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Ética na Pesquisa em
Psicologia: Princípios,
Aplicações e Contradições
Normativas
Ethics In Research In Psychology:
Principles, Applications And Normative Contradictions
Livia de Oliveira
Borges, Sabrina
Cavalcanti Barros &
Clara Pires do Rêgo
Lobão Amorim Leite
Universidade Federal
de Minas Gerais
Artigo
Resumo: As polêmicas entre pesquisadores sobre os princípios éticos e morais norteadores do planejamento
e sobre o desenvolvimento de suas atividades com seres humanos são cada vez mais frequentes. O presente
artigo foi elaborado com o objetivo de apresentar reflexões que possam contribuir para clarear as contradições
dos princípios éticos defendidos pelos pesquisadores/psicólogos em referência à aplicação da Resolução
CNS no 196/96, bem como em relação ao conteúdo do Projeto de Lei no 78/2006. Tenta-se apreender os
significados de tais contradições no desenvolvimento da pesquisa em Psicologia. Elaborado, inicialmente,
para contribuir com os debates no Fórum de Ética realizado no XIII Simpósio de Pesquisa e Intercâmbio
Científico em Psicologia, promovido pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia,
o texto se vale da análise interpretativa de documentos, que é confrontada com a experiência das autoras
em pesquisa e com referências bibliográficas. Em síntese, o texto situa a questão da ética na pesquisa diante
do quadro normativo existente no País, desenvolve a análise dos documentos normativos e sugere algumas
alternativas de ação tendo em vista o aperfeiçoamento do quadro regulatório.
Palavras-chave: Ética em pesquisa científica. Pesquisa científica - Psicologia. Consentimento Livre e
Esclarecido. Bioética.
Abstract: The controversies among researchers about the ethical and moral principles that guide the planning
and the development of their activities with human beings have become more frequent. This article was
elaborated with the objective of presenting reflections that might contribute to enlighten the contradictions
of the ethical principles supported by psychologist researchers and which are related to the application of
CNS Resolution nº 196/96 and to the content of Law Project nº 78/2006. This is an attempt to understand
the meanings of such contradictions in the development of psychological research. The text was developed
initially to contribute with the discussions of the Forum on Ethics held at the XIII Symposium of Research
and Scientific Exchange in Psychology, sponsored by the National Association for Research and Graduate
Studies in Psychology, and it consists in an interpretative analysis of documents, compared with the research
experience of one of the authors and the review of literature. In short, the text deals with the question of
ethics in research in relation to the norms set in the country, develops the analysis of institutional documents
and suggests some alternatives of action aimed at improving the regulatory framework.
Keywords: Ethics in research. Ethic Research with human beings. Scientific research - psychology. Informed
consent. Bioethics.
Resumen: Las polémicas entre los investigadores sobre los principios éticos y morales guías de la
planificación y sobre el desarrollo de sus actividades con seres humanos son cada vez más frecuentes. El
presente artículo fue elaborado con el objetivo de presentar reflexiones que puedan contribuir para aclarar
las contradicciones de los principios éticos defendidos por los investigadores/psicólogos en referencia a la
aplicación de la Resolución CNS 196/96 así como con relación al contenido del Proyecto de Ley 78/2006.
Se intenta abarcar los significados de tales contradicciones en el desarrollo de la investigación en Psicología.
Elaborado, inicialmente, para contribuir con los debates en el Foro de Ética realizado en el XIII Simposio
de Investigación e Intercambio Científico en Psicología, promocionado por la Asociación Nacional de
investigación y Posgrado en Psicología, el texto se vale del análisis interpretativo de documentos, que es
confrontada con la experiencia de las autoras en investigación y con referencias bibliográficas. En síntesis,
el texto sitúa la cuestión de la ética en la investigación ante el cuadro normativo existente en el País,
desarrolla el análisis de los documentos normativos y sugiere algunas alternativas de acción teniendo en
vista el perfeccionamiento del cuadro regulatorio.
Palabras clave: Ética en investigación. Investigación con seres humanos. Investigación científica - Psicología.
