos,
dois casais de lavradores pobres de ascendência portuguesa estabelecidos em Irajá
doaram suas filhas para senhores de engenho ou futuros senhores, apadrinhados dos
primeiros. As noivas, mesmo pobres, eram filhas ou netas de portugueses, e foram
escolhidas por maridos recém-chegados do Reino ou seus filhos.16

Essas escolhas matrimoniais restritas ao círculo dos colonizadores e seus


descendentes nos mostram, primeiro, a tosca tentativa de reconstrução das hierarquias
sociais do Antigo Regime nos Trópicos. Acreditamos que Manoel Nunes de Sousa e
Manoel Coelho Borges, lavradores portugueses sem patentes ou maiores recursos,
optaram por serem sogros pobres dos conterrâneos que chegavam à Irajá em busca de
esposas para constituir famílias. Suas filhas foram doadas em série a genros
promissores, que efetivamente concretizaram o ‘sonho’ senhorial.

No caso da família de Coelho Borges, constatamos que os pais e dois filhos se


aproximaram das terras do engenho de Sapopemba pois, na década de 1750,
encontramos os escravos do padre Francisco Nunes de Souza (filho de Manoel)
batizando filhos de escravos do capitão João Pereira Lemos, senhor de Sapopemba.17

15
João Affonso de Oliveira, casado em segundas núpcias com Antônia, filha de Manoel Coelho Borges,
havia recebido como meação de sua primeira esposa um engenho em Irajá que seria mais tarde
conhecido como ‘dos Affonsos’. Cf ______. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Livraria Brasiliana, 1965.. Antônio Fernandes Valqueire, noivo de Feliciana, outra filha de Manoel,
tinha apenas 15 anos de idade, e sua noiva 21, quando se casaram, pista de um casamento arranjado. Ele
mais tarde fundaria o engenho do Valqueire. Sobre o outro genro de Manoel Coelho Borges, sabemos
apenas que era português, viúvo, e que se casou na Capela do Engenho dos Affonsos. Cf Fridman,
Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999; Rheingantz, Carlos Grandmasson. Primeiras Famílias do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1965..
16
Essas conclusões foram tiradas do livro de Carlos Rheingantz (1965), a partir das informações que
podem ser disponibilizadas nos registros de casamento e batismo: local e data do nascimento e do
casamento, naturalidade e profissão dos noivos, pais e sogros.
17
Na década de 1740, um padre chamado Francisco Nunes de Souza apareceu como proprietário de ao
menos dez escravos nos registros de batismo de escravos de Irajá. Ele seria filho de Manoel Nunes de
Souza, batizado em 1693. Na década de 1750, o mesmo padre batizou dois dos filhos do capitão João
Pereira Lemos, o que demonstra sua crescente intimidade. Cf Rheingantz, Carlos Grandmasson.
Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1965.; ACARJ. Livro de
registro de batismos de livres, Freguesia de Campo Grande, p. 59-frente; ACARJ, AP 343, folhas 52-
frente, 27-verso, 80-verso, 89-verso, 107-verso, 105-frente; e Livro de Batismo de Livres de Irajá,
folhas 94-frente e 106-frente.
8

No caso das filhas de Nunes de Souza, julgamos que formaram uma geração de ‘moças
pobres de Irajá’, espalhadas pelos casamentos, sem dotes nem memórias próprias, mas
que conseguiram unir pontos inicialmente muito distantes na hierarquia social da
colônia, por meio de uma teia miúda e elástica de contatos que criaram ligações entre
famílias através de gerações.

Indo um pouco além, comprovamos que, via de regra, as primeiras famílias


colonizadoras de Campo Grande, ainda durante o século XVIII, formaram-se por meio
de ‘casamentos desiguais’ entre moças pobres do local e portugueses mais afortunados.
Na geração seguinte esses pais procuraram, para os filhos, esposas oriundas das famílias
com que haviam se casado na geração anterior, as mesmas famílias pobres ‘doadoras de
mulheres’. Assim se explicaria, por exemplo, o casamento de várias gerações de moças
Nunes de Sousa e Coelho Borges no mesmo circuito matrimonial de suas mães.
A evidência a ressaltar aqui é que, a partir dos casamentos desiguais, lavradores
se tornariam parte de uma família senhorial. Partindo de práticas culturais
estabelecidas—como a endogamia parental e a desigualdade dos irmãos em relação ao
patrimônio da ‘casa’—alguns casamentos foram o ponto de partida de reciprocidades
entre desiguais, criando um vínculo estratégico em termos de terra e trabalho entre
lavradores e senhores. Esses casamentos foram um trampolim para a ascensão
socioeconômica de alguns filhos de lavradores e para o acesso duradouro de inúmeros
parentes pobres a pequenas porções de terra senhoriais. Os vínculos criados a partir
deles foram continuamente ativados por compadrios entre senhores, lavradores e seus
escravos, legados em testamento e relações de trabalho (supervisão dos escravos,
fornecimento de cana), etc.
O leitor poderia argumentar que a preferência pelas moças de famílias
portuguesas tenha sido apenas um habitus,18 ou mesmo um preconceito racial, mas não
claramente um indício da construção de hierarquias sociais na colônia. Contra essa idéia
os fatos falam por si: em nossa busca genealógica, que partiu justamente de quem havia
conseguido se estabelecer em engenhos, confirmamos que apenas os rapazes
portugueses casados com as moças locais de ascendência portuguesa se tornaram
senhores de terras. Outros portugueses que não adotaram a mesma orientação, isto é,
cujos filhos não se casaram com moças de famílias portuguesas locais, ou cujas filhas

18
Usamos aqui o termo habitus conforme cunhado por Bourdieu: “produto do senso prático como sentido
do jogo, de um jogo social e particular, historicamente definido, que se adquire desde a infância”.
Bourdieu, Pierre. Das regras às estratégias in Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
9

não se casaram com filhos de conterrâneos, não se tornariam senhores de engenho. Seus
descendentes seriam posseiros, situados ou moradores na região, e permaneceriam na
constelação dos fornecedores de cana aos engenhos.

Parte 2 - Formação de redes clientelares intra e entre engenhos

As fontes também nos mostram que até o final do século XVIII era em Irajá que
se celebrava a maior parte dos casamentos nas freguesias rurais do município. O pico
foi justamente nos últimos anos do século XVII e primeiros do século XVIII,
coincidindo com a data e o local dos casamentos dos ‘pioneiros’ de Campo Grande.

A escolha desses rapazes portugueses de se casarem em capelas de engenhos de


Irajá é indicativo de outra estratégia. Infelizmente, Rheigantz não armazenou os nomes
dos padrinhos desses casamentos. Mas, contornando essa lacuna, entendemos que um
casamento numa capela particular, no interior de um engenho – num momento em que
já existia uma igreja matriz, na sede do povoado – pode ser indício de uma vinculação
entre o senhor do engenho e o casal de noivos. Olhando para esses senhores mais de
perto, vemos que a maioria era de capitães, sargentos-mores, coronéis, tenentes,
doutores ou donas. Portanto, acreditamos que os proprietários das capelas devem ter
patrocinado esses casamentos – e muitos outros que não ficaram registrados nas fontes –
como padrinhos. Todos, sem exceção, eram senhores de engenho.

O que esses dados significam? Primeiro que, com pretensões de senhores de


engenho e mentalidade de Antigo Regime, os jovens portugueses estavam bastante
conscientes da necessidade de se inserir numa rede social preexistente. Se a ‘moça de
Irajá’ era pré-requisito para o pretendente a senhor estabelecer vínculos ‘para os lados’
ou ‘para baixo’ – raízes locais – não bastava enquanto fornecedora de capital simbólico.
As pretensões senhoriais de recém-chegados precisavam de apoio, proteção ou
referências dos senhores mais bem estabelecidos. Nesse sentido, era preciso criar
relações ‘para o alto’, ou seja, com pessoas de reconhecido prestígio que já ocupassem
postos de destaque na vida da colônia, que pudessem ajudar, proteger ou mesmo dar
lastro ao status do novo casal.
10

Esferas (espaço): cidade (sede) -- Irajá (nobreza tradicional) -- local (Campo Grande)

sogro- Hierarquia
genro Social
membro da
administração
colonial
(pt) compadres
casamento
Senhor de
Engenho de
Irajá ('nobreza
sogro-
da terra')
Futuro senhor genro
de engenho
em Campo
Filha Grande (pt)
com Moça
dote Pobre de
Irajá (sem
dote)
Irajá
Sogro lavrador
português não
proprietário
(pt)

LEGENDA

senhor Morador Português


de de (pt)
engenho Irajá

Aliança

Figura 4 - Formação de redes clientelares entre engenhos por meio de casamentos

Os rapazes portugueses, além da bagagem, possivelmente traziam consigo os


cargos e títulos de suas famílias, contatos e recomendações, sem os quais,
provavelmente, não teriam conseguido nada na colônia. Eles sabiam, ou foram avisados,
que seus empreendimentos dependiam desses vínculos para se efetivarem. Casando-se
com moças de poucos recursos, se esforçaram para ter padrinhos ao menos no segundo
nível da hierarquia colonial: os senhores de engenho já estabelecidos, a ‘nobreza da
terra’ que, naquela época, concentrava seus empreendimentos açucareiros na freguesia
de Irajá. Em Irajá a dinâmica social já estava estruturada em torno das famílias
tradicionais, com hierarquias e redes de relações reconhecidas. Era nessa rede que esses
jovens casais buscavam se inserir.
11

Já vimos que esses novos casais, sempre depois de seus casamentos, tiveram
mais chances que outros de receber terras e formar engenhos, seguindo o percurso dos
seus ‘patrocinadores’. Portanto, a expansão da região colonial nada teve de espontânea,
isolada ou natural. Foi a partir das escolhas desses jovens futuros senhores, futuras
sinhás e suas famílias, que se expandiram as redes verticais que sustentavam as
hierarquias sociais da colônia nos territórios de ‘fronteira’. O casal que chegava àqueles
sertões, aparentemente apenas com uma carta de sesmaria, seus filhos pequenos e
poucos cabedais, julgava poder contar, para além de seus escravos, com as diversas
heranças materiais e imateriais que seriam acionadas em momentos diversos: bênçãos,
recomendações, padrinhos, sogros, dotes, heranças, mercês. Daí a importância de tecer
ciosamente suas redes.

Por outro lado, não esqueçamos que a ‘qualidade’ dos senhores se mostrava,
também, na amplitude de sua rede clientelar e nas várias possibilidades que tinham de
teatralizar sua generosidade para com parentes, afilhados e protegidos. Assim se
hierarquizava a sociedade, se fixavam corretamente as expectativas de todos,
diminuindo os sustos e as incertezas do cotidiano.

Parte 3 – Redes sociais nos engenhos de açúcar

Veremos nessa parte como algumas famílias de lavradores pobres mobilizaram


estrategicamente os recursos mais ou menos limitados de que dispunham para
consolidar redes sociais muito particulares em torno dos engenhos de cana-de-açúcar.
Faremos isso analisando a relação entre duas famílias, a de um senhor e a de um
lavrador do engenho de Sapopemba, em Irajá. Não esqueçamos que, no início do século
XVIII, Irajá era o centro da produção canavieira do recôncavo da Guanabara.19

A partir da década de 1740, quando o engenho de Sapopemba pertencia ao


capitão João Pereira Lemos, começamos a perceber o entrelaçamento cotidiano de duas
famílias – Castel Branco e Pereira Lemos – pelos registros de batismos de seus
escravos.20 Os compadrios de uma mesma família abastada, direcionados para outras
famílias de diferentes estratos sociais, foram, sabidamente, uma das estratégias das

19
Rheingantz (1965, tomo II, p. 395).
20
ACMARJ AP 343: fls. 9-frente, 13-frente, 15-frente, 20-frente, 21-verso, 32-verso, 38-frente, 48-verso,
51-frente, 59-verso, 68-frente, 69-frente, 75-frente, 76-frente, 80-frente, 81-frente, 83-frente, 84-frente,
87-verso, 89-verso, 92-frente, 93-frente, 94-verso, 96-verso, 99-verso, 102-frente, 102-verso, 104-
frente, 109-verso, 110-verso, 111-frente, 112-frente, 113-frente, 118-verso, 120-frente.
12

elites para a criação de redes clientelares e para a demonstração do seu prestígio. Além
disso, sabemos que mesmo membros da família ampliada e das escravarias dos senhores
se envolviam nessas redes e reproduziam, com algumas variações, a estrutura familiar
hierarquizada pelos compadrios.21 Esse parece ser também o perfil dos batizados em
que se envolveu o capitão João Pereira Lemos, senhor de Sapopemba, e seus próximos:
suas escravas foram madrinhas dos filhos dos escravos dos lavradores vizinhos, dentre
os quais, os de Antônio Cardoso Castel Branco.22

21
O objetivo de nosso trabalho não é a análise aprofundada do fenômeno do compadrio entre escravos.
Para uma discussão mais bem qualificada sobre esse assunto, ver Fragoso, João Luís Ribeiro. Capitão
Manuel Pimenta Sampaio, senhor do Engenho do Rio Grande, neto de conquistadores e compadre de
João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira (Rio de Janeiro, 1700 – 1760). XXIII
Simpósio Nacional da ANPUH. São Leopoldo, RS, 2007; Hameister, Martha Daisson. Para dar calor à
nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila do
Rio Grande (1738-63). PPG História, UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.
22
ACMARJ AP 343: fls. 33-frente e 39-verso.
13

Gaspar Pereira Margarida


de Carvalho Gomes
(senhor de
Pendotiba) Oliveira

1641 1629
1614 - 1674 1629

Andreza Francisco Manoel Maria


Francisco Isabel de Ferraz Cardoso Figueiredo
de Lemos Pereira Oliveira Pinto Castel Branco (pt)
e Faria (pt) de (cp, pt)
Carvalho 1659 RJ
1644 - 6 fil

1643 1647 - 1673 1661 1670 - 1726 1657 1667 - 1690

Manuel Inez Luís de Anna Eugênio Felipa


Pereira Gomes Lemos Ferreira Cardoso de
Henriques de Pereira Castel Melo
(pt) Faria (pe) Branco (pt)
1687 CG - sfil
1673 RJ 1690 - CG - 3 fil

1692 1703

Antonio Maria
Manuel Maria de
Cardoso Bonsucesso
Martins Abreu Rangel
1721 1720 - 1776 Castel Branco Luz (nat. Sé)
1726 Irajá - 10 fil Ferreira (dona)

Timóteo João tia de


Pereira Pereira Anna
1733 - 1794 1728 1741 1730 1731 1730 1744
da Lemos (cp) Maria
Costa
Anna Maria Anna Marianna Matheus Miguel Maria da Francisco Bernarda
de Jesus Maria Joaquina Antunes Cardoso Conceição Cardoso Maria de Jesus
(nat. Irajá) de Soledad Susano Castel Branco (nat. Irajá) Castel Branco (nat. Irajá)
Oliveira (nat. Irajá)
1751 Sapop - 6 fil - dispensa de afinidade
766 Sapop 5 fil 1764 Irajá - 7 fil

1757 - 1791 1759 1755 1762 1767 1765

Maria Francisco João José Joaquim Luisa Luisa Francisca José de Emereciana
Teresa Pereira Pereira Pereira (ou Antunes Maria Santa Maria da
de Jesus Lemos de Lemos Lemos Maria Susano Conceição Maria Conceição
(pe) e Faria Teresa) (ten) (pe)
(cpm) 1797 Capoeiras
1799
1751

LEGENDA
Ano, Local e 1813 X esc Criança Exposta,
Número de (Número de com filiação Legados e compadrio
(sentido da Capitão Sargento- Padre Português senhor natural presumida
Filhos do escravos pela
transmissão (cp) Mor (pe) (pt) de de...
Casamento (fil) Desobriga de
do engenho de (sgm) engenho (nat.)
1813)
Sapopemba)

Figura 5 – Famílias Pereira Lemos e Castel Branco (1644-1799)

Fonte: Rheingantz 1965; ACMARJ AP-337 e AP-343; AN. Fundo Inventários.


Nome: Anna Maria de Jesus. Inventariante: João Pereira Lemos. Ano 1795,
notação 10, caixa 3.636; Nome: Miguel Cardoso Castel Branco. Ano 1797,
notação 8.993.

Antônio Cardoso Castel Branco e seus dez filhos gravitavam há muito em torno
do engenho de Sapopemba. Como Antônio, seu pai e seus filhos tinham alguns
escravos, mas não consta em nossos registros que tenham sido senhores de algum
engenho, julgamos que pudessem ter se especializado na plantação de cana para o
engenho de Sapopemba, o que explicaria a proximidade entre seus plantéis no eito e
seus consequentes compadrios cruzados. Nesse ponto, é preciso relembrar que a
estrutura de fornecimento da cana necessária para a produção de açúcar pressupunha
uma ampla rede de lavradores livres em seus partidos, ao redor do engenho.23 Antônio

23
Costa, Iraci. Notas sobre a posse de escravos nos engenhos e engenhocas fluminenses (1778). Revista
do Instituto de Estudos Brasileiros, 28. 1988; Fragoso, João Luís Ribeiro. Afogando em nomes: temas e
experiências da história econômica. Topoi: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da
UFRJ, Rio de Janeiro: 5, (41-70). 2002; Sampaio, Antonio Carlos Jucá De. Na encruzilhada do império:
14

Cardoso Castel Branco se encontrava economicamente no mesmo nível de outros


clientes pobres dos senhores de Sapopemba. A forma com que se apadrinhavam mostra
uma reciprocidade entre desiguais, o que pode ser percebido, entre outros, pelo fato da
família Cardoso Castel Branco batizar os filhos dos escravos de Sapopemba, e não os
filhos do seu senhor.

As relações entre senhores de engenho e lavradores de cana nunca se limitaram


ao mundo do trabalho e da produção agrícola24. Os Castel Branco, como outras famílias
pobres vizinhas ao engenho, tentavam se aproximar da casa-grande pelos caminhos
possíveis da época: davam seus filhos para serem batizados pelo senhor, e batizavam
eles mesmos seus escravos.

Mas nem todos os lavradores vizinhos tinham os mesmos trunfos para aumentar
a proximidade com os senhores do engenho. Antônio Cardoso Castel Branco, lavrador,
e João Pereira Lemos, capitão e senhor, eram primos em segundo grau. Isso porque o
pai de Antônio havia se casado com uma prima pobre do pai do capitão João. Os
ascendentes comuns das duas famílias eram duas irmãs que se estabeleceram em Irajá,
onde nasceram e se casaram seus filhos25. Mais tarde, seus ramos se diferenciaram
economicamente em senhores (a família de Izabel, avó do capitão João) e lavradores
pobres (família de Andreza, mãe de Antônio), vizinhos necessários a esse mesmo
engenho.

Essa relação entre primos, vizinhos e envolvidos na produção de açúcar no


engenho de Sapopemba se completou em 1751. Neste ano o capitão João Pereira Lemos
se casou, em segundas núpcias, com Anna Maria de Jesus, enquanto seu primo Timóteo
(exposto como João, mas provavelmente filho de seu tio) se casaria com Anna Maria de

hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (1650-1750). Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2003.
24
Pedroza, Manoela. O mundo dos fundos, ou quem eram os vizinhos dos engenhos de açúcar no Rio de
Janeiro colonial? (freguesia de Campo Grande, Rio de Janeiro, 1777-1813). Estudos Ibero-Americanos,
Porto Alegre: 35, 2, (59-83). 2009.
25
O avô do padre Luís era o capitão Gaspar Pereira de Carvalho, senhor de engenho em Pendotiba (atual
município de Niterói). Depois de casadas, duas filhas de Gaspar (Andreza de Oliveira e Izabel Pereira
de Carvalho) devem ter se estabelecido na freguesia de Irajá, onde ao menos um genro parece ter
fundado um engenho – de Sapopemba – e onde nasceram os netos de Gaspar – dentre os quais Luís. Em
1691 Luís de Lemos Pereira foi ordenado padre e, entre 1706 e 1717, nos registros de casamento da
freguesia, ele constava como proprietário da capela do engenho de Sapopemba. Por outro lado, ainda
nos últimos anos do século XVII, Eugênio Cardoso Castel Branco, português filho de capitão, se casou
em Campo Grande com Ana Ferreira. Um dos filhos desse casal, Antônio, continuava por lá em 1726,
visto seu casamento no mesmo local.
15

Oliveira, ambas filhas de Antônio Cardoso Castel Branco. Como se vê, Antônio
conseguiu se diferenciar dos outros lavradores ativando relações parentais longínquas,
mas estratégicas, para criar uma preferência matrimonial para suas filhas entre os
Pereira Lemos.

Por esses caminhos, Anna Maria de Jesus, filha de Antônio Cardoso Castel
Branco, foi meeira dos bens do marido, seu primo em terceiro grau, o capitão e senhor
do engenho de Sapopemba, João Pereira Lemos.26 Seu inventário, de 1794, nos dá uma
visão global do patrimônio do casal. A fazenda de Sapopemba, com 2.312 braças de
testada, àquela época tinha 130 escravos, mais de duzentas cabeças de gado, casa de
vivenda, capela, cavalariças, senzalas, engenho e dezenas de partidos de cana, tocados
por membros da família, por lavradores livres ou pelos próprios escravos. Já a fazenda
das Capoeiras (comprada pelo casal em Campo Grande) possuía 3.690 braças de testada
com seus respectivos sertoins, 112 escravos, engenho, capela, casa de farinha, casa de
fazer anil, gado em menor quantidade e muitos partidos de cana. No total, os bens de
Anna Maria de Jesus totalizavam 64.590.550 réis (19.377,16 libras).27

Mas não basta sabermos que seu casamento foi economicamente vantajoso
apenas para si própria. Pelos registros paroquiais, constatamos que os outros irmãos de
Anna Maria de Jesus tocaram suas vidas em terras contíguas ao engenho de Sapopemba
ou do novo engenho das Capoeiras, plantando cana. Mesmo tão diferentes
economicamente, esses lavradores alçados a parentes tiveram ao menos seus sítios e
partidos de cana em Sapopemba e Capoeiras assegurados. Afinal, mesmo pobres, eram
da família. Assim, na sombra da pujança do capitão João Pereira Lemos, senhor do
engenho de Sapopemba, parece terem vivido quase todos os irmãos, cunhados e
sobrinhos pobres de sua segunda esposa, Anna Maria de Jesus. Isso explicaria em parte
a existência de inúmeros sítios listados em seu inventário. Esses familiares, se não
tiveram a sorte de poder herdar o patrimônio de Sapopemba, como a irmã felizarda,

26
As Ordenações Filipinas, vigentes no império português a partir de 1603, sancionavam o costume de
que os casamentos fossem contratos de meação, ou seja, que o casal partilhasse todos os seus bens. Cf.
Ordenações Filipinas, 1870 (livro 4, título XCIV: Como o marido ou mulher casados sucedem um ao
outro; e título XLVI: Como o marido e mulher são meeiros em seus bens, p. 832).
27
AN. Fundo Inventários. Nome: Anna Maria de Jesus. Inventariante: João Pereira Lemos. Ano 1795,
notação 10, caixa 3.636. Como não temos informações para a conversão de valores do real para a libra
esterlina entre os anos de 1770 e 1808, usamos neste caso a cotação existente mais próxima, relativa ao
ano de 1808 (um real = 72 pence inglês).
16

tiveram pequenos outros consolos, como dotes, legados e esperanças de que suas filhas
se casassem com os primos ricos.28

João Fragoso já nos alertava para levarmos em consideração as visões de mundo,


as intenções e estratégias próprias dos estratos mais subalternos quando negociavam, ou
mesmo quando se subordinavam às elites locais. Os lavradores livres e pobres, bem
como os escravos, possuíam também seus motivos para se inserirem em redes
clientelares, ou “bandos”,29 como, por exemplo, garantir a própria sobrevivência física.
“A combinação entre práticas parentais com as de vizinhança e os entendimentos com
frações das elites auxiliavam na melhoria de suas vidas”.30

Nesta parte, pudemos dizer que a empresa colonizadora na freguesia de Campo


Grande, empreendida a partir de meados do século XVIII, se fez como construção e
expansão de redes densas31 que sobrepunham relações de reciprocidade desiguais intra
e entre parentelas (sanguínea, por casamento e ritual). No caso que acabamos de
analisar, a família de Antônio Cardoso Castel Branco, lavrador pobre, usou os recursos
de que dispunha para se aproximar e mesmo se imiscuir aos destinos da família
senhorial dos Pereira Lemos. Esses recursos não eram muitos, mas devem ter passado
pelas raízes antigas no local, pela proximidade no mundo do trabalho do engenho,
possivelmente pela ‘pureza’ do sangue português e pela ativação de origens familiares
comuns. Essa aproximação, construída pacientemente ao longo de anos de moradia e
trabalho, batizados de escravos, serviços prestados, possíveis encontros dominicais na
capela, entre outros, foi consumada por um ‘casamento desigual’, em 1751.

Esses ‘casamentos desiguais’ não traziam conforto material apenas para a ‘moça
pobre’ felizarda. Toda sua família de origem se beneficiava em algum grau por fazer
parte, mesmo de maneira subordinada, de uma rede de parentela senhorial. Benefício
que pode ser lido, por exemplo, na estabilidade adquirida pelos segmentos de sitiantes

28
Aliás, como fizeram a própria Anna Maria de Jesus, em 1751, e Emerenciana, filha do irmão dela, que
se casaria com o primo José Joaquim, filho de Anna Maria de Jesus, herdeiro e senhor da fazenda
Tingui, em Campo Grande, em 1799 (essa é a data de batismo do primeiro filho do casal, que não deve
se distanciar muito de seu casamento). Cf. ACMARJ AP 287: fls. 60 e 60-verso.
29
Fragoso, João Luís Ribeiro. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da
terra do Rio de Janeiro (século XVII). Algumas notas de pesquisa. Tempo - Revista do Departamento
de História da UFF, Niterói: 8, 15, (11-35). 2003.
30
______. Afogando em nomes: temas e experiências da história econômica. Topoi: Revista do Programa
de Pós-Graduação em História da UFRJ, Rio de Janeiro: 5, (41-70). 2002.
31
Usamos a noção de ‘rede social densa’ como um similar menos abrangente do conceito de ‘rede social
total’ proposto por Barnes, J. A. Networks and Political Process. In: Mitchell, J. C. (Ed.). Social
Networks in urban situations. Manchester: Manchester University Press, 1969.
17

nas franjas das terras dos engenhos. Portanto, esses casamentos acrescentaram o
elemento de ascensão social, mobilidade espacial e mesmo estabilidade da estrutura
agrária, concentradora e excludente, na medida em que uniram na mesma ‘casa’ e nas
mesmas terras, via parentela por aliança, grupos sociais inicialmente muito díspares,
como lavradores e senhores de engenho. Assim, com a meação dos bens de Sapopemba
entre o rico capitão e sua prima pobre, seus novos parentes por afinidade puderam
garantir, entre outros benefícios, uma importante fonte de recursos (quem sabe o mais
precioso, no caso de lavradores): o acesso à terra de trabalho.

Parte 4 - Estratégias senhoriais de reprodução social em Campo Grande

Nesta parte, analisaremos as práticas de transmissão de terras das famílias que


vimos anteriormente. Vale lembrar que, historicamente, as dificuldades de reprodução
social das famílias que dependem da terra como fonte de trabalho, renda ou status,
provêm, sobretudo, do dilema colocado no momento da partilha dos bens, entre herança
preferencial (isto é, a escolha de um filho para ser dono de todos os bens) ou
fragmentação do patrimônio (partilhando-o igualmente entre todos os herdeiros). Essas
dificuldades ficam ainda mais evidentes ao lidarmos com famílias em que o número de
filhos é maior do que as possibilidades concretas de se contrair casamentos vantajosos,
o que é a regra geral. Nesse caso, o risco de fragmentação do patrimônio é maior.
Na Europa, em contextos de fronteira completamente fechada, a principal
estratégia de reprodução social das famílias rurais foram as alianças matrimoniais
vinculadas a um sistema de transmissão chamado de preciputário, ou desigual entre os
herdeiros.32 Particularmente, para as famílias da elite fundiária, prevalecia a lógica de
um ‘casamento prudente’, no qual predominavam cálculos patrimoniais que deviam
atingir dois objetivos: a defesa da propriedade e também da linhagem familiar.
Os trabalhos que se ativeram especificamente aos mecanismos de reprodução
social dos senhores de engenho no Brasil entre o século XVIII e meados do século XIX
(João Fragoso, para o Rio de Janeiro, Carlos Bacellar, para São Paulo, e Sheila de
32
Nesse caso, estamos diante de sistemas de transmissão de tipo sucessão única e herança preferencial,
isto é, aqueles em que, para cada geração, há apenas um casal no grupo doméstico, e o papel do
sucessor é dado no dia em que ele leva o cônjuge para viver na casa paterna. Os sistemas de
transmissão desse tipo são também chamados de sistemas maison, e subsistem sobretudo na região dos
Alpes europeus. Para maiores detalhes ver Augustins, Georges. Esquisse d'une comparaison des
systèmes de perpétuation des groupes domestiques dans les sociétés paysannes européennes. Archives
Européennes de Sociologie: XXIII, 1, (39-72). 1982; Barthelemy, Tiphaine. Les modes de transmission
du patrimoine: synthèse des travaux effectués depuis quinze ans par les ethnologues de la France.
Études Rurales: 110-111-112, La terre: Succession et héritage, (195-212). 1988; Bourdieu, Pierre.
Célibat et condition paysanne. Études Rurales, 5-6, (32-135). 1962.
18

Castro Faria, para Campos dos Goytacazes) parecem concordar que a legislação
portuguesa que pressupunha a partilha igualitária das terras era frequentemente
desrespeitada. Segundo Carlos Bacellar, o conflito entre uma legislação ultramarina,
criada à revelia da sociedade colonial, e a realidade cotidiana de um sistema econômico
monocultor, em que o vultoso capital investido nos engenhos de açúcar não era
divisível, criou práticas diversas da lei, adaptadas às necessidades do momento e
virtualmente desconhecidas pelos historiadores.33 Ele defende que, embora a legislação
guiasse para a partilha igualitária dos bens entre todos os filhos, nas regiões açucareiras
paulistas a prática das famílias da elite seguia em direção contrária, lançando mão de
dotes, de adiantamentos de heranças e do uso da terça testamentária para inviabilizar o
igualitarismo. Para Sheila Faria, a explicação de tal procedimento, ao menos para áreas
açucareiras fluminenses no século XIX, era que a sobrevivência material e a
continuação do padrão de vida das famílias dependiam da manutenção do conjunto do
engenho. Mantendo-se os bens sob o controle de um, todos poderiam usufruir deles.34
Na cidade do Rio de Janeiro, segundo João Fragoso, para burlar a lei de
heranças, que supostamente fragmentaria os bens da família, os pais transferiam em
vida seus bens entre cunhados e irmãos selecionados, ou recorriam aos tabelionatos para
vender o patrimônio em cartório para um parente cuidadosamente escolhido.35 Silvia
Brugger também relativizou as práticas igualitárias de herança vigentes (precisamente
em Minas Gerais), ressaltando a necessidade de se pensar a transmissão de bens em
outros momentos que não a sucessão post mortem.36 Carla Almeida, estudando as
estratégias da elite mineira setecentista, mostrou que essas famílias também tinham por
hábito vender todos os bens do casal para um membro escolhido como sucessor, como
forma de impedir a dispersão na partilha.37
No Brasil, a eficiência do dote como atrativo de bons cônjuges era proporcional
ao seu valor, mas sua composição foi variável, dentro da mesma família, dependendo da

33
Bacellar, Carlos De Almeida Prado. Os senhores da terra. (série Campiniana). Campinas: CMU, 1997.
34
Faria, Sheila Siqueira De Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial
(Sudeste, século XVIII). PPGHIST, UFF, Niterói, 1994.
35
Fragoso, João Luís Ribeiro. Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor do Engenho do Rio Grande, neto
de conquistadores e compadre de João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira (Rio
de Janeiro, 1700 – 1760). XXIII Simpósio Nacional da ANPUH. São Leopoldo, RS, 2007.
36
Brugger, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei, séculos XVIII e
XIX). São Paulo: Annablume, 2007.
37
Almeida, Carla Maria Carvalho. Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira
Leite e seus aparentados. In: Fragoso, J. L. R., Almeida, C. M. C., et al (Ed.). Conquistadores e
negociantes: história das elites no Antigo Regime nos Trópicos (América Lusa, séculos XVI a XVIII).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (121-194), 2007.
19

vontade paterna ou do momento do ciclo de vida familiar. Sem que houvesse regras que
fixassem seu montante, os pais repassavam aos filhos noivos o que queriam ou o quanto
podiam, mostrando que os filhos já eram tratados desigualmente. A importância
decrescente do dote entre meados do século XVIII e meados do século XIX já foi
destacada por alguns autores.38 Segundo João Fragoso, as famílias senhoriais cariocas
preferiram restringir suas alianças matrimoniais e reforçar elos com algumas poucas
famílias amigas através do tempo, reproduzindo casamentos entre aparentados.39

Vimos que as famílias senhoriais campo-grandenses se aproximaram dessas


práticas: mesmo quando se procedia ao inventário, que arbitrava valores e pagamentos
iguais a todos, é fácil reconhecer o núcleo do patrimônio passando para um único
sucessor, enquanto os outros dividiam desigualmente trastes, dinheiro e escravos. Todos
entendiam que a transmissão devia preservar o patrimônio. Estava fora de questão no
habitus senhorial que o núcleo dos grandes engenhos devesse permanecer íntegro e que
o testador pudesse escolher seu herdeiro preferencial.
Assim procederam, por exemplo, Anna Maria de Jesus, com suas cinco mil
braças de terras “insuficientes para contentar a todos”, em 1794; Antônio de Oliveira
Galindo, sobre a situação40 Campo de Fora, com duzentas braças de testada, em 1871; e
o capitão-mor José Antunes Pereira Susano, para as fazendas das Capoeiras e
Pedregoso, em 1876.41 Percebe-se, também, que o arbítrio da vontade do testador não
dependia da área em questão e resistiu até o final do século XIX, embora a antiga
legislação colonial e a lei de partilhas imperial, posta em prática a partir de 1835,

38
Bacellar, Carlos De Almeida Prado. Os senhores da terra. (série Campiniana). Campinas: CMU, 1997;
Kuznesof, Elizabeth Anne. Household economy and urban developement: São Paulo, 1765 to 1836.
(série Dellplain Latin American Studies). Boulder: Westview Press, 1986; Nazzari, Muriel. Women and
property in the transition to capitalism: decline of the dowry in São Paulo, Brazil (1640-1870).
American Historical Association. Chicago, 1984; Samara, Eni De Mesquita. O dote na sociedade
paulista do século XIX: legislação e evidências. Anais do Museu Paulista: 30, (41-53). 1980.
39
Fragoso, João Luís Ribeiro. Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor do Engenho do Rio Grande, neto
de conquistadores e compadre de João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira (Rio
de Janeiro, 1700 – 1760). XXIII Simpósio Nacional da ANPUH. São Leopoldo, RS, 2007.
40
Segundo Jorge Luiz Silveira, situações eram pequenas propriedades localizadas dentro de terras alheias.
Hebe Mattos pondera que, em Capivari, a propriedade de situação (isto é, ter lavouras ou benfeitorias
em terras alheias ou devolutas) era legalmente reconhecida pela organização judiciária local, não só
para efeito de herança, como em transações comerciais registradas em cartórios locais à revelia do
proprietário legal. Cf. Mattos, Hebe Maria. Ao Sul da História: lavradores pobres na crise do
escravismo. São Paulo: Brasiliense, 1987; Silveira, Jorge Luiz Rocha. Transformações na estrutura
fundiária do município de Nova Iguaçu durante a crise do escravismo fluminense (1850-1890). PPG
História, Uff, Niterói, 1998.
41
AN. Fundo: Inventários. Falecida: Anna Maria de Jesus. Inventariante: João Pereira Lemos. Ano 1795,
notação 10, caixa 3.636; Falecido: Antônio de Oliveira Galindo. Ano 1871, notação 28, caixa 3.644;
Falecido: José Antunes Pereira Susano. Ano 1876, notação 4.458, caixa 3.610 e notação 35, caixa
3.610.
20

dissessem o contrário. Devemos lembrar aqui que lidamos com uma sociedade em que
parecia natural que os indivíduos não fossem iguais e que não tivessem os mesmos
direitos. Todos sabiam que possuíam qualidades, status e posições sociais muito
distintas a zelar.42
Se a preservação do patrimônio e a sucessão única foi uma constante, dois
comportamentos fizeram as estratégias patri-matrimoniais das famílias senhoriais
diferentes das congêneres européias. Primeiro, no que tange ao papel do dote e das
filhas para selar alianças verticais com grupos mais abastados. De fato, as famílias
senhoriais de Campo Grande se relacionariam com famílias mais nobres, de fora da
freguesia, apenas esporadicamente. As alianças matrimoniais que miravam para fora
foram pensadas para poucos ou para um único membro da fratria, que era ‘excluído’ do
patrimônio da família de origem, mudando de residência. Apenas em poucos casos o
matrimônio de uma filha local com um noivo de fora trazia rapazes mais nobres para se
estabelecer em terras dos sogros.43 De resto, em Campo Grande todos os outros filhos e
filhas, mesmo de pais sesmeiros ou senhores, teriam como horizonte casar com
congêneres locais, sobretudo com primas e vizinhas mais pobres.

Percebemos ainda que nos arranjos dos casamentos dos filhos definia a relação
entre duas famílias e seus respectivos patrimônios. Além disso, casamentos fizeram
circular mulheres e terras para além das fronteiras das famílias originais, mas se
mantiveram majoritariamente circunscritos às fronteiras da freguesia. Esse sistema de
alianças matrimoniais num contexto local restrito, eivado por direitos de propriedade
senhoriais, com espaços ainda ociosos e famílias de poucos recursos, não se ateve
exclusivamente à barganha financeira, à exclusão feminina ou à cessão de terras como
transação isolada. Parece ter prevalecido a lógica do equilíbrio em longo prazo, ou seja,
de que numa ponte entre famílias senhoriais circulariam mulheres por várias gerações,
mesmo sem dotes expressivos, que se compensariam no episódio seguinte,
reequilibrando a balança.
Também podemos notar que as famílias senhoriais tiveram de encontrar saídas
para reproduzir endogenamente tanto as hierarquias sociais quanto a legitimidade para

42
Hespanha, António Manuel. Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro.
Direito comum e direito colonial, AMH AR. 2005; ______. A mobilidade social na sociedade de
Antigo Regime. Tempo: 11, 21, (121-143). 2006; Magalhães, Joaquim Romero. A persistência
senhorial. In: Mattoso, J. D. (Ed.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, v.III, 2006.
43
Fragoso, João Luís Ribeiro. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da
terra do Rio de Janeiro (século XVII). Algumas notas de pesquisa. Tempo - Revista do Departamento
de História da UFF, Niterói: 8, 15, (11-35). 2003.
21

tanta desigualdade. Além de bons casamentos, também tiveram de produzir seus ‘bons
partidos’, bons chefes e bons padres. Na impossibilidade de importá-los, os oficiais e
conselheiros de Campo Grande eram produção própria da freguesia: filhos e netos dos
primeiros senhores, cujo título de ‘capitão de ordenanças’ era a prova da ascensão
econômica e da consolidação do status local de suas famílias, pois “davam a categoria
de cavaleiros aos que tais postos tivessem, mesmo que o não fossem”. 44
As câmaras
vão também ser chamadas a escolher o capitão-mor, o sargento-mor, os capitães e
alferes entre os que residem nos ‘concelhos’. Nada destoante do que previam as
Ordenações de 1603.
Como primeiros exemplos, o sargento-mor José Cardoso dos Santos, herdeiro da
fazenda de Cabuçu, desde ao menos 1797;45 o capitão Antônio Antunes, senhor de
Inhoaíba, em 1777;46 o capitão José Antunes Susano, senhor de Capoeiras e Inhoaíba,
em 1797; e seu irmão alferes, em 1818. Também não é coincidência que as famílias
senhoriais tenham seus padres na primeira geração: Luís de Lemos Pereira, senhor de
Sapopemba, em 1706, Miguel Antunes Susano (filho do sesmeiro e proprietário de
escravos em 1758),47 Francisco Pereira Lemos (filho de João Pereira Lemos e também
senhor de engenho, em 1797),48 e Martino Fernandes (que recebeu sesmaria em 1773).49
Mais tarde, numa segunda geração, haveria ainda Belisário Cardoso dos Santos e
Antônio Garcia de Oliveira Durão (herdeiro dos Garcia do Amaral). 50 Todos padres,
filhos de famílias senhoriais, moradores da freguesia, senhores de engenho e donos de
escravos, que ajudavam a construir o status e a riqueza da família, diante de seus
‘rebanhos’, sem levar muito em conta as restrições do comportamento clerical.
Há que se ressaltar as potencialidades tangíveis desses cargos e patentes. O fato
das mesmas famílias senhoriais concentrarem em poucos filhos tantas insígnias de
poder – sucessores, senhores de terras, donos de escravos, capitães de ordenanças,
líderes espirituais – sobrepunha vínculos verticais orientados para uma mesma pessoa,

44
Magalhães, Joaquim Romero. A persistência senhorial. In: Mattoso, J. D. (Ed.). História de Portugal.
Lisboa: Estampa, v.III, 2006.
45
Rheingantz (1965).
46
Fróes, José Nazareth De Souza; Gelabert, Odaléa Ranauro Enseñat. Rumo ao Campo Grande por trilhas
e caminhos (1565-1965). Rio de Janeiro, 2004; Várzea, Affonso. Engenhos dentre Guanabara-Sepetiba.
Brasil Açucareiro. 1945.
47
Para ver os batizados dos escravos de Miguel Antunes Susano, ACMARJ AP 285: fls. 121-verso e 122-
frente.
48
Fróes, José Nazareth De Souza; Gelabert, Odaléa Ranauro Enseñat. Rumo ao Campo Grande por trilhas
e caminhos (1565-1965). Rio de Janeiro, 2004.
49
AGCRJ 68-3-75, 4º volume (Escrituras de terras que estão dentro do atual Distrito Federal, na praça
limítrofe com o estado do Rio de Janeiro ou nas proximidades).
50
AN. Fundo Processos SDJ Diversos. Ano 1823, número 510, caixa 1.145.
22

aumentando a densidade das redes sociais locais. Na confortável posição de credores


locais ou através da dupla subordinação de lavradores em seus batalhões e em seus
rebanhos espirituais, alguns indivíduos reforçavam sua posição ascendente nas redes
locais. Consequentemente, amarrava-se com mais força o feixe de compromissos entre
senhores e lavradores, tornando mais difícil a existência de subgrupos alternativos ou
independentes dessas parentelas tradicionais.
Como se vê, havia várias etapas de uma estratégia local bastante articulada, que
envolvia terras, famílias e poder na freguesia. Mas a reprodução endógena das
hierarquias costumeiras e da qualidade dessas casas senhoriais tinha limites, e não
extrapolava párocos e capitães de ordenanças. Em nosso ver, isso demostra a influência
restrita dessa elite senhorial ao nível local, sua posição intermediária nas hierarquias
políticas da colônia, sua subordinação clientelar à nobreza da terra de outras paragens e
seu papel economicamente pouco expressivo.
É novamente oportuno relembrar que o jogo pressupõe escolhas táticas e não
uma reprodução mecânica da condição econômica e do poder local. Assim, ressaltamos
os rumos tomados por duas famílias senhoriais locais, a parentela Antunes Susano e a
dos Cardoso dos Santos. Embora estivessem ambas igualmente inseridas nas redes
sociais que permitiriam sua escalada senhorial (via concessão de sesmaria ou
arrematação de contratos), e possuíssem um habitus patri-matrimonial semelhante
(desigualdade entre herdeiros, casamentos como alianças), optaram por estratégias
diferentes.

Os oito filhos do sesmeiro Manoel Antunes Susano tiveram destinos bastante


diferentes. Os que se fixaram em Campo Grande, menos abonados inicialmente,
teceram redes parentais consanguíneas, matrimoniais e rituais, extensas e sólidas.
Apostaram na multiplicação de unidades produtivas interdependentes, o que pode ser
percebido no compadrio cruzado entre seus escravos, e também na multiplicidade de
alianças entre seus membros e outras famílias locais, senhoriais ou não, via compadrios
e casamentos, reforçados através de gerações. Os resultados foram colhidos no início do
século XIX, período em que dois irmãos Antunes Susano, netos do sesmeiro, sem abrir
mão das estratégias patri-matrimoniais tradicionais de sua família, acumularam imenso
patrimônio em terras, engenhos e escravos, concediam crédito, tinham patentes e
estavam no topo do ranking do compadrio local. Por outro lado, as mesmas redes de
23

passado poderiam explicar a quantidade de sitiantes em suas terras, e o fato de seus

LEGENDA
1720 - 1773
53

Marcos Cardoso Úrsula


senhor de Natural dos Santos (cont Martins
de Fora de dízimos)
engenho Irajá

D. 1809 1744 - 1809 1753


65 257

José Maria Úrsula Marcos


Cardoso Inácia Maria das Cardoso
dos Santos de Paiva Virgens dos Santos
(cp engenho (engenho
Francisco Clara
Cabuçu) RP Cabuçu)
Oliveira Pimenta 1765 RJ 1765 RJ
Coutinho (ten) Oliveira (d.)

1776 D. 1843 D. 1814 D. 1848 1777 - 1810 D. 1820


234 33

Cecília Marcos Antonio Ana João Angélica Joaquim José Teixeira Rita Maria Manoel Maria Joaquim Ana
Rosa de Cardoso Carneiro da Maria de Vieira Inácia Cardoso dos da Fonseca de Paiva Cardoso Tereza Cardoso Maria da
Oliveira (d.) dos Santos Silva Moreira Paiva Borges de Paiva Santos (@) (ten) (des) dos Santos de Jesus dos Santos Conceição
(sgm)
1796 Juari 1797

Figura 7 - Família de Marcos Cardoso dos Santos


Fonte: Rheingantz.Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. 1965)

próprios parentes serem sitiantes em terras de outrem51.

Os Cardoso dos Santos, por sua vez, inverteram toda essa lógica. Em 1748
compraram uma sesmaria inteira “e mais 500 braças de terras”, estabeleceram-se em
Campo Grande com vasto cabedal e tinham o maior plantel da freguesia. Mantinham-se
vários casais sob o mesmo teto e controlava-se tudo – família, terras e escravos – com
mão de ferro. Foram estritos na defesa do imenso patrimônio, envolvendo-se em vários
conflitos com vizinhos, usando de violência em alguns deles. Foram estritos também na
prescrição de casamentos estratégicos, sobretudo alianças com famílias de fora, mais
nobres, e deserdaram os descontentes. Assim, não construíram vínculos com outras
famílias senhoriais locais, via casamentos, nem com famílias de lavradores, via
compadrios de crianças livres, e muito menos criaram condições para que seus escravos
se relacionassem com os plantéis vizinhos.

O resultado se deu, primeiro, na forma de conflitos com os vizinhos, para os


quais não houve mediação, apenas violência. Depois, o conflito entre todos os
herdeiros, que não possuíam outros meios de vida ou outros vínculos sociais vantajosos
para que pudessem, ou quisessem, prescindir do seu quinhão no patrimônio. O

51
Uma análise mais aprofundada da trajetória de membros da família Antunes Susano encontra-se em
minha tese de doutorado. Cf Pedroza, Manoela. Engenhocas da Moral: uma leitura sobre a dinâmica
agrária tradicional. PPG Ciências Sociais, UNICAMP, Campinas, 2008.
24

exclusivismo patrimonialista, enquanto estratégia de acumulação a curto prazo, foi


eficiente, pois centralizou recursos e impediu que esse patrimônio se fracionasse, até
1809. Mas, enquanto estratégia social a médio e longo prazo, de manutenção e expansão
desse patrimônio, fez com que os herdeiros fossem colocados numa ‘panela de pressão’
sem válvula de escape.

No ano da morte do sargento-mor José Cardoso dos Santos, 1809, seu


patrimônio, quase integralmente herdado dos pais, foi avaliado em 70.000.000 réis
(21.466,67 libras). Diferindo, entretanto, de outros grandes senhores de terras da região,
José Cardoso dos Santos não designou um herdeiro preferencial. A partir de então,
iniciou-se uma guerra fratricida que duraria 34 anos, para ver quem angariaria o melhor
quinhão da Fazenda Cabuçu. Nenhum herdeiro fora das terras, nenhum sitiante dentro,
sinal de poucos amigos. Sem alianças, sem alternativas, o drama da partilha de Cabuçu
foi piorado.

Parte 5 – Os excluídos senhoriais

Já dissemos que, historicamente, as dificuldades de reprodução social das


famílias que dependem da terra como fonte de trabalho, renda ou status, provêm,
sobretudo, do dilema colocado no momento da partilha dos bens, entre herança
preferencial ou fragmentação do patrimônio. O problema é bastante antigo e não apenas
dos brasileiros. Na Europa, em contextos de fronteira completamente fechada, a
principal estratégia de reprodução social das famílias rurais foram as alianças
matrimoniais seletivas e o celibato forçado, vinculados a um sistema de transmissão em
que os principais bens de raiz da família passavam para um único filho.
Numa situação ideal de um casal com um casal de filhos, o sistema matrimonial
lida com dois tipos de casamentos: os dos sucessores, que asseguram a perpetuação das
respectivas maisons e merecem todo cuidado; e os outros, que visam apenas a garantir o
futuro dos outros filhos, para os quais pequenos dotes bastam. Os filhos não sucessores
podem casar, mas não terão terra. Tratava-se de uma seleção do pai entre seus filhos que
dispensava tratamento completamente desigual entre os herdeiros52. É mister

52
Para maiores detalhes ver Augustins, Georges. Esquisse d'une comparaison des systèmes de
perpétuation des groupes domestiques dans les sociétés paysannes européennes. Archives Européennes
de Sociologie: XXIII, 1, (39-72). 1982; Barthelemy, Tiphaine. Les modes de transmission du
patrimoine: synthèse des travaux effectués depuis quinze ans par les ethnologues de la France. Études
Rurales: 110-111-112, La terre: Succession et héritage, (195-212). 1988; Bourdieu, Pierre. Célibat et
condition paysanne. Études Rurales, 5-6, (32-135). 1962.
25

reconhecer que os sistemas preciputários produzem excluídos em cada geração. O


conjunto de pesquisas sobre esse grupo social apontou que, no meio rural, a exclusão foi
quase sempre sinônimo de marginalização, mobilidade espacial ou êxodo rural
definitivo53.
Um conjunto similar de estratégias de preservação do patrimônio foi
transportado ao Brasil. Portanto, mesmo no seio de uma rica família, por exemplo, de
um sesmeiro e senhor de engenho, a cada geração se recriava um terceiro escalão, que
chamaremos de excluídos senhoriais, isto é, filhos que pertenciam a famílias senhoriais,
mas que, pela cultura da herança desigual, não recebiam bens de raízes no momento da
partilha. Ou seja, eram filhos de senhores que não reproduziam a condição senhorial dos
pais, nem como sucessores de seus engenhos, nem ao menos como herdeiros de glebas
da família54.
Em Campo Grande, a solução para o dilema da transmissão fundiária e da
conseqüente reprodução social dos grupos ligados à terra foi original. Acompanhando
os destinos da família de Antônio Cardoso Castel Branco, homem livre senhor de
alguns escravos e possivelmente fornecedor de cana para o Engenho de Sapopemba,
pudemos ver de que forma foram tecidos os vínculos que determinaram sua condição
estável de “sitiante” nos domínios da família senhorial dos Pereira Lemos.
Analisaremos agora um segundo caso, da família de Mateus Antunes Susano.
Mateus era um dos filhos de um sesmeiro e senhor de engenho em Campo
Grande: Manoel Antunes Susano. Ele casou-se com Marianna Joaquina da Soledad em
1766, na capela do engenho de Sapopemba. Mariana também era pobre, mas cunhada de
João Pereira Lemos, capitão e senhor do engenho de Sapopemba, com antigas relações
com o pai de Mateus, o que explicaria o casamento dos seus filhos.

53
Em 1997, historiadores franceses e quebequenses se reuniram para discutir precisamente esse
problema, na tentativa de traçar continuidades e rupturas entre a França e sua colônia americana. Seu
principal desafio era entender os efeitos da exclusão da herança e o destino dos excluídos nas famílias
camponesas. Como pontos em comum, os pesquisadores remarcaram a raridade da exclusão total de um
filho baseada somente na vontade testamentária do pai e a disseminação da exclusão das filhas pela
concessão de um dote de casamento. Os trabalhos foram reunidos em um livro, Cf. Bouchard, Gérard,
Dickinson, John A, et al. Les exclus de la terre en France et au Québec XVIIe-XXe siècles. La
reproduction familiale dans la différence. Sillery: Septentrion, 1998.
54
Aqui, usamos a mesma definição de ‘excluído da herança’ de Sylvie Dépatie e John Dickinson. Ver
Dépatie, Sylvie. La transmission du patrimoine au Canada (XVIIe -XVIIIe siècle): qui sont les
défavorisés? RHAF: Revue d'Histoire de l'Amérique Française: 54, 4, (558-570). 2001; Dickinson,
John. Destins familiaux dans de gouvernement de Montréal sous le régime français: les Brunet. In:
Bouchard, G., Dickinson, J., et al (Ed.). Les exclus de la terre en France et au Québec XVIIe-XXe
siècles. La reproduction familiale dans la différence. Sillery: Septentrion, 1998.
26

Mas, nos anos seguintes, Mateus não apareceu nos relatórios como senhor de
engenho, como seus irmãos, o que indica o fato de ter sido um ‘excluído senhorial’.
Mateus e Mariana se estabeleceram em terras da Fazenda das Capoeiras, propriedade da
‘casa’ dos Pereira Lemos. Nesse sítio tiveram dois filhos, Luiz e Maria Thereza, e
depois desapareceram completamente dos nossos registros, o que indica o seu destino
de lavradores pobres. Mas, mesmo pobres, eles e seus filhos faziam parte de duas
importantes famílias senhoriais locais, e tiveram direito de estabelecer sítios nas terras
desses parentes.
A partir de 1798. o senhor das Capoeiras passara a ser um primo do casal, este
sim capitão e senhor de engenho: José Antunes Susano. Seguramente a família de
Mateus Antunes Susano assistiu de perto as peripécias desse primo capitão, sua viuvez,
o crescimento de suas crianças, e festejaram seu segundo casamento com Maria Tereza,
sua filha e também prima do capitão. Infelizmente, a moça morreu logo e não tiveram
filhos.
27

1706 Sapop

1726 Irajá

1725 - 1794 1741 1730


69

José Miguel Marianna Matheus


Antunes Cardoso Joaquina Antunes
Susano (se Castel Branco Soledad 766 Juari Susano José da Silva
Coqueiros) Álvares
(cpm, se
Lamarão)
D. 1827 D. 1846 1773 - 1793 1767 - 1835
20 68

José Francisca Maria Luís Anna


Antunes Maria da Teresa Antunes Joaquina
Susano (cp) Conceição de Susano do
Jesus (ten) Nascimento
1793 primo irmão
1797 Faz. Capoeiras - primos irmãos

1800 1810 - 1851


41

Anna Joaquim Manoel Francisca Matheus José Manoel Maria Teresa Evaristo José Rodrigues
Maria Vieira Vieira de Maria da Antunes Antunes Antunes de Jesus da Silva Susano
Trindade Aguiar Aguiar Conceição Susano Susano Susano Susano (dona) Álvares (Amorim)
(dona) (credor) (Trabalha Eng (Trabalha
1820 - primo 2o Lamarão depois em Inhoaíba)
na Fazenda
Itacuruçá)
Maria Luís Matheus
Vieira de Antunes Rodrigues
Aguiar Susano Neto Susano
(Susano) 1842 Itaguaí

1876

Benedita

LEGENDA

senhor Declarante Confrontante


de nos Vizinho compadrio Credor-Devedor
engenho RPT

Figura 8 – Descendentes de Mateus Antunes Susano, Rio da Prata do Pau Picado


(1767- 1835)
Fontes: Rheingantz 1965 (Tomo II, p. 111); ACARJ, série VP 25, Caixa 233, Diário da
visita de 1829; AN. Fundo Inventários. Nome: Miguel Cardoso Castel Branco. Ano
1797. Notação 8993; e Falecido: José Antunes Susano. Inventariante: Francisca Maria da
Conceição. Notação 39, caixa 3610. s-d; LRT (pp. 25-v e 26); AN. Fundo Inventários.
Nome: Luiz Antunes Susano. Ano 1835. Notação 5261, caixa 4124; Almanak Laemmert
(passim); AGCRJ, 68-3-75.

Já Luiz, o outro filho de Matheus, casou-se com uma prima pobre, Francisca, na
capela da Fazenda das Capoeiras, em 1797. Pouco antes Francisca recebera ajuda em
dinheiro da tia, Ana Maria de Jesus (senhora do Engenho de Sapopemba), para seu dote.
O casal também se estabeleceria dentro da imensa fazenda das Capoeiras, vizinho aos
pais de Luiz55. Luiz Antunes Susano chegou a ser tenente, mas não tinha terras, apenas
o direito a um pequeno sítio, de 49 braças, dentro da fazenda do primo. Portanto, os
seus filhos dependeriam desses contatos para terem acesso à terra de trabalho, se
quisessem se estabelecer no local. Em nossa opinião, não por outro motivo o tenente
Luiz deu o seu filho mais velho para ser batizado pelo capitão José Antunes Susano,
com o mesmo nome dele. Esse filho sempre trabalhou no engenho de Inhoaíba, como

55
Rheingantz, Carlos Grandmasson. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria
Brasiliana, 1965.
28

pessoa de confiança do padrinho. Outro filho trabalhava no engenho de Lamarão,


vizinho das Capoeiras, até ser convidado pelo tio capitão para administrar outro
engenho na distante freguesia de Itacuruçá, para onde se mudou. Morreu solteiro.
Uma moça, com bastante sorte, foi escolhida para selar a relação vertical da
família pobre de Luiz com o senhor de engenho de Lamarão, casando-se com seu filho.
Infelizmente, ela logo ficou viúva, mas seu pai foi testamenteiro do genro falecido e ela
teve direito de herdar alguma coisa dos bens do marido, antes de casar-se novamente,
com outro primo pobre. Do último filho de Luiz Antunes Susano, Manoel, não temos

1706 Sapop

1726 Irajá

1725 - 1794 1741 1730


69 269 280

José Antunes Miguel Mariana Mateus


Susano Cardoso Joaquina Antunes
(senhor Castel Branco Soledad 766 Juari Susano
Coqueiros)

D. 1827 D. 1846 1773 - 1793 1767 - 1835


20 68

José José Francisca Maria Luiz Ana


Vieira Antunes Maria da Tereza Antunes Joaquina
José da Silva
de Susano (cp) Conceição de Susano (ten) do
Alvares (cp,
Aguiar 1793 primo irmão Jesus
senhor
Nascimento
1797 Faz. Capoeiras - primos irmãos Lamarão)

1800 1810 - 1851


210 41

Ana Joaquim Manoel Francisca Mateus Antunes José Luiz Antunes Manoel Maria Tereza Evaristo José Rodrigues
Maria Vieira Vieira de Maria da Susano (Antes Antunes Susano Antunes de Jesus da Silva Susano
Trindade Aguiar Aguiar Conceição Eng Lamarão Susano (Filho) Susano (Susano) Alvares (Amorim)
(d.) (credor) depois adm Faz (Trab
1820 - primo 2o Itacuruçá) Inhoaíba)

Maria Luiz Antunes Mateus


Vieira de Susano Rodrigues
Aguiar (Neto) Susano
(Susano) 1842 Itaguaí

1876
134

Benedita

LEGENDA

Declarante Confrontante
nos compadrio Credor-Devedor Deixou Declarante Vizinhos, senhor
RPT inventário nos Confrontantes de
RPT nos engenho
RPT

Figura 9 - Família de Mateus Antunes Susano


Fonte: Rheingantz.Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. 1965)

notícia56.

No fim da vida desses primos, tenente Luiz e capitão José, quase como um
coroamento por tanta proximidade e fidelidade, o capitão José escolheu como terceira
esposa a segunda filha de Luiz, Francisca como a mãe, com a qual teve um filho.
Portanto, ao morrer o capitão José Antunes Susano, em 1827, era sua viúva e
inventariante Francisca, filha do tenente Luiz. Além de ele ter dois outros filhos como
administradores de engenhos do falecido, era ainda tutor do neto e pai da viúva.
56
AN. Fundo Inventários. Falecido: José Antunes Susano. Inventariante: Francisca Maria da Conceição.
Notação 39, caixa 3610.
29

Provavelmente por isso o tenente Luiz assumiu total ou em parte a gerência do


engenho de Inhoaíba, situação que não agradou aos outros herdeiros, filhos e genros do
primeiro e segundo casamentos do capitão José. Eles alegavam que Francisca, filha de
Luiz, havia casado com contrato de arras57, e não tinha nenhum direito à meação do
espólio. E, ainda, que Luiz e seus filhos estavam "arruinando o engenho e a fazenda" de
que haviam tomado posse. No calor da disputa pela herança do falecido, sobretudo seus
82 escravos e dois engenhos, os filhos de Luiz foram demitidos pelo genro do capitão.
O fato de ter se estabelecido em sítio nas Capoeiras e ser compadre do capitão
José Antunes Susano abriu portas para os filhos do tenente Luiz, em termos de trabalho,
mas nenhum deles deixou descendência conhecida. Provavelmente os quatro homens
não se casaram, ou o fizeram fora da freguesia. Também, pudera: em 1835, o pai legaria
aos seis herdeiros apenas um sítio de 49 braças de testada no Rio da Prata do Pau Picado
(onde morava) e 365.220 réis (59,65 libras) em dívidas a pagar.
A exigüidade de recursos materiais requeria que Luiz pensasse cuidadosamente
no casamento de suas duas filhas, já que estas podiam ser ‘doadas’ para outras famílias
mais afortunadas. Ele casou cada uma duas vezes, pois ambas ficaram precocemente
viúvas. Todos esses quatro matrimônios envolveram vizinhos, fossem filhos de
senhores de engenhos (Lamarão e Inhoaíba) ou lavradores (o primo José Rodrigues e os
Vieira de Aguiar). Além disso, dois de seus genros eram sobrinho e primo (José

57
Dotes e contrato de arras são tipos de contratos pré-nupciais, diferentes da carta de ametade, o regime
mais comum de casamento com comunhão de bens. No texto das Ordenações Filipinas consta que
“poderá cada hum em o contracto dotal prometter e dar à sua mulher a quantia ou quantidade certa, que
quizer, ou certos bens, assí como de raiz, ou certa cousa de sua fazenda, contanto que não passe o tal
promettimento, ou doação de arras, da terça parte do que a mulher trouxer em seu dote. (..)” Cf.
Ordenações Filipinas, livro 4, título XLVII: Das arras e camera cerrada (fl. 835-837). Para mais
detalhes ver Melo, Hildete Pereira; Marques, Teresa Cristina Novaes. A partilha da riqueza na ordem
patriarcal. Revista de Economia Contemporânea: 5, 2. 2001. (pg. 4, nota 15). Para uma análise mais
geral do sistema matrimonial no Brasil, ver Silva, Maria Beatriz Nizza Da. Sistema de casamento no
Brasil colonial. (série Coroa vermelha (estudos brasileiros)). São Paulo: EdUSP, v.06, 1984. (sobretudo
capítulo VI: o regime de bens). Para uma análise das estratégias matrimoniais da ‘nobreza da terra’
carioca ver Fragoso, João Luís Ribeiro. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira
elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi: Revista do Programa de Pós-Graduação
em História da UFRJ: 1, (45-122). 2000; ______. A nobreza vive em bandos: a economia política das
melhores famílias da terra do Rio de Janeiro (século XVII). Algumas notas de pesquisa. Tempo -
Revista do Departamento de História da UFF, Niterói: 8, 15, (11-35). 2003. Para uma avaliação do uso
do dote na freguesia de Campo Grande, e de suas diferenças para outros estudos de caso, ver Pedroza,
Manoela. Engenhocas da Moral: uma leitura sobre a dinâmica agrária tradicional. PPG Ciências
Sociais, UNICAMP, Campinas, 2008.
30

Rodrigues e o capitão José Antunes Susano) e outro genro, além de ter família na
propriedade vizinha, era também credor do casal de sogros58.
Podemos concluir que Luiz Antunes Susano e sua mulher, primos entre si, eram
claramente lavradores pobres, o que afetava diretamente as possibilidades de ascensão
sócio-econômica de sua descendência masculina, que devia, por princípio, permanecer e
perpetuar o (parco) patrimônio da família de origem. Mesmo assim, eles se
aproveitaram de relações vicinais antigas e bem consolidadas, do status de suas famílias
extensas e de pontes parentais que lhes permitissem catapultar as filhas por horizontes
mais amplos que os de seus pais e irmãos.
Nossa hipótese é que, para as famílias de lavradores que conseguiram casar seus
filhos com os filhos de famílias senhoriais, isso pode ter aberto a possibilidade de sua
colocação nos sítios e partidos no interior das fazendas, ou garantido a permanência
onde já estavam, caso seus sítios precedessem a chegada dos senhores-sesmeiros. Isso
porque esses casamentos, criando vínculos entre as duas famílias, possibilitavam a
inserção de toda a família do lavrador numa nova rede, mais poderosa, mesmo que
numa posição claramente subordinada.
A trajetória de Mateus Antunes Susano e sua descendência, sitiantes no Rio da
Prata do Pau Picado, nos remete à desigualdade econômica dos ‘excluídos senhoriais’,
atenuada, ou mascarada, pela proximidade com seus parentes ricos. Como vimos,
Mateus, excluído dos Antunes Susano, havia se estabelecido em terras do capitão João
Pereira Lemos graças ao casamento com a cunhada daquele. Seus filhos, tenente Luiz e
Maria Tereza, dependeriam das benesses de outro primo capitão, José Antunes Susano,
para conseguirem terra, trabalho e bons casamentos. O tenente Luiz conseguiu se
relacionar mais proximamente com o primo capitão, beneficiando a si e aos filhos com
essa proximidade. Como se percebe, a desigualdade se reproduzia de uma geração para
a outra, através da herança preferencial, mas ela também era instrumentalizada pelos
próprios excluídos.
Como regra geral, todos os sitiantes tentavam casar seus filhos com vizinhos,
espalhando as filhas pobres pelos arredores ou recebendo noras também pobres em seus

58
A viúva Francisca Maria da Conceição (mãe) declarou, no inventário do marido, que seu casal possuía
dívidas ativas para com Joaquim Vieira de Aguiar. Esse Joaquim era irmão de Manoel Vieira de
Aguiar, que se casaria com a filha de Francisca em 1842. As duas famílias—Antunes Susano e Vieira
de Aguiar—foram confrontantes reconhecidos no registro paroquial de terras, em 1854. Cf. Cf. AN.
Fundo Inventários. Nome: Luiz Antunes Susano. Ano 1835. Notação 5261, caixa 4124; AN. Fundo
Inventários. Falecido: José Antunes Susano. Inventariante: Francisca Maria da Conceição (filha).
Notação 39, caixa 3610; e AGCRJ. 68-3-75, 4º volume.
31

pequenos sítios. Mas os sitiantes excluídos senhoriais tinham um trunfo para suas
estratégias: o pertencimento à parentela senhorial.
Os excluídos senhoriais eram mais do que apenas filhos excluídos da
propriedade da terra: eram pontes entre o mundo dos senhores e dos lavradores, além de
corporificarem práticas culturais e morais e uma hierarquia de acesso aos recursos
naturais locais únicos. Eram o resultado da mediação entre desigualdade econômica,
desigualdade de direitos sobre as terras, de uma moral familiar particular e das diversas
possibilidades de ascensão ou queda de status social, naquele contexto59.

Os sítios

Isso porque, a partir da necessidade de ao menos garantir a sobrevivência das


famílias desses filhos sem herança, em Campo Grande a estratégia senhorial corrente
consistia em instalá-los em sítios, em cantos dos domínios da família inexplorados ou
de outras famílias senhoriais amigas. Os sítios eram, portanto, a expressão territorial da
famílias formadas pelos ‘excluídos senhoriais’, seus parceiros e seus descendentes.
Que vantagens esses sítios trariam para o mundo concreto da sobrevivência
cotidiana?
Primeiro, o sítio não afastava completamente o ‘terceiro escalão’ do usufruto das
terras da família, ou seja, não os condenava à exclusão total, emigração ou celibato.
Além de terem terra suficiente para alimentar a família, poderiam abrir outras posses
mais distantes e ter outros partidos. Em outras palavras, eles não seriam obrigados a
deixar a casa, nem a fazenda em que nasceram, nem a permanecer solteiros como
empregados do irmão sucessor. O sítio ao lado do engenho mantinha sob o mesmo
manto da ‘casa’ parentes de desiguais ‘estatutos’, uma forma de garantir a ‘qualidade’
desta casa, em detrimento das desigualdades econômicas em seu interior.
Socialmente, os excluídos senhoriais que se tornavam sitiantes não sofriam
constrangimentos para escolha do cônjuge. Plenamente inseridos nas estratégias
matrimoniais mais amplas de suas famílias, seus casamentos, mesmo que não
envolvessem patrimônio expressivo, não se davam em qualquer direção, obedecendo
aos fluxos de trocas de mulheres entre famílias aparentadas ou aliadas. Essa rede de
parentela, por sua vez, era ampla e complexa e lançava mão principalmente de membros

59
Para uma análise da ‘mobilidade social’ no Antigo Regime, ver Hespanha, António Manuel. A
mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. Tempo: 11, 21, (121-143). 2006; Levi, Giovanni.
Carrières d'artisans et marché du travail à Turin (XVIII-XIX siècles). Annales ESC: ano 45, 6, (1351-
1402). 1990.
32

também excluídos ou mais distantes do núcleo principal, como cunhados, primos ou


sobrinhos. Eles podiam provir de ramos pobres ou mesmo de ramos nada senhoriais, de
lavradores locais, mas eram sempre vizinhos, aliados ou clientes do senhor. Assim,
amarrando entre si famílias senhoriais e de pobres, os excluídos teciam as redes
parentais, vicinais e matrimoniais da freguesia.
Depois de casados, o casal que se tornava sitiante podia usar o nome da família
para ocasiões em que o prestígio, e não os recursos econômicos, fosse a moeda de troca
principal, como nos batizados e nos testemunhos em processos. Poucas terras não
impediam que excluídos senhoriais partilhassem de uma porção do status, do
patrimônio e até da autoridade de sua família. Os vínculos parentais ligavam todos à
mesma ‘casa’60 e não os congelavam em pontos separados da estrutura social. Por isso,
esses irmãos ou primos pobres carregariam com orgulho o nome de sua casa.
Os sitiantes também poderiam alimentar a esperança, bastante confirmada pelos
casos que estudamos, de que seus filhos seriam a reserva matrimonial preferida de
vizinhos, tios ou primos mais abastados. Com sorte, veriam suas filhas casar-se com os
primos ricos em um circuito matrimonial restrito de troca de mulheres locais praticado
por várias gerações. Nesse caso, não se tornariam ‘da casa’, porque já o eram, mas
seriam alçados ao circuito mais amplo de direitos sobre o patrimônio familiar (como
meeiras, tutores, inventariantes ou herdeiros colaterais), de que haviam sido
anteriormente alijados.
Juridicamente, esses sitiantes ‘excluídos senhoriais’ tinham o direito de usus,
frutus, e apenas não o de abusus sobre esses sítios, que cabia ao herdeiro preferencial.
Enquanto universo moral partilhado, essa lógica familiar corporativa não dependia de
títulos e de cercas para se afirmar, já que não lidava com propriedades privadas e
direitos exclusivos no sentido moderno61. Via de regra, no momento do testamento os
primos pobres eram lembrados pelos generosos senhores, receberiam legados para seus
dotes, sítios onde morar, quem sabe trabalho e terras também para os seus filhos

60
Para uma melhor discussão sobre o conceito de ‘casa’ ver Monteiro, Nuno Gonçalo. Casa e Linhagem:
o vocabulário aristocrático em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Penélope, Lisboa, 12, (43-63). 1993;
______. O 'Ethos' nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário
social. Almanack Braziliense, 2, (4-20). 2005.
61
Sobre o processo histórico de construção da propriedade privada no mundo moderno, ver Congost,
Rosa. Tierras, leyes, historia: estudios sobre "la gran obra de la propriedad". (série Crítica del mundo
moderno). Barcelona: Crítica, 2007. Para o caso brasileiro ver Varela, Laura Beck. Das sesmarias à
propriedade moderna: um estudo de história do direito brasileiro. (série Biblioteca de teses). Rio de
Janeiro: Renovar, 2005..
33

casados. Portanto, seu direito ao sítio costumava ser ratificado nos rituais de morte,
disfarçado de doação, sob o verniz da generosidade senhorial.
Devemos deixar claro que, no caso dos sítios, não podemos falar em pequenas
propriedades herdadas em torno (isto é, fora) de uma área determinada, como uma
fazenda. Tratava-se de sítios não titulados, não de propriedades formais, que passavam
de pai para filho não como posses autônomas (que se tornavam propriedade, pela lei 62),
e sim como direito que emana do vínculo com uma família senhorial, legitimados pela
moral local que, nos testamentos, apareciam maquiados como legados, favores ou
benesses concedidas pelo senhor das terras, que era quase sempre um compadre ou
aparentado.
Mas os sítios eram encarados localmente como herança familiar aos seus
membros menos sortudos. Por isso, no momento dos registros paroquiais de terras, em
1854, os sitiantes declararam direitos, plenamente legitimados pela ‘economia moral’63
local, e não propriedades, nem posses, segundo o código jurídico formal. Nossa
hipótese é que os sítios faziam parte de um mesmo pacote de direitos de propriedade—
sítios-engenho-plantações-matas-rios—adquiridos no momento em que uma sesmaria
territorialmente imprecisa foi concedida a uma família senhorial. Esse conjunto de
recursos era acessível a outras famílias, desde que pertencentes à mesma rede de
parentela senhorial, e segundo uma hierarquia de direitos de propriedade e de uso que
marcava a desigualdade sócio-econômica entre seus membros.
Importante lembrar que esses sítios só conseguiram se estabelecer ou se manter
em terras sob jurisdição alheia, na condição mais favorável do que a de meros
agregados, não porque tivessem títulos, mas porque eram respeitados e reconhecidos
pela comunidade do seu entorno. Ou seja, esses sitiantes eram pobres mas estavam
perfeitamente inseridos na dinâmica socioeconômica local, e faziam parte dos circuitos
parentais e patrimoniais mais amplos, sobretudo via casamentos e compadrios.

62
Sobre a transformação da posse em propriedade ver estudo de Márcia Motta in Lara, Silvia Hunold e
Mendonça, Joseli Maria Nunes (Orgs). Direitos e justiça no Brasil: ensaios de história social.
Campinas: UNICAMP, 2006.
63
Chamaremos esse código local de 'economia moral' no sentido original empregado por E. P. Thompson,
já que orientava as ações de todo o corpo social e submetia os interesses puramente econômicos e
oportunidades individuais no curto prazo aos interesses da ‘casa’, às soluções de compromisso, ao
equilíbrio entre desiguais, a salvaguardar posições, exigências sociais e compromissos selados (Cf.
Thompson, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.). Aliás, algo comum na dinâmica de sociedades não capitalistas
(Cf. Polanyi, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980.).
Para uma melhor discussão dessa ‘economia moral’ local, ver Pedroza, Manoela. Terres en indivis,
économie morale et réciprocités inégales au Brésil du XIXe siècle (paroise de Campo Grande, Rio de
Janeiro). Histoire & Sociétés Rurales, Caen: 33, (81-116). 2010.
34

Por outro lado, as famílias de lavradores que, acionando um elemento forte da


moral da época, qual seja, a identidade parental, conseguiram casar seus filhos com os
‘excluídos senhoriais’, também tiveram a possibilidade de estabelecer sítios no interior
dos domínios senhoriais. Portanto, sitiantes nas terras de seus parentes mais sortudos
perpetuavam uma teia de reciprocidades entre desiguais que deve ter conferido
legitimidade e estabilidade a um contexto social e economicamente hierarquizado. Por
isso, defendemos que os excluídos senhoriais eram mais do que apenas filhos excluídos
da propriedade da terra: eram pontes entre o mundo dos senhores e dos lavradores, além
de corporificarem práticas culturais e morais e uma hierarquia de acesso aos recursos
naturais locais particulares.

Conclusão

Acreditamos que os homens e mulheres moradores do município do Rio de


Janeiro desde o século XVIII puderam, a partir de sua cultura, estratégias e
possibilidades, tecer seu futuro e, com ele, sua paisagem. Nossa lupa perscrutou alguns
casos concretos, de onde extraímos os elementos explicativos da estrutura sesmaria-
engenho-sítio. Julgamos que as trajetórias dos excluídos senhoriais dos Antunes Susano
e dos Castel-Branco-Pereira Lemos confluem para confirmar as hipóteses que
defendemos.
Na primeira parte, vimos que, para além do ‘poder senhorial’ e da ‘família
patriarcal’ clássica, fornecedores de cana, moças pobres e escravos também
participaram da construção das ‘aldeias coloniais’, e que a estratificação
socioeconômica não era estanque nem monolítica. Primeiro, porque através dos
‘casamentos desiguais’, algumas filhas de lavradores se tornaram matriarcas de clãs
senhoriais, meeiras dos bens do capitão local.
Em segundo lugar, na construção da paisagem agrária e agrícola pudemos
perceber a força dos vínculos parentais e de vizinhança, imbricados numa dinâmica
particular que criou pontes entre o trabalho, a terra e a parentela ao redor dos engenhos
de açúcar do século XVIII no Rio de Janeiro. As famílias de lavradores buscavam seus
senhores como padrinhos, pois assim seus filhos poderiam ter acesso a cargos de
direção ou administração dos engenhos, galgando degraus de ascensão econômica
dentro das possibilidades concretas a eles fornecidas. Outras, acionando um elemento
forte da moral da época, qual seja, a identidade parental e pureza de sangue,
conseguiram casar seus filhos com os ‘excluídos senhoriais', tiveram a possibilidade de
35

estabelecer sítios do interior dos domínios senhoriais. Essa dinâmica foi ativada pelas
escolhas dos sujeitos envolvidos, movidas por objetivos individuais ou familiares que
acabaram por tecer uma rede de relações sociais bastante complexa.
Não desconsideramos a reprodução da desigualdade socioeconômica, das
hierarquias sociais costumeiras e de tantos outros mecanismos de uma sociedade
excludente. Constatamos que até meados do século XIX, a dinâmica local de Campo
Grande conseguiu reproduzir endogenamente as desigualdades e hierarquias sociais
através de mecanismos como a transmissão desigual de bens entre herdeiros; o
monopólio das terras, crédito e fábricas por poucas famílias; a concentração de patentes
e do poder político e espiritual local em poucos indivíduos; o arranjo de casamentos
desiguais; a colocação dos excluídos em sítios; e a sobreposição de vínculos de
subordinação dos mais pobres – crédito, trabalho, compadrio, vizinhança e batalhões.
Mas também vimos que, por linhas tortas e imprevistas, algumas práticas e leis
de uma sociedade estamental e excludente (como a endogamia, os casamentos
desiguais, a concessão de sítios e a meação entre casais) se traduziram em terra,
trabalho, casamento e alguma ascensão social para alguns lavradores. Em outras
palavras, foram toscamente distribuídos recursos – terra e status – que seriam, a priori,
monopólio das famílias senhoriais. As ações microscópicas dos indivíduos e grupos
sociais em constante movimento colocaram furos, ou abriram brechas, na fortaleza
estamental da imobilidade social do ‘Antigo Regime nos Trópicos’.
O elemento que gostaríamos de ressaltar é que, ao menos até aquela época, essa
subordinação não parecia ser devida apenas ao fato de ‘morarem’ em ‘propriedade’ do
senhor, ou seja, de não serem proprietários autônomos de seus terrenos. Num momento
em que a propriedade privada da terra não estava dada nem nos códigos legais e nem na
cultura senhorial, a subordinação política e econômica do que poderia ser chamado de
“campesinato” no Brasil parecia se construir por outros meios que não o monopólio da
propriedade da terra.
No campo da reprodução social, vimos que a parentela senhorial, extremamente
diferenciada social e economicamente, parecia concordar em ter direitos diversos sobre
o patrimônio. Além disso, mesmo inseridas na cultura senhorial da época, as famílias
senhoriais de Campo Grande puderam agir com outros recursos para atenuar as
dificuldades vividas por seus setores excluídos da herança. Essa dinâmica própria teve
de lidar com os termos específicos da negociação local, no caso, com a existência de
uma ampla camada de sitiantes ligados tanto ao fornecimento de cana aos engenhos
36

quanto à produção de gêneros de abastecimento, que também eram aparentados e


moradores dentro de domínios senhoriais.
A baixa densidade demográfica, a existência de terras livres e pouca pressão dos
engenhos sobre seu entorno possibilitaram uma solução original para o problema da
transmissão fundiária. Os pais legavam seu patrimônio conforme uma hierarquia de
direitos que começava no grau máximo, de sucessor do engenho e dos títulos do pai,
passava por algumas gradações, como herdeiros de porções menores ou móveis do
patrimônio, pelas filhas que recebiam dotes, até chegar aos filhos quase sem direitos de
herança, que tinham apenas direito de usar um pedacinho da grande sesmaria ociosa da
família, a quem chamamos de 'excluídos senhoriais'.
Assim, para o bem da ‘casa’ se construíra um sistema em que a exclusão social
(expropriação) não era absoluta, e tinha legitimidade na moral da época. O sítio dentro
da sesmaria e ao lado do engenho encobria a exclusão da maioria dos filhos ao direito
de herança, mantendo-os sob o mesmo manto da ‘casa’, de sua qualidade e seu estatuto.
Além disso, os compadrios intraparentela podem nos dar uma pista dos mecanismos que
reforçavam, no tempo, os vínculos entre irmãos senhores e irmãos sitiantes, uma forma
de manter a casa coesa e seus membros próximos, em detrimento das desigualdades
econômicas em seu interior.
De qualquer forma, a temática da reprodução social ainda é pouco praticada no
Brasil. Para José de Souza Martins, o tema do direito costumeiro que regula a herança
da terra no meio rural brasileiro foi “lamentavelmente negligenciado”. 64 Na opinião de
João Fragoso, as alianças matrimoniais e as formas de transmissão de bens entre as
famílias brasileiras ainda são, em grande parte, segredos não desvendados, impressão
corroborada pelos poucos pesquisadores que se debruçaram sobre esse problema.65
Portanto, as comparações com o nosso estudo de caso e as sínteses mais amplas ainda
são, em larga medida, provisórias, esperando novas pesquisas.

64
Apresentação de José de Souza Martins in Moura, Margarida Maria. Os herdeiros da terra: parentesco e
herança numa área rural. (série Ciências sociais - Realidade social). São Paulo: HUCITEC, 1978.
65
Bacellar (1997); Brugger (2007) e Faria (1994).
37

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