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SIMPÓSIOS

Marilda Almeida Marfan


Organizadora

Vo l u m e 1

Brasília
2002
PRESIDENTES DO CONGRESSO
IARA GLÓRIA AREIAS PRADO
Secretária de Educação Fundamental
MARIA AUXILIADORA ALBERGARIA
Chefe de Gabinete

COMISSÃO ORGANIZADORA
Coordenadora: Rosangela Maria Siqueira Barreto
Renata Costa Cabral
Fábio Passarinho de Gusmão
Lívia Coelho Paes Barreto
Sueli Teixeira Mello

COMISSÃO CIENTÍFICA
Coordenadora: Marilda Almeida Marfan
Ana Rosa Abreu
Cleyde de Alencar Tormena
Jean Paraizo Alves
Leda Maria Seffrin
Lucila Pinsard Vianna
Nabiha Gebrim de Souza
Stella Maris Lagos Oliveira

Edição: Elzira Arantes


Projeto Gráfico: Alex Furini
Editoração: José Rodolfo de Seixas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação: formação de professores (1. : 2001 : Brasília)


Simpósios [do] Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação : formação de professores. /
Marilda Almeida Marfan (Organizadora). __ Brasília : MEC, SEF, 2002.
384 p. : il. ; v.1

1. Formação de Professores. 2. Qualidade da Educação.


3. Educação Básica. I. Título. II. Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental.

CDU 371.13

Patrocínio: PETROBRAS
Apoio: Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 5
Iara Glória Areias Prado

SIMPÓSIO 1 7
EDUCAÇÃO PARA A MUDANÇA
Andy Hargreaves – Canadá
Álvaro Marchesi – Espanha

SIMPÓSIO 2 25
UMA ESCOLA REFLEXIVA
Juan Casassus – Chile
José Tavares – Portugal

SIMPÓSIO 3 43
DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA LEITORA E ESCRITORA DOS PROFESSORES
Ângela B. Kleiman – Unicamp/SP
Beatriz Cardoso – Cedac/SP
Euzi Rodrigues Moraes – Ried/ES

PALESTRA 55
MEDIANDO A LEITURA: RUMO À AUTONOMIA DO LEITOR
Tânia Mariza K. Rösing – Universidade de Passo Fundo/RS

SIMPÓSIO 4 59
METODOLOGIA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES ENFOCANDO O TRABALHO DE GRUPO
Abílio Amiguinho – Portugal
Maria Eliana Matos de F. Lima – UFPE/PE
Ana Claudia Rocha – CEEV/SP

SIMPÓSIO 5 73
TRANSVERSALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE: DIFICULDADES, AVANÇOS E POSSIBILIDADES
Ralph Levinson – Inglaterra

SIMPÓSIO 6 81
O LIVRO DIDÁTICO E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Ângela Paiva Dionísio – UFPE/PE
Kazumi Munakata – PUC/SP
Márcia de Paula Gregório Razzini – Unicamp/SP

SIMPÓSIO 7 103
O DESENVOLVIMENTO DA EJA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA AMÉRICA LATINA
José Rivero – Unesco/Peru
Maria Dulce Borges – Unesco/Brasil
Graciela Messina – Unesco/Chile

SIMPÓSIO 8 123
O FUNDEF E A VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO
Ulysses Cidade Semeghini – Fundef/MEC
Oswaldo José Fernandes – Jundiaí/SP

SIMPÓSIO 9 129
DESEMPENHO DO PROFESSOR E SUCESSO ESCOLAR DO ALUNO
Charles Hadji – França
Maria Helena Guimarães de Castro – Inep/MEC

SIMPÓSIO 10 151
ARTICULAÇÃO ENTRE AS FORMAÇÕES INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORES
Rui Canário – Portugal
Célia Maria Carolino Pires – PUC/SP
Charles Hadji – França

SIMPÓSIO 11 175
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM, CURRÍCULO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Andy Hargreaves – Canadá
Iza Locatelli – Inep/MEC

SIMPÓSIO 12 187
FORMAÇÃO CONTINUADA DO PROFESSOR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Silvia Pereira de Carvalho – Instituto Avisa Lá/SP
Ana Paula Soares da Silva – USP/Ribeirão Preto
Aricélia Ribeiro do Nascimento – SEF/MEC
Rosaura de Magalhães Pereira – SME/Belo Horizonte/MG
SIMPÓSIO 13 209
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS VINCULADA AO TRABALHO
Enrique Pieck – México

SIMPÓSIO 14 217
DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM NÍVEL MÉDIO E SUPERIOR
Edla de Araújo Lira Soares – CNE
Sylvia Figueiredo Gouvêa – CNE

SIMPÓSIO 15 223
ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Telma Weisz – PROFA/MEC
Ana Teberosky – Espanha
José Rivero – Unesco/Peru

SIMPÓSIO 16 247
PROJETO PEDAGÓGICO: POR QUÊ, QUANDO E COMO
Márcia Cristina da Silva – Fundação Vale do Rio Doce/Cedac

SIMPÓSIO 17 255
LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO
Isabel Cristina Alves da Silva Frade – Ceale/UFMG
Priscila Monteiro – Fundação Abrinq/SP

SIMPÓSIO 18 267
LETRAMENTO
Vera Masagão Ribeiro – Ação Educativa/SP
Rosaura Soligo – PROFA/MEC

SIMPÓSIO 19 281
ESCOLHA E USO DO LIVRO DIDÁTICO – IMPLICAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO PROFESSOR
Lucília Helena do Carmo Garcéz – UnB/DF
Marildes Marinho – UFMG/MG
Lívia Suassuna – UFPE/PE

SIMPÓSIO 20 299
POR UMA PROPOSTA CURRICULAR PARA O 2ª SEGMENTO NA EJA
Célia Maria Carolino Pires – PUC/SP
Maria Cecília Condeixa – Especialista em Ciências Naturais
Maria José M. de Nóbrega – Especialista em Língua Portuguesa
Paulo Eduardo Dias de Mello – Especialista em História e Geografia

SIMPÓSIO 21 307
A EJA COMO DIREITO: DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS E PROPOSTA POLÍTICO-PEDAGÓGICA
Carlos Roberto Jamil Cury – CNE/PUC/MG
Guilherme Costa – Seduc/MT
Leda Maria Seffrin – SEF/MEC

SIMPÓSIO 22 317
ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Ângela B. Kleiman – Unicamp/SP
Maurilane de Souza Biccas e Cláudia Lemos Vóvio – Ação Educativa/SP

SIMPÓSIO 23 327
CONCEPÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS: MODELO ATUAL E NOVAS PERSPECTIVAS
Jorge Megid Neto – Unicamp/SP
Luiz Percival Leme Brito – Unicamp/SP
Luiz Roberto Dante – Unesp/SP

SIMPÓSIO 24 341
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Álvaro Marchesi – Espanha
Carlos Roberto Jamil Cury – PUC/MG – CNE
Soraia Napoleão Freitas – UFSM/RS

SIMPÓSIO 25 355
ORGANIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE ENSINO E FORMAÇÃO DOCENTE
João Barroso – Portugal
Jean Hebrard – França
Miriam Schlickmann – SEE/Consed/SC

SIMPÓSIO 26 379
FORMAÇÃO DE PROFESSORES E INCLUSÃO DIGITAL
Cláudio Francisco de Souza Salles – Seed/MEC
Luis Huerta – Chile
APRESENTAÇÃO

O Primeiro Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação – Formação


de Professores, promovido pela Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério da Educação (SEF/MEC), foi realizado em Brasília no período
de 15 a 19 de outubro de 2001.
O Congresso tratou, em seus simpósios, palestras, painéis, oficinas e
atividades paralelas, de uma das principais variáveis que interferem na
qualidade do ensino e da aprendizagem: a formação continuada dos pro-
fessores. Buscou propiciar aos educadores e profissionais da área, tanto
nas oito séries do Ensino Fundamental, quanto na Educação Infantil, na
Educação de Jovens e Adultos, na Educação Especial, na Educação Indí-
gena e na Educação Ambiental, informações e conhecimentos relevantes
para subsidiá-los em sua prática. Promoveu um balanço geral dos princi-
pais avanços alcançados nos últimos anos, com a implantação de políti-
cas públicas voltadas para a melhoria da qualidade do ensino, e enfatizou,
de forma especial, os programas de desenvolvimento profissional conti-
nuado e de formação de professores alfabetizadores, que foram debati-
dos sob diferentes óticas e pontos de vista.
O Congresso envolveu cerca de 3 mil participantes, incluindo, além das
representações municipais, um significativo número de autoridades, es-
pecialistas nacionais e internacionais e representantes de organizações
não-governamentais, privilegiando, quantitativamente, os representantes
dos municípios que procuravam desenvolver em seus sistemas de ensino
as políticas de formação continuada propostas pelo MEC, a saber: o Pro-
grama de Desenvolvimento Profissional Continuado – “Parâmetros em Ação”
e o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – PROFA.
Ao promover a organização desta publicação, a SEF faz um resgate de
todos os textos apresentados e entregues, em tempo hábil, pelos especia-
listas convidados e procura colaborar com aqueles profissionais da área
que valorizaram o evento e estão em busca de sua memória, ou que, por
diferentes razões, se interessam por reflexões e temas relativos à quali-
dade da educação e à formação dos professores, tais como: educação
para a mudança, transversalidade e interdisciplinaridade, educação
escolar indígena, livro didático, inclusão digital, alfabetização, organi-
zação dos sistemas de ensino, educação inclusiva, escola reflexiva, en-
fim, competência profissional, o desempenho do professor e o sucesso
escolar do aluno, entre outros.
Como o público-alvo é muito diversificado, o volume de textos apre-
sentados muito grande, e como os principais eixos temáticos podem
interessar, de forma mais direta, a diferentes segmentos do Ensino Fun-
damental, os resultados do Primeiro Congresso Brasileiro de Qualidade
na Educação – Formação de Professores foram organizados em quatro
volumes: os volumes 1 e 2 referem-se a temas mais gerais, relativos à
Educação Fundamental como um todo, e incluem temas específicos
referentes à Educação Infantil, à Educação de Jovens e Adultos, à Políti-
ca do Livro Didático e à Educação Especial; o volume 3 trata da Educa-
ção Ambiental; e o volume 4 é dedicado à Educação Escolar Indígena.
Embora incompleta, pela ausência de alguns textos, e observando
que em alguns casos só apresenta os resumos dos participantes, a pre-
sente edição reflete a importante contribuição e a competência de nos-
sos especialistas, tanto pelas palestras proferidas nos simpósios, quanto
pelos relatos de experiências contidos nos painéis, e incorpora 25 tex-
tos apresentados por renomados especialistas internacionais.
Ressalta-se ainda que os textos contidos nesta publicação são de
inteira responsabilidade de seus autores e retratam reflexões e pontos
de vista de cada especialista envolvido.
Com a presente publicação, a SEF/MEC espera que os resultados
do Congresso de Brasília possam ser amplamente divulgados e cheguem
ao alcance dos principais interessados: professores do Ensino Funda-
mental, diretores de escolas, institutos de formação de mestres, pes-
quisadores, universidades, enfim, todos aqueles ligados à produção, à
reprodução, ao consumo e à transmissão do conhecimento, paladinos
da construção de uma escola de qualidade para todos.

Iara Glória Areias Prado


Secretária de Educação Fundamental
SIMPÓSIO 1

EDUCAÇÃO PARA A MUDANÇA


Andy Hargreaves

Álvaro Marchesi

7
A Nova Ortodoxia




da Mudança Educacional






Andy Hargreaves



International Centre for Educational Change/Canadá





Resumo






O presente documento descreve o que chamo finida com excesso de detalhes, a nova ortodoxia


de Nova Ortodoxia da Mudança Educacional, com pode tornar a aprendizagem demasiadamente ace-



sua ênfase sobre padrões elevados de aprendiza- lerada, enfatizar apenas seus aspectos mais clíni-


gem, currículo centralizado, avaliações alinhadas

cos e destruir o discernimento profissional dos pro-

e obrigatoriedade de punições e recompensas. fessores, que são responsáveis por sua implemen-

Em todo o mundo, o efeito dessa nova ortodo- tação. Entretanto, quando definida de forma mais

xia é arrebatador, mas o caráter positivo ou negati-


aberta, meus próprios estudos com professores de


vo desse efeito depende de como ela é integrada e 7ª e 8ª séries que se destacaram entre os demais

implementada. Em seus piores aspectos, quando mostram que ela lhes pode aprimorar o senso de

imposta de forma excessivamente rigorosa ou de- profissionalismo.








A Nova Ortodoxia da mia, ou na sociedade do conhecimento



(Schlechty, 1990).

Mudança Educacional

Currículo centralizado, que elimine a situa-



Uma nova ortodoxia oficial da reforma edu- ção caótica apresentada pelas diferentes

opções de curso no Ensino Médio, assegure


cativa está sendo rapidamente implementada


em muitas partes do mundo. Isso é particular- a existência de um compromisso comum e



mente verdadeiro em países anglo-saxões, mas consistente, bem como a abrangência ne-

cessária do que os alunos deveriam saber e


alguns elementos dessa ortodoxia estão sendo


sejam capazes de fazer, e atinja os altos pa-


crescentemente levados também para muitos


drões necessários para a sociedade de hoje.


lugares menos desenvolvidos do mundo, por

meio de órgãos de financiamento internacio- Alfabetização e rudimentos numéricos e, em


menor medida, a ciência, como principais al-


nal, como o Banco Mundial, e pela distribui-


vos para as reformas e para que se alcancem


ção global de estratégias de política. Os princi-


pais componentes dessa nova ortodoxia são os padrões de aprendizagem significativamente


mais elevados (Hill e Crévola, 1999).


seguintes:

Padrões elevados. prescrição de padrões Indicadores e rubricas do desempenho do


elevados de qualidade na aprendizagem aluno e planejamento curricular que possi-



que todos os alunos (exceto aqueles com as bilitem aos professores, e a outros, verificar

mais agudas disfunções mentais) teriam de com clareza quando os padrões foram ou

alcançar (Tucker e Codding, 1998; 1999). não atingidos.



Avaliações associadas, que devem estar ri-


Aprendizagem mais aprofundada, que vá


além da mera memorização do conteúdo, gorosamente vinculadas ao currículo prescri-



com ênfase na compreensão conceitual, na to, aos padrões de aprendizagem e aos indi-

resolução de problemas e na aplicação de cadores, assegurando que os professores te-



conhecimentos que serão essenciais para nham em mira o objetivo de alcançar pa-

uma participação exitosa na nova econo- drões elevados de aprendizagem para todos.

8
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança

Prestação de contas conseqüencial, na qual


que ameaçam solapar seus objetivos educacio-


o desempenho global da escola, no que se nais mais positivos.



refira à elevação dos padrões, esteja estrei-


tamente conectado com os processos de


Questionando a ortodoxia


credenciamento, de inspeção e de vincula-


ção do financiamento aos níveis de suces- É difícil questionar o movimento concerta-



so (e fracasso). do em prol de padrões mais elevados. Quem



Essa nova ortodoxia consiste em certas poderia ser contrário a uma reforma baseada 9


nos padrões? Posicionar-se contra os padrões


mudanças fundamentais e louváveis em rela-


parece equivaler a ser a favor do pecado!


ção a detalhes mais específicos da aprendiza-


gem em sala de aula e à características mais Porém existem diferenças entre apoiar o



gerais de configuração da administração edu- princípio de padrões educacionais elevados e


inclusivos e os programas particulares de refor-


cacional. Ela valoriza altos padrões para quase


ma nos quais esses princípios se encontram


todos os alunos e não apenas para uns poucos


e conduz os professores e suas escolas a com- freqüentemente incorporados. Vejamos alguns



binar excelência com eqüidade no decorrer de dos problemas.



seu trabalho com alunos dos mais variados
backgrounds. No currículo, desloca a priorida- ○

○ O currículo apressado
de da conveniência e das convenções acerca Nos seus escritos acerca da família pós-mo-

daquilo que os professores ensinam para a qua- derna, David Elkind (1989; 1997) descreve

lidade e o caráter daquilo que se espera que os como, na sociedade contemporânea, as crian-

alunos aprendam. Veicula os tipos de aprendi- ças estão sendo crescentemente empurradas a

zagem aplicada e endereçada para a resolução fazer mais coisas, mais cedo e mais rapidamen-

de problemas, que são mais apropriados para te – como namorar mais cedo, despertar para o

sexo mais cedo, aprender muitas coisas antes,


uma sociedade eletrônica e informacional do


que para uma sociedade mecânica e industrial. aderir a mais e mais clubes, equipes e ativida-

Ao tornar muitas avaliações baseadas mais no des mais organizados e, em geral, experimen-

desempenho do que no lápis-e-papel, tal orto- tar uma infância mais apressada, mais acelera-

da e com uma agenda cheia de compromissos.


doxia tenta conseguir que a avaliação seja usa-


da como a cauda que irá “balançar o cachorro”, Antecipar conteúdos curriculares para séries

sendo que o cachorro seria, no caso, o novo cada vez mais iniciais, ele argumenta, é parte

currículo. Por último, mas não menos impor- desse processo e dissocia os jovens de aspectos

importantes de sua infância – perambular de


tante, um currículo de âmbito nacional ou es-


tadual tenta assegurar que, independentemen- forma inocente, brincar sozinhos e com outros

te da escola, de sua localização, de seus profes- em ambientes não-estruturados, ir atrás de



sores ou de sua direção, todos os alunos serão aprendizagens levados por seus próprios inte-

resses e curiosidades, e assim sucessivamente


conduzidos a satisfazer os mesmos padrões ele-


vados – e que ninguém “irá cair pelas falhas do (Elkind, 1997).



terreno”. Escrevendo na Inglaterra, após mais de uma



Em princípio, esses desenvolvimentos edu- década de reforma baseada em padrões, Dadds


(2000) critica o que chama de “currículo apres-


cativos prometem um progresso significativo


na reforma educacional, no que diz respeito à sado”, no qual a abrangência vem a ser mais im-

melhoria da qualidade e dos padrões de apren- portante do que a aprendizagem. Esse currícu-

dizagem e de oportunidades para todos os ti- lo, ela salienta, leva os professores a empurrar as

crianças por meio do material sem que elas o


pos de alunos. Entretanto, a nova ortodoxia


educativa falha em relação a algumas dimen- compreendam e reduz o período vital do “tem-

sões importantes da aprendizagem e do ensi- po de espera” que os bons professores concedem



no: dentro do seu pacote de reformas, acarreta às crianças antes que estas respondam às per-

guntas aqueles lhes fazem (Guttierrez, 2000).


outros componentes de maior preocupação



Esse currículo elimina qualquer espaço para a eram uma réplica quase exata do currículo para



voz do aluno no processo de aprendizagem as escolas secundárias que foi desenhado em



(Rudduck, Day e Wallace, 1997) e inibe o desen- 1907, quando a intenção, para a política educa-



volvimento de habilidades duradouras de apren- cional, tinha sido a de definir um currículo que


dizagem que, justamente, essa reforma baseada qualificasse para a universidade e que excluís-



em padrões elevados pretende promover. se disciplinas técnicas, mais apropriadas e re-



levantes para estudantes da classe operária


(Goodson, 1988).


O currículo convencional


Nos Estados Unidos, a especificação dos


e clínico


novos padrões de aprendizagem tem sido fei-


O currículo mais comum baseado em pa-


ta em grande medida sob a alçada das asso-


drões é, freqüentemente, na prática, um currí- ciações nacionais das disciplinas – revivendo



culo clínico e convencional. Trata-se de um cur- e perpetuando a sua influência sobre o currí-


rículo no qual se concede a maior importância

culo escolar e sobre aquilo que conta como
à alfabetização, aos rudimentos numéricos e à ○


conhecimento dentro dele. Conteúdos abar-
ciência. Com efeito, em trabalhos-chaves sobre rotados e um ritmo acelerado de movimento

esse assunto, Tucker e Codding (1998, 1999) sa- por entre os diversos padrões deixam pouco

lientam que essas deveriam efetivamente ser as


espaço ou incentivo para que os professores


áreas básicas para a configuração de padrões.


possam interligar a aprendizagem com os in-


As artes e as ciências sociais, argumentam, de- teresses dos alunos (Rudduck, 1997), para

veriam ser as áreas nas quais os aprendizados contextualizá-la e torná-la relevante em rela-

fundamentais dos alunos deveriam aplicar-se.


ção a suas diversas vidas ( Tharp, Dalton e


Isso, obviamente, designa de forma arbitrária Yamauchi, 1994), ou para criar programas de

as habilidades nas ciências como fundamentais estudos integrados ou interdisciplinares que



e aquelas das artes como sendo “aplicadas”, sen- tornem possível essa profunda contextualiza-

do que o contrário – no que se refere, talvez, às


ção. Porém Tucker e Codding (1999: 31) che-


habilidades artísticas relativas à inventividade gam a descartar tal currículo interdisciplinar,



e à criatividade – seria igualmente plausível. Hill de um só golpe, com citações debochadas.



e Crévola (1999) também concedem primazia à Mais ainda, a imensa maior ia dos focos

alfabetização no currículo do ensino primário


cognitivos e clínicos da maior parte dos con-


e defendem que outras disciplinas do “montão” juntos de padrões de aprendizagem empurra



(tais como artes) sejam removidas ou reduzi- as preocupações com a aprendizagem emo-

das no currículo, para abrir espaço para a tal cional e com o desenvolvimento pessoal para

alfabetização.

a periferia das preocupações dos professores


Na Inglaterra e no País de Gales, essas redu- em sala de aula. Mas são justamente esses ti-

ções, que se tornaram comuns, precederam a pos de experiência curricular, emocionalmen-



introdução do Currículo Nacional em 1988. te engajadores para os alunos e inseridos nos


Num trabalho anterior, documentamos o quan-


contextos de suas vidas, que serão especial-


to as desdenhadas matérias do “montão”, que mente valiosos para a melhoria da aprendi-



abriram espaço para o regime padronizado das zagem de alunos oriundos de minorias e de

disciplinas do Currículo Nacional – matérias setores desfavorecidos. Essas experiências de


como Educação Política, Estudos para a Paz,


aprendizagem e de vida dos alunos dentro de


Educação Pessoal e Social e, ultimamente, Ar- suas famílias, culturas e comunidades defini-

tes –, eram de natureza emotiva, social ou críti- tivamente não são padronizadas na sua natu-

ca, o verdadeiro âmago da educação escolar reza (Cummins, 1998; Nieto, 1998). O grande

democrática, que desenvolve mentes críticas e


progresso que se pode alcançar baseando um


expressivas (Hargreaves, Earl e Ryan, 1996). Pe- currículo de ciências, para crianças de agri-

culiarmente, e causando perplexidade, as dis- cultores imigrantes, em torno da sua própria


ciplinas básicas desse novo Currículo Nacional


base de conhecimentos culturais na agricul-


10
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança

tura, por exemplo, não encontra nenhum es- operária, após mais de uma década de um sis-



paço dentro de um currículo demasiadamen- tema excessivamente padronizado.



te padronizado (Stoddart, 1999). Currículos



excessivamente padronizados não se inserem Eles nos dizem para ir e para nos ocuparmos


bem em sociedades culturalmente diversifi- ali, portanto nós todos vamos fervilhando ali e



cadas. Eles não admitem que, especialmente nos ocupamos. Depois eles mudam de opinião



nesses contextos, a aprendizagem é uma prá- e dizem: “Não, é para lá!”. Assim vamos todos


tica social e não apenas uma prática intelec- fervilhando para lá e nos mantemos ocupados 11



de outra maneira. E aí, é “por aqui” e, depois,
tual (Lave e Wenger, 1991).


em algum outro lugar. E nós todos nos mante-


Em geral, abordagens muito densas en-


mos fervilhando, enquanto eles apontam para


fatizam em demasia aquilo que Sergiovanni


novas direções. De tempos em tempos, eles
(2000), citando Habermas (1975), chama de


vêm observar se nós estamos fervilhando cor-


“mundo-sistêmico” de conhecimento, cogni-


retamente.


ção, habilidades técnicas e sistemas. Sob um



ponto de vista comparativo, não se concede
Na Inglaterra e no País de Gales, mais de


muita importância ao “mundo-vital” da mo-


uma década de minuciosa prescrição cur-

ral, dos valores, da aprendizagem emocional


ricular tem feito muitos professores se senti-
e da experiência social. Na sociedade infor-
rem desqualificados profissionalmente (Nias,

macional de hoje, teremos piores democra-


1991), menos confiantes (Helsby, 1999), cini-

cias e economias mais fracas se não puder-


camente complacentes (Woods et al., 1997) e


mos educar os alunos tanto para o mundo-


estressados de forma crescente ( Troman e


vital artístico, crítico e sociocientífico quan-


Woods, 2000) – até chegar ao ponto, atualmen-

to para o mundo-sistêmico da alfabetização,


te vigente, de uma séria crise de contratação


dos rudimentos numéricos e das ciências na-


para o ensino (Suplemento Educacional do Ti-


turais!

mes, 31 de março de 2000), na qual os jovens


demonstram pouco entusiasmo em aderir à



Padronização e desprofissionalização profissão (Hargreaves e Evans, 1997).



Por mais bem fundamentados que os no- Algumas crises semelhantes afligem tam-

vos conjuntos de padrões de aprendizagem bém os Estados Unidos, especialmente em áre-



possam ser, os professores desanimam e per- as urbanas (Darling Hammond, 1997). Uma

dem eficácia se pressentirem que já não pos- imagem comum entre o grande público (e, tam-

suem voz no desenvolvimento de padrões, bém, na própria sala de aula) é a do ensino



bem como se esses padrões forem prescritos como uma atividade altamente estressante,

de forma tão hermética que não dêem espaço sobrecarregada e sujeita a crescente regulamen-

ao exercício de seu discernimento sobre como tação e controle externo, o que pouco ajuda. Ao

devem ser implementados e interpretados escrever acerca dos padrões, uma professora da

dentro de suas próprias salas de aula. Até ago- cidade de Los Angeles, Myranda Marsh (1999:

ra, contudo, uma evidência crescente aponta 192), faz um alerta incisivo aos seus pares aca-

para a existência de um profundo abismo en- dêmicos e aos formuladores de políticas ao res-

tre a confiança e, inclusive, a grandiosidade saltar que “se reformas de quaisquer índoles

com que os encarregados da política educacio- precisam ter sucesso, os professores precisam

nal prescrevem seus planos-mestres baseados acreditar que serão significativamente ouvidos

em padrões, por um lado, e a confusão e desi- nas decisões e que não se transformarão em

lusão dos professores encarregados de imple- bodes expiatórios por qualquer lacuna em se

mentá-los em sala de aula, por outro. atingir metas”.



Na Inglaterra, Marion Dodds (2000) regis- Os professores, Marsh salienta, ressen-


trou a percepção de uma professora sobre si tem-se de ser tachados de “opositores” sim-

mesma como nada mais do que uma abelha plesmente porque adotam atitudes realistica-


mente cautelosas acerca das reformas. “Opo- sobre a sociedade de redes, Castells (1998) for-



sição aos padrões”, ela diz, “não está funda- neceu dados para mostrar que o Estado da



mentada num desejo de evitar um espírito de Califórnia gasta mais com o sistema penitenci-



prestação de contas, mas sim num receio de ário do que com escolas. As escolas públicas,


ficar de fora da discussão acerca do que cons- em algumas áreas urbanas, como aquelas de Los



titui, de fato, o sucesso” (Marsh, 1999: 194). Angeles, foram quase totalmente abandonadas



Como complemento aos padrões, Marsh e pela população branca. Quando um de nós che-


gou a trabalhar recentemente com um grupo


outros (McLaughlin e Lieberman, 2000) pro-


põem um enfoque nos processos de consulta grande de diretores de escolas da área urbana



aos professores (especialmente em torno do de Los Angeles, dois terços deles disseram, com



significado de dados sobre o desempenho) base na sua experiência em super-regulamen-


bem como a construção de comunidades de tação e apoio escasso, que, se pudessem esco-



prática profissional nas quais os professores lher, em nova oportunidade não voltariam a ser



experimentariam, em termos de tempo, mo- diretores.

tivação e urgência baseada em padrões, tra- ○


Os contextos crescentemente ampliados
balhar sobre padrões e reformas conjunta- para as reformas baseadas em padrões são, na

mente. Isso pareceria ter maior atrativo. To- prática, aqueles de recursos e apoio decrescen-

davia, para que seja possível ligar os padrões tes para a educação pública, paralelamente ao

de aprendizagem aos tais padrões profissio- desenvolvimento de sistemas de quase-merca-


nais de colegialidade e de consulta no ensi- do de competição entre escolas, por alunos



no, os próprios padrões de aprendizagem pre- matriculados, por recursos, ou por ambos

cisam oferecer liberdade de ação suficiente ( Whitty et al., 1997). Na Nova Zelândia, por

exemplo, a evidência indica que, após anos de


para permitir a apreciação e o envolvimento


experiência com tais reformas, não houve di-


profissional. Mais ainda, é essencial providen-


ciar níveis suficientes de apoio e de financia- minuição nas diferenças de aprendizagem en-

mento para que a consulta dos professores e tre alunos de setores privilegiados e aqueles

menos favorecidos (Wylie, 1997). Na Austrália,


a discussão colegiada se efetivem no perío-


extensos sistemas de apoio para escolas mais


do escolar. Se, de um lado, evidenciam-se re-


sultados promissores em iniciativas especiais pobres, incluindo assistência para as escolas



e programas-piloto que combinam reformas trabalharem com famílias e alunos que apresen-

tam múltiplos problemas, têm sido substituí-


baseadas em padrões com consultas aos pro-


dos por iniciativas de reforma especificamente


fessores, do outro, existem poucos sinais de


que níveis de apoio que sejam, ao mesmo direcionadas à melhoria da alfabetização, como

tempo, regulares e extensivos, direcionados se os padrões de desempenho não fossem afe-


tados por esses fatores contextuais de longo al-


para tais tipos de profissionalismo aprimo-


cance (Thomson, 1999).


rado, sejam iminentes no curto prazo em ou-


tros lugares. Enquanto isso, as propaladas reformas ba-



seadas em padrões do Estado norte-americano


de Kentucky foram, logo após um período de


Contextos contraditórios

sucesso, sufocadas por um excessivo controle



As reformas baseadas em padrões não têm central, redirecionadas por imperativos de com-

sido nem estão sendo implementadas em con- petição resultantes da aplicação de testes pa-

textos que sejam neutros. Assim, os níveis de dronizados e asfixiadas por surtos de controle

apoio financeiro com base na arrecadação de e de convergência políticos (Whitford e Jones,



impostos e naqueles direcionados para a edu- 2000).



cação pública, bem como os investimentos so- Na Inglaterra, o Suplemento Educacional


ciais em geral e em outros setores públicos, in- do Times relata regularmente taxas crescentes

felizmente, permanecem baixos em muitos pa- de exclusão e de interrupção dos estudos es-

íses (Hargreaves, 2000). Na sua brilhante trilogia colares (desproporcionalmente altas entre alu-

12
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança

nos oriundos das classes operárias e das mi- Além de padrões



norias culturais), enquanto as escolas mantêm


Como seria possível conciliar os anseios por


a luta para aumentar seus níveis de desempe-


reformas baseadas em padrões sem ficar preso


nho. Mais ainda, registra-se um aumento da


“alienação” entre os adolescentes, nos primei- aos seus freqüentes problemas práticos de ex-


cessiva padronização, escassos recursos, des-


ros anos de um sistema de ensino secundário


profissionalização e estreiteza curricular? Como


orientado por um currículo de densos conteú-


dos, fenômeno que se observa nos sistemas é que podemos ir além das dificuldades e re- 13



parcialmente sujeitos às regras de mercado dos trocessos dos programas que estabelecem pa-


drões e efetivar as virtudes dos melhores prin-


países anglo-saxões (Cumming, 1996). Nos


cípios da padronização?


nossos atuais projetos, estamos observando o


surgimento de evidências dessa natureza no Para responder a essas questões e ir além


dos padrões tal como eles estão sendo interpre-


contexto das reformas que estão impondo pa-


tados na atualidade, poderíamos aprender mui-


drões em Ontário, Canadá, junto com recur-


to ao analisar os esforços por reformas que em


sos reduzidos, pouco apoio para o desenvolvi-


mento profissional e menos tempo para que muitos lugares precederam imediatamente a


“debandada” em prol de padrões (Sergiovanni,

os professores trabalhem com os seus colegas

ou se encontrem com os estudantes fora dos




2000) e que ainda subsistem como importan-
tes iniciativas por mudança educacional em

períodos de aula.

outros lugares. Esses esforços alternativos por


reformas definem e interpretam os padrões de


Conclusão

uma maneira mais ampla como resultados; in-



As questões que devem ser formuladas a cluem e valorizam um espectro mais amplo do

respeito de reformas baseadas em padrões de currículo; defendem uma integração curricular


e não apenas uma especialização das discipli-


qualidade não são aquelas referentes aos seus


nas; e permitem um maior espaço para que os


princípios básicos, os quais são freqüentemente


admiráveis – focalizar um ensino que beneficie professores exerçam seus julgamentos e orien-

todos os alunos e ligar isso a indicadores claros tações profissionais. Retornar a este momento –

antes que os padrões fossem estreitados, retesa-


de progresso nos sistemas de avaliação e de


prestação de contas. As perguntas, de preferên- dos, transformados em algo mais específico e



cia, devem referir-se ao número e ao alcance prolífico e impostos com maior força – significa

desses padrões: o quão voltados são, ou não, recapitular os princípios dos padrões de uma

época e de um lugar onde os professores eram


para disciplinas utilitárias; se privilegiam alguns


tipos de aprendizagem sobre outros; e se, como capazes de se comprometer, entender e efetivar

resultado dessas influências, os padrões favo- esses padrões, bem como de aproveitá-los. Exa-

recem ou inibem as perspectivas em favor de minando esse momento essencial, esperamos


fazer ressurgir os debates não apenas sobre aqui-


uma aprendizagem profunda, compromissada


com os pobres, em particular com alunos de lo pelo que valia a pena lutar na educação, antes

setores pobres, desfavorecidos e pertencentes dos padrões específicos por matéria, mas, tam-

às minorias. As reformas baseadas em padrões bém, acerca daquilo pelo que ainda vale a pena

lutar, ao lado e além desses padrões.


também precisam ser questionadas quando es-


tão associadas a menos recursos e níveis de O tempo e o lugar que usamos para nossa pes-

apoio para a educação pública, aos sistemas de quisa é Ontário, Canadá, em meados dos anos

1990. Antes da eleição de um governo


política de semimercado que não proporcio-


ultraconservador, os esforços de reforma educa-


nam nenhuma evidência de diminuir as dife-


renças na aprendizagem e aos processos de des- cional de amplo alcance da 7ª à 9ª série coloca-

profissionalização que corroem os recursos vam ênfase em basear o currículo em torno de


resultados de aprendizagem comum definidos de


mais poderosos que temos nas escolas – os seus


forma ampla, incentivando ações em prol de uma


professores.

maior integração curricular, implementando ficando indicadores para alcançar os resul-



obrigatoriamente iniciativas tendentes a reverter tados planejados, desenvolvendo modifica-



processos de separação dos alunos de uma mes- ções adequadas para as necessidades indi-


viduais dos alunos, avaliando tanto o pro-


ma série em turmas mais homogêneas, de me-


lhor a pior, em função de seu nível de capacida- cesso quanto o produto da aprendizagem,


incentivando a auto-avaliação e o uso de


de, e desenvolvendo um conjunto de avaliações


avaliações freqüentes e variadas. Além dis-


baseadas no desempenho. Todas essas medidas


so, os professores eram responsáveis pela
buscavam criar um sistema educacional de alta


comunicação das mudanças na avaliação


qualidade, inclusivo, que permitisse reter e


aos pais de seus alunos.


engajar jovens adolescentes dos mais variados


Na época do estudo, as escolas em Ontário


backgrounds no processo educativo.


A nova política curricular incluía quatro vinham experimentando, historicamente, um



componentes estreitamente inter-relacionados: status elevado, já que havia tradicionalmente um


forte compromisso com a educação pública por

Resultados: a política curricular especifica-

va dez “resultados essenciais” muito am- ○

parte dos governos, dos contribuintes e dos pais
plos, organizados em quatro áreas progra- dos alunos. Durante anos, os professores tinham

máticas também amplas: Artes, Linguagem, sido bem educados e bem pagos. O grande pú-

Matemática/Ciência/Tecnologia, o Eu e a blico parecia estar contente com a educação que



Sociedade. Dentro de cada uma dessas áre- os seus filhos recebiam (Livingstone, 1999). A

as, especificavam-se resultados, tais como política curricular foi concebida de forma cen-

o conhecimento, as habilidades e os valo-


tralizada pelo Ministério da Educação, com uma


res que se esperava que os alunos tivessem ampla participação de educadores da província.

desenvolvido ao concluir a 3ª, a 6ª e a 9ª sé-


Essas diretrizes gerais eram enviadas às escolas


ries. Não havia diretrizes prescritas para o


e aos distritos para ser implementadas. Então,


ensino e a aprendizagem, nem recursos re-


os grandes distritos escolares escreviam docu-


queridos. Esperava-se que os professores

mentos de “segunda geração” que traduziam a


revisassem os resultados e planejassem ati-


política em diretrizes mais específicas, elabora-


vidades letivas que permitissem aos alunos


atingir os resultados. das para se ajustar aos distritos locais. Os pro-


fessores recebiam níveis variados de apoio e de



Currículo integrado: a política curricular


capacitação, dependendo dos recursos local-

promovia uma aprendizagem integrada, por


mente disponíveis para a capacitação em servi-


meio do agrupamento de matérias em qua-


ço ou para apoio de consultoria. A avaliação tor-


tro amplas áreas programáticas, e incenti-

nou-se competência exclusiva do professor em


vava explicitamente os professores a fazer


sala de aula. Não havia nenhum programa de


conexões empregando quatro abordagens


para a integração curricular – conteúdos avaliação no âmbito da província além de algu-



paralelos entre as matérias, conexões de mas avaliações amostrais realizadas para a revi-

são dos currículos.


conteúdos entre matérias similares, cone-


xões conceituais entre várias matérias e co-



nexões intercurriculares completas. A polí-


O estudo

tica curricular mapeava as possibilidades


amplas de integração, mas isso proporcio- O nosso estudo concentra-se em 29 profes-



nava pouco ou nenhum direcionamento ou sores que ensinavam em salas de aula da 7ª e



incentivo específico para que os professo- da 8ª séries no contexto da reforma curricular.


res superassem sua resistência à integração. Os professores foram escolhidos em quatro



Avaliação: o papel dos professores na ava- grandes distritos escolares (mais de 50 mil alu-

liação foi reforçado no currículo. Esperava- nos cada um) com a participação do The

se que avaliassem os progressos nos resul- Learning Consortium (Consórcio da Aprendiza-


tados, o que seria alcançado desenvolven- gem) – uma parceria para o desenvolvimento

do o currículo, planejando rubricas, identi- dos professores estabelecida entre The Ontario

14
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança

Institute for Studies in Education (Instituto de Obviamente, a nossa amostragem não é re-



Ontário para Estudos em Educação), a Univer- presentativa dos professores que lecionam na



sidade de Toronto e os quatro distritos. Todos 7ª e na 8ª séries. Os professores do estudo fo-



esses distritos eram urbanos e dois deles apre- ram identificados justamente porque eles de-


sentavam populações estudantis extremamen- monstravam ter um compromisso sério e per-



te multiculturais. O propósito do estudo foi exa- manente em implementar as mudanças nos



minar a compreensão que os professores desen- Transition Years (Anos de Transição). Assim sen-


volveram sobre as mudanças inseridas na nova do, o estudo oferece noções significativas sobre 15



política curricular; determinar como e até que as experiências de professores altamente com-



ponto foram capazes de integrar as mudanças prometidos. Entretanto, se a mudança cria di-



em suas práticas; identificar que condições, ficuldades para esses professores, ou para as


apoio e processos eram necessários para efeti- relações intrínsecas ao seu trabalho, é provável



var tal integração; e entender suas experiências que essas dificuldades sejam ainda maiores no



acerca das mudanças envolvidas. caso daqueles professores menos receptivos, ou



Os professores da nossa amostra tinham menos entusiasmados, com as mudanças aqui


sido identificados por administradores, nos descritas, ou até mesmo com a mudança edu-



seus distritos, como sendo aqueles que partici- cacional em geral.

pavam ativamente de esforços para incorporar O nosso propósito, portanto, é entender



as mudanças curriculares em suas práticas. So- como os professores orientados para a mudan-

licitou-se que, em cada uma das escolas de cada ça compreendem as requeridas e complexas

um dos distritos, dois professores permitissem mudanças educacionais, como é que as efeti-

que visitássemos suas salas de aula e os entre- vam ou realizam em suas turmas, o que os aju-

vistássemos a respeito de suas experiências no da e o que os atrapalha e o que o processo de



momento em que tentavam atender às diretri- mudança requer e demanda deles.



zes curriculares. À exceção de três, todos con- Tipicamente, enquanto os formuladores das

cordaram em participar do estudo. reformas agem como se a mudança fosse um as-


Os professores foram entrevistados, duran- sunto simples para os professores – uma ques-

te uma a duas horas, sobre suas interpretações tão de ingerir e cumprir como solicitado –, as

pessoais das políticas de integração curricular situações de mudança que os professores en-

em curso; os resultados comuns da aprendiza- frentam são extremamente complexas. Os pro-


gem e a reforma da avaliação; onde é que ti- fessores que estudamos não estavam apenas

nham adquirido tal interpretação; como é que tentando implementar inovações isoladas, uma

integravam essas mudanças nas suas práticas; de cada vez: estavam enfrentando mudanças

quais eram essas práticas; que êxitos e dificul- múltiplas e multifacetadas nas suas práticas de

dades encontraram durante o processo de im- integração curricular, nos resultados comuns da

plementação e em que medida recebiam apoio aprendizagem e em sistemas alternativos de



dos seus colegas e da direção do estabelecimen- avaliação e de apresentação de relatórios. Mais



to nos seus esforços por introduzir as mudan- ainda, esse conjunto de mudanças não poderia

ças. De forma mais geral, perguntamos aos pro- ser implementado de forma isolada em relação

fessores a respeito de seus registros de mais lon- a todos os demais aspectos do trabalho dos pro-

go prazo sobre mudanças e da relação entre fessores nas suas escolas. Algumas das escolas

seus compromissos profissionais e seus com- também estavam envolvidas no desenvolvi-


promissos e obrigações mais amplos da vida mento de estratégias cooperativas de aprendi-



corriqueira. Três dos professores autorizaram- zagem. A maioria já estava começando a se



nos a observá-los nas suas aulas e participaram acostumar com o uso de computadores e com

de várias entrevistas adicionais para nos forne- outras novas tecnologias. Uma prioridade pa-

cer uma visão mais aprofundada sobre os seus ralela era a construção de relações com os pais

trabalhos e suas experiências com respeito às de alunos e o estabelecimento obrigatório de



mudanças educacionais. conselhos de pais. Muitos diretores das escolas



haviam assumido o cargo recentemente ou es- ras de envolver os alunos e seus pais, de forma



tavam prestes a fazê-lo – o que acarretava mu- integrada, nos processos de aprendizagem e de



danças no estilo de liderança e na focalização avaliação.



das mudanças nessas escolas. Numa crise cada Mostramos como, com apoio adequado e


vez mais profunda de retração econômica, os uma suficiente capacidade de discernimento, os



recursos tornavam-se crescentemente escassos professores podem alcançar grandes progres-



(e continuam a sê-lo no momento em que es- sos, fazendo que a Nova Ortodoxia da Mudança


crevo este trabalho). Havia rumores e, às vezes, Educacional funcione com os seus alunos, de



mais do que rumores de aumento no tamanho modo que a aprendizagem em sala de aula se



das turmas, de cursos que seriam eliminados, torne animada para eles. Também mostramos



de professores que seriam transferidos ou que onde definições mais claras de resultados, do


perderiam os seus empregos. O apoio de con- tipo incorporado em esforços subseqüentes por



sultores distritais para assessorar os professo- implantar padrões, são requeridas com urgên-



res durante o processo de mudança estava de- cia, onde os números de resultados (como os


saparecendo e os dias dedicados ao desenvol- ○
atuais números de padrões) podem proliferar
vimento profissional estavam sendo reduzidos. até se tornarem excessivos, onde o apoio pode-

Através dos olhos e da experiência dos pro- ria ser inadequado e onde o ritmo de mudança

fessores queremos criar e recriar uma imagem poderia ser rápido demais, mesmo para os me-

de como alguns dos nossos melhores professo- lhores professores.


res entendem – e freqüentemente lutam contra Nesse sentido, nosso trabalho nos ajuda a

– o duro trabalho intelectual e emocional de penetrar nas complexidades da mudança edu-



empreender conjuntos complexos de reformas cacional nos dias de hoje, tal como os professo-

educacionais como as que descrevemos. Que- res a experimentam dentro da nova ortodoxia

remos retratar o que a ortodoxia emergente de educacional. Ele nos levará para dentro, para

mudança educacional – baseada no que se deve antes e para além dos padrões. Reconhecer o que

aprender, não no que deve ser ensinado – pare- uma complexa reforma educacional significa

ce ser, vista no contexto mais nítido das suas para os professores e o que realmente requer

salas de aula. Partimos das experiências desses deles não é uma tentativa nem cínica, nem

professores para alcançar, acompanhar e ultra- elogiosa. Os nossos achados estão longe de cons-

passar os padrões e examinar a Nova Ortodoxia tituir um catálogo de tragédias – de um entusi-


da Mudança Educacional quando ela inclui e asmo em declínio, de esperanças perdidas ou de



apóia os professores em vez de ser simplesmen- boas intenções que não deram certo. Tampouco

te imposta a eles. Mostramos, ainda, como os eles descrevem nossos professores como exces-

professores lutam para conectar reformas cur- sivamente otimistas – que avançam imper-

riculares e de avaliação aos diversos estilos de turbáveis por problemas ou contratempos que

vida dos seus alunos, como desenvolvem pro- surgem no seu caminho. Nossas descobertas,

gramas integrados de qualidade que se inter- sim, abrem uma janela para as realidades e não

relacionam com as vidas e a aprendizagem de apenas para a retórica da Nova Ortodoxia da Mu-

todos os seus alunos e como procuram manei- dança Educacional do começo do século.


















16
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança

Educação para a mudança






Álvaro Marchesi



Universidade Complutense de Madri/Espanha






O ex-presidente Sanguinetti (Uruguai) pro- cia e para maior coesão social. Além disso, as 17



feriu há pouco tempo uma frase carregada de expectativas que a sociedade deposita na edu-


significado: “O futuro já não é como era antes”. cação são cada vez maiores. Tem-se a esperan-



No passado talvez fosse possível prever o que ça de que a escola possa resolver praticamente



aconteceria a seguir. Atualmente, o ritmo das todos os problemas que suscitam alguma pre-



mudanças é tão acelerado que poucos ousam ocupação: se houver violência, a escola deve


fazer prognósticos. Todavia, é necessário anali- combatê-la e reduzi-la; se aparecerem novas



sar as características mais relevantes da socie- doenças, a escola deve preparar seus alunos



dade e da educação, definir as diferentes alter- para evitá-las; se houver desigualdades, xeno-


nativas colocadas aos sistemas educativos, op- fobia, acidentes de trânsito, desrespeito ao meio


tar por aquela considerada mais vantajosa e co- ○

ambiente etc., a escola torna-se responsável
locar em prática as mudanças que podem torná- pela diminuição dessas atitudes e comporta-

la possível. Esses são os temas que serão trata- mentos. Não obstante, além disso, os alunos

dos nesta palestra. Em primeiro lugar, descre- devem ser bons cidadãos, humanistas, leitores

veremos os principais traços da situação atual, interessados, falar diversas línguas, demonstrar

bem como seus riscos e possibilidades. Em se- habilidade no manuseio de novas tecnologias,

gundo lugar, apresentaremos três possíveis ce- além de ser dotados de senso crítico.

nários educativos do futuro: o liberal, o buro- O risco existente é o de que a sociedade e os



crático e o comunitário. Finalmente, ressaltare- poderes públicos não estejam conscientes das

mos as mudanças mais importantes que devem enormes dificuldades que a busca desses obje-

ser implementadas para que as escolas venham tivos acarreta, nem das novas condições que de-

a constituir comunidades de aprendizagem. veriam ser criadas para atingi-los. O que acon-

tece com crescente freqüência é que as exigên-



cias se mantêm e, até mesmo, aumentam, sem


Uma realidade social

que haja um apoio decisivo para lidar com elas.


e educativa ambivalente No entanto, seria possível pensar que essa maior



exigência poderá algum dia transformar-se num


Uma das características mais importantes da


atual sociedade talvez seja sua ambivalência, efetivo empenho pela mudança.

isto é, sua capacidade tanto para aprofundar as O segundo traço diz respeito à crescente in-

corporação da competitividade no sistema edu-


atuais desigualdades como para se dirigir rumo


cativo. Partindo do funcionamento da econo-


a uma melhor distribuição dos bens coletivos.


O quadro abaixo retrata os traços mais mia, esta regida pelas leis da oferta e da procu-

relevantes que caracterizam o sistema


Principais traços da realidade educativa,


educativo e os riscos existentes, bem


seus riscos e possibilidades


como suas possibilidades.


O primeiro traço que caracteriza as Traços Riscos Possibilidades



relações entre a sociedade e a educação Exigência na qualidade Falta de apoio Mudança


Competitividade Desigualdade Qualidade para todos


é a exigência de qualidade. Existe uma


Demanda das famílias Ausência das famílias Colaboração


profunda convicção de que uma educa-


Valorização dos docentes Escasso reconhecimento Profissionalismo

ção de qualidade constitui garantia para


Demanda por inovação Repetição Relevância


o desenvolvimento econômico de um

Melhor escola pública Marginalização Transformação


país, para o fortalecimento da democra-



ra, pela ausência de protecionismo e pelo do- necessidade de um processo contínuo de ino-



mínio das regras do mercado, a educação tem vação em sala de aula é evidente. Contudo, a



sido pressionada a reger-se de acordo com nor- escassa formação e a falta de tempo dedicado à



mas semelhantes. As escolas lutam por matri- reflexão podem vir a impedir essa dinâmica e


cular alunos e por conseguir bons resultados. manter os professores utilizando modelos de



Caso contrário, poderiam vir a ser suprimidas ensino que sejam ao mesmo tempo tradicionais



ou desprezadas. e repetitivos.


O risco desse enfoque é o aumento das de-


Finalmente, existe uma exigência de melho-


sigualdades. A liberdade de escolha que os pais ria da qualidade do ensino público, onde uma



têm à sua frente transforma-se em liberdade das grande parte dos alunos de um país aprende,



escolas para escolher seus alunos, o que leva al- especialmente aqueles que se encontram em


gumas delas a poder selecionar os melhores de- condições sociais mais desfavorecidas. Quan-



les, enquanto outras não têm saída senão ma- do as horas diárias durante as quais os alunos



tricular alunos com os maiores problemas, o se encontram em escolas públicas são inferio-


que só faz aumentar o hiato existente entre ○

res às de seus colegas de escolas privadas, quan-


umas e outras. Existe, entretanto, a possibilida- do seus recursos são insuficientes e o número

de de que essa pressão pelo sucesso venha a se de alunos por turma excessivo e não se faz qua-

traduzir num maior empenho para que a edu- se nada para resolver tal situação, existe o risco

cação de melhor qualidade chegue a todos os de que a escola pública rume para a margina-

alunos.

lização, na medida em que os pais com alguns


O terceiro traço aponta para a demanda das recursos optem por escolas privadas para seus

famílias. Os pais também estão conscientes de filhos. Todavia, a exigência por escolas de qua-

que a melhor herança para os seus filhos é uma


lidade para todos os alunos permite a possibi-


boa educação e exigem das escolas que assegu-


lidade de que os poderes públicos responsáveis


rem para estes bons resultados escolares. No pela educação se empenhem na melhoria das

entanto, existe o risco de que os pais repassem escolas públicas.


para as escolas toda a responsabilidade pela



educação dos seus filhos, dadas as dificuldades


Diferentes cenários

que eles mesmos encontram tanto em termos



de (falta de) tempo como de pouco preparo para Em que direção irão orientar-se os sistemas

se dedicarem eles mesmos a tal tarefa. Contu-


educativos? Será que prevalecerão os riscos aci-


do essa mesma demanda pode converter-se


ma descritos ou serão aproveitadas as oportu-


num poderoso instrumento para uma maior nidades positivas existentes? Não é possível

cooperação entre as famílias e a escola. sabê-lo. Enquanto nos anos 1980 grande parte

Acompanhando de perto essa maior exi-


das reformas educativas baseou-se em políti-


gência de educação vem a importância do tra-


cas liberais, ao começar o novo milênio despon-


balho dos professores. Os sinais nessa direção ta uma possível mudança de orientação. Seja

são contínuos. Porém, na maioria das vezes, qual for o futuro, existem três possíveis cená-

essa suposta valorização do trabalho dos do-


rios, um dos quais predominará, dependendo


centes não se traduz em ações de reconheci-


das iniciativas que venham a ser adotadas nos


mento e de apoio. É preciso modificar essa si- próximos anos.



tuação e transformar o reconhecimento verbal


da importância dos professores num esforço


O cenário liberal

contínuo, em que se favoreça o seu desenvol-



vimento profissional. Esse cenário supõe, em síntese, fortalecer os



As atuais mudanças na sociedade, especial- elementos competitivos no funcionamento da


mente aquelas que resultam da influência dos educação. Os principais objetivos seriam me-

sistemas de comunicação e de informação, exi- lhorar o rendimento escolar dos alunos e am-

gem dos docentes novas formas de ensinar. A pliar as opções de escolas para os pais. Para

18
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança

alcançá-los, seria necessário reforçar os siste- munidades de aprendizagem não pode efetivar-



mas de avaliação baseados nos resultados es- se com exclusividade a partir das escolas, mas



colares dos alunos, comparar o que foi obtido exige a ativa participação de outras instituições.



em cada escola e torná-los públicos, para que a Esse seria o cenário mais desejável, aquele que


sociedade pudesse conhecer e controlar o fun- melhor garante o equilíbrio entre a qualidade e



cionamento dos estabelecimentos. a eqüidade na educação, porém o que exige mu-



danças mais profundas e de mais longo alcan-


O cenário burocrático ce. Essas mudanças serão descritas de forma su- 19



cinta nas páginas que seguem.


As suas principais características são a ma-


nutenção da atual situação e a incapacidade de



empreender reformas profundas. De um lado, As condições da mudança



existe receio em avançar com o modelo liberal,


A mudança para a configuração mais


seja pela pressão da sociedade ou dos sindica-


abrangente de comunidades de aprendizagem
tos dos professores, seja pela convicção de suas


não é algo que se produz em si. É necessário


conseqüências negativas no âmbito da eqüida-


um projeto global, no qual se integrem dife-


de. De outro, tampouco existe vontade política

rentes estratégias que confluam para o objeti-
em modificar os ajustes existentes: situação ○

vo desejado. As principais características das


ruim dos professores, abandono da escola pú-

mudanças que devem ser impulsionadas são


blica, poucos investimentos, rigidez na organi-


as seguintes: a mensagem e a ação educativa,


zação da escolas e no desempenho profissional


as novas estratégias para a formação do pro-


dos professores, sistemas de formação obsole-

fessorado, o tempo dos professores, as redes


tos etc. A falta de decisão, normalmente asso-

de escolas, a participação da comunidade edu-


ciada ao receio de conflitos e à falta de perspec-


cativa, os modelos eqüitativos de avaliação e a


tiva futura, leva à conclusão de que as escolas e


atenção à diversidade.
os professores continuam agindo como sempre,

embora se permitam e estimulem projetos li-


A mensagem e a ação educativa


mitados de inovação e de mudança realizados



por equipes de professores empreendedores. A mudança educativa em determinado sen-



tido exige que as mensagens e a ação também


O cenário da comunidade se orientem na mesma direção. Quando a ênfa-


de aprendizagem

se se limita ao rendimento acadêmico dos alu-



Esse cenário implica acreditar que a apren- nos, quando se responsabilizam exclusivamen-

dizagem dos alunos, de todos eles, exige um te as escolas pelos problemas existentes e quan-

do se esquece, sistematicamente, de outras con-


modelo diferente de ensino. O objetivo não é


que os professores lecionem e os alunos apren- dições, os avanços se tornam difíceis.



dam, mas que toda a comunidade educativa – Ao contrário, a mudança das escolas no sen-

professores, pais e alunos – participe no proces- tido de virem a se tornar comunidades de


aprendizagem supõe um discurso alternativo.


so de aprendizagem. Além disso, a responsabi-


lidade pelo ensino e pela aprendizagem não re- Os objetivos das escolas vão além da transmis-

cai com exclusividade na escola, mas conside- são de conhecimentos e estendem-se em três

ra-se que deveriam existir mais instituições direções complementares: o desenvolvimento


do desejo de saber, o reforço da sensibilidade e


comprometidas com esse objetivo. Sob essa


perspectiva, o papel da escola se vê modifica- do afeto e a construção de valores pessoais.



do, o que, por sua vez, exige mudanças na sua Nesse processo, é preciso que o conjunto da

organização, nas suas relações com o mundo comunidade educativa esteja comprometido.

Esses objetivos condicionam o trabalho dos


externo, nos seus objetivos educativos, na sua


forma de ensinar e na sua maneira de avaliar. professores, a organização das escolas e sua

O avanço em direção a escolas que sejam co- conexão com o entorno, os sistemas de avalia-


ção, a assessoria e o apoio que as escolas rece- em colaborar com ele. Mas, para alcançar o ex-



bem, bem como as relações com a administra- posto, é preciso uma maior estabilidade e de-



ção educativa. dicação dos professores a sua escola e um tem-



po disponível para elaborar e colocar em práti-


O compromisso com as escolas ca os projetos educacionais. Quando os profes-



sores devem ministrar a docência em várias es-


A ampliação da escolarização dos alunos, a


colas, é muito difícil assegurar essa forma de


melhoria da qualidade do ensino ou a redução
colaboração.


do fracasso escolar não são tarefas que as esco-



las e os professores possam realizar de forma


A redução do abandono escolar


isolada. Ao contrário, exigem o apoio decidido



das administrações educativas e dos poderes Altas taxas de abandono escolar são incom-


públicos. Esse compromisso pode se concreti- patíveis com uma educação de qualidade, mas



zar, prioritariamente, em duas direções. Em o abandono escolar não é responsabilidade ex-


primeiro lugar, deve propiciar o aumento dos ○

clusiva do sistema educativo, nem das escolas.
orçamentos educacionais de forma sustentada, Uma alta porcentagem de fracasso escolar tem

possibilitando, assim, o alcance dos objetivos sua origem diretamente ligada às carências eco-

previstos. Esse incremento do investimento nômicas, sociais e culturais de que sofrem de-

público em educação deve ser acompanhado de terminados grupos populacionais. Os estudos



uma progressiva e eficiente distribuição, de for- que analisam a influência social no acesso à

ma que aqueles que possuem menos possam educação têm demonstrado que alunos que vi-

receber mais. De toda maneira, o incremento vem em piores condições sociais apresentam

dos recursos deveria se destinar a ampliar a maior probabilidade de estudar menos anos e

Educação Infantil nos setores mais desfavo- de estar situados em grupos de alunos cuja

recidos, a fortalecer a Educação Básica, a au- valoração acadêmica é mais baixa: turmas cujos

mentar a oferta da Educação Secundária, a ele- alunos têm nível acadêmico inferior, grupos

var o nível de formação das mulheres jovens, especiais ou sem qualificação final reconheci-

especialmente aquelas com menor nível de es- da. O informe do Banco Interamericano do De-

colaridade, e a reforçar os recursos e o funcio- senvolvimento (BID, 1998: 30) assinala que os

namento das escolas públicas. 10% da população mais pobre, com mais de 25

Em segundo lugar, esse compromisso deve- anos, no Brasil, estudaram em média apenas

ria supor uma nova forma de relação com as es- durante 1,98 ano, enquanto os 10% mais ricos

colas. A administração educacional deve ser ca- estudaram durante 10,53 anos.

paz de negociar e estabelecer, por acordo, um Esses dados não significam que as famílias,

programa específico com cada escola, de ma- o sistema educacional, as escolas, os profes-

neira que elas possam desenvolvê-lo no perío- sores e os próprios alunos não tenham nada a

do de tempo compactuado – procedimento este fazer diante de tal realidade sociocultural des-

que supõe uma aposta decidida em favor da au- favorável. O abandono escolar prematuro deve

tonomia das escolas e de sua maior responsa- ser entendido numa perspectiva multidimen-

bilidade sobre os assuntos educacionais. A sional e interativa, em que as condições so-



contrapartida deve ser uma avaliação rigorosa ciais, a atitude da família, a organização do sis-

de seu funcionamento, na perspectiva de co- tema educacional, o funcionamento das esco-



nhecer e melhorar, e não de comparar e selecio- las, a prática docente em sala de aula e a dis-

nar. Portanto, é preciso que as escolas públicas posição do aluno para a aprendizagem ocupam

deixem de ser um número – entre muitos – que papel relevante. Cada um desses fatores não

depende da administração educacional para ter pode ser considerado de forma isolada, mas

personalidade própria, capacidade de em estreita relação com os demais. O caso da


interlocução e um projeto estável que permita disposição do aluno é um bom exemplo desse

a participação de setores sociais interessados modelo explicativo e interativo. Sua falta de



20
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança

motivação ou de interesse não é simplesmen- As redes de escolas



te responsabilidade de sua história individual,


Nos tempos atuais de mudança e de exigên-


mas é também a expressão do contexto social, cia, será difícil que uma escola isolada possa atin-



cultural e familiar em que vive, bem como do gir os objetivos propostos. Por isso, é importan-


funcionamento do sistema educacional, da


te que as escolas deixem de se isolar e que se re-


escola em que estuda e do trabalho de seus


lacionem entre si para melhor alcançar alguns


professores. objetivos específicos. As redes de escolas podem


21


ter objetivos muito variados quanto a informa-


A formação e o tempo dos professores


ção, inovação, intercâmbio de experiências e



As maiores exigências para a educação re- avaliação. São redes que se baseiam na partici-


pação do conjunto da escola, de alguns profes-


caem sobre os professores, que são os que po-


dem colocá-las em prática. Na atualidade o en- sores ou de algum grupo de alunos. A evolução



sino requer diálogo e participação dos alunos, dos sistemas de comunicação e da informática


está abrindo enormes possibilidades nessa área.


orientação e tutoria, relação com os pais, cola-


A organização e o fortalecimento das redes


boração na gestão da escola, contato com ati-


vidades formativas que se desenvolvem fora da de escolas exigem tempo, empenho e dedica-


escola, trabalho em equipe com companheiros ○
ção permanente. Elas não surgem espontanea-
mente nem perduram de forma permanente. Ao

e programação de atividades em aula capazes


contrário, é difícil criá-las e ainda mais difícil


de suscitar o interesse e o esforço dos alunos.


mantê-las ativas. Normalmente, as redes que


Os professores devem fazer frente a um ensino


surgem em torno de um projeto concreto e que


sujeito a mudanças e que transcende os limites

são atendidas pelos que as promovem têm mais


de sua sala de aula, na qual um número signifi-


probabilidades de subsistir e de aportar bene-


cativo de alunos não manifesta nenhum inte-


fícios para os participantes. O contato com ou-


resse em aprender. Antes, o professor era qua-


tras comunidades de aprendizagem constitui


se o único responsável por ensinar. Agora, ele

um importante estímulo pois abre horizontes,


deve compartilhar sua função e conseguir que


contribui para tornar relativos os problemas e


o aluno analise e integre a variada e dispersa


promove um encontro com novos grupos com


informação que recebe.


os quais se possa colaborar e progredir. A parti-


Dentro desse contexto, a formação dos pro-

cipação numa rede de escolas também obriga a


fessores e o desenvolvimento de suas perspec-


modificar os esquemas próprios de organização


tivas profissionais adquirem importância fun-


e incorpora a necessidade da participação de


damental. Não seria possível imaginar que a


outras escolas na cultura de cada uma.


mudança nas funções e nas exigências para os


professores possa ser implementada sem mo-


A participação

dificar sua situação laboral e os sistemas de for-


da comunidade educativa

mação. Os professores precisam de tempo para



refletir em comum acerca de suas práticas de O capital cultural de uma família tem gran-

ensino, para elaborar projetos educativos e para de influência na formação dos filhos. A comu-

participar de programas de avaliação, bem nicação entre os membros da família, o nível da



como para transformar suas estratégias de en- linguagem, o acompanhamento nos estudos, as

sino. A distribuição do tempo dos professores, atividades culturais às quais assistem, os livros

seu vínculo com apenas uma escola, a garantia lidos ou o intercâmbio de informação são fato-

de condições econômicas razoáveis e a implan- res que exercem uma influência muito impor-

tação de sistemas de promoção profissional tante na educação dos alunos. Embora o impor-

constituem alguns dos grandes desafios dos sis- tante não seja o capital cultural possuído, mas

temas educativos modernos e uma tarefa que como ele é transmitido, é preciso reconhecer

ainda não teve início nas escolas públicas da que as famílias com menor capital cultural e

maioria dos países de América Latina. social têm, no início, mais dificuldades para

contribuir com o progresso educativo dos seus acordo com o salientado até aqui, a tarefa edu-



filhos. Por isso, melhorar a formação dos pais e cativa está fortemente afetada pelo contexto



envolvê-los no processo educativo dos filhos é socioeconômico das escolas e dos alunos, pe-



uma condição necessária para melhorar seu los recursos disponíveis, pelas condições de tra-


aprendizado e reduzir o abandono escolar. Esse balho dos professores, pelos aspectos da orga-



é um objetivo cuja responsabilidade cabe não nização e pela maneira de ensinar dos profes-



só aos poderes públicos, mas também às esco- sores. Os resultados obtidos pelos alunos são,


sem dúvida, uma dimensão fundamental do


las. As escolas devem incluir, entre suas tarefas


prioritárias, a participação dos pais, sua coope- processo de ensino, porém devem ser necessa-



ração em múltiplas atividades, de acordo com riamente interpretados a partir da busca do



suas habilidades, e a organização de reuniões conhecimento do conjunto de variáveis que os


de formação e de intercâmbio de experiências. condicionam.