Consentimiento informado. Bioética.
Maluschke, 2006). O fato representa um seu quinto artigo, define a Comissão Nacional
avanço no sentido de estabelecer um controle de Ética em Pesquisa (CONEP) como o
social sobre as atividades de pesquisa, o que órgão máximo responsável por acompanhar
é plenamente legitimado pela própria história e avaliar todas as pesquisas no território
do desenvolvimento científico (Koller, 2008; nacional e aplicar as sanções administrativas
Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, previstas no PL. Sua aprovação significará que
2007). Essa resolução, uma primeira tentativa o seu descumprimento adquire o sentido de
de normatização, tem gerado também crime, pois prevê penas de detenção e multas
muitas polêmicas no meio acadêmico da em caso de desenvolvimento de pesquisa em
Psicologia (Fórum de Ética em Pesquisa da desacordo com o Termo de Consentimento2
ANPEPP1, 2012; Leitão, 2010), a exemplo ou com o protocolo aprovado pelo CONEP.
de outros ambientes acadêmicos, como a
área de saúde coletiva (Guerriero, 2008; Ambos os projetos de lei mencionados têm
Minayo, 2008; Ribeiro, 2005; Schimdt, provocado polêmicas e preocupações em
2008a, 2008b). Como todo debate motiva e setores da sociedade e motivado ações, como
influencia as atividades reflexivas das pessoas, a audiência pública realizada pela Comissão
já se encontram publicações sobre o assunto de Ciência e Tecnologia, quando ainda
(por exemplo, Bucher-Maluschke, 2006; tramitava o primeiro PL. O Jornal da Ciência,
Monteiro, 2007; Silva & Grubits, 2006), mas, de 16 de abril de 2010, sobre os resultados
enquanto floresce na produção bibliográfica, de tal audiência, relata:
tal debate tem feito parte do cotidiano
de psicólogos/pesquisadores. Ele tem sido O PL no 2.473/2003, que regulamenta
estudos clínicos com seres humanos, é
acalorado, reabastecido e tem se renovado
discutido em audiência pública na Câmara
continuamente por diversas ocorrências dos Deputados, e deve ser revisto.
(encontros e desencontros) no relacionamento O Projeto de Lei n o 2.473/2003, que
dos pesquisadores (especialmente professores regulamenta a realização de pesquisas
com seres humanos, foi debatido na
e pós-graduandos) com os diversos comitês terça-feira (13/4) em audiência pública na
de ética em pesquisa (CEPs) estabelecidos Câmara. Segundo a relatora do projeto,
nos termos da citada resolução, e com Deputada Cida Diogo (PT-RJ), o texto
editores das revistas científicas no País, bem deverá ser revisto e seguir o trâmite com
um substitutivo.
como pelo trâmite de projetos de lei no Para a Deputada, o PL original, proposto
Congresso Nacional. Um desses projetos era por Colbert Martins (PPS-BA), é muito
o PL no 2.473/2003 (http://www.ghente.org/ detalhista, e, por isso, deve ser simplificado
para poder ser aplicado em longo prazo
doc_juridicos/pl2473.htm), de autoria do
e não engessar as pesquisas. Além disso,
Deputado Federal baiano Colbert Martins, a petista defende a retirada de punições
que, em síntese, propunha que a resolução do texto.
do CNS fosse transformada em lei. Tal Martins acredita que as pesquisas que
projeto, no entanto, foi arquivado em 1o de envolvam seres humanos só devem
ser admissíveis quando oferecerem
fevereiro de 2011 (http://www.camara.gov.br/ possibilidade de gerar conhecimento para
proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPropos entender, prevenir ou aliviar um problema
1Associação
Nacional de icao=142406); tramita atualmente o Projeto que afete o bem-estar.
Pesquisa e Pós- de Lei no 78/2006, de autoria do Senador No texto entregue à Câmara em 2003, o
Graduação em deputado define conceitos, regulamenta
Psicologia.
Cristovam Buarque. Segundo informe público a atividade e chega a tipificar crimes, sem
no Portal de Atividade Legislativa (do Senado prejuízo a sanções previstas no Código
2 Termo de Federal), ele se encontra desde 13 de agosto Penal e em leis especiais: ‘Nós temos
Consentimento condições de construir uma alternativa que
Livre e Esclarecido de 2012 na Comissão de Ciência, Tecnologia,
concilie os dois projetos, para que o País
(TCLE). Inovação, Comunicação e Informática. No
possa avançar’, disse Cida Diogo durante a Tendo em vista indagações como essas, o
audiência (Jornal da Ciência, nº 664, de 16 presente texto foi redigido com o objetivo de
abril, 2010. http://www.jornaldaciencia.
org.br/Detalhe.jsp?id=70323) apresentar reflexões que possam contribuir
para clarear as contradições existentes
Os resultados da audiência pública, a entre os princípios éticos3 defendidos pelos
tramitação do projeto de lei de autoria pesquisadores/psicólogos em relação à
do Senador Cristovam Buarque e o papel aplicação da Resolução CNS no 196/96, na
atribuído pelo PL à CONEP sinalizam que há tentativa de apreender os significados de tais
possibilidades de negociação no sentido de o contradições no desenvolvimento da pesquisa
PL e as resoluções da CONEP serem ajustadas em Psicologia.
de maneira a atender à compreensão de
ética dos vários segmentos acadêmicos que As reflexões que serão aqui apresentadas
realizam pesquisas com seres humanos. resultaram exclusivamente da análise de
É, portanto, salutar vislumbrar que há alguns documentos sobre o assunto (o
possibilidades de as normas éticas terem em Projeto de Lei em trâmite, a Resolução,
conta as especificidades da Psicologia, ou até algumas notícias, etc.) e seu confronto
de se instituírem normas específicas. com a experiência cotidiana de uma das
autoras como professora-pesquisadora,
Os citados resultados da audiência pública em sua convivência com os colegas no
também sinalizam que as preocupações meio acadêmico e com alguma literatura
e as divergências em torno dos meios de especializada na área. Várias dessas reflexões
estabelecer o controle social na pesquisa consistem muito mais em indagar e pôr
já extrapolavam o ambiente acadêmico/ em dúvida do que em construir respostas
científico e atingiam o ambiente sociopolítico conclusivas.
brasileiro. Dallari (2008) reconhece o
interesse de garantir direitos individuais A ética e as normas morais
que guia a Resolução n o 196/96, mas
defende a necessidade de compatibilizar Partindo, então, da primeira indagação
tais interesses aos societários de incentivar levantada – que sistema ético fundamenta
o desenvolvimento científico e tecnológico a resolução que serviu de ponto de partida
visando ao bem-estar coletivo. para todo esse debate? – é preciso lembrar
que a Resolução CNS no 196/96 inicia, no
Esse contexto de incômodos e inquietações seu preâmbulo, evocando os documentos
incentiva a elaboração de indagações como: internacionais e nacionais que fundamentaram
3 No presente
texto, designa-se que sistema ético fundamenta a resolução a sua elaboração. No preâmbulo da resolução,
de princípios éticos
que serviu de ponto de partida para todo esse estão também explícitos quais seriam os
os valores culturais
que funcionam debate? Que incômodos dos pesquisadores/ princípios éticos que lhe servem de norte, no
como guia na
psicólogos têm sustentado tal debate? Que seguinte trecho:
vida das pessoas
e da sociedade, querem os psicólogos/pesquisadores de suas
orientando as Essa Resolução incorpora, sob a ótica
atividades? São contrários a quaisquer éticas? do indivíduo e das coletividades, os
escolhas, decisões
e condutas bem São contra uma ética específica? Reagem a quatro referenciais básicos da bioética:
como discernindo quaisquer controles por parte da sociedade? autonomia, não maleficência, beneficência
prioridades e justiça, entre outros, e visa a assegurar
axiológicas que Estão contra as normas? Estão simplesmente
os direitos e deveres que dizem respeito
definem a vida reagindo ao novo? à comunidade científica, aos sujeitos da
que se quer viver
(La Taille, 2006; pesquisa e ao Estado (Resolução CNS no
Schmidt, 2008b; 196/96, Preâmbulo)
Schwartz, 2005).
Ficam assim explícitos alguns princípios nas suas relações cotidianas. Portanto, além
éticos. Assinala-se aqui, entretanto, que a de autônomos para decidir se participam
expressão entre outros pode ser interpretada ou não, os participantes precisam sentir-se
como indicador de que a referida resolução seguros para exercer sua autenticidade.
está partindo do pressuposto de que não é O compromisso com os princípios da
necessário deixar claro o sistema completo não maleficência, da beneficência e da
de princípios éticos norteadores. Em parte, justiça constitui um norteador importante
tal opção é aceitável, considerando que o para evitar as atrocidades praticadas na
objetivo da resolução é preservar os direitos contemporaneidade contra as pessoas em
individuais dos sujeitos participantes de nome da ciência e do progresso, atrocidades
pesquisa, e não a atividade de pesquisa que estão registradas na história da ciência
como um todo. De qualquer forma, compete e às quais aqueles que se ocupam de temas
indagar: seriam esses quatro princípios referentes à ética estão sempre voltando
éticos mencionados para os psicólogos/ (Menegon, 2006; Monteiro, 2007; Padilha,
Esclarece-se pesquisadores fundamentais? Para se ter Ramos, Borenstein, & Martins, 2005), o
que o ponto
de partida das certeza disso, antes seria preciso elucidar o que nos dispensa de fazer o mesmo aqui. O
reflexões é a que seria uma ética. Tal discussão ultrapassa, princípio da autonomia do participante, por
definição de entretanto, o escopo deste texto. Esclarece- sua vez, tenta evitar que ele seja submetido
La Taille, que
afirma que os se que o ponto de partida das reflexões é a atrocidades, violências, abusos e a outras
princípios éticos a definição de La Taille, que afirma que práticas, admitindo-se que o relacionamento
devem permitir os princípios éticos devem permitir que as com o pesquisador seja também uma relação
que as pessoas
respondam à pessoas respondam à pergunta: “que vida de poder, na qual eventualmente o participante
pergunta: “que eu quero viver?” (2006, p. 36). A ética define possa ser coagido a submeter-se a tais atos.
vida eu quero o que seja uma vida boa; permite distinguir Esses princípios se relacionam a uma série de
viver?” (2006, p.
36). o bem e o mal. Aplicando-se essa definição outros princípios (valores éticos) que, para
à atividade de pesquisa, uma ética em os psicólogos/pesquisadores, são igualmente
pesquisa deveria consistir em um conjunto de importantes, alguns deles em decorrência
princípios de valor que permitisse responder: do próprio objeto de pesquisa da Psicologia,
que pesquisa se quer realizar? Deveria que pode ser definido sinteticamente como
permitir identificar o que é uma boa pesquisa. os aspectos psicológicos da vida das pessoas.
Dizer, então, que a pesquisa deve assegurar Os psicólogos também acreditam que, para
aos participantes (sujeitos de pesquisa) garantir os princípios já citados, é preciso
autonomia, não maleficência, beneficência ter em vista princípios como o compromisso
e justiça está em conformidade com o que com a qualidade do que fazem, com o
se concebe que uma pesquisa deva ser ou acolhimento dos outros (em seus sentimentos,
deva representar? A resposta pode ser que afetos e cognições), etc. Para Schmidt, na
seguramente estão em conformidade. Para Psicologia, “a autorreflexão e o autêntico
a maioria dos psicólogos/pesquisadores, respeito pela alteridade formam como que
o acesso ao próprio objeto de pesquisa um território no qual a pesquisa se instala e
não é nada simples, e, por isso, a relação acontece” (2008a, p. 48). Portanto, para a
empática com os participantes é uma questão autora, os princípios éticos não são aspectos
simultaneamente de valor e de técnica. Para a serem garantidos pelos procedimentos
estabelecer tal relação, é necessário valorizar burocráticos dos CEPs ou pelo uso do TCLE,
não só os princípios já citados mas também a mas elementos intrínsecos ao processo de
importância de os participantes se sentirem desenvolvimento das pesquisas em ciências
bem, livres para opinar, além de sentirem que humanas, principalmente daquelas que
a relação com o pesquisador não os ameaça adotam metodologias que pressupõem maior
os princípios éticos que estão por trás da generalizando sua aplicação ao conjunto total
norma moral e cumprir a moralidade porque de pesquisa com os seres humanos?
se adotou como seus os princípios éticos
de sua sustentação (La Taille, 2006; Rios, Seguindo na justificativa, o autor desenvolve
2006). Pode-se esperar que o pesquisador sua argumentação exemplificando com
sem uma consciência ética (que valorize sua uma pesquisa sobre malária com moradores
própria autonomia) seja capaz de proteger a de comunidades ribeirinhas como cobaias
autonomia do outro, a autonomia do sujeito humanas no Estado do Amapá, mas o fato
participante da pesquisa? A norma moral é que deixa novamente a dúvida sobre
sobre a pesquisa que envolve seres humanos qual o âmbito de aplicação das normas.
que não explicita a ética que a fundamenta Tanto a definição da pesquisa quanto a
norteará os CEPs adequadamente? justificativa do PL levam a questionar se
não há uma sobregeneralização, quando
Deve, entretanto, ficar claro, de antemão, se referem à pesquisa com seres humanos.
que as polêmicas que se desenvolvem e O objeto não seria apenas as pesquisas que
persistem no meio acadêmico, motivadas abrangem aspectos biológicos, com método
pela resolução e pelo projeto de lei citados, experimental? Tal restrição de alcance não
não duvidam centralmente da necessidade seria estranha, considerando de qual órgão
de uma ética, nem partem necessariamente (o CNS) partiu a iniciativa de criar normas
de uma divergência ética, mas focalizam- morais para o desenvolvimento de pesquisas.
se, em realidade, sobre que conjunto de Voltando ao texto da Resolução no 196/96,
normas morais seria coerente com o sistema observa-se que adiante esta descreve mais
ético predominantemente assumido pelos detidamente como devem ser as pesquisas
psicólogos/pesquisadores. com seres humanos. Parte de seu terceiro
item estabelece que:
A Resolução no 196/96, no segundo item
dedicado aos objetivos e fundamentos, III.3 - A pesquisa em qualquer área do
conhecimento envolvendo seres humanos
apresenta conceitos básicos que nortearam deverá observar as seguintes exigências:
o âmbito de sua aplicação; assim, define a) ser adequada aos princípios científicos
pesquisa como a “classe de atividades que a justifiquem e com possibilidades
cujo objetivo é desenvolver ou contribuir concretas de responder a incertezas;
b) estar fundamentada na experimentação
para o conhecimento generalizável”. Ora, prévia realizada em laboratórios, animais
tal conceito, na atualidade, representa ou em outros fatos científicos; [...]
não só na Psicologia mas também nas
ciências humanas, apenas uma das visões A leitura desse trecho leva novamente a
epistemológicas de ciência, e não toda a perguntar: quando da elaboração de tal
atividade científica e de pesquisa (Guerriero, projeto, em que tipo de pesquisa se estava
2006; Guerriero & Dallari, 2008; Minayo, pensando? Pesquisas, por exemplo, sobre
2008). A definição, portanto, põe em dúvida valores, crenças e opiniões das pessoas, sobre
o próprio âmbito das normas. Destina-se condutas de amizades entre adolescentes
mesmo a todas as pesquisas com seres ou sobre o exercício da liderança em
humanos ou apenas a uma modalidade de
instituições estariam contempladas aí?
pesquisa com seres humanos? Recorrendo-
Pesquisas com esses temas poderiam partir de
se, então, à justificativa do PL em trâmite,
experimentação prévia com animais?
constata-se que o seu autor desenvolve
Ainda sobre o âmbito de aplicação das
seus argumentos dirigindo-os à pesquisa
normas, a citada resolução, no item VIII.5,
biomédica. Por que, então, elabora o PL
aquela categoria ocupacional ter uma mesmo tempo, técnica. O TCLE vem, nesses
história em que, a despeito da estabilidade casos, então, funcionar como um impeditivo
legal do emprego, colegas passaram pelo ético e técnico. Falta, certamente, em tais
constrangimento da demissão e demoraram situações, uma reflexão mais ética e menos
a recuperar o emprego, tendo que moral sobre o papel do TCLE.
enfrentar desgastante processo judicial.
Aquele CEP, provavelmente, não atentou Retomando o que já se comentou, é bom
suficientemente para as peculiaridades das lembrar que, nos termos do PL em trâmite,
relações de trabalho e exigiu o TCLE. A as ações que estejam em desacordo com
pesquisa foi realizada sem a aprovação do o protocolo ou com o TCLE aprovado nos
CEP, mas os seus resultados nunca foram CEPs serão consideradas crimes e passíveis de
encaminhados a qualquer revista científica. aplicação de pena de detenção. Assim, o PL,
Foi publicado exclusivamente na forma de se aprovado como lei, promoverá a aplicação
livro (Borges & Barbosa, 2006); o papel de uma moralidade que se cindiu da ética que
social transformador da pesquisa, porém, o sustenta, e levará a uma aplicação do TCLE
é reconhecido, pois, diante dos resultados, porque é crime não aplicá-lo, mas não porque
a negociação trabalhista entre empresa e o TCLE proteja a autonomia do sujeito. Em
sindicato conduziu a mudança concreta nas outras palavras, abandona-se a finalidade
condições de trabalho. Para as autoras, esse do bem e preserva-se o procedimento, cujo
aspecto traduz melhor um compromisso sentido era construir o caminho que levava a
ético do que a formalidade de um TCLE. Tal aquela finalidade.
pesquisa, entretanto, não poderia ter sido
realizada se o que estivesse vigorando não Além dos desdobramentos dessa contradição,
fosse uma Resolução do CNS, mas uma lei já expostos pelos exemplos utilizados, há
federal. outros referentes ao que é previsto para o
conteúdo do TCLE. A Resolução no 196/96
No capítulo do método de uma tese sobre discrimina minuciosamente o que deve ser
violência no trabalho como estratégia de especificado no TCLE. No seu item IV.1,
gestão, sua autora relata que a amostra não letra h, exige que se informe “as formas de
foi maior em decorrência da necessidade de ressarcimento das despesas decorrentes da
o participante assinar o TCLE (Amazarray, participação na pesquisa”. Há de se considerar
2010). O caso dessa tese não é isolado. A que, em pesquisas em que a participação
mesma situação se repete em quase todas as dos sujeitos consiste no preenchimento de
pesquisas em que o emprego é o contexto ou questionário ou em conceder entrevista,
o objeto de estudo. Apenas não cabe aqui registrar tal conteúdo no TCLE passa a ser
sair listando numerosos exemplos. mais uma formalidade, que pode contribuir
inclusive para a prolixidade do documento e
Em casos como esses, o psicólogo/pesquisador para dificultar a compreensão do participante
precisa contar com a adesão à pesquisa do em relação aos aspectos efetivamente centrais
participante de forma autônoma, autêntica da pesquisa. Ora, se a norma estabelece
e da maneira mais espontânea possível, a obrigatoriedade de ressarcimento de
tanto pelo compromisso com tais princípios despesas do participante e a indenização
éticos quanto pelo fato de a ausência de danos, isso ocorrerá independentemente
dessas atitudes dos participantes fragilizar de estar escrito no TCLE; além disso, é
a consistência dos resultados. Por isso, a redundante em relação ao Código Civil
proteção do participante por meio da não brasileiro, segundo o qual os cidadãos têm tais
identificação é uma necessidade ética e, ao obrigações de indenização e de ressarcimento
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