Junto com a participação dos pais, é preci- Todavia, as opções implementadas por mui-



so deixar que os próprios alunos falem. Estes tos países não se coadunam com esse modelo e

não são os receptores passivos dos ensina- ○


focalizam quase exclusivamente a avaliação ex-
mentos que os professores programam. Acre- terna de suas escolas em testes sobre o rendi-

ditar na construção ativa do conhecimento por mento escolar dos alunos. Além disso, em al-

parte dos alunos implica estender essa visão ao guns casos, esses países tornam públicos os re-

conjunto das atividades educativas. Os alunos sultados obtidos por cada escola. Trata-se de

devem se sentir participantes de um projeto em uma abordagem mais simples do que outras e,

que suas opiniões são consideradas para orga- portanto, mais fácil de ser colocada em prática

nizar as atividades, para estabelecer os regula- – porém claramente desapropriada. Sem dúvi-

da, a aplicação de testes padronizados a todos


mentos, para decidir as premiações e os casti-


os alunos e a apresentação pública e ordenada


gos e para que o ensino seja mais motivador.


Não são poucas as vezes em que se ouve dos dos resultados obtidos por cada escola consti-

alunos com menor motivação escolar seu habi- tuem grande ajuda para cada comunidade edu-

cativa. No entanto, o problema consiste em que,


tual aborrecimento nas horas de aula. Talvez


ao não se considerar o contexto socioeco-


seja necessário oferecer-lhes novos canais de


participação para que vislumbrem maior sen- nômico em meio ao qual se desenvolvem as es-

tido no esforço de aprender. colas e ao se centrar exclusivamente nos resul-


tados acadêmicos dos alunos, as comparações


As escolas devem procurar aliados e cola-


tornam-se inadequadas e injustas. Além disso,


boradores para levar adiante seu projeto edu-


cativo. Em primeiro lugar, os pais e os alunos. esse processo não apenas empurra as escolas a

Mas, depois, todos aqueles que desejem con- melhorar seus métodos para conseguir que seus

alunos atinjam melhores resultados, mas tam-


tribuir, com sua atividade, para a tarefa educa-


bém a buscar um atalho mais seguro: selecio-


tiva. A participação de ex-alunos, de voluntá-


rios e de profissionais constitui grande ajuda nar aqueles alunos com maiores probabilida-

para realizar atividades complementares das des de êxito, o que aprofunda ainda mais as de-

sigualdades entre as escolas.


mais diversas índoles com os alunos. Da mes-


É preciso, portanto, desenvolver novos mo-


ma forma, a cooperação com empresas, ateliês,


escritórios e instituições pode ser útil para a delos de avaliação que proporcionem às esco-

educação de alguns grupos de alunos. las uma informação contextualizada, isto é, que

levem em consideração seu contexto socioeco-



nômico e, no caso do Ensino Médio, o nível ini-


Os modelos eqüitativos de avaliação


cial dos alunos ao ingressar na escola; uma in-


A avaliação das escolas e do sistema educa-


formação confidencial que será interpretada,


tivo reflete a concepção que se possui acerca das ponderada e completada pelas próprias esco-

funções prioritárias do ensino, bem como das las; uma informação ampla e convergente, re-

variáveis que exercem influência sobre ele. De lativa aos resultados acadêmicos dos alunos e

22
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança

também a suas atitudes e estratégias de apren- a realidade que estão vivenciando. O ensino não



dizagem, processos educativos da escola e da pode estar desvinculado das suas experiências,



sala de aula e às ponderações de pais, professo- nem alheio a suas preocupações. Porém esse ob-



res e alunos. Uma avaliação que tenha por ob- jetivo desejável complica-se quando se constata


jetivo principal colaborar com as escolas para a existência de uma grande heterogeneidade de



que se conheçam melhor e possam elaborar alunos nas salas de aula. Ademais, essa diversi-



estratégias de mudança. Uma avaliação que não dade dos alunos tende a aumentar, na medida


seja feita apenas num momento pontual, mas em que a educação obrigatória de dez anos de 23



que prossiga ao longo dos anos. A organização escolaridade se transforme em realidade.



de redes de avaliação de que participem dife- A criação de comunidades de aprendizagem



rentes escolas é uma das possíveis estratégias que buscam um ensino de qualidade para to-


para colocar em prática esse modelo de múlti- dos os alunos enfrenta seu principal desafio



plos níveis de avaliação. quando as escolas exercem sua função em con-



textos sociais e familiares desfavorecidos. Nes-



A atenção à diversidade tes casos, torna-se ainda mais urgente e


prioritário o trabalho conjunto de todas as ins-


em sala de aula

tituições, tanto para apoiar e fortalecer o tra-

As mudanças apresentadas até agora fica- balho dos professores quanto para melhorar as

riam incompletas se não impulsionassem a


condições de vida das famílias. O desenvolvi-


transformação do ensino em sala de aula. O pro- mento de políticas de emprego, de habitação,



fessor terá de ser capaz de assistir os alunos para de saúde, de proteção social e de educação em

que encontrem o significado das suas múltiplas favor dos grupos de pessoas com maiores ca-

e dispersas experiências. Por esse motivo, o seu rências irá colaborar de maneira insubstituível

ensinamento deve estar conectado com os co- com o esforço levado a cabo pelo estabeleci-

nhecimentos prévios dos alunos, bem como com mento escolar.













































SIMPÓSIO 2

UMA ESCOLA REFLEXIVA


Juan Casassus

José Tavares

25
Uma escola reflexiva




e desigualdade educacional






Juan Casassus



Unesco/Orealc/Chile










Nos últimos tempos, tenho concentrado É relativo à nossa cultura e, portanto, tem


meu trabalho na análise e no desenvolvimen- um significado particular, um significado



to conceituais. Por esse motivo, quando rece- que não está presente em outra cultura.


bi o convite para participar deste Congresso Não é algo que tem um tipo de existência

como a de uma montanha ou de uma ár-


e concordamos em que eu desenvolveria o


tema da escola reflexiva, tive que me pergun- vore. Qualidade não existe “lá fora” de uma

maneira objetiva e independente de nós.


tar que conceitos poderia trazer a este Con-


Contudo, qualidade tampouco existe “aqui


gresso que fossem, de alguma maneira, úteis


dentro” de uma maneira subjetiva, como


para a reflexão sobre o que estamos chaman-

é o caso de uma emoção ou de um estado


do de escola reflexiva.

de espírito. Qualidade existe como um


Como seu nome indica, este Congresso


construto que ocorre quando alguém ob-


tem como eixo o conceito da qualidade da serva um espaço determinado a partir da


educação e, por essa razão, parece-me impor-


ótica, dos conceitos, da qualidade. É im-


tante abordar alguns elementos vinculados ao


portante compreendermos que a qualida-


que chamamos de qualidade da educação. de é um conceito construído que se apli-



Assim, esta apresentação se insere no contex- ca a algo, como, por exemplo, a um auto-

to de uma reflexão sobre a qualidade da edu-


móvel, a uma casa, a uma pessoa ou à edu-


cação e o movimento da prática reflexiva. cação. No entanto, sua forma de ser não

Nesse marco, gostaria em primeiro lugar está na coisa em si (objetiva), nem no ob-

servador (subjetiva): ela existe sob a for-


de ilustrar alguns aspectos vinculados à cons-


trução do conceito de qualidade e caracteri- ma de uma relação entre um observador e



zar o problema da qualidade como um pro- o observado.



blema de desigualdade. Em segundo lugar, • Em segundo lugar, a relação entre o obser-



gostaria de formular alguns conceitos que nos vador e o observado ocorre no plano da lin-

permitam construir a idéia de uma escola re- guagem. Ela é, particularmente, espe-

flexiva ligada à desigualdade. cificada na formulação de um juízo, ou seja,



um observador observa uma situação com


seus conceitos de qualidade, que lhe ser-


A qualidade

vem de óculos, e sobre ela emite um juízo


é um construto cultural em função das lentes que usa. Observemos



que a qualidade aparece com o juízo: sem



A qualidade é um conceito cultural. Isso ele não há qualidade.



significa que ela se desenvolve no plano da • Em terceiro lugar, os juízos têm a capaci-

cultura. Essa idéia tem várias implicações.


dade de determinar se algo é de qualida-


• Em primeiro lugar, precisamos compre- d e o u n ã o. Ne s s e s e n t i d o, s ã o a t o s



ender que tipo de entidade seria um con- lingüísticos poderosos e, por essa razão,

ceito cultural. Quando falamos de quali- precisamos entender que não são “objeti-

dade na educação, estamos nos referindo vos”. Eles são construídos e apresentam

a algo que construímos conceitualmente. determinadas características.


26
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva

O juízo produz a qualidade 1 Afirmar que um sujeito precisa fundamen-



tar seu juízo é como afirmar que a fundamen-


Podemos afirmar que o juízo sobre a quali-


tação confere maior valor a esse juízo. Isso é


dade da educação tem as seis características


importante porque é a validade de um juízo que


descritas a seguir. conduz à realização de ações.




É sempre um sujeito que formula


O juízo da qualidade depende


o juízo da qualidade 27


de critérios e padrões



Considerando que uma pergunta como “até A formulação de um juízo sobre qualidade



que ponto a qualidade da educação é boa em...?” é sempre feita com base em algum critério. Os


só pode ser respondida por um sujeito que formu-


critérios designam o campo de ação no qual se


le um juízo, a determinação de quem é o sujeito


formula o juízo. Por exemplo, um critério pode


chamado a formular o juízo é muito importante. A se referir ao campo do trabalho, outro ao cam-


diferença na resposta não reside apenas no fato de


po cognitivo e outro ao campo dos valores. No


que todos os indivíduos são diferentes, mas tam-


entanto, para se formular um juízo não basta


bém no fato de que eles têm visões e interesses delimitar o campo ao qual ele se refere. É preci-


estruturalmente diferentes. É muito diferente o ○
so, também, contar com algum padrão.
juízo formulado pelo diretor de uma escola (que é

Os padrões são formulações escritas que


o sujeito que a observa a partir de onde ocorre o


constituem códigos ou condições de satisfa-


processo, a partir de dentro da escola), pelo pai de ção que os usuários estabelecem e que lhes

um aluno (que é o sujeito que denota um servem de referência para formular o juízo.

beneficiário externo), por um jornalista (que é um


Existem diversas maneiras de se estabelecer


sujeito orientado para a comunicação externa) ou


padrões, de acordo com seu uso e procedên-


por um agente do Estado (que é um sujeito cuja cia. Eles podem ser usados para determinar

função é controlar a partir do interior do sistema, desempenhos que somente alguns serão ca-

embora externamente em relação à escola).


pazes de alcançar (padrões de excelência) ou


Será necessário, então, distinguir duas situa- para estabelecer o que deve ser alcançado por

ções: uma que consiste em identificarmos e ava- todos (padrões básicos). Podem estar basea-

liarmos o sujeito que é chamado a emitir o juízo dos no estado da arte das disciplinas ou nos

de qualidade, ou seja, que assinala se existe


currículos oficiais; podem estar baseados em


qualidade ou não, e outra que consiste no pro- distribuições empíricas (referenciados em cri-

blema de determinarmos quem tem razão térios) ou em resultados ideais (referenciados



quando mais de um sujeito emite o juízo, ou de em normas).


determinarmos qual das opiniões é a mais po-


A determinação de padrões também exige


derosa. Quem estiver em condições de decidir juízos e, assim como ocorre com estes, essa de-

sobre ambas as situações utilizará algum crité- terminação depende igualmente do sujeito

rio para orientar sua decisão. Na maioria das que os formula. Nesse sentido (e de modo se-

vezes, esse critério será de natureza política. melhante ao que ocorre com a pergunta sobre

Para obter um juízo válido sobre a qualida- qualidade), os padrões, uma vez formulados,

de da educação em uma escola, qualquer que para que sejam válidos – ou seja, aceitos pelos

seja ela, precisamos considerar dois elementos:


usuários como uma referência para emitir


em primeiro lugar, o juízo deve estar bem fun- juízos sobre a educação –, devem também ser

damentado e, em segundo, deve ser formulado percebidos como procedentes de uma fonte

por um sujeito investido de algum tipo de au- autorizada. Somente nesse contexto sua apli-

toridade para fazê-lo.


cação torna-se válida e, portanto, útil.





1

Para uma discussão mais detalhada sobre o tema ver Casassus e Arancibia, 1997. Ver também Casassus, Lenguaje, poder y calidad de la

educación. Boletin del Proyecto Principal de Educación , 50, Santiago de Chile: Unesco, 1999.

O exposto anteriormente constitui uma mar que os que tinham educação podiam ter



condição importante pois, definitivamente, é o acesso a determinados empregos e meios soci-



grupo social que determina a validade ou a ais. Além disso, como “antigamente” a educa-



pertinência de um padrão. Se um país adota ção era predominantemente elitista e limitada


padrões, por mais bem formulados que sejam, em sua oferta e por seus conteúdos, as elites



eles não se tornarão uma referência aceita se eram privilegiadas.



não forem percebidos como válidos e úteis pe- Afirmar que a educação de hoje não é tão


los usuários. Nesse sentido, é interessante ob-


boa é, além do mais, emitir um juízo baseado


servar as tensões que ocorrem, por exemplo, em critérios e padrões do passado, desconhe-



nos Estados Unidos, onde, de um lado, existe cendo o que aconteceu em decorrência da



um movimento que tenta estabelecer padrões massificação e da democratização da educação.


nacionais e, de outro, há resistência de docen- Uma afirmação dessa natureza seria, portanto,



tes para validá-los e permitir que sejam usados um juízo mal fundamentado.



como referência. O juízo é formulado com base em um pa-


drão, porém os padrões têm uma referência


O grupo social constrói temporal, histórica. Se a qualidade é histórica,

os juízos sobre a qualidade isso significa, por um lado, que ela não é algo

abstrato, atemporal e, por outro, que ela faz sen-


Quando, em países como Argentina, Chile ou


tido em uma situação concreta específica e


Venezuela, foi realizada uma consulta junto aos


pode não fazer sentido em outra situação con-


pais sobre a qualidade da educação de seus fi-

creta. Como os critérios e os padrões variam


lhos, as respostas foram bastante parecidas nos


segundo as circunstâncias, não se pode aplicar


três países e verificou-se que, quanto mais bai-


um padrão de um contexto em outro contexto.


xo o nível socioeconômico das pessoas, mais fa-


Podemos dizer que qualidade não é um concei-


voráveis eram as respostas, e vice-versa. As ra-

to absoluto, e sim relativo e dinâmico.


zões dessa discrepância precisam ser explicadas.



Para esclarecê-las, precisamos fazer uma


análise dos elementos contextuais que influen- Múltiplas qualidades,



ciam esses juízos. Uma educação considerada múltiplos pontos de vista



“menos boa ou ruim” pode ser julgada “boa”


Partindo da conclusão de que não é válido


pelo grupo mais imediato de seus usuários. Ao afirmar que a qualidade é absoluta, cabe per-

contrário, uma educação considerada “boa” do


guntarmos se seria conveniente impor um cri-


ponto de vista de sua localização, infra-estru-


tério único de qualidade em vez de concebê-la


tura, salários ou materiais, tende a ser conside-


como flexível, relativa, dinâmica e ajustável às

rada “ruim” pelos pais de um grupo favorecido.


diferentes necessidades dos usuários.

Assim, podemos concluir que os juízos sobre a


O critério atualmente predominante é o de


qualidade da educação são socialmente cons-


que a educação deve satisfazer a diversidade;


truídos e variam de acordo com a cultura e o


portanto, podemos afirmar que a qualidade é

nível social.

multidimensional e que existem múltiplas qua-



lidades. Há qualidades para cada pessoa e para


A qualidade é um conceito histórico


cada grupo. Cada pessoa tem uma idéia dife-


rente da qualidade porque seus critérios são


Freqüentemente, afirma-se que “a educação


de hoje não é tão boa quanto a de antigamen- diferentes, bem como suas necessidades, sua

te”. No entanto, fazer referência a critérios do história e suas perspectivas.



passado é aludir a um certo tipo de educação e Além disso, não é necessário considerar pes-

soas diferentes para apreciar a diversidade dos


aos frutos que dela podiam ser colhidos em


outro período histórico. juízos sobre a qualidade. Cada pessoa tem concep-

No que se refere ao emprego, por exemplo, ções diferentes da qualidade, segundo o campo

dizer que a educação de antes era melhor é afir- considerado e o propósito do juízo nesse campo.

28
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva

Alguns pais poderão considerar que uma escola boa é uma vantagem e uma escola defi-



escola com disciplina autoritária é boa para seu ciente é uma desvantagem.



filho mais velho, mas podem também pensar Em outro sentido, as maneiras de se chegar



que essa mesma disciplina é um fator negativo a essa qualidade não precisam ser as mesmas


em se tratando do segundo filho mais velho. para todos. Qualidade para todos, num contex-



Além do mais, embora a escola possa ser consi- to de diversidade, é como chegar à qualidade



derada boa para o mais velho, pela sua capaci- definida para todos mas adaptada ao sujeito


dade de “disciplinar”, pode muito bem ser con- individual ou coletivo que dela necessita. No 29



siderada de má qualidade em outros aspectos, contexto da diversidade, a qualidade exigida



como, por exemplo, se o jovem estiver interes- por grupos interessados em questões de gêne-



sado em aprender informática e a escola não ro implica considerações da problemática do


possuir os equipamentos necessários para sa- gênero; por grupos religiosos, do tema de sua



tisfazer a esse interesse. religião; por pessoas superdotadas, de um cur-



rículo que garanta seu pleno desenvolvimento.



Qualidade e eqüidade

A desigualdade e a qualidade


O tema da qualidade na educação também
está ligado ao tema da eqüidade. Todas as pes- ○


da educação
soas têm direito a uma educação de qualidade.

Gostaria, agora, de examinar o aspecto que


Além disso, na prática, é muito difícil distinguir pode ser considerado o maior problema da qua-

a qualidade da educação da igualdade de opor- lidade na educação. Esse problema não é tanto

tunidades.

o da qualidade em si, que é um assunto com-


A partir dessa perspectiva, quando se fala


plicado, mas o de como garantir qualidade para


em qualidade, não se está fazendo referência o sistema como um todo: o problema da desi-

apenas a esquemas tutoriais, a uma relação per- gualdade na geração ou no acesso à qualidade.

sonalizada e unipessoal entre professor e alu-


Se alguém se pergunta “qualidade na educa-


no, e sim ao sistema como um todo. Nesse sen-


ção, para quem?”, a resposta é: “para todos”. Nos


tido, convém observar que, embora a qualida- relatórios dos sistemas de avaliação, a primeira e

de deva ser entendida como algo ligado à eqüi- mais constante informação é a da desigualdade

dade, esta também pode ser vista como algo


nos resultados acadêmicos obtidos pelas escolas.


separado da qualidade. Em estudos internacio- Vemos, assim, que estamos diante de um proble-

nais, podemos observar países que apresentam ma sério, porque as oportunidades de acesso a

um rendimento baixo (baixa qualidade) e pou- essa qualidade não são iguais para todos.

ca diferença de rendimento entre as escolas


Há um acesso diferençado às possibilidades


(alta eqüidade). No outro extremo, há países de produção da qualidade que o sistema ofere-

com poucas diferenças entre as escolas (índi- ce. Alguns têm acesso a boas escolas, enquanto

ces de alta eqüidade) que apresentam, ao mes- outros só têm acesso a escolas deficientes. Essa

mo tempo, altos rendimentos (índices elevados situação é muito delicada, pois os setores ca-

de qualidade). Este é um objetivo de política rentes, os que mais precisam das melhores es-

educacional. colas, só têm acesso a escolas de baixa qualida-



A massificação, por sua vez, suscita proble- de, produzindo-se, assim, um “duplo risco” de

mas pedagógicos completamente diferentes. fracasso (Willms, 1992). Os que mais precisam

Um deles é a busca de qualidade para os estu- são os que menos recebem. As crianças caren-

dantes como um todo. O público assume o tema tes não estão apenas expostas a um risco de fra-

da qualidade da educação e transforma-o em casso; na verdade, estão expostas ao duplo ris-



objeto de política pública; além disso, procura co duplo de fracasso escolar e de gerar desigual-

qualidade educacional com distribuição eqüi- dade educacional. Portanto, as ações para pre-

tativa na sociedade. Isso ocorre porque as es- venir esse quadro devem levar em considera-

colas fazem diferença na vida das crianças: uma ção essa situação específica.

Ocorreram mudanças em nossa forma de ber, a educação como uma atividade destinada



compreender o fracasso escolar. Numa primei- a desenvolver, no indivíduo, as capacidades e



ra etapa, as políticas promoveram a busca da as atitudes dele exigidas pela sociedade políti-



“igualdade de oportunidades”. A questão da ca e pelo meio ao qual ele está destinado. Tam-


qualidade – a primeira qualidade – era a do bém se parece com a visão de Parsons, de acor-



acesso à escola. A desigualdade era vista como do com a qual a educação é meio de socializa-



desigualdade no acesso à educação. A resposta ção e de diferenciação seletiva. Segundo essas


foi a ampliação do sistema, de modo que ele visões, a igualdade de oportunidades é esta-



pudesse oferecer acesso à escola a todos que belecida inicialmente e a diferenciação de re-



desejassem. Em alguma medida, a desigualda- sultados surge, no final, como uma conseqüên-



de no contexto do acesso persiste, se conside- cia da desigualdade de status. Nessa perspecti-


rarmos como se dá o acesso dos alunos ao En- va, a avaliação “objetiva” das provas padroni-



sino Médio. Essa diferença é ainda maior no zadas apenas consagra e mantém, na prática, o



acesso ao ensino superior. princípio da desigualdade.


Posteriormente, até o fim da década de ○
Este último comentário merece explicação
1980, estimou-se que a oferta era suficiente para mais detalhada. Quando as chamadas provas de

todos os alunos que quisessem ter acesso ao sis- avaliação “objetivas” foram desenvolvidas, a

tema. Quando isso aconteceu, o problema da idéia da igualdade residia na possibilidade de



qualidade foi desvinculado da questão do aces- todos os alunos passarem numa mesma prova

so e vinculado à necessidade de se oferecer qua- que contivesse os mesmos itens. Assim, evita-

lidade no interior do sistema. No entanto, para va-se que a avaliação caísse naquilo que no iní-

que isso acontecesse, seria necessário, em pri- cio da revolução behaviorista chamou-se de

meiro lugar, tornar visível algo que corres- “tergiversações subjetivas”. As provas “objeti-

pondesse a alguma idéia de qualidade “quali- vas” foram, assim, concebidas numa perspecti-

tativa”, em vez da qualidade “quantitativa” an- va de igualdade de oportunidades baseada na



terior. Com essa idéia em mente, foram então aplicação de uma mesma prova, e a discrimi-

estabelecidos os sistemas de avaliação da qua- nação que se lograva com esse esquema devia-

lidade da educação, produtos de uma mudan- se às deficiências que os alunos apresentavam



ça em nossa forma de ver o problema da desi- em suas respostas à prova. No entanto, os alu-

gualdade. nos não chegam iguais às provas. Assim como


A mudança consistiu na introdução da idéia ocorre com o conceito do “duplo risco”, também

de que a qualidade devia ser mensurada. Para se produz um “duplo privilégio”. É importante

que os sistemas de avaliação funcionassem, foi observar que um sujeito situado no topo desse

então necessário gerar alguma idéia de quali- “duplo privilégio”, apenas por esse fato e inde-

dade que se pudesse medir. Assim, o que fosse pendentemente de qualquer outra considera-

medido seria considerado produto ou resulta- ção, está numa situação qualitativamente qua-

do do processo educacional. Então, a desigual- tro vezes melhor que outro situado na base do

dade foi desvinculada do acesso à educação e duplo risco. Essa desigualdade é patente nos

passou a ser vista como uma “desigualdade sistemas de avaliação, uma vez que eles geram

quanto aos resultados” da educação. uma constatação estatística da existência de



Uma educação centrada em resultados, desigualdades.



como parece ser o critério predominante hoje, A explicação para as desigualdades também

é uma educação centrada na idéia da hierar- está sofrendo mudanças. Desde a década de

quização das pessoas e da educação como um 1960, diversos estudos realizados em nível

processo de seleção, preparatório para a distri- macro oferecem explicações para as diferenças

buição da população de alunos em posições nas estruturas sociais, econômicas e culturais.


sociais e em lugares de trabalho hierarquizados. Em um estudo recente para a América Latina



Essa visão contemporânea está muito ligada à (Casassus, 2001) estima-se que essas estruturas

noção que Durkheim tinha da educação, a sa- expliquem cerca de 30% da variação observada

30
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva

nos resultados. Essa estimativa empírica é con- referência a algo que existe, que tem edifica-



sideravelmente menor que a que se tem usado. ções, um lugar onde aulas são dadas, onde gru-



É importante observarmos que o tipo de refle- pos de pessoas de diferentes gerações intera-



xão que tem sido feita nesse âmbito tende a afir- gem. No entanto, o que caracteriza uma escola


mar algo como: as crianças de determinadas não são essas coisas, que freqüentemente ve-



comunidades apresentam resultados baixos mos em desenhos de escolas. A existência da



porque vêm de comunidades carentes. Desse escola reside no fluxo de interações entre pes-


modo, muitas pessoas estimam que os baixos soas. Devemos observar que o aspecto funda- 31



resultados podem ser atribuídos à comunida- mental dessa noção de escola é a idéia de que



de de origem do aluno. O problema é geralmen- nos elementos que a constituem são as pessoas



te formulado da seguinte maneira: “a escola de que interagem. Na verdade, a interação de duas


baixos resultados é uma escola cuja comunida- pessoas, a interação de dois sujeitos. A interação



de não alcança os padrões ou níveis estabeleci- entre dois (ou mais) sujeitos é chamada de



dos para essa escola”. Assim, a dificuldade é atri- intersubjetividade.



buída à comunidade e a suas limitações para Quando consideramos a interação que carac-


alcançar o nível estipulado. No entanto, pode- teriza o tipo de entidade que uma escola é, impli-



ríamos também pensar exatamente ao contrá- ca que estamos considerando qualquer fluxo de

rio: podemos pensar que os padrões e os pro- interações de maneira genérica. Trata-se de um

cedimentos é que não são adequados para as tipo de fluxo particular, modelado por um conjun-

necessidades da comunidade. to de normas, culturas e pautas que lhe dão coe-



O mesmo estudo mostra também que, em rência. A escola constitui-se, em primeiro lugar,

nível micro, ou seja, no nível da escola, os pro- como entidade que se apresenta como uma

cessos que nela ocorrem explicam cerca de 60% interação intersubjetiva (entre sujeitos), desenvol-

das variações observadas nos resultados. Essa vida num padrão que regula o fluxo de interações

constatação implica que, sem descontarmos o e lhe confere identidade – unidade – como escola.

impacto da macroanálise, é na microanálise que Efetivamente, podemos dizer que uma escola tem

podemos encontrar diversas pistas para ações edificações, normas e coisas assim. No entanto, sua

que podem reduzir as desigualdades. unidade, o que permite a uma pessoa afirmar que

se trata de “uma escola”, é definida pelo padrão de



interações intersubjetivas. O fenômeno “escola”


Uma escola reflexiva

emerge do padrão das interações humanas. O



Consideremos agora o tema da escola re- modo de existir da escola é definido por um pa-

flexiva e de como esta pode nos ajudar nesse drão de interações entre sujeitos. Uma escola as-

contexto.

sim concebida é o que no campo das ciências


Em primeiro lugar, precisamos nos pergun- cognitivas é chamado de “fenômeno emergente”



tar se não seria tolice afirmar que uma escola (Varela, 2000). Outros nomes dados a esse modo

pode refletir. Não seria um abuso de linguagem? de existência seriam “auto-organização”, no cam-

É legítimo falar sobre uma escola reflexiva? Não,


po da biologia, “complexidade”, no campo da filo-


não é tolice, tampouco abuso de linguagem. Para sofia, ou “rede comunicacional”, na teoria das or-

compreender essa afirmação, precisamos inicial- ganizações.



mente esclarecer o que se entende por escola, É importante observar que, nesse sentido,

da mesma maneira que inicialmente nos pergun-


“a escola” é um nível de análise caracterizado


tamos o que seria a “qualidade na educação”. pelo tipo de interações próprio do sentido da

Assim como, quando falamos em qualida- interação. É próprio do “porquê” e do “para que”

de, não nos estamos referindo a uma coisa que da interação. O “porquê” e o “para que” são de-

existe “fora”, como uma árvore, devemos nos


terminados pelo que é próprio da escola. Por


perguntar sobre de que tipo de entidade exemplo, uma interação entre professores para

estamos falando quando nos referimos a “uma ir jantar num restaurante não é – em princípio

escola”. Ao fazer esta locução, em geral fazemos – regida pelo padrão do fluxo de interações,

como seria uma reunião de professores para uma prática e das conseqüências que ela gera.



discutir o projeto do estabelecimento. No nível A perspectiva reflexiva não constitui um con-



da escola, interagem as pessoas que formam a junto de procedimentos específicos. Trata-se,



comunidade educacional. A interação constitui como indica Schön, de uma epistemologia da


a escola, confere a ela identidade como prática, uma epistemologia diferente, que se



interação regida pelas preocupações dessa co- caracteriza por ser um estado mental, uma for-



munidade educacional. Portanto, quando dize- ma de enfrentar e responder a problemas. A


mos “uma escola”, estamos denotando um pa- ação reflexiva constitui um processo mais am-



drão específico de interações entre sujeitos e plo que o da solução lógica e racional dos pro-



não entre edifícios, livros e coisas desse tipo. blemas. A reflexão implica intuição, sentimen-



Observemos esse fato no nível da sala de aula. to, paixão. Nesse sentido, não é algo que se pos-


Nesse nível, um sujeito, como professor, interage sa delimitar precisamente e ensinar, como um



com outros sujeitos como alunos. Eles fazem com conjunto de técnicas a serem usadas por pro-



que a “aula” exista: literalmente criam a aula na fessores; ao contrário, trata-se de uma posição


medida em que sua interação esteja regida pelo ○
de consciência.
padrão que orienta o processo de ensino-apren- A ação reflexiva é, acima de tudo, uma posi-

dizagem. Observemos que, independentemente ção mental que coloca o professor em estado

do nível de análise, o que sempre a constitui são de consciência em relação ao que ele está fa-

os sujeitos interagindo segundo um padrão de zendo e a como está fazendo. Não uma consci-

ação determinado. ência quanto a estar fazendo o que lhe disse-



No entanto, esses sujeitos podem interagir ram para fazer ou a estar usando a técnica ade-

de forma reflexiva ou não-reflexiva. A escola quada, mas uma consciência do que está fazen-

reflexiva tem lugar quando os sujeitos que for- do em relação à aprendizagem de seus alunos.

mam a comunidade educacional entram em Isso é o que Schön descreve como reflexão na

processo de interação, reflexivamente. ação, diferentemente da reflexão sobre a ação,



que é uma reflexão posterior ao que se realizou,


O que seria o processo que não ocorre na ação e, sim, posteriormente,



para melhorar a próxima ação.


reflexivo?

A reflexão na ação significa pensar no que se



O processo reflexivo refere-se ao processo faz enquanto se está fazendo, o que produz uma

sensação especial: a sensação de se estar numa


de conscientização da ação que está sendo de-


senvolvida. J. Dewey distingue a ação reflexiva situação singular, num momento singular, num

da ação rotineira. A ação rotineira é dirigida pela momento incerto, aberto à criação pessoal. Essa

reação reflexa, pela convenção, pela tradição e sensação tem a particularidade de produzir uma

certa tensão, um tipo de tensão que permite al-


pela autoridade. Por exemplo, na prática, os


docentes de uma escola têm diferentes postu- ternativas. Por um lado, pode fazer brotar o me-

ras em relação aos problemas de aprendizagem lhor do ser docente no professor, pois nessa ten-

com os quais se defrontam. Dentre essas pos- são prevalecem a criação e a relevância da solu-

ção. Por outro lado, se o professor tiver perdido


turas, existe a cultura da escola, expressa na fra-


se “aqui fazemos as coisas desta maneira”, que a confiança em si mesmo, a tensão pode fazê-lo

passa a constituir a cultura oficial dessa escola. cair na tentação de se apoiar exclusivamente em

Essa cultura é, freqüentemente, percebida técnicas aprendidas, que não estão formuladas

para situações particulares como as que ele pode


como um “freio” a mudanças. Os professores


não-reflexivos aceitam automaticamente a vi- estar vivenciando num determinado momento,



são que se adota como regra geral numa deter- mas para situações gerais que, concretamente,

minada situação. não existem.


É importante observar que a racionalidade


A ação reflexiva, por sua vez, expressa uma


consideração ativa, persistente e cuidadosa dos positivista subjacente à racionalidade técnica



fundamentos que dão base a uma crença sobre pressupõe que o professor é um instrumento na

32
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva

aplicação da técnica, e não um profissional cri- contrário, a idéia fica mais clara: uma escola



ativo. Ao nos refugiarmos na técnica, corremos não-reflexiva caracteriza-se pela aceitação de



o risco de perder as virtudes do conhecimento um estado de coisas na realidade cotidiana.



profissional adquirido na prática, perdemos a Uma escola não-reflexiva não questiona as cau-


oportunidade da criação, da relevância, e a ação sas da desigualdade educacional e do fracasso



passa a ser orientada no sentido de produzir escolar. Uma escola não-reflexiva atua nos sin-



soluções preconcebidas. tomas de um estado de coisas, sem indagar as


Quero deixar claro que não estou dizendo causas desses sintomas. Uma escola não-refle- 33



que não devemos usar técnicas. Ao contrário, é xiva é a que funciona no espaço das interações



importante dominar o uso de técnicas, pois elas rotineiras.



facilitam o desenvolvimento dos recursos pes- Na perspectiva do pensamento reflexivo, o


soais do docente. O que estou dizendo é que o padrão que rege o fluxo das interações pode ser



pensamento reflexivo é caracterizado por uma modificado pela reflexão. O padrão pode ser alte-



atitude, por um estado mental consciente. O uso rado pela ruptura entre interações rotineiras para



de técnicas é secundário. Usá-las não-reflexiva- que se estabeleçam interações reflexivas. Quan-


mente é desconhecer uma outra capacidade de do o padrão de interações gera desigualdade, é



análise que a realidade permite. Se traçarmos um necessário entrar num processo reflexivo.

paralelo com outras atividades profissionais, O padrão que rege a desigualdade, o proces-

como a medicina ou a advocacia, podemos no- so de produção da discriminação, ocorre coti-


tar que os profissionais de sucesso sempre atu- dianamente na prática da sala de aula. Ele se

am com base na interpretação profissional dos dá quando o professor não percebe que um alu-

problemas que precisam enfrentar. no não está entendendo um teorema de álge-


Como todo estado mental consciente, a bra. Em contrapartida, a superação da desigual-



ação reflexiva sustenta-se, nutre-se de atitu- dade ocorre quando o professor, ao ouvir a per-

des. Dewey identifica três delas: abertura in- gunta de um aluno, identifica onde está a dúvi-

telectual, responsabilidade e sinceridade. da. Essa percepção de onde está a dúvida do


Abertura intelectual: desejo ativo de consi- aluno é como uma compreensão intuitiva, e a

derar mais de um ponto de vista, visualizar solução dessa dúvida resulta de um processo

alternativas, reconhecer a possibilidade de criativo, da arte do professor ao enfrentar a si-


erro, perguntar-se por que se faz o que se


tuação. Nesse processo, o professor cria, testa


faz e – o que talvez seja mais importante – novas estratégias para esclarecer a confusão. O

identificar as emoções que estão na base do não-atendimento e o não-esclarecimento da


que se faz, uma vez que a ação é determi-


confusão estigmatizam o estudante como um


nada pela emoção.


“mau aluno”. Embora a desigualdade certamen-


Responsabilidade: avaliação e cuidadosa te não se restrinja à sala de aula nem necessa-



consideração das conseqüências produzidas riamente se origine nela, é ali que ela se produz

por nossa ação. Conseqüências nos planos


e reproduz.

emocional, intelectual e social dos alunos.


Como mencionamos anteriormente, o ris-


Sinceridade: ser honesto consigo mesmo co duplo faz os alunos chegarem com carências

em relação ao que se está fazendo. Essa ati- à escola e à sala de aula. Esse assunto é matéria

tude é o suporte da abertura intelectual e


não apenas da sala de aula, mas também da es-


da responsabilidade.

cola. Num texto anterior (Casassus, 2001), de-


monstrou-se que os processos desenvolvidos



Uma escola reflexiva diante nas escolas e nas salas de aula podem reverter

as dinâmicas da desigualdade. Determinadas


da desigualdade educacional

práticas de gestão, a vinculação da escola à co-


munidade, o tipo de pedagogia e, principalmen-


Uma escola reflexiva é aquela capaz de


ensejar respostas para os principais problemas te, um clima emocional positivo são algumas

da desigualdade. Formulando a afirmação ao das áreas que permitem identificar o que pode

ser feito para alterar a produção e a reprodução flexiva se estabeleça nas escolas, pois só ela



da desigualdade educacional. As dificuldades pode produzir conhecimentos relevantes para



dos alunos e suas carências são experiências a situação concreta dos alunos.



particulares (e não gerais). Elas ocorrem em Só podemos aprender a refletir sobre a ação


uma situação concreta. O diagnóstico adequa- fazendo. Ninguém pode fazê-lo por outra pessoa.



do das experiências particulares (não- gerais), Cada pessoa precisa fazê-lo por si mesma. No



a forma como um problema é situado e formu- entanto, poderá receber apoio, e o apoio de que


lado não é, por si só, uma questão técnica. É um precisa é do tipo oferecido por um treinador



problema de reflexão que combina aspectos (coach). Aprendemos fazendo e também refletin-



políticos, administrativos e pedagógicos e que do sobre o que fizemos. É importante observar



exige atitudes de abertura, responsabilidade e que estou propondo uma mudança na forma de


sinceridade. Esse é um pensamento sistêmico, apoiar o trabalho da comunidade educacional.



porque a realidade é complexa. Mas não pode Não se trata de ensinar dizendo o que se deve fa-



acontecer se a escola não reflete sobre si mes- zer; trata-se de conversar de modo que os que


ma, se não aprende consigo mesma. Essa é uma ○
precisam fazer descubram, por eles mesmos, as
postura semelhante à proposta nos planos de possibilidades de que dispõem para detectar, for-

gestão das organizações que aprendem (ver, por mular e resolver os problemas de sua escola. Tal-

exemplo, Senge, 1996). É na reflexão sobre si vez seja uma proposta um pouco utópica, porque

mesmo que se abre o espaço da aprendizagem. pressupõe professores muito competentes para

Se a desigualdade se apresenta concreta- aprender por conta própria, mas a utopia come-

mente na prática de uma escola como lugar de ça pela mudança emocional e pela atitude de

risco duplo é só nela que se pode tentar rever- abertura, responsabilidade e sinceridade.

ter o processo – e isso só pode ocorrer numa



escola que reflita sobre si mesma e que apren-


Bibliografia

da consigo mesma. O desânimo e a falta de


ALARCÃO, Isabel (Org.). Escola reflexiva e nova


ambição que podem ser observados em muitas


racionalidade. Porto Alegre: Artmed, 2001.


escolas precisam ser abordados promovendo-

CASASSUS, Juan. La revalorización de la escuela: los


se uma mudança emocional e uma atitude re-


factores que afectan el rendimiento académico . São


flexiva. Uma escola reflexiva só pode apoiar-se Paulo, 2001.



em seus profissionais e em suas competências. CASASSUS, Juan; ARANCIBIA, Violeta. Claves para una

Gostaria de terminar com este pensamen- educación de calidad. Buenos Aires: Kapelusz, 1996.

to: para que a reflexão seja uma forma de ser DEWEY, John. Cómo pensamos. Cognición y desarrollo

humano. Barcelona: Paidós, 1989.


das escolas, seus profissionais precisam assu-

DURKHEIM, Emile. Education et Sociologie. 3. ed. Paris:


mir a responsabilidade da reflexão. Estamos


PUF, 1992.
atravessando um período paradoxal, caracteri-

PARSONS, Talcott. Estructura y proceso en las sociedades


zado pela coexistência de políticas que cami-


modernas. Madrid: Instituto de Estudos Políticos, 1966.


nham em sentidos aparentemente opostos. Por SCHÖN, Donald. A. Educating the reflective practitioner. San

um lado, as autoridades do sistema educacio- Francisco: Jossey Bass Publishers, 1987.


nal procuram aperfeiçoar práticas de descen- SENGE, Peter. La quinta discipina. Madrid: Granica, 1996.

VARELA, Francisco. El fenómeno de la vida. Santiago de


tralização e autonomia; por outro, propõem, em

Chile: Dolmen, 2000.


número crescente, soluções baseadas nas “me-


WILLMS, J. Douglas. Monitoring school performance: a guide


lhores práticas” e nas “escolas bem-sucedidas” for educators. Washington, DC: Falmer, 1992.

de outros contextos. Essa situação paradoxal só


ZEICHNER, Kenneth. El maestro como profesional reflexi-


poderá ser superada à medida que a prática re- vo. Cuadernos de Pedagogía, n. 220, Madrid, dez. 1993.









34
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva

Escola reflexiva,




resiliência e sentimento de si




Um objetivo que os profissionais




da educação não poderão perder de vista




35


José Tavares



Universidade de Aveiro/Portugal






Introdução




A escola reflexiva, como extensão da pes- trais e transversais, as quais, segundo Isabel



soa humana – ser essencialmente consciente, Alarcão, atravessam-na em todas as suas di-



responsável e livre – faz apelo também, como mensões:

uma condição sine qua non, à consciência de ○

si, da sua realidade de escola, como coletivi- A centralidade da pessoa na sua globalidade e na

dade inteligente de pessoas que aprende e sua comunicabilidade, a racionalidade dialógica


inerente ao discurso crítico-construtivo, a


ajuda a aprender, auto-regula-se e constrói-


se. Só assim poderá constituir-se numa ver- reflexibilidade, a autonomia e a responsabilida-


de não apenas de atores isolados, mas também


dadeira comunidade de aprendizagem, edu-


de organizações, a humildade e o relativismo


cativa, presencial ou on-line, nessa socieda-


frente ao ato de compreender a realidade, o rela-


de do conhecimento, da informação e da co-

cionamento interativo com a técnica, a valoriza-


municação. Essa consciência da escola como


ção do inter-relacionamento evidente em vários


a consciência das pessoas que a integram não


aspectos e traduzido na linguagem através de ter-


pode ser uma pura abstração, mas, ao contrá- mos como interdisciplinaridade, interdepar-

rio, terá de ter uma verdadeira alma – não


tamentalismo, interculturalismo, interpessoa-


apenas física, mas também psicológica, so-


lidade, interinstitucionalidade, interatividade e


cial, cultural e axiológica – que lhe possibilite interconectivividade.



um genuíno e autêntico sentimento de si


como escola consciente, cordial, flexível, E, para terminar, Isabel Alarcão acrescenta

re s i l i e n t e, l i v re, re s p o n s á ve l . Da í q u e a que, se tivesse de “eleger uma dessas últimas ca-



reflexibilidade, a flexibilidade, a resiliência, racterísticas, elegeria a interatividade, pois pen-


so que nela se concentra a essência da atual


numa escola que se quer reflexiva, flexível e


diversa, não são possíveis sem estar ligadas mundividência” (2001: 13-14). Ou seja, sem pro-

intimamente ao conhecimento, à emoção e à fessores, alunos e todos os outros agentes edu-



vontade dos sujeitos que a habitam e, sobre- cativos reflexivos, interativos, interconectados

e contextualizados, não é possível falar de uma


tudo, que a vivem e a sentem.


A esta luz, não é viável uma escola reflexi- escola reflexiva, livre, justa, em que a qualida-

va sem sujeitos, digamos, sujeitos-pessoas, e, de e a excelência sejam um direito e um dever



por conseqüência, conscientes, responsáveis, de todos, dentro das reais possibilidades e com-

petências de cada um.


livres, reflexivos. É aí, como escreveu Roberto


Carneiro, antigo ministro da Educação em Por- Na verdade, não parece ser possível con-

tugal, em 1997, “nesse mundo denso de infor- tinuar a pensar a escola à imagem da estra-

mação, numa humanidade globalizada, num tégia sistêmica que é um produto refinado de

uma globalização interesseira, calculista e


caldo de multicultura e numa economia seden-


ta de formas de aprendizagem ao longo da antidemocrática que, no fundo, continua a



vida”, que vêm assentar algumas noções cen- favorecer o desenvolvimento de pequenos

nichos de excelência, deixando fora a maio- A construção



ria da humanidade, que não dispõe sequer


do sentimento de si


do mínimo indispensável para poder sobre-



viver. Uma escola reflexiva que seja capaz de Como é do conhecimento de todos, ainda


se pensar e de sentir a si própria não pode


que, por vezes, de forma tácita ou implícita, no


aceitar essa cultura que, na realidade, assen- ser humano tudo evolui, ergue-se e constrói-



ta na idéia da exploração do homem pelo se no sentido da emergência da consciência,


homem, não muito longe do homo homini


e, designadamente, seguindo uma trajetória,


lupus de Thomas Hobbes, da exclusão social hoje, bem conhecida a partir das investigações



que é uma das maiores formas de violência de António Damásio, que procura estudar essa



que afligem a humanidade e constitui um realidade de uma maneira objetiva, científica,


atentado direto e escandaloso contra a dig-


que parte da protoconsciência, passa pela


nidade humana. consciência nuclear e vai até a consciência



Por isso uma escola reflexiva, como a de- alargada ou autobiográfica onde vêm ancorar-


fine Isabel Alarcão, na linha de Senge, terá ○

se, respectivamente, os diferentes níveis do


de ser, certamente, “uma organização [esco- sentimento de si, isto é, o proto-si, o si nuclear

lar] que continuamente se pensa a si própria, e o si autobiográfico. Digamos, tudo se cons-



na sua missão social e na sua organização, e trói dentro dessa dinâmica fundacional sujei-

se confronta com o desenrolar da sua ativi- to-objeto em que acontece a maravilha do co-

dade em um processo heurístico simultane- nhecimento mediada pelo organismo (o cor-



amente avaliativo e formativo” (2001: 25). Ou po) e a mente (o espírito), o minded brain, o

seja, exige atores reflexivos, inteligentes, cor- cérebro espiritualizado e pela cultura ou

diais, responsáveis, exigentes e tolerantes,


multicultura.

que se procurem compreender a si próprios Em outras palavras, sobre os substratos da



na sua interação com os outros de uma for- bioquímica levanta-se a complexa e diversa

ma assumida, sentida e reflexiva, coletiva e construção dos padrões neurais que, por sua

solidariamente. É precisamente esse o pro-


vez, possibilitam as representações sensoriais


cesso heurístico que deverá ser constante- e mentais e as suas interseções e interconexões

mente prosseguido e avaliado para poder ser socioculturais, com as quais o sujeito represen-

verdadeiramente formativo, no sentido da ta, concebe, ajuíza, infere e se pronuncia sobre


formação do novo cidadão de que se neces-


o objeto e o transforma em coisa-a-ser-conhe-


sita para a construção de uma nova ordem cida. Ou, como escreve Vitor da Fonseca:

mundial.

Uma tal concepção abre-nos, com certe- Tal interação está na origem de uma estrutura

za, uma perspectiva inovadora que se nos afi-


mental complexa e hierarquizada, dum órgão


gura altamente desafiadora e rica para nos extremamente organizado, o mais organizado do

servir de guia na reflexão que tentaremos par- organismo, ou seja, o cérebro, o órgão da

tilhar com vocês nesta palestra. É o que ire- cognição, que simultaneamente se transformou

mos fazer, utilizando as três grandes idéias ou também no órgão da civilização. O cérebro, que

campos conceituais que destacamos no pró- só se desenvolveu e desenvolve através da



prio tema, pela ordem inversa, a saber: o sen- aprendizagem individualizada, é fruto da me-

timento de si, a resiliência e a reflexibilidade. diatização dos e com os outros seres humanos.

Finalizaremos com alguns considerandos so- O cérebro determinou e determina assim a



bre as suas implicações na formação dos fu- aprendizagem humana, mas a aprendizagem

turos professores e educadores que terão, cer- contextualizada e mediatizada determinou e



tamente, de ser reflexivos numa escola que se determina inexoravelmente a sua plasticidade

quer também ela própria mais reflexiva, funcional. Em síntese, a cognição humana

interativa, interconectada e relacional, não aprende-se e ensina-se por meio da media-



isolada, insular ou “ilhada”. tização (2001: 94).


36
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva

Parece ser nessa grande aventura, que vem cognitiva: abordagem neuropsicológica da



do fundo da realidade e dos tempos, porventura aprendizagem humana; Avaliação psicope-



milenares, que hoje são ciberespaços e ciber- dagógica dinâmica e Pedagogia mediatizada,



tempos, que emerge o conhecimento em que que aconselho vivamente.


assenta o sentimento de si que atravessa e go- Não irei deter-me diretamente sobre essas



verna toda a atividade do ser humano, e, por problemáticas, embora elas se encontrem



conseguinte, as suas capacidades de conhecer subjacentes a qualquer tentativa de aborda-


e as suas aprendizagens, em que a mediação gem de uma escola reflexiva, mas simplesmen- 37



bioneural, psicossocial e cultural assume te reproduzirei o parágrafo final em que o au-



primacial importância. tor resume, de certa forma, as idéias centrais



Pelo menos metaforicamente, poderíamos de uma pedagogia mediatizada que, em nossa


considerar também, em relação à construção de opinião, é fundamental para desenvolver uma



uma escola reflexiva como uma organização escola verdadeiramente reflexiva. A esse res-



aprendente, esses três níveis de conscien- peito escreve:



cialização que possibilitariam um proto-si, um


si nuclear e um si autobiográfico na evolução [...] a pedagogia mediatizada aplicada no con-



reflexiva da própria escola. Para ser consisten- texto familiar e escolar pode evitar muitas per-

te, uma escola reflexiva terá, em nossa opinião, turbações emocionais e comportamentais,

deixando rastros numa infância dolorosa ou


de ancorar-se nesse conjunto de idéias se se


quer que ela assuma o seu verdadeiro sentido. numa adolescência atípica, ao mesmo tempo

que pode criar crianças e jovens mais compe-


De qualquer modo, por trás de toda essa

tentes, alegres e motivados para aprender, isto


aventura do sentimento do si pessoal e escolar,


é, mais solidários. Como a vida familiar cons-


existe igualmente a idéia de mediação ou

titui a primeira escola de aprendizagem, os


mediatização social, cultural e pedagógica que


pais devem investir mais na interação media-


atravessa toda a atividade do conhecimento e


tizada para os tornar socialmente mais hábeis;


da aprendizagem e que constitui uma das tra- também na escola os professores, por meio da

ves-mestras de um dos últimos livros de Vitor


mediatização, podem criar futuros adultos


da Fonseca – talvez um dos que, a meus olhos,


mais solidários e mais aptos a responderem


é mais sintético, denso, explícito e atual e que, aos desafios complexos da sociedade futura.

de certa forma, condensa as idéias maiores da Em síntese, se queremos uma sociedade mais

sua vasta obra, intitulada Cognição e aprendi-


solidária, a família e a escola terão de ser mais


zagem –, em que pretende responder a uma mediatizadas (2001: 106).



questão central: “Educação cognitiva, por que


A mediatização que se realiza, sobretudo,


e para quê?” A esse propósito, as palavras que


alinha na sua abertura são bem esclarecedoras: por meio de um processo de questionamento

constante, do estabelecimento de pontes



Abordar a cognição e a aprendizagem com uma (bridging) entre os diversos conteúdos, con-

ceitos e atividades, da fundamentação das po-


visão multifacetada que inclua uma introdução


teórica com bases filogenéticas e neuropsi- sições assumidas ou das respostas dadas, da

cológicas e que integre duas componentes prá- descoberta de regras e da enfatização da or-

ticas – um novo modelo de diagnóstico do po- dem, da preditividade, da sistematização e da


tencial de aprendizagem e uma nova interven- seqüencialização e transposição das idéias



ção pedagógica – não é tarefa fácil, num momen- para outras situações semelhantes e do uso

to de grandes incertezas e de grandes desafios das estratégias, exprime bem o modo de tra-

educacionais (2001: 7). balhar dos professores e dos alunos numa es-

cola reflexiva.

É efetivamente sobre esses pressupostos Mas uma escola reflexiva é também uma

que Vitor da Fonseca organiza os três capítulos escola mais resiliente, flexível, inteligente e

do referido livro, a saber: Modificabilidade


emocional. A resiliência é outra das caracte-



rísticas fundamentais que, na sociedade emer- essência da realidade pessoal, relacional,



gente, não poderá estar ausente de uma esco- organizacional e material que o desenvolvi-



la que se quer reflexiva. mento filosófico e científico confirma por meio



das investigações mais avançadas, sobretudo


Os sentidos e os significados nos domínios da ciência cognitiva e das



neurociências. A própria evolução da ciência
de resiliência



física, química e biológica e a sua interseção


Os sentidos e os significados de resiliência caminham nesse sentido.



decorrem também diretamente da ascensão da No mundo humano, efetivamente, o desen-



emergência da consciência e do sentimento de volvimento desse novo conhecimento que im-



si que lhe permite tornar-se e otimizar-se plica novas formas de aprender e desaprender,


como pessoa. Resiliência é apenas uma con- de ser, de estar e de comunicar assenta na



seqüência e uma das expressões mais fortes consciência do sentimento de si. Daí que o



dessa realidade vista sob um outro olhar e, sentido e a pertinência de aprofundarmos o

quiçá, em um nível distinto. Quanto mais a ○

conceito de resiliência e suas implicações na
pessoa se desenvolve, mais flexível, reflexiva e educação – e, por conseguinte, numa escola

resiliente se torna. Reflexibilidade, flexibilida- reflexiva – relacionam-se com a busca e com a



de e resiliência implicam-se mutuamente e afirmação da nossa própria identidade, que


exprimem, de fato, uma mesma visão da reali-


constituem o nosso afazer fundamental. Saber


dade. As mais diversas instituições e as suas o que queremos, o que temos, o que podemos

respectivas formas organizacionais como ex- e o que somos, de onde vimos, onde nos en-

tensões da pessoa serão igualmente tanto mais contramos e para onde vamos são os ingredi-

reflexivas, flexíveis e resilientes quanto mais entes existenciais básicos em que assenta o

refletirem as dimensões da pessoalidade. As sentido realista da nossa auto-estima, do nos-



próprias realidades materiais e biológicas ins- so autoconceito fundamental, do nosso verda-



crevem-se dentro da mesma dinâmica. É esse deiro equilíbrio humano, social e comunitário.

precisamente o sentido profundo de resiliência Essa busca de si próprio, do seu si conheci-



como flexibilidade, como capacidade de refle- do e sentido em níveis, em certa medida, incons-

xão, nos seres conscientes e livres que a sua cientes, subconscientes e conscientes mais ou

própria etimologia tão bem elucida. menos alargados, ou do proto si, do si nuclear e

Vejamos, pois, antes de tudo, o sentido ou autobiográfico damasianos, tem lugar não ape-

os sentidos que ainda vivem na etimologia da nas no tempo da adolescência, mas ao longo de

palavra resiliência. Resiliência é um substan- toda a vida. Hoje, porém, refletir sobre a busca

tivo derivado do prefixo re e do verbo salio, de si, da sua própria identidade, não nos evoca

resilio “voltar para trás”, “voltar ao ponto de apenas pensadores como Sólon, na sua célebre

partida”, “saltitar”, remetendo-nos para algo máxima “Conhece-te a ti mesmo” como princí-

mais fundo, original e autêntico de uma reali- pio da sabedoria, em que assenta a pedagogia

dade que nos escapa e se liga com idéias como


socrática, ou como Erikson nos seus conhecidos


flexibilidade, reflexibilidade, inteligibilidade, estudos sobre a adolescência, mas, nos nossos



abertura, disponibilidade, acolhimento, es- dias, reporta-nos a um autor que, de certa for-

pontaneidade, quer em relação aos objetos, ma, está a contribuir determinantemente para

quer em relação às pessoas e organizações,


uma nova maneira de sentir e de pensar e a exi-


quer em relação aos próprios acontecimentos gir um novo reordenamento da ciência, na socie-

e a toda a trama de relações que se entretecem. dade contemporânea: António Damásio, por

Essa flexibilidade, por sua vez, não poderá des- meio, sobretudo, de duas obras bem conhecidas,

ligar-se também da idéia de resistência, per-


Erro de Descartes e Sentimento de si, em que


sistência, endurance física, biológica, psicoló- condensa boa parte da sua prática investigativa,

gica, social, cultural, ética. Resiliência tem, a do seu pensamento e da sua reflexão.

nosso ver, relação com a percepção da própria Nesse sentido, o conceito de resiliência nos

38
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva

conduz diretamente ao conceito de sentimen- protoconsciência, a consciência nuclear e a



to de si em que assentam os diversos níveis de consciência alargada.



realização da personalidade dos sujeitos, os A protoconsciência é a consciência mais



quais efetivamente possibilitam toda e qual- antiga ou mesmo a ausência de consciência,


quer organização que se quer reflexiva e, por que decorre diretamente do si neural, o proto-



conseguinte, também a escola reflexiva que si, que Damásio descreve como “um conjunto



aqui se procura fundamentar e compreender. coerente de padrões neurais que cartografa, a


cada instante, o estado da estrutura física do 39



organismo nas suas numerosas dimensões”


Escola reflexiva


(2000: 184).


e a nova racionalidade


A consciência nuclear, segundo o mesmo


autor, “surge quando os dispositivos de repre-


que lhe está subjacente


sentação do cérebro geram um relato



Não entrarei na complexa arquitetura imagético e não-verbal de como o estado do



neurocerebral que serve de suporte e possibi- organismo é afetado pelo processamento do


lidade ao psiquismo humano e às marcas e objeto e quando esse processo resulta no real-



configurações que ele imprime em todas as çar da imagem do objeto causativo, colocan-

suas realizações. Não é esse o nosso objetivo, do-a, de forma saliente, num contexto espa-

nem o momento apropriado. Existem estudos,


cial e temporal” (2000: 200). A consciência


investigações, reflexões e conclusões disponí- alargada “é a faculdade que nos dá a saber uma

veis sobre esse domínio, dentre os quais des- larga gama de entidades e acontecimentos, isto

tacaria os de Damásio anteriormente indica- é, a faculdade de criar um sentido de perspec-


dos e a vasta obra de Vitor da Fonseca, sobre- tiva individual, bem como um sentido de per-

tudo um dos seus últimos livros, Cognição e tença e capacidade de ação individuais relati-

aprendizagem, que, como referi, constitui uma vamente a uma extensão de conhecimento

excelente síntese das idéias maiores que o au- muito maior do que aquela que é examinada

tor tem desenvolvido ao longo de mais de vin- na consciência nuclear” (Damásio, 2000: 230).

te anos. Quando abordamos assuntos dessa Na formação da consciência alargada, as



natureza, não podemos, na verdade, perder de memórias autobiográficas da experiência de



vista contribuições tão relevantes, especial- vida da pessoa e a sua capacidade de raciocínio

mente quando nos debruçamos sobre temas são determinantes. É com essa consciência

como os da reflexibilidade, flexibilidade, alargada ou consciência propriamente dita que



resiliência, que nos remetem para níveis mais evocamos todo o nosso passado experiencial,

ou menos conscientes e alargados de consci- antecipamos o futuro, construímos os mais di-


ência e do sentimento de si individual ou co- versos significados e damos sentido à nossa



letivo. existência e à dos outros, nos diferentes con-



Como tivemos a oportunidade de insistir, a textos de vida em que nos encontramos.



etimologia de resiliência prende-se diretamen- Por trás desses diferentes níveis de cons-

te às idéias de reflexibilidade e flexibilidade, que ciência e do sentimento de si está toda uma com-

são atributos próprios da pessoalidade. Por sua plexa arquitetura neural cujas correspondências

vez, a pessoa humana, como sabemos, é incom- não são lineares e constituem o objeto maior das

preensível sem a referência a um conjunto de hipóteses de trabalho do próprio Damásio, que,


dimensões psicológicas que lhe são próprias, como refere, por exemplo, nas páginas 210 e 211

tais como a consciência, a afetividade e a capa- do seu livro Sentimento de si, estão longe de ser

cidade volitiva ou de tomada de decisão. É o óbvias e conclusivas, mas abrem a grande possi-

que, de certa forma, Damásio traduz por senti- bilidade de discutir científica e rigorosamente os

mento de si nos níveis do proto-self, do core self problemas da consciência.



e do autobiographical self, que pressupõem a Não tenho grandes dúvidas de que a escola

existência de três instâncias de consciência: a reflexiva que se pretende implementar como



exigência da sociedade emergente em que vi- o que dizem, pensam e sentem; eles nem nos lêem



vemos terá de partir desses pressupostos nem nos entendem e por isso não sabem o que pen-



neuropsicológicos e filogenéticos que possibi- samos, sentimos e somos, verdadeiramente. Preci-



litam uma nova racionalidade, a qual, por sua samos marcar o nosso lugar no mundo sem com-


vez, procura explicar e compreender a realida- plexos nem subserviências.



de à luz de uma outra epistemologia, menos li-



near e mais espiralada, menos metonímica,
Implicações para os


denotativa, digital, lógica e mais metafórica,



conotativa, analógica e cibernética, por meio de profissionais da educação, os



novos paradigmas. Essa é uma idéia forte que
professores e os educadores



ultimamente nos habita, em que trabalhamos


e sobre a qual temos falado e escrito (Tavares, Na perspectiva que acabamos de apresentar,



2000; 2001), mas é também algo que faz já par- as implicações da escola reflexiva para os profis-



te de um patrimônio coletivo pertencente a sionais da educação são óbvias quer no nível da


outros autores e estudiosos que se debruçam ○
sua formação, quer no nível do seu desempenho
sobre essa problemática, entre os quais desta- profissional. Ou seja, hoje, como ontem, não é

caria, se me é permitido alinhar aqui apenas al- possível formar um cidadão para as sociedades

guns nomes brasileiros que, neste momento, dos nossos dias sem atender a que essa forma-

ção terá de ser, essencialmente, flexível, reflexi-


me vêm espontaneamente ao espírito, Paulo


Freire, Moacir Gadotti, Ivani Fazenda, Selma va, resiliente, comprometida, social, solidária.

Garrido, Vera Placco, Emília Engers, Bernadette Aliás, é esse o sentido profundo do próprio de-

Gatti, Iria Brzezinski, Dermeval Saviani, Luís senvolvimento humano que vem das fundamen-

Carlos Menezes, Eunice Ribeiro Durhan, Elsa tações neurobiológicas do proto-si e vai até a sua

Garrido, entre muitos outros. expansão em desenvolvimento constante no si



Penso que é tempo de reconhecer a nossa enor- autobiográfico, passando pelo si nuclear que se

me valia de povos latinos e, designadamente, os de vai construindo e representando, expresso pro-


língua portuguesa, e não ficarmos constantemente gressivamente por meio de narrativas neurais,

a referir e a parafrasear autores anglo-saxônicos que, imagéticas e mentais em níveis mais ou menos

de fato, não nos ensinam nada de novo. Só há uma abstratos, como se pretende explicitar no esque-

pequena grande diferença: nós os lemos e sabemos ma da figura abaixo.




Modelo do desenvolvimento da consciência e construção do sentimento de si



como condição sine qua non para uma escola reflexiva





Tronco cerebral Lobo frontal


Formação reticulada

Lobo parietal

Tubérculos quadrigêmeos ou Consciência Córtex cingulado


autobiográfica Si autobiográfico

culículos

Hipotálamo





Córtex cingulado Consciência nuclear Si nuclear


Tálamo

Culículos superiores

Núcleos do tronco cerebral


Proto Hipotálamo e

consciência Proto si

prosencéfalo basal

Ínsula



40
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva

• a de uma visão partilhada (shared vision),



Parece ser essa a enigmática e maravilhosa ou seja, construção coletiva de visões para



dialética da ascensão humana, aliás coerente o futuro e de princípios e linhas orien-


com outras muitas abordagens e representações tadoras da sua implementação, enquadra-



em que a capacidade de reflexão pessoal e co- doras do empenhamento de cada um dos


membros;


letiva é proporcional ao desenvolvimento da



consciencialização, possibilitando, nessa mes- • a da aprendizagem em grupo, capacidade


ma medida, comunidades verdadeiramente de pensar em conjunto, de “rendibilizar” as 41



humanas e, por conseguinte, escolas mais re- situações de diálogo e de pensamento cole-


tivo em que a competência desenvolvida no


flexivas em que os seus principais atores este-


jam mais interconectados, conscientes, motiva- grupo é superior à soma dos talentos indi-



dos, livres. viduais;



Educar, formar profissionais da educação • a do pensamento sistêmico (systems


thinking), capacidade de ter a visão de


para a reflexão não apenas pessoal, mas tam-


bém social e comunitária, implica com certeza conjunto e de compreender as inter-rela-



fazê-lo de um modo mais reflexivo, flexível, ções das partes entre si e delas no conjun-


to do todo.

consciente, responsável e livre. É um caminho

que parece reabrir-se a essa sociedade e a essa Nessa concepção destacam-se, claramente,

escola, para o qual os seus principais atores, os os componentes de pensamento, reflexão, re-

professores e os educadores, não poderão ficar lacionamento social e cultural e diálogo, que são

insensíveis. Daí que seja urgente pensar a sua também os ingredientes postos em relevo por

formação sob uma outra luz que lhes permita Isabel Alarcão na sua definição de escola refle-

preparar-se de modo diferente para responder xiva que transcrevemos e comentamos acima.

a esses novos desafios. De qualquer modo, o essencial dessa con-



Que formação? É a questão que se coloca de cepção consiste em mudar a nossa maneira de

imediato, e penso que é também a essa ques- pensar, de sentir, de agir e de interagir. Essa é,

tão que este Congresso Brasileiro de Qualidade com certeza, a condição sine qua non para mu-

na Educação – Formação de Professores – pro- dar as organizações e, portanto, a escola. De



curará dar respostas. uma escola burocratizante e de aprendizagens


Essa resposta passa pela concepção da es-


de conteúdos estáticos para uma escola mais


cola, da sua organização e atuação de uma for- reflexiva e desburocratizada, um lugar de ver-

ma diferente, apontando claramente na direção dadeira construção, produção social do conhe-



do que Senge chama de organização cimento e de preparação para a vida ativa numa

aprendente e qualificante e define como


dinâmica colaborativa, partilhada e solidária.


“organization that is continually expanding its Realizar essa mudança, que constitui uma

capacity to create the future” (1994: 14). A esco- verdadeira transmutação, porventura genética,

la aprendente de Senge integra várias compo- psicológica, social, cultural, no dia-a-dia das

nentes (disciplines):

nossas escolas, das nossas organizações e das


• a do domínio pessoal, isto é, capacidade de nossas vidas é o grande desafio que se nos co-

“saber o que se quer”, de criar condições que loca de modo premente e urgente, designa-

encorajem os membros da organização a


damente, aos professores, aos educadores e a


caminhar no sentido traçado e de manter a todos os outros agentes educativos. Parece-me



motivação, implicando, por conseguinte, também que os principais atores da educação,


equilíbrio pessoal e aceitação do seu papel


nomeadamente os professores e os educadores,


na inovação;

estão a assumir esse desafio com grande digni-


• a dos modelos mentais, digamos, capaci- dade, entusiasmo, disponibilidade e sentido de



dade de continuamente refletir, clarificar e responsabilidade, e aqui queria referir-me mui-


aprofundar as suas idéias e as dos seus


to concretamente, pelo que conheço, aos pro-


membros;

fessores e educadores da escola brasileira, não



obstante as enormes dificuldades que o desem- Bibliografia



penho da sua profissão ainda acarreta nas es-


ALARCÃO, I. (Org.). Escola reflexiva e nova racionalidade .


colas onde trabalham.


Porto Alegre: Artmed, 2001.


A esta luz, desenvolver estratégias de forma- . (Org.). Escola reflexiva e supervisão: uma


ção mais reflexivas e resilientes por meio de um


escola em desenvolvimento e aprendizagem. Porto:


maior desenvolvimento do sentimento de si, Porto Editora, 2001.



pessoal e coletivo, nos diferentes níveis ou sé- BRZEZINSKI, I. (Org.). Formação de professores: um de-


ries do sistema educativo e avaliar os resulta- safio. Goiânia: Editora UCG, 1996.



. Pedagogia, pedagogos e formação de pro-
dos obtidos é, sem dúvida, um dos caminhos a


fessores: busca e movimento. 3. ed. Campinas: Papirus,


seguir. Os instrumentos para avaliar esse tipo


2000.


de experiência ainda não são muito fiáveis. Exis- CARNEIRO, R. Sociedade e informação . Lisboa: Texto, 1997.


tem, no entanto, já alguns trabalhos, entre os


CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma


quais os de Grotberg, Cobassa, Tavares e teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.



Albuquerque, em que se tem procurado elabo- DAMÁSIO, A. O sentimento de si: o corpo, a emoção e a

○ neurobiologia da consciência. Mira-Sintra: Publicações
rar instrumentos de avaliação em torno do con- ○

Europa-América, 2000.
ceito de auto-estima dos sujeitos em relação ao

ERIKSON, E. H. Identidade: juventude e crise. São Paulo:


ter, ao poder, ao querer e ao ser, que se têm re-


Harper & Row do Brasil, 1976.


velado sensíveis para compreender essa dimen- . Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar,

são da personalidade que nos parece essencial 1976.


para configurar a escola reflexiva que defende- FONSECA, V. Cognição e aprendizagem . Lisboa: Âncora,

mos. Afigura-se-nos efetivamente que é por essa 2001.


GEORGEN, P.; SAVIANI, D. (Orgs.). Formação de profes-


via que será necessário continuar, porventura,


sores: a experiência internacional sob o olhar brasilei-


recorrendo às teses defendidas por Damásio em

ro. Campinas: Autores Associados, 1998.


torno da consciência e do sentimento de si e das

MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, refor-


suas mútuas implicações no nível do si neuronal


mar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.


ou do proto-si, do si nuclear e autobiográfico, PLACCO, V. M. N. S. Formação e prática do educador e do


uma nova via para perceber como se constrói a


orientador: confrontos e questionamentos. Campinas:


pessoa do sujeito humano e, conseqüentemen- Papirus, 1994.



ROLDÃO, M. C.; MARQUES, R. (Orgs.). Inovação, currículo


te, o sentido profundo da emergência da consci-

e formação. Porto: Porto Editora, 2001.


ência, da emoção, da reflexibilidade, da flexibi-


SENGE, P. The fifth discipline: the art practice of the learning


lidade, da resiliência, que não só exprimem as

organization. 2. ed. New York: Currency Doubleday, 1994.


modalidades do desenvolvimento humano, mas


TAVARES, J. Uma sociedade que aprende e se desenvolve:


também as diversas formas que deverão confi- relações interpessoais. Porto: Porto Editora, 1996.

gurar a formação e a educação do novo cidadão . (Org.). Resiliência e educação . São Paulo:

numa escola que se quer mais inteligente, Cortez, 2001.



TAVARES, J.; ALBUQUERQUE, A. M. Sentidos e implica-


aprendente, qualificante, cordial, solidária, exi-

ções da resiliência na formação. Revista de Psicologia,


gente e tolerante, reflexiva. Para que essa escola


Educação, Cultura, v. II, n. 1, p. 143-52, Gaia: Colégio


aconteça e se desenvolva, certamente os profes- Internato dos Carvalhos, maio 1998.


sores e os educadores terão de rever o seu real


TAVARES, J.; BRZEZINSKI, I. Construção do conhecimen-


envolvimento e desempenho e preparar-se, for- to profissional: um novo paradigma científico e de for-



mar-se continuadamente, ao longo da vida, para mação. Aveiro: Universidade de Aveiro, 1999.

realizar essa missão.














42
SIMPÓSIO 3

DESENVOLVIMENTO DA
COMPETÊNCIA LEITORA E
ESCRITORA DOS PROFESSORES
Ângela B. Kleiman

Beatriz Cardoso

Euzi Rodrigues Moraes

43
A competência leitora:




desafios para o professor






Ângela B. Kleiman



Universidade Estadual de Campinas/SP







Dada a importância da leitura para o desen- são cultural e, mais tarde, uma perspectiva so-



volvimento pleno do aluno, para a cidadania cial crítica, própria dos estudos do letramento,



crítica e para a participação nas práticas soci- visando ao fortalecimento do professor.


ais das instituições que usam a escrita, a pro-



cura de soluções para a chamada “crise de lei-
tura” das três últimas décadas compete a todo ○


O leitor
professor, no seu domínio específico de ação, e Nas décadas de 1970 e 1980, o ensino foi for-

ao professor de português, no seu domínio re- temente influenciado pelos resultados de pes-

lativo ao ensino de aspectos lingüísticos e quisas da Psicologia Cognitiva e da Psico-



discursivos da modalidade escrita da língua. lingüística, ciências que forneceram, nessa épo-

Pode-se pensar no ensino de leitura na esco- ca, as principais vertentes teóricas em relação ao

la como tendo dois objetivos básicos: um deles estudo da leitura. Tanto na Psicolingüística como

é o incentivo e o desenvolvimento do gosto pela na Psicologia Cognitiva, o sujeito leitor ocupa



leitura e o outro, o desenvolvimento da capaci- lugar preeminente e central, daí o interesse pelo

dade de compreensão do texto escrito. Para atin- seu funcionamento cognitivo durante a compre-

gir o primeiro objetivo, precisamos de pessoas, ensão e pelas relações entre linguagem e pensa-

atividades e infra-estrutura que permitam o con- mento durante a leitura. Essas abordagens pres-

tato prazeroso com o livro, a experimentação, o supunham um leitor inteligente, que reagia não

manuseio de muitos e variados suportes e reper- apenas aos estímulos externos – as letras no pa-

tórios de textos: professores que contagiem com pel –, fazendo todas as permutações e combina-

seu entusiasmo pela leitura, contadores de his- ções possíveis já aprendidas, mas que se anteci-

pava, elaborava hipóteses, enfim, usava, em no-


tórias, bibliotecários prestativos, bibliotecas


bem-aparelhadas, atividades lúdicas que envol- vas e imprevisíveis combinações, todo o seu co-

vam a leitura, são todos eles essenciais. Para atin- nhecimento e experiência acumulados. O impac-

gir o segundo objetivo, precisamos de tudo o que to dessa pesquisa no ensino foi considerável para

a ampliação da concepção do que era leitura: por


foi anteriormente citado e, ainda, de um profes-


sor bem-formado que seja, além de leitor, for- exemplo, em vez de se exigir apenas a oralização

mador de novos leitores, orientando os muitos certa da leitura, passaram a ser desenvolvidas

caminhos que se pode tomar para chegar à cons- abordagens para o ensino de estratégias para tra-

balhar o texto.

trução de um sentido.

Esta apresentação visa a discutir três aspec- Aliás, se um programa de leitura estiver fun-

tos da leitura relevantes para o seu ensino na damentado nos estudos cognitivos, um de seus

escola e para a formação do professor: os aspec- objetivos certamente será o desenvolvimento de


um leitor independente, capaz de entender tex-


tos cognitivos, os aspectos textuais e, por últi-


mo, os elementos sociais a serem levados em tos de diversos gêneros sem a mediação de um

conta no desenvolvimento de atividades didáti- adulto, professor ou leitor mais experiente, por

cas com o objetivo de formar leitores. Discutire- meio de programas que propiciem atividades para

mos as contribuições de estudos sobre os aspec- o aluno a desenvolver um conjunto de estratégias



tos sociocognitivos da leitura, aos quais foi sen- de compreensão de língua escrita envolvendo o

do progressivamente incrementada uma dimen- uso, monitorado ou não, de sua memória, de sua

44
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores

capacidade de inferência, de sua atenção. Visan- dos grupos sociais nas diversas práticas cultu-



do àquele momento de independência, um pro- rais. A prática cultural passa a ter lugar central



grama de leitura nessas linhas deverá incluir ati- na investigação e, portanto, as áreas que se ocu-



vidades de leitura mediadas pelo professor, por pam das práticas discursivas, do impacto social


meio das quais ele cria e modela estratégias de e cultural da escrita e da história da escrita e



leitura cada vez mais complexas e que exigem dos leitores são as que passam a fornecer as



cada vez mais independência do aluno. vertentes teórico-metodológicas mais impor-


tantes para a investigação dos usos da escrita, 45



em geral, e da leitura, em particular.
O texto



As questões tornam-se mais amplas, porque


No fim da década de 1980 e início dos anos


as áreas que subsidiam as pesquisas fazem


1990, foram sendo realizadas novas pesquisas questionamentos mais abrangentes, não ape-



sobre as formas naturais de se testar leitores, nas sobre a compreensão da leitura, mas tam-


envolvendo situações reais de leitura de textos


bém sobre o papel e o impacto da escrita na vida


autênticos, e o tipo de texto lido passou a ocu-


social. Parte-se do pressuposto de que não se


par um lugar mais importante. As característi- pode estudar o leitor sem história nem identi-



cas do texto, a sua legibilidade, os diversos me- dade: são investigadas, então, as práticas leito-

canismos de textualização, as relações de ○


ras da mulher jovem, ou do professor rural, em


similitude e diferença entre o oral e o escrito, as

algum momento do seu percurso escolar, pro-


relativas dificuldades de leitura de determinados fissional ou social, em face de um determinado



gêneros tornam-se relevantes na pesquisa. A área gênero em voga numa determinada época. Aos

que trouxe e traz importantes subsídios para es-


focos de interesse que incidiam sobre o leitor e


sas questões é a Lingüística Textual. o texto, agrega-se agora o contexto, seja ele o

Uma contribuição importante nesse sentido mais imediato da atividade de leitura, seja o

é o conceito de intertextualidade (a remissão de macrocontexto institucional, histórico, social.


um texto a outro), extremamente relevante para


Os impactos desses estudos (conhecidos como


determinar a dificuldade de um texto. Segundo estudos do letramento) no ensino, segundo



Vigner (1988), a intertextualidade é a condição Kleiman e Moraes (1999: 57), são os que seguem.

do texto que diz respeito às suas relações com • As práticas de leitura e de produção de tex-

outros textos e fator essencial da sua legibilidade,


tos escritos são extremamente abrangentes.


primeiro, porque o texto funciona segundo leis, Numa sociedade complexa, a “tecnologia”

códigos e convenções de um gênero (uma nor- da escrita permeia todas as instituições e


relações sociais e determina até modos de


ma a ser seguida ou subvertida) cujo reconheci-


mento regula as expectativas do leitor; e, segun- falar sobre os assuntos e os textos.



do, porque o texto traz em si fragmentos de sen- • A relação entre oralidade e escrita não é de

tidos de outras fontes – reescrituras de outros opostos, mas de um contínuo. Portanto não

textos – cuja percepção e interpretação facilitam há oposições totais entre textos orais e es-

ou dificultam o ato de ler. critos – haveria redes de relações que os



aproximariam gradativamente.

• As práticas de uso da escrita são dependen-


A interação e a prática social

tes do contexto e da instituição e, portanto,


Mais recentemente, os estudos sobre a ca- a aprendizagem de práticas de leitura im-



pacidade de compreender, de inferir e de de- plica a aprendizagem das normas das insti-

duzir numa situação individual de leitura ce- tuições que legitimam essas práticas.

dem lugar para perguntas sobre a construção Não há, do ponto de vista do ensino, incom-

social do conhecimento nas diversas institui-


patibilidade entre esses enfoques. Eles se com-


ções em que os textos escritos tipicamente cir- plementam. Um programa de ensino da leitura

culam. Em decorrência desse interesse, surgem que vise introduzir o aluno nas práticas sociais

pesquisas sobre os usos da escrita pelos varia- valorizadas na sociedade é perfeitamente con-

sistente com a focalização, em algum momento como uma restituição para os sujeitos pesqui-



do programa, de algum aspecto da capacidade in- sados (Portelli, 1997), então, ao não-leitor deve-



dividual do leitor, como, por exemplo, os aspec- ríamos estar devolvendo o direito ao prazer da



tos cognitivos envolvidos na compreensão, a fim leitura; ao cidadão comum, o direito a continuar


de desenvolver estratégias cognitivas eficientes no aprendendo ao longo da vida através da leitura;



processo de compreensão do texto escrito. ao professor, o direito a sentir-se capaz e seguro



Há vinte anos, a pesquisa sobre a leitura na sua profissão de formador de leitores.



apontava exclusivamente os problemas, mos-


trando, por exemplo, aquilo que os leitores não



conseguiam compreender e/ou aquilo que os
Bibliografia



professores não conseguiam ensinar. Há, nesse


tipo de pesquisa, o risco de os sujeitos partici- KLEIMAN, A. B. A formação do leitor: uma abordagem



psicossocial. Prepes Virtual / Ensino do Português : a
pantes das pesquisas – os alunos e seus profes-


formação do professor leitor, autor e analista de textos.


sores – emergirem fragilizados; contudo os pos-

PUC/MG, 2001.

síveis efeitos negativos diminuirão se houver ○

KLEIMAN, A. B.; MORAES, S. E. Leitura e interdisciplinari-


posicionamento crítico diante do fato social. Isso

dade: tecendo redes nos projetos da escola. Campinas:


envolve uma tomada de posição ao lado dos Mercado de Letras, 1999.



menos poderosos, dos menos escolarizados, dos PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. Algumas

reflexões sobre a ética na história oral. Projeto História,


menos letrados, bem como a ajuda, a promoção


n. 15, p. 13-33, São Paulo, abril 1997.


ou o avanço desses mesmos grupos. Essa é a ca-

VIGNER, G. Intertextualidade, norma e legibilidade. In:


racterística que devemos exigir hoje da pesqui-


GALVES, C. (Org.). O texto: escrita e leitura. Campinas:


sa sobre a leitura. Se a pesquisa é entendida Pontes Editores, 1988.












Desenvolvimento da


competência leitora e escritora




dos professores



Beatriz Cardoso

Cedac




Resumo




Hoje há um consenso de que o professor pre- des e limites de inserção desse profissional no

cisa desenvolver sua competência leitora e escri- mundo da escrita.



tora. É preciso identificar com maior precisão as O processo de formação implica necessaria-

formas de que dispomos nos processos de mente uma interlocução do sujeito com as suas re-

capacitação, para poder ajudá-lo a se aprimorar presentações, à luz das dos outros. Dentro dessa

nesse campo. Apoiada na reflexão sobre experiên- perspectiva, a escrita pode e deve ser incorporada,

cias de capacitação continuada de docentes, pro-


no trabalho de capacitação, como um instrumento


curarei discutir as características do texto escrito privilegiado. A questão é justamente refletir sobre

que a profissão docente requisita e as possibilida- como e quando essa tarefa pode ser produtiva.

46
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores

Desenvolvimento da




competência leitora e escritora






Euzi Rodrigues Moraes



Rede Interdisciplinar de Educação (Ried)/ES



47





Quem escreve, assim como quem lê, o faz Procurei sugerir a Bianca alguns livros que


eu julgava mais interessantes para a idade dela.


basicamente movido por um incontrolável de-


Não surtiu efeito. O próximo livro que ela esco-


sejo de se comunicar. Escritores e leitores nun-


ca estão sozinhos, por mais solitários que pare- lheu foi Linguagem total, de Francisco Gutierrez,



çam ser esses momentos interativos de criação e o seguinte, Educar para quê?, de Reinaldo


Matias Fleuri.


de significados. Ler e escrever são procedimen-


tos indissociáveis e de alta significação social. E o tempo foi passando, enquanto Bianca



Não podem tampouco se desvincular da comu- devorava os livros, até que um dia ela me disse,

nicação por meio da fala. Gostaríamos, então,



com olhos iluminados: “Agora estou escreven-


do! Já escrevi cinco páginas”. “Posso ler o que

de discutir competência leitora e escritora no


contexto mais amplo da comunicação humana você escreveu?” – perguntei.



e do desenvolvimento da competência comu- Com a permissão dela, fui virando as pági-


nas e descobrindo que o que ela fizera fora co-


nicativa.

piar partes dos livros. Dava para notar que ela


Ensinar a ler e escrever é um dos papéis mais


fundamentais da escola, se não o mais funda- estava orgulhosa do seu feito. A letra era boa e a

mental. Não se pode, portanto, pensar a forma- escrita caprichada. “Dá pra você escrever algu-

ma coisa da sua cabeça?” – perguntei. Ela sorriu.


ção de comunicadores competentes sem refle-


Dias depois, Bianca me trouxe outra página


tir sobre a ação da escola. Essa reflexão se apóia,


pois, em três focos: os alunos, os professores e escrita. Era a transcrição de um poema inti-

a escola. tulado Solidão. Queria minha opinião sobre a


sua letra, que era firme e insinuante, com tre-



jeitos... letra sestrosa de menina-moça.


Os alunos

Elogiei a letra dela – merecidamente. Li o



Como lêem e escrevem os alunos de nossas poema. Fiz alguns comentários pouco relevan-

escolas? Que desempenho têm na sociedade, tes, e insisti: “Por que você não escreve uma

como leitores e escritores? Exemplos é que não coisa da sua cabeça?”. “Eu não sei” – ela disse.

faltam. Estou pensando agora em Bianca – 16 Como formar leitores e escritores? Sabemos

anos, 6ª série, aluna da escola pública. que temos pela frente um sério desafio.

Bianca veio trabalhar e morar na minha casa Em 1988, a 33ª Convenção Anual da Associa-

há dois meses. Chegou e, por iniciativa própria, ção Internacional de Leitura aprovou uma Re-

mergulhou nas estantes de livros. E passou a solução que levava o título Sobre o apoio dos

“ler” avidamente, livro após livro. Pelo menos


pais ao desenvolvimento da linguagem da cri-


era a impressão que se tinha, pois ela se posta- ança. Ao conclamar as famílias a uma parceria

va em algum canto da casa, virando páginas, com a escola, diz a Resolução que “as crianças

enquanto deslizava os olhos sobre o texto es- aprendem mais durante os seus primeiros cin-

crito. Intrigada, perguntei um dia à garota: “Que


co anos do que em qualquer outro período de


livro é este que você está lendo?” Era um exem- sua vida, por isso são os pais seus primeiros e

plar da revista Trabalhos em Lingüística Apli- mais importantes professores”. O papel dos pais

cada, da Unicamp. “Está dando pra entender?” foi definido, no documento, como “provedores

– provoquei. “Mais ou menos” – disse ela.


de um ambiente rico em linguagem”.



Os relatos de Bianca dão conta de que fal- beça”, isto é, escreviam. Cópia, montagem, imi-



tou a ela esse ambiente alfabetizador, rico em tação, colagem, colcha de retalhos são todos ró-



linguagem. Segundo o que apurei, ela não tem tulos para a produção escrita não-independen-



e nunca teve uma família estruturada, nunca te, amarrada às palavras do autor sintetizado:


viveu em ambiente letrado nem manteve jamais produto de leitura de palavras, não de idéias. O



qualquer contato com materiais escritos. texto chamado alienado e o lamento são válvu-



Bianca não é um caso isolado. Ela represen- las de escape para um discurso político que in-


ta um grande contingente de alunos da escola felizmente já virou clichê sem produzir resulta-



pública brasileira. dos: as reivindicações por melhores salários ou



A vida na creche é outra situação típica da condições de trabalho. As idéias do texto a sin-



rotina de numerosas crianças em nosso país, a tetizar? Nem menção a elas. A “síntese” da “lei-


maioria delas filhas e filhos do analfabetismo. tura” feita mostra que não aconteceu o diálogo



É confortador saber que já não se pensam mais escritor/leitor, não houve comunicação.



as creches somente como lugar onde as crian- Não foi mencionada no estudo uma forma


ças são cuidadas enquanto os pais trabalham, ○
de composição escrita que resolvemos chamar
mas também como espaço de educação, de de texto-fala, em virtude da semelhança com a

aprendizagem. Creche é hoje sinônimo de Edu- língua que se fala. É um texto autônomo, tem a

cação Infantil. Vamos torcer para que elas se marca de seu autor, mas não é elaborado como

tornem, no lugar dos pais, as provedoras desse os textos construídos na linguagem com que se

ambiente rico em linguagem de que fala a As- escreve.



sociação Internacional de Leitura. Esse ponto precisa ser mais investigado.



Será que uma estratégia para o desenvolvimen-


to da competência escritora dos professores


Os professores

seria estimulá-los a escrever a fala e, então,



No artigo “A evolução da leitura e da escrita tematizar o texto, submetendo-o a um proces-



de um grupo de professores: estudo de caso”, so de “tradução” para a escrita padrão? Não se-

publicado na Revista Brasileira de Estudos Pe- ria esse o caminho para libertar os professores

dagógicos, n. 195, encontramos uma tipologia de sua arraigada formação na cópia (na cópia

de textos que tenta identificar as característi- mecânica)?


cas da produção escrita de um grupo de pro-


Assim como ensinar a ler é, em sua essência,


fessores participantes do Projeto Formar, um um empreendimento político, como dizem John



projeto de formação continuada de professores, Chapman e Pam Czerniewska no livro Leitura:



desenvolvido no Espírito Santo. do processo à prática, ensinar a escrever com au-


Esse grupo de professores foi acompanha-


tonomia, isto é, ensinar a escrever, também o é.


do, durante um período de dez meses, por meio Em seus escritos, Paulo Freire sempre insistiu: é

da análise das sínteses que eles produziam após preciso ter voz, é preciso ler o mundo.

leitura e discussão de textos programados para Refletindo sobre o trabalho dos professores

estudo durante aquele período.


de leitura, Chapman e Czerniewska fazem a se-


A tipologia apresenta oito categorias de tex- guinte pergunta: “Para que vale a leitura?” Fa-

to: texto-cópia, texto-imitação, texto alienado, zendo eco, nós perguntamos: “Para que vale a

texto-lamento, texto-colagem, texto-colcha-de- escrita?”


retalhos, texto-montagem e texto com autoria.


E eles prosseguem:

Como se pode perceber, a classificação pro-



cede da cópia e segue até atingir o texto com Quando nos damos conta de que a segunda

autoria. Isso quer dizer que, no início dos estu- maior causa de morte entre adolescentes nos

dos, em março de 1998, as sínteses que os pro-


Estados Unidos é o suicídio, ou que mais pes-


fessores faziam eram montagens de trechos lite- soas são hospitalizadas para tratamento de

ralmente copiados do texto original, enquanto doenças mentais do que devido a todas as ou-

no final do ano já escreviam “de sua própria ca- tras doenças juntas, ou que um em cada 22

48
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores

homicídios é cometido contra a criança pelo seu


A escola



próprio pai ou mãe, ou que mais da metade dos


Como são nossas escolas? Queremos que


alunos do ensino médio já experimentou drogas,


ou que no final do ano haverá mais de um mi- as práticas escolares sejam semelhantes às



lhão de alunos evadidos de nossas escolas, pode- práticas sociais. E podemos afirmar, hoje, que


está em curso um processo de renovação pe-


se desconfiar da ação formativa da escola.


dagógica em todo o mundo e, evidentemen-



Interpretando: pode-se desconfiar da ação te, em nosso país e que, em muitas escolas, 49



formativa dos programas de leitura da escola e esse nosso desejo está virando realidade. Pro-


da pertinência dos textos para a vida dos alu- gramas inovadores estão sendo implemen-



nos. O que ler? Esta é uma pergunta igualmen- tados, provocando e subsidiando essa reno-



te importante. vação – e não sem razão. Mas temos um ca-


Ler e escrever não são procedimentos neu- minho longo a trilhar.



tros, como mostra o texto acima. Esse livro foi Uma pesquisa realizada no Programa de



publicado pela primeira vez em 1978 e retrata a Mestrado em Educação da Universidade Fede-



vida em uma outra sociedade, a norte-ameri- ral do Espírito Santo faz algumas revelações


cana. Mas acho que a pergunta que originou o sobre um contrato didático ainda em vigor na


alerta que acabo de compartilhar com os cole- ○

maioria das escolas brasileiras.
gas continua oportuna: “Para que vale a leitu- Como estamos discutindo processos co-

ra? Para que ensinar a ler e escrever?” Para de- municativos, podemos (e acho que devemos)

senvolver a competência leitora e escritora de incluir também a interlocução falante/ou-



alunos e professores, precisamos ensinar-lhes vinte em seus vários níveis, que é o que nos

a pensar, a organizar o pensamento, a selecio- mostram os dados dessa pesquisa. Numa



nar suas leituras, a fazer recortes adequados na tentativa de retratar graficamente o percur-

realidade que eles querem retratar em sua es- so do alfabetizando desde a sua chegada à

crita, a ser leitores críticos. Em síntese, leitor e classe até a sua saída, a autora elaborou a

escritor competente é leitor e escritor cidadão. seguinte figura:






ALFABETIZ

DE

SSE O DIALETO AÇ



CLA

ÃO

D

TEX
O
MÉT

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CARTILHA
TO

CULTU
RA DISCURSO DIALE


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RIÓ
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CULTU
AUTOR

TIPOS

PROFESSOR

O

FO R

ITA


CR
M

ES

ÃO
D IA L E T O









O que nos mostra a figura da página ante-


P: Como é que se faz, certo mesmo?


rior? Ela desenha três perfis: o perfil da criança A: [ d i ]



ao entrar na escola, o perfil da classe e o perfil P: É, mas acontece que nós não somos


paulistas. O certo é [ d i ]. Mas nós não faze-


da criança feita aluno, no fim do ano. Charles


Hockett (1959) diz que a criança é lingüis- mos esse som carregado assim, [ d i ]. O [ d i ]



para nós é [ dZi ], mas o certo, o som mesmo
ticamente adulta na faixa dos 4 aos 6 anos. Atu-


seria [ d i ].


alizando essa afirmação e aplicando-a à escola,


Instala-se então a oposição certo/errado, já
poderíamos dizer que a criança é comuni-



com conotações sociais.
cativamente adulta quando chega à escola. É



assim que a vemos no primeiro círculo.


Exemplos:


E que relação tem isso com o desenvolvi-


1. P: Hoje faltou quem?
mento da competência leitora e escritora na


A: Ineis.


escola? O que é que esse quadro nos diz? Ele nos


P: Inês.


diz que não são apenas conteúdos conceituais


os que os professores ensinam. Seus gestos, seus ○

2. P: E isto aqui o que é?


procedimentos, suas atitudes, sua fala também

A: Iscada.

ensinam, assim como o contexto da sala de aula P: Iscada não. Iscada não existe. Iscada é uma

e da escola. (Sobre tipologia de conteúdos, ver maneira errada da gente dizer.



Zabala, 1998.)

A seta que atravessa os três círculos represen- Uma das causas desse problema é uma con-

ta a passagem da criança pela escola. Essa passa- cepção equivocada do funcionamento da lin-

gem é descrita como um processo de robotização. guagem.


O aluno, a aluna, entra criança e sai robô.



Os dados recolhidos nas interlocuções en-


O discurso

tre professora e alunos durante a aula são



categorizados como traços do dialeto, do dis- O discurso em classe é regido por um acor-

curso e da cultura na comunidade da sala de do tácito entre professora e alunos, válido so-

aula. Que dados são esses, invocados para fun- mente dentro das fronteiras da sala de aula: o

damentar esta leitura? importante não é interagir pensando, resolven-



do problemas. O que vale na sala de aula é en-


tender as dicas da professora e aceitar passi-


O dialeto

vamente as regras do jogo: ou ficando em si-



Segundo a pesquisa, há três dialetos con- lêncio ou dando a resposta previamente


correntes na sala de aula: o dialeto pessoal da


estabelecida, para agradar a professora e fe-


professora, o dialeto dos alunos e um dialeto char a interlocução.



que se convencionou chamar de dialeto da al-



fabetização. A professora utiliza o dialeto da Exemplos:


alfabetização quando está “ensinando a lição”,


1. A: Ela me chamou de adrona!


mas de vez em quando se descola de seu pa- P: Ladrona?



pel de professora para fazer algum comentá- A: É!


P: (Silêncio).

rio mais pessoal. Ela diz, por exemplo


[tezoura], quando está ensinando, e [t∫izora]


2. A: Tia, sabe onde eu moro? Tia, sabe onde eu


quando está sendo mais informal. Os alunos


moro? Num apartamento!


dizem sistematicamente [t∫izora], porque são


P: (Silêncio).

capixabas em sua quase totalidade. O diálogo


que se segue mostra a insegurança da profes-


3. A: Tia, tá perto da hora da merenda?


sora diante da variação dialetal que incide P: Não, tá longe!



sobre a pronúncia de d + i: A: (Silêncio).




50
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores

A cultura


4. A: Tia, tá quase na hora do recreio?


P: Não.


O dialeto e o discurso da classe de alfabeti-


A: (Silêncio).


zação geram uma cultura da incomunicação, na



5. P: Camilo podia ter usado o cordão grande? qual o autoritarismo, o dogmatismo, o


artificialismo e o silêncio ensinam – e muito


Classe (em coro): Não!


P: Por quê? bem – a criança a copiar ou a produzir escritos



Classe (em coro): Podia! que não comunicam nada. A escola tem estra- 51



tégias poderosas de ensino. Esse poder e essa


Observamos que, na interação nº 5, a per- força poderiam muito bem ser utilizados na cri-



gunta “Por quê?” não é uma pergunta verda- ação de um ambiente escolar propício ao de-



deira, problematizadora. Ela não pede uma ex- senvolvimento da competência comunicativa


dos alunos na fala, na leitura, na escrita.


plicação para a resposta dada. E os alunos en-


tendem muito bem isso. Eles sabem que, na



cultura da sala de aula, o “Por quê?” da profes-
A prática da comunicação


sora significa rejeição à sua resposta. E, como


a escolha era binária, eles não perderam tem- verbal na escola


po. Recorreram à única possibilidade que res- ○

A comunicação verbal (a produção de tex-


tava: “Podia!” tos orais e escritos) precisa ser praticada na es-

Estudiosos dos usos da linguagem têm cola, e não só na escola básica. Essa foi uma

mostrado como se estrutura um diálogo entre


conclusão a que chegaram outros educadores


pessoas. Uma regra básica da conversa pode


após uma pesquisa desenvolvida em uma escola


ser explicada assim: cada pessoa tem sua vez, técnica, cujo relatório foi divulgado na revista

o seu turno. Se uma delas não sabe ouvir e es- Transactions on Education, de agosto de 1988,

perar sua vez ou se mantém em silêncio –


do qual transcrevemos um resumo:


quando a outra encerra a sua fala –, o sucesso



da conversa fica comprometido. Uma sempre A escrita e a fala como meios de descobrir e

espera da outra que cumpra o seu turno, que clarificar idéias são elementos essenciais ao pro-

use a sua vez: fazendo um comentário, lem-


cesso de aprendizagem. O corpo docente da Fa-


brando um fato, pedindo um esclarecimento, culdade de Tecnologia em Ward está aumentan-



dando uma sugestão, concordando, discordan- do a ênfase na escrita como método de melhorar

do... ou simplesmente manifestando, de algu- a aprendizagem. A abordagem tem três eixos: pri-

ma forma, seu interesse no assunto. O silêncio meiro, expandir a parte escrita dos relatórios de

não é sem sentido. É constrangedor. Pode sig- pesquisa experimental; segundo, incluir exercí-

nificar negação ou rejeição do diálogo. cios de escrita livre nas aulas teóricas; e terceiro,

introduzir exposições orais no laboratório.


Em síntese, o relatório da pesquisa mostra


que as práticas escolares, em geral, têm pouca Como resultado desses esforços, os alunos es-

tão ficando mais organizados e críticos em seu


relação com as práticas sociais. As palavras

pensamento e escrita, o que se reflete em maior


candentes de Chapman e Czerniewska não


precisão nos seus procedimentos destinados a re-


pintam cenas de um filme de terror. De fato,


solver problemas e em suas análises técnicas. No

escolarização não tem sido sinônimo de de-


conjunto, melhoria mais importante é vista na


senvolvimento pessoal. Não tem significado


auto-imagem do aluno: à medida que escrevem


educação para a vida. Os resultados estão di- mais, eles se tornam mais confiantes e fazem me-

ante de nossos olhos. lhor juízo de si mesmos e de suas habilidades. Os


Esses não são dados de hoje. Poderíamos,


estudantes estão ficando mais articulados e mais


então, questionar sua legitimidade nos dias capazes de participar na nova era da tecnologia.

atuais. No entanto, temos de admitir que eles


ainda ilustram a atividade docente em boa par-


É a prática da construção de textos como


cela de nossas escolas. fator de desenvolvimento cognitivo e pessoal.




A 33ª Convenção da Associação Internacio- de aula onde predomina a incomunicação e, de



nal de Leitura amplia seu espectro em uma ou- relance, vimos também que a intensificação da



tra Resolução cuja introdução leva o título So- prática de leitura e escrita pode melhorar o de-



bre leitura e escrita no currículo. sempenho dos alunos até de uma escola técnica.


Diz o documento: Além disso, procuramos considerar a



conotação política da formação do leitor e do



Sabemos que os processos de leitura e escrita escritor: “O que ler? O que escrever? Para que


são, em si mesmos, uma maneira de aprender e ler? Para que escrever?”



que os alunos necessitam de muitas oportuni- Finalmente, concentramos-nos no lugar do



dades de ler e escrever para se tornarem leito- texto, no currículo e no papel dos professores di-


res bem-sucedidos e escritores hábeis e eficien-


ante do desafio de formar alunos competentes


tes... Se todos os professores ensinassem leitura
para ler e escrever, ou seja, para pensar, para se


e escrita em cada uma de suas disciplinas, os


comunicar. Dessa reflexão acredito ser possível


alunos aprenderiam os conteúdos em profundi-

concluir quais são os pressupostos de um projeto

dade e, ao mesmo tempo, se tornariam leitores ○
político-pedagógico desencadeador da compe-
e escritores mais eficientes.

tência leitora e escritora: a educação dos pais, o



incremento da parceria escola–família, o investi-


Essa proposta curricular parece alinhar-se


mento na Educação Infantil e na formação de pro-


com a idéia de que o texto de fato transcende

fessores. É preciso investir na Educação Infantil e


as disciplinas escolares. Portanto, escrever e ler

na formação de quadros para o Magistério. Do


textos não pode ser uma atividade restrita à dis-


contrário, os investimentos na Educação Funda-


ciplina Língua Portuguesa. Professores de His-


mental podem não trazer o desejado retorno.


tória, Ciência, Arte, Matemática etc., todos pre-

A formação de professores ganha relevo nes-


cisam ser professores de texto, o que exige um


se cenário, porque são eles gestores da sala de aula


trabalho interdisciplinar, em equipe, variável


e é para a sala de aula que convergem essas vari-


essencial da prática educativa. Mas, é bom que


se diga, esse trabalho com texto deve ir muito áveis que, combinadas, vão determinar a invari-

ável que todos buscamos: qualidade na educação.


além da caça a erros ortográficos.



De que professores e de que escola estamos


Sugestões para um programa


falando?

de formação de professores

Por uma escola formadora de



comunicadores competentes:

Introdução do estudo científico da



algumas sugestões linguagem (fala e escrita) no currículo



de formação inicial e continuada de


No decorrer deste texto, tentamos mostrar


professores

que o primeiro passo para o desenvolvimento



da competência leitora e escritora é o envolvi- A linguagem humana é desconhecida na es-


mento com práticas de leitura e escrita, em casa


cola desde a sua essência, que é a variabilidade


e na escola, da Educação Infantil até os cursos (a plasticidade), até a sua prática nas modalida-

universitários de formação de professores. des oral e escrita. A escola opera como se exis-

Procuramos situar nossa reflexão no contex-


tisse uma só forma de estruturar a língua, um só


to concreto da educação pública em nosso país,


padrão (e é natural e necessário que sua escolha


lembrando que a educação tem avançado em recaia sobre a chamada norma culta). No entan-

qualidade, mas que, infelizmente, ainda se apli- to, essa concepção escolar de linguagem tem

cam à maioria das escolas de hoje críticas


comprometido o objetivo da educação lingüís-


dirigidas às escolas de dez ou vinte anos atrás.


tica: sem o conhecimento do objeto linguagem,


Por meio do olhar de pesquisadores compro- professores e alunos não encontram a porta de

metidos com a educação, penetramos numa sala acesso a esse objeto. Em geral, a prática rotinei-

52
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores

ra da fala, nas interações sociais, ajuda os seus petência escritora dos professores que os ana-



usuários a avançar como comunicadores na lisam. Professores que já investem na sua prá-



modalidade oral. A interação via escrita, no en- tica, hoje, os conhecimentos teóricos construí-



tanto, fica paralisada. dos com base nos novos paradigmas têm esti-


Desde os seus primeiros anos escolares, os mulado os alunos a produzir muitos textos. Mas



alunos aprendem a confundir fala e escrita. Ao não sabem o que fazer com esses textos para



assumir o papel de ensinar a escrita, a escola ajudar os alunos a avançar.


expulsou de seus domínios a língua oral. E, as- São legítimas as perguntas: “O que pensam 53



sim, a escrita passou a ditar regras para a fala: as crianças sobre a comunicação entre as pes-



deve-se falar como se escreve. Mas sem sucesso. soas? E sobre a textualidade? Que hipóteses for-



Os sons da fala, antes tão claramente per- mulam nas suas primeiras interações com o


ceptíveis aos ouvidos dos alunos, perdem suas objeto texto? Que hipóteses ortográficas, que



características. Os alunos ficam surdos: não hipóteses textuais? O que pensam as crianças



descobrem na fala as onze vogais do Português sobre o que é escrever, o que é compor um tex-



porque são apenas cinco as letras que as repre- to, o que é comunicar-se por escrito, o que é


sentam. Professores e alunos se descobrem sem fazer um resumo, o que é fazer anotações, o que



chão quando percebem que uma coisa é o som, é um parágrafo, qual a diferença entre escrever

outra coisa é a letra... uma coisa é o som da le- e copiar, para que serve a pontuação...?”

tra, outra coisa é o nome da letra.


Gestão da sala de aula



Tematização da leitura e da escrita nos


Não basta ao professor conhecer o objeto lin-


cursos de formação inicial e continuada


guagem e refletir sobre a fala, a escrita e a leitu-


de professores ra. É preciso que ele saiba que na sala de aula



outros conteúdos se articulam e contribuem ou


“Aprende-se a escrever escrevendo” – este foi o


primeiro slogan que a reação à cartilha produziu, para desenvolver a competência comunicativa

que logo seria reformulado para: “Aprende-se a es- dos alunos ou para condená-los ao silêncio. Sua

relação com a língua falada e escrita, sua atitude


crever escrevendo e refletindo sobre o escrito”. E as


diante de um texto, sua disponibilidade para a


novas informações que nos chegam da psicogênese


da língua escrita, em outra formulação e referindo- prática de ler, escrever e falar, seu envolvimento

se a leitores em seus primeiros contatos com a lín- com os alunos, sua história de falas e leituras,

sua capacidade de transformar a aula em um


gua escrita, dizem que os aprendizes de leitura de-


momento de cooperação e partilha são situações


vem “ler antes de saber ler” e que o aluno avança à


medida que sua parceira mais experiente, a profes- de aprendizagem tão significativas quanto aque-

sora, o faz pensar sobre o que está lendo, levantan- las em que tradicionalmente se pretendeu ensi-

nar conteúdos conceituais.


do problemas. Portanto “aprende-se a ler lendo e



refletindo sobre o lido”. Entendemos que a elabora-


ção escrita de sínteses de leituras é uma prática que Conclusão



deve ser freqüente e que, unindo-se os dois proce-


É impossível desenvolver competência lei-


dimentos e as duas estratégias, pode dar uma con-


tora ou escritora sem o envolvimento de pro-


tribuição significativa à formação de leitores e de


fessores e alunos com a prática da leitura e es-


escritores competentes.

crita e sem que eles conheçam bem o objeto lin-



guagem. Não me refiro necessariamente ao co-


Tematização da escrita e da leitura


nhecimento gramatical, embora esteja segura


dos alunos

de que a gramática tem uma contribuição úni-


ca a dar à reflexão sobre a linguagem. Estou


Na verdade, parece-me que a análise com-


petente dos textos das crianças pode ser a me- pensando na natureza desse objeto que a gra-

lhor estratégia para o desenvolvimento da com- mática tenta explicar.




E quando uso a palavra gramática não tenho • como usuário dos diferentes registros da lin-



em mente aqueles conteúdos que levam esse guagem, sempre sensível à necessidade de



nome na escola e que tanto a descaracterizam, adequação da fala ao seu contexto (não é só


a roupa que usamos que deve estar de acor-


nem a didática escolar usada no ensino da gra-


mática. Reporto-me ao modo de ser da lingua- do com o ambiente em que estamos; a lin-


guagem também);


gem: varia no tempo, no espaço (geográfico, so-



cial, psicológico...), varia no formato dos textos, • como falante de um dialeto natural, que seja


opera ambigüidades, redundâncias, sutilezas, a marca de sua identidade sociolingüística



usa metáforas, comunica mais por meio do que e cultural;



não diz do que daquilo que diz – explicitamen- • como escritor sensível à diversidade de mo-



te, é um sistema de contrastes. dos de usar a língua e às relações entre o pen-


E cada movimento, cada gesto comunicati- samento e as variadas formas de expressá-lo



vo na direção do outro, é um movimento ou um por escrito;



gesto inteiramente novo, nunca acontecido an- • como pessoa que descobriu a alegria de ler


tes e fadado a não acontecer outra vez (Chomsky, ○
e de escrever.
1967). E cada texto que se constrói é uma obra

Supomos que estes sejam alguns dos tra-


de engenho e arte, é cria do seu autor, é gerado e


ços que formam o perfil do comunicador com-


vem à luz com identidade própria, mesmo quan-


petente.

do é a síntese de um texto escrito por outro.


É original, sim, mas isso não quer dizer que



em sua tessitura não se entrecruzem persona-


Bibliografia

gens, pensamentos, eventos, que passam pelo


autor do texto, percebida ou despercebidamen-


CHAPMAN, John; CZERNIEWSKA, Pam. Reading: from


te, e são recriados, fazendo de cada um de nós


process to practice. London: Routledge & Kegan Paul,


– escritor e leitor – um espécimen humano, um The Open University Press, 1978.



ser social e cultural, um comunicador. CHOMSKY, N. Aspects of the theory of syntax . Cambridge:

The M.I.T. Press, 1967.


Então, para que a leitura e a escrita na escola

FLEURI, R. M. Educar para quê?: contra o autoritarismo da


sejam fatores de desenvolvimento pessoal e

relação pedagógica na escola. Uberlândia: UFU, 1986.


sociocultural de alunos e professores, não basta


GUTIERREZ, Francisco. Linguagem total: uma pedagogia dos


expormos a portadores de textos os leitores e os meios de comunicação. São Paulo: Summus, 1978.

escritores em formação, muito menos dizer-lhes


HOCKETT, C. A course in modern linguistics . London:


que é preciso desenvolver uma intimidade com a Macmillan, 1959.



língua escrita. Um pensador anônimo expressa, KATZ, P. S.; WARNES, Thomas E. Writing as a tool for learning.

Trad. Euzi Moraes. Transactions on Education, v. 31, n. 3,


em três pequenas frases, o que é fundamental:


1988.

Me diz como é, e eu vou esquecer MORAES, E. R. A evolução da leitura e da escrita de um



grupo de professores: estudo de caso. Revista Brasileira


Me mostra, e eu vou me lembrar

de Estudos Pedagógicos, v. 80, n. 195, Inep, maio/ago.


Me envolve, e eu aprenderei.

1999.

O leitor e escritor competente é uma pes- MORAES, E. R. et al. Problemas da educação lingüística na

escola de 1º grau: o dialeto da alfabetização e o dialeto


soa que se envolve no mundo letrado, é um

do alfabetizando. Vitória/ES, 1986 (mimeo.). Relatório de


comunicador eficiente nas trocas sociais:


pesquisa.

• como usuário de discursos que produzem READING TODAY. V. 5, n. 6, jun./jul. 1988.


efeitos nos seus interlocutores, na sala de


TRABALHOS EM LINGÜÍSTICA APLICADA – UNICAMP,


aula, na coletividade; n. 18, Campinas: Unicamp, 1991.



• como construtor de sentidos: de textos ver- ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto

Alegre: Artmed, 1998.


dadeiros, autênticos, que comunicam;







54
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores

PALESTRA




Mediando a leitura:




rumo à autonomia do leitor





Tânia Mariza K. Rösing*



55




nuseio da informação, ou do processo de seleção
A escola brasileira



dos textos literários, entre outros, a serem lidos.


e a biblioteca


Não havendo a efetiva instalação de biblio-


tecas nas escolas, não há, conseqüentemente,


Sempre que se fala em leitura na escola bra-


preocupação com a formação de profissionais


sileira, não se pode considerar que a situação


capacitados para animar o acervo disponível, ou


seja igual nas diferentes regiões. É visível o es-


mesmo para viabilizar a sua ampliação em nú-
forço desenvolvido pelas autoridades educacio-


mero de livros e de outros suportes de nature-

nais no sentido de desenvolver ações que resul-


za diversificada, importantes no processo de
tem na melhoria da qualidade do ensino, am-

estabelecimento do prazer de ler, resultantes


pliando o número de vagas nas escolas públi-


das inovações tecnológicas que cercam todos os


cas, garantindo a um grande número de crian-

segmentos da sociedade.

ças o acesso à alfabetização e ao letramento.


A solução mais fácil é pressupor que a maio-


Constata-se, também, um esforço no sentido de


ria das escolas brasileiras está desenvolvendo


dotar o espaço da escola com equipamentos

ações de leitura eficazes, pressupondo, tam-


capazes de contribuir com um melhor desem-

bém, que os profissionais da educação, atuan-


penho dos alunos na educação básica.


do dentro ou fora da sala de aula, são leitores,


O responsável pelo desencadeamento do


ou melhor, “aprendizes de leitor”. Pratica-se,


processo em que se constitui a leitura é o pro-

portanto, na maioria das escolas brasileiras, a


fessor, uma vez que, nas escolas brasileiras, é

pedagogia da pressuposição.

na sala de aula que se estrutura o currículo es-



colar. A biblioteca, setor que deveria assumir


essa função, ou não existe no espaço escolar, ou A biblioteca nas escolas



é confundida com uma prateleira em que se


francesas

deposita um acervo composto por poucos li-



vros, às vezes de qualidade discutível, que vei- Para a atuação de profissionais como agen-

culam muitos textos de natureza didática. tes de leitura na biblioteca, o sistema educacio-

Os profissionais que são designados para nal da França apresenta uma solução diferen-

atuar nesse espaço, considerado uma sofrível ciada. Reconhecidos por sua cultura de leitura,

biblioteca, não apresentam, em sua maioria, profissionais egressos do Ensino Superior, de-

nem o perfil necessário para a dinamização do monstrando interesse em trabalhar em biblio-



acervo existente, reduzido em número de títulos tecas, precisam passar por um processo de for-

e pobre em qualidade, nem ao menos a capaci- mação específica. Após concluírem um curso de

dade de estimular o gosto dos usuários pelo pra- graduação em instituições de Ensino Superior,

zer de ler. A formação desses profissionais carece os profissionais interessados em dinamizar os



de informações que vêm de uma cultura de leitu- diferentes acervos das bibliotecas precisam re-

ra, ou mesmo de uma preparação específica para alizar um curso de dois anos, a fim de se capa-

atender às necessidades dos alunos acerca do ma- citarem como “professores documentalistas”.




* Doutora em Letras pela PUC/RS, professora de Literatura Brasileira da Universidade de Passo Fundo/RS.

Essa denominação “professor documenta- rado pelas autoridades educacionais brasileiras



lista” é bastante ampla: a formação dos profissio- no que diz respeito ao processo de implanta-



nais interessados não se restringe ao conhecimen- ção de uma política de leitura no Brasil, parale-



to específico para a realização do arquivamento lamente à formação dos agentes de leitura, no


de documentos ou catalogação de materiais di- contexto das diversidades territorial e cultural



versificados. Tal processo abrange, também, téc- brasileiras e, em especial, das condições dos



nicas de dinamização dos materiais existentes no professores que atuam nas escolas e nas biblio-


espaço da biblioteca, por meio de vivências de tecas existentes nesse contexto plural.



leitura multi e interdisciplinares, e a realização de



práticas de leitura integradoras dos conteúdos de
O compromisso dos



diferentes disciplinas de um mesmo nível de es-


colaridade, a partir de um tema central, só para mediadores com a seleção



citar um exemplo significativo.
de textos


Para que essa dinamização aconteça, é im-


prescindível, em primeiro lugar, que o professor ○
Tanto no espaço da sala de aula quanto na
documentalista seja, efetivamente, um leitor. sala de leitura ou numa biblioteca, os acervos

Quem é contagiado pelo prazer de ler desde a disponíveis precisam ser dinamizados por um

primeira infância circula entre livros, revistas e profissional leitor. Essa constatação apresenta

sentido amplo. Ser leitor não significa apenas


outros suportes com entusiasmo, dialoga com os


seus conteúdos com muita curiosidade, buscan- ser portador de uma erudição que vem de uma

do sempre outros materiais que possam enrique- cultura livresca. Ser leitor implica ter uma vi-

cer o conhecimento acerca de determinado as- são de mundo ampla, que prioriza o ser huma-

sunto. Em segundo lugar, adota uma perspecti- no com todo o seu potencial, identificando o

va interdisciplinar e transdisciplinar em suas in- perfil de cidadão necessário à promoção de



vestigações, pois não deve se apropriar do co- mudanças na sociedade, a fim de transformá-

nhecimento a partir da sua fragmentação. Deve la para melhor, garantindo um convívio de uni-

ter, ainda, a iniciativa de organizar práticas lei- dade na diversidade.



toras multi, inter e transdisciplinares, a partir do Que tipo de mediação é necessária? Enten-

envolvimento de professores de diferentes áre- de-se, atualmente, que o grande objetivo do



as, ao lado de profissionais emergentes dos mais mediador, seja ele professor ou bibliotecário, é

variados setores da sociedade, demonstrando o o de selecionar textos, apresentados em livros



processo em rede e suas implicações na cons- ou em outros suportes, capazes de desencade-



trução do conhecimento. ar uma perspectiva crítica no olhar do leitor



Toda essa competência profissional, aufe- sobre o mundo em toda a sua complexidade,

rida durante a formação específica, é dirigida sobre os demais seres humanos, sobre si mes-

ao desenvolvimento do potencial natural da mo. Para tanto, é necessário conhecer o que está

criança, que precisa ser alimentado e desenvol- disponível não apenas nos acervos existentes na

vido. É importante, nesse caso, lembrar que tal escola, mas também no mercado editorial em

processo não é desenvolvido individualmente, termos de publicações: do texto literário ao tex-



apenas, mas é construído a partir da vivência to científico, passando pelos textos de nature-

da criança entre seus pares, em grupos os mais za explicativa, argumentativa, entre tantos ou-

diversificados possíveis. tros, impressos no papel ou apresentados na


Os referenciais dos alunos, em diferentes tela eletrônica. É preciso acionar o conhecimen-



faixas etárias, são respeitados e se configuram to prévio adquirido ao longo de toda a sua for-

como resultados de ações de leitura que pro- mação profissional e pessoal, além de chamar

movem o ser humano sem o desconhecimento a atenção sobre o que conhece, mas que não

de aspectos fundamentais de sua identidade explicita em seus diálogos com os diferentes



cultural. textos, democratizando-os com seus pares.



O caso francês é um modelo a ser conside- O importante é identificar, no texto escrito, nas

56
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores

ilustrações que complementam o seu significado, E o que são textos



nos recursos possíveis oferecidos pelo hipertexto,


emancipatórios?


as marcas das quais emergem nuanças com que o



leitor constrói a intencionalidade sugerida pelo Textos emancipatórios são os que oferecem,


autor, as quais poderão tomar rumos imprevisíveis


por meio dos signos gráficos, uma perspectiva


se forem utilizados, no ato de ler, os recursos ideológica na qual se constata uma visão de



hipertextuais referidos, existentes em programas mundo sem preconceitos de cor, raça, religião,


específicos para uso em computadores. 57


sexo, situação econômico-financeira, política e


Nesse processo, há que se selecionar autores cultural. Tais textos apresentam os seres huma-



cujos textos, ao serem reconstruídos pelo leitor nos respeitados e valorizados a partir de seu po-



durante a leitura, possam sensibilizá-lo a apro- tencial natural e adquirido socialmente, de seus


priar-se de idéias transformadoras que sejam


referenciais físicos, sociais e culturais específi-


eficazes na promoção de mudanças substanci- cos. Revelam o ser humano no âmbito de suas



ais na sociedade, a partir do meio em que atua. relações, a partir de adaptações às necessidades,



preferências e desejos atuais, enfocando o mun-


do atual e suas implicações, destacando o po-

Textos emancipatórios, ○


tencial de liderança, de criatividade, de sensibi-
provocadores da autonomia lidade existente em cada indivíduo e nos grupos

com os quais interage. São textos cujo conteúdo


do leitor

é apresentado de forma inusitada, criativa, usan-



Inspirados na proposta inovadora de Mon- do vocabulário e construção sintática trabalha-



teiro Lobato ao escrever livros para o público dos com finalidade estética, provocando um

infanto-juvenil, um grupo de escritores, cada estranhamento no leitor.


Textos emancipatórios garantem a autono-


um de acordo com a sua criatividade e num


tempo específico, a partir dos anos 1970, em mia do leitor para que possa conduzir as suas

diferentes lugares do território brasileiro, sen- práticas individuais e sociais, o seu estar-no-

tiram o desejo de criar livros e de publicar li- mundo de tal modo que seja útil e reconhecido

por suas contribuições – para um mundo mais


vros para crianças reconhecidas por seu poten-


cial de liderança, por sua curiosidade, por sua humano, em que prevaleçam os interesses do

tendência investigativa. coletivo impulsionados por idéias de constru-



E assim as crianças, os professores, os pais, ção e de promoção da vida.


O diálogo do leitor em formação com tex-


os bibliotecários começaram a ter a oportuni-


dade de dialogar com a turma que passou a es- tos emancipatórios garante mudanças para

crever textos emancipatórios: Ana Maria Ma- melhor não apenas no indivíduo, mas na socie-

chado, Ziraldo, Ruth Rocha, Lygia Bojunga dade como um todo. Essa constatação provoca

Nunes, Ângela Lago, Maurício de Souza, Joel uma indagação preocupante: qual é a turma

Rufino dos Santos, Sérgio Capparelli, Liliana responsável pela autoria dos livros e dos demais

Iaccoca, Ricardo Azevedo, Elias José, Moacyr suportes com os quais crianças, pré-adolescen-

Scliar, Marcos Rey, entre tantos outros neste tes, pais, professores e bibliotecários estão se

imenso Brasil. envolvendo?



















SIMPÓSIO 4

METODOLOGIA DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES ENFOCANDO
O TRABALHO DE GRUPO
Abílio Amiguinho

Maria Eliana Matos de F. Lima

Ana Claudia Rocha

59
Por que uma formação centrada




nos coletivos de formação?






Abílio Amiguinho



Escola Superior de Educação de Portalegre/Portugal








Um olhar crítico sobre


Esta intervenção é composta por duas par-


tes. Numa primeira parte são inicialmente


as práticas de formação

identificados os aspectos suscetíveis de análi-



se crítica no que se refere aos desenvolvimen- Ao sintetizar o diagnóstico crítico sobre o

tos recentes das práticas de formação contínua. ○

estado da questão da formação e do desenvol-
Sublinha-se como, apesar da proliferação de vimento profissional dos professores, António

um discurso científico e de uma retórica polí- Nóvoa (2000) utilizava a expressão “excesso de

tica que fazem uso de concepções inovadoras discursos, pobreza de práticas”. Dessa forma

de formação, no campo das práticas de forma-


pretendia salientar o modo como, na década de


ção persistem, inquestionavelmente, modos de 1990, evoluiu-se extraordinariamente no domí-



trabalho concreto individualmente dirigidos e nio das concepções nessa matéria, não se veri-

em exterioridade relativamente aos contextos ficando correspondente avanço ou inovação no


de trabalho. Em segundo lugar, apontam-se a


campo das práticas.


lógica de fundo e algumas características de A academia foi a principal responsável por



dispositivos de formação alternativos que po- essa evolução conceitual, fruto de um trabalho

dem vir a contribuir para contrariar esse esta- considerável em nível de investigação, o que

do da questão.

conduziu à construção de enunciados e de nar-


Numa segunda parte, recorre-se a três rativas sobre a necessidade da mudança nesse

exemplos de situações e experiências de for- âmbito. Mas esses incitamentos à mudança,



mação, vivenciados pelo autor em diferentes com freqüência produzidos e veiculados num

contextos, marcados por uma perspectiva de quadro típico de divisão técnica do trabalho de

inflexão das práticas, fazendo uso do traba- formação entre academia e escolas, ou entre

lho em grupo ou em equipe, de modo a aliar peritos e práticos, foram também apropriados

trabalho e formação. No primeiro caso, em- pelo campo político, sendo comum encontrá-

bora se trate de formação em sala, o propó- los, no discurso reformador, transformados em



sito do pequeno dispositivo de formação foi excelentes peças de retórica.



reavivar a memória profissional pela media- Basta que nos lembremos da forma como

ção do grupo, com o objetivo de concluir so-


“a formação centrada na escola”, “descen-


bre o que, no percurso pessoal e profissional, tralização”, “diversificação de estratégias”, “for-



foi ou não formativo e por que razões ou mação baseada na prática profissional” “inves-

motivos. Nos outros dois casos, o projeto de tigação-ação”, “projetos”, “auto-reflexão de co-

intervenção transformou-se em oportunida-


letivos”, “trabalho em equipe”, “trabalho coope-


de de formação, elemento desencadeador do rativo ou colaborativo” etc. tornaram-se expres-



processo e do qual, concomitantemente, se sões de uso corrente nos documentos da refor-



alimentou. A interação e as relações inter- ma das políticas educativas, independentemen-


pessoais, como ingredientes fundamentais da


te da sua área de incidência.


dinâmica individual e coletiva de formação, Em Portugal, onde a designada “reorganiza-



que mutuamente se suportam, foram aqui ção curricular” se converteu em menina dos

notas dominantes. olhos da última vaga reformadora (embora


60
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo

desmentida e apelidada de “revisão curricular”), o caráter esporádico e pontual em detrimen-



julga-se que algumas das suas potencialidades, to da longa duração e da continuidade, em



para além da flexibilização curricular, serão, que o programa de formação se sobrepõe ao



com toda a certeza, essa diversificação e essa dispositivo de formação.


transversalidade que pretendem, na gestão e no Continuam a não se potencializar forma-



desenvolvimento do currículo escolar, arrastar tivamente modos e modalidades de planifica-



consigo o trabalho cooperativo dos professores ção (e de intervenção) na escola como momen-


e a ruptura com a cultura do isolamento e do tos e oportunidades de formação. Em suma, 61



individualismo profissional. são ainda muito raros os projetos de formação.



Mais ou menos a par, nos últimos dois a três Provavelmente, o que é ainda pior, trata-se do



anos, as designadas modalidades inovadoras de reiterar de uma crítica que reconhece o redu-


formação foram promovidas à condição de zido impacto das formações. Tudo isso num



prioritárias em termos de elegibilidade finan- tempo sem precedentes no que se refere aos



ceira na gestão dos fundos da União Européia avultados investimentos de toda ordem, mas



investidos nesse campo. Curiosamente, as es- principalmente financeiros, no domínio da


tatísticas sobre as ações acreditadas e financia- formação.



das remeteram para registros insignificantes os Assim, a literatura da especialidade con-

cursos, os módulos de formação e até mesmo tinua a caracterizar a formação que se prati-

os seminários, enquanto as oficinas de forma- ca como individualmente dirigida e em


ção, os círculos de estudo e os projetos, por na- exterioridade em relação aos contextos de tra-

tureza modos de formação dirigidos a coletivos, balho e aos coletivos de intervenção, pensa-

tomam uma larga dianteira, ofuscando clara- da e organizada para ser desenvolvida sepa-

mente os primeiros. rando claramente o tempo de formar e o tem-



Todavia, a realidade é bem distinta, e essa po de trabalhar.



operação cosmética disfarça muito mal o pre- Uma feliz expressão de Mulford, produzi-

domínio de modalidades escolares de forma- da em 1980, conserva ainda, infelizmente,


ção. A transformação da lógica de formação toda a sua atualidade. O formando, individu-



centrada na escola, ou a partir de coletivos de almente considerado, “era como a peça de



intervenção, em mais uma tecnologia for- puzzle que se retira do seu sítio para a trans-

mativa reflete-se, agora, na subversão dos mo- formar, para tentar, depois, que ela encaixas-

dos de trabalho de formação que a poderiam se de novo, sem ter transformado também as

concretizar. A sua banalização e vulgarização, demais peças” (García Alvarez, 1992: 133).

quando os procedimentos de formação que Assim, pretendia-se enfatizar a ignorância da



veiculam são do mais fino recorte informati- forma como o ambiente – da escola, mas tam-

vo, expositivo e transmissivo, podem contri- bém da própria sala de aula – freqüentemente

buir para desencantar quem neles participa e anula quaisquer intentos inovadores, induzi-

desacreditar ainda mais formas promissoras e dos pela formação do professor isoladamen-

efetivamente inovadoras de intervenção for- te ou separado do seu contexto.


mativa. Os efeitos perversos dessas formações fo-



Na verdade, são ainda irrelevantes os pro- ram identificados pela investigação. Entre

cessos formativos centrados nos problemas e eles, o do reforço da postura de isolamento



nas necessidades ou nas dinâmicas das esco- profissional e da cultura individualista ou


las ou de territórios educativos. É débil (ou “balcanizada”, o refúgio nos saberes discipli-

inexistente) a mobilização/implicação de nares e a valorização do especialista numa



equipes ou de coletivos das escolas em pro- área específica do conhecimento, a recusa do



cessos conjuntos de formação. Visa-se mais à que na profissão equivalha a trabalho social,

promoção dos indivíduos (vejam-se os crédi- a desqualificação e a desprofissionalização



tos que em Portugal se tornaram indispensá- em face da subestimação dos saberes da prá-

veis para a progressão na carreira). Prevalece tica, o agravamento da culpa profissional etc.

Suportes teóricos de rativa/reflexiva estarem mais bem colocadas



para ajudar “a reorganização das defesas e dos


formações mobilizadoras


sentidos e a reorganização dos prazeres”.


de coletivos em contextos


São evidências que corroboram outras


conclusões provenientes de outros contextos.


de trabalho


É por isso que a própria Lise Demailly (1997)



Contudo, também investigações recentes considera que as redes profissionais coope-


continuam a enfatizar o impacto positivo de rativas de intervenção constituem o melhor



determinados dispositivos de formação, ape- antídoto, em se tratando de ambiente de tra-



sar da sua raridade, na perspectiva dos que se balho e de formação, para um exercício pro-



formam. Num trabalho sugestivamente inti- fissional em que o prescritivo e o normativo,


tulado Será útil a formação contínua de pro- bem como o controle hierárquico e burocrá-



fessores?, Lise Demailly e seus companheiros tico, têm avolumado o sentimento de culpa-



de pesquisa (Demailly et al., 2000) confronta- bilidade nos professores. Julga, por isso, que


ram, em diferentes momentos do percurso ○
essas redes de trabalho podem contribuir para
profissional e de formação dos professores, a travar a espiral de efeitos perversos desen-

influência, sobre estes, dos modos e modali- cadeada pela solitude subie/volue (Demailly,

dades de formação de que participaram. 1997; Hargreaves, 1998, fala do isolamento



Com base na técnica da entrevista, em três como estratégia de refúgio), com origem no

momentos puseram-se à prova, comparativa- fechamento e em estratégias profissionais



mente, os designados estágios na academia defensivas.



(IUFM) e os processos de formação nas esco- A “regulação local” permitida pelo trabalho

las, supervisionados pela academia e por com- em rede pode favorecer a “emergência de uma

panheiros, centrados no diagnóstico de situa- flexibilidade identitária” que abala a rigidez



ções, elaboração e desenvolvimento de proje- das identidades normalmente defensivas. O



tos, com incidência, nas diferentes etapas de dogmatismo, o espírito de corpo, a incapaci-

realização, em processos de trabalho de grupo dade de negociar, o isolamento defensivo e a



ou em equipe. culpabilidade latente podem vir a dar lugar à



Para os autores, tornaram-se evidentes as tolerância à diferença, à abertura a parcerias,



vantagens da forma interativa/reflexiva que à capacidade de negociar, à tomada de inicia-


presidiu as seqüências formativas das moda- tivas individuais ou em pequenos grupos. Su-

lidades de trabalho a partir das escolas. Des- blinha, além disso, a hipótese de construção

tacaram a apreciação positiva do processo ge- do conhecimento profissional, no contexto do



nérico de decisão negociada das áreas, das trabalho em rede, pela formalização de sabe-

temáticas e dos conteúdos de formação, a ar- res profissionais de experiência. Trata-se de



ticulação com as práticas, os processos de um conhecimento difuso, inconsciente, difícil



interação que daí decorrem, quer com os de comunicar e de colocar sob forma escrita

companheiros, quer com os acompanhantes. publicável, mas é um saber profissional que


Esse acompanhamento foi valorizado na sua não é mais de tradição ou de rotina: é feito de

dimensão de apoio e ajuda metodológica e bricolage e de invenção coletiva, adequado à



técnica e, particularmente, na sua dimensão criação de um ambiente profissional ativo.



da gestão, por facilitadores externos, das re- Demailly (1997) conclui assim por um triplo

lações interpessoais. Referiram, além disso, efeito do trabalho em equipe ou dos “coleti-

um maior reconhecimento dos efeitos sobre vos”: a criação de identidades abertas, a qua-

as práticas, a promoção de mudanças passo a lificação profissional e uma démarche moral de



passo, mas com maior suporte e, também, por consensualização de valores.


isso, mais eficientes. Os autores concluem Kherroubi, por seu turno, sobre aquilo que

ainda pelo fato de práticas de formação que considera uma real aposta profissional, escreve:

podem ser interpretadas à luz da forma inte- “[...] é manifesto que a dinâmica coletiva inter-

62
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo

vém sobre os elementos estruturantes da profis- são crítica das noções em voga sobre forma-



são propriamente dita e sobre a motivação de ção, bem como das práticas a que dão origem.



exercer: relação positiva com os alunos, sentimen- A tabela de freqüências dos aspectos comuns



to de eficácia e sentimento de desenvolvimento colocou na dianteira a construção de respos-


profissional” (1997: 157). Sublinha ainda que par- tas para problemas da prática, ou mesmo a



ticipar como escola e nos seus projetos, embora possibilidade de equacionar problemas, como



com níveis de implicação diversos, significa a pre- as situações de maior potencial formativo. O


sença do “nível da escola” no “núcleo duro da pro- trabalho com os pares e com outros parceiros 63



fissão”. A título de conclusão, remata: enfrentar do processo educativo foi identificado como



problemas cria desestabilização, mas “confere fonte de conhecimento e de produção de com-



todo o sentido à profissão” (Kherroubi, 1997: 157). petências profissionais em contraste com a


irrelevância, para esse efeito, dos cursos ma-



gistrais, cuja persistência denunciam, a par da
Três experiências



de outras modalidades de formação, ser de ine-


de formação


ficácia igualmente reconhecida. Ou seja, o gru-


po reconheceu o impacto da dimensão coleti-


As experiências a seguir relatadas são de di-

va da formação.

mensão variável, constituindo, nos dois pri- ○

meiros casos, situações pontuais de um curso A partir desse ponto foi possível entrar na

mais abrangente, no primeiro, e de um proje- discussão pela constatação de Dominicé de


que a formação corresponde àquilo que nós fa-


to de maior envergadura, no segundo. No ter-


zemos daquilo que os outros queríamos que


ceiro, a situação corresponde à componente


formal de formação inerente à construção de nós fizéssemos, ou, de forma mais clara, que

somos sempre nós a proceder à síntese e à in-


um projeto local de âmbito concelhio.


tegração das diferentes influências exteriores,



embora com a mediação dos demais.


O que é ou não formação



Esta primeira experiência foi o resultado


Aprender a utilizar o correio


do desenvolvimento de um pequeno disposi-


eletrônico enviando mensagens


tivo de formação em sala, adaptado de uma


No presente caso, trata-se de um disposi-


proposta de Philippe Merieu, inserida no nú-


m e r o d e d e z e m b r o d e 1 9 9 8 d o s Ca h i e r s tivo simples, destinado a formar tecnicamen-



Pédagogiques. Consistia num conjunto de ati- te no quadro do desenvolvimento de um tra-


balho em rede entre escolas, em que se pre-


vidades que combinava trabalho individual e


tende introduzir o correio eletrônico como


em grupo, com vista à elucidação, pelos


formandos, do que é, ou não, formação. vertente privilegiada de comunicação e de in-



Com base num pressuposto genérico de formação, entre professores e entre alunos das

diferentes escolas que participam num mes-


análise de práticas durante três sessões de duas


horas cada uma, no ano letivo de 1995/1996, mo projeto.



num curso de pós-graduação para professores Eram pequenas escolas rurais de um ou



do 1º ciclo do Ensino Básico, os formandos dois professores, às vezes um pouco mais.


Tendo em vista favorecer uma dinâmica


confrontaram, em grupos que se constituem e


refazem, referências ao que cada um conside- participativa de formação, os professores or-



rou ter provocado uma situação de pesquisa ganizaram-se em grupos – em número de três

e/ou de mudança de práticas, para concluir ou de quatro –, sediados em escolas hospe-


deiras já equipadas e com o correio em fun-


com os traços comuns do que é uma situação


formadora e em que diverge de outra conside- cionamento, para onde se deslocaram profes-

rada como não-formadora. sores de outras escolas (visitantes), a fim de



O objetivo era partir das concepções de perfazerem um número razoável de elemen-


tos por grupo.


cada um para encetar um processo de discus-



Desse modo, em alguns casos, o único pro-


Sabíamos da existência de diferentes estágios


fessor de uma pequena escola teve consigo, de relação com a máquina e disso fizemos um ele-



durante um dia inteiro, mais quatro a cinco co- mento de gestão do trabalho de formação, de modo


que os “mais” experientes pudessem auxiliar os


legas que com que ele partilharam, sob a su-


pervisão de um formador, conhecimentos e ex- menos experientes ou sem qualquer experiência.



periências sobre correio eletrônico. Quatro


A mobilização dos professores do agrupa-


momentos foram considerados para o desen-


volvimento da formação: a) familiarização com mento superou as expectativas mais otimistas,



procedimentos técnicos específicos; b) peque- inclusive da T. Até mesmo a professora L, que


apresentou o senão do teste dos complemen-


na navegação na net; c) envio “livre” e recep-


tos de formação, acabou por estar presente, as-


ção de mensagens entre grupos nas escolas


hospedeiras; d) envio de mensagens com pro- sim como a professora Z.



duções de alunos e de professores. Efetivamente, apesar das dificuldades de


natureza técnica – arcaísmo das linhas telefô-

Em suma, o trabalho de formação consistiu

na implementação de uma estratégia simples, ○

nicas – a dezena de mensagens que uma esco-
isto é, a de aprender a trabalhar o correio ele- la enviou num só dia e as três dezenas, aproxi-

trônico enviando mensagens – aprender fazen- madamente, que cada uma recebeu, foram um

convite à continuidade da comunicação. Essa


do, portanto.

comunicação passou a ter como alvo, nos ca-


Na nota de campo redigida num dos dias de


trabalho de formação, escrevemos: sos em que as condições técnicas o permitem,



propostas pedagógicas de características co-


muns ou semelhantes.

“Os postos de trabalho” estavam sediados nas


próprias salas, com os computadores que alguns



dos professores utilizam com os seus alunos. Era Construir e desenvolver um projeto de

com as suas próprias máquinas, nos seus locais


intervenção de dimensão concelhia

de trabalho, que procurávamos iniciar ou aprofun-


Esse dispositivo, de muito mais largo alcan-


dar processos técnicos próprios das TIC, na ex-


pectativa de que daí se evoluísse para um uso mais ce do que os anteriores, teve origem na solici-

freqüente dessas tecnologias, uma vez superados tação à escola de formação em que trabalho –

os obstáculos da rede. Nos computadores em que a Escola Superior de Educação de Portalegre


se trabalhou vão permanecer os históricos da con- (Esep) – de apoio à construção de um projeto



sulta na net, endereços de correio, as mensagens, de intervenção no concelho.


as respostas etc., que podem ser projetados nou-


A atividade de colaboração institucional


tras direções. Quem sabe?


que então foi gerada resultou do cruzamento


À semelhança do que tínhamos experimen-


das intenções da principal escola do concelho

tado no ano anterior, este ano, apesar de tudo,


e do projeto da escola de formação, particu-


com mais equipamento, tencionávamos ocupar


o dia de formação iniciando com a navegação larmente no que diz respeito a sua intenção de

na net para nos concentrarmos no uso do cor- apoiar as inovações nas escolas e o desenvol-

vimento educativo.

reio eletrônico – abrir a caixa do correio, ler


mensagens recebidas, enviar mensagens, ane- Assim, num primeiro momento, a interven-

xar textos ou outros materiais etc. Tínhamos ção da Esep centrou-se na situação-problema

também combinado que tanto a exploração da


de partida, nomeadamente:

net como as mensagens de correio tivessem • compreender e interpretar a situação pro-



os projetos como motivo. Como conseqüência, blemática – ajudar à sua clarificação e


organizamos um pequeno dossiê com esses


explicitação;

materiais. Procurávamos, assim, aliar formação


técnica com uma tentativa de sistematização


• participação em reuniões – o olhar exte-

rior e mais distanciado;


da informação, fazendo-a circular entre esco-



las, intentando que tal se projetasse no traba- • disponibilização de diversos materiais de


lho futuro. apoio;



64
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo

• integração no grupo que elaborou o projeto; • autonomização progressiva (da equipe do CRE);




• auxílio na redação e na revisão final do do- • incremento de processos de colaboração/


cumento do projeto. cooperação;



Posteriormente foi constituída uma equipe • formação com os pares e com os outros;



da Esep destinada a apoiar o desenvolvimento • articulação da intervenção escolar e extra-



futuro do projeto, ou seja, garantir o acompa- escolar num território;



nhamento formativo/metodológico, que teve, 65
• inserção do/da desenvolvimento/autono-


por meio da implementação de um Círculo de


mia das escolas num processo de desenvol-


Estudos, como principais finalidades: vimento local;



• promover a discussão/apropriação do pro-


• ambiente para novos projetos.
jeto global;



• diagnosticar situações conducentes à sua Grande parte da contribuição da Esep para



operacionalização; essa dinâmica formativa está relacionada, no


fundo, com o fato de o papel de assessoria da


• conceber e redigir os subprojetos;


instituição formadora assentar num compro-


• desenvolver formação técnica;

misso institucional em relação à mudança, as-

• constituir equipes de subprojetos; ○

sumindo-se como reguladora da intervenção
formativa e do trabalho dos formadores/

• planificar atividades;

“interventores”.

• desenvolver momentos de reflexão/avaliação.



Paralelamente, foi concebido, planificado e



instalado um Centro de Recursos Educativos


Bibliografia

(CRE), dinamizado por uma equipe educativa


local, constituída por elementos que coorde-


DEMAILLY, L. Construire des reseaux coopératifs. In: VAN


nam e dinamizam diferentes subprojetos, trans- ZANTEN, A. (Coord.). La scolarisation dans les milieux

formando-se estes, assim, progressivamente, “difficiles”. Politiques, processus et pratiques. Paris:


INRP, 1997. p. 67-81.


em motivos principais de dinamização do pró-


DEMAILLY, L. et al. Será útil a formação contínua de pro-


prio CRE.

fessores? Porto: Rés Editora, 2000.


O trabalho em curso, iniciado em 1998, per-


GARCÍA ALVAREZ, J. La formación del profesorado: mas allá


mitiu incrementar uma dinâmica de formação de la reforma. Madrid: Editorial Escuela Española, 1992.

e de intervenção que poderemos caracterizar do HARGREAVES, A. Os professores em tempos de mudan-


seguinte modo: ça. O trabalho e a cultura dos professores na idade pós-



• criação de equipes de trabalho entre pro- moderna. Lisboa: MacGraw-Hill, 1998.


KHERROUBI, M. De l’école populaire à l’école difficile: emergence


fessores (e outros e atores);


du niveau ‘établissement’. In: VAN ZANTEN, A. (Coord.). La


• trabalho do habitus profissional – a dimen- scolarisation dans les milieux “difficiles”. Politiques, processus

são coletiva/competência coletiva;


et pratiques. Paris: INRP, 1997. p. 139-58.

























Trabalho em grupo no âmbito




da formação de formadores






Maria Eliana Matos de F. Lima*








Resumo





Introdução



• O contexto profissional e a formação de competên- • A co-responsabilidade dos membros do grupo ten-



cias: a análise das situações mostra a banalização do em vista os desafios que surgem no horizonte do
do trabalho em equipe na escola e em outros espa- ○


trabalho em equipe.
ços profissionais. • O papel da regulação no desenvolvimento dos níveis

• É a partir da fragilidade da experiência do trabalho de competências do trabalho em grupo.


em grupo que se geram razões para focalizarmos e • O projeto de trabalho realizado em cooperação e o

nos preocuparmos com o trabalho em grupo nos projeto de cooperação como projeto de trabalho.

espaços profissionais, sobretudo o escolar. • Projeto de cooperação: o desafio da construção de


• Desafio da contemporaneidade em relação ao tra- representações comuns no grupo e a preservação



balho em equipe. da identidade pessoal e profissional.


Desenvolvimento

• A condução não-burocrática do trabalho em grupo.


• Desenvolvimento da competência de trabalho em Conclusão



grupo: níveis de interdependência. • O entendimento da competência do trabalho em


• Papel da trocas verbais no processo de comunica-


equipe no seio da cultura, da negociação e da


ção em grupo. regulação da aprendizagem.








Introdução


A busca da competência de trabalhar em aprendizagens realizadas e que aprendizagens



grupo é uma manifestação freqüente em minha interativas conquistaram. É uma incerteza!



prática de formação de professores. Este item Sei, contudo, que há uma cultura escolar de

de minha prática, contudo, muitas vezes tem- organização fragmentada da tarefa realizada

me deixado em alerta. E sabe por quê? pelos participantes do grupo, quando os itens

Ando meio preocupada com a banalidade do do trabalho são, mais ou menos, divididos en-

trabalho em equipe na escola e desejando saber tre os membros do grupo, assim: uns digitam

o que bem fazer para torná-lo de qualidade. ou passam a limpo o trabalho, outros realizam

Quando penso nisso, logo passa um “filme” em o exercício e um confecciona a capa...



minha mente. Vejo-me, por exemplo, diante de Por conta dessa vulgarização do trabalho em

uma situação de avaliação bastante descon- equipe, de uns tempos para cá resolvi que o

fortável, em que leio, com incerteza, os traba- exercício de avaliação seria individual: assim

lhos realizados por meus alunos “em grupo”. Não pelo menos eu saberia o que um aluno tinha

sei se todos ganharam, igualmente, com as aprendido e poderia ajudá-lo a melhorar a sua




* Maria Eliana Matos de Figueiredo Lima é professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco e membro da Equipe de Forma-

dores da Rede Nacional de Formadores do Programa PCN em Ação da SEF/MEC, em Pernambuco.


66
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo

aprendizagem. No entanto, eu continuava in- cola, a ser enfrentada em equipe.



quieta porque sabia que a aprendizagem se faz


Pensando bem, nós, professores, podería-


em processos de interação. mos reinventar nossas práticas a partir de nos-



sas decisões em equipe acerca das aprendiza-


O aprendizado humano pressupõe uma nature-


gens realizadas por nossos alunos, do início ao


za social específica e um processo através do
fim de sua escolaridade.



qual as crianças penetram na vida intelectual


daqueles que as cercam (Vygotsky, 1935: 99). 67


Uma das mudanças que suscita mais resistên-



cia nesse ofício individualista é não ser mais o


Convivendo com essa problemática, parti


único responsável por um grupo de alunos,
para reorganizar a minha ação docente num só


como é o caso na divisão tradicional de tarefas


momento didático, no qual ensino, aprendiza-


e de responsabilidades nos estabelecimentos


gem e avaliação estavam presentes e articula-
escolares (Thurler, 2001: 17-21).


dos no mesmo tempo e no mesmo espaço



interativo da sala de aula.


• Constatamos cada vez mais, entre os pro-



fessores, o sentimento e a presença de me-

Ao invés de dar uma tarefa às crianças e medir

canismos a favor da continuidade do proje-
quão bem elas fazem ou quão mal elas se saem, ○

to educativo da escola, de um ano a outro,


pode-se dar uma tarefa às crianças e observar


como fator indicativo da garantia de apren-


quanta ajuda e de que tipo elas necessitam, para


dizagem dos alunos.

completar a tarefa de maneira bem-sucedida.


Nesse contexto, nasce, pois, entre os


Sob esse enfoque, a criança não é avaliada sozi-


professores, a necessidade de se sentirem


nha. Antes, o sistema social do professor e da


responsáveis pelas decisões coletivas a res-

criança é avaliado dinamicamente para deter-


peito do ensino, da aprendizagem e da ava-


minar quanto ele progrediu (Brooks e Brooks,


liação praticados na escola, até mesmo de


1997: 97). uma gestão política a outra.



• Por fim, a presença dos pais na escola, seja


Como atuo em várias equipes de uma Rede


de forma organizada ou não, solicitando res-


Nacional de Formadores do Programa PCN em


postas sobre seus filhos, suscita também


Ação, fui, então, fazendo algumas leituras, co-


entre os professores o desejo de participar

meçando a refletir sobre algumas idéias a res-


e de manter esse diálogo de forma unida e


peito do trabalho em equipe e experimentando


bem pensada.

alguns dispositivos didáticos em outros espa-


Todas essas fortes razões me levam a perce-


ços de relação, como, por exemplo, com os gru-


ber que trabalhar em equipe torna-se um im-


pos de coordenadores-gerais e de coordenado-

portante imperativo para os que estão na esco-


res de grupo que eu conduzo e com a equipe de


la, num trabalho pedagógico, ou para aqueles


coordenadores da Rede Nacional de Formado-


que estão se formando para, no futuro próxi-


res do Programa PCN em Ação em Pernambuco.

mo, dela participar. Estes últimos estão nos cur-


Uma primeira idéia que me ocorreu foi so-

sos de formação de professores e nas licencia-


bre as razões que nos levariam a realizar, de fato,


turas das universidades, preparando-se para


o trabalho pedagógico da escola em grupo, seja


participar de atividades pedagógicas que os le-


no âmbito da escola, seja no âmbito da sala de

vem a desenvolver níveis de cooperação bastan-


aula. Vejamos, pois, algumas dessas razões:

te complexos, condizentes com as tarefas


• Uma turma de 1ª série do Ensino Funda-


exigidas pelas sociedades contemporâneas.


mental do nosso atual sistema educacional


tem aproximadamente 38% de reprovação



anual, no meu estado. Esse cenário deman- Aprender a viver juntos, aprender a viver com

da diversas colaborações em torno desse


os outros: sem dúvida, esta aprendizagem repre-


problema, que pode ser considerado como senta, hoje em dia, um dos maiores desafios da

uma violência simbólica praticada pela es- educação (Delors, 1998: 96-98).

Como desenvolver a pode funcionar como um verdadeiro cole-



tivo, em proveito do qual cada membro re-


competência de trabalhar


nuncia – aliena, voluntariamente, uma par-


em grupo? te de sua liberdade profissional. O tempo de



vida dessa equipe pode vir a ser curto!


Há vários níveis de interdependência da


• Um outro nível de situação de trabalho em


competência de trabalho em equipe, alguns do


grupo é revelado num contexto em que a pro-


quais citamos. posição pedagógica exige, por todo um ano


• Um deles pode ser o seguinte: um grupo


escolar, uma divisão flexível do trabalho, ne-


pode se juntar para decidir como vai repar- gociação e acordo, por exemplo, sobre os



tir ou dividir, por exemplo, um material es- programas das disciplinas, as atividades es-


colar ou organizar a gravação de um con-


colares e a avaliação adotada. Aqui, a co-res-


junto de fitas. Em que base o material vai ponsabilidade dos professores pelos mesmos


ser dividido ou organizado? Essa pergunta


alunos exige um nível mais complexo da

sugere várias outras perguntas:


competência de trabalho em equipe.
a. de acordo com as necessidades dos mem-

bros da equipe?

Comentando a

b. por projeto dos membros da equipe?


interdependência dos níveis


c. por mérito de alguns membros?



d. igualmente para todos?


da competência de trabalho

A conduta escolhida por um grupo pode de-


em equipe

terminar o tempo de vida de uma equipe, que pode


Em todos os níveis do desenvolvimento da


se dissolver por não alcançar uma divisão equâni-


me, que garanta certa justiça ao seu trabalho. competência do trabalho em equipe, é preciso

• Um outro nível de competência de traba- que cada membro encontre seu espaço nas re-

lho em equipe pode se limitar às trocas e lações interativas, proteja sua parcela de fanta-

discussões de idéias e às práticas no interi- sia e até mesmo as suas neuroses... enfim, ga-

or de um grupo, sem que haja o exercício ranta a construção de sua autonomia e, por con-

da decisão. Essa prática, contudo, possibi- seguinte, a sua identidade pessoal e profissio-

lita o desenvolvimento da competência co-


nal. É possível também que os grupos vivenciem


municativa. Podemos observar as trocas esses diferentes níveis nas mais surpreenden-

verbais estabelecidas pelos membros da


tes situações profissionais e de vida.


equipe para inferir como as articulações


Sabemos que, mesmo em se tratando de


entre as representações vão-se tecendo.


uma equipe com propósitos democráticos, al-


As trocas verbais, porém, exigem eqüi-

guns membros do grupo exercem mais influên-


dade na tomada de palavra e, portanto, im-


cia sobre a decisão dos outros e os membros


plicam riscos para os membros da equipe.


É preciso, pois, por uma parte, verificar se minoritários acabam por aderir às decisões des-

são sempre os mesmos participantes que tes. Além disso, podem também estar sendo

geradas na equipe situações em que outros


falam, que dão o seu “recado”, submetem


um problema ao grupo etc. e se, por outra membros sintam estar aderindo à “lei do gru-

parte, há aqueles que sempre escutam e cri- po” ou à de seu líder.



ticam e não pensam em nada para encami- Nesses e em outros casos, é preciso sempre

nhar, porque dizem que não sabem... ficar atento, vigilante mesmo, para que funcio-

Nesse nível, uma troca verbal pode pre- ne a regulação das interações entre os membros

judicar a auto-imagem de um membro do


do grupo, que vai permitir a estes emitir impres-


grupo, mesmo que não atinja formalmente


sões, comunicar o mal-estar e propor um equi-


sua autonomia. Mas, na verdade, se todos se líbrio melhor entre si. Do contrário, a equipe

protegerem, as trocas permanecerão vazias.


terá dois caminhos: dissolver-se ou fazer um



• Num nível mais complexo, uma equipe simulacro de ajudas mútuas.


68
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo

Trabalhar em equipe é uma questão de compe- uma cultura de projeto em que todos desejam



tência e pressupõe a convicção de que a coope- e sabem elaborá-lo de forma coletiva e negocia-



ração é um projeto profissional a ser desenvolvi- da. Todavia, o segundo tipo de projeto requer o


do nas situações vividas nas interações internas


desenvolvimento da cooperação em um nível


das equipes que atuam na escola e nas interações mais complexo.



internas das diversas equipes de alunos organi-


zadas em sala de aula (Thurler, 2001: 17-21).


Articular representações


69


dos membros do grupo


Adotando a cooperação como




Saber que a cooperação é o que os partici-
projeto de vida e de trabalho


pantes de um grupo querem fazer juntos é con-



A adesão ao princípio do trabalho em equi- dição importante para iniciar o desenvolvimen-



pe permite-nos descobrir que nem sempre con- to dessa competência. Articular as idéias e as


seguimos atuar de modo cooperativo ou que, representações acerca da vida de seus membros



vez por outra, agimos cooperativamente nas si- é o grande desafio do grupo. Para isso, é neces-



tuações que vivenciamos. Em outras palavras, sário ouvir as propostas de todos, descobrir os


descobrimos que trabalhar em equipe é tam- ○
desejos menos confessos dos parceiros e bus-
bém, paradoxalmente, não trabalhar em equi- car acordos mútuos.

pe quando não valer a pena. E quando será que Essa competência, como se pode ver, ultra-

não vale a pena atuar em equipe? passa a competência comunicativa entre os



Pode-se definir uma equipe como um gru- membros do grupo. Ela supõe uma certa com-

po reunido em torno de um projeto comum, preensão do funcionamento das pessoas no



cuja realização passa por diversas formas de grupo e das diversas fases do ciclo de vida de

acordo e de cooperação. um projeto, sobretudo o seu início, que muitas



Os projetos são tão diversos quanto as situa- vezes é cheio de incertezas. Enfim, para iniciar

ções e as ações do trabalho pedagógico. Nesse o desenvolvimento dessa competência numa



horizonte, podemos distinguir dois tipos de equipe, é preciso haver no grupo uma relação

projetos de cooperação: transparente e um certo equilíbrio para com-


• Projetos que se organizam em torno de uma


preender os desejos de uns e de outros.


atividade pedagógica específica na escola



ou num grupo de formadores. Exemplo: a Falar, vez por outra, do medo da perda da auto-

organização de um seminário sobre educa-


nomia, da proteção de territórios pessoais, de


ção. Nesse tipo de projeto, a cooperação é, assumir poderes ou de se submeter aos poderes

então, o meio para realizar o evento, pois dos outros é uma condição importante para tra-

ninguém tem a experiência ou o desejo de


balho de cooperação (Perrenoud, 2000: 84).


fazê-lo sozinho. Nesse caso, a cooperação



encerra-se no momento em que o projeto é


concluído.

Adotando o desafio de dirigir


• Há projetos cujo desafio é a própria coo-



peração e não têm prazos fixos para termi- um grupo de trabalho



nar, já que o seu objetivo é instalar uma


cultura ou uma forma de “atividade profis- É importante que todos os membros de um



sional interativa” ( Thurler, 1996, apud grupo sejam coletivamente responsáveis pelo

seu funcionamento, de modo que cada um exer-


Perrenoud, 2002: 83) entre os membros do


grupo. Neste caso, a cooperação é mais um ça, pessoalmente, uma parte do comando e de

modo de vida e de trabalho do que uma sua condução. Isso supõe, então, que todos os

ação eventual. participantes:


• sigam os horários e as pautas de reunião;


Podemos, efetivamente, vivenciar esses dois


• desejem tomar decisões claras;


tipos de projeto. Em ambos, participamos de



• assumam a divisão de tarefas; • alguns emitem opiniões categóricas, outros



se magoam;


• sigam o planejamento da próxima reunião;


• as reuniões terminam sem que se decida a


• realizem a avaliação do trabalho;


data e/ou o conteúdo da próxima reunião.


• promovam a regulação das interações do


grupo.



Concluindo




A condução do grupo É na equipe que o desconforto das intera-



ções e da condução do grupo é superado. É o


Essa tarefa vai supor, ao mesmo tempo:
grupo que vai enfrentar o desafio de ajudar a


• uma certa preocupação com o funciona-


regulação de suas competências e descobrir


mento do grupo – para isso será necessário


como se faz isso (Coll et al., 1999).


fazer intervenções que facilitem a comuni-


cação e a tomada de decisões eficazes e Vê-se, pois, que a competência de trabalhar


em equipe passa longe de uma habilidade, ela

igualitárias; ○

é muito mais que isso. Ela é uma compreensão


• uma competência de observação e de in-


do que fazemos funcionar nas situações de ro-


terpretação do que ocorre no grupo, a fim


tina e nas situações inesperadas do grupo, bem

de poder entender e intervir sobre o proces-


como na situação de releitura de nossa experi-


so de comunicação ou sobre a estrutura das


ência apoiada num certo conhecimento oriun-


tarefas a realizar.

do das Ciências Sociais.


A conduta de um professor na função de


dirigente ou de coordenador de grupo deve ser


A competência é, ao mesmo tempo, um negócio


tomada como uma condução que “dá vida ao


(no sentido da troca) e uma cultura que se ins-


grupo” e não apenas lhe concede a fala. Para que


tala a partir das situações vividas pelos envolvi-


a condução seja assim alcançada, não se pode dos nas situações reais e simuladas ( Vergnaud).

confundir liderança com autoridade adminis-



trativa ou burocrática. Uma atuação burocráti-


Bibliografia

ca pode conduzir os grupos a assumir as seguin-



tes atitudes: BROOKS, J. G.; BROOKS, M. G. Construtivismo em sala


• todo mundo fala ao mesmo tempo, sem de aula. Porto Alegre: Artmed, 1997.

ouvir os outros; COLL, C. et al. O construtivismo em sala de aula . São Pau-


lo: Ática, 1999.


• os participantes não sabem a razão de estar


DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório


juntos; para a Unesco da Comissão Internacional sobre Edu-



• há muitas conversas paralelas; cação para o Século XXI. São Paulo: Cortez, 1998.

PERRENOUD, P. As dez competências do ensino . Porto


• a discussão não tem foco;


Alegre: Artmed, 2000.



• alguns membros monopolizam a fala e a THURLER, M. G. Quais as competências para operar em


decisão, outros permanecem calados, sem ciclos de aprendizagens plurianuais? Revista Pátio, n.

17, ano V, maio/jul. 2001.


demonstrar interesse de participar e sem

VERGNAUD, G. A formação de competências profissionais.


que ninguém ouse solicitá-los;


Revista Geempa.

• muitos desconhecem o início e o fim das VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente . São Paulo:

reuniões;

Martins Fontes, 1984.














70
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo

Metodologia de formação




de professores enfocando




trabalho de grupo






Ana Claudia Rocha


Centro de Estudos da Escola da Vila/SP 71






Resumo





A atividade a ser relatada neste simpósio O trabalho de grupo é momento de cons-



pela palestrante pretende enfocar as ações de trução de significados compartilhados para



capacitação do Programa Praticar – Programa de qualquer comunidade que deseja constituir


Formação e Atualização Profissional Permanen- uma ação parceira entre seus membros. Po-



te –, realizadas pelo Centro de Estudos da Esco- rém, nesses casos que o Programa Praticar

la da Vila em várias redes públicas de ensino, acompanhou, é uma forma de valorizar a


tematizando as suas estratégias em favor do tra- produção do professor diante de sua própria

balho coletivo: a socialização da visita à escola, realidade, por vezes pouco favorável, e de

as reuniões de grupo, o registro individual que comunicar que a intervenção docente inten-

é veiculado coletivamente, a exposição de resul- cional e refletida pode ser, de fato, cons-

tados de sucesso da própria rede na situação de truída pelos professores do sistema público

simpósio interno.

de ensino.













































SIMPÓSIO 5

TRANSVERSALIDADE
E INTERDISCIPLINARIDADE:
DIFICULDADES, AVANÇOS
E POSSIBILIDADES
Ralph Levinson

73
Transversalidade e




interdisciplinaridade: organizando




formas de conhecimento para o aluno






Ralph Levinson


Instituto de Educação – Universidade de Londres/Inglaterra







Resumo



treinamento. O emprego de conhecimentos e



Os conceitos de transversalidade e de inter- de habilidades em um ambiente acadêmico


disciplinaridade são discutidos identificando-se não envolve a resposta às necessidades do cli-

as diferenças teóricas entre transferência e


ente, a improvisação e as tomadas de decisão


cognição situada. O progresso social e tecnológico


exigidas em um cenário industrial. Entretanto,

impulsiona a necessidade de uma forma de cola-


se nenhum conceito ou habilidade fosse passí-


boração mais bem coordenada entre professores.


vel de generalização, todo o valor do processo


O presente documento apresenta uma solução,


educacional seria questionável.


com base no apoio às habilidades argumentativas

A interdisciplinaridade está associada à


do aluno e às necessidades de desenvolvimento


transversalidade, se considerarmos que profes-


profissional afins.

sores de diferentes disciplinas podem trabalhar



em conjunto para tornar viável a aprendizagem


Introdução de um conceito ou de uma habilidade, ou para



desenvolver uma atitude, um atributo ou uma


O termo transversalidade implica uma


disposição específica. O fato de haver pelo


transferência de conceitos, habilidades, atitu-


menos um entendimento comum entre profes-


des ou atributos de um domínio ou contexto

sores sugere a possibilidade de generalização.


para outro. Há, portanto, um elemento de ge-


No Reino Unido, certamente, há poucas evi-


neralização associado a essa transferência. As-


dências empíricas que permitam julgar o su-


sim, o que se aprende em uma área do currícu-


cesso de grupos interdisciplinares na promo-

lo poderia ser aplicado ou utilizado em outra


ção da aprendizagem na faixa etária de 11 a 18


área. Por exemplo, um aluno que tenha adqui-


anos. Uma vez que o ensino de conhecimentos


rido o domínio de habilidades gráficas na es-


e de habilidades transferíveis seria de grande


cola deve necessariamente ser capaz de trans-


valor material para quem aprende e que os pro-

ferir essas habilidades para a manipulação de


fessores estariam trabalhando em conjunto


dados científicos, para a programação de ins-


para trazer sua ampla gama de experiências,


trumentos analíticos ou para a interpretação de


entendimentos e habilidades para a sala de


dados geográficos sobre populações humanas.


aula, como poderia haver qualquer obstáculo

Contudo, a experiência e a prática mostram-


no caminho de objetivos tão valiosos?


nos que essa simples transferência de uma ha-



bilidade processual não é direta. Certa feita, os


Transferência ou cognição

gerentes de uma grande indústria química co-


mentaram comigo, em tom de reclamação, que


situada?

alguns de seus funcionários com curso superi-


Grande parte do trabalho sobre a transfe-


or e diploma de graduação ou pós-graduação


em Química Analítica não conseguiam realizar rência de habilidades e de conceitos está asso-

análises simples exigidas pela empresa. Esses ciada à teoria dos estágios de Piaget. Piaget des-

funcionários precisaram passar por um novo creveu competências e habilidades em estágios


74
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades

específicos do desenvolvimento cognitivo, pe- tuações autênticas de compras demonstrou que



dindo a algumas crianças que operacio- essas mesmas pessoas não conseguiam solucio-



nalizassem tarefas do tipo conservação, por ele nar problemas semelhantes em um cenário



consideradas como habilidades abstratas e mais formal (Lave, 1988). Ao fornecer explica-


generalizáveis. Sem abalar a base teórica do tra- ções, em diferentes contextos, para fenômenos



balho de Piaget, outros teóricos posteriormen- baseados em princípios científicos semelhan-



te demonstraram que, modificando-se o con- tes, crianças na faixa etária de 12 a 16 anos não


texto da tarefa por meio do emprego, por exem- conseguiram apresentar explicações consisten- 75



plo, de figuras mais conhecidas ou da não-uti- tes (Clough e Driver, 1986). Alunos de 12 e 13



lização de um adulto para fazer as perguntas, anos não foram capazes de aplicar os conceitos



um número bem maior de crianças tinha con- e as habilidades aprendidos em Ciências a um


dições de realizar essas tarefas abstratas com projeto afim na área de Tecnologia, exceto da



mais sucesso do que se pensava anteriormen- forma mais rotineira e algorítmica (Levinson,



te. As tarefas começaram a fazer “sentido hu- Murphy et al., 1997). Os alunos com um bom



mano”, em vez de ser vistas como remotas ou conhecimento e entendimento dos conceitos


difíceis (Donaldson, 1978). Donaldson encara- científicos ficaram confusos ao empregar os



va os crescentes progressos intelectuais que conceitos em Tecnologia. Alunos nessa faixa

acompanham o desenvolvimento das crianças etária aprendem, por exemplo, que a água não

como um desencravar progressivo de competên- conduz eletricidade. Entretanto, ao construir


cias lógicas latentes. Em outras palavras, as cri- um sensor de umidade, os alunos aprendem

anças aprimoram seu pensamento abstrato. que a água fornece uma ponte de condutividade

Os construtivistas sociais foram ainda mais entre os fios na base do sensor. Assim, para eles,

longe ao questionar a realidade de um “concei- os conceitos ensinados em Ciência e em Tecno-



to abstrato”, sugerindo que as habilidades inte- logia eram aparentemente contraditórios entre

lectuais não são descontextualizadas mas, sim, si. Ao descrever a relação entre o conhecimen-

culturalmente emolduradas e “re-contextuali- to científico e o conhecimento para a ação prá-


zadas” (Walkerdine, 1988; Solomon, 1989). As- tica, Layton utilizou um modelo que “envolve a

sim, 2 + 2 não são 4 se a operação for realizada desconstrução e a reconstrução do conheci-



em uma máquina fotocopiadora (22 cópias se- mento científico adquirido, a fim de que se al-

rão produzidas), ou apertando o botão “2” se- cance sua articulação com a ação prática em

guidamente, em um elevador (você continuará tarefas tecnológicas” (Layton, 1993).



no 2º andar). Outros argumentam que algumas funções



O contexto de aprendizagem e o meio cul- cognitivas são generalizáveis. A aprendizagem



tural constituem fator crucial na competência de princípios lógicos, por exemplo, é tida como

de tarefas, conforme indicam pesquisas no necessária, embora não ofereça condições su-

campo do construtivismo social. Os estudos ficientes para o pensamento crítico (Ikuenobe,



clássicos de Carraher et al. (1991) sobre crian- 2001). O projeto Aceleração Cognitiva por meio

ças de rua no Recife demonstraram que essas de Educação Científica (Cognitive Acceleration

crianças eram bem mais competentes para so- through Science Education – CASE) vem de-

lucionar problemas matemáticos em situações monstrando que, para alunos na faixa etária de

de comércio do que para resolver problemas 12 a 13 anos, as intervenções do pensamento



formais com lápis e papel. Entretanto, esses es- lógico nas aulas de Ciências produziram um

tudos mostram que a aritmética praticada na aumento das notas de crianças em grupos de

escola é mais eficiente na forma pela qual os controle, quando estas fizeram seus exames

cálculos são efetuados. Concluem dizendo que nacionais dois anos após a intervenção. Como

as escolas devem introduzir sistemas formais de o aumento das notas ocorreu não apenas em

matemática em contextos diários de “sentido Matemática e em Ciências, mas também em



humano”. Um estudo sobre adultos solucionan- Inglês, considera-se que as habilidades adqui-

do problemas de coeficiente isomórfico em si- ridas parecem ser transferíveis (Shayer, 1996).

Nem os educadores responsáveis pela introdu- outras? Na Inglaterra, por exemplo, a Física é



ção do CASE nem outros educadores apresen- vista como a ciência que corrobora todas as



taram, até o momento, uma estrutura teórica demais áreas científicas. A área de Ciências ge-



capaz de explicar essas constatações. Entretan- ralmente é ensinada separadamente no currí-


to, a teoria da motivação, ela própria associada culo, enquanto entre as matérias de Humani-



ao contexto, tem sido empregada para explicar dades há um certo grau de fusão. A autoridade



as diferenças, em termos de sucesso, entre em Ciências, emanada de órgãos de prestígio


aqueles alunos que apresentaram melhor de- tais como a Sociedade Real, tem um status so-



sempenho como resultado do CASE e aqueles cial pelo qual ela é gradualmente difundida para



para os quais o projeto não fez nenhuma dife- as escolas, mas não deve ser contaminada por



rença (Leo e Galloway, 1996). Outros sugerem outras matérias. Quanto mais passíveis de ser


que a associação estratégica entre o conheci- atravessadas forem as fronteiras de uma maté-



mento do processo científico e o conhecimen- ria, menor será seu prestígio.



to conceitual produzirá resultados semelhantes A despeito do status da Ciência como ma-


àqueles alcançados pelo CASE ( Jones e Gott, ○
téria de prestígio e de seu isolamento em rela-
1998). Os dois postulados teóricos – transferên- ção a outras áreas do currículo, há uma neces-

cia cognitiva ou re-localização/re-contextuali- sidade real de que algumas questões sejam



zação de conhecimento – constituem os abordadas. Os progressos mais recentes nas áre-



paradigmas predominantes e opostos na pes- as de Biomedicina e Biotecnologia indicam a


quisa educacional sobre esse fenômeno. necessidade de que futuros cidadãos tenham

um entendimento básico, no nível pessoal e



público, das controvérsias decorrentes dessas


Interdisciplinaridade

novas tecnologias e das ciências que as corro-



A identificação de disciplinas sugere que há boram. Entender as implicações de um progra-



alguma distinção entre a gama de conceitos e ma de controle genético, por exemplo, e a pos-

habilidades incluídos em cada disciplina e uma sibilidade de ser portador de uma condição ge-

“divisão fundamental de categorias” (Hirst e nética hereditária é algo que diz respeito não

Peters, 1970). Estes autores identificam sete áre- apenas ao indivíduo, mas também à sua famí-

as ou “formas de conhecimento” assim diferen- lia e à sociedade. Qualquer tomada de decisão


ciadas, tais como Lógica Formal e Matemática,


num caso desses provavelmente envolverá a


Ciências Físicas e Estética. Embora essas formas moralidade privada dos indivíduos envolvidos,

de conhecimento sejam consideradas indepen- seus contextos socioeconômicos específicos,



dentes entre si, isso impede que haja inter-re- seus relacionamentos pessoais e sociais e sua

lações. Fatos empiricamente comprovados, por


bagagem cultural. Os debates atuais sobre


exemplo, podem ser utilizados para justificar clonagem humana e alimentos geneticamente

um princípio moral. Isso não significa que a modificados indicam que as decisões políticas

melhor maneira de organizar um currículo seja para sua aprovação são sensíveis à opinião pú-

ensinar essas áreas de conhecimento separada-


blica. A disseminação de informações resultan-


mente, exatamente porque há inter-relações tes de testes genéticos traz importantes impli-

entre elas. cações para a área de direitos humanos. A for-



Uma crítica a essa abordagem feita pela mulação de políticas públicas e a criação de

Nova Sociologia diz que não há nada de funda-


condições para a responsabilização democrá-


mental sobre a distinção entre áreas de conhe- tica dessas questões pressupõem cidadãos que

cimento. A pergunta, tratada a partir de uma tenham algum controle sobre a ciência a elas

abordagem do currículo como conhecimento subjacente e uma conscientização da base de


socialmente organizado (Bernstein, 1973), é:


valores envolvidas nessas questões. Os jovens


por que motivo algumas matérias curriculares que abraçam profissões nas áreas médica, do

têm mais valor e prestígio que outras e por quais serviço social e do ensino precisarão de uma

mecanismos algumas matérias se isolam de bagagem apropriada que lhes permita lidar com

76
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades

as muitas questões éticas, sociais e legais que gentes e não abordavam nenhum entendi-



devem surgir. Se os alunos, como futuros cida- mento substantivo da Ciência associado à



dãos, precisam lidar com essas questões con- questão, ou apenas abordavam os fatos e


não os valores a eles associados.


temporâneas, como e onde elas devem ser en-


sinadas pelas escolas?



As citações a seguir exemplificam as diferen-



Descobertas empíricas tes abordagens adotadas por professores de Ci-


77


ências e de Inglês.


Um projeto de pesquisa recente (Levinson



e Turner, 2001) estudou as formas pelas quais Quando falamos da ética de qualquer coisa,


assuntos que são alvo de controvérsia científi-


damos uma opinião em vez de apresentar algo


ca foram ensinados no currículo. Após um le- baseado em fatos. Quando você emite uma opi-



vantamento quantitativo em larga escala nas nião, expressa discordância. Então, toda a maté-



escolas da Inglaterra e do País de Gales, entre- ria será tratada da mesma forma que sua opi-


vistas direcionadas sobre o ensino de questões nião, sobre a qual há discordâncias pessoais.



científicas polêmicas foram realizadas com pro- Assim, o que você apresenta com base em fatos


acaba sendo tratado da mesma forma (professor

fessores individualmente e com grupos de pro-

fessores de diferentes matérias, essencialmen-




de Ciências, Escola A).

te de Ciências, Inglês e Humanidades. Uma sé-



[...] essas aulas (sobre controvérsias cientí-


rie de diferenças importantes surgiu:

ficas) são geralmente as melhores. E isso por-


• Os professores de Inglês e de Humanidades


que as crianças ficam absolutamente elétricas,


ensinavam temas que são objeto de contro-

vivas, e isso realmente as motiva. E você precisa


vérsia científica a seus alunos pelo menos


gerenciar o debate, o que em uma sala de 20-30


com a mesma freqüência com que o faziam


alunos requer algum esforço. Mas são ossos do


os professores de Ciências.

ofício. Você então precisa dirigir o debate, por-


• Os professores de Humanidades e de Inglês


que você tem a amplitude de entendimento de


sentiam-se muito mais confiantes debaten-


toda a questão (professor de Inglês, Escola J).


do e discutindo questões científicas polêmi-


cas do que os professores de Ciências e em-


Essas observações foram profundamente


pregavam uma gama bem mais ampla de


representativas das diferenças entre professo-


estratégias ao fazê-lo.
res de Inglês e de Ciências: os professores de

• A maioria dos professores de Ciências en- Inglês e de Humanidades apreciavam mais o



trevistados considerou o ensino de Ciências debate e o gerenciamento da sala de aula, en-


neutro em termos de valor; a maioria dos


quanto os professores de Ciências mostravam-


professores de Humanidades e de Inglês


se cautelosos em relação a fatos e opiniões con-

concordou com essa avaliação, mas atribuiu


fusas. Questões sociais e éticas corriam o risco


alto valor a sua própria abordagem.


de ser negligenciadas porque não foram subs-


• Os professores de Ciências mostraram-se pre-


tancialmente avaliadas. Os professores de Inglês


ocupados com o fato de que a abordagem de lidam com a controvérsia todo o tempo, e avan-

questões controversas em outras matérias que


ços como o Projeto Genoma Humano e a

não Ciências, como, por exemplo, a clonagem


clonagem forneceram material para suas dis-


de seres humanos adultos, pudesse levar o


cussões.
aluno a assimilar informações incorretas.

Os professores de Ciências, Inglês e Huma-



• Apenas uma das vinte escolas visitadas abor- nidades poderão possuir conhecimento e habi-

dava formalmente o ensino de questões ci-


lidades complementares: os professores de Ci-


entíficas polêmicas de forma interdisciplinar.


ências possuem um conhecimento e um enten-


• Não havia técnicas de avaliação satisfatórias dimento mais completo do potencial e das pos-

para o entendimento de controvérsias cien- sibilidades da área de Ciência e Tecnologia, en-


tíficas. Essas avaliações eram muito abran-


quanto os professores de Humanidades podem



conectar esse conhecimento da Ciência ao con- mente, geralmente fora do horário escolar. Mas



texto social e de valores. Mas essas conexões a avaliação é uma questão crucial: tanto pro-



raramente acontecem, como explicou uma fessores quanto alunos levarão uma matéria



vice-diretora: mais a sério se esta for formalmente avaliada e


se tiver um status elevado no currículo. A apren-



Em uma escola como a nossa, com departa- dizagem do Dia do Colapso, portanto, é avalia-



mentos rígidos, departamentos independentes, da por meio de uma dessas matérias de prestí-


com suas próprias matérias, às vezes é difícil gio elevado. Na escola que adotou esse esque-



encontrar lugar para coisas que não constam do ma, a avaliação foi feita por meio da Educação



currículo... e muitas dessas questões prestam- Religiosa, embora não haja razão para que ava-


se a abordagens curriculares cruzadas, não é


liação não possa ser feita por meio de Ciências,


verdade? (vice-diretora, Escola E).
Inglês ou de qualquer outra matéria. Finalmen-



te, professores de diferentes matérias devem ser


Desse modo, um importante obstáculo à

parceiros iguais ao decidir o que deve ser ensi-

integração é a compartimentalização, em razão ○

nado no curso e como o ensino deve ocorrer.
da forma como o currículo está organizado na
Isso pode ser mais difícil do que se espera – a

Inglaterra e no País de Gales, com os alunos sen-


pesquisa sugere que os professores de Educa-


do submetidos a exames em diferentes maté-


ção Religiosa achavam que deveriam ter maior


rias. Há, portanto, pouca motivação para que a


controle sobre o material, uma vez que as ava-


integração ocorra.
liações seriam feitas por meio da matéria que

Uma forma de colaboração e de coordena-


lecionam.

ção curricular que parece promissora e estava


A formação de equipes interdisciplinares,


sendo desenvolvida por uma das escolas duran-


portanto, pode trazer benefícios substanciais

te nossa pesquisa é o modelo intitulado “Dia do


para a aprendizagem, assim como pode tam-

Colapso”, que apresenta as seguintes caracterís-


bém produzir um clima escolar positivo, maior


ticas:

satisfação com o trabalho entre professores e


• grupo de aprendizagem fora do calendário


pontuações de desempenho mais altas do que

curricular;

as escolas não-interdisciplinares (Flowers,



• planejamento entre professores de diferen- Mertens et al., 1999).


tes matérias, particularmente de Inglês,


Mais pesquisas são necessárias para que se


Educação Religiosa e Ciências; possa avaliar a eficácia de abordagens interdis-



• um modelo integrado de ensino; ciplinares, mas a disposição de professores de



atravessar as fronteiras tradicionais das disci-


• avaliação por meio de uma matéria espe-


cífica; plinas, além do apoio político – inclusive uma


maior valorização das oportunidades de avali-



• participação igualitária de todos os par-


ação em um trabalho de natureza interdiscipli-

ceiros da aprendizagem na tomada de de-


nar – são precondições para que esse esquema


cisões.

funcione. Uma abordagem interdisciplinar tam-


Esses pontos dispensam maiores explica- bém oferece oportunidade para que conheci-

ções. Como as matérias curriculares nacionais mento e habilidades sejam re-contextualizados



são rigidamente controladas para fins de cum- de forma mais efetiva.


primento do calendário escolar, a forma mais



apropriada para reunir grupos de professores é


Implicações

a ruptura do calendário regular. O calendário



formal é suspenso por um período de tempo – O desafio identificado no presente artigo é


geralmente um dia – a fim de que professores como ensinar os aspectos sociais e éticos da

de diferentes matérias possam ensinar seus gru- Ciência em áreas aparentemente distintas. A

pos de alunos em conjunto. Para tanto, os pro- Ciência é vista como a tentativa de descrever e

fessores devem planejar o trabalho coletiva- entender a natureza, enquanto os procedimen-


78
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades

tos éticos operam com base em regras que aju- cal ou globalmente, pessoal ou publicamente,



dam a distinguir aquilo que deve ser daquilo em assuntos como tecnologia genética, preser-



que não deve ser. Entretanto, embora a evidên- vação de florestas tropicais, mudanças climáti-



cia empírica da Ciência possa nos ajudar a to- cas e saúde mundial. Um grupo de cidadãos em


mar decisões éticas, conforme dito anterior- desenvolvimento deve entender a natureza do



mente, há procedimentos comuns de pensa- argumento nos diferentes contextos, seja cien-



mento tanto no ensino da Ciência quanto no tífico, seja ético. No argumento científico, isso


ensino da Ética e da Moral. Os argumentos ci- significa a justificativa de uma demanda decor- 79



entíficos dominam o cenário político, quer lo- rente dos dados (Osborne, Erduran et al., 2001).







Antecedentes Asserção



Existem muitas variedades de bicos A diversidade de espécies


de aves marinhas encontradas nas Informação é um produto aleatório


Cada adaptação dá a cada espécie


ilhas Galápagos. da variação e da seleção


uma vantagem competitiva.


pelo meio ambiente.



Evidência Conclusão

Doenças sexualmente transmissíveis Em alguns casos deveria


podem ser diagnosticadas antes da Afirmação de base ser permitida às famílias



implantação. A educação de uma criança doente a escolha do sexo de seus


pode ser traumática para os pais.


filhos.



Evidência

A capacidade de uma família educar



uma criança doente depende da rede


de apoio e dos serviços de apoio.








Um argumento ético pressupõe uma formu- professores na identificação dos compo-



lação lógica do problema ético, e um argumen- nentes de um argumento, na avaliação da



to lógico tem uma conclusão corroborada por validade das conclusões e na identificação

de falácias. Acima de tudo, os professores


uma declaração de apoio (Beardsley, 1975). No


quadro acima, duas evidências – uma científi- deveriam ser capazes de ensaiar esses ar-

ca e outra sociológica – são empregadas, em- gumentos para si próprios. Se por um lado

bora a declaração de apoio e a conclusão pos- há componentes comuns em diferentes


áreas, por outro, as formas como os argu-


sam ser contestadas. Há paralelos para a loca-


lização das estruturas de argumentos científi- mentos são abordados seriam exclusivas do

cos e éticos, mas também em outras áreas tais contexto de cada argumento.

como História, Matemática e Estética. No exemplo do quadro acima podemos


O papel do professor é explicitar os elos en- ver de que forma um professor de Ciências

tre os argumentos. Todos os estágios, nesses e um professor de Humanidades podem



tipos de argumentos indutivos, estão abertos apoiar uma discussão ética no que se refe-

a questionamento e, empregando-se as estra- re à escolha do sexo de uma criança. Am-


tégias didáticas adequadas, geram uma abor- bos os professores teriam experiência nos

dagem liderada pela pesquisa. Cursos de de- limites e na confiabilidade da evidência.



senvolvimento profissional podem apoiar os Idealmente, essa aula deveria envolver vá-


rios professores na sala de aula com os alu- Journal, v. 31, n. 2, p. 57-60, 1999.


n o s, m a s, c o m u m p l a n e j a m e n t o i n t e r- HIRST, P.; PETERS, R. The logic of education. London:



Routledge & Kegan Paul, 1970.
disciplinar suficiente, não há motivos para


IKUENOBE, P. Teaching and assessing critical thinking


que ela não possa funcionar com professores


abilities as outcomes in an informal logic course.
com a mesma turma em aulas diferentes. Os


Teaching in Higher Education, v. 6, n. 1, p. 19-32, 2001.


alunos adquirirão experiência para julgar


JONES, M.; GOTT, R. Cognitive acceleration through science


questões polêmicas porque estarão exploran- education: alternative perspectives. International Journal



do o mesmo argumento em diferentes con- of Science Education, v. 20, n. 7, p. 755-68, 1998.


textos, assim aprendendo os limites da gene- LAVE, J. Cognition in practice: mind, Mathematics and



ralização da tomada de decisão. Novas pes- culture in everyday life . Cambridge/RU: Cambridge


University Press, 1988.


quisas empíricas devem ser realizadas sobre


LAYTON, D. Technology’s challenge to science education .
essa estrutura interdisciplinar e seu impacto


Buckingham: Open University Press, 1993.


na capacidade racional dos alunos para tomar


LEO, E.; GALLOWAY, D. Conceptual links between cognitive


decisões. acceleration through science education and motivational



style: a critique of Adey and Shayer. International Journal
of Science Education,v. 18, n. 1, p. 35-49, 1996.

LEVINSON, R.; MURPHY, P. et al. Science and technology


Bibliografia

concepts in a design and technology project: a pilot study.



BEARDSLEY, M. Thinking straight. New Jersey: Prentice- Research in Science and Technological Education., v. 15,

Hall Inc., 1975. n. 2, p. 235-55, 1997.


LEVINSON, R.; TURNER, S. Valuable lessons. London: The


BERNSTEIN, B. Class, codes and control. London:


Routledge, 1973. Wellcome Trust, 2001.


OSBORNE, J.; ERDURAN, S. et al. Enhancing the quality


CARRAHER, T.; CARRAHER, D. et al. Mathematics in the


streets and in schools. In: LIGHT, P.; SHELDON, S.; of argument in school science. School Science Review,

v. 82, n. 301, 2001.


WOODHEAD, M. Learning to think. London/New York:


Routledge, 1991. p. 223-35. SHAYER, M. Long term effects of cognitive acceleration


through science education on achievement. London:


CLOUGH, E.; DRIVER, R. A study of consistency in the


use of students’ conceptual frameworks across different Centre for the Advancement of Thinking, 1996.

SOLOMON, Y. The practice of Mathematics . London:


task contexts. Ensino de Ciências, n. 70, p. 473-96,


1986. Routledge & Kegan Paul, 1989.



DONALDSON, M. Children’s minds. London: Fontana, 1978. WALKERDINE, V. The master y of reason : cognitive

FLOWERS, N.; MERTENS, S. et al. The impact of teaming: development and the production of rationality. London:

five research-based outcomes of teaming. Middle School Routledge & Kegan Paul, 1988.































80
SIMPÓSIO 6

O LIVRO DIDÁTICO E A
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Ângela Paiva Dionísio

Kazumi Munakata

Márcia de Paula Gregório Razzini

81
Livros didáticos de Português




formam professores?





Ângela Paiva Dionísio



Universidade Federal de Pernambuco






Introdução




A parceria livro didático–professor atraves- quase sempre detinham, dedicavam-se também



sa um momento de encontros e desencontros, ao ensino [...]. O professor da disciplina Portu-


uma vez que ambos estão em fase de transição, guês era aquele que conhecia bem a gramática e



buscando uma identidade que revele as trans- a literatura da língua, a retórica e a poética, aque-



formações teóricas e políticas ocorridas no pa- le a quem bastava, por isso, que o manual didáti-

co lhe fornecesse o texto (a exposição gramatical


norama nacional. O Programa Nacional do Li-


ou os excertos literários), cabendo a ele – e a ele


vro Didático, os Parâmetros Curriculares Nacio-

só – comentá-lo, discuti-lo, analisá-lo e propor


nais, o PNLD em Ação e os diversos sistemas de


questões e exercícios aos alunos.


avaliação implantados recentemente são algu-


mas dessas mudanças políticas.


Na década de 1950, as gramáticas e antolo-


No âmbito dos estudos sobre a linguagem, a


gias são substituídas por um único livro que apre-


análise meramente estrutural cede espaço para sentava conhecimentos gramaticais, textos para

a análise da língua em contextos de usos natu- leitura, exercícios. Afirma Soares (2001a: 153):

rais e reais, postura já consolidada nos PCN, que



refletem as teorias lingüísticas mais recentes. Assim já não se remete ao professor, como anterior-

Numa reação em cadeia, os manuais didáticos mente, a responsabilidade e a tarefa de formular


exercícios e propor questões: o autor do livro didá-


transitam pelas teorias lingüísticas, tentando


tico assume ele mesmo essa responsabilidade e


atender aos critérios estabelecidos pelo PNLD e

essa tarefa, que os próprios professores passam a


às diretrizes dos PCN. Uma breve análise pano-

esperar dele, o que surpreende, se se recordar que


râmica do sistema educacional brasileiro, volta-


já então os professores tinham passado a ser pro-


da para o Ensino Fundamental e Médio, revela


fissionais formados em cursos específicos.

que o desencontro entre professor e livro didáti-



co não é um traço apenas do sistema educacio-


Neves (2000: 1) assevera que “a questão da


nal atual. Os artigos de Magda Soares “Que pro- formação do professor de Ensino Fundamental e

fessores de Português queremos formar?” (2001a) Médio nos cursos de Letras está longe de ter en-

e “O livro didático como fonte para a história da


contrado uma fixação de caminhos minimamente


leitura e da formação do professor-leitor” (2001b)


satisfatória”. Ao discutir o desempenho dos cur-


guiaram-me nesse breve percurso. sos de Letras na formação do professor, a referi-



Até a década de 1940, o ensino de Língua da autora questiona se “os alunos sabem, mini-

Portuguesa consistia na gramática da língua e


mamente, o que fazer com a lingüística no ensi-


na análise de textos de autores consagrados.


no da língua”, uma vez que a separação em Lin-


Soares (2001a: 151-52) lembra que as instâncias güística e Língua Portuguesa se evidencia dentro

de formação de professor só surgiram na déca- dos próprios cursos de Letras. Recai, pois, sobre

da de 1930; portanto os professores


os cursos de formação de professores e especifi-



[...] eram estudiosos autodidatas da língua e de camente sobre o curso de Letras a responsabili-

dade de tratar o ensino de Lingüística de forma


sua literatura, com sólida formação humanística,


que os graduandos possam perceber como sele-


que, a par de suas atividades profissionais (mé-


dicos, advogados, engenheiros e outros profissio- cionar e como orientar os conteúdos de lingua-

nais liberais) e do exercício de cargos públicos que gem para o Ensino Fundamental e Médio.

82
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores

Esta é uma necessidade cada vez mais urgen- campo das possibilidades concretas de realiza-



te na formação do professor, pois os Parâmetros ção de um percurso pedagógico real no contex-



Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa to sociopolítico brasileiro.



simbolizam a aplicação direta das teorias lingüís- Responder que sim, que o livro didático


ticas no ensino de língua materna. Também tem também a função de formar professor, se-



Marcuschi (2000: 10) alerta para a importância ria reconhecer que ainda estamos com os pés



de o professor saber o que deverá fazer com as na década de 1950, uma vez que caberiam ao


orientações dadas pelos PCN em suas aulas: autor do livro didático a seleção e a prepara- 83



ção dos conteúdos a serem ministrados. Porém



Tudo dependerá, no entanto, de como serão tais não posso deixar de reconhecer que os manu-



orientações tratadas pelos usuários em suas sa- ais didáticos exercem funções de formação de


las de aula; seria nefasto se as indicações ali fei- professor. Gérard e Roegiers (1998: 89, apud E.



tas fossem tomadas como normas ou pílulas de Marcuschi, 2001: 141) asseguram que os ma-



uso e efeito indiscutíveis. Pior ainda, se com isso nuais escolares têm o objetivo “de contribuí-



se pretendesse identificar conteúdos unificados rem com instrumentos que permitam aos pro-


para todo o território nacional, ignorando a he- fessores um melhor desempenho do seu papel



terogeneidade lingüística e a variação social. profissional no processo de ensino-aprendiza-

gem”. Dentre os recursos empregados pelos au-


Mais uma vez, recorro aos questionamen-


tores de livros didáticos que podem contribuir


tos de Neves (2000: 4) para ilustrar um tópico para a formação dos professores, destaco:

recorrente nas preocupações do professor de



Português – o ensino de gramática: “O profes-


sor de Português recebe na universidade uma


Indicação de referências

formação que lhe permita compreender – com bibliográficas comentadas



todas as suas conseqüências – o que é língua


(1) Miranda et al, v.1-4, p. XXIX:


em funcionamento e, a partir daí, que lhe per-


mita saber o que é ensinar a língua materna


ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gos-


para os alunos que lhe são entregues?”


tosuras e bobices. 4. ed. São Paulo: Scipione,


Outro fato que contribui para esse des- 1994.



compasso consiste na não-aplicação (ou na pre- A partir da apresentação dos diversos tipos de

cária aplicação) das correntes lingüísticas con-


textos de literatura infantil, a autora leva a uma


temporâneas, como a Lingüística Textual, a reflexão sobre a relação texto/leitor. Aponta a



Análise do Discurso, a Sociolingüística, nos cur- importância de se partilhar experiências de lei-



rículos de formação de professores. Faz-se, no tura, enfatizando a necessidade de um espaço


entanto, necessário ressaltar que, por serem de “leitura-prazer” na sala de aula. [...]

estudos recentes, ainda carecem muitos deles



de propostas de aplicação ao ensino de língua Listagem de sites



materna (Soares, 2001b). (2) Soares, v. 1-4, p. 29:


Nesse momento, retomando o tema deste



Simpósio – a relação livro didático e formação Ciber-espacinho de Ângela Lago.



de professor –, pergunto-me: é também função Livro de histórias infantis eletrônico, com ilus-

do livro didático formar professores? Numa res-


trações que se movimentam nas páginas.


posta bastante simplificada, diria que não e <http://www.ez-bh.com.br/~angelago>



acrescentaria que é função dos cursos de for- Doce de Letra.



mação de professores preparar seus alunos, fu- Revista de literatura infanto-juvenil. Apresen-

turos professores, para elaborar o material di- ta sites de diversos autores.



dático a ser utilizado em suas aulas. No entan- <http://www.docedeletra.com.br>



to, sei que essa resposta não se encontra ainda (acessado em setembro de 2002)

(e não sei se isso ocorrerá um dia) dentro do




Indicação de revistas para alunos e


identifiquem mais vivamente o processo de va-


professores riação da língua ao longo de um tempo de que



têm uma compreensão mais fácil (o tempo dos
(3) Soares, v. 1-4, p. 29:


pais, tios, avós); por isso, são palavras ainda não



inteiramente desconhecidas, mas em processo


REVISTAS PARA O ALUNO


de desuso; o professor pode enriquecer o exer-
Ciência Hoje das Crianças. Revista de divulgação


cício mencionando palavras já em inteiro desu-


científica para crianças. Rio de Janeiro: Socieda-


so, como janota, cinematógrafo, escarradeira,
de Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).


botica, etc.


Galileu. Rio de Janeiro. Globo. [...]



PARA O PROFESSOR


(6) Miranda et. al., v. 3, p. 261:
Amae Educando. Belo Horizonte: Fundação



Amae para Educação e Cultura.


Professor, há várias outras possibilidades de


Nova Escola. São Paulo: Abril Cultural. [...]


passagem da linguagem informal para a formal

○ no texto. Se quiser, explore-as com os alunos.
Indicação de livros, vídeos, músicas

relacionados ao tema da unidade em


estudo:

Formar um professor requer a articulação de



(4) Cereja e Magalhães, v. 3, p. 15: dois componentes curriculares, como destaca



Reinaldo (2001: 2), que são o conhecimento teóri-


FIQUE LIGADO! PESQUISE!


co (domínio de conhecimento do objeto lingua-


Para você saber mais sobre a década de 1930 e gem) e o conhecimento de ensino e de pesquisa

a prosa da segunda fase do Modernismo bra- sobre ensino (desenvolvimento da habilidade de


sileiro, sugerimos:

ensino e o conhecimento de pesquisa sobre ensi-


VÍDEOS

no-aprendizagem na área da linguagem).


Revolução de 30, de Sylvio Back; São Bernardo,


Em uma das minhas experiências com Prá-

de Leon Hirschman; Vidas secas e Memórias do


tica de Ensino de Português, na Universidade


cárcere, de Nélson Pereira dos Santos; [...]


LIVROS
Federal de Pernambuco, encontrei uma clien-

tela heterogênea, com experiências diferentes


O Quinze, de Rachel de Queiroz (Siciliano); Vi-


no que se refere à concepção de ensino de lín-


das secas e São Bernardo, de Graciliano Ramos


(Record); [...] gua. De acordo com a experiência que traziam,



MÚSICA classifiquei os alunos em:


Aluno-professor, ou seja, aquele graduando


Ouça os compositores de música popular


brasileira da época, como Noel Rosa, Ari Bar- que já ensina ou já ensinou e que tem o li-

roso, Ataulfo Alves, Leonel Azevedo, Heitor vro didático como instrumento único de

orientação metodológica. Apesar de ter es-


dos Prazeres, Ismael Silva, Orestes Barbosa,


e os compositores que tratam de temas nor- tudado as correntes lingüísticas contempo-



destinos, como Luís Gonzaga, Luís Vieira, râneas durante o curso de Letras, não sabe

Eleomar, Dominguinhos, além do poeta po- o que fazer com elas no dia-a-dia de suas

pular Patativa do Assaré. aulas (ou pior, não acredita que possam –

ele e as teorias lingüísticas – alterar as prá-


ticas já cristalizadas no Ensino Fundamen-


Emissão de recados ao professor com


tal e Médio). Tem no livro didático o com-


maior (exemplo 5) ou menor (exemplo

panheiro salvador, especialmente naqueles


6) grau de informatividade:

livros de orientação apenas prescritivista.



(5) Soares, v. 3, p. 65:


Aluno-pesquisador, ou seja, aquele gradu-

ando com vasta experiência em pesquisa


Observação: Foram escolhidas palavras que se


científica, como Iniciação Científica, hábil


supõe que ainda sejam conhecidas pelos adul-

proferidor de comunicações em congressos


tos com que os alunos convivem, a fim de que


e similares, mas sem a menor noção de


84
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores

como se portar como professor de língua. res do Ensino Fundamental e Médio num perí-



No geral, também não percebe as possíveis odo de seis horas. Dentre os resultados, inte-



relações entre as pesquisas que desenvol- ressa-me apenas registrar um deles, nesse


ve e o ensino de língua. Para este, o livro


momento: a constatação, por parte dos alunos,


didático tem a função de instrumentalizar de que, na relação com o livro didático, o pro-


o professor.


fessor deverá sempre ser superior a ele em co-



Aluno-aluno, ou seja, aquele graduando que nhecimento e em desempenho metodológico.


não tem experiência de ensino nem de pesqui- Como afirma Rose Marie Muraro, em Memórias 85



sa. Espera pela disciplina de Prática de Ensino de uma mulher impossível, “a prática é sobera-


como a grande inspiradora para a sua forma-


na na medida em que o conhecimento se cons-


ção como professor. Não percebe também a


trói no exercício da prática”.


relação entre os estudos feitos nos semestres


antecedentes como responsáveis pela sua for-


Os múltiplos olhares sobre


mação. O livro didático apenas representa um



recurso metodológico para o ensino.
a encruzilhada diabólica dos



O maior desafio consistia em fazer esses alu-
livros didáticos


nos perceberem o papel do professor como me-

diador. Como cerca de 50% da turma se enqua- ○

É preciso reforçar a tese de que a formação


drava na categoria aluno-pesquisador, decidi, do professor é tarefa da instituição de ensino,

então, solicitar aos alunos a construção de duas quer seja nos cursos de Magistério quer seja nos

organizações didáticas especiais, apontadas cursos universitários. Deve ser, pois, com base

pelos PCN – projeto de pesquisa e módulos di- nas orientações recebidas nessas instituições

dáticos –, na tentativa de atrelar o conhecimen- que o professor poderá saber o que fazer com o

to teórico e o conhecimento sobre ensino de lín- livro ou com os livros didáticos em suas aulas.

gua, bem como inserir aqueles alunos que não O professor deveria saber o porquê dos conteú-

tinham tal experiência no campo da pesquisa, dos selecionados e as implicações das estraté-

porque esses futuros professores necessitarão gias utilizadas nos livros didáticos. Os autores

desenvolver pesquisas em suas atividades de de livros didáticos costumam apresentar um


ensino de língua materna.


Manual do professor, em que esclarecem sobre


Um traço comum existia entre as três cate- as correntes teóricas em que fundam suas

gorias de alunos: como ensinar meus alunos a obras, mas nem sempre há uma correlação en-

pesquisarem? Foram montados seis grupos tre tais teorias e as atividades propostas no li-

temáticos (Adivinhas e ensino de língua; Quem


vro do aluno. Algumas vezes, parece haver uma


está falando no texto?; Era uma vez... As fábu- estratégia de marketing e não uma orientação

las e os contos de fada na sala de aula; As histó- teórico-metodológica. Listar referências biblio-

rias em quadrinhos na sala de aula; Entre a pa- gráficas atuais recheadas de autores de renome

lavra e a imagem: o filme na sala de aula e o


nacional e internacional, apresentar um texto


Dicionário no ensino de línguas) envolvendo didático resumindo as referências citadas ou



alunos das três categorias. Em cada grupo fo- carimbar a capa do livro com expressões como

ram desenvolvidas as seguintes etapas: revisão “Aprovado pelo PNLD” ou “De acordo com os

da bibliografia sobre os temas (momento que PCN” não asseguram a tal obra coerência entre

contou muito com a colaboração dos alunos- pressupostos teóricos e práticas metodológicas.

pesquisadores), análise de livros didáticos para Tais inquietudes revelam, parafraseando



verificar o tratamento dado por estes aos tópi- Neves (2000), a “encruzilhada diabólica” que se

cos selecionados, elaboração de um projeto de instaurou na construção dos manuais didáticos



pesquisa com vista ao desenvolvimento do produzidos na década de 1990. Os autores de



tema no Ensino Fundamental e Médio, monta- livros didáticos, por um lado, precisam atender

gem de um módulo didático que foi ministrado às exigências do PNLD e dos PCN, os quais, por

para alunos de Letras e Pedagogia e professo- seu turno, requerem a aplicação de programas


de ensino respaldados nas contribuições das



correntes lingüísticas mais recentes. (7) Cereja e Magalhães, v. 5, p. 34:



Para ilustrar tal encruzilhada, relatarei, bre-



vemente, uma pesquisa realizada por um gru- 1. O texto abaixo é parte da carta de uma lei-


po de professores e pesquisadores da Universi- tora que elogia a matéria publicada sobre gí-



dade Federal e Pernambuco e da Universidade rias numa revista. Leia o texto e, em seguida,



Federal da Paraíba (campus Campina Grande). reescreva-o, substituindo as gírias por pala-


Tomando por base 25 coleções destinadas ao vras e expressões da norma culta.



Ensino Fundamental, publicadas ou


É massa!


reformuladas entre 1996 e 1999, o grupo deci-


Dessa vez a Atrevida “arrepiou”. Foi “da hora”


diu investigar quais eram as tendências teóri-


a matéria NA PONTA DA LÍNGUA, com as gí-
cas e metodológicas para a abordagem dos se-


rias “maneiras” de todos os lugares É por isso


guintes temas:


que me “amarro” cada vez mais nesta revista:



descolada, divertida, diferente e “trilegal”.

Tema Por


1. Tratamento da oralidade Luiz Antônio Marcuschi Uma postura ainda pouco freqüente consis-

2. Seleção de textos Maria Auxiliadora Bezerra te na demonstração de “uma consciência siste-



3. Compreensão de textos Luiz Antônio Marcuschi mática das relações entre fala e escrita como

4. Abordagem do poema José Helder Pinheiro duas modalidades de uso da língua com fun-

5. Variedades lingüísticas Ângela Paiva Dionísio


ções igualmente importantes na sociedade,


6. Produção de textos Maria Augusta Reinaldo sendo ambas responsáveis pela formação cul-

7. Análise do discurso reportado Dóris Carneiro Cunha


tural de um povo” (Marcuschi, 2001: 27).


8. Pontuação e construção de sentido Márcia Rodrigues Mendonça


O exemplo 8 ilustra tal postura:


9. Tratamento de classe de palavras Luiz Francisco Dias


10. Avaliação no Manual do professor Elizabeth Marcuschi


(8) Soares, v. 3, p. 65

Delineadas as tendências, os especialistas



3. Descubra o significado de algumas palavras


apresentaram um conjunto de reflexões e suges-

que envelheceram, palavras que você, prova-


tões visando contribuir com as tentativas de mu-


velmente, não conhece, que quase não são


dança no ensino de língua. Os resultados dessas


mais usadas:
investigações estão compilados em O livro didá-

• Pergunte a pessoas mais velhas, ou procu-


tico de português: múltiplos olhares, publicado


re no dicionário, o significado destas pala-


pela Editora Lucerna, em abril deste ano. Tomarei vras: vitrola, patinete, caneta-tinteiro,

apenas os tópicos “língua falada” e “variedades lin- aeroplano, galocha, pó-de-arroz, cristaleira,

güísticas” para ilustrar essas tendências.


bibelô, ruge.

No tratamento dado à oralidade, constatou- • Compare suas “descobertas” com as de seus



se que os livros didáticos atuais não conside- colegas e discutam:



ram “de maneira tão incisiva a fala como o lu- Só as palavras deixaram de ser usadas ou

gar do erro. Há, no entanto, que suspeitar do as coisas que elas nomeiam também deixa-

mérito dessa postura, pois ela se deve muito ram de ser usadas? Ou essas coisas ainda

mais ao silêncio dessas obras sobre a fala do são usadas, apenas mudaram de nome?

que à avaliação da fala em suas condições de


uso” (Marcuschi, 2001: 24), pois o espaço des- Quanto à apresentação das variedades lin-

tinado à língua falada raramente supera 2% do güísticas (VL), basicamente, são duas as possi-

bilidades de encaminhamento metodológico: a)


total de páginas. Uma tendência dos livros di-


utilização de um texto sobre VL, acompanhado


dáticos é tratar a língua falada apenas como


uma questão lexical restrita ao uso de gírias e por perguntas de compreensão; e b) utilização

de expressões coloquiais, como no exemplo a de texto com VL, seguido por perguntas de com-

preensão, por atividades de identificação e


seguir.

86
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores

reescritura de VL. Nem sempre, na abordagem gêneros textuais, quando da elaboração de ati-



do texto, respeita-se a relação entre VL e carac- vidades. Afirmar que “não houve comunicação



terísticas textuais. Tal fato decorre, a meu ver, entre os dois porque, embora falem a mesma



de análises equivocadas que resultam em erros língua, pertencem a grupos sociais diferentes”


conceituais e em inadequações metodológicas, e que “E aí governador, firme?” é linguagem



como se verifica, infelizmente, no exemplo 9. culta compromete, seriamente, a formação do



professor e do aluno.


Fazendo um contraponto, apresento, a se- 87


(9) Azevedo, v. 5, p. 34-35:


guir, um exercício em que se encontram atrela-



1. Leia a piada abaixo e responda às pergun- dos respeito ao gênero textual, fidelidade à lin-


tas:


guagem dos personagens e atividades de refle-


Aquele homem humilde, simples, sotaque cai- xão sobre o uso da VL. A partir da letra da músi-



pira, foi eleito governador. Um dia, um desses ca Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, o li-


políticos de palácio chega bem perto e surpre-


vro didático propõe o seguinte:


ende o governador vendo televisão. Faz sua



média:
(10) Carvalho et. al., v. 3, p. 71:


– E aí governador, firme?
– Firme, não. Novela! ○

1. Uma das primeiras coisas que chamam a


nossa atenção na letra dessa música é ela es-


a. Qual o código usado entre o político e o go-


tar escrita em uma linguagem que não é da


vernador?

norma culta, ou seja, essa que costuma apa-


Resposta do Manual do professor: A língua fa-

recer nos livros. Escreva o que você observa


lada.

de diferente nela.

b. Houve comunicação entre eles? Por quê?


2. Experimente ver como ficaria a letra se fos-


Resposta do Manual do professor: Não houve

se escrita na norma culta, reescrevendo a se-


comunicação entre os dois porque, embo-


gunda estrofe nessa linguagem.


ra falem a mesma língua, pertencem a gru-


3. Adoniran poderia ter escrito dessa forma

pos sociais diferentes.


como você escreveu, não poderia? No entan-


c. Classifique a linguagem dos dois falantes.


to, não o fez. Por que será?


Resposta do Manual do professor: O político

4. Vamos comparar as duas formas de grafar


usa a linguagem culta, e o governador, a po-


as palavras:

pular.


Há, é lógico, o uso de VL nessa piada, tema senhor – senhô contar – contá gritar – gritá

apreciar – apreciá ligar - ligá cobertor - cobertô


tratado na unidade do livro didático em que se



encontra tal exercício, mas não se pode descar-


tar o gênero textual no processo de análise. As


Explique por que, ao escrever em linguagem


piadas, como já afirmou Possenti (1998), são


popular, as palavras que não tinham acento na


textos que envolvem temas socialmente contro- norma culta passam a ter.

versos e que operam com estereótipos. Uma


análise dessa piada exige que o leitor/ouvinte


Diferentemente do que ocorre no exemplo


identifique dois sentidos para o termo “firme”: 9, neste caso o Manual do professor (p. XXXV )

cumprimento informal e variante popular de esclarece os objetivos das atividades de manei-



“filme”. E é justamente essa confusão de senti- ra coerente, informando que o uso da letra da

do que causa o humor. Não quero negar com música de Adoniran Barbosa abre “espaço para

isso a caracterização do governador como cai- a discussão sobre questões atuais no país e di-

pira nem negar o preconceito existente, pois ferentes normas da língua”. Alerta ainda que

seria negar a piada em si. Quero apenas cha-


“trabalhar com a norma culta e popular e não


mar a atenção para a necessidade de atrelar com o certo e o errado é fundamental, para não

adequadamente os domínios de linguagem aos trair, entre outras coisas, o espírito da música”.


Dizem, ainda, as autoras sobre o fato de que a


LAJOLO, Marisa. Livro didático: um (quase) manual de usu-


música está escrita na norma não-padrão: ário. Em Aberto, n. 69, p. 2-9, 1996.



MARCUSCHI, Luiz A. O papel da Lingüística no ensino de
“Acreditamos que muitos aspectos possam ser


línguas. Anais do I Encontro de Estudos Lingüístico-


observados pelas crianças: está escrita como se
Culturais da UFPE, 2000.


fala; não aparecem o “r” e o “l” final de muitas


. Oralidade e ensino de língua: uma questão


palavras; algumas palavras são escritas diferen- pouco ‘falada’. In: DIONÍSIO, Ângela P.; BEZERRA,



temente de como costumam aparecer nos li- Maria A. (Orgs.). O livro didático de português: múlti-


vros, como tauba em vez de tábua; [...].” Traz, plos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001, p. 19-32.



portanto, este Manual do professor algumas in- MARCUSCHI, Elizabeth. Os destinos da avaliação no ma-


nual do professor. In: DIONÍSIO, Ângela P.; BEZERRA,


formações que contribuem para a formação do


Maria A. (Orgs.). O livro didático de português: múlti-


professor. Recorro, nesse momento, às palavras plos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001, p. 139-50.


de Lajolo (1996: 5) sobre o Manual do profes-


POSSENTI, Sirio. Os humores da língua. São Paulo: Mer-


sor: “Precisa ser mais do que um exemplar que cado de Letras, 1998.



se distingue dos outros por conter a resolução REINALDO, Maria Augusta. Teoria e prática na formação

○ do professor. Anais do II Congresso Internacional da
dos exercícios propostos”, já que o professor é ○

Abralin. Fortaleza: UFC, 2001.


“uma espécie de leitor privilegiado da obra di-

NEVES, Maria H. M. Examinando os caminhos da discipli-


dática, já que é a partir dele que o livro didático


na Lingüística nos cursos de Letras: por onde se per-


chega às mãos dos alunos”. dem suas lições na formação dos professores. Anais

Enfim, de acordo com a análise realizada da 18 Jornada de Estudos Lingüísticos do Nordeste.


pelo grupo anteriormente mencionado, cons-


Salvador: UFBA, 2000.


tatou-se que, mesmo com avanços relativos à SOARES, Magda. Que professores de português queremos

presença de teorias mais recentes de língua, os formar? Revista Movimento , n. 3, p. 149-55, 2001.

SOARES, Magda. O livro didático como fonte para a histó-


conceitos, na maioria das vezes, ainda são vis-

ria da leitura e da formação do professor-leitor. In: MA-


tos sob um olhar prescritivista. É preciso, pois,

RINHO, M. (Org.). Ler e navegar: espaços e percursos


que os livros didáticos saibam enfrentar, como


da leitura. Campinas: Mercado de Letras/ALB, 2001, p.


ressalta Rangel (2001: 13), “os novos objetos di- 31-76.


dáticos do ensino de língua materna: o discur-



so, os padrões de letramento, a língua oral, a



textualidade, as diferentes ‘gramáticas’ de uma Obras didáticas mencionadas



mesma língua etc.” Na parceria livro didático–


AZEVEDO, Dirce. Palavras e criação: Língua Portuguesa.


professor, parece-me que ambos ainda estão

São Paulo: FTD, 1996. v. 5-8.


acertando o passo na travessia entre as teorias


CARVALHO, Carmen S. et al. Construindo a escrita. São


lingüísticas e o ensino de língua materna. Paulo: Ática, 1998. v. 1-4.



CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Português : linguagens.


São Paulo: Atual, 1998. v. 5-8.


Bibliografia

. Português: linguagens. São Paulo: Atual,


1999. v. 3.

DIONÍSIO, Ângela P.; BEZERRA, Maria A. (Orgs.). O livro


didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janei- MIRANDA, Cláudia et al. Vivência e construção: Língua

Portuguesa. São Paulo: Ática, 2000. v. 3.


ro: Lucerna, 2001.


GÉRARD, François-Marie; ROEGIERS, X. Conceber e ava- SOARES, Magda. Por tuguês: uma proposta para o

letramento. São Paulo: Moderna, 1999. v. 1-4.


liar manuais escolares. Porto: Porto Editora, 1998.

















88
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores

Livro didático e formação




do professor são incompatíveis?






Kazumi Munakata



Pontifícia Universidade Católica de São Paulo



89



Aos companheiros professores e funcionários das Universidades



Federais que, no momento em que este trabalho foi apresentado no


Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação, encontravam-se em



greve pela dignidade no exercício de suas atividades profissionais e,


conseqüentemente, pela qualidade na educação.








“Costumo esclarecer que à perda crescen-

A ditadura, ao mesmo tempo que introdu-

te da dignidade do professor brasileiro con- ○

zia a “pedagogia tecnicista”, impôs, mediante
trapõe-se o lucro indiscutível e estrondoso compressão salarial, “o solapamento contínuo

das editoras de livros didáticos” – o esclare- e crescente da dignidade profissional dos pro-

cimento é do professor Ezequiel Theodoro da


fessores”, transformando-os em “dadeiros de


Silva (1998: 58), num artigo originariamente aulas, sem muito tempo para atualizar-se e, por

publicado na revista Em Aberto (n. 69), de isso mesmo, lançando mão dos livros e manu-

1996, data em que ele era titular da Secreta- ais que lhes chegavam prontamente” (idem: 45)

ria da Educação da Prefeitura Municipal de – o que teria contribuído para a elevação dos

Campinas (São Paulo), na gestão do prefeito lucros das editoras. Para esses professores as-

Magalhães Teixeira, do PSDB. O fato de ele ter sim desqualificados, “coxos por formação e/ou

sido, então, diretamente responsável pela mutilados pelo ingrato dia-a-dia do magistério”

dignidade da parcela campineira do profes- (idem: 57), o livro didático tornou-se “bengala,

sorado brasileiro parece não importar muito muleta, lente para miopia ou escora que não

quando se trata de prosseguir sua obstinada deixa a casa cair” (p. 43). Silva (1998) remata:

cruzada contra o livro didático – tema que


“Não é à toa que a imagem estilizada do pro-


ocupa considerável espaço da sua produção fessor apresenta-o com um livro nas mãos, dan-

acadêmica. do a entender que o ensino, o livro e o conheci-



Para ele, o livro didático associa-se direta- mento são elementos inseparáveis” (idem: 58).

mente com o período militar e seu projeto edu-


O que o secretário Silva quis exatamente


cacional: dizer? Que educação e livros são incompatíveis?



Que o professor que se deixa flagrar carregan-



Ainda que as cartilhas, os manuais de ensino do livro é um desqualificado, “coxo por forma-

e as coletâneas de textos tivessem presença


ção”? Talvez ao secretário Silva repugne ler li-


na escola brasileira desde o início do século vros ou ele considere indigno da sua sabedoria

19, é na segunda metade da década de 1960, recorrer a livros para adquirir novos conheci-

depois da Revolução de 1964 e com a assina-


mentos ou para preparar aulas – não cabe aqui


tura do acordo MEC-Usaid, em 1966, que os


discutir idiossincrasias pessoais. O que não é


livros didáticos vão ganhando o estatuto de


muito elegante para um intelectual como ele é

imprescindíveis e, por isso mesmo, vão sen-


desconsiderar toda a história do ensino esco-


do editados maciçamente, a fim de respon-


der a uma demanda altamente previsível, a


lar, recortando-lhe apenas a fatia que seja do

um mercado rendoso, lucrativo e certo (Sil- seu interesse (o período da ditadura militar no

Brasil e suas seqüelas), a fim de favorecer a sua


va, 1998: 44).



tese de que o livro didático e a formação do pro- comportamentos etc.) efetivava-se pela ob-



fessor são antípodas.1 servação do fazer e pelo treino do próprio



Segundo Guy Vincent, Bernard Lahire e fazer, em seus respectivos ambientes (o


aprendizado de um ofício artesanal fazia-se


Daniel Thin (1994), a instituição que hoje co-


nhecemos como “escola” apareceu na Europa numa oficina; o de um cavaleiro, na casa de


um nobre etc.). Na escola, ao contrário, en-


no decorrer dos séculos 16 e 17. Eles advertem


sina-se a todos um conjunto de saberes e


que o fato de certas palavras do vocabulário


valores independentemente da especializa-
educacional terem existido desde a Antiguida-


ção a que cada aluno se destina ou almeja,


de não significa que elas indicassem sempre as


e esse conteúdo genérico a ser ministrado,


mesmas coisas. A “escola”, por exemplo: essa


sem referência a nenhum ofício em parti-


palavra deriva do grego skholê, que significava cular, inviabiliza o aprendizado centrado no


“lazer”, “entretenimento”, num sentido muito


fazer.


próximo ao do latim otium, que daria origem à


• “Escrituralização-codificação dos saberes e

palavra portuguesa “ócio”. Esses termos indica-


das práticas” (Vincent et al., 1994: 31). Exa-
vam a condição privilegiada dos “homens li-
tamente na medida em que o fazer e o ensi-

vres”, isto é, aqueles que não dependiam do tra-


nar se separam, os conteúdos a ser minis-


balho para sobreviver e que, por isso, podiam-


trados passam a ser codificados num siste-


se dar ao luxo de dedicar-se ao cultivo das ar- ma de registro que é a escrita. “Uma peda-

tes, da leitura, do pensamento. gogia do desenho, da música, da atividade


A escola que se idealizou e foi se constituin- física, da atividade militar, da dança etc. não

do nos séculos 16-17 opôs-se de certo modo a se faz sem uma escrita do desenho, uma es-

esse elitismo dos “bem-nascidos”. Numa época crita musical, uma escrita esportiva, uma

marcada pelos movimentos de Reforma e de escrita militar, uma escrita da dança. Escri-

Contra-Reforma, o protestante Comenius (1592- tas que implicam quase sempre gramáticas,

1670) imaginou uma “arte de ensinar tudo a to- teorias das práticas. O modo de socializa-

ção escolar é, pois, indissociável da nature-


dos”, como diz o subtítulo da sua principal obra,


Didática magna, propondo a escolarização in- za escritural dos saberes a transmitir”



distinta de ricos, pobres, meninos e meninas. No (Vincent et al., loc. cit.).



lado católico, os Irmãos das Escolas Cristãs, de Por isso mesmo, a escola é antes de tudo

Jean-Baptiste de la Salle (1651-1719), criaram uma instituição de ensino do ler e do escrever.


uma escola gratuita para todos, cujo ensino re- Afirmam Vincent et al. (1994: 36):

queria freqüência prolongada de vários anos.


O objetivo da escola é aprender a falar e a escre-


Algumas características dessa escola que a tor-


ver segundo regras gramaticais, ortográficas,


naram uma instituição nova, inédita, com uma


estilísticas etc. [...]: a escola é o lugar de apren-

forma própria – a forma escolar – são:


dizagem da língua. [...] A forma escolar de rela-


• “A escola como lugar específico, separado


ções sociais é a forma social constitutiva do que


de outras práticas sociais” (Vincent et al., se pode denominar uma relação escritural-esco-

1994: 30). Isso significa que a escola produz


lar com a língua e com o mundo.


e organiza práticas peculiares, com regras



próprias, num âmbito que não se confunde Num lugar assim instituído, o livro neces-

com a família, com a profissão ou com a re-


sariamente se faz presente, não como um aces-


ligião. sório a mais, mas como um dispositivo funda-



• A separação entre o fazer e o ensinar. Até mental. Em Ratio studiorum, uma espécie de

então, o aprendizado (de saberes, valores, manual de ensino dos colégios jesuítas, redigi-





1
O seu recorte histórico, que só conhece o período da ditadura militar, obscurece, por isso, o fato notório de que o grande boom dos livros

didáticos (e, portanto, da lucratividade das editoras) aconteceu com a redemocratização, com a instituição, em 1985, do Programa Nacional

do Livro Didático (PNLD), por meio do qual o governo federal chegou a adquirir, em 1999, quase 110 milhões de exemplares.

90
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores

do entre 1548 e 1599, grande parte foi dedicada tou a passagem do termo “text book para text-



aos livros a ser adotados. Mais do que isso, ha- book, depois textbook, evolução que reflete [...] a



via uma série de recomendações sobre o modo emergência de uma categoria e de um produto



como eles seriam lidos, com a indicação de tre- específicos” (Stray, 1993: 74, nota 2). Na França,


chos que deveriam ser omitidos por conter in- de acordo com Chervel e Compère (1997), vários



conveniências (principalmente em relação à autores, hoje tornados “clássicos”, dedicaram-se



doutrina cristã). Também Comenius, em Didá- a produzir obras especialmente destinadas a fins


tica magna, discutiu os prejuízos causados pela didáticos: Ester e Atália, de Racine, ou Aventuras 91



leitura de livros pagãos e recomendou que se de Télémaque, de Fénelon, e Discurso sobre a his-



produzissem livros especialmente adequados tória universal, de Bossuet, são exemplos.



ao ensino. Por sinal, ele mesmo foi o autor de Essas considerações, longe de pretenderem


um livro que julgou adequado aos propósitos esgotar uma possível história do livro didático,



didáticos: a obra intitulada Orbis sensualium servem apenas para indicar que este faz parte



pictus (O mundo sensível em imagens), de 1658. da vida escolar desde que a escola é escola. Nes-



Segundo Narodowski, esse livro, em que cada se sentido, ao contrário do que imagina o se-


capítulo refere-se a um assunto a ser ensinado cretário Silva, de fato “o ensino, o livro e o co-



e contém ilustração correspondente, nhecimento são elementos inseparáveis” na for-

ma escolar, e o professor carregando livro não



[...] é a matriz mediante a qual se reproduzirão é imagem estereotipada da sua deficiência a ser

os livros de textos didáticos que deverão formar compensada com muleta, mas a afirmação da

as crianças da sociedade ocidental moderna sua distinção profissional!


durante trezentos e cinqüenta anos.


Certamente, o livro didático sofreu altera-


Do ponto de vista de seu conteúdo, o livro di- ções na sua forma e no modo de sua produção

dático expressa as temáticas estipuladas para o


e edição, além de ter acompanhado as mudan-

ensino em cada nível da escolaridade. Isto sig-


ças na maneira como os conteúdos do ensino


nifica que o livro didático é uma mensagem


eram organizados. Por exemplo, a passagem dos


construída ad hoc, pelo que tanto sua elabora-


livros de texto, com trechos de obras para lei-

ção como sua posterior utilização somente são


tura abrangendo conteúdos os mais variados,


compreensíveis no contexto do processo geral


para livros especializados por disciplina expres-


de escolarização. Em outros termos, o livro de


texto didático não possui um valor literário ou sa a constituição, a partir do final do século 19,

das disciplinas escolares (Chervel, 1990). O li-


científico autônomo: já desde o século 17 e a


vro didático também foi um importante supor-


partir da empresa comeniana o texto se legiti-


ma na medida em que contribui eficientemente te da organização das práticas escolares. Quan-



para o processo de produção de conhecimentos do ele não existia, cada aluno devia trazer de

escolares. Mais ainda, o texto possui um estilo sua casa algo escrito – manuscrito ou impresso

literário e uma retórica singular [...]. O livro de – que pudesse servir de material de ensino, e

texto didático constrói uma estética que lhe é este era necessariamente individualizado. A

própria (Narodowski, 2001: 83-84.).


adoção, entre outros materiais, do livro didáti-


co único para uma turma inteira possibilitaria



Nos Estados Unidos, como mostra Stray, a o ensino simultâneo, pelo qual muitos passa-

constituição e o desenvolvimento desse gênero ram a estudar uma mesma matéria ao mesmo

de livro podem ser constatados pela consolida-


tempo (Hébrard, 2000).


ção da própria terminologia que o designa: con- Como suporte da organização das práticas

sultando o catálogo da Biblioteca de Nova York escolares, o livro didático destina-se tanto ao

referente ao período de 1880 a 1920, ele consta- aluno como ao professor. 2 Os usos que um e




2
Segundo Gérard e Roegiers (1998), no Vietnã, os livros didáticos “são especialmente concebidos para os pais a fim de os ajudarem a

assegurar as aprendizagens escolares dos filhos” (p. 30). Pode-se também suspeitar que, no Brasil, desde que o Programa Nacional do Livro

Didático (PNLD) passou, a partir de 1995/1996, a avaliar os livros didáticos, os avaliadores tornaram-se os destinatários prioritários.

outro fazem do livro didático são diversos, múl- colha, pelos professores, dos livros recomenda-



tiplos: nem sempre se lêem esses livros porque dos pela avaliação do PNLD:



se desconhece o seu conteúdo. Dito de modo



mais claro: se um professor usa um livro didá- Tendo em vista o PNLD/97, cerca de 72% das


tico, isso não significa necessariamente que ele escolhas docentes recaíram sobre os livros não-



seja malformado, ignorante, como fazem supor recomendados e apenas cerca de 28% sobre os



as metáforas de “muleta”, “escora” etc. Não há recomendados. No PNLD/98, embora a soma


apenas uma maneira de ler um livro – ainda dos livros recomendados (com distinção,



mais em se tratando de livros didáticos, para o 21,88%; com ressalvas, 22,15%; ou simplesmen-


te recomendados, 14,64%) tenha constituído o


que é mais conveniente falar em “uso” do que


grupo mais escolhido pelos docentes, a catego-


em “leitura” (Lajolo, 1996). Esses livros são car-


ria que, isoladamente, mostrou-se a mais repre-
regados de um lado para outro; são rabiscados


sentada continuou a ser a dos não-recomenda-


(embora o governo não goste disso...); raramen-


dos (41,33%). No PNLD/99, por fim, as escolhas


te são lidos de ponta a ponta ou na seqüência

dos docentes, com a eliminação da categoria dos

em que seus conteúdos estão ordenados.
não-recomendados, recaíram, predominante-

O estudo sistemático sobre os usos dos li-


mente, sobre a dos recomendados com ressal-


vros didáticos está ainda por ser realizado, mas


vas (46,74%), a dos recomendados com distin-


algumas informações ainda díspares são surpre- ção representando apenas 8,40% das escolhas

endentes. Esse é o caso da pesquisa realizada (MEC, 2001: 33.).


por Araujo (2001) sobre os usos de livro didáti-



co de História em algumas escolas estaduais de O que ressalta nesses dados é, mais do que

Ensino Fundamental na cidade de São Paulo. um “descompasso”, uma inversão completa en-

Nesse trabalho, um professor conta que ele uti-


tre os critérios da escolha dos professores e os


liza livro didático apenas como fonte de ilus- da avaliação do PNLD. O que isso significa? A

trações. Outro relata que o emprega para fazer incompetência dos professores, incapazes de

exercícios de leitura – habilidade que, segundo optar pelo melhor? O documento do MEC

diz, seus alunos ainda não dominam bem. Um


(2001), embora cauteloso, insinua que sim:


terceiro esclarece que mescla trechos de vários



livros ao mesmo tempo. Assim, uma visão de conjunto da escolha do li-



Esses exemplos revelam não a suposta defi- vro didático assim como alguns dados relativos

ciência do professor que requer, por isso, mule-


ao seu uso em sala de aula apontam claramente


tas; ao contrário, mostram a extrema criatividade para a formação docente como um dos fatores

no manuseio desse material, por cuja escolha relevantes para a compreensão do referido

esses professores nem sempre foram responsá- descompasso (MEC, 2001: 33.).

veis.3 No limite, não é impossível que a partir de



um livro considerado ruim o professor consiga O documento prossegue apresentando os



desenvolver uma excelente aula. Essas questões, indicadores que apontam para a precariedade

no entanto, raramente são levadas em conta na da formação dos professores.


avaliação dos livros didáticos. Sintomático nes- Embora essa hipótese não possa ser descar-

se sentido é o “descompasso entre as expectati- tada, o que surpreende é a ausência gritante da



vas do PNLD e as dos docentes”, reconhecido por possibilidade de equívocos nas avaliações rea-

um documento do próprio Ministério da Edu- lizadas pelo PNLD. Não é possível que os pró-

cação (MEC, 2001), isto é, o baixo índice de es- prios avaliadores tenham uma formação inade-





3
Araújo (2001) descreve uma situação muito comum em que, em razão da intensa rotatividade dos docentes em relação às unidades de

ensino, os professores têm de adotar livros que não escolheram. Além disso, essa pesquisa constatou que nem sempre há livros suficientes

para todos os alunos, o que faz com que os professores retenham os exemplares na escola, distribuindo-os e recolhendo-os a cada aula.

Convém esclarecer que a escolha e a distribuição dos livros didáticos no Estado de São Paulo são realizadas de modo autônomo, cabendo

ao PNLD apenas repassar a verba correspondente.


92
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores

quada? Como o avaliador é avaliado? Como é ao ensino dos conteúdos de uma disciplina, mas



recrutado? A esse respeito, o Guia de livros di- é também ocasião de desenvolvimento de cer-



dáticos, em várias edições, é extremamente tas habilidades – por exemplo, de leitura. Antes



lacônico. Na edição referente ao PNLD 2000/ mesmo de os Parâmetros Curriculares Nacionais


2001 afirma-se que os avaliadores são preconizarem atitudes, transversalidades e toda



a sua parafernália neotecnicista, os professores



[...] especialistas que atuam tanto no Ensino já desenvolviam essas práticas, sem o que mi-


nistrar sua própria disciplina específica ficava 93


Fundamental como na universidade e é basea-


da não só na experiência docente e no conheci- muitas vezes inviabilizado.



mento especializado das equipes, mas, princi- Não que a formação esteja às mil maravilhas;



palmente, naquele conjunto de princípios e cri- ao contrário: é com muita apreensão que se as-


siste hoje ao incentivo à proliferação desenfrea-


térios já referidos (Introdução Geral).


da de cursos improvisados de formação docente,



Na edição do Guia do PNLD/2002, não há muitos de curta duração, apenas para fazer cum-



menção à figura do avaliador, mas há um escla- prir estatisticamente o preceito da nova Lei de


recimento de que “o Ministério adotou uma Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que exi-



nova sistemática para o processo de avaliação”, ge formação superior de todos os docentes em

buscando, “por meio de parcerias com univer- todos os níveis de ensino. Não é assim que os pro-

sidades públicas, impulsionar o interesse da


fessores terão oportunidade de discutir as possi-


pesquisa universitária sobre o tema, bem como bilidades de uso – e, portanto, de escolha – dos

incentivar a transferência do conhecimento e livros didáticos. No máximo haverá tentativas de



experiência acumulados” (p. 11). Que pesqui- doutrinação dos professores, pelas quais se pro-

sas são essas e como isso se manifesta na esco- curará “ensinar” como eles não sabem escolher

lha dos avaliadores não é dado a conhecer. livros e que por isso devem seguir as orientações

Em todo caso, é possível aqui reiterar que dos avaliadores do PNLD. Nesse sentido, o referi-

não há no momento, com toda a certeza, ne- do documento do MEC (2001: 36) recomenda

nhuma pesquisa em andamento que examine “programas de capacitação para a escolha e o uso

sistematicamente os usos efetivos dos livros do livro didático, destinados aos docentes e téc-

didáticos pelos professores. Isso significa que nicos dos sistemas educacionais”, subentenden-

na melhor das hipóteses os avaliadores conti- do-se que docentes e técnicos são “incapazes”.

nuam examinando os livros com base apenas Sugerem-se também “alterações no Guia de livros

na sua experiência e intuição – o que geralmen- didáticos, descrevendo-se mais adequadamente



te é denominado “achômetro”. É também pos- as obras que dele constam e utilizando-se uma

sível que alguns avaliadores simplesmente não linguagem mais adequada ao professor e a suas

levem em conta o caráter escolar e didático des- expectativas” (p. 36), pois, os professores, supõe-

ses livros, lendo-os como se fossem obras cien- se, são incompetentes para entender a linguagem

tíficas, que devem conter os resultados das mais tão elevada dos avaliadores.

recentes pesquisas de ponta na respectiva área. Enquanto o “descompasso entre as expectati-


Do lado da formação dos professores, é pre- vas do PNLD e as dos docentes” for entendido

ciso fazer distinção entre formação inadequada como descompasso de mão única, isto é, como

e atitudes por vezes inesperadas que eles tomam incapacidade do professor em relação à sapiência

perante necessidades do dia-a-dia. Podemos não do PNLD, não haverá propostas de formação do-

concordar com o uso de um livro didático como cente que consigam levar em conta as poten-

suporte de exercícios de leitura, mas isso não sig- cialidades, a criatividade e a autonomia dos pro-

nifica que esse professor tenha tido necessaria- fessores. Estes continuarão, como sempre, sendo

mente uma formação inadequada. Não se pode vistos como um “mal necessário”, “coxos por for-

esquecer de que a aula no Ensino Fundamental mação”, eternamente deficientes a requerer mule-

(e freqüentemente até mesmo no Ensino Supe- tas, ao mesmo tempo que constituem item indis-

rior e na Pós-Graduação) não se presta somente pensável para ornar estatísticas eleitoreiras.

Bibliografia


HÉBRARD, Jean. Três figuras de jovens leitores: alfabetiza-


ção e escolarização do ponto de vista da história cultu-


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de Lyon, 1994.









O livro didático e a memória




das práticas escolares






Márcia de Paula Gregório Razzini



Universidade Estadual de Campinas /SP






A contextualização das práticas escolares tárias, ganhando cada vez mais status de obje-

em segmentos de tempo diferentes do nosso, to de estudo e ocupando papel de destaque na



além de nos lembrar o fato, às vezes incômo- recente história das disciplinas escolares. Hoje,

do, de que nossas práticas escolares também o estudo e a constituição da história do livro

estão condicionadas à nossa época, pode for- didático, assim como a preservação de acervos,

necer uma visão crítica e reflexiva sobre práti- tem reunido pesquisadores em torno de núcle-

cas atuais.

os institucionais, sobretudo nas Faculdades de


Nesse sentido, o livro didático torna-se ma- Educação, de Letras e de Comunicação, sendo

terial de pesquisa privilegiado, quer seja como que alguns grupos de universidades diferentes

fonte documental na definição de práticas do desenvolvem projetos em parceria.


passado, quer seja como representação de tais


A memória da escola e do livro didático tem


práticas. merecido também a atenção de Secretarias de



Nos últimos vinte anos, influenciado pela Estado da Educação, como atestam a inaugu-

sociologia e pela história da leitura, o livro di- ração do Museu da Escola de Minas Gerais, em

dático tem sido objeto de várias teses universi-


1994, que funciona junto do Centro de Refe-


94
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores

diz sobre a cidade de Maurília em As cidades


rência do Professor, em Belo Horizonte, e a ex-


posição histórica, da qual participo como con- invisíveis, convido-os a visitar essa escola do



sultora, intitulada “A escola e o saber: trajetória passado como quem “observa uns velhos car-



de uma relação”, que procura mostrar momen- tões-postais ilustrados que mostram como esta


tos marcantes do ensino público em São Paulo havia sido” ou, ainda, a se perguntar como es-



por meio de fotos, móveis, objetos e livros di- colas tão diferentes habitaram o mesmo lugar



dáticos, inaugurada no final de outubro de 2001, (Calvino, 1990: 30).


De fato, impulsionada pela economia 95


juntamente com o Centro de Referência do Pro-


fessor Paulista. Interessante notar que ambas as cafeeira e pelos ideais republicanos, a expan-



iniciativas ocorrem em espaços destinados à são da escola pública primária no Estado de



formação continuada do professor, voltados São Paulo, traduzida na invenção dos grupos


portanto para o presente e para o futuro, mas escolares, marcaria as três primeiras décadas



que vêem o passado como um ângulo privile- da República, fazendo surgir na paisagem ur-



giado de pesquisa e de formação. bana “templos de saber” (Souza, 1998), cujas



Para afinar a discussão, escolhi dois mo- imagens seriam difundidas em cartões-pos-


mentos constitutivos da escola pública: a orga- tais.



nização do ensino primário em São Paulo, logo A tabela a seguir, além de fornecer dados

após a Proclamação da República, e a centrali- sobre o desenvolvimento dos grupos escolares



zação do ensino secundário a partir do Colégio em São Paulo, mostra a grande ampliação de

Pedro II, no Rio de Janeiro. E, como Ítalo Calvino matrículas:







Estado de São Paulo – Resumo estatístico dos Grupos Escolares de 1898 a 1910



Anos Nº de Grupos Alunos matriculados




Capital Interior Total Sexo masculino Sexo feminino Total




1898 8 30 38 6.134 5.319 11.453




1899 8 27* 35 6.647 5.908 12.555



1900* 10 35 45 8.526 6.754 15.280




1901 10 39 49 9.468 7.372 16.840



1902 10 41 51 9.898 9.454 19.352




1903 11 47 58 11.654 10.019 21.673



1904 11 51 62 10.589 10.100 20.689




1905 13 55 68 11.696 11.083 22.779



1906 15 57 72 12.565 11.971 24.536




1907 16 60 76 13.278 12.220 25.498



1908 18 63 81 15.666 14.794 30.460




1909 24 68 92 21.229 20.046 41.275




1910 25 77 102 27.244 26.201 53.445



* Foram dissolvidos os Grupos Escolares de São José dos Campos, Bananal e Ubatuba [Nota de rodapé original do Anuário , que acompanha esta tabela]

Fonte: Anuário do Ensino do Estado de São Paulo 1910/1911.



Segundo Rosa Fátima de Souza, a nova es- simultaneamente” (Faria Filho, 2000: 142) e,



cola pública como conseqüência, a progressão seriada dos



conteúdos.



[...] é uma escola para a difusão dos valores re- Quanto ao processo de aprendizagem, pro-


publicanos e comprometida com a construção cura-se difundir com entusiasmo o “método in-



e a consolidação do novo regime; é a escola da tuitivo”, ancorado nas idéias de Pestalozzi e as-



República para a República. [...] era preciso fun- sim chamado porque dava muita importância


dar uma escola identificada com os avanços do à intuição, à



século, uma escola renovada nos métodos, nos [...] observação das coisas, dos objetos, da na-



processos de ensino, nos programas, na organi- tureza, dos fenômenos e para a necessidade da


zação didático-pedagógica; enfim, uma escola educação dos sentidos como momentos funda-



moderna em substituição à arcaica e precária mentais do processo de instrução escolar.



escola de primeiras letras existente no Império Essa etapa da observação minuciosa e orga-


[...] (Souza, 1998: 29). nizada é condição para a progressiva passagem,




pelos alunos, de um conhecimento sensível
Para coordenar as mudanças, em 1894, foi para uma elaboração mental superior, reflexi-

va, dos conhecimentos. Tal etapa inicia-se pe-


inaugurado na capital o novo e suntuoso pré-


dio da Escola Normal Caetano de Campos, na las “lições de coisas”, momento em que o pro-

fessor deve criar as condições para que os alu-


então retirada e recente Praça da República,

nos possam ver, sentir, observar os objetos.


topônimo perfeito para abrigar uma instituição-


Podia-se realizar tal procedimento utilizando-


modelo encarregada de irradiar o projeto edu-


se dos objetos escolares ou dos objetos levados

cacional dos republicanos e suas inovações di-


para a escola (caneta, carteira, mesa, pedras,


dáticas. Além de cuidar da formação dos futu-


madeira, tecidos...), ou realizando visitas e ex-


ros professores primários, a Escola Normal cursões à circunvizinhança da escola, ou, ain-

mantinha uma escola primária anexa, chama- da, possibilitando aos alunos o acesso a gravu-

da de Escola-Modelo, onde os normalistas dos


ras diversas, que tanto poderiam estar nos pró-


últimos anos faziam estágio, e um Jardim da prios livros, de “lições de coisas” ou de outros

Infância, primeira escola pública infantil, inau- conteúdos, ou em cartazes especialmente pro-

gurada em 1896. duzidos para o trabalho com o método (Faria


Interessante salientar que somente após Filho, 2000: 143).



exatos cem anos da fundação da primeira es-



cola pública infantil é que a Educação Infantil A expansão da escola pública no Estado de

foi incluída como primeira etapa da Educação São Paulo procurava, portanto, articular o pro-

Básica, na Lei de Diretrizes e Bases da Educa- grama ideológico da República com as inova-

ção Nacional (Lei nº 9.394) de 1996. ções pedagógicas em voga na Europa, dando à

A centralização do ensino primário a partir escola primária uma finalidade cívica e moral,

da Escola Normal Caetano de Campos colocou reorganizando o espaço e o tempo escolar e di-

em relevo um grupo de normalistas que lá se fundindo um novo método de ensino-aprendi-



formaram e que depois vieram a exercer cargos zagem.



públicos da administração escolar. Muitos de- Tal ponto de inflexão da escola primária

les se tornariam também autores didáticos de exigia não só móveis específicos, mas também

sucesso, como foi o caso de Arnaldo Barreto e o uso de novos materiais didático-pedagógi-

de Mariano de Oliveira. cos, como cadernos, livros e impressos icono-


gráficos (mapas e cartazes). Se no início da


Os novos espaços escolares, cuja simetria


dos edifícios aponta a separação entre a seção República os móveis e alguns suportes de en-

feminina e a seção masculina, generalizaram sino eram importados da Europa e dos Esta-

a aceitação do método simultâneo como for- dos Unidos, os livros tinham de ser traduzidos

e adaptados para nossa realidade. A conse-


ma de organização do tempo escolar, permi-


tindo “a ação do professor sobre vários alunos qüência imediata dessa expansão foi o desen-

96
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores

volvimento do mercado editorial e a profissio- Ofélia já está no grupo escolar.



nalização do escritor didático. 2. Ela já sabe ler, escrever e contar.



Prosperaram bastante nesse período edito- 3. Hoje ela teve uma lição de geografia.


4. Sabem vocês como foi a lição?


ras já tradicionais no segmento dos livros didá-


ticos, como a Livraria Francisco Alves, fundada 5. Primeiro, a professora lhe mostrou o globo



geográfico.
em 1854 no Rio de Janeiro, cuja filial em São


6. Mostrou-lhe no globo os mares e os continen-


Paulo foi aberta em 1893. Se até 1889 a Livraria


tes. 97
Francisco Alves havia publicado apenas 67 tí-


7. Depois mostrou no globo a América do Sul e o


tulos (sendo 59 de ensino), nas três décadas se-


Brasil.


guintes ela acompanhou a expansão escolar,


8. Ofélia está agora com um globinho na mão.


publicando 538 títulos, 295 dos quais eram di- 9. Ela mostra ao Hipólito onde fica o Brasil.


dáticos.


10. Hipólito ficou muito alegre e lhe disse:


Outras empresas, como a editora Melhora-


11. Vamos ao gabinete, onde está o quadro-negro.


mentos (1915) e a editora de Monteiro Lobato 12. Vou fazer no quadro-negro a carta do Brasil.



(1918) aparecem em São Paulo nessa época, fa- 13. Como o Brasil é belo e grande!


zendo do livro didático um importante ramo de 14. Viva a nossa Pátria! Viva o Brasil!



seus negócios.

A leitura e a escrita, ensinadas simultanea- Além das cartilhas, os livros de leitura



mente, são as principais atividades dos alunos também tiveram papel importante na conso-

na escola primária. Para as aulas de caligrafia lidação da ideologia republicana, fazendo



foi eleito o método americano, chamado de ca- com que várias gerações lessem, escrevessem,

ligrafia vertical, cujos cadernos graduados per- decorassem e recitassem não só velhos ensi-

maneceriam no mercado até os anos 1990,


namentos como, por exemplo, as Fábulas de


como é o caso dos cadernos de Caligrafia verti- Esopo e de La Fontaine ou as Máximas do



cal de Francisco Viana, publicados de 1909 até Marquês de Maricá, mas também textos que

1999 pela editora Melhoramentos, segundo a construíam a idéia de pátria moderna e civi-

qual essa série teve mais de 110 milhões de lizada, ou seja, livros que veiculavam conteú-

exemplares vendidos. dos morais e cívicos e que privilegiavam o



No início do século XX, a alfabetização vai método intuitivo.



abandonando a toada da soletração das car- A República nacionalizou o ensino (sobre-


tas de ABC (bê-a-bá), conhecida por método tudo o ensino de Língua Materna, de Geografia

sintético, substituindo-o pelo método analí- e de História) e, para isso, foi imprescindível a

tico, da silabação, adotado oficialmente no nacionalização do livro didático. A leitura oral



Estado de São Paulo (Mortatti, 2000), cujos e coletiva, possível graças à nova organização

expoentes são: a Cartilha das mães e a Car- do espaço e do tempo escolar com o ensino si-

tilha analítica, de Arnaldo Barreto, a Cartilha multâneo, tinha lugar de destaque, pois por

ensino rápido da leitura e a Cartilha analíti- meio dela eram transmitidos e reforçados os

co-sintética, de Mariano de Oliveira, além da novos (e velhos) conteúdos.


Cartilha infantil, de Gomes Cardim, e da Portanto, a difusão dos conteúdos morais



Cartilha fácil, de Claudina de Barros, autores e cívicos e do método intuitivo, patrocinada



ligados à Escola Normal Caetano de Campos. pelo novo regime, não se restringiu aos livros

Destas, a cartilha que parece ter alcançado de “lições de coisas”; verifica-se sua influên-

maior sucesso foi a Cartilha ensino rápido da cia nas várias publicações do período, atingin-

leitura, de Mariano de Oliveira, que, publi- do desde cartilhas de alfabetização até livros

cada em 1917, permaneceu no mercado até de leitura de várias áreas e destinados a vários

1996, atingindo 2.230 edições e a produção de graus.


mais de 6 milhões de exemplares. Nas pági- Assim, além do objetivo ideológico, presen-

nas 43 e 44 dessa cartilha encontra-se a se- te, por exemplo, logo na abertura das Primeiras

guinte “lição” patriótica: leituras, de Arnaldo Barreto,



“Nossa Bandeira”


organizada requerida pelo método intuitivo, o


Pátrio pendão sacrossanto que explica a grande atenção dada à descrição.



Da família Brasileira! Nesse livro, uma rápida consulta ao índice


Nossa adorada bandeira!


pode ilustrar a apreensão sensível de objetos,


[...]
pessoas e cenas que estão presentes na escola,



no lar e na sociedade:


há nos livros didáticos uma preocupação


Enumerações: material escolar, sala de


maior com a materialidade, tanto na escolha aula, corpo humano, peças do vestuário



do papel, da capa cartonada, do acabamen- masculino, quarto de dormir, cozinha etc.


to esmerado, quanto na importância das ilus-


Exposições: trabalhos escolares, conduta na


trações e fotografias (tecnologia de ponta, na


rua, trajeto da escola, serão em família, as-


época, que deu emprego a muitos ilustrado-
seio etc.


res), tudo para tornar os livros mais atraen-



Descrições: caneta, livro de leitura, mesa de
tes e em sintonia com as novas exigências

jantar; praça pública, sala de aula; descri-

educacionais. ○

ção geográfica, paisagem da minha janela;


Nota-se o novo formato dos livros didáticos


borboleta, papagaio; Machado de Assis,

tanto nos livros das grandes editoras, como a


Deodoro da Fonseca; tempestade, acende-


Livraria Francisco Alves e a Melhoramentos,


dor de lampiões, noite e estrelas; mendiga


quanto nos das pequenas editoras, como a Edi- etc.



tora Duprat e a Tipografia Siqueira, ambas de


Cartas: de saudações, ao professor, a um


São Paulo, destacando-se alguns exemplos,

amigo etc.

como: Noções da vida prática, de Félix Ferreira,


Dissertações: caridade, amor filial, escola


Contos infantis, de Adelina Lopes Vieira e Júlia


e instrução etc.

Lopes de Almeida, Poesias infantis, de Olavo


Bilac, Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manuel A tendência desses livros didáticos se con-

Bonfim, Pequenas leituras, de Ramon Roca servaria vigorosa até a década de 1930, sendo

Dordal, Livro dos principiantes, de Nestor que vários deles, transformados pelo uso em

Martins de Araújo, Nossa Pátria, de Rocha Pom- best-sellers didáticos (como os da Francisco

bo, e os difundidos livros de leitura de João Alves e da Melhoramentos aqui citados), sobre-

Kopke, Tomás Galhardo, Hilário Ribeiro, viveriam pelo menos até os anos 1970.

Arnaldo Barreto. O último aspecto importante a ser salien-



Interessante salientar que mesmo quando tado diz respeito à progressiva rarefação das

há poucas ilustrações, como é o caso do Livro matrículas à medida que o curso primário

de composição, de Olavo Bilac e Manuel Bonfim, avançava, o que causava inchaço nas classes

o conteúdo é montado e apresentado gradual- de primeiro ano e esvaziamento significativo


a partir do segundo ano, como mostra a tabela


mente, para atender tanto aos objetivos morais


e instrutivos quanto à observação minuciosa e a seguir, de 1936:






Estado de São Paulo – Resumo do movimento de todos os cursos ou


unidades de ensino primário geral mantido pelo Estado em 1936




Urbanos Distritais Rurais Total


Discriminação

Masc. Fem. Geral Masc. Fem. Geral Masc. Fem. Geral Masc. Fem. Geral

Matrícula inicial

1º ano 47.341 41.557 88.898 9.806 8.500 18.306 37.506 30.976 68.482 94.653 81.033 175.686

2º ano 35.937 33.113 69.050 5.579 4.860 10.439 11.466 9.527 20.993 52.982 47.500 100.482

3º ano 26.304 24.962 51.266 3.529 3.038 6.567 4.331 3.672 8.003 34.164 31.672 65.836

4º ano 16.733 16.622 33.355 1.792 1.582 3.374 384 406 790 18.909 18.610 37.519

Total 126.315 116.254 242.569 20.706 17.980 38.686 53.687 44.581 98.268 200.708 178.815 379.523

98
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores

Essa situação, perpetuada durante décadas, rículo de Retórica e Poética, disciplina exigida



acabava se refletindo na tiragem dos livros de nos “preparatórios” das Faculdades de Direito



leitura que, sem dúvida, ía diminuindo à medi- até 1890, exigência que, entre nós, parece ter



da que o livro era direcionado para as classes sido responsável pelo estreitamento de laços


mais adiantadas. Em 1946, por exemplo, a Li- entre a preparação retórico-literária e os cur-



vraria Francisco Alves reeditou os Livros de lei- sos jurídicos.



tura, de Felisberto de Carvalho, amplamente O ensino da língua e da literatura nacionais


adotados nas escolas primárias, sendo que o (portuguesa e brasileira) sempre se pautou pelo 99



primeiro volume, indicado para o 1º ano, esta- ensino das línguas clássicas, sobretudo o Latim.



va na 130ª edição, o segundo volume (para o 2º A “gramática nacional” era estudada a partir das



ano) na 107ª edição, o terceiro volume (para o categorias gramaticais da língua latina e


3º ano) na 75ª edição e o quarto volume (para o explicada como uma transformação desta, en-



4º ano) na 42ª edição. quanto a literatura nacional era apresentada se-



A longevidade de cartilhas e livros de leitu- gundo os critérios fixos da Retórica e da Poética



ra para o curso primário, concebidos ou impul- clássicas, dividida por gêneros. A leitura literá-


sionados a partir da República (e alguns, como ria, base do ensino de Latim e Grego e base do



vimos, sobreviveram bravamente até a década ensino de Retórica e Poética, também se trans-

de 1990), vem nos alertar para a permanência formou em base do ensino da língua e da litera-

desses modelos na escola. A principal razão tura nacionais, erigindo os “clássicos nacionais”.

dessa permanência deve-se, provavelmente, ao Inicialmente, as aulas de Português no Co-



fato de que tais modelos puderam ser légio Pedro II, restritas ao primeiro ano, dedi-

readaptados e postos a serviço de subseqüen- cavam-se apenas ao estudo de alguns tópicos


tes ideologias, métodos e organização escolar. gramaticais, especialmente dos verbos. Aos

Deixando de lado a escola primária, passe- poucos, foram absorvendo práticas de ensino e

mos agora para o segundo tópico da discussão, conteúdos das aulas de Retórica e Poética. Pri-

que focalizará algumas questões de leitura no meiro, em 1855, vieram a leitura literária e a

ensino secundário, a partir do Colégio Pedro II, recitação para auxiliar o ensino da língua. De-

no Rio de Janeiro. pois, em 1870, quando houve ampliação da car-



O ensino de Português no Brasil, como dis- ga horária da disciplina no currículo do Colé-



ciplina curricular institucional, é recente e con- gio Pedro II por causa de sua inclusão nos “exa-

temporâneo à fundação do Colégio Pedro II, em mes preparatórios”, entraram no currículo de



1837, escola secundária padrão da elite brasi- Português a redação e a composição. Em 1890,

leira. A duração do curso secundário era equi- quando a Retórica e a Poética foram substituí-

valente ao período que hoje compreende as das pela História da Literatura Nacional, a gra-

quatro últimas séries do Ensino Fundamental mática histórica também foi transferida para o

mais o Ensino Médio. currículo de Português.



O estudo dos programas de ensino do Colé- A leitura literária, desde sua introdução em

gio Pedro II aponta que até 1869 as aulas de 1855, reinou absoluta nas aulas de Português,

Português eram insignificantes no currículo, no sobretudo em antologias organizadas por pro-



qual predominavam as disciplinas clássicas, fessores portugueses e, mais tarde, por profes-

principalmente o Latim. A partir de 1870, logo sores brasileiros. As seletas mais antigas se-

após a inclusão do exame de Português entre guiam os preceitos retóricos, apresentando os


os “preparatórios” – exames que davam acesso excertos divididos por gêneros, como é o caso

aos cursos superiores no Brasil (Direito, Medi- da Seleta nacional, de Caldas Aulete, e as mais

cina, Engenharia) –, verificou-se a ascensão do modernas seguiam a orientação da história li-



ensino de Português no currículo do Colégio terária, dividindo os textos cronologicamente,


Pedro II, cujo desenvolvimento, ainda que su- por séculos.



jeito a variações, foi sempre crescente. Em ambos os modelos havia a preocupação



Já a literatura nacional era ensinada no cur- de separar a prosa da poesia.



Uma das seletas escolares de maior sucesso uma (ou várias) gramática(s). Na década de



no Brasil foi a Antologia nacional, de Fausto 1950, houve a fusão entre textos e gramática



Barreto e Carlos de Laet. Sua permanência no num só compêndio, mas ainda divididos em



ensino secundário por mais de setenta anos (1ª duas partes (Soares, 1996). A década seguinte


edição, 1895; última edição, 1969) é testemu- (1960) trouxe uma nova organização aos livros



nho da longa estabilidade do modelo de ensino didáticos, muito próxima da que conhecemos



que privilegiava a leitura “intensiva” (Chartier hoje, dividindo o ensino de Português por uni-


e Hébrard, 1995) dos clássicos da literatura na- dades, com leitura de texto literário, atividades



cional do século XVI ao século XIX. de interpretação e estudo de tópico gramatical,



A leitura da Antologia nacional, porém, não dando continuidade ao privilégio da língua cul-



era complemento do manual de História da Li- ta (Soares, 1996).


teratura Nacional e sim ponto de partida, nas Apenas na década de 1970 é que a leitura



aulas de Português, para a aquisição e para o dos clássicos começou a ser substituída pela



treinamento da norma culta vigente, em exer- “leitura extensiva” (Chartier e Hébrard, 1995),


cícios como leitura e recitação, ditado, estudo ○
sintonizada com os meios de comunicação de
do vocabulário, da gramática normativa, da gra- massa e com as inovações tecnológicas.

mática histórica, exercícios ortográficos, análi- O novo modelo implantado no Brasil a par-

ses sintáticas e morfológicas, redação e compo- tir de 1971, com a Lei nº 5.692, que redirecionou

sição. as Diretrizes e Bases da Educação Nacional,


A leitura literária nas aulas de Português considerava a língua vernácula um “instrumen-



procurava, portanto, oferecer “bons modelos” to de comunicação” e “em articulação com as



vernáculos (e morais) para a “boa” aquisição outras matérias”, o que multiplicava as opções

da língua, além, é claro, de oferecer a seus lei- de textos para leitura em classe, tornando a lei-

tores uma certa formação literária, mas sem tura literária mais uma dessas opções.

priorizá-la. Além disso, a lei estabelecia também que



Só depois da Reforma Capanema, em 1943, o ensino da Língua Portuguesa, disciplina que


é que a História da Literatura Nacional tornou- passou a ser denominada Comunicação e Ex-

se a principal atividade das aulas de Português pressão, deveria preocupar-se, daí em dian-

das três últimas séries do curso secundário (atual te, com a “expressão da Cultura Brasileira”, li-

Ensino Médio) e passou a ser exigida nos exa- bertando, portanto, do domínio clássico por-

mes vestibulares de todos os cursos superiores, tuguês a língua e a literatura ensinadas em



assinalando com isso a sua ascensão na escola. nossas escolas, facilitando e incentivando a

A dependência do Ensino Médio em relação leitura dos escritores e poetas modernistas e



ao vestibular, como testemunhamos hoje, tem dos autores vivos.


origem institucional nas reformas de ensino do Dessa maneira, o ensino de Português pas-

Estado Novo. Porém o critério literário nacio- sou a admitir, cada vez mais, um número mai-

nalista, que norteava as aulas do curso secun- or e mais variado de textos para leitura, desde

dário na década de 1940, esbarrava no modelo os tradicionais textos literários, consideravel-


tradicional de ensino da língua, engessada pela mente ampliados com a literatura contempo-

leitura dos clássicos e defendida em nome da rânea pós-1922, até todo tipo de manifestação

vernaculidade brasi-lusa, impedindo que os gráfica, incluindo textos de outras disciplinas



autores do modernismo entrassem nos livros do currículo, textos de jornais, revistas, quadri-

didáticos. nhos, propaganda etc. Não foi por acaso, por-



O ensino da gramática era supervalorizado tanto, que o chamado boom da literatura infan-

e intenso, fazendo com que os já memorizados til tenha ocorrido nessa época, pois ela viria a

textos e poemas fossem retalhados e divididos entrar na sala de aula como mais uma das op-

por extensas análises morfológicas e sintáticas. ções de leitura.



Até o final dos anos 1940, era comum nas É ainda nos anos 1970 que aparecem técni-

aulas de Português o uso de uma antologia e de cas e engrenagens que parecem substituir o pro-

100
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores

fessor na função de preparar aulas: estudo diri-


e de gêneros, escamoteia um componente eco-


gido, instrução programada, exemplar do pro- nômico importante na definição dos custos do



fessor com exercícios resolvidos e respostas livro didático: os gastos com o pagamento de



impressas em caracteres vermelhos. Essa nova direitos autorais dos textos. Sem dúvida, os di-


concepção de livro didático reflete a má forma- reitos autorais de textos de jornal são muito



ção dos professores, decorrente da democrati- mais baratos do que, por exemplo, os direitos



zação do ensino e da multiplicação de agências autorais de um texto literário.


formadoras sem compromisso com a qualida- Quanto à leitura literária, sobretudo a lite- 101



de (Soares, 2001). ratura adulta (em oposição à literatura produ-



Quanto à leitura, literária ou não, nota-se o zida para o público infantil e juvenil),



aparecimento de uma “ficha de leitura”, que acantonada no currículo do Ensino Médio des-


passa a acompanhar os textos, propondo ativi- de a Reforma Capanema (1943), vem manten-



dades de leitura e de interpretação. do seu cunho elitista, uma vez que uma parcela



Nos anos 1990, verificam-se duas tendências: significativamente menor da população tem



uma de abandono do livro didático, devido às acesso a esse nível de ensino. Suas diretrizes e


concepções baseadas na “construção” de conhe- seu currículo, ao que tudo indica, permanece-


cimentos por alunos e professores; outra de con- rão dependentes do exame vestibular. As listas

trole e avaliação dos vários níveis de ensino pe- de obras literárias destinadas a questões do ves-

los órgãos oficiais, incluindo a avaliação dos li- tibular, publicadas pelas universidades, acabam

vros didáticos do Ensino Fundamental. influenciando o currículo do Ensino Médio.



Os Parâmetros Curriculares Nacionais Creio que a expansão do ensino, atualmen-



(PCN), instituídos em 1996, indicam que o en- te em curso nos centros urbanos, obrigar-nos-á

sino de Língua Portuguesa deveria preocupar-


a refletir sobre o passado e a prever práticas de


se com os “textos que caracterizam os usos pú- ensino de Português capazes de transmitir e

blicos da linguagem”, orais e escritos. Baseados compartilhar com públicos de diferentes clas-

nas teorias de Bakhtin, os PCN para o 3º e 4º ses sociais e de diferentes faixas etárias diferen-

ciclos (5ª a 8ª séries) privilegiam alguns gêne-


tes tipos de textos, inclusive da literatura cano-


ros para a leitura em sala de aula: cordel, nizada, pois é no espaço da escola que a demo-

“causos”, texto dramático, canção, conto, nove- cratização pode e deve começar, uma vez que:

la, romance, crônica, poema, entrevista, deba- “A leitura não é prática neutra. Ela é campo de

te, notícia, editorial, artigo, reportagem, charge,


disputa, é espaço de poder” (Abreu, 1999).


tira, verbete, relatório, didático, propaganda.



Além de parecer novidade (que, como vi-



mos, não é), a apresentação de textos por gêne-


Bibliografia

ros, sem contextualização histórica, pode gerar



muita confusão, uma vez que a definição de gê- ABREU, Márcia (Org.). Leitura, história e história da leitura.

nero é historicamente variável, quer porque es- Campinas/São Paulo: Mercado de Letras/ALB/Fapesp,

1999.

teja ligada à circulação em cada época, quer


CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Compa-


porque dependa da intenção de cada usuário,

nhia das Letras, 1990.


sem contar que é comum haver num mesmo


CHARTIER, Anne-Marie; HÉBRARD, Jean. Discursos so-


texto mais de um gênero. bre a leitura: 1880-1980. São Paulo: Ática, 1995.

Outro incômodo desse tipo de divisão é o CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: refle-

privilégio que alguns gêneros acabam tendo xões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação ,

n. 2, p. 177-229, 1990.
sobre outros, como parece ser o caso dos gêne-

CORRÊA, Maria Elizabeth Peirão; NEVES, Hélia Maria


ros veiculados em jornais, cada vez mais pre-


Vendramini; MELO, Mirela Geiger de. Arquitetura esco-


sentes na escola e nos livros didáticos. O uso lar paulista: 1890/1920. São Paulo: Fundação para o

excessivo e indiscriminado do jornal na sala de


Desenvolvimento da Educação. Diretoria de Obras e


aula, além de prejudicar a formação dos alunos, Serviços, 1991.



que deveria basear-se na diversidade de textos FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Instrução elementar no


século 19. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FI- tura (1838-1971). 2000. Tese (Doutorado). Instituto de


LHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cynthia Greive. 500 Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Cam-



anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Au- pinas.


têntica, 2000. SOARES, Magda. Português na escola: história de uma dis-


ciplina curricular. Revista de Educação da AEC, n. 101,


FERREIRA, Avany De Francisco; CORRÊA, Maria Elizabeth


Peirão; MELLO, Mirela Geiger de. Arquitetura escolar p. 9-26, out./dez. 1996.


paulista: restauro. São Paulo: Fundação para o Desen- . O livro didático como fonte para a história



volvimento da Educação, 1998. da leitura e da formação do professor-leitor. In: MARI-


LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da lei- NHO, Marildes (Org.). Ler e navegar: espaços e percur-



tura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996. sos da leitura. Campinas: Mercado de Letras/ALB, 2001,


MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfa- p. 31-76.



betização. São Paulo: Editora da Unesp/Conped, 2000. SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implan-


RAZZINI, Márcia de Paula Gregório. O espelho da nação: a tação da escola primária graduada no Estado de São



antologia nacional e o ensino de português e de litera- Paulo (1890-1910). São Paulo: Editora da Unesp, 1998.


































































SIMPÓSIO 7

O DESENVOLVIMENTO DA EJA E
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
NA AMÉRICA LATINA
José Rivero

Maria Dulce Borges

Graciela Messina

103
Formação de professores para




a Educação de Jovens e Adultos





José Rivero*



Unesco/Peru






No início da última década, foram apresen- também os sindicatos e as associações de clas-


tados os resultados da única pesquisa regional se, que tendem a tratar seus associados como



latino-americana realizada na área de Educa- sujeitos de classe. Mesmo nas associações do-



ção Básica de Adultos (EBA).1 centes, as áreas de Educação de Jovens e Adul-


Os professores entrevistados durante essa tos (EJA) não são, normalmente, levadas em



pesquisa indicavam como principais motiva- conta para fins da própria organização sindical.


ções e aspirações: a) a necessidade de um em- ○

Quais as características mais marcantes dos
prego estável; b) uma maior participação na professores que trabalham com educação de

geração de processos administrativos; e c) a adultos em instituições de ensino públicas?



necessidade de dispor de mais tempo livre para O educador de adultos na América Latina

realizar outras atividades. Uma maioria signi- apresenta heterogeneidade de formação, de ní-

ficativa dos entrevistados também declarou veis, de funções e de práticas docentes, assim

que seu interesse em trabalhar com jovens e como divergência de pontos de partida, concep-

adultos havia influenciado sua decisão de tra- ções, enfoques, experiências educativas e metas.

balhar com a EBA, especialmente em vista do Se houvesse traços comuns que o identificassem

acréscimo que essa atividade representava em coletivamente, esses seriam a não-especializa-


seus exíguos salários. Coerentemente com o ção como professores de jovens e adultos bem

interesse em trabalhar com jovens e adultos, como a tradição de utilizar a transmissão de co-

as respostas à pergunta “Com que grupo você nhecimento como procedimento pedagógico

se sente mais capacitado para desempenhar único para desenvolver a capacidade do educan-

suas tarefas?” incluíram tanto jovens e adultos do em reproduzir o que lhe foi transmitido.

da educação básica quanto alunos do Ensino Às insuficiências técnicas ter-se-ia que



Médio. Por sua vez, as fontes de maior insatis- acrescentar, no caso da educação básica ou fun-

damental de adultos, a situação marginalizada


fação para os professores consultados foram as


condições ruins de trabalho (associadas a pro- em que se encontra o professor, em uma mo-

blemas de infra-estrutura, à carência de ma- dalidade também marginalizada nos sistemas



terial didático, à instabilidade funcional e, in- educacionais. Assim, a nomeação de professo-


res obedece mais a critérios administrativos do


clusive, à segurança pessoal) e, em segundo


plano, a dispersão e a falta de interesse dos que à busca de profissionais que reúnam requi-

participantes. sitos específicos. Em alguns casos, o número de



Pode-se afirmar que existe um desconheci- anos na docência é determinante para que o

mento grave a respeito dos professores como professor obtenha uma colocação na área de

profissionais e que são raros os países que pos- EJA. Em outros casos, deve-se a gestões pesso-

suem dados sobre as condições sociodemo- ais dos professores para obter uma colocação

gráficas, profissionais e ocupacionais básicas do adicional àquela desempenhada em institui-


magistério e da composição das equipes docen- ções educacionais infantis ou juvenis em horá-

tes das escolas. Esse desconhecimento afeta rios diurnos ou, ainda, a critérios arbitrários




* José Rivero é educador peruano e consultor internacional na área de Educação.



1
Essa pesquisa foi desenvolvida pela Unesco como marco do Projeto Principal de Educação na América Latina e no Caribe e contou com a

participação de 12 países da região.


104
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina

pessoais e político-partidários por parte das bido especialização para o trabalho com jovens



autoridades da área educacional. e adultos com as características dos participan-



Apesar dos excelentes casos de identifica- tes. Em alguns casos, impera a habilitação in-



ção com seu trabalho, especialmente no que se formal ou extracurricular de docentes não-


refere a docentes de instituições de ensino re- especializados na EJA (não nos esqueçamos de



gulares, a situação dos professores dessa mo- que a média de professores sem formação na



dalidade de ensino não escapa à grave situação América Latina é de 21,3% e que essa situação


do conjunto de docentes. As condições salari- está associada ao fato de esses professores atu- 105



ais sumamente deterioradas, um alto grau de arem em áreas carentes ou marginalizadas).



instabilidade funcional em vários dos países Ademais, existe uma profunda heterogeneida-



estudados, a jornada de trabalho dupla com de na formação pedagógica dos professores, que


grupos absolutamente heterogêneos de crian- resulta em uma nítida diferença entre os que



ças e jovens, durante o período da manhã, e de possuem formação e os que não a possuem. Os



jovens e adultos com pouca ou nenhuma esco- primeiros estariam mais próximos de conhecer



laridade nas instituições vespertinas ou notur- e de motivar-se com outros conteúdos mais crí-


nas, a deterioração das condições materiais de ticos e com técnicas mais participativas de en-



trabalho – geralmente em instituições de ensi- sino. Entretanto, em ambos os casos, pesa mui-

no que “sofrem” durante o dia com a freqüên- to o uso cotidiano da instrução tradicional.

cia de diferentes tipos de alunos de outras tan- Um problema que afeta a imagem e o rendi-

tas instituições de ensino – constituem parte da mento profissional é o não-reconhecimento da



dívida regional para com esses professores. atual educação de adultos como uma modalida-

de necessária e fundamental da atividade educa-


cional sob a responsabilidade do Estado. Orça-


A atual formação

mentos baixos e níveis escassos de supervisão e


do professor de jovens

requisitos profissionais, acrescidos à ausência de



e adultos poder de organização e pressão por parte dos usu-


ários potenciais, são apenas uma faceta do pro-



A formação recebida em universidades, em blema. Mas é importante salientar-se que a EJA



instituições superiores de formação de profes- não logrou obter credibilidade social e tampouco

sores ou em instituições de aperfeiçoamento


é vista como útil ou necessária pela comunidade.


não habilita os professores para atender aos re- A organização escolarizada tradicional, por meio

quisitos especiais que caracterizam um ensino de aulas ministradas por professores sem forma-

no qual os participantes são os próprios ção especializada, tende a diminuir a demanda


educandos e não o educador.


por esses serviços e a acentuar a desigualdade na


Os docentes com título pedagógico foram aprendizagem entre grupos populacionais que

formados para educar crianças – com as sérias demandam atenção prioritária e uma educação

deficiências reconhecidas em sua formação ini- de melhor qualidade.


cial – e, ao chegarem às instituições vesperti-



nas ou noturnas, tiveram de se adaptar e de or-


Rumo a novas estratégias

ganizar seu trabalho pensando em adultos


quando, como mostra a realidade, a maioria dos de formação de educadores



participantes é composta de jovens.


de jovens e adultos

Os critérios de formação estão fortemente



associados à teoria e à prática da escolaridade, Uma premissa básica nesse caso é que a EJA

sendo o “rendimento acadêmico-intelectual” deve concentrar-se em processos de ensino e



do educando o principal objetivo da formação. aprendizagem, os quais, por sua própria natu-

Observa-se, entretanto, uma débil e deficiente reza, demandam dedicação, disciplina e espe-

formação inicial do docente, agravada nesse cialização profissional, além de tempo suficien-

caso pela circunstância de ele não haver rece- te. Essa afirmação é particularmente importan-


te, sobretudo se considerarmos a tendência de propor-se um trabalho de formação em um



outorgar-se à educação capacidade para resol- plano duplo e segundo a realidade institu-



ver mais problemas do que esta pode efetiva- cional da EJA em cada país. Esses planos po-


dem ser seqüenciais ou programas que se de-


mente suportar. Assim, o crescente desempre-


go e subemprego de seus usuários – reais ou senvolvem de forma paralela. De imediato,



potenciais – pode influenciar para que se exi- e como forma de iniciar a EJA vinculada a ne-


cessidades básicas circunstanciais, o objeti-


jam da EJA soluções ou contribuições específi-


vo é formar esses jovens e adultos como ato-
cas para a solução desse problema estrutural,


res com valores, atitudes, conhecimentos e


ou de outros graves problemas sociais, o que


competências que os habilitem a enfrentar


extrapola, em muito, suas possibilidades.


suas necessidades de aprimoramento profis-


Outras premissas a serem consideradas in-
sional, de uma maior participação no exer-


cluem:


cício da cidadania e de um intercâmbio cul-


• A crescente universalização do acesso à


tural que, em última análise, lhes permitam


educação básica e secundária – bem como participar da transformação de suas ativida-
as características dos jovens e adultos que ○

des profissionais e de suas condições de vida.


dela participam – tem como conseqüência


• Considerando-se a relação direta entre a


uma heterogeneidade do alunado atendido.


Esses alunos, além de pertencerem às cama- motivação para participar e a real utilida-

de de um ensino e de uma aprendizagem


das baixas ou pobres da sociedade, apresen-


tam idades, experiências de vida e interes- centrados no aluno, é imprescindível que



ses distintos. Assim, é fundamental que os sejam redefinidas as atuais estruturas e os


atuais procedimentos escolares, tanto da


professores estejam habilitados a encontrar


e utilizar novas formas de ensino e aprendi- educação básica quanto da educação se-

zagem que lhes permitam lidar com a diver- cundária de jovens e adultos. A concepção

atual de instituições de ensino para adul-


sidade cultural, com as diferentes compe-


tências dos alunos e com as distintas situa- tos, com horários e currículos fixos que de-

ções de vida que estes enfrentarão ao con- mandam a assistência diária e em períodos

de tempo que cobrem vários anos de esco-


cluir um grau ou ciclo escolar.


laridade, teria de ser seriamente redefinida.


• Uma das principais disposições de Jomtien


Hoje, o baixo impacto desse tipo de pro-


determina que os conteúdos curriculares se-

grama requer sua modificação, por meio de


jam cada vez mais associados à lógica da sa-


modalidades semipresenciais e com con-


tisfação das necessidades fundamentais de


teúdos curriculares e materiais de auto-


aprendizagem dos participantes. No caso de

aprendizagem adequados às demandas e às


jovens e adultos, esse não é um tema despro-


necessidades básicas de aprendizagem,


vido de conceitos, de enfoques teóricos ou


com uma melhor qualidade de vida dos


de experiências realizadas. A partir das prá-

participantes.

ticas sistematizadas da “Educação Popular”


• A tendência à descentralização impõe novos


na América Latina, emerge com vigor a idéia


de que as necessidades fundamentais do desafios a professores e diretores, que devem



adulto constituem um todo inter-relaciona- ser levados em conta nas propostas de for-

do. A resposta que satisfaz uma necessidade mação de professores. Uma das conseqüên-

de aprendizagem específica gera um ciclo de cias dessa mudança é que as instituições



reações que vão permitindo a manifestação educacionais começam a usufruir de um cer-


de novas necessidades que devem, igual- to grau de autonomia organizacional e ad-



mente, ser satisfeitas. Esse processo estrutu- ministrativa. Essa nova autonomia dá a dire-

ral e interdependente do processo de forma- tores e a professores mais espaço para a to-

ção de adultos permite visualizar a ação edu- mada de decisões, para a organização de pro-

cacional como um processo que transcende jetos educativos capazes de gerar e atrair re-

a EJA, operacionalizada em uma realidade cursos ou para a adoção de iniciativas de


econômica e política que desafia, contradi- ajustes curriculares. Não restam dúvidas,

toriamente, a modernidade. Isso obriga a entretanto, de que esses mesmos diretores e


106
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina

professores necessitarão de maior compe- 2. Admitindo que todos os elementos que os



tência para planejar, administrar e imple- participantes trazem consigo são factíveis



mentar decisões, sem a tradicional depen- de ser intercambiados, fortalecidos e


dência dos níveis centrais. E será também redefinidos e que isso somente será possí-



necessário modificarem-se os critérios de vel na medida em que esses participantes


seleção e nomeação de diretores, professo- forem capazes de analisar esses elementos



res e supervisores envolvidos no próprio pro- de forma crítica e de buscar novas infor-



cesso de aperfeiçoamento de docentes. mações, novos conhecimentos, novas ha- 107


bilidades, novos valores e novas atitudes


• Esses processos de descentralização pode-


rão estar associados a crescentes esforços que satisfaçam suas necessidades de



para priorizar políticas sociais, em um am- aprendizagem.



biente regional com visíveis resultados de 3. Partindo do pressuposto de que o aporte


frustração em relação a políticas neoliberais. pedagógico central dos educadores da EJA



Serão também necessárias harmonizações é gerar mecanismos de formação que per-



e alianças mais efetivas e eficazes com as mitam ao participante:


experiências de outros setores públicos e de


• criticar os elementos que constituem


associações da sociedade civil com vasta suas experiências de vida;


experiência em trabalhos participativos no ○

nível local, municipal ou estadual. • buscar as informações e os conhecimen-


tos necessários para gerar habilidades,


• Estimular a priorização do público a ser aten-


valores e atitudes que afirmem sua con-


dido e o compartilhamento de responsabili-


dição de sujeito em processo de transfor-


dades pressupõe acordos voltados para ações mação;


comuns e complementares entre órgãos go-


• confrontar essas novas informações, es-


vernamentais e organizações não-governa-


ses novos conhecimentos e valores com


mentais. Um desafio ainda a ser superado


por ambos os tipos de instituição é a intro- aqueles que possui, os quais foram anali-

sados de forma crítica;


dução de novos processos lógicos que trans-


formem microexperiências em experiências • reconstruir sua competência pessoal e



mais abrangentes (macroexperiências), que coletiva em uma síntese teórica e prática



permitam a superação da tendência para específica, que o habilite a superar a pro-


prescrever, ensinar e transmitir conceitos e blemática reconhecida (e que serviu de



práticas ao educando e que utilizem a expe- base para o processo educativo).



riência de vida, os saberes, os conhecimen- 4. Preparando o educador como gerador de


tos, as informações, os valores e as atitudes


processos pedagógicos que permitam rea-


dos educandos, tanto jovens quanto adultos. lizar uma educação entre adultos, com os

jovens e os adultos em formação.



Como reposicionar o educador



de jovens e adultos em uma


Como preparar esse educador



profissão compatível com uma de jovens e adultos?



educação entre pessoas



Há que se fazer uma dupla aproximação


adultas? estratégica entre a capacitação para o exercício



da profissão e a formação inicial de novos edu-


1. Entendendo que o jovem e o adulto, tanto


cadores de EJA.

individual como socialmente, são atores


sociais com conhecimentos, informações, Ambas as modalidades de formação exigem


a definição, nos programas de EJA, do caráter


habilidades, valores e atitudes – produto


de sua experiência de vida – e com baga- da formação específica desse educador bem

gens significativas de sua história pessoal como das novas conceituações políticas, estra-

e coletiva. tégicas, institucionais e metodológicas que in-



tegram as definições e os processos subjacentes valendo-se de experiências de formação de



à modernização econômica e sociopolítica de “educadores polivalentes”, capazes de traba-



nossos países. lhar com crianças, jovens e adultos, capa-


zes de organizar projetos educativos e de


Essa perspectiva deveria ir além das propostas


de re-profissionalização regular e/ou capacitação trabalhar com suas próprias comunidades,



para o exercício da profissão, geralmente ofereci- capazes de estimular a participação ativa


dos pais e a educação de seus filhos.


das pelos centros de formação gerados nos siste-


mas educacionais. Será necessário superarem-se • Na política pública destinada à formação de



tanto a insistência da visão “escolarizante” quanto educadores de jovens e adultos, não se pode



os mecanismos pedagógicos que continuam a ig- continuar a privilegiar objetivos ligados ex-


clusivamente à recuperação de uma esco-


norar a especificidade da demanda por parte de


participantes jovens e adultos. laridade compensatória. A confluência da



O desenvolvimento de novos projetos de satisfação das necessidades de formação


dos jovens e adultos exige que o participan-

“formação para o exercício da profissão” para

educadores que assumirem essas tarefas deve- ○

te seja considerado na multiplicidade de
funções “protagonísticas” que lhes cabe de-
riam levar em conta – teórica e operacional-

sempenhar, tanto em sua condição de agen-


mente – a necessidade de aprofundar pelo me-


te produtor de bens (materiais e culturais)


nos os três aspectos seguintes:


como em sua situação de reprodutor social


• Por um lado, as hipóteses teóricas ou

de bem-estar cultural e material.


metodológicas nas quais devem estar



apoiadas a nova EJA e a própria formação • Caracterizar os processos educativos que


específica de seus educadores. operacionalizem as estratégias metodoló-



gicas da formação de educadores de EJA,


• Por outro lado, determinar as “demandas


enfatizando-se: a) as necessidades educa-


dos educadores de EJA” em relação a suas

cionais dos participantes como sujeitos so-


novas tarefas de educar jovens e adultos ca-


ciais; b) os modelos curriculares que sirvam


rentes.

a uma concepção e a uma ação educacio-


• Finalmente, formular as perguntas que de- nais entre adultos; c) os modelos de avalia-

verão orientar tanto as estratégias de


ção e controle dos processos de aprendiza-


capacitação quanto os processos pedagógi-


gem; d) os mecanismos de gestão educacio-


cos que inspirem as políticas e as práticas nal que propiciem a maior participação dos

de formação/aprimoramento, à luz dos no-


sujeitos em formação; e) a crescente intro-


vos desafios da EJA na América Latina.


dução de tecnologias e meios educacionais


As estratégias e metodologias que deveriam que conduzam à autonomia na aprendiza-



orientar as políticas de formação inicial dos gem.



novos educadores de EJA não deveriam referir- • Refletir sobre os modelos de formação, no

se apenas a certas “adaptações curriculares” de


sentido de esclarecer as opções teóricas que


planos e programas de formação, mas também condicionam as práticas de formação e que



tentar modificar radicalmente esse tipo tradi- possam responder a perguntas como:

cional de formação de professores. Do mesmo


– Qual a situação dos modelos tradicionais

modo, a formação de seus professores deveria


ante os modelos personalizados?


ajudar a EJA a superar o atual isolamento das


– Como avaliar experiências sociais versus


instituições públicas de ensino para jovens e


saberes pertinentes para os jovens de ori-


adultos em relação a outras experiências insti-


gem popular nas escolas?

tucionais que possam enriquecer sua imple-



mentação. – As escolas e a aprendizagem são funda-


mentalmente eficientes?

Nesse sentido, sugere-se considerar aspec-



tos como os que seguem: – A autonomia institucional está vinculada


• Estudar a possibilidade de vincular e inte- à transformação social do desenvolvimen-



grar a formação de educadores regulares to local?


108
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina

• Determinar os processos pedagógicos que c. A educação cidadã, os direitos humanos e a



dão prioridade às relações teoria/prática participação de jovens e adultos,



de formação social, à heterogeneidade de enfatizando-se a formação em valores de-


saberes e à integração de conhecimentos, mocráticos e o efetivo exercício das res-



à dimensão de modalidades de formação ponsabilidades e dos direitos humanos.


não-presenciais, com especial ênfase sobre


d. A EJA voltada para populações rurais e in-


a produção de material educativo auto-ins-


dígenas, com o objetivo de revigorar o tra-


trucional e sobre a coordenação com ou- balho produtivo e organizacional em áre- 109


tros atores sociais e econômicos que os cor-


as rurais e de ratificar e solidificar culturas


roborem. e identidades indígenas.




e. A afirmação dos jovens como público
Novos requisitos de


prioritário da modalidade educativa EJA,



aprendizagem na Educação assumindo suas próprias particularidades,


necessidades, diversidades e realidades,


de Jovens e Adultos


com ênfase especial sobre sua vinculação



com o trabalho produtivo, sua maior inser-
O impacto das novas condições sociais, eco-

ção como cidadãos e a conclusão de sua

nômicas e políticas dos países latino-america-


educação básica e secundária.
nos, nas políticas e nos programas educativos

f. Incorporar a igualdade de gênero à EJA, re-


destinados a jovens e adultos, deve repercutir


de modo direto na situação profissional dos conhecendo as participantes do sexo femi-



nino como sujeitos sociais com direito de


professores encarregados desses programas.

desenvolver seus conceitos, suas idéias e


Tanto a Conferência Internacional sobre


seus interesses singulares, bem como pos-


Educação de Adultos realizada em Hamburgo


sibilitando uma redistribuição mais justa

(1998) como a estratégia de acompanhamento


de responsabilidades.

adotada nos países da América Latina possibi-


g. Finalmente, associar intimamente os con-


litaram uma nova agenda da Educação de Jo-


teúdos e as atividades da EJA a um desen-


vens e Adultos.

volvimento local e sustentável. Trata-se,


Será indispensável, em primeiro lugar, in-

aqui, de atribuir novo valor à importân-


cluir, nos programas de estudos e nas novas es-


cia do local e à necessidade de construir


tratégias de formação de educadores de jovens sociedades locais em um mundo que se



e adultos latino-americanos, a associação dire- globaliza, e de afirmar a idéia de desen-


ta da EJA com um conceito de educação per-


volvimento associada a uma geração de


manente, ou educação que persistirá por toda capacidades em permanente diálogo com

a vida, como parte da redefinição dos concei- a natureza.



tos educacionais em curso, superando a atual


associação restrita a práticas escolarizadas.


Considerações finais

É importante destacarem, como inspiração



para a formação de educadores de EJA, as se-


Uma “re”-valorização da situação profis-


guintes agendas temáticas definidas como


sional dos docentes de EJA exige a supera-

prioritárias na EJA regional:


ção da atual situação de abandono oficial


a. A alfabetização considerada como acesso


em que se encontra a Educação de Jovens e


à cultura escrita, à educação básica e à in- Adultos e também que sociedades, governos

formação.

– sobretudo estes últimos – destinem os es-


b. A vinculação da EJA ao trabalho, tendo forços e recursos necessários para igualar e



como referência básica as reais possibi- incrementar os serviços educacionais ofe-



lidades da EJA nos locais de produção e recidos às camadas mais carentes das zonas

seu potencial para a melhoria da quali- rurais e urbanas, aos núcleos indígenas e,

dade de vida da população em situação em geral, a todos os excluídos dos benefí-



de pobreza. cios de uma sólida educação básica.



Vale destacar que o Plano Regional de Ação aquisição de competências práticas.



latino-americano apresentado no Fórum Mun-


Da mesma forma, segundo o Pronunciamen-


dial de Dakar (2000) estabelece seis objetivos a to Latino-Americano feito por um numeroso



serem alcançados na primeira década do sécu- grupo de educadores e intelectuais latino-ame-


lo que inicia. Dois desses seis objetivos estão


ricanos, “enquanto não se oferecer uma educa-


diretamente relacionados com a EJA: ção de melhor qualidade aos menos favorecidos



e não se assegurar uma educação igualitária a


• Proporcionar um acesso eqüitativo aos pro-


homens e mulheres, dificilmente poderemos


gramas de educação básica e permanente


avançar na meta de lograr eqüidade educacio-


para adultos e, no transcorrer do presente nal e, sem eqüidade educacional, dificilmente



decênio, reduzir pelo menos à metade as avançaremos na conquista da justiça social”.


atuais disparidades entre os gêneros.


A existência de professores mais qualificados,



• Zelar para que as necessidades de aprendi- para que jovens e adultos possam receber uma


zagem de todos os jovens sejam satisfeitas, educação de melhor qualidade, está diretamen-

mediante um acesso eqüitativo a uma te relacionada à execução plena dessas priorida-



aprendizagem adequada e a programas de des bem como à satisfação dessas demandas.












Educação de Jovens e Adultos




e formação de professores




Maria Dulce Borges



Unesco/Brasil





A Educação de Jovens e Adultos (EJA) deve cação, o que teve como conseqüência um cres-

ser vista não apenas como uma atividade suple- cimento da participação individual e coletiva,

tiva, mas como uma educação permanente in- num leque cada vez maior de atividades de

cluindo necessariamente uma formação sólida aprendizagem envolvendo pessoas de todas as



que permita o desenvolvimento de conhecimen- idades, sem a preocupação de tempo e de lugar.


tos específicos, suscetíveis de serem comprova-


O desafio recorrente da formação de pro-


dos em atividades concretas. Essa é uma das fessores estava colocado com muito mais

conclusões de um estudo conduzido pela acuidade e complexidade que nunca. Nos paí-

Unesco em sete países da América Latina, inclu- ses que participaram na avaliação dos indica-

indo o Brasil, publicado sob o título Alfabetismo


dores de educação* cujo relatório foi publica-


funcional em sete países da América Latina. do no texto da OCDE em colaboração com a



A década de 1990 foi testemunha de um cres- Unesco – Professores para as escolas de amanhã

cimento exponencial na demanda de educação. –, os professores representam uma proporção


Indivíduos, economias e sociedades viram-se


alta da força de trabalho em geral. Em média,


praticamente forçados a elevar os níveis de edu- um em cada 25 trabalhadores de todos os seto-





* Dezoito países: Argentina, Brasil, Chile, China, Egito, Índia, Indonésia, Jordânia, Malásia, Paraguai, Peru, Filipinas, Rússia, Sri Lanka,

Tailândia, Tunísia, Uruguai e Zimbábue.


110
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina

variados, tem autonomia e responsabilidade


res é professor; além disso, os professores são


em geral os trabalhadores mais qualificados: pessoal, insere-se em normas coletivas que lhe



mais de metade dos trabalhadores com ensino dão identidade profissional e num grupo que



superior trabalha em educação. desenvolve estratégias de promoção, de valori-


No entanto, a grande questão não está ape- zação e de legitimação.



nas na formação de professores, mas em como Para a função docente o processo é igual. Ou



criar condições para retê-los no sistema. deveria ser igual. Isto é, teoricamente, o pro-


fessor é um profissional quando a atuação dele 111


Na realidade, as expectativas em relação ao


papel do professor continuam altas apesar, ou por obedece aos critérios de racionalização dos sa-



causa, de todo o desenvolvimento tecnológico. Do beres e de legitimação social, sumariamente



professor se exige que, além de ser competente, descritos acima, que definem uma profissão.


atualize seus conhecimentos em alta velocidade A formação tem, assim, uma importância



e que, para além de suas capacidades técnicas e crítica na profissionalização do professor. Ela é



pedagógicas, saiba lidar individualmente com um dos suportes da trilogia ação/formação/



alunos como pessoas, com seus valores e cultu- pesquisa e da articulação entre suas respecti-


ras próprias. Essas expectativas da sociedade em vas lógicas na busca de uma mudança qualita-



geral têm atingido níveis que se confrontam com tiva que envolva a reflexão sobre valores, nor-

a própria “profissionalidade” do professor. mas, modelos.



Analisemos rapidamente este termo relativa- A profissionalidade é tudo o que está para

mente novo – profissionalidade. A partir de que além da profissionalização, é o que está na base

momento um ofício passa a ser uma profissão? da mudança, na consciência de si e dos outros,

Estudos realizados nomeadamente em no desejo ou motivação para a função e na com-


preensão da significação do que se faz. Ela, a


França, mostram que passamos a ser profissio-


nais quando deixamos de seguir regras profissionalidade, é também um dos fatores



preestabelecidas e passamos a ter estratégias mais presentes na capacidade dos governos de



que seguem determinados objetivos dentro de atrair e reter professores qualificados na pro-

fissão, o que por sua vez influi na capacidade


uma certa ética. Ou seja, de modo abstrato e


bastante genérico, há pelo menos três níveis de de captar os melhores estudantes para se tor-

diferença entre ofício e profissão: uma primei- narem professores.



ra diferença no tipo de ocupação (manual e in- Vejamos um pouco essa questão da reten-

telectual ou artística); uma segunda diferença ção de professores, que afeta de maneira mui-

na natureza do saber, misterioso para o ofício e tas vezes dramática a educação e a alfabetiza-

publicamente dominado e professado para a ção de adultos.



profissão; e uma terceira ligada à legitimação Por força do direito de todos à educação, os

social, que depende da utilidade para o ofício e sistemas educativos expandiram-se mundial-

do prestígio para a profissão. Exemplos flagran- mente, o que exacerbou a necessidade de pro-

tes de profissões que seguem esses critérios são, fessores qualificados para atender o nível pri-

por exemplo, a advocacia e a medicina. mário e, sobretudo, o nível secundário, atual-


Um processo de profissionalização deve mente sob pressão em quase todas as latitudes.



transformar um ofício numa profissão, um ar- O equilíbrio entre o que se espera dos profes-

tesão num profissional; mais propriamente, sores e o que lhes é oferecido em troca tem gran-

profissionalização é um processo de racionali- de impacto na força de trabalho docente e na


zação dos saberes. Um profissional é uma pes- qualidade desse trabalho. Alguns países do Nor-

soa que adquiriu competências específicas, te desenvolvido estão mesmo encarando a pos-

especializadas, com base em saberes racionais sibilidade de atrair professores qualificados de



reconhecidos, legitimados pela universidade e outros países, já que os profissionais nacionais


pelo exercício. estão pouco a pouco perdendo a motivação



O profissional responde, adapta-se à de- para esse trabalho! A constatação é que 30% do

manda, ao contexto, a problemas complexos e total do corpo docente deixam a profissão an-

tes de completar cinco anos (nos centros urba- professores pretender – condições de trabalho,



nos essa porcentagem sobe para 50%!). direitos, estatuto – na sociedade? E a grande per-



Apesar de o papel dos professores ser reco- gunta: quem pode ser um bom professor e como



nhecido na sociedade, ainda há dificuldade em encontrar essa pessoa, formá-la, preservar a sua


assumir que a qualidade tem um preço. Nem motivação e a qualidade do seu ensino?



todos podem exercer a função docente, e nenhu- Teve lugar, de 5 a 8 de setembro de 2001, em



ma associação profissional aceitaria entre seus Genebra, no Bureau Internacional da Educação


pares candidatos despreparados para a função. da Unesco, a 46ª Conferência Internacional de



Falando de desenvolvimento da EJA, essa Educação, dedicada ao tema “Educação para



questão do recrutamento e da retenção de pro- todos para aprender a viver juntos”. As conclu-



fessores qualificados torna-se ainda mais críti- sões dos debates, das sessões plenárias e das


ca, já que nem sempre os recursos financeiros oficinas que se realizaram durante a Conferên-



disponíveis num determinado país permitem a cia, preparadas para os organismos governa-



implementação de uma educação verdadeira- mentais e não-governamentais, para os profes-


mente para todos, crianças, jovens e adultos. No ○
sores e suas organizações, para a mídia e todos
entanto, à medida que cresce o papel da edu- os parceiros da sociedade civil interessados na

cação na dinâmica das sociedades modernas, qualidade e na pertinência da educação e em



ela, a educação, ocupa cada vez mais lugar, na seu potencial para levar indivíduos e socieda-

vida dos indivíduos, ao longo de toda a vida. des a aprenderem a viver juntos, foram de gran-

Deixou de existir a delimitação de tempo, ida- de relevância e oportunidade marcante – sobre-



de ou lugar, para aprendermos, para nos quali- tudo se pensarmos nos acontecimentos ocorri-

ficarmos – a competência passou a ser dos em setembro. É evidente que há urgência


evolutiva, exigindo um grau elevado de adap- cada vez maior de pormos de pé o conceito de

tabilidade. É o que se chama comumente o “aprender a viver juntos”, um dos pilares da edu-

continuum educativo. A EJA constitui, assim, cação, tal como definidos pelo Relatório Inter-

uma excelente ocasião para abordar questões nacional da Unesco, publicado sob o título Edu-

ligadas ao meio ambiente e à saúde, à educa- cação, um tesouro a descobrir.



ção em matéria de população, à educação para Não há dúvida de que o direito de todos à

os valores e culturas diferentes. educação ainda tem um longo caminho a per-



O nível de participação do adulto na vida da correr, apesar da certeza generalizada que se


nação depende em larga medida do nível de es- tem hoje de que a educação é o caminho para

colaridade anterior, que produz um efeito cu- combater a pobreza e promover a participação

mulativo reconhecido por todos: quanto mais de todos nos níveis político, social e cultural.

escolarizado o indivíduo, mais vontade ele tem No entanto, o objetivo da educação para todos

de aprender. Por isso os progressos na escolari- vai além da universalização pura e simples. Em

zação de jovens, os progressos na alfabetização cada país a luta pela coesão social e contra a

de adultos e qualquer impulsão à educação bá- desigualdade, o respeito pela diversidade cul-

sica estimulam e são estimulados pelo cresci- tural e o acesso a uma sociedade do conheci-

mento da demanda de educação de adultos, nas mento, que pode ser facilitada pelas tecnologias

sociedades de hoje e de amanhã. Daí que o anal- de informação e comunicação, estão direta-

fabetismo nos países em via de desenvolvimen- mente relacionadas com a qualidade da educa-

to, o iletrismo nos países desenvolvidos e os li- ção. A própria diversidade lingüística e o fosso

mites da educação permanente constituem ver- ainda existente no âmbito do desenvolvimento



dadeiros obstáculos a políticas de promoção de científico e tecnológico dependem muito des-



eqüidade e igualdade. sa qualidade da educação.



Nesse processo, o que é que, racionalmente, Nesse contexto, as reformas são mais pro-

a sociedade pode esperar dos seus professores? cesso que produto. O importante, paralelamen-

Que nível de exigência é preciso colocar no tra- te à definição dos conteúdos, continua sendo o

balho que fazem? Que contrapartida podem os envolvimento de todos os atores.


112
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina

Sendo assim, à parte a necessidade de se


professores, as comunidades, as famílias, o se-


fazer um levantamento das práticas de ensino tor econômico, a mídia, as ONGs e as autorida-



e aprendizagem na linha do aprender a viver des intelectuais e espirituais devem trabalhar



juntos, visando seu estudo e divulgação mes- juntos, cada um na sua área de competência,


mo em nível nacional, os processos de reforma visando a um mesmo objetivo – a construção de



devem necessariamente facilitar e promover o sociedades diversas mas solidárias, em paz con-



envolvimento de professores, ao mesmo tem- sigo mesmas e com os outros.


po que a área da formação deve desenvolver O que pensam os professores a propósito de 113



com os professores os comportamentos, as ati- tudo isso? Seria interessante e extremamente



tudes e os valores que se quer ver praticados elucidativo perguntar aos professores como eles



pelos alunos, no âmbito do respeito à diversi- se vêem na sociedade e no sistema educativo e


dade. O uso das tecnologias de informação e como vêem a profissão docente, suas demandas



comunicação na formação e na sala de aula con- e incentivos, como se vêem na sala de aula. A



tribuirão também para a mudança necessária Unesco estaria interessada em participar de um



da relação aluno/professor, acompanhando a esforço como esse, pela importância que ele


evolução da sociedade nos últimos tempos. poderia ter na definição da identidade profissio-


Não nos esqueçamos de que a educação não nal do professor e, portanto, na compreensão

pode estar sozinha nesse processo de aprendi- ainda mais aprofundada de seu papel e de sua

zagem coletiva, para melhor viver juntos. Os profissionalidade.












A formação de educadores:


um caminho para a


transformação da educação de


pessoas jovens e adultas






Graciela Messina

Unesco/Orealc/Chile




A tese principal:

pessoas jovens e adultas desafiou o tempo e


continua tão presente quanto na década de


a mudança na Educação de

1960, embora enfraquecida em alguns países da


Jovens e Adultos começa


região e marginal na maioria deles.



A tese desta apresentação é que estamos


pelos educadores

atravessando um momento favorável na Amé-



A educação de pessoas jovens e adultas tem rica Latina para gerar uma transformação posi-

enfrentado uma crise estrutural nos últimos tiva na Educação de Jovens e Adultos (EJA).

vinte anos: em repetidas ocasiões, discutiu-se Essa transformação deve começar nos pró-

o sentido dessa modalidade e em diversas ou- prios educadores. Ela deve ser gerada por pro-

tras os governos privilegiaram a educação da cessos integrados de formação, sistematização



população escolar. No entanto, a educação de e credenciamento da experiência, que possibi-



litem uma guinada radical tanto no trabalho e A formação docente tem reproduzido esse



na profissão docentes como na EJA. esquema e as práticas mais habituais de ino-



A mudança educacional tem habitualmen- vação e renovação nessa área têm consistido



te ocorrido a partir da concepção e da imple- na definição de novos perfis para os educado-


mentação de novos planos de estudo, da ela- res, em mudanças nos planos de estudo, no es-



boração de materiais ou da implementação de tabelecimento de conteúdos mínimos para a



programas de formação educacional. O currí- formação, na elaboração de materiais, em con-


culo, os modelos de gestão e os materiais di- cursos de projetos para instituições de forma-



dáticos têm sido usados como estratégias para ção, no credenciamento institucional ou na



melhorar a qualidade da educação, a qualida- promoção de pesquisas educacionais como



de dos sistemas educacionais, suas estruturas requisito ou norma estabelecida a partir do


e suas funções. Os sujeitos têm sido relegados nível central dos ministérios de educação. Em



a um segundo plano e tem prevalecido o pon- todas essas estratégias, os educadores têm sido



to de vista do “sistema” e de sua eficiência e relegados a um segundo plano. A formação dos


eficácia. A formação dos professores tem sido ○
formadores e o desenvolvimento de espaços de
abordada da mesma maneira, vista como uma reflexão nos próprios locais de trabalho ainda

estratégia para melhorar a qualidade dos sis- são ações marginais.



temas educacionais, mas não como um espa- Nesse contexto, no qual a formação tem-

ço para o educador e seu trabalho educacio- se tornado cada vez mais importante como es-

nal, para a reflexão e para a sistematização de tratégia de melhoramento ao mesmo tempo



sua prática. que os educadores continuam sendo executo-



A formação tem-se assemelhado mais a res e não protagonistas e em que a formação


uma missão salvadora para educadores ca- de educadores de jovens e adultos não foi abor-

racterizados como pseudoprofissionais ou dada em toda a sua especificidade e comple-



semiprofissionais do que a um espaço para os xidade, insere-se a tese que vamos analisar.

educadores se assumirem como os intelectu- Estamos imbuídos da visão a partir do sis-


ais necessários que são, necessários para a so- tema, que anula os sujeitos e os encerra em

ciedade e merecidamente participantes de um categorias de níveis e modalidades educacio-



processo de aprendizagem permanente. A for- nais, nichos chamados educação formal e



mação tampouco tem sido vista como parte le- não-formal ou informal, educação inicial, bá-

gítima do trabalho docente e integrada a ele sica, primária, secundária, superior, intercul-

como elemento da tarefa institucional e da ta- tural, para adultos, e outros. A inovação edu-

refa coletiva dos profissionais da área. Além cacional está ameaçada por sua própria som-

disso, os educadores têm sido vistos principal- bra e, em muitos casos, corre o risco de se tor-

mente como um insumo ou fator do processo nar apenas cópia ou réplica de algo já produ-

educacional, ou seja, apenas como recursos zido em outro lugar, ou seja, a inovação pode

humanos e não como sujeitos e protagonistas tornar-se repetição e, como qualquer repeti-

da mudança educacional e social. ção, ficar mais próxima das classificações


A principal limitação dos processos de for- dicotômicas e autoritárias que de espaços



mação reside nesse enfoque “de fora para den- multidimensionais e abertos. O exposto aci-

tro”, que privilegia mais a formação que o tra- ma insere-se num campo educacional que,

balho docente e que considera a formação em nível teórico, é “fraco”, já que reproduz

como um meio destinado a preparar os educa- conceitos das Ciências Naturais e segue mo-

dores para os programas de reformas educa- delos explicativos mecânicos próprios do es-

cionais. Os governos têm procurado formar tilo do modelo de insumo–produto. A produ-



professores de acordo com os requisitos das re- ção de teorias no campo da educação, a par-

formas e, assim, a formação tem sido definida tir da prática e do diálogo interdisciplinar, é

“de cima para baixo”, seguindo a mesma ori- a grande tarefa pendente sobre a qual se as-

entação daquelas. senta o tema que estamos analisando.


114
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina

Para transformar a educação de adultos, do-se finalmente livre e legítima para criar sua



precisamos questionar as categorias habituais própria configuração.



que nos permitem organizar nossa prática edu- A educação de adultos tem sido caracteri-



cacional e hierarquizá-la de acordo com os es- zada pelo princípio da “compensação” e usa-


quemas conhecidos e aceitos como naturais. da como um ato de “reparação” social princi-



Atribuímos às normas contingentes a condi- palmente pela escolaridade não alcançada por



ção de leis da natureza. “Desnaturalizar” as parte da população adulta. Desde sua origem,


noções e os nomes que constituem o campo a educação de adultos tem estado vinculada 115



da educação seria o primeiro passo para qual- aos setores sociais mais excluídos. Educação



quer mudança. de adultos é um nome que oculta o que todos



A transformação da EJA produzirá mudan- sabemos: que seus únicos destinatários têm


ças na educação como um todo, em sua tarefa sido adultos em situação de pobreza e que, na



social e em suas relações com a vida cotidiana maioria dos casos, tem consistido em esforços



e o trabalho. Para transformar a educação de orientados pela perspectiva compensatória



adultos, precisamos, em primeiro lugar, ques- (“uma educação pobre para pobres”).


tionar suas fronteiras, articular suas diversas Os sistemas educacionais foram organiza-



expressões e reintegrá-la ao conjunto de pro- dos para formar as novas gerações por meio de

cessos educacionais dos quais ela está se- uma instituição especializada, a escola, que

gregada ou separada. Essa é uma tarefa coleti- distribui a educação de acordo com a classe

va a ser levada a cabo por todos os profissio- social e com outras formas de classificação-

nais da área pensando juntos, por educadores discriminação. Nesse marco, a educação de

que estão investigando o que devem fazer. adultos tem sido a educação dos que estão

Embora a tese aqui apresentada se baseie “fora”, uma tarefa definida como “supletiva” ou

na noção de que a transformação da EJA deve “compensatória”, concebida para reparar a fal-

ocorrer a partir dos educadores e com sua par- ta de oportunidades dos grupos que não tive-

ticipação, a tarefa situa-se num espaço de con- ram acesso à escola ou não puderam continu-

vergência entre dois campos: a chamada “edu- ar seus estudos numa instituição escolar. Em

cação de adultos” e a formação docente, am- sua aplicação, uma parte da educação de adul-

bos em processo de revisão e debate. tos cumpriu seu mandato social como “educa-

ção compensatória” e outra se desvinculou


desse mandato e se comprometeu com os se-


A educação de adultos

tores sociais excluídos. A educação popular



A educação de adultos tem sido, desde deste século faz parte dessa educação de adul-

suas origens, um espaço com fronteiras per-


tos que procura um outro caminho. A pedago-


manentemente redefinidas, um espaço con- gia da libertação, promulgada por Paulo Freire,

traditório, tenso, propício tanto para a pro- e a educação popular, construída a partir da

moção de novas oportunidades para grupos teoria e da prática freireanas, caracterizam-se


excluídos e para a experimentação de novas


por sua explícita intencionalidade política de


práticas como para a reprodução de práticas conscientizar e promover a organização dos



escolarizadas e para a degradação e o empo- setores populares (García Huidobro, 1994).



brecimento dessas práticas. Há dez anos, uma Desde a década de 1960, observamos a convi-

pesquisa publicada pela Unesco chamou, em


vência de duas práticas de educação de adul-


seu título, a educação básica de adultos de “a tos: uma compensatória e outra vinculada aos

outra educação” (Messina, 1993). Esse nome setores excluídos e a suas organizações.

permanece: a “outra”, sempre determinada Considerada em seu conjunto, a educação


pela educação oficial e vinculada a ela, desti-


de adultos tem sido um espaço educacional


nada às novas gerações; a “outra”, para abran- heterogêneo, fragmentado e sensível a mudan-

ger também a possibilidade da saída, de ser ças políticas e sociais; retrai-se em tempos de

outra e perder-se nessa singularidade, tornan- ditadura e expande-se em períodos de demo-



cracia formal, em tempos de mobilização po- Além de compensatória e seletiva, a educa-



pular. Ao mesmo tempo, tem constituído um ção de adultos tem desempenhado papel mar-



foco de atenção educacional e de atrito social ginal no conjunto das ações dos países da re-



para os setores mais vulneráveis. gião e nas reformas implementadas na década


No entanto, a educação de adultos apresen- de 1990. Desempenhou um papel marginal,



ta-se com uma configuração tão diversificada também, em projetos regionais ou internacio-



quanto a enfoques, instituições e programas nais de longo prazo implementados na Améri-


que não seria válido, na América Latina, abordá- ca Latina, como o Projeto Principal de Educa-



la como uma “educação de adultos em geral”. ção para a América Latina e o Caribe – PPE



Devemos considerá-la fazendo referência a eta- (1980-2000) e a proposta da Educação para To-



pas, países, grupos de países, modalidades, dos (1990-2000).


ações do Estado ou da sociedade civil. Nesse O PPE, definido na reunião de ministros de



contexto, a primeira diferença significativa Educação realizada no México em 1979, resul-



pode ser identificada entre duas produções que tou de um grande desejo dos governos da re-


coexistem e se contrapõem na década de 1980 ○
gião de trabalhar em conjunto. Esse projeto
e começam a se complementar na década de contemplava uma proposta de “educação para

1990: os programas do Estado e os programas todos” organizada em torno da educação bási-



da sociedade civil. ca e inserida na linha da educação permanen-



Na maioria dos países, a educação de adul- te. Desde suas origens, o PPE propôs-se a dar

tos oferecida pelo Estado tem sido não apenas uma resposta ao analfabetismo e a melhorar a

compensatória, mas também seletiva. Sua ofer- oferta da educação de adultos. Sua proposta

ta concentrou-se nos centros urbanos e os gru- original compromete-se com os setores mais

pos mais excluídos (“os pobres dos pobres”) não excluídos e assume a perspectiva de “eliminar”

tiveram acesso a ela. Por sua vez, as pesquisas o analfabetismo e “ampliar os serviços” da edu-

indicam que as mulheres preferem participar de cação de adultos. Esse enfoque reduz o analfa-

programas comunitários de alfabetização ou de betismo a um sintoma e a educação de adultos


capacitação para ofícios domésticos, enquanto a uma oferta que deve ser ampliada, com base

os homens predominam na educação básica e na mesma lógica que imperou para o sistema

secundária formal e nos programas de educa- educacional formal: a expansão da cobertura.



ção profissionalizante de grande porte (Pieck, Além disso, o discurso e a prática do PPE con-

1996). Na educação básica formal de adultos, centraram-se progressivamente, nas duas últi-

participam em maior número pessoas que já mas décadas, no sistema educacional formal, na

têm alguma escolaridade ou que foram expul- escola e nos processos de ensino e aprendiza-

sas da escola recentemente. A educação secun- gem.


dária ou de segundo grau de adultos conta com Essa posição secundária desenvolveu-se de

um número maior de estudantes que a educa- tal forma que, em alguns países, a educação de

ção básica, comprovando que a escolaridade adultos descentralizou-se a ponto de dissolver



prévia condiciona a participação na educação as estruturas nacionais da modalidade (Argen-


de adultos (Messina, 1993). A educação-traba- tina, dissolução da Dinea) Em outros países, no



lho para os setores mais excluídos continuou entanto, foram mantidas estruturas fortes e

sendo terra de ninguém na década de 1990 centralizadas, com uma gestão progressiva-

(Pieck, 2000), da mesma maneira que a educa- mente descentralizada (Inea, México; Conafe;

ção pós-alfabetização esteve desconectada do outras instituições). Nesse sentido, o interesse



trabalho na década de 1980 (Schmelkes, 1988). do Estado em relação à educação de adultos é



Nesse marco, a educação de adultos apresenta- muito diferente na região. Nos países em que

se como uma modalidade na qual predominam continua funcionando como um espaço “regu-

os jovens e na qual os “adultos adultos” e os lar”, a educação de adultos é um espaço “à par-



adultos mais velhos têm pouca ou nenhuma te”. Em alguns países a segregação é tão acen-

participação. tuada que foi definida em lei como um “regime


116
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina

educacional especial”, como a educação espe- culação do conhecimento e também do mundo



cial, a educação artística e a educação para po- do trabalho e dos sistemas de poder (Infante,



pulações indígenas. 2000; Kalman, 2000).



Marginal, compensatória, seletiva e segre- A educação de adultos caracteriza-se pela


gada: esses atributos se conjugam e definem um heterogeneidade e fragmentação, desde as cam-



espaço para a educação de adultos. A con- panhas maciças de alfabetização até os progra-



trapartida social é um alto contingente de jo- mas de continuação de estudos primários ou


vens e adultos que são analfabetos ou não che- básicos e secundários e os programas de edu- 117



garam a concluir o primeiro grau. Segundo es- cação profissionalizante. Embora os países se



timativas da Unesco, essa população totalizava tenham proposto a criar sistemas integrados de



150 milhões no início da década de 1990 e se educação de adultos, suas diferentes modalida-


manteve nos mesmos níveis até o final dessa des continuam, na prática, desvinculadas.



década. Ainda de acordo com essas mesmas Essa desarticulação se soma à exclusão en-



estimativas, a maioria desses jovens e adultos frentada pela maioria dos países. Além disso, a



vive no Brasil e no México. Essa demanda silen- falta de ações intersetoriais parece caracterizar


ciosa – que não demanda – deve ser alvo da ta- a educação de adultos: enquanto os Ministérios



refa que precisamos levar a cabo. É a partir des- da Educação ou instituições semelhantes se

sa caracterização que devemos abordar a for- encarregam da alfabetização e da educação for-



mação dos docentes. mal de adultos, os Ministérios do Trabalho e os


Um outro aspecto fundamental a ser leva- institutos de formação profissional assumem a



do em consideração ao se falar sobre a forma- educação profissionalizante. Embora alguns



ção dos educadores de adultos é o fato de o cha- Ministérios da Mulher ou da Juventude assu-

mado “analfabetismo” incluir tanto as popula- mam tarefas de alfabetização ou de educação



ções que desconhecem a escrita da língua ofi- profissionalizante, em convênio com Ministé-

cial (os chamados “analfabetos absolutos”) rios da Educação ou independentemente, e



como as populações cuja escolaridade é insufi- embora a atuação de Ministérios do Trabalho


ciente para possibilitar sua inclusão na socie- ou da Mulher nessa área tenha sido registrada

dade (os chamados analfabetos funcionais, cujo como uma novidade na década de 1990, ainda

indicador é a escolaridade básica incompleta, não existe uma agenda intersetorial efetiva.

assumindo-se a conclusão de sete séries como Some-se a esse fato a sobreposição de uma

elemento discriminador) (Infante, 2000). grande quantidade de instituições e progra-



Além disso, o analfabetismo de indivíduos e mas. No caso da formação profissional na Amé-



grupos é sempre um “problema” social, um sin- rica Latina, temos um verdadeiro emaranha-

toma de exclusão social e de colonização cultu- do de instituições (Gallart, 2000) e no México


ral que não pode ser reduzido a habilidades de a situação é semelhante (Pieck, 1996). Ao mes-

aprendizagem ou a competências sociais. No mo tempo, os governos optaram, no campo da



mesmo sentido, a alfabetização não se resume à educação de adultos, por políticas de “omis-

possibilidade de ter acesso a um código e de são” (não fazer nada e direcionar recursos para

administrá-lo: ela implica a capacidade de pen- outras áreas), de eliminação (dissolução de es-

sar a partir de um código e a possibilidade de truturas, centros e programas) ou de emergên-



poder contar com espaços de trabalho e famili- cia (programas maciços de curto prazo cen-

ares nos quais a língua escrita faça parte da vida trados em resultados rápidos e não em proces-

cotidiana. A formação docente deve contemplar sos). Tanto as campanhas de alfabetização



a preparação para essa maneira de conceber e como os programas de educação profissiona-



contextualizar o analfabetismo e a alfabetização. lizante são exemplos de ações desse tipo. O ob-

É importante, também, que concebamos a alfa- jetivo das campanhas é que as pessoas mudem

betização como elemento da distribuição social de categoria, a saber, da categoria de analfabe-



do conhecimento. Ser alfabetizado é condição tas à de alfabetizadas; e os programas profissio-



necessária para participar da produção e da cir- nalizantes do estilo acima mencionado obje-

tivam também uma mudança na classificação é uma categoria criada a partir de uma perspec-



das pessoas: de desempregadas a “inseridas no tiva da educação como uma soma de progra-



mercado de trabalho”. mas, muitos dos quais não se identificam com



Já afirmamos anteriormente que a educa- esse espaço (Unesco, Marco Regional de Ação,


ção de adultos tem estado sujeita a um proces- 2000). Os educadores e os instrutores de cursos



so de permanente redefinição de suas frontei- profissionalizantes identificam-se como educa-



ras. Na década de 1990, o termo “educação de dores de adultos, o que não acontece com os


adultos” foi alterado para “educação de jovens educadores dos Ministérios da Saúde, da Mu-



e adultos”, em decorrência da presença majori- lher, da Juventude e outros. Podemos pensar a



tária de jovens nessa modalidade, fato confir- educação de adultos como algo diferente de



mado por pesquisas educacionais (estudo re- uma soma de alfabetização, educação básica e


gional da Unesco em 13 países, sobre a educa- cursos profissionalizantes, como programas



ção básica de adultos; cf. Messina, 1993). sobrepostos.



Durante o processo de acompanhamento A necessidade de articulação é tão pertinen-


regional da Conferência Mundial sobre a Educa- ○
te quanto manter o compromisso com os seto-
ção de Adultos (Confintea V, Hamburgo, 1997), res excluídos e, ao mesmo tempo, evitar qual-

que gerou um foro permanente entre 1998-2000, quer segregação: as propostas de uma “educa-

coordenado e impulsionado pela Unesco/Crefal/ ção para a vida” precisam incluir essas reflexões.

Ceaal/Inea, surge um novo nome: “educação de A tarefa é proporcionar a pessoas que estão fora

pessoas jovens e adultas”, para levar em consi- dos sistemas educacionais a oportunidade de

deração a dimensão do gênero. reintegrar-se a eles, lógica que também é váli-



A preocupação com as fronteiras dessa mo- da para pensarmos a respeito da participação


dalidade educacional vai além de denomina- dos educadores.



ções e referências a seus destinatários. No pro- Os governos concentraram seus esforços na



cesso de acompanhamento da Confintea V, hou- população em idade escolar. Um novo projeto



ve um questionamento radical em relação ao de educação de adultos implica não apenas um


campo da EJA. Argumentou-se que: a) a EJA tor- orçamento maior ou sua inclusão nos proces-

nou-se uma referência abstrata, já que jovens e sos de reforma: ele pressupõe a redefinição dos

adultos estão em todos os espaços; b) a EJA rei- sistemas educacionais e da tarefa educacional

vindica espaços nos quais instituições setoriais como um todo; pressupõe uma perspectiva de

já estão atuando; c) é necessário pensar na EJA educação permanente e inclusiva que conside-

como algo que vai além da alfabetização, da re os setores mais excluídos como o centro de

educação básica ou dos cursos profissio- suas ações sem que isso signifique oferecer uma

nalizantes; d) a articulação não pode limitar-se educação pobre para pobres.


a vinculações curriculares e deve envolver ne-



xos institucionais; e) a necessidade de repen-


A formação docente

sar a EJA abre-nos diferentes alternativas, que


O segundo núcleo a partir do qual devemos


incluem sua conservação como modalidade,


complexas articulações entre seus distintos pro- considerar a formação dos educadores de adul-

gramas e submodalidades e sua dissolução em tos é a própria formação docente. É evidente



algo novo e inédito; f ) essas transformações que os educadores têm sido eternamente rele-

gados a um plano inferior numa hierarquia cujo


devem ser promovidas mantendo-se o compro-


misso com os setores mais excluídos. Esses de- escalão mais baixo é a educação de adultos.

bates, que continuam em andamento, foram Eles têm sido desfavorecidos não apenas

parcialmente assumidos por um documento em termos de condições de trabalho e de salá-


rios. A questão fundamental é o abismo entre


redigido numa reunião regional organizada pela


Unesco (Marco Regional de Ação, 2000). a educação necessária em nossos tempos, as



Com base nessas reflexões, precisamos nos demandas colocadas aos educadores e as con-

perguntar até que ponto a educação de adultos dições a eles proporcionadas pelo Estado. O

118
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina

vínculo entre o magistério e o sistema educa- sicas: a transferência à educação superior e a



cional, tão forte no século XIX, hoje já não exis- ampliação dos anos de escolaridade dos pro-



te. Os sistemas educacionais contribuíram gramas. Ao mesmo tempo, a profissão docen-



para a criação e a consolidação dos estados te continuou sendo categorizada como uma


nacionais e os professores, por sua vez, foram profissão de segunda ordem no conjunto das



“a mão” dos sistemas educacionais, uma con- profissões.



gregação leiga disposta a executar um manda- Em todos os países da região, foram desen-


to e uma doutrina. Os sistemas educacionais volvidos programas de renovação da formação 119



parecem ter-se esquecido de que precisarão de docente (inicial e continuada) na década de



seus professores. Pode-se conjeturar que não 1990; no entanto, a separação entre a forma-



se trata de uma confusão, e sim de uma opção ção inicial e a formação em serviço foi man-


sistemática por uma outra coisa: os meios de tida, bem como a separação entre a escola e as



comunicação e os sistemas virtuais. Nem mes- instituições de formação e entre as carreiras



mo os sindicatos de professores, ainda pode- que formam para os diferentes níveis e moda-



rosos em alguns países, conseguiram mudar lidades do sistema educacional. A formação


essa situação. docente reproduz a estrutura fragmentada do



Salários baixos, condições de trabalho que sistema educacional.

obrigam o professor a ter mais de um empre- Por último, as inovações na formação do-

go, falta de uma formação sistemática e o fato cente inicial não incorporaram a problemáti-

de a formação não fazer parte do trabalho do- ca da educação de pessoas jovens e adultas

cente não representam questionamentos legí- nem a perspectiva da educação permanente.



timos, e sim elementos a serem organizados A formação de educadores de adultos conti-


para satisfazer às novas exigências do currícu- nuou segregada ou passou a fazer parte da for-

lo e da gestão. A profissão docente tem sido mação geral dos professores.



questionada e considerada um ofício ou uma No entanto, a conjuntura atual é favorável,



semiprofissão, enquanto o profissionalismo já que foram introduzidas mudanças na forma-


tem sido visto como um processo de fora para ção docente em quase todos os países da região.

dentro: o processo de profissionalizar quem Surgiram, também, experiências de formação



não é profissional. O que se propõe, com base nos próprios espaços de trabalho, workshops

em outros marcos de referência, é a promoção nas escolas que, em alguns casos, geraram es-

do “profissionalismo” como um caminho a ser truturas de autogestão interconectadas em re-



percorrido a partir dos próprios educadores des. Essas experiências foram organizadas em

por duas vias: a epistemológica, que implica a torno da reflexão da prática pedagógica. Em que

sistematização a partir da reflexão da prática pesem essas “boas notícias”, no entanto, a prin-

docente nos espaços de grupos docentes, e a cipal limitação dos processos de formação é o

política, ou da organização e participação dos enfoque de fora para dentro, que privilegia mais

educadores nas políticas públicas por meio dos a formação que o trabalho e considera a forma-

sindicatos de professores (Hargreaves; Pérez ção como um meio para preparar os educado-

Gómez, outros). Embora prevejam a participa- res para programas de reformas. Por essas ra-

ção de docentes, as reformas a limitam ao zões, os novos modelos de formação recebem



âmbito da escola e não permitem que os pro- críticas por terem sido definidos “de cima para

fessores participem efetivamente na definição baixo”, seguindo a orientação das reformas.


dos projetos educacionais nacionais ou das O debate sobre a formação de educadores



grandes políticas educacionais e que desem- insere-se nesse contexto, no qual a formação

penhem o papel que lhes cabe na educação adquiriu relevância e, ao mesmo tempo, os edu-

para a vida social. cadores continuam sendo executores e não pro-


A formação docente tem estado sujeita a tagonistas e no qual a formação de educadores



uma hierarquização formal nos últimos vinte de pessoas jovens e adultas não foi abordada em

anos, em decorrência de duas estratégias bá- toda a sua especificidade e complexidade.



A formação dos educadores de 2. Criação de um espaço de diálogo e siste-



matização de experiências tanto no nível


pessoas jovens e adultas


dos países como da região (América Lati-


na), com a participação de profissionais


Não temos uma situação comum em todos


das diferentes instituições que atuam no


os países da região. Apenas alguns países estão
campo da educação de adultos (Ministé-


debatendo o tema neste momento. Além disso,


rios de Educação e outros, ONGs, univer-


o debate se diferencia de acordo com a situa-


sidades), educadores e sindicatos de pro-


ção dos docentes e do papel que desempenham.
fessores.


Enquanto em alguns países, como a Argentina,


3. A tarefa de formação é específica e, ao


os educadores são formados e atuam como pro-


mesmo tempo, concebida para diferentes


fessores da educação formal de adultos, em


tipos de educadores. Um de seus propósi-


outros, como México, os educadores de adul-
tos é criar um espaço de intercâmbio, for-


tos (os assessores do Inea) são, em sua maioria,


mação e produção de conhecimentos en-

“voluntários”, pessoas da comunidade, sem di-


volvendo educadores de adultos de dife-
ploma e com salários baixíssimos. ○

rentes origens e tipos de formação (edu-


Conseqüentemente, enquanto na Argenti-

cadores comunitários, educadores profis-


na se discute a formação inicial dos educado-


sionais, educadores interculturais, educa-


res de adultos (em que tipo de instituição, que dores da formação profissional, outros). A

tipo de estrutura curricular etc.), no México o reflexão a partir da prática é um enfoque-


tema em questão é o credenciamento ou chave para a realização dessa tarefa.



certificação da experiência dos educadores de


4. A outra tarefa é integrar a problemática da


adultos no contexto de um programa integral educação de pessoas jovens e adultas ao



de formação, sistematização e credenciamento conjunto dos programas de formação ini-


da experiência.

cial, promovendo, particularmente, carrei-


Qual é a formação inicial dos educadores de ras de formação de educadores com um



adultos? No caso dos educadores diplomados, ciclo comum e menções, uma das quais

seria a educação de adultos. No ciclo co-


eles são, em sua maioria, professores formados


nas escolas normais e nos institutos de forma- mum, não apenas se recuperaria a tradi-

ção, que não oferecem formação específica ini- ção da educação popular e a sistematiza-

ção educacional como também os estu-


cial em educação de adultos. Existem poucas


dantes seriam sensibilizados para perceber


carreiras em toda a região da América Latina


os jovens e adultos como sujeitos legítimos


exclusivamente formadas para a educação de

de sua tarefa, desconcentrando-se das cri-


adultos. Em outros casos, temos as carreiras de


anças e encarando a educação como um


pós-graduação. Os educadores não-diplomados


processo que envolve todas as gerações.


são bacharéis formados em serviço aos quais,


em alguns casos, são oferecidos cursos de pós-



graduação. A reafirmação da responsabilidade do Esta-


do no campo da formação dos educadores de


A partir desse breve diagnóstico, o que se


adultos e da educação de adultos é o núcleo a


propõe é o seguinte:

partir do qual estas reflexões foram organiza-


1. Definição da tarefa em nível nacional e re-


das. Além disso, a formação de educadores é o


gional (América Latina), a partir de um

caminho para se repensar e dinamizar a educa-


amplo processo participativo que envolva


ção de adultos. Habitualmente, as mudanças


instituições educacionais e sociais e edu-


cadores, visando à identificação da com- têm sido geradas a partir do currículo ou do



plexa situação da formação de professores desenvolvimento institucional, mas não a par-


para a educação de adultos. Essa tarefa tir dos educadores e com eles. Estamos fazen-

pressupõe a determinação do estado atual do alusão a um programa integral que conjuga



da educação de adultos e da formação de a formação, a sistematização da experiência e


educadores de adultos.

o credenciamento. Isso implica tanto a pesqui-


120
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina

sa de quem são e de que necessitam os educa-


PIECK, Enrique. Función social y significado de la


dores como a criação de uma proposta de edu- e d u c a c i ó n c o mu n i t a r i a . U n a s o c i o l o g í a d e l a



e d u c a c i ó n n o fo r m a l . M é x i c o : U n i c e f / C o l e g i o
cação de adultos que parta dos interesses e dos


Mexiquense, 1996.


conhecimentos das pessoas e que esteja orien-


. Educación de adultos y formación para el
tada para os setores mais excluídos. Esse pro-


trabajo en América Latina: incidencia y posibilidades en


cesso é o inverso da definição de perfis docen- los sectores de pobreza. In: JACINTO, Claudia;



tes ou da predeterminação de conteúdos míni- GALLART, María Antonia. Por una segunda oportunidad:


mos para a formação. Trata-se de uma forma- la formación para el trabajo de los jóvenes vulnerables. 121



ção docente para educadores de adultos como Montevideo: Cinterfor/OIT/Rede Latino-Americana de


Educação e Trabalho, 1998.


sujeitos de direitos, cidadãos plenos e inter-


PIECK, Enrique. Educación de jóvenes y adultos vinculada


locutores do Estado na definição de políticas al trabajo. In: Unesco/Ceaal/Crefal/Inea. La educación


educacionais, ou seja, o oposto de uma forma-


de personas jóvenes y adultas en América Latina y el


ção de educadores como executores de progra- Caribe. Prioridades en el siglo XXI. Santiago de Chile,



mas num espaço “sala de aula”, em lugares 2000.


RIVERO, José. Educación de adultos en América Latina.


escolarizados, ainda que não inseridos fisica-


Desafíos de la equidad y la modernización. Madrid: Oei,
mente na escola. Essas propostas precisarão


1993.

estar articuladas com uma formação geral e

○ . Educación y exclusión en América Latina.
comum de todos os educadores e profissionais

Reformas en tiempos de globalización. Lima: Tarea,


das Ciências Sociais e de Saúde em torno da 1999.


tarefa social inadiável e específica que a educa-


SCHMELKES, Sylvia. Postalfabetización y trabajo en Amé-


ção de pessoas jovens e adultas implica. rica Latina. Pátzcuaro, México: Unesco/Orealc/Crefal,

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SIMPÓSIO 8

O FUNDEF E A VALORIZAÇÃO
DO MAGISTÉRIO
Ulysses Cidade Semeghini

Oswaldo José Fernandes

123
O Fundef e a valorização




do Magistério






Ulysses Cidade Semeghini



Fundef/MEC









O Fundef foi criado para garantir uma Educação. O valor referente ao Fundef é credi-


subvinculação dos recursos da educação para tado em conta específica, sempre que houver



o Ensino Fundamental, assim como para asse- arrecadação e repasse de recursos das fontes



gurar uma melhor distribuição desses recursos. que alimentam o Fundo. Ou seja, o crédito da

Com esse fundo de natureza contábil, cada es- ○

parcela do Fundef originária do FPM acontece
tado e cada município recebem o equivalente na mesma data do repasse do FPM, o mesmo

ao número de alunos matriculados na sua rede ocorrendo com relação às outras fontes.

pública do Ensino Fundamental. Os recursos devem ser utilizados da seguin-


Além disso, é definido um valor mínimo te maneira:



nacional por aluno/ano. O Fundef foi criado • Sessenta por cento, no mínimo, para remu-

pela Emenda Constitucional nº 14/96, regula- neração dos profissionais do magistério em


efetivo exercício no Ensino Fundamental


mentado pela Lei nº 9.424/96 e pelo Decreto


nº 2.264/97 e implantado automaticamente público. Até dezembro de 2001, parte dessa



em janeiro de 1998 em todo o país. parcela também pode ser utilizada para ha-

bilitação de professores leigos.


O Fundo é composto, no âmbito de cada


• Quarenta por cento, no máximo, em outras


estado, por 15% das seguintes receitas:


• Fundo de Participação de Estados e Muni- ações de manutenção e desenvolvimento do



cípios (FPE e FPM). Ensino Fundamental público, como, por


exemplo, capacitação de professores, aqui-


• Imposto sobre Circulação de Mercadorias


sição de equipamentos, reforma e melhorias


e Serviços (ICMS).

de escolas da rede de ensino e transporte


• Imposto sobre Produtos Industrializados, escolar.



proporcional às exportações (IPIexp).


A Lei nº 9.424/96 faculta, até dezembro de


• Ressarcimento pela desoneração de ex- 2001, a utilização de parte da parcela dos 60%

portações de que trata a Lei Complemen-


dos recursos do Fundef na habilitação de pro-


tar nº 87/96 (Lei Kandir).


fessores leigos. Porém é necessária a identifi-


• Complementação da União (quando neces-


cação desses professores com base na Lei de


sário). Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)



e na Resolução-CNE nº 03/97, que considera



Em cada estado, os recursos do Fundef são como leigos, para efeito de atuação no Ensino

Fundamental, os professores que:


distribuídos entre o governo estadual e os go-


vernos municipais, de acordo com o número de • tenham apenas o Ensino Fundamental, com-

alunos do Ensino Fundamental público aten- pleto ou incompleto;



dido em cada rede de ensino (estadual ou mu- • lecionem para turmas de 1ª a 4ª séries e não

nicipal), conforme os dados constantes do Cen- possuam o Ensino Médio, modalidade Nor-

so Escolar do ano anterior. Esse censo é reali- mal (antigo Magistério);



zado a cada ano pelo Instituto Nacional de Es- • lecionem para turmas de 5ª a 8ª séries sem

tudos e Pesquisas Educacionais (Inep) do MEC, que tenham concluído o Ensino Superior, em

em parceria com as Secretarias Estaduais de cursos de Licenciatura em área específica.


124
SIMPÓSIO 8
O Fundef e a valorização do Magistério

A partir de 2002, a possibilidade de apoiar a O efetivo exercício é caracterizado pela exis-



habilitação de professores leigos não mais será tência de vínculo definido em contrato próprio,



possível com a parcela dos 60% do Fundef. En- celebrado de acordo com a legislação que dis-



tretanto todos os investimentos voltados à for- ciplina a matéria e pela atuação, de fato, do pro-


mação inicial dos profissionais do Magistério fissional do Magistério no Ensino Fundamen-



poderão continuar sendo financiados com a tal. Os afastamentos temporários previstos na



parcela dos 40% dos recursos do Fundo. legislação, tais como férias, licença-gestante ou


A atualização e o aprofundamento dos co- paternidade, licença para tratamento de saúde, 125



nhecimentos profissionais deverão ser promo- não caracterizam ausência ao efetivo exercício.



vidos a partir de programas de aperfeiçoamen- A legislação do Fundef não estabelece valor



to profissional continuado, assegurados nos mínimo (piso) ou valor máximo (teto) de salá-


planos de carreira do Magistério público. Po- rio para o Magistério. As escalas salariais deve-



dem ser usados os recursos da parcela dos 40% rão integrar o Plano de Carreira e Remunera-



do Fundef, inclusive para o desenvolvimento da ção do Magistério que cada governo (estadual



formação, em Nível Superior, dos professores na e municipal) deve implantar. Assim, os salários


docência de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamen- serão definidos de acordo com a realidade de



tal, obedecendo nesse caso às exigências legais cada um desses governos, ou seja, de acordo

estabelecidas. com o número de profissionais e de alunos, a



Em relação a esses cursos (que não tenham receita, a jornada de trabalho, entre outras va-

como finalidade a habilitação do professor), o riáveis.



MEC não realiza o credenciamento de institui- O MEC, por intermédio do Fundescola, de-

ções que ofereçam cursos de capacitação; no senvolveu um software para auxiliar os gover-

entanto, torna-se necessária a verificação sobre nos que precisem criar um novo Plano de Car-

eventuais exigências relacionadas ao credencia- reira e Remuneração do Magistério. O progra-



mento dessas instituições nos Conselhos Esta- ma permite a realização de criterioso estudo da

duais e Municipais de Educação. realidade do estado ou do município e a simu-


A LDB (art. 62) estabelece que os docentes lação de alternativas de planos, tomando como

da Educação Básica deverão ser formados em base as diretrizes e dispositivos legais vigentes.

Nível Superior (Licenciatura Plena), mas admi- A Lei nº 9.424/96 estabelece a obriga-

te como formação mínima a de Nível Médio, toriedade de implantação de novos Planos de


modalidade Normal, para a docência nas qua- Carreira e Remuneração para o Magistério em

tro primeiras séries do Ensino Fundamental. estados e municípios. Portanto, se o prefeito ou



Dessa forma, os professores deverão, no futu- o governador ainda não tomaram essa providên-

ro, ser formados em Licenciatura específica ou cia, a sociedade, particularmente a comunidade


em curso Normal Superior, pois a melhoria da escolar, deverá mobilizar-se, envolvendo o Po-

qualidade do ensino constitui um compromis- der Legislativo local, no sentido de buscar o cum-

so que passa também pela valorização do Ma- primento desse mandamento legal.

gistério. Portanto não há prazo para os sistemas A maior parte dos recursos do Fundef (par-

de ensino deixarem de aceitar a formação em cela anual mínima de 60%) deve ser utilizada

Nível Médio, modalidade Normal, para quem na remuneração dos profissionais do Magisté-

faz parte do quadro do Magistério, com atua- rio do Ensino Fundamental, ou seja, na cober-

ção nas quatro primeiras séries do Ensino Fun- tura da folha de pagamento desses profissio-

damental. nais. Assim, as tabelas salariais do Magistério



Os profissionais do Magistério são aqueles constantes do Plano de Carreira e Remunera-



que exercem atividades de docência e aqueles ção deverão incorporar os eventuais ganhos fi-

que oferecem suporte pedagógico a tais ativi- nanceiros alcançados em razão do Fundef. Des-

dades, como as de administração ou direção de sa forma, podem ser adotados mecanismos e



escola, planejamento, inspeção, supervisão e formas de concessão de ganhos adicionais em



orientação educacional. favor desses profissionais, como abonos, por



exemplo, em caráter temporário e excepcional, tal representavam 6,3% do total lecionando no



sempre sob o princípio da transparência e com conjunto das redes públicas do país, em junho



o respaldo legal exigido (lei municipal no caso de 2000 essa proporção já estava reduzida a



de rede municipal de ensino). 3,1%.


Com o objetivo de analisar as principais Ainda que se reitere que uma das metas



mudanças e os avanços ocorridos em favor do mais ambicionadas pelo Fundef seja a de pro-



Ensino Fundamental no período compreendi- mover a erradicação, como vem de fato ocor-


do entre a implantação do Fundef, em janeiro rendo, da categoria de docentes não-qualifica-



de 1998, e junho de 2000, o MEC contratou pes- dos, os maiores percentuais de aumento aca-



quisa amostral nos estados e municípios. Uma baram por beneficiar os professores cuja esco-



das idéias centrais na concepção do Fundo é a laridade máxima era o Ensino Fundamental


valorização do Magistério, tema que orientou a completo. Isso se explica com facilidade, uma



maior parte do esforço da pesquisa. A seguir, vez que grande parcela desses profissionais re-



sintetizam-se seus principais resultados, no que cebia remunerações inferiores aos requisitos


se refere a salários, capacitação e aumento do ○
mínimos, não raro muito menores que o salá-
número de docentes. rio mínimo. O percentual nacional médio de

Os indicadores referentes à evolução do acréscimo para essa categoria situou-se entre



número de professores do Ensino Fundamen- 50 e 60%, com grande destaque para a Região

tal, no período de dezembro de 1997 a junho Nordeste.


de 2000, indicam um crescimento global nes- Há várias formas para se obterem informa-

se contingente da ordem de 10% – mais de 100 ções sobre o Fundef:



mil novos postos de trabalho apenas entre os • Os Conselhos de Acompanhamento e Con-


docentes, sem contar auxiliares, profissionais trole Social do Fundef (estaduais e munici-

de apoio administrativo e pedagógico etc. As pais) devem receber, do Poder Executivo,



duas categorias mais numerosas – professores relatórios periódicos de comprovação da


aplicação dos recursos. Também podem so-


com formação em Nível Médio (modalidade


Normal) e professores com Nível Superior (Li- licitar o extrato da conta do Fundef direta-

mente à agência do Banco do Brasil onde os


cenciatura Plena) – representavam, em junho

recursos são depositados.


de 2000, cerca de 49% e 35%, respectivamen-


• Representantes do Legislativo local, Tribu-


te, do total de professores do Ensino Funda-


mental e tiveram índices de crescimento qua- nais de Contas e o Ministério Público tam-

se idênticos, cerca de 11,5% (acima da média, bém podem obter informações do Banco do

Brasil, quando solicitadas.


portanto), em relação aos números de dezem-


• O público em geral pode ter acesso aos va-


bro de 1997.

Em face da permissão legal de utilização de lores repassados a estados e municípios pela



parte da parcela de 60% do Fundef (vinculada Internet, no seguinte endereço: <www.mec.


gov.br/sef/fundef>, onde é possível o aces-


ao pagamento do Magistério), para fins de ha-


so ao Banco do Brasil e à Secretaria do Te-


bilitação de professores leigos (até o ano 2001),


souro Nacional.
nota-se que, se antes de 1998 apenas 23% das

redes de ensino desenvolviam atividades vol- • Nas cidades com menos de 100 mil habi-

tantes, a comunidade pode acompanhar os


tadas à capacitação de professores leigos, em


valores repassados ao município em carta-


junho de 2000 nada menos do que 73% delas o


faziam. Assim, uma das prioridades vinculadas zes fixados nas agências dos Correios.

à criação do Fundef, que é a extinção da cate- Na cartilha intitulada Fundef – Manual de



goria de professores leigos, com a conseqüente Orientação, elaborada pelo MEC e distribuída

às Secretarias de Educação dos estados e mu-


melhoria na qualificação do corpo docente, está


sendo rapidamente atingida em todo o país. nicípios, são oferecidas orientações gerais. En-

Verifica-se que, se, em dezembro de 1997, pro- tretanto, se necessário, pode-se procurar o De-

fessores com formação até o Ensino Fundamen- partamento de Acompanhamento do Fundef,


126
SIMPÓSIO 8
O Fundef e a valorização do Magistério

em Brasília, pelo telefone (61) 410-8648, pelo fax


representantes do Poder Legislativo local,


(61) 410-9283, por e-mail <fundef@mec.gov.br> para que estes, pela via da negociação ou



ou, ainda, pelo Fala Brasil (0800-616161). pela adoção de providências formais, pos-



Em caso de descumprimento dos dispositi- sam buscar a solução junto ao governante


vos legais sobre o Fundef, recomenda-se: responsável;



• procurar, primeiramente, os membros do • ainda, se necessário, recorrer ao Ministério



Conselho de Acompanhamento e Controle Público (Promotor de Justiça), diretamente ou


Social do Fundef, para que este solicite ao 127


com a ajuda e intermediação do Conselho do


responsável, se necessário, a correção das


Fundef, formalizando suas denúncias, enca-


irregularidades praticadas; minhando-as, também, ao respectivo Tribunal



• na seqüência, se necessário, procurar os de Contas (do estado ou dos municípios).












DEBATE


O Fundef e a valorização


do Magistério




Oswaldo José Fernandes



Secretário Municipal de Educação, Cultura e Esportes – Jundiaí/SP







Não há nenhuma possibilidade de mudan- de educadores conseqüentes, porém permitiu,



ça, no interior da sala de aula, que não seja por primeiro, que socializássemos parte da renda

meio do professor, e não há nenhum profes- nacional, uma vez que criou uma bolsa, um

sor capaz de promover mudanças, dentro de fundo que leva as pessoas a participar de ma-

sua sala de aula, a não ser por meio da neira direta de nossa sociedade de consumo.

capacitação permanente, bem como da forma- Outra mudança importante, além da dis-

ção de um novo quadro do Magistério, adequa- tribuição de renda, é que ele provocou o re-

do às exigências do novo século, do novo mi- torno de professores que estavam afastados

lênio. por conta dos baixos salários, tanto no Norte e



Essa capacitação tem custo, não é feita gra- no Nordeste quanto nos estados do Sul e do

tuitamente. O sistema de ensino não pode co- Sudeste, pois os salários melhoraram e as pes-

brar de seus professores qualquer coisa, ne- soas passaram a integrar o mercado consumi-

nhum centavo, em relação à formação e à dor, a ser cidadãs. O Fundef resgata a cidada-

capacitação – isto é inadmissível. É preciso que nia, especialmente dos trabalhadores em edu-

os sistemas, quer municipais, estaduais ou fe- cação.


deral de ensino, respondam de maneira soli- Além disso, o Fundef coloca em cena o En-

dária à formação e à capacitação desses pro- sino Fundamental, que é, fazendo aqui um tro-

fissionais. cadilho, como o nome diz, fundamental, im-



Qual é o papel do Fundef em relação a isso? portante. Não há quem caminhe no sentido

A instituição do Fundef encontrou resistên- contrário. O Fundef permitiu que fossem



cia por parte de muita gente, estranhamente alocados recursos para a melhoria da qualida-

de de ensino. Mesmo antes do Fundef, o go- cação, aqueles que são usuários dos diversos sis-



verno Fernando Henrique Cardoso cuidava da temas de ensino, especialmente dos sistemas



universalização do ensino, mas o grande dra- municipais.



ma está colocado em duas pontas: uma delas O Fundef, ao sinalizar para um piso míni-


é a da permanência, como evitar a evasão; ou- mo (piso pode não ser o termo mais conveni-



tra é a permanência com qualidade. Não basta ente, mas refere-se ao mínimo em termos de



garantir a permanência e evitar a evasão. É pre- salário), fez com que houvesse uma correção


ciso fazer isso com qualidade. Essa é uma ques- rápida nos salários dos trabalhadores em edu-



tão central e está relacionada, efetivamente, cação, estabelecendo, à época, um valor-refe-



com a formação do profissional, porque o alu- rência em torno de R$ 320,00.



no não está na escola só para aprender a ler e Outra questão que o Fundef também colo-


a escrever, tem de aprender a viver, a somatizar ca é que, ao se estabelecer que o governo fe-



conhecimentos e isso passa pela qualidade do deral teria recursos complementares para a co-



professor. bertura de Fundos Estaduais, isso gerou segu-


O aluno não vai aprender sozinho; o profes- ○
rança nos agentes educacionais dessas áreas.
sor é uma figura imprescindível na vida do es- Ao colocar em cinco ou seis estados brasi-

tudante. Ele precisa estar ali para monitorar o leiros recursos para a educação, o governo fe-

conhecimento das crianças, da apropriação cul- deral permite que, a médio e longo prazos, te-

tural, do saber, da leitura, da Matemática, da nhamos uma sociedade mais educada, cujos

Literatura, dos conceitos de boa qualidade de resultados poderão não ser vistos rapidamen-

vida. O Fundef, colocando no cerne da questão te, mas serão no dia-a-dia das comunidades. No

o Ensino Fundamental, vai permitir a médio e desempenho das crianças e dos jovens é que

longo prazos que a educação tenha outro per- vamos poder observar qual a importância real

fil, porque com professores melhores qualifica- da distribuição de renda por meio da educação.

dos, mais bem informados teremos uma socie- Vale lembrar que o Fundef é transitório,

dade melhor do ponto de vista do conhecimen- decenal. Do Fórum de Secretários Municipais


to. Esse é um papel importante que o Fundef de Educação das Prefeituras do PSDB de São

está desenvolvendo, neste momento, nacional- Paulo, realizado em 29 de setembro de 2001, em



mente, no que tange à educação. Jundiaí, foi extraída uma carta, propondo que

O governo federal acertou, como balizador se dê prioridade ao Fundef, para que se torne

das políticas públicas, ao colocar na ordem do artigo permanente, no capítulo relacionado à



dia a educação. Também por conta disso houve Educação, consagrado na Constituição Federal,

um estímulo muito grande para a municipa- e sugerindo, ainda, no caso de São Paulo, que

lização do ensino. Embora sem embutir em seu fizéssemos o mesmo em relação à Constituição

contexto de legislação, o Fundef criou facilida- Estadual. Nesse mesmo Fórum, deliberou-se

des para que os municípios, principalmente do que o deputado federal por Jundiaí, Dr. André

Sul e do Sudeste, aderissem ao processo de Benassi, fosse o encaminhador dessa proposta



municipalização. A municipalização, no caso da ao Congresso Nacional.


educação, coloca os agentes fazedores da edu- Acredito que isso tem de ser feito dessa for-

cação próximos dos consumidores de educação ma, a fim de que não fiquemos ao sabor dos

e as duas pontas se juntam: a ponta dos fazedores governantes, daqueles que são contra ou a fa-

de educação e a ponta dos consumidores de edu- vor do Fundef.















SIMPÓSIO 9

DESEMPENHO DO PROFESSOR
E SUCESSO ESCOLAR DO ALUNO
Charles Hadji

Maria Helena Guimarães de Castro

129
Desempenho do professor




e sucesso escolar dos alunos





Charles Hadji



Universidade Pierre Mendès/Grenoble/França









Resumo





Partiremos de dois fatos que, na atualidade, cos dados indiscutíveis se encontram realmente


constituem consenso na comunidade de pesqui- disponíveis “sobre os professores e seu papel no


sadores. De um lado, “certos professores conse- ○
sucesso ou fracasso dos alunos” (idem: 35). Isso nos
guem fazer com que seus alunos progridam mais

conduzirá a uma indagação sobre três grandes as-


do que outros” (Felouzis, 1997: 57). A esse respei- suntos:



to, existem diferenças significativas de um profes- • Como foram construídos os saberes atual-

sor a outro. Esse é o chamado “efeito-professor”. mente disponíveis?



Do outro, não podemos senão constatar “a dificul- • O que sabemos hoje, exatamente, sobre a in-

dade de se estabelecerem resultados reais, fluência dos professores no sucesso dos alunos?

acumuláveis e generalizáveis, sobre a questão da • Como poderíamos chegar a saber mais e



eficácia dos professores” (idem: 28). E, de fato, pou- melhor a respeito dessa questão?






O problema dos marcos de que se refere, em particular, à evolução da pes-



quisa nos Estados Unidos.


observação, de análise e de

• Um primeiro período (até meados dos anos



interpretação 1950) no qual a eficácia estava associada a



certos traços da personalidade. A pesquisa


A primeira questão levantada pela pesquisa estava orientada para a identificação de va-

das ligações entre desempenho do professor e riáveis de prognóstico constituídas, no es-


sucesso escolar dos alunos é aquela do marco sencial, pelas características individuais

paradigmático adequado. Será que esse marco (por exemplo, o professor cordial). Todavia,

se encontra disponível? chegou-se rapidamente a detectar os limi-


Se uma indagação sobre a condição de tes de tais trabalhos, que eram muito

produção dos saberes no campo que nos pre- freqüentemente baseados na opinião, igno-

ocupa aqui se mostra, de partida, necessária, rando o trabalho concreto dos professores

em aula.

isso não significa que nos devamos perder em


considerações de índole epistemológica. Po- • Posteriormente, deu-se preferência a me-



demos nos contentar com duas questões sim- dir a eficácia a partir da eficiência dos mé-

ples, para as quais Clermont Gauthier (1997) todos. A pedagogia experimental acreditou

poder calcular a eficácia diferencial de di-


contribuiu com elementos de resposta perti-


nentes. versos métodos, definidos de acordo com



uma tipologia geral, comparando seus resul-


tados com base em dados objetivos. Porém,


Quais as principais etapas que


de um lado, percebeu-se que essa aborda-


marcaram a evolução da pesquisa?


gem não permitia detectar diferenças signi-


Situando-se numa perspectiva histórica, ficativas. De outro, compreendeu-se, em



Gauthier distingue cinco grandes períodos no particular graças às pesquisas sobre a


130
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno

interação “aptidões–procedimentos”,1 que história recente da pesquisa sobre o ensino é to-



não era possível considerar um “método de talmente satisfatória, bem como nenhuma de-



ensino” como variável causal independen- monstrou-se capaz de fornecer uma resposta


te (Bru, 1990).


totalmente fundamentada e definitiva para a


• Durante os anos 1960, diversos estudos dedi- questão da eficácia do ensino e dos professores.



caram-se à observação do ensino em sala de



aula. Nessa época, 79 sistemas de observação
Quais foram, e são, os principais


diferentes foram elaborados e implementados 131


paradigmas da pesquisa?


(Gauthier, 1997: 33). Entretanto, se o esforço


tinha o mérito de centrar-se na “caixa preta” Os autores não se colocam de acordo sobre a



do trabalho em aula, os trabalhos ignoraram natureza e o número dos grandes paradigmas de



a questão dos efeitos produzidos pelo ensi- pesquisa no campo da eficácia. Isso levaria a


no, pois as práticas descritas não foram com-


mostrar que nenhum deles se impõe de manei-


paradas com o sucesso escolar. ra indiscutível!



• Nos anos 1970, a questão central tornou-se, Para Bressoux (1994), pode-se detectar, com



então, saber se eram os professores os que respeito aos trabalhos sobre os efeitos-professor,


realmente faziam a diferença, dentro de uma

quatro grandes paradigmas.

perspectiva processos–produto. Tentou-se, ○

O paradigma do critério de eficácia, caracte-
assim, identificar comportamentos estáveis rizado pela pesquisa de uma variável que seria a

do professor (processos) que pudessem con-


chave para o bom ensino, ou para o bom profes-


duzir a um melhor aproveitamento escolar


sor, e que permitiria prognosticar sua eficácia-


dos alunos (produto). Quais são as variáveis paradigma dominante quando da primeira fase

de processo (instruções, perguntas, tempo


acima descrita.

concedido aos alunos etc.) suscetíveis de “fa-


Posteriormente, o paradigma processo-pro-


zer diferença”? Se essas pesquisas, baseadas


duto (dominante a partir da quarta fase).

no cálculo de correlações, têm produzido boa


Em terceiro lugar, o paradigma dos proces-


parte do saber atualmente disponível e fe-


lizmente se prolongaram na elaboração de sos mediadores, que se centra sobre a pesquisa



meta-análises que permitiram chegar a re- daquilo que se interpõe entre os estímulos pe-

dagógicos (a ação direta dos professores) e a


sultados importantes, elas foram, no entan-


to, objeto de múltiplas críticas sobre as quais aprendizagem dos alunos (por exemplo: envol-

voltaremos a falar. vimento na tarefa; “perseverança”). Para Durand



• Uma crítica importante foi no sentido de que (1996: 15), esse paradigma corresponde apenas

a “uma notável evolução no âmbito da corrente


ignorava o processo de pensamento dos pro-


‘processo-produto’”.

fessores, com o surgimento, nos anos 1980,


de uma quinta abordagem ilustrada pelos Por último, o paradigma ecológico, de inspi-

trabalhos de Schön (1983; 1987) e centrada ração etnográfica, que se dedica à interação de-

precisamente no conhecimento dos proces- mandas meio ambiente—respostas dos atores,



sos de pensamento mobilizados pelos pro- referindo-se aos contextos suscetíveis de outor-

fissionais na sua atividade concreta. Com o gar sentido às ações.


risco de ignorar, de um lado, o papel dos sa-


Considerando o primeiro paradigma fora de


beres objetivos e, de outro, aquele das variá- cogitação, Durand (1996) vê, essencialmente, um

veis quantificáveis. estado em que se sucedem as pesquisas “proces-



Esse rápido histórico permite constatar que so-produto”, as quais, se “continuam”, revelam-se

nenhuma das abordagens que se sucederam na doravante menos criativas (1996: 17); uma abor-




1
NT Interação Aptidões–Tratamentos (I.A.T.). Vários grupos de sujeitos equivalentes ou, ao contrário, diferenciados do ponto de vista das

características pessoais consideradas são expostos a condições pedagógicas diferentes para assimilar um conteúdo de aprendizagem idên-

tico. A seguir, avaliam-se os desempenhos de cada sujeito para poder identificar os tratamentos pedagógicos que melhor convêm às carac-

terísticas pessoais apresentadas pelos alunos.



dagem caracterizada pelo enfoque nas cognições negação da experimentação; ausência de



e no funcionamento cognitivo dos professores, ten- marco teórico interpretativo. Acrescente-se a



do sempre a preocupação de identificar os elemen- isso o que Durand (1996) vem finalmente res-


saltar sobre o fato de se ignorarem as ativida-


tos de eficácia. Entretanto, esse autor salienta o


surgimento de uma terceira atitude, de perspecti- des desenvolvidas quando da interação com


os alunos (por exemplo: atividades de plane-


va etnográfica (idem: 32), caracterizada pelos tra-


jamento).


balhos de Schön. Os defensores dessa terceira ati-


tude estariam menos interessados nos problemas b. É por isso que podemos clamar, junto com



de eficácia e de avaliação. Gauthier, por uma complementaridade das


abordagens e, até mesmo, dos esforços por


Eis por que poderemos ficar finalmente de


progredir no sentido de “um modelo


acordo com Gauthier (1997), que distingue três


eclético” (1997: 125).
grandes abordagens nas pesquisas sobre Peda-



gogia: c. Isso nos parece: um comprometimento mai-


or do que a construção de um modelo descri-

• A abordagem processo–produto, centrada na
○ tivo exaustivo (do processo ensino-aprendi-
pesquisa de correlações entre comportamen- ○

tos observáveis e resultados quantificáveis. zagem), pois não permite o esquecimento de


nada e integra as três grandes abordagens


• A abordagem cognitiva, centrada na análise,


identificadas; mais do que o surgimento de


em nível mais profundo, de processos não


um novo e mais poderoso paradigma de pes-


observáveis diretamente, o que privilegia um

quisa; simplesmente a elaboração de um mo-


trabalho de inferência, freqüentemente fun-


delo de trabalho suscetível de fazer aparecer


damentado na análise das produções verbais


claramente os espaços de análise prioritária


dos atores.

ou, dito de outra forma, os grandes canteiros



• A abordagem interacionista-subjetivista, de obras nos quais deveria empenhar-se a


sensível às interações entre atores e à força


pesquisa para contribuir com respostas mais


de suas representações e, de forma mais pre- satisfatórias à questão da eficácia. É isso que

cisa, à importância da história de cada um.


faremos no nosso terceiro ponto, após ter evo-


cado rapidamente alguns resultados já produ-


O que podemos deduzir a partir dessa pri-


meira análise? zidos por esse esforço.



a. Nenhum paradigma chega a ser totalmente



satisfatório, ou seja, nenhum deles oferece


todas as chances de aportar uma resposta ver-


Alguns resultados

dadeiramente pertinente à questão da eficá-


interessantes produzidos

cia. Cada um, além de seu inegável interesse,


tem “sérias limitações”, muito bem analisadas


pelos trabalhos sobre


por Gauthier. Fiquemos simplesmente com


os efeitos-professor

aquelas do paradigma que, por ora, permitiu


produzir mais saber(es): o paradigma proces-


O que se sabe hoje, de maneira comprova-


so–produto. Gauthier (1997) identifica nele


da? Duru-Bellat e Mingat (1994), Bressoux (1994),


sete limitações: visão redutora da eficácia (de-


sempenhos cognitivos medidos com a aplica- Felouzis (1997) e Gauthier (2001) têm apresen-

ção de testes padronizados); nenhuma expli- tado sínteses a respeito, ao mesmo tempo, dos

problemas colocados pela análise dos tais “efei-


cação sobre a maneira pela qual o ensino pro-


duz seus efeitos; subestima da influência dos tos-professor” e dos resultados obtidos.

alunos no processo de aprendizagem; esque-


cimento do contexto; superestima da freqüên-


Rumo a uma base de conhecimentos:


cia na apreciação da importância de um fa-


alguns resultados

tor; impacto fraco na formação dos professo-


res do ensino primário; desdém com a histó- Uma coisa é certa: “os efeitos-professor fo-

ria. Bressoux (1994) acrescenta outras três: ram provados e ficou demonstrado que o seu

confusão (possível) entre causa e correlação; impacto é mais poderoso do que aquele das es-

132
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno

colas” (Bressoux, 1994: 127). Na explicação esta- cia dos exemplos; tempo concedido aos alunos



tística da variância do aproveitamento escolar para responderem; organização do curso; modali-



em turmas de seconde,2 o ganho da variância dades de estabelecimento e de manutenção da



explicada pelo estabelecimento é só de 5%, en- matéria; clima da turma; modalidade de decisões;


quanto é de cerca de 15% para a turma (e, por- taxa de comportamentos entusiastas.



tanto, para o professor) (Felouzis, 1997: 57). A O que podemos deduzir? Os alunos terão



última estimativa confirmada por Duru-Bellat e melhor desempenho escolar (de uma maneira


Mingat para o C.P.3 : a inclusão da pertença a uma geral) se o seu professor: 133



turma aumenta em 19% o poder explicativo de • Efetivamente ensinou os conteúdos avalia-



um modelo estatístico. Numa pesquisa que in- dos: os alunos têm mais chances de apren-


der e, portanto, de ter sucesso, quando o pro-


cluiu 102 turmas do ensino primário, constatou-


se, “para um aluno de desempenho exatamente fessor “executa” o currículo.



médio num teste inicial, um desvio de 30 pon- • Concedeu tempo suficiente para sua disci-



tos no teste final, dependendo de o aluno ter sido plina (sendo que esse tempo varia de forma



escolarizado com o professor mais, ou com o considerável de um para outro professor).


menos, eficaz” (Bressoux, 1994: 135).


• Levou seus alunos a concederem o máximo

Mas quais são, de um lado, os fatores


de tempo na tarefa (esse tempo pode variar
explicativos dessas diferenças e, de outro e de 50 a 90% para um ensino de Matemática).

conjuntamente, quais são as características dos


• Destinou muito tempo a tarefas interativas.


professores eficazes?

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar, para • Manifestou expectativas positivas e elevadas



evitar qualquer contra-senso, que a eficácia pe- com respeito aos seus alunos. Esse ponto foi

dagógica efetiva do professor é apenas parcial- intensamente confirmado pelos trabalhos de



mente dependente de variáveis de identificação Felouzis (1997) que, tendo distinguido dois

pessoal, tais como o sexo, o meio social de ori- grupos de professores do ensino secundário

francês, os eficazes e os não-eficazes, pôde


gem, a formação pedagógica inicial ou os anos


detectar nos 18 professores eficazes intensas


de experiência na profissão (Bressoux, 1994:

expectativas positivas com respeito aos alu-


138). Esse resultado foi confirmado por Felouzis:


nos (visão ponderada do nível de suas capa-


as características individuais não exercem um


cidades; um tipo de relação que exclui qual-


verdadeiro efeito (1997: 26). Não existe o bom


quer desdém ou rejeição; julgamentos posi-

professor do ponto de vista da idade, do sexo, da


tivos em relação às potencialidades e às ca-


origem social ou do status (idem: 32). Isso por-


pacidades para cada um progredir; práticas


que “a eficácia dos professores se constrói na pedagógicas centradas nos alunos e tenden-

interação escolar” (idem: ibidem). tes a valorizá-los; nível alto de exigência do


Portanto são as características pedagógicas que


ponto de vista do trabalho e do nível de com-


contam. O mestre, não como indivíduo, mas como petência esperado, mas impondo-se sem

professor, colocando em prática um “comporta- autoritarismo). Por sua vez, os 16 professo-


res ineficazes desenvolvem concepções mui-


mento pedagógico”. Este já foi analisado sob uma


infinidade de pontos de vista (Durand, 1996: 12). to negativas sobre os alunos, seu fraco nível

Inúmeras têm sido as variáveis de processo estu- de competências e sua incapacidade para

aprender, o que se traduz em práticas peda-


dadas: instruções; perguntas; intercâmbios verbais;


gógicas menos intensivas.


modalidade direta ou indireta do ensino; natureza


das retroações; nível de dificuldade das tarefas; taxa • Soube apresentar suas exposições de forma

de redundância das explicações; clareza e freqüên- clara.







2
NT Antepenúltima série do ensino secundário francês, equivalente ao 2º ano do Ensino Médio brasileiro.

3
NT C.P.: Cours Préparatoire. Última série da escola maternal francesa, antes do ensino primário, equivalente ao penúltimo ano da pré-escola

brasileira.

• Fez elogios ajustados, não muito freqüentes, cácia nunca poderá estar garantida. Em rigor:



que acompanharam os efetivos sucessos dos • As situações de ensino em sala de aula são



alunos. tais que essa atividade constitui uma tarefa


complexa, de múltiplas dimensões. Durand


• Propôs retroinformações (feedbacks) corretivas,


de um modo afetivamente neutro e deixando (1996) ressalta algumas: um número elevado



ao aluno tempo suficiente para corrigir-se. de elementos interagindo; o caráter pluridi-


mensional de cada situação, a que se acres-


• Estruturou as atividades: propondo exercí-


centa o caráter heterogêneo dos alunos; a si-


cios de entrada nas seqüências; procedendo
multaneidade dos acontecimentos; a fra-


por etapas curtas, mas com ritmo permanen-


ca previsibilidade da situação; uma forte pres-


te e sem digressão, sempre sem temer a re-


são temporal. Essa complexidade é tal que


dundância; com um tempo importante de
somente uma e mesma forma de agir nem


prática dirigida coletiva, seguida de exercí-


sempre pode produzir os mesmos efeitos.


cios individuais, mas cuidando de manter os


alunos envolvidos na tarefa; por último, ter- • Há, no ensino, uma “primazia do operativo”


minando com sínteses. ○
(Durand, 1996: 69). A ação é guiada por crité-
rios pragmáticos, e não lógicos ou formais. Ela

• Soube interrogar os alunos de maneira efi-


é freqüentemente conduzida na urgência, por


caz: ao colocar numerosas perguntas; ao con-


operadores com uma “racionalidade limitada”


ceder tempo entre uma e outra pergunta; ao


(idem: 73), que trabalham com uma “alça de

interrogar todos os alunos, numa ordem


mira prática” (idem: 34) dominante. O essen-


estabelecida; articulando o lugar concedido


cial é, para o professor em campo, encontrar


às intervenções orais espontâneas segundo


em cada caso, ou em cada categoria de casos,

o público (pois essa prática só é positiva com


“respostas satisfatórias” (idem: 34), e não apli-


um público desfavorecido); e desconfiando


car um modelo, a priori, que seja válido inde-

das respostas colegiais.


pendentemente de qualquer contexto.



Clermont Gauthier (2001) faz uma apresen- • Justamente, os efeitos dos diversos fatores

tação do conjunto dessas qualidades e atitudes


identificados variam com o contexto de sua


que tornam o professor eficaz, ordenando-as


aparição (Bressoux, 1994: 106) em função,


segundo duas grandes funções (gestão da maté- dentre outros fatores, do nível da série ou ano

ria; gestão da turma), sendo que cada uma é de escolaridade considerado e das caracte-

abordada sob um triplo ponto de vista: planeja-


rísticas sociais do alunado. É por isso que “en-


mento, interação e avaliação. Nesse conjunto, sinar constitui uma profissão que acontece

Bressoux (1994) vê dois fatores que surgem de num contexto demasiado complexo para que

se permita reduzir a uma lista de competên-


forma constante e positiva:


• o tempo de envolvimento na tarefa; cias” (Gauthier, 2001: 214). Não se pode iso-

lar fatores que seriam geralmente eficazes de


• a estruturação do ensino.

forma independente da particularidade das



situações onde eventualmente poderão agir.



Que uso podemos fazer desses • Em situações e contextos de grande comple-



resultados? xidade, nenhum fator poderá agir isolada-


mente: “esses fatores estão interligados, de


Será que temos de nos conformar com o per-


tal forma que suas combinações demons-


fil que parece assim resultar do professor eficaz?


tram ser mais importantes que o seu efeito


Será que tudo isso tem de ser feito (Gauthier,


isolado” (Bressoux, 1994: 106). São as com-

2001: 214) e será que assim estaremos assegura-


binações, as constelações de fatores que po-


dos do sucesso? Acreditar nisso seria recair na


dem, de preferência, produzir efeitos. Con-


trilha do cientificismo (a ciência tem resposta tudo, se levarmos em consideração que os



para tudo) e do aplicacionismo (seria suficiente processos escolares caracterizam-se por


apenas aplicar modelos científicos para ter su-


múltiplos efeitos de interação (idem: 128), de


cesso). Sem dúvida, há também muitas outras onde se deduz a existência de “efeitos de

coisas a serem feitas para se ter sucesso; e a efi- composição” (Duru-Bellat e Mingat, 1994:

134
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno

143), pode-se confirmar que toda pesquisa mente operando, isto é, as vias e os mecanismos



geral do “bom professor” será em vão. pelos quais, e graças aos quais, existe um “efei-



• Finalmente, é por isso que seria convenien- to”. O que implica sabermos mais, de fato, “so-



te, aqui e sempre, fazer, segundo a expressão bre os fatores que influem no aproveitamento


de Clément Gauthier, um “uso prudente” escolar dos alunos” (Bressoux, 1994: 128).



(1997: 217) dos resultados da pesquisa. O que Duas grandes questões são, então, apresentadas:



isso quer dizer? Não se deve sucumbir nem 1. Quais são os fatores que incidem na apren-


à “mística” da todo-poderosa ciência, nem à dizagem dos alunos? E qual seria a impor- 135



mística simétrica do professor condenado à tância relativa da qualidade do desempe-


impotência e à hesitação pela complexidade


nho do professor no sucesso escolar dos


da sua profissão; mas, sim, utilizar os resul- alunos?



tados dos trabalhos de pesquisa como ferra- 2. Quais seriam as vias e os mecanismos den-


mentas intelectuais ou como grades de


tro da importância relativa da eficácia even-


inteligibilidade para estar informado e tam-


tual dos professores?


bém para refletir sobre a sua própria prática,


tendo em vista, eventualmente, reajustar as



práticas e os meios implementados refe- No que se refere à questão dos fatores


renciando-os às finalidades perseguidas. ○
que incidem no desempenho escolar
“Trata-se de tentar incorporar na sua práti-

dos alunos

ca, em função de seu contexto e de suas prá-


ticas profissionais, alguns saberes, savoir- Temos de considerar, junto com Jean

faire ou formas de ser, a fim de aumentar seu Cardinet, que um desempenho (do aluno) obser-

‘efeito-professor’ ” (Gauthier, 2001: 214). vado “é uma função com muitas variáveis” (1991:

210). Poderíamos considerar o “valor escolar” do


Entretanto, será que temos grades de


aluno; mas, também, a sua história escolar; o con-


inteligibilidade suficientemente pertinentes e


potentes? texto social da prova de avaliação; as interações,



presentes e passadas, com o(s) professor(es); a


capacidade do aluno em decodificar o problema



Para progredir na questão que lhe é colocado etc. Em todos os casos, torna-

se necessária uma leitura plurifatorial do sucesso


da eficácia dos professores

(ou do fracasso). Isso permite entender que o de-


Temos rigorosamente que reconhecer, citan- sempenho do professor vem a ser apenas um fa-

do Bressoux, que se os efeitos-professor foram tor dentre vários outros, e que não podemos

já provados e se, assim, nossos conhecimentos supervalorizá-lo (se é que não devemos, não

apresentaram progressos, “temos ainda muito obstante, subestimá-lo). O professor não é o úni-

pouco conhecimento a respeito dos fatores que co responsável. E ele é só em parte responsável.

favorecem os desempenhos dos alunos” (1994: Dentre todos esses fatores que interagem, po-

108). Por meio de que processos mediatários os deríamos distinguir dois subconjuntos: os fatores

fatores identificados (e isolados) pelas pesqui- relativos ao educando e aqueles relativos aos con-

sas sobre os efeitos-professor chegam a produ- textos dos aprendizados. Pelo lado do educando,

zir, justamente, seus efeitos? Seria preciso não poderíamos evocar: a bagagem hereditária (com

apenas, como salientam Duru-Bellat e Mingat, todas as discussões que ela suscita); a personalida-

descrever de forma sistemática e precisa “a efe- de; as aptidões; a história, em particular a escolar;

tiva variedade das práticas”, mas também “de- as atitudes, e a relação com a “coisa escolar”; os pro-

terminar [...] as práticas eficazes, ou seja, aque- jetos; a vontade; o nível de comprometimento. Pelo

las que se revelarem efetivamente ligadas à qua- lado dos contextos, podemos identificar três gran-

lidade do ensino” (1994: 139). É preciso, ainda, des séries de fatores: o contexto de vida (o meio so-

ir além dessa pesquisa de correlações (que en- cial e cultural); o contexto da aprendizagem (escola,

cerra no paradigma processo–produto) para ten- currículo, professor e “método”); o contexto da ava-

tar identificar as causalidades que estão efetiva- liação. O professor, em rigor, só viria a ser mais um

fator de contexto entre muitos outros, o que torna dem mais ser estudadas de forma simplesmente



redutora a pesquisa febril das correlações entre o apriorística e no abstrato (“competências social-



desempenho do professor e o aproveitamento es- mente definidas”, Felouzis, 1997: 19). É preciso



colar dos alunos. Essa pesquisa deve situar-se num descrever e analisar os comportamentos realmen-


plano mais amplo, que tenha em conta, pelo me- te praticados quando se ensina a alunos concre-



nos, algumas dimensões principais dos processos tos: reencontramos a necessidade de descrever de



intervenientes. Só então é que, talvez, possamos maneira sistemática a efetiva variedade das prá-


responder mais facilmente à segunda pergunta. ticas. Porém não é fácil descrever o professor es-



pecialista: qual seria a importância relativa dos



conhecimentos, das competências, da experiên-


No que se refere à questão das vias


cia, das rotinas (Durand, 1996: 27-32)?


reais da eficácia pedagógica: Por último, como medir a eficácia (de um



três grandes áreas de pesquisa ensino de qualidade)? Além de essa questão abrir



Seria necessário permitir-se uma visão de con- a segunda área de pesquisa (o que significa ter

junto do processo geral de ensino-aprendizagem.



sucesso, para o aluno?), teríamos de reconhecer
que a identificação de indicadores da eficácia do

Vários pesquisadores contemporâneos têm


proposto tais modelos. Bru (1991) propõe um ensino é problemática (Durand, 1996: 9). Assim

modelo da “interação contextualizada”, o qual, como também é problemática a escolha dos



no âmbito de uma abordagem sistêmica, conce- métodos da pesquisa. Duru-Bellat e Mingat pro-

puseram medir “a eficácia pedagógica” por meio


de importância igual a três subsistemas: ensino;


aprendizagem; e contexto. Gauthier (1997) pro- da preeminência dos desempenhos finais mé-

põe um modelo “eclético”, fazendo da classe o dios obtidos por alunos com características in-

telectuais e sociais médias. Mas isso iria, então,


marco de observação privilegiada, sendo que ele


diferenciar eficácia de eqüidade, que é a capaci-


próprio está inscrito dentro de um marco finali-


zado, privilegiando duas funções de base do en- dade de igualar os resultados para alunos com

sino: a gestão da matéria e a gestão da classe. características diferentes (1994: 134-35). Por sua

vez, Felouzis mede o “efeito-professor” pelo di-


Ao levantar a questão da necessidade de evitar


ferencial que existe entre a média da turma e a


formalizações redutoras que fariam esquecer a


complexidade da profissão de professor (Gauthier, média dos exames comuns em finais de ano,

1997: 17), preferimos ressaltar que um melhor co- todo o resto permanecendo igual (sexo, idade,

origem social, escore inicial). Essas maneiras de


nhecimento dos “efeitos-professor” reside nos pro-


proceder demonstram uma certa astúcia e levam


gressos que serão atingidos em três grandes “can-


teiros de obras”, suscetíveis de nos esclarecer so- a resultados interessantes. Mas a área de pesqui-

bre a natureza e a realidade de um “modo de agir sa não se encontra, ainda, fechada.



didático” do professor (Hadji, 1992: 158).


Área 2: as pesquisas sobre o sucesso



Três grandes áreas de pesquisa escolar dos alunos




Área 1: pesquisas sobre a qualidade do


Se o professor “faz a diferença”, qual


desempenho de um professor

seria ela? Como imaginá-la? Como


O que seriam um ensino e um professor de evidenciá-la?


qualidade? A resposta não é evidente. Isso de-



pende dos fins e dos objetivos a que nos propo- Gauthier, 1997: 131

mos (Avanzini, 1991).



A eficácia só existe quando está vinculada a


objetivos. Mas será que a qualidade se resume em Em primeiro lugar, o que significa ter suces-

eficácia? É nisso que consiste a totalidade do pro- so? Não deveríamos falar em fracasso tão cedo

blema das competências do professor, e do pro- nem tão rapidamente, para não sermos vítimas

fessor especialista. Essas competências não po- de imagens e de hierarquias sociais polêmicas.

136
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno

Toda noção de sucesso ou de fracasso é relativa. tão escolher para explicar as diferenças na eficá-



Podemos vislumbrar uma trajetória, um lugar cia? Eis todo o problema das variáveis de coman-



ocupado, um poder adquirido, algumas compe- do e das modalidades de regulagem da ativida-



tências adquiridas: tudo isso vem a ser assunto de pedagógica. A área é extensa. Durand distin-


de apreciação. Não devemos nos deixar sucum- gue cinco níveis de regulagem (ordem; partici-



bir ao mito da trajetória ideal. Isso porque só pação; trabalho; aprendizagem; desenvolvimen-



existe sucesso ou fracasso em relação a projetos. to). Teremos de nos indagar acerca da perti-


Por último, o fracasso escolar não é uma doen- nência da escolha dos meios e dos objetivos in- 137



ça, é preciso fazer uma leitura “em positivo” termediários (Durand, 1996: 134).



(Charlot, 1997) das experiências escolares. Portanto, não é fácil identificar “os mecanis-



Podemos então tomar como único indica- mos pedagógicos que atuam na eficácia dos pro-


dor de sucesso os desempenhos escolares dos fessores” (Felouzis, 1997: 30). Porém surge já um



alunos? Não seria necessário considerar pelo resultado essencial: essa eficácia se constrói na



menos três espaços de investigação: a ativida- interação escolar. É esse espaço de interações



de ou os comportamentos; as aprendizagens; o que deve tornar-se objeto privilegiado de pes-


desenvolvimento (Durand, 1996: 83)? Bressoux quisas, mesmo quando essas interações são



salienta que nós, com freqüência, nos conten- muito difíceis de ser identificadas.

tamos com resultados obtidos em testes de lei-



tura e de matemática, e que isso provoca uma


Conclusão

visão restritiva da eficácia (1994: 125). Indo na



mesma direção, Gauthier deplora a utilização Além de resultados às vezes discordantes



única de testes padronizados centrados em pro- (Felouzis, 1997: 30), podemos considerar

cessos intelectuais (1997: 105). Pois, tal como como comprovada a existência de efeitos-pro-

escreve Cardinet, não deveríamos nos conten- fessor. Entretanto, isso não significa que pos-

tar com “desempenhos escolares brutos, exces- samos colocar à disposição dos professores

sivamente ligados ao conteúdo curricular de um modelo a ser aplicado. As mesmas manei-


cada disciplina e à mercê de seu estudo em aula” ras de agir não são obrigatoriamente eficazes

(1991: 210). E, em último caso, seria melhor ra- com todos e em todos os contextos. É difícil

ciocinar em termos de “progresso dos alunos” generalizar. Se, de um lado, é necessário, nes-

sa área, ajudar os professores a se livrarem de


(Felouzis, 1997: 39), do que em termos de re-


sultados brutos. suas crenças espontâneas, cuja força e fre-



qüência se explicam (Durand, 1996: 192) pelo



caráter “não-observável e retardado no tem-


Área 3: as pesquisas sobre a “causalidade” po dos efeitos das ações que visam ao apren-

pedagógica dizado dos alunos” (ou, dito de outra forma,



Finalmente, tudo conduz a esta área, pois a pela distância que sempre existirá entre ensi-

dificuldade é a de fazer o nexo entre algumas no e aprendizagem), do outro, pela “ausência


práticas de professores (área 1) e o aproveita- de conhecimentos científicos confiáveis e



mento escolar de alunos (área 2) exaustivos para organizar essas ações” (a au-

Seria preciso poder mostrar como, em rigor, sência de um modelo científico de ação), não

os professores fazem as diferenças; como o en- se pode, justamente, dar a acreditar que os re-

sino produz seus efeitos (Gauthier, 1997: 39 e sultados dos trabalhos atuais sobre a eficácia

105). Ora, os resultados escolares obedecem, nós do ensino são suficientes para fundar práti-

já vimos, a um sistema de causalidade comple- cas de formação e de ensino totalmente



xo (Durand, 1996: 5). Isso porque, nós já ressal- confiáveis. Se a pesquisa tem produzido re-

tamos, não são os comportamentos pedagógi- sultados notáveis (o nosso ponto 2), ainda res-

cos isolados, mas sim alguns patterns, ou mistu- ta muito para ser compreendido (o nosso pon-

ras de práticas, que podem produzir seus efeitos to 3) no marco de paradigmas de pesquisa a

(Duru-Bellat e Mingat: 141). Quais variáveis en-


serem atualizados (o nosso ponto 1).



Isso porque “a pesquisa da eficácia ou da


communication. Cousset, Fribourg: Del Val/IRDP, 1991. p.


competência, na base de saberes positivos veri- 199-213.



CHARLOT, B. Du rapport au savoir. Eléments pour une théorie.
ficados, constitui um objetivo legítimo e desejá-


Paris: Anthropos, 1997.


vel” (Gauthier, 1997: 248).


DURAND, M. L’enseignement en milieu scolaire. Paris: PUF,


1996.



DURU-BELLAT, M.; MINGAT, A. La variété du fonctionnement


Bibliografia de l’école: identification et analyse des ‘effets-maîtres’. In:



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In: WEISS, J. (Ed.). L’évaluation: problème de cisco: Jossey Bass, 1987.











As funções docentes


e sua formação




Maria Helena Guimarães de Castro*



Inep/MEC



O esforço empreendido na direção da cação para Todos, que previa elevar a, no míni-

universalização do ensino básico para a popula- mo, 94% a cobertura da população em idade es-

ção de 7 a 14 anos, no país, obteve ótimos resul- colar até 2003.



tados no final da década. De 1991 a 1999, a taxa Garantida a entrada na escola, o problema

de escolarização líquida, que fornece a propor- passa a ser de assegurar as condições de perma-

ção real de crianças, nessa faixa etária, estudan- nência no sistema, bem como o sucesso esco-

do no Ensino Fundamental, saltou de 84% para lar. Houve uma evolução bastante positiva nos

95%. Foi um crescimento extraordinário, dado o indicadores de fluxo, principalmente nas primei-

atraso que tivemos na década anterior, com a es- ras séries do Ensino Fundamental. A promoção

colarização variando apenas de 80% a 84%. Em passou de 60% para 74%, na média do Ensino

1998, o Brasil conseguiu antecipar e superar a Fundamental, entre os anos de 1991 a 1999. Na

meta estabelecida pelo Plano Decenal de Edu- 1ª série, a repetência diminuiu de 48% para 39%,





*Presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e Secretária de Ensino Superior do MEC.

138
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno

no mesmo período, enquanto na 5ª série caiu de zonas, Maranhão, Ceará e Alagoas, que em



38% para 23%. A taxa de distorção idade/série 1998 tinham menos de 90% de crianças de 7 a



caiu de 64,1%, em 1991, para 46,6%, em 1998, e 14 anos no Ensino Fundamental, conseguiram


superar esse patamar em 1999. Se examinar-


41,7% em 2000. A redução continua acentuada


nas séries iniciais, tendência que certamente mos as taxas de escolarização de 1994, verifi-



está associada à iniciativa de muitos sistemas de camos que o Nordeste superou em muito o



ensino de implantar o sistema de ciclos, elimi- patamar em que se encontrava, que era de 77%


nando dessa forma o problema da reprovação. de escolarização líquida. 139



O melhor fluxo, como a menor pressão Contudo, a universalização do ensino



demográfica, vem influenciando uma nova precisa avançar verticalmente, na direção do


Ensino Médio. Na faixa etária dos 15 aos 17


tendência de diminuição das matrículas nas


séries de 1ª a 4ª (gráfico 1). Nas séries de 5ª a anos, os jovens que estão matriculados na



8ª, delineia-se uma fase de estabilidade, evi- escola representam 84,5% do total (taxa de



denciada pela menor pressão das séries ini- atendimento escolar de 1999). Entretanto, a


grande maioria não está efetivamente cur-


ciais.


sando o Ensino Médio: eles ainda estão ten-



Gráfico 1 tando completar o Ensino Fundamental.

Matrículas no Ensino Fundamental Apenas 32,6% dos jovens podem ser compu-

Brasil – 1998-2001 tados nas escolas do Ensino Médio.



Mas uma outra tendência apontada pelos


1 ª a 4 ª série (em mil)


21.333 20.939
últimos dados é que os alunos em atraso escolar

20.212

19.769 estão buscando cada vez mais o ensino de jovens


e adultos, diminuindo a demanda sobre o ensi-



no regular. A matrícula inicial nos cursos presen-


5 ª a 8 ª série (em mil) 15.506 15.601


15.121 ciais de 1ª a 4ª série apresentou um aumento de


14.459

37%, de 2000 a 2001. A matrícula nos cursos de


1998 1999 2000 2001 nível médio cresceu 15%. A Educação de Jovens

e Adultos (EJA) incorporou ao sistema perto de


Fonte: Inep/MEC

410 mil pessoas – 70% no Ensino Fundamental e



Entretanto, ainda é necessário completar a 26% no Ensino Médio – interessadas em concluir


seus estudos. No mesmo período, o Ensino Mé-


universalização da educação básica em dois sen-


tidos. No plano regional, o Norte e o Nordeste dio regular cresceu apenas 2,7%.

do país permanecem com taxas inferiores à meta A maior demanda deve voltar-se, assim, para

o Ensino Superior. Há cada vez mais concluintes


estabelecida e são essas duas regiões que con-


no Ensino Médio para as vagas disponibilizadas


centram cerca de 60% dos cerca de um milhão


de crianças fora da escola. Segundo os últimos pela universidade. Mesmo assim, as universida-

cálculos de escolarização, cruzados com as esti- des públicas preenchem todas as suas vagas, no

início do ano, mas perdem alunos no meio do


mativas populacionais do IBGE, para o ano de


1999,1 os estados de Rondônia, Acre, Maranhão curso, por causa da evasão. As universidades pri-

e Piauí eram os que ainda mantinham a escola- vadas, por sua vez, sequer conseguem preencher

rização abaixo dos 92%. todas as suas vagas nas matrículas iniciais, e fi-

cam, assim, com vagas ociosas durante o ano.


Embora sejam os últimos a completarem a


tarefa da universalização do ensino, os estados Para cada 100 estudantes que ingressaram na

do Norte e do Nordeste vêm melhorando, ano universidade em 1994, 70 concluíram seus cur-

a ano, suas posições. Estados como Acre, Ama- sos no ano de 1999. Nas instituições federais, essa





1
As taxas de escolarização e de atendimento para o ano 2000 serão conhecidas apenas quando o IBGE disponibilizar os dados da

contagem populacional por idade.



relação (concluintes por ingressantes) alcança- Base legal da formação para



va 78%, enquanto nas instituições privadas fi-


a educação básica


cava em 70%.



Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Edu-


Gráfico 2


cação (LDB – Lei nº 9.394/96), artigo 62, e o De-


Concluintes no Ensino Médio – Vagas no creto nº 3.276, de 6 de dezembro de 1999, a for-


Ensino Superior – Brasil – 1991-2000


mação de docentes para atuar na Educação Bási-



Concluintes do Ensino Médio 1787 ca será feita em nível superior, em curso de Li-
1536


no ano anterior (em mil) cenciatura, de graduação plena, em universida-


1330
1164


960 des e instituições superiores de educação. A úni-



749 ca exceção admitida pela LDB para que se formem
639


905


776
professores que não em Licenciaturas Plenas para


634 699
574 o exercício de Magistério na educação básica, é a


517


Vagas no Ensino Superior (em mil) que se faz em nível médio, na modalidade Nor-

1991 1994 1996 1997 1998 1999 2000


mal, que passa a ser formação mínima para o exer-


cício do Magistério na Educação Infantil e nas

Fonte: Inep/MEC

quatro primeiras séries do Ensino Fundamental.



Com esse quadro, o grande compromisso é A Licenciatura curta ou de 1º grau – criada



com a qualidade do ensino. É preciso diminuir a pela Lei nº 5.692/71, artigo 30, como formação

evasão e melhorar o desempenho escolar. Com mínima para o exercício do Magistério no ensi-

relação aos docentes, os desafios são principal- no de 1º grau, da 1ª à 8ª séries – foi extinta em

mente o aprimoramento da formação inicial e conseqüência do que dispõe o artigo 62 da LDB.


continuada de professores, articulado a uma


Apesar disso, ainda continua a ser ministrada em


política de apoio e incentivo ao seu desenvolvi- algumas instituições de Ensino Superior.2



mento profissional, tanto em termos das condi- A Licenciatura Plena – a ser ministrada pelos

ções de trabalho, como salário e carreira. institutos superiores de educação, segundo o


Um dos grandes sinalizadores da política


artigo 7º da Resolução CNE/CP nº 1, de 30 de


nesse sentido tem sido o Fundo de Manutenção setembro de 1999 – pode ser de dois tipos: o cur-

e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de so Normal Superior, para Licenciatura de profis-



Valorização do Magistério (Fundef ). Os resulta- sionais em Educação Infantil e de professores


dos apontam tanto para a elevação do nível sa-


para os anos iniciais do Ensino Fundamental; e


larial do Magistério quanto para o aumento de os cursos de Licenciatura, destinados à forma-



gastos em atividades de capacitação docente, ção de docentes dos anos finais do Ensino Fun-

reforma e ampliação de escolas e aquisição de damental e do Ensino Médio, organizados em


equipamentos e de material didático.


habilitações polivalentes ou especializadas, por


A implantação de sistemas nacionais de ava- disciplina ou área de conhecimento. Ambos de-



liação na educação básica (Sistema Nacional de verão ter duração mínima de 3.200 horas, com-

Avaliação da Educação Básica – Saeb; Exame Na- putadas as partes teórica e prática.

cional do Ensino Médio – Enem) permite identi-


Além desses, nos termos da Resolução


ficar as principais deficiências na aprendizagem CNE nº 2/97, poderão ser desenvolvidos pro-

dos alunos. O nível de escolaridade do professor gramas especiais de formação pedagógica (es-

exerce, aqui, grande influência. O ganho no ren- quemas I e II), destinados aos portadores de

dimento dos alunos manter-se-á ascendente à


diploma de nível superior que desejem ensi-


medida que se elevar a escolaridade do professor nar nas séries finais do Ensino Fundamental

e seu grau de satisfação profissional. ou no Ensino Médio, em áreas de conheci-







2
Ver Pareceres CNE/CES nº 630/97 e CNE/CES nº 431/98, com recomendação para se tornar plena por meio da Resolução CNE/CES nº 2,

de 19/5/1999.

140
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno

mento ou disciplinas de sua especialidade.


Carência de formação


A Lei nº 9.424, de 1996, que regulamentou o



Fundef, estipulou um prazo de cinco anos para Até o ano 2000, o número de professores sem



que os professores leigos obtivessem a habilita- habilitação ainda se encontrava na casa do um mi-


ção necessária ao exercício das atividades docen- lhão. Desses, cerca de 250 mil necessitavam comple-



tes. Para isso, incentivou a aplicação de recursos tar ao menos a formação mínima do Normal Médio,



do Fundo para a capacitação mínima dos pro- para se habilitarem ao exercício das funções docen-


fessores “leigos”, isto é, sem Magistério ou sem 141


tes na escola infantil ou no fundamental de 1ª a 4ª


Licenciatura, para atuar nos níveis de ensino série. Entretanto, se observamos os níveis escolares



apropriados. A LDB foi mais longe ao prever que de 5ª a 8ª série e de Ensino Médio, as necessidades



até o fim da Década da Educação – dezembro de de capacitação aumentam para, pelo menos, 350 mil


2006 – somente serão admitidos professores ha- docentes, que precisarão obter Licenciatura para se



bilitados em nível superior ou formados por trei- habilitar ao exercício das funções docentes nas esco-



namento em serviço. las em que já atuam.




Tabela 1



Funções docentes sem formação mínima (leigos) Brasil – 1996-2000


Nível de formação

Sem magistério Sem licenciatura


Nível de ensino

1996 2000 1996 2000



N.abs. % N.abs. % N.abs. % N.abs. %



Total 297.973 15,4 249.957 11,2 1.096.483 56,7 1.176.031 52,9



Pré-Escola 45.373 20,7 32.462 14,2 183.824 83,7 184.681 80,9


Fundamental de 1ª a 4 ª série

146.311 18,8 96.760 11,9 632.761 81,5 641.569 78,7


Fundamental de 5ª a 8 ª série 59.743 66.948 195.826 245.666


9,8 8,9 32,0 32,8


Ensino Médio 46.546 14,2 53.787 12,5 84.072 25,7 104.115 24,2


Fonte: Inep/MEC, Censos Escolares.




As regiões mais carentes de professores te. Estados do Norte, do Nordeste e do Centro-



com pelo menos o Magistério são o Norte e o Oeste são os que apresentam maior carência de

Nordeste. Os estados do Acre e do Maranhão docentes com Licenciatura. Nos casos de


apresentam mais de 30% de docentes sem Ma- Roraima, Tocantins, Maranhão, Piauí, Bahia e

gistério, atuando no ensino de 1ª a 4ª série. Os Goiás, em cada dez funções docentes, cinco não

estados de Tocantins, Pará, Rondônia, Amazo- têm Licenciatura, embora pelo menos dois te-

nas, Piauí e Ceará estão com pelo menos 20% nham algum curso superior. Outros estados,

dos docentes de 1ª a 4ª série sem Magistério. como Amazonas, Rio Grande do Norte, Sergipe

No ensino de 5ª a 8ª série, também o Norte e o e Mato Grosso, apresentam, em cada dez fun-

Nordeste são carentes de professores com formação ções docentes, quatro sem Licenciatura, com

superior em Licenciatura. Os estados do Tocantins e pelo menos dois tendo algum curso superior.

Roraima, no Norte; Maranhão e Piauí, no Nordeste,



apresentam mais de 70% de docentes sem Licencia-


A formação de professores

tura. Os estados do Amazonas, Bahia, Sergipe e Goiás,



este último já no Centro-Oeste, necessitam formar Os cursos de Magistério estão diminuindo. De


mais de 60% dos seus docentes. Outros estados do


1998 a 2000, a proporção de cursos nessa habilita-


Norte e do Nordeste ainda apresentam pelo menos ção caiu de 30% para 17%, no conjunto dos cursos

50% de docentes sem Licenciatura. de nível médio. As escolas estão se adaptando às



No Ensino Médio, a situação não é diferen- novas demandas do mercado de trabalho, enquan-

to, na área da Educação, a demanda está sendo


Superior, destinados à formação de docentes para


direcionada para a formação de nível superior. Es- a Educação Infantil e para as primeiras séries do



tão sendo criados cursos na modalidade Normal Ensino Fundamental.




Tabela 2



Número de escolas e matrículas no Ensino Médio e na habilitação Magistério



Brasil – 1998-2000



Ano Nº de escolas Matrículas




Ensino Médio Magistério % Ensino Médio Magistério %



1998 17.602 5.261 30 6.968.531 741.625 11




1999 18.603 4.085 22 7.769.199 615.411 8



2000 19.456 3.228 17 8.192.948 518.775 6


Fonte: Inep/MEC – Seec




Os cursos superiores com Licenciatura


em segundo no volume de matrículas (pou-


Plena correspondem a 41% dos cursos de co mais de 20%). É bom lembrar que do to-

graduação do país, segundo dados do Cen- tal de professores que ainda não possuem

so do Ensino Superior de 1999. As matrícu- Licenciatura e atuam na 5ª até a 8ª série do


las apresentaram grande crescimento nas


Ensino Fundamental, bem como no Ensino


regiões Sul e Centro-Oeste, nesta última Médio, cerca de 40% estão na Região Nor-

principalmente por influência do Distrito deste, enquanto outros 30% ainda podem

Federal. Mas o Sudeste continua concen- ser encontrados no Sudeste. A oferta ainda

trando grande parte dos estudantes nessa


está, portanto, invertida, em relação à ca-


habilitação (mais de 40%). O Nordeste vem rência.





Tabela 3

Matrículas em licenciaturas plenas e em pedagogia



Brasil – 1994-1999

Licenciatura plena Pedagogia



Taxa de Concluintes

Matrícula 1994 Matrícula 1999 Matrícula 1999


crescimento 1998

BRASIL 524.140 712.192 36% 167.319 29.032



Norte 5,2% 5,1% 33% 6,5% 6,5%


Nordeste 21,1% 21,2% 36% 18,2% 14,2%



Sudeste 48,8% 44,1% 23% 44,1% 52,1%



Sul 16,6% 20,1% 65% 21,2% 15,9%



Centro-Oeste 8,4% 9,6% 55% 9,9% 11,3%




Fonte: Inep/MEC – Seec




Os cursos de Pedagogia, por sua vez, apre- concentra grande parte dos estudantes. O

sentaram, em 1999, 167 mil alunos matricu- Nordeste cresceu 48%, porém manteve a mes-

lados, sendo 74 mil no Sudeste e 30 mil no ma participação de 18% nas matrículas. Pelo

Nordeste. A Região Sudeste cresceu 37%, des- lado dos concluintes, estes foram 29 mil no

de 1994, abaixo da média do país, mas ainda ano de 1998. O Sudeste formou 15 mil e o Nor-

142
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno

deste, 4 mil. Em resumo, o Sudeste matricu-


crescimento de docentes com nível superior.


lou cerca de 44% do total de estudantes em Na Educação Especial, com um número bem



Pedagogia, no ano de 1999, enquanto forma- menor de alunos e professores, a proporção


va 52%, no ano anterior. O Nordeste, por sua


destes com formação superior é bem maior,


vez, matriculou 18% dos estudantes, enquan-


chegando a 60% nas escolas públicas; as es-


to formava 14%. colas particulares fizeram um ajuste, com



crescimento de 75% dos professores com


143
Perfil atual das funções


grau superior, atingindo agora uma propor-



ção de 40%.
docentes segundo a


A partir da LDB, iniciou-se a integração


formação


das creches no sistema educacional brasilei-



ro. Os censos escolares passaram a incluir to-


Os dados preliminares do Censo Escolar


de 2001 indicam um total de 2,6 milhões de dos os dados referentes a creches. Os anos de



funções docentes no país, 3 com um cresci- 1998 e 1999 foram de regularização do cadas-


tro de estabelecimentos, docentes e matrícu-


mento de 4,2% em relação ao ano anterior e


de 21,6% acumulados desde 1996. O ensino las. A partir de 1999, os registros de matrícu-

○ las se regularizaram, alcançando em 2001 mais
de jovens e adultos cresceu muito nos últimos ○

anos, sendo acompanhado do maior cresci- de um milhão de crianças atendidas. As fun-



mento registrado pelas funções docentes, en- ções docentes cresceram 30,5% nas creches e

tre todos os níveis de ensino. Desde 1996, as 16% nas pré-escolas, de 1999 a 2001. 4

matrículas da EJA

cresceram 35%, en- Tabela 4




quanto os docentes Número de funções docentes por nível de ensino e proporção no setor público

praticamente dobra- Brasil – 2001



ram seu número. Esse


Funções docentes em 2001*


crescimento de do-

Proporção

centes na EJA foi Nível de ensino Crescimento Proporção no


acompanhado de Números absolutos com formação


1996–2001 setor público


superior

maior qualidade no

Total 2.582.369 18,7 80,0 53,7


grau de formação dos


Creche** 63.012 30,5 57,2 12,7


próprios professores,

na medida em que se Pré-Escola 248.470 13,2 66,4 24,7



constata um cresci- Classes de alfabetização 41.094 - 45,6 61,6 9,8



mento ainda maior Fundamental de 1ª a 4ª série 809.061 4,2 87,1 27,1



entre os docentes de Fundamental de 5ª a 8ª série 770.077 25,9 83,5 74,4


nível superior (tabe-


Ensino Médio 448.328 37,2 75,0 88,8


las 4 e 5).

Educação Especial 42.628 30,1 46,4 48,5


Tanto na Educa-

Educação de Jovens e Adultos 159.699 99,9 85,0 63,7


ção Infantil, como na


Educação Especial, os Fonte: Inep/MEC, Censos Escolares. Notas: * Dados preliminares. ** O crescimento nas creches só pode ser mensurado

dados apontam tam- em relação ao ano de 1999. Obs: As funções docentes contabilizam professores que atuam em mais de uma modalidade

bém para um grande de ensino e em mais de um estabelecimento escolar.









3
O conceito de função docente é utilizado para contabilizar todas as situações de docentes que atuam em mais de uma área de conhecimen-

to ou em mais de um estabelecimento escolar.



4
Dados preliminares do Censo Escolar de 2001.

O crescimento foi Tabela 5



bem maior entre os pro-


Funções docentes com formação superior por nível de ensino


fessores com nível supe-
Brasil – 1996-2001


rior. O crescimento foi de


Funções docentes com formação superior*


73% nas creches e de 29%


Crescimento


nas pré-escolas. Porém os Proporção (%)
Nível de ensino 1996-2001


docentes com nível supe-


Público Privado Público Privado


rior representam peque-


1996 2001 1996 2001


na proporção no quadro


Total 40,0 37,2 45,0 52,2 54,5 59,6


de professores que aten-


Creche** 65,2 81,8 8,3 11,3 11,6 14,6
dem nas creches. Nos es-


Pré-Escola 38,4 93,3 19,2 24,5 16,2 25,0


tabelecimentos públicos,


Classes de alfabetização - 64,8 112,8 5,0 4,4 10,4 18,5


esses professores repre-


sentavam 8% em 1996 e Fundamental de 1ª a 4ª série 32,9 71,8 19,5 25,1 26,2 40,8
passaram a 11% em 2001. Fundamental de 5ª a 8ª série ○


○ 29,1 19,2 72,4 72,6 79,3 84,0
Nos estabelecimentos Ensino Médio 47,2 25,6 86,4 88,5 86,3 89,9

privados, os docentes Educação Especial 28,0 74,6 48,5 57,3 37,0 41,0

com formação superior


Educação de Jovens e Adultos 144,9 66,7 52,3 59,6 74,6 86,7


passaram de 12% para



15% entre o total de pro-


Fonte: Inep/MEC, Censos Escolares. Notas: *Dados preliminares. **O crescimento nas creches só pode ser mensurado em relação

fessores. ao ano de 1999. Obs.: As funções docentes contabilizam professores que atuam em mais de uma modalidade de ensino e em

Nas pré-escolas, os mais de um estabelecimento escolar.



docentes com formação



superior representam 25% do total. Na


Tabela 6

Região Sudeste, as pré-escolas públi-


cas chegam a 40%. No Sul e no Cen- Número de funções docentes com e sem curso específico

tro-Oeste esse índice está acima dos em Pré-Escola, por dependência administrativa e grau de formação

Brasil e Regiões – 2001


32%. O Norte e o Nordeste mantêm,



ainda, baixa proporção de docentes Pré-Escola


com nível superior, que só é atenuada


Unidade da Pública Privada


nos estabelecimentos privados. No Federação


Superior Médio Superior Médio


Total Total

Nordeste, nas pré-escolas públicas, (%) (%) (%)


(%)

eles não passam dos 6%. Nas pré-es-


BRASIL 165.011 24,5 67,2 83.459 25,0 70,1

colas particulares atingem a propor-


Norte 13.242 2,9 82,7 3.524 8,3 85,6


ção de 11% (tabela 6).


Nordeste 54.410 5,9 75,9 23.960 10,7 81,1


As funções docentes com nível supe-


Sudeste 66.962 40,5 58,8 38.858 31,8 65,4


rior são requisito necessário, pela LDB.


Entretanto, creches e pré-escolas são Sul 22.564 32,1 64,3 11.028 36,9 58,4

compostas em sua maioria por profes- Centro-Oeste 7.833 32,8 61,2 6.089 26,7 69,3

sores de nível médio, com Magistério


completo. Representam mais de 60% do Fonte: Inep/MEC – Seec, Censo Escolar 2001 (resultados preliminares)

total de docentes. Essa é a formação mí-


Os docentes no Ensino

nima recomendada para o exercício das funções



docentes no ensino infantil. Nas creches, cerca


Fundamental

de 30% dos docentes ainda não contam sequer



com o curso Normal Médio. Nas pré-escolas, esse O Ensino Fundamental, de acordo com os

percentual cai pela metade – cerca de 15% pos- dados preliminares do Censo Escolar de

suem o nível médio, mas sem Magistério, ou 2001, ocupa 1,6 milhões de funções docen-

apresentam apenas o nível fundamental. tes. Nas séries de 1ª a 4ª, cerca de 25% pos-

144
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno

suem formação em nível superior, enquanto ficação dos docentes é necessária, as escolas



nas séries de 5ª a 8ª, os docentes com forma- particulares alteraram a proporção de 79%



ção superior representam 74%. O número de para 84%, no mesmo período, enquanto nas es-


funções docentes cresceu 14%, no período de


colas públicas o percentual manteve-se próxi-


1996 a 2001, enquanto o crescimento dos mo dos 73% (tabela 5).



professores de nível superior, no mesmo pe- Dentro do que recomenda a lei vigente,



ríodo, foi de 30%. as funções docentes em exercício nas séries


As escolas particulares possuem menor nú- de 1ª a 4ª precisam ter, no mínimo, Magisté- 145



mero de professores do que as escolas públi- rio completo. Atualmente, quase 90% das



cas, porém o ajuste foi maior no sentido do au- funções docentes estão enquadradas nesse


mento do grau de formação. Nas séries de 1ª a


requisito. Se formos considerar apenas os


4ª, em que a proporção das funções docentes docentes com formação superior, com Ma-



com formação superior não é alta, as particu- gistério ou Licenciatura, esse percentual cai-



lares registraram alteração de 26% para 41%, ria para 24%. Em uma perspectiva mais fle-


no período de 1996 a 2001. Nas escolas públi-


xível, restam pelo menos 11% de professores


cas, a proporção ainda não superou os 25%. que precisam agregar o curso Normal aos



Nas séries de 5ª a 8ª, em que uma maior quali- seus currículos (tabela 7).


Tabela 7


Proporção das funções docentes segundo o grau de formação


Brasil 1996-2000


Ensino Fundamental

Pré-Escola Ensino Médio


Grau de formação 1ª a 4ª série 5ª a 8ª série



1996 2000 1996 2000 1996 2000 1996 2000




Total de docentes 219.517 228.335 776.537 815.079 611.710 749.255 326.827 430.467

100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0



No máximo Fundamental completo 16,1 9,3 15,3 8,1 1,0 0,6 0,3 0,1

Médio sem Magistério 4,3 4,4 3,3 3,3 6,6 6,1 6,4 6,1

Magistério 61,4 63,2 61,1 64,0 18,7 19,2 6,9 5,3


Superior 18,2 23,1 20,3 24,6 73,7 74,1 86,4 88,4



– Sem Magistério e sem licenciatura 0,3 0,5 0,3 0,4 2,2 2,2 7,5 6,2

– Com Magistério e sem licenciatura 1,7 3,5 1,5 2,9 3,5 4,7 4,6 6,4

– Com licenciatura 16,3 19,1 18,5 21,3 68,0 67,2 74,3 75,8



Fonte: Inep/MEC – Seec. Obs.: As funções docentes contabilizam professores que atuam em mais de uma modalidade de ensino

e em mais de um estabelecimento escolar.




Nas séries de 5ª a 8ª, em que a determina- dade, mas esse movimento ainda não conse-

ção legal vai no sentido de que todos os profes- guiu causar impacto na proporção dos docen-

sores tenham formação superior com Licenci- tes que já possuem Licenciatura completa. Des-

atura completa, o percentual de cobertura da se modo, cerca de 25% dos docentes, com for-

legislação está ainda em 67%. No período 1996- mação média, com ou sem Magistério, preci-

2000, houve uma tendência para o crescimen- sarão se adequar à legislação, formando-se no

to dos docentes com Magistério, com ou sem nível superior. Outros 7% precisarão se adequar

curso superior. Parece estar havendo um ingres- à legislação apenas acrescentando o curso de

so de professores com Magistério na universi- Licenciatura a seus currículos.




Os docentes no Ensino Médio


completa. Atualmente, cerca de 76% das



funções docentes estão enquadradas nesse
O Ensino Médio incorporou 3,5 milhões


requisito. Restam pelo menos 12% de pro-


de novas matrículas, desde 1994. Em sete


fessores que precisam agregar à sua forma-


anos, cresceu o equivalente ao registrado nos


ção o curso de Licenciatura. Outros 11% de


14 anos anteriores, ou seja, 70% de cresci-


docentes ainda não possuem graduação su-
mento. Também o número de estudantes que


perior e, portanto, precisarão se adequar à


concluem esse nível de ensino cresceu. De


legislação (tabela 7). Professores com Ma-


1991 a 1994, o número de concluintes havia


gistério estão ingressando na universidade
aumentado 40%, passando de 660 mil para


e adquirindo formação superior. A propor-


917 mil concluintes. A partir de 1994, o siste-


ção dos docentes com nível médio e Magis-


ma promoveu um melhor fluxo escolar, al-


tério vem decrescendo, enquanto aumenta


cançando em 2000 um número duas vezes


aqueles com Magistério e formação superi-
maior de concluintes (1.850 mil).

or. Entretanto, ainda lhes falta o curso de Li-

O Ensino Médio apresenta perto de 450 ○

cenciatura.

mil funções docentes, pelos dados ainda


preliminares do Censo Escolar de 2001. Des-



ses, quase 90% têm formação superior. O nú- Os docentes



mero de funções docentes cresceu 37%, no


no Ensino Superior

período de 1996 a 2001, refletindo pratica-


mente o mesmo crescimento dos professo- A expansão da matrícula no Ensino Médio,



res de nível superior (41%). No ano de 2000, que se acentuou nos últimos cinco anos, vem

de cada 100 novas funções docentes, 95 fo- provocando um aumento na demanda por va-

ram preenchidas com professores de nível gas no Ensino Superior. Em 1990, havia cerca

superior, sendo que 81 com Licenciatura. de 640 mil alunos concluintes no nível médio e

Enquanto isso, outros 5% continuaram sen- aproximadamente 520 mil vagas no Ensino Su-

do de docentes com formação média, sem perior, o que estabelecia uma relação de prati-

Magistério. As escolas ainda estão absorven- camente 1,2 alunos por vaga. Em 1999, mais de

do professores com nível médio, principal- 1,7 milhão de estudantes concluiu o Ensino Mé-

mente em estados do Nordeste e do Centro- dio para cerca de 900 mil vagas oferecidas para

Oeste (tabela 8). o Ensino Superior, fazendo a relação aproximar-


se de 1,9 alunos por vaga.


As escolas particulares de Ensino Médio


também possuem menor nú-



mero de professores do que Tabela 8



as escolas públicas, porém


Número de funções docentes no Ensino Médio por grau de formação


também aqui o ajuste foi


Brasil e Regiões – 2000

maior no sentido do aumen-



to do grau de formação. As Ensino Médio


Unidade da Formação média Formação superior


particulares alteraram a pro-


Federação

porção de docentes com ní- Crescimento Crescimento


Nº absoluto (%) Nº absoluto (%)

vel superior de 86% para 90%, 1996-2000 1996-2000



enquanto nas escolas públi- BRASIL 49.176 11,4 13% 380.679 88,4 35%

cas o percentual passou de Norte 3.722 16,2 10% 19.268 83,8 45%

86% para 88%.


Nordeste 19.279 21,4 12% 70.767 78,4 34%

Dentro do que a LDB de-


Sudeste 14.037 6,5 10% 201.871 93,4 40%


termina, as funções docen-


Sul 5.641 8,2 11% 62.932 91,5 19%


tes em exercício no Ensino


Centro-Oeste 6.497 20,1 31% 25.841 79,8 34%


Médio devem ter formação


superior com Licenciatura Fonte: Inep/MEC – Seec. Censo Escolar 2001 (resultados preliminares)

146
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno

Nos seis anos que vão de 1994 a 2000, o


Nesse universo, a proporção dos profes-


Ensino Superior incorporou um milhão de sores com pós-graduação, em cursos de



estudantes nos cursos de graduação. De 1997 Mestrado ou Doutorado, cresceu substanci-



a 2000 – o período de maior crescimento – a almente. Em 1999, 50% das funções docen-


taxa média de expansão foi de 11,5% ao ano.


tes já eram ocupadas por professores com


Esse percentual é praticamente o mesmo grau de mestre ou de doutor, sendo que os



atingido pelo sistema em toda a década de professores com título de doutor represen-


1980 (11,8%). 147


tavam 20% do total (tabela 9). Nas institui-


A rápida expansão da matrícula repercu- ções públicas federais e estaduais, a propor-



te, obviamente, no aumento do número de ção de professores titulados é bem mais alta.



professores no Ensino Superior, que também De cada dez funções docentes, pelo menos


vem se dando de forma acelerada. Em 1994,


seis são de mestres ou doutores e, entre es-


contavam-se 141 mil professores em exercí- tes, pelo menos três são doutores. Nas insti-



cio em todas as instituições. Em 1999, esse tuições privadas, de cada dez funções docen-



número passou para 174 mil. O crescimento tes, pelo menos quatro são de mestres ou


médio no período 1994-1999 foi de 4,2% ao


doutores, entre os quais pelo menos um

ano, sendo que de 1998 a 1999 o crescimen- apresenta titulação no Doutorado.

to foi de 5,3%. O percentual de professores sem pós-gra-



Tabela 9



Ensino Superior: Docentes com mestrado e doutorado


Brasil – 1994-1999


Total Mestrado Doutorado



Nº absoluto % Nº absoluto % Nº absoluto %



1994 Total 141.482 100,0 33.531 23,7 21.326 15,1



Pública 75.285 53,2 21.268 28,2 16.850 22,4




Federal 43.556 30,8 14.899 34,2 9.147 21,0



Privada 66.197 46,8 12.263 18,5 4.476 6,8



1998 Total 165.122 100,0 45.482 27,5 31.073 18,8



Pública 83.738 50,7 25.073 29,9 23.544 28,1



Federal 45.611 27,6 16.371 35,9 13.170 28,9




Privada 81.384 49,3 20.409 25,1 7.529 9,3



1999 Total 173.836 100,0 50.849 29,3 34.937 20,1



Pública 80.883 46,5 24.231 30,0 25.360 31,4



Federal 46.687 26,9 16.496 35,3 14.651 31,4



Privada 92.953 53,5 26.618 28,6 9.577 10,3




Fonte: Inep/MEC



duação apresentou uma grande queda, de lização mostrou uma pequena elevação, de

34,5% para 15%, no período de 1990 a 1999.


31,6% para 35%, no período 1990-1998, man-


Esses professores mantêm o mesmo percen- tendo-se nessa proporção em 1999. Nas insti-

tual de 15% tanto nas instituições públicas tuições públicas, os docentes com especiali-

como nas particulares. zação representam 23%, enquanto nas parti-


A categoria dos professores com especia- culares somam 45%. A proporção de profes-


docente, referenciados em padrões de


sores com mestrado cresceu de 21% para 29%


e a de professores com doutorado, de 13% qualidade.



para 20% (gráfico 3). • Novas tecnologias de informação nas es-



colas e como suporte a programas de edu-


cação a distância, inclusive voltados para


Gráfico 3


a formação continuada e para a capacita-


Docentes no Ensino Superior – Proporção ção de professores.



segundo o grau de formação – Brasil 1990-1999


• Elaboração e disseminação de diretrizes


e parâmetros curr iculares nacionais,


40,0


abrangendo desde a Educação Infantil até


35,0
o Ensino Médio, passando pelo Ensino



30,0 Fundamental, pela Educação Indígena,



25,0 pela Educação de Jovens e Adultos e pela


20,0 formação de professores.


15,0 ○

• Implantação de sistemas nacionais de ava-
10,0 liação na educação básica: o Saeb e o Enem.

1990 1994 1998 1999


• A criação do Fundef, no sentido de promo-


Sem pós-graduação Especialização


ver maior eqüidade no financiamento do


Mestrado Doutorado

ensino obrigatório e de assegurar condi-


Fonte: Inep/MEC ções mínimas para a remuneração mais



digna dos profissionais da educação, bem



como para sua formação.


A qualidade do ensino


A busca de qualidade e a promoção de


Resultados obtidos

maior eqüidade do sistema de ensino pas-


pelo Fundef

saram a ocupar lugar de destaque na nova



agenda das políticas de educação básica. A A lei que instituiu o Fundef (Lei nº 9.424,

correção do fluxo escolar foi uma das medi- de 24/12/1996) assegura a utilização de, pelo

das pelas quais se buscou combater a baixa


menos, 60% (sessenta por cento) dos recur-


eficiência dos alunos e a pouca efetividade


sos do Fundo para a remuneração dos pro-


do ensino. Como um dos resultados dessa fissionais do Magistério em efetivo exercício



política, o número de concluintes do Ensino de suas atividades no Ensino Fundamental


Fundamental cresceu a uma taxa de 10% ao


público.

ano, desde 1994. Por sua vez, a proporção de


Estudos recentes realizados pelo MEC e pelo


estudantes em atraso escolar, que era de 60% Inep analisaram dados sobre os níveis salariais

em 1994, baixou para 42% no ano de 2000. dos docentes e chegaram a conclusões anima-

Mas outras estratégias também se interliga-


doras a respeito desses níveis assim como sobre


ram nesse esforço: a formação desses docentes.



• O aprimoramento do sistema de forma- Um dos trabalhos5 analisou os dados de uma



ção inicial e continuada de professores, pesquisa amostral, realizada pela Fipe/USP em


articulado a uma política de apoio e in-


300 redes públicas de Ensino Fundamental, com-


centivo ao seu desenvolvimento profis-


preendendo a totalidade das redes estaduais e

sional.

do Distrito Federal e as redes municipais perten-



• O desenvolvimento de sistemas de ava- centes às 26 capitais e mais 273 municípios.


liação de aprendizagem e do desempenho


Uma das conclusões do estudo foi que:







5
Semeghini, Ulysses. Fundef : uma revolução silenciosa. Departamento de Acompanhamento do Fundef/MEC.

148
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno

cenciatura Plena. Dessa forma, a remunera-


Os reajustes foram maiores nas redes munici-


pais em todas as regiões, o que é ainda mais sig- ção média total na região, que correspondia



nificativo, levando-se em conta que foi nessas a 49% da média nacional em 1997, ascende-


redes que aumentou substancialmente o núme-


ra a 61% em 2000.


ro de docentes. Entretanto, mesmo as



redes estaduais reajustaram seus sa-
lários em níveis superiores ao da in- Tabela 10




flação no período. Os maiores índices Remuneração média, em reais, dos professores com licenciatu- 149


ra do Ensino Fundamental – 40h semanais 1997/2000


foram concedidos aos profissionais


dos municípios e regiões mais pobres, Taxa de


Dez./1997 Jun./2000


com o que reduziu-se a distância en- crescimento


tre seus vencimentos e a média das


Municipal 1.079 1.299 20%


demais regiões. No Norte e no Nor-


BRASIL Estadual 965 1.266 31%


deste, em que pese transferirem re-


cursos aos municípios, os estados Total 1.005 1.278 27%



concederam aumentos médios em Municipal 821 985 20%



suas redes bem maiores do que os es-
Norte Estadual 780 968 24%

tabelecidos no Sul, no Sudeste e no

Centro-Oeste.
Total


778 973 25%
Municipal 626 824 32%

Segundo o trabalho, a remunera- Nordeste Estadual 522 722 38%



ção média dos professores das redes Total 560 763 36%

públicas aumentou 29,5%, entre de- Municipal 1.268 1.531 21%


zembro de 1997 e junho de 2000. As


Sudeste Estadual 1.125 1.554 38%


duas categorias funcionais mais repre-


Total 1.165 1.545 33%


sentativas – os profissionais com for-


Municipal 955 1.168 22%


mação em nível médio na modalidade


Sul Estadual 811 954 18%

Normal e os portadores de curso supe-


Total 855 1.030 20%


rior com Licenciatura Plena – obtive-


Municipal 750 1.002 34%


ram, nesse período, elevações salariais


Centro-Oeste Estadual 924 1.186 28%


de 23% e 27%, respectivamente. A re-


muneração média nacional dos profes- Total 880 1.141 30%



sores com nível médio completo na Fonte: DAF/MEC, Pesquisa Fipe/USP, 2000

modalidade Normal, que em dezem-



bro de 1997 era de R$578,00 para a jor-


nada de 40 horas, passou a R$710,00 em junho Analisando comparativamente a evolução da



de 2000. Já os docentes de formação superior remuneração dos docentes pertencentes às re-



com Licenciatura Plena passaram de R$1.005,00 des estaduais e municipais, verificou-se que, no

para R$1.278,00, no mesmo período e para idên- período, houve aumento médio de 33,3% nas

tica jornada. redes municipais e de 25,2% nas estaduais. Esse



Quando se analisaram os dados referen- foi um dos reflexos diretos da redistribuição dos

tes às várias regiões do país, constatou-se recursos que beneficiou intensamente os muni-

que o maior percentual de aumento da remu- cípios, justamente os que dispunham de meno-

neração ocorreu no Nordeste, onde a eleva- res possibilidades para arcar com essas eleva-

ção média foi de 59,7%, sendo de cerca de ções, antes da criação do Fundef.6

54% para os professores com modalidade No tocante aos professores com Licenciatu-

Normal e de 36% para os docentes com Li- ra Plena, as redes sediadas na Região Sudeste





6
Segundo informa o estudo, a inflação no mesmo período, medida pelo INPC/IBGE, foi da ordem de 12%.


concederam, no período de dezembro de 1997 maior da eqüidade nos salários dos professores


a junho de 2000, uma elevação salarial média no país, que é um dos objetivos declaradamente



de cerca de 33%. No Nordeste, os docentes com almejados na criação do Fundo.



essa mesma formação pertencentes às


redes estaduais foram os que obtiveram Tabela 11



os maiores aumentos, alcançando 38% Salário médio, em reais, dos professores



em média. Já dentre as redes munici- do Ensino Fundamental, em escolas públicas – 40h semanais


Brasil –1996-1999


pais, as maiores elevações salariais nes-


sa categoria aconteceram na Região Taxa de crescimento


1996 1997 1998 1999


Centro-Oeste, atingindo 34%, e no Nor- 1996-1999



deste, 32%. BRASIL 557 585 626 670 20%


Outro estudo 7 analisou dados


Norte 510 482 516 593 16%


extraídos das Pesquisas Nacionais por


Nordeste 345 354 423 451 31%

Amostra de Domicílio (PNAD), realiza-

Centro-Oeste 559 551

628 672 20%
das pelo Instituto Brasileiro de Geogra- ○

fia e Estatística (IBGE). Chegou a con- Sudeste 709 778 845 893 26%

clusões que indicam melhorias salari- Sul 604 665 656 749 24%

ais e de formação profissional.


Fonte: Estimativas Inep/MEC–Seec a partir de dados IBGE/PNAD 1996, 1997, 1998 e 1999.

Os dados mostram um claro e progressivo au- O t ra b a l h o o b s e r va , t a m b é m , q u e o



mento dos salários médios dos professores no Fundef teve impacto positivo sobre a forma-

país com a implantação do Fundef e a diminui- ção dos professores. Entre 1996 e 2000, o nú-

ção das diferenças regionais. Antes do Fundef,


mero de professores de 1ª a 4ª série sem for-


a evolução dos salários dos professores era mais


mação mínima (Ensino Médio completo) re-

lenta no conjunto do país, além de muito hete-


duziu-se em 44,1%; enquanto o número de

rogênea.[...]

professores com formação adequada aumen-


Os números mostram evolução contínua da me-


tou em 13,8%. Já o número de docentes de 5ª


lhoria na formação docente, embora de forma

a 8ª série sem formação mínima (Ensino Su-


mais clara e acentuada entre os professores de


perior completo) chegou a crescer 20,6%; en-


1ª a 4ª série.

quanto o de docentes com a formação míni-



Segundo o trabalho, na vigência do Fundef, ma aumentou em 23,2%.


em 1998, registrou-se o maior aumento de salá- O acréscimo de funções docentes para as



rio na Região Nordeste (19,5%), bem como au- séries iniciais do Ensino Fundamental, entre

mentos variáveis nas demais regiões, com exce- 1996 e 2000, foi de apenas 5%, acompanhando a

ção do Sul. Nos dois anos anteriores ao Fundef, redução da demanda nessas séries. Assim, foi

a relação entre o menor e o maior salário médio possível que o investimento na melhoria da for-

regional – Nordeste e Sudeste, respectivamente mação daqueles professores tivesse um impac-



– havia aumentado (chegando a 2,2 vezes em to mais evidente nas estatísticas. Já nas séries

1997), ocorrendo o inverso nos anos posteriores finais, as funções docentes precisaram crescer

(caindo a relação para 1,98 em 1999). 22%, o que certamente exigiu a incorporação de

Nos anos de 1998 e 1999, observa-se a ocor- professores sem a formação mínima recomen-

rência de ganhos positivos em todas as regiões, dada, uma vez que a oferta de profissionais com

sendo esses maiores nas regiões mais pobres


a qualificação necessária tem sido menor que a


(27% no Nordeste; 23% no Norte; 22% no Cen- demanda, principalmente nas regiões e cidades

tro-Oeste). Está havendo, portanto, um alcance mais carentes.






7
Coelho, Ricardo. O Fundef e a nova orientação das políticas educacionais nos anos 90: princípios e resultados. Inep/Gabinete

da Presidência.

SIMPÓSIO 10

ARTICULAÇÃO ENTRE AS
FORMAÇÕES INICIAL E
CONTINUADA DE PROFESSORES
Rui Canário

Célia Maria Carolino Pires

Charles Hadji

151
O papel da prática




profissional na formação




inicial e contínua de




professores





Rui Canário



Universidade de Lisboa, Portugal







Resumo



Nesta intervenção procede-se a uma análise da ○

aponta para a necessidade de construir relações


importância e do papel da prática profissional na estratégicas entre a formação e o trabalho, a partir

formação dos professores, entendendo esta como da exploração das potencialidades formativas do

um processo permanente que integra, de modo exercício profissional. O modo como é concebida

articulado, a formação inicial e a formação contí- e concretizada a componente da prática profissio-



nua. Encarando a formação como um processo de nal na formação de futuros professores pode con-

socialização profissional, defende-se a tese de que figurar-se como um elemento estruturante de po-

as escolas constituem os lugares onde os professo- líticas integradas de formação inicial e contínua,

res aprendem a sua profissão. Essa perspectiva de investigação e de intervenção nas escolas.






O desenvolvimento da investigação e da re- to dos estabelecimentos de ensino da região.



flexão sobre as práticas formativas tem contri- Na base da minha argumentação estarão

buído para colocar no centro da problemática subjacentes duas teses: a primeira é a de que os

da formação profissional (nomeadamente da professores aprendem a sua profissão nas es-


formação de professores) a questão da colas e a segunda (que decorre da primeira) é a



revalorização epistemológica da experiência. de que o mais importante na formação inicial



Assim, nesta intervenção, procurarei, por um consiste em aprender a aprender com a experi-

lado, explicitar qual a pertinência dessa ência. A enfatização e o desenvolvimento da


revalorização da experiência na formação de formação de professores, que marcaram, em



professores e quais os modos da sua tradução Portugal, as décadas de 1980 e 1990, situaram-

curricular, no âmbito da formação inicial. Por se nos antípodas dessas duas teses.

outro lado, considerando a formação inicial de


Com efeito, prevaleceu uma visão dicotômica


professores como a primeira etapa de um em- entre a formação inicial e a formação contínua,

preendimento de formação contínua, desenvol- sustentada por uma concepção cumulativa do



verei argumentação no sentido de defender a processo formativo em que este é encarado como

idéia seguinte: a articulação entre a formação e


a adição de duas etapas complementares, relati-


o exercício do trabalho (quer dizer, a designada vamente estanques, articuladas de modo



“prática pedagógica”) constitui o ponto seqüencial e linear. Essa visão da formação, como

nevrálgico da organização curricular dos cursos uma sucessão hierarquizada de etapas cuja ordem

de formação inicial de professores. O modo de determina a natureza e a importância das moda-



abordar essa questão pode ser estruturante, quer lidades formativas, nega a continuidade da for-

de uma política de investigação, quer de uma mação como algo que é inerente a todo o ciclo de

política de formação contínua e intervenção jun- vida profissional e baseia-se em duas idéias es-

152
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

senciais: a primeira é a de afirmar a predominân- dor corporativo tem vindo a empobrecer, quer



cia estratégica da formação inicial que precede e em termos estratégicos, quer em termos meto-



determina as posteriores situações formativas; a dológicos, o debate sobre a formação profissio-



segunda é a de pensar a formação inicial a partir nal dos professores.


de um paradigma de racionalidade técnica, em No quadro de um paradigma de educação



que se procede a uma justaposição hierarquizada permanente, a formação profissional, nomea-



de saberes científicos, mais saberes pedagógicos, damente de professores, não pode ser entendi-


mais momentos de prática (entendida como uma da como circunscrevendo-se a uma primeira e 153



“aplicação”). curta etapa, prévia ao exercício do trabalho,



Da primeira idéia decorre o caráter supleti- mas, pelo contrário, como um processo que é



vo da formação contínua à qual se atribui uma inerente à globalidade do percurso profissional.


função corretiva quer das inevitáveis “lacunas” Tendem, portanto, a esbater-se as fronteiras que



da formação inicial, quer da, igualmente inevi- tradicionalmente separam a formação inicial da



tável, obsolescência dos conhecimentos adqui- formação contínua o que conduz à conclusão



ridos. Da segunda idéia decorrem modalidades lógica de que ambas as vertentes deverão ser


de ação que limitam a eficácia da formação na asseguradas, de modo integrado, por uma mes-



medida em que, reduzindo tendencialmente o ma instituição. Cada vez mais a tendência será

papel do professor ao de um técnico, ignoram a para que nos públicos do Ensino Superior haja

vertente “artística”, inquiridora e reflexiva da uma importância crescente da fração de pes-


sua intervenção, em situações reais marcadas soas adultas que têm ou tiveram uma experi-

pela complexidade, pela incerteza e pela singu- ência profissional e que, ao longo da sua vida,

laridade. Pérez Gomez sintetiza bem os limites recorrerão às escolas do Ensino Superior como

desse paradigma de racionalidade técnica: instituições especializadas de formação.



Essas emergem como instituições de forma-



Os problemas da prática social não podem ser ção permanente (nas quais a formação

reduzidos a problemas meramente instrumen- profissional contínua ocupa um lugar estraté-


tais, em que a tarefa profissional se resume a gico fundamental) e não como escolas de for-

uma acertada escolha e aplicação de meios e mação profissional inicial que, de forma subsi-

procedimentos. De um modo geral, na prática


diária, desenvolveriam atividades de extensão


não existem problemas, mas sim situações pro-


educativa dirigidas aos profissionais em exer-


blemáticas que se apresentam freqüentemente


cício. No caso das escolas de formação de pro-

como casos únicos que não se enquadram nas


fessores, dessa situação decorrem naturalmen-


categorias genéricas identificadas pela técnica


e pela teoria existentes. Por essa razão, o profis- te conseqüências importantes relativamente à

sional prático não pode tratar essas situações concepção das funções das instituições, das

como se fossem meros problemas instrumen- suas políticas, do perfil e formação do seu pes-

tais, suscetíveis de resolução através de regras soal docente, do desenho curricular dos seus

armazenadas no seu próprio conhecimento ci- cursos, da construção da sua oferta formativa.

entífico-técnico. (1992: 100)



Formação e mundo do

No que diz respeito ao debate sobre as polí-


ticas e as práticas de formação de professores, trabalho: da previsibilidade



a intervenção das instituições do Ensino Supe-


à incerteza

rior tem revelado tendência a pautar-se, em lar-



ga medida, por critérios de defesa de interesses Em termos de evolução recente, a mais im-

corporativos. Para as instituições formadoras portante mudança registrada no campo da for-



está em causa a criação de condições que lhes mação profissional é a da passagem de uma re-

permitam instituírem-se como lugares legíti- lação de previsibilidade, em relação ao mundo



mos de produção dos saberes legítimos, do trabalho, para um outro tipo de relação mar-

estruturantes da profissão docente. Esse pen- cado pela incerteza. Com efeito, o “fim das cer-


tezas” (Prigogine, 1996) é algo que afeta não ape- continuar a conceber o trabalho humano como



nas o modo como percebemos hoje o mundo da algo suscetível de ser objeto de uma descrição



natureza, mas também toda a vida social. Essa fina, a priori, para, em seguida, traduzir essa



nova relação de incerteza vem pôr em causa os descrição em termos de estratégias pedagógicas,


dois elementos que foram os pilares de uma re- de objetivos pedagógicos, de conteúdos a ensi-



lação outrora tida como harmoniosa. O primei- nar, de gestos a adquirir, de tal modo que os



ro elemento corresponde a conceber a relação formandos venham a poder encaixar-se nos per-


entre os sistemas de formação e o sistema mer- fis profissionais previamente definidos. Essa



cado de trabalho de acordo com um modelo de perspectiva de descrição a priori não só não se



adequação. O segundo elemento corresponde a coaduna como é contraditória com processos de



ler a articulação entre a formação e o desempe- exercício do trabalho que mudam de forma ace-


nho profissional de acordo com um modelo de lerada, adquirindo contornos e configurações



adaptação funcional. Ambas as perspectivas es- que não é possível prever de modo preciso. A



tão, hoje, postas em causa em face das evoluções emergência da incerteza na relação formação–


que se registraram quer no mundo do trabalho, ○
trabalho é alimentada por três grandes fenôme-
quer no mundo da formação profissional. nos: são eles a intensificação da mobilidade pro-

A primeira perspectiva supõe uma atitude oti- fissional, a rápida obsolescência da informação

mista relativamente às virtualidades de um plane- e as mutações das organizações de trabalho.



jamento da formação capaz de responder às “ne- A mobilidade profissional intensificou-se de


cessidades” do mercado de trabalho, o que impli- forma muito rápida nas três últimas décadas.

caria que este fosse relativamente estável ou que, Hoje, em vez de se afirmar que as pessoas

em alternativa, se apresentasse com uma evolu- aprendem uma profissão, será cada vez mais

ção previsível. A segunda perspectiva implica pres- pertinente pensar na diversidade de atividades

supor a possibilidade de proceder à transferência que cada pessoa desenvolve no quadro da sua

quase automática das aquisições realizadas duran- trajetória profissional. Quer isso dizer que a ati-

te a formação, para o “posto de trabalho” (onde vidade profissional de cada um só faz sentido

seriam aplicadas), fazendo abstração das condi- se for encarada numa perspectiva diacrônica

ções sociais (organizacionais) em que se exerce o que abrange todo o período de vida profissio-

trabalho, bem como do caráter indeterminado e nal ativa. Ao longo desse ciclo as pessoas mu-

“construído” dessas condições. Desse ponto de vis- dam as suas qualificações, constroem (em con-

ta, a formação é encarada como um processo cu- texto) uma combinatória diversa de competên-

mulativo e linear que mantém com o desempenho cias, mudam de ambiente de trabalho, realizam

profissional uma relação meramente adaptativa, processos de reconversão e alteram as suas fun-

instrumental e funcional. É essa perspectiva que ções de natureza profissional. Em muitos casos,

está presente no desígnio ingênuo, por parte de acabam por fazer coisas que pouco têm a ver

responsáveis por cursos de formação inicial de pro- com a sua formação profissional inicial.

fessores, de, a partir de um conhecimento relati- A emergência do conceito de trajetória pro-



vamente exato e prévio do que se faz em contexto fissional, que é concomitante com a emergên-

de trabalho, pretender organizar os cursos de ma- cia do conceito de percurso de formação de cada

neira que eles se ajustem funcionalmente às “exi- indivíduo, permite romper com uma visão es-

gências” do exercício do trabalho. tática que tem sido predominante no modo de



É precisamente a impossibilidade de cum- conceber a relação entre a formação e o traba-


prir esse desígnio que apela à construção de uma lho. As abordagens que têm como referência as

relação estratégica entre a formação e o trabalho, histórias de vida têm vindo fundamentar e re-

em que o essencial consiste na capacidade de de- forçar a importância de pensar a atividade pro-

senvolver um reflexo de aprendizagem perma- fissional e a atividade de formação numa pers-


nente que permita aprender a identificar o que pectiva, por um lado, integrada (as duas verten-

é necessário saber e a aprender a aprender com tes não são hoje dissociáveis) e, por outro lado,

a experiência. Quer isso dizer que não é possível numa perspectiva diacrônica, isto é, inseridas

154
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

na flecha do tempo, como fenômenos únicos e las em sistemas auto-regulados em que deixa de



dotados de irreversibilidade. Essa maneira de haver um centro único, funcionando com base



ver conduz a deixar de encarar a formação como numa cadeia de comando vertical. A passagem da



um somatório de momentos formais não-arti- lógica de “castelo” a uma lógica de “rede” (Butera,


culados (as chamadas “ações” de formação). No 1991) supõe que o exercício do trabalho deixe de



quadro de um percurso de formação, em que ser segmentado e atomizado, passando-se a va-



esta é entendida como um processo, cada pes- lorizar a polivalência e o trabalho em equipe. O


soa e cada profissional torna-se o sujeito da sua trabalho coletivo faz apelo a que cada um dos 155



própria formação e é esse ponto de vista que membros da organização possa construir uma



nos permite deslocar o centro das atenções, em intelegibilidade global do processo de trabalho,



termos formativos, das atividades de ensino que não ocorria, nem era desejável que ocorres-


para as atividades de aprendizagem. se, no sistema da linha de montagem. Neste, cada



Reside aqui o fundamento para que possa- pessoa realiza um trabalho parcelar e só conhece



mos distinguir um processo de educação per- o âmbito restrito daquilo que faz no seu “posto



manente daquilo que é a sua caricatura, ou seja, de trabalho”.


a extensão dos processos escolares ao conjunto Estamos, assim, em presença de uma evolu-



da vida (profissional). Essa escolarização ção tendencial de uma cultura de dependência e

massiva da formação profissional constitui, a de execução para uma cultura de interação e de



meu ver, um fenômeno negativo que se tem ma- resolução de problemas, o que apela a capacida-

nifestado de forma particularmente gritante no des de natureza analítico-simbólicas para



caso da formação profissional contínua de pro- equacionar problemas imprevisíveis e não ape-

fessores (Barroso e Canário, 1999). nas capacidades que permitam mobilizar as res-

Um segundo fenômeno diz respeito ao cres- postas “certas”, aprendidas na formação, para dar

cimento exponencial do volume de informação resposta a situações estandardizadas. Essa evo-



disponível, o que traz como conseqüência uma lução, por um lado, torna obsoleta a concepção

rápida obsolescência dessa mesma informação. de formação para o “posto de trabalho”, por ou-

Coloca-se, então, como questão central, saber tro lado, obriga a que a formação deixe de ser pen-

como transformar sistemas formativos que fun- sada exclusivamente em termos de capacitação

cionam tradicionalmente segundo uma lógica individual. Na medida em que se passa a consi-

cumulativa de informação em sistemas derar as dimensões coletivas do exercício do tra-


formativos orientados para a produção de sabe- balho, a formação orienta-se, também, para a for-

res, privilegiando os processos de tratamento e mação de equipes de trabalho que se formam em



mobilização da informação. É no quadro dessa exercício e no contexto de trabalho.



problemática que se inscreve a importância es-


tratégica atribuída à pesquisa, entendida como Construir competências



um eixo metodológico da formação. Tornam-se,


em contexto profissional

hoje, cada vez mais evidentes os limites de es-


Enquanto o processo de qualificação está


tratégias de formação baseadas em pressupos-


tos de acumulação de informação, precisamen- relacionado com a aquisição e a certificação de



te por causa da sua rápida desvalorização. saberes, normalmente obtidos por via escolar,

Um terceiro fenômeno consiste num proces- a competência, como escreveu Lise Demailly

(1997: 61), refere-se a “um não-sei-quê através


so de mudança acelerada das organizações de tra-


balho. O modelo de organização fordista, típico do qual a qualificação se torna eficiente e se



da produção em massa, por meio de processos atualiza numa situação de trabalho”. Nessa

estandardizados e baseados na economia de es- perspectiva, podemos sustentar que as qualifi-


cações se adquirem por um processo que pode


cala, tem sofrido um conjunto de mutações que


se orientam no sentido de substituir as relações ser cumulativo (as qualificações podem ser pos-

burocráticas e hierarquizadas por redes, no inte- tas em estoque e armazenadas), enquanto as



rior das organizações, o que tende a transformá- competências só podem ser produzidas em

contexto, a partir da experiência de trabalho. A compreensão do caráter emergente das com-



Quando se afirma que a escola é o lugar onde petências profissionais, relativamente aos contex-



os professores aprendem é, precisamente, esse tos de trabalho, pode ser reforçada a partir do con-



processo de produção de competências profissio- ceito de zelo no trabalho, evocado por Christophe


nais que está a ser referido. É no contexto de tra- Dejours (1998). Esse conceito fundamenta-se na



balho, e não na escola de formação inicial, que existência de uma distância, empiricamente ob-



se decide o essencial da aprendizagem profissio- servada pelos sociólogos do trabalho, entre traba-


nal (que é coincidente com um processo de so- lho real e trabalho prescrito, que conduz a que a



cialização profissional). Como todos sabemos, a execução estrita dos procedimentos recomenda-



sabedoria não garante a competência. Muitas dos pelas instâncias de enquadramento produza a



pessoas qualificadas não se revelam competen- paralisação dos processos de trabalho, conforme


tes, e o inverso também se verifica. Além disso, pode ser constatado nas situações em que os tra-



a experiência também nos ensina que nenhum balhadores utilizam como recurso a designada



professor é definitivamente competente ou in- “greve de zelo”. Segundo Dejours, o processo de tra-


competente, independentemente dos tempos e ○
balho só funciona se os trabalhadores fizerem a or-
dos lugares. Com efeito, as qualificações obtidas ganização de trabalho beneficiar-se com a sua in-

por via escolar correspondem à certificação de teligência individual e coletiva.



competências escolares que não são suscetíveis Esse exercício da inteligência no trabalho só

de uma transferência linear e direta para o exer- é possível não apenas à margem do cumprimen-

cício profissional, na medida em que dizem res- to estrito dos procedimentos prescritos, mas a

peito ao campo pedagógico, que goza de relati- partir de uma atitude de infração às normas

va autonomia. Como afirma Berthelot, a defini- estabelecidas. O conceito de zelo no trabalho de-

ção, a produção, o reconhecimento e a signa a “inteligência eficiente no trabalho”, em que



certificação de competências são feitos pela es- é possível distinguir, por um lado, características

cola independentemente da sua “efetividade cognitivas, como “fazer face ao imprevisto, ao iné-

prática exterior”. Por isso “a idéia de uma corres- dito, àquilo que não é ainda conhecido, nem in-

pondência e de um isomorfismo naturais e racio- tegrado na rotina”, e, por outro lado, característi-

nais entre as competências escolares e as com- cas afetivas, como “ousar transgredir ou infringir,

petências socioprofissionais é um postulado que agir de forma inteligente mas clandestina ou, pelo

assenta no desconhecimento da existência de menos, discreta” (Dejours, 1998: 74). É a


duas lógicas radicalmente diferentes, em presen- constatação de que a prática profissional se ali-

ça nos dois sistemas” (Berthelot, 1994: 200). menta de um conjunto de “saberes tácitos” e de

É justamente por também considerar que as que há um “saber escondido no agir profissional”

competências são da ordem do “saber mobili- (Schon, 1996) que confere fundamento à estraté-

zar” (é possível armazenar informação, mas não gia de otimizar o potencial formativo dos contex-

competências) que Guy Le Boterf (1994) lhes tos de trabalho. Essa estratégia torna-se, então, o

nega um caráter de universalidade, indepen- eixo estruturante do percurso formativo, modifi-



dentemente de sujeitos e de contextos concre- cando-se de maneira profunda o papel atribuído


tos. Segundo esse autor, a competência não à formação inicial, prévia ao exercício profissio-

corresponde a um estado, nem a um saber que nal. Como escreveu Berthelot (1994: 201),

se possui, nem a um adquirido de formação.



Apenas é compreensível, e suscetível de ser pro- Já não se trata, para a escola, de jogar puzzle,

duzida, “em ato”, do que decorre o seu caráter


produzindo peças preconcebidas e recortadas


finalizado, contextual e contingente. Essa ma- [...], mas sim de jogar xadrez, quer dizer, de pro-

neira de ver contraria a idéia de que as compe- duzir peças dotadas de regras genéricas de fun-

tências são algo de prévio ao exercício profissio- cionamento, suscetíveis de serem atualizadas de

nal. Elas aparecem, pelo contrário, como algo modo diverso, consoante a configuração do jogo

que é emergente de processos de mobilização e em que serão integradas, e de adquirir outras



confronto de saberes, em contexto profissional. regras segundo a evolução deste último.


156
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

As situações profissionais vividas pelos pro- sional inicial de professores, ganhará em ser en-



fessores ocorrem no quadro de sistemas coleti- tendida como uma tripla e interativa situação de



vos de ação (organizações escolares), cujas re- formação que envolve, de forma simultânea, os



gras são, ao mesmo tempo, produzidas e apren- alunos (futuros professores), os profissionais da


didas pelos atores sociais em presença. Estamos, área (professores “cooperantes”) e os professores



portanto, em presença de um “jogo coletivo”, da escola de formação.



suscetível de múltiplas e contigentes configura-


ções, em função da singularidade dos contextos. 157


Currículo e revalorização


É à medida que a produção de práticas profissio-



nais, realizada em contexto, é atravessada não
da experiência profissional



apenas por fatores individuais (dimensão biográ-


fica), mas também por fatores organizacionais Assistimos, no quadro da concepção e da ges-



(dimensão contextual), que se permite pensar o tão das situações educativas, a uma revalorização



funcionamento da organização de trabalho (nes- epistemológica da experiência cuja concretização


em termos operacionais tem como referência


te caso, as escolas) como um processo de apren-


dizagem coletiva do qual emergem competên- principal o conceito de alternância. A afirmação



cias individuais (configurações de saberes) e desse conceito está ligada, na sua origem, ao cam-

também competências de natureza coletiva. Es- po da formação profissional e as práticas a que


dá fundamento remetem, com freqüência, para a


tas correspondem a um valor acrescentado que


“estruturado como uma linguagem [...] emerge existência de um movimento pendular de vai-e-

das articulações e das trocas fundadas nas com- vem entre dois espaços fisicamente distintos: por

petências individuais” (Le Boterf, 1994: 249). Se, um lado, a escola profissional; por outro lado, o

como defende Claude Dubar (1991; 1997), acei- contexto de exercício profissional. Essa dimensão

tarmos que a produção de práticas profissionais de desenvolvimento alternado de atividades na



remete, no essencial, a processos de socializa- situação de formação e na situação de trabalho é,



ção profissional, então, a formação consiste ba- sem dúvida, essencial. Porém, sem negar esse fato,

sicamente em reinventar formas novas de socia- deve reconhecer-se que essa concepção de

lização profissional, o que apela a instituir e a alternância é simplificadora e redutora, não ex-

desenvolver nos contextos de trabalho uma di- primindo toda a riqueza potencial do conceito.

nâmica simultaneamente formativa e de cons- Entendida como um simples vai-e-vem en-


trução identitária que torne possível essa tre dois lugares físicos, a alternância não supera

reinvenção. Ela não pode fazer-se senão na ação, a exterioridade da formação relativamente ao

de onde resulta, no caso dos professores, que a contexto de trabalho. Ela deve ser encarada,

formação passa a ser “centrada na escola” e que numa acepção muito mais ampla, como um vai-

os processos formativos passam a ser conside- e-vem entre idéias e experiências, ou seja, entre

rados como processos de intervenção nas orga- teoria e prática, tornando possível o ciclo

nizações escolares. recursivo entre aprendizagem simbólica e apren-



A articulação e mesmo coincidência entre si- dizagem experiencial de que nos fala Gérard

tuações de trabalho e situações de formação, ou Malglaive (1990) e que deve ocorrer também no

melhor, a transformação de situações de traba- interior da escola de formação inicial. É essa



lho em situações de formação passa a ser uma pre- maneira de encarar o conceito de alternância

ocupação comum quer à formação inicial, quer à que é suscetível de lhe conferir uma maior uni-

formação contínua. A componente da prática pro- versalidade (não o restringindo às formações de



fissional tende a deixar de ser encarada como um orientação profissionalizante). Ela permite, si-

momento de aplicação, para ser considerada, multaneamente, utilizar esse conceito como eixo

estruturante de novos modos de pensar e con-


cada vez mais, como o elemento estruturante de


uma dinâmica formativa tributária de uma con- cretizar o currículo dos cursos de formação ini-

cepção de alternância. Nessa perspectiva, a prá- cial de professores. O objetivo de “traduzir”, em



tica profissional, no quadro da formação profis- termos curriculares, a riqueza e as implicações



do conceito de alternância constitui um proble- dem nas escolas a sua profissão implica tam-



ma indeterminado, que admite uma grande di- bém, necessariamente, uma ruptura com a de-



versidade de soluções, que é, portanto, refratá- signada “pedagogia do modelo”. Os contextos



rio a receitas. Permito-me apenas, e de forma de trabalho onde os futuros professores são cha-


muito sintética, enunciar três grandes orienta- mados e a observar e a intervir não têm de ser



ções que podem servir de referência para a tra- “exemplares”, na medida em que na realidade



dução da revalorização da experiência em ter- também não há escolas “exemplares”. Todas as


mos curriculares e que se situam numa perspec- situações (desde que a regra seja a de lidar com



tiva de superação da forma escolar. a diversidade a partir de um olhar crítico) pro-



A primeira orientação diz respeito à necessi- piciam aprendizagens e a formação deliberada



dade de construir uma outra inserção espacial das de profissionais, como sublinham Lesne e


atividades de formação, encarada numa vertente Mynvielle (1990), ganha em ser pensada a par-



dupla: por um lado, trata-se de fazer evoluir os tir da reconstrução de situações de socialização



espaços escolares tradicionais para espaços edu- profissional, o que é o contrário de uma forma-


cativos; por outro lado, está em causa a constru- ○
ção “em laboratório”.
ção de uma relação interativa entre a escola e os Uma segunda orientação consiste em orga-

restantes espaços sociais. A primeira vertente con- nizar o currículo com a preocupação de, siste-

vida a encarar a escola de formação inicial como maticamente, multiplicar as ocasiões de dar a

um meio de vida que articula diferentes graus de palavra aos alunos e à expressão de suas

formalização da ação educativa e valoriza a arti- vivências e expectativas.



culação entre modalidades de auto, eco e Como referiu Berger (1991), “a experiência

heteroformação e remete para uma concepção de usar da palavra, da leitura de textos, da retó-

ampla de currículo, que engloba tudo o que “acon- rica pela qual convencemos o outro da nossa

tece” no quadro da instituição escolar. razão” constituem alguns exemplos de ativida-



A esse alargamento do conceito de currícu- des mais significativas, para os alunos, do que

lo (tradicionalmente circunscrito às “discipli- os exercícios escolares tradicionais, baseados na


nas”, a que se acrescenta a “prática pedagógi- repetição e no treino. A forma mais pertinente

ca”) associa-se a segunda vertente, atrás referi- de analisar o currículo não consiste em averi-

da, que consiste num movimento de aproxima- guar o que fazem os professores, mas sim em

ção entre os espaços da escola de formação e inquirir o que fazem os alunos e em que medi-

os contextos “reais” de exercício profissional. da e de que forma lhes é “dada a palavra”. Dar a

Um novo tipo de relacionamento entre situa- palavra aos alunos tem como atitude comple-

ções e momentos “escolares” e situações de tra- mentar, lógica e necessária, uma atitude de es-

balho implica, no caso da formação profissio- cuta, por parte dos professores da formação ini-

nal de professores, que as escolas sejam vistas cial, quer em relação aos alunos, quer em rela-

como os lugares fundamentais de aprendiza- ção aos profissionais da área. A tendencial su-

gem profissional e não como meros lugares de peração da forma escolar apela à instituição da

“aplicação”. A aceitação desse pressuposto im- possibilidade de favorecer a reversibilidade dos


plica que os contatos estreitos com os contex- papéis entre quem ensina e quem aprende. Só

tos de trabalho sejam o mais precoces possível uma atitude de escuta permite ao formador ter

e estejam presentes ao longo de todo o percur- em conta os saberes “tácitos” dos formandos,

so de formação inicial, não se circunscrevendo construídos de modo intuitivo na ação cotidia-


a uma etapa final. Só dessa forma é possível fa- na, que, como referia Donald Schon, se tradu-

vorecer um percurso iterativo entre formação e zem na situação-tipo do aluno que “sabe fazer

trabalho que permite o movimento duplo de trocos, mas não sabe somar números”.

mobilização, para a ação, de saberes teóricos, Uma terceira orientação consiste em tentar

e, ao mesmo tempo, a formalização (teórica) de estruturar o currículo a partir da articulação in-



saberes adquiridos por via experiencial. terativa entre situações de informação, situações

O pressuposto de que os professores apren- de interação e situações de produção. É essa ar-


158
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

ticulação que poderá permitir fazer o sistema atividades de formação, as atividades de investi-



de formação evoluir de uma lógica de repeti- gação e as atividades de intervenção educativa. A



ção de informações para uma lógica de produ- organização da prática profissional dos futuros



ção de saberes. Só no quadro dessa transforma- professores pode constituir um elemento de res-


ção é que o formando (no caso, o futuro profes- posta para essas dificuldades precisamente devi-



sor) deixa de ser tratado (para utilizar a termi- do à sua vocação para associar aquilo que, quase



nologia de Lesne) como objeto de formação sempre, aparece dissociado.


para adquirir o estatuto de sujeito e de agente Assim, a prática profissional é, sempre (de 159



de formação. Nesta última perspectiva, o futu- forma deliberada e consciente ou não), um pro-



ro professor interage com as escolas na dupla cesso de formação inicial e contínua que envol-



condição de “aprendiz” e de agente socializador ve, obviamente, os alunos da formação inicial,


dos profissionais que atuam naquela área. Ao mas também os profissionais que os recebem,



interrogar criticamente a sua prática, confron- bem como os professores da escola de forma-



tando-a com outras maneiras de pensar e de ção, para quem esta é, freqüentemente, o prin-



agir, o jovem formando contribui para mudar cipal elo de ligação à realidade naquela área.


representações e comportamentos dos profis- Torna-se, portanto, possível e desejável que a



sionais já “veteranos”. Essa capacidade de ques- organização da prática profissional possa fun-

tionar criticamente as práticas de profissionais cionar como a base para construir uma política

experimentados, aprendendo com elas e contra de formação contínua (“centrada na escola”),


elas, só é possível se, dentro da escola de for- em articulação com a formação inicial.

mação inicial, os alunos forem tratados como Em segundo lugar, a prática profissional

produtores de saberes. constitui, sempre, um processo de intervenção


nas escolas da região e, se não for pensada como



tal, pode muito bem transformar-se num ele-


A prática profissional como

mento de perturbação da vida das escolas. Pa-


elemento estruturante da

rece aconselhável que a organização da prática


escola de formação profissional se faça tendo como referentes os



estabelecimentos de ensino, como organiza-



A pertinência e a possibilidade de a concep- ções, e não os professores “cooperantes” indi-


ção e a organização das modalidades de prática


vidualmente considerados.

profissional poderem instituir-se como Por fim, a organização da prática profissio-



estruturantes não apenas do currículo dos cur- nal numa perspectiva de ruptura com a pedago-

sos de formação inicial, mas da própria escola gia do modelo de valorização dos saberes

de formação, tem o seu fundamento no fato de


experienciais supõe que ela se estruture a partir


esta atividade contemplar, potencialmente, to- de um eixo metodológico de pesquisa que tenha

das as dimensões da missão cometida a essas como referencial as situações de trabalho e en-

escolas, facilitando a construção de um projeto volva a tríade já referida (professores, alunos,


educativo próprio (à semelhança do que se es-


profissionais que atuam na área), na perspecti-


pera das escolas do ensino básico e secundário). va de Barbier: “O ato de trabalho transforma-se

Às escolas de formação de professores são em ato de formação desde que seja acompanha-

cometidas atribuições no domínio da formação


do por uma atividade de análise, de estudo ou


inicial e contínua, bem como atividades de inves-


de pesquisa sobre ele próprio” (1996: 3).


tigação e de intervenção regional (serviços à co-



munidade). Uma das dificuldades consiste em dar


Em síntese

cumprimento a essa missão concretizando de for-



ma integrada e harmoniosa todos os valores pre- A revalorização da experiência na formação



vistos. E esta dificuldade decorre da dissociação profissional dos professores não pode ser con-

entre a formação inicial e a formação contínua, fundida com a defesa da aprendizagem como

por um lado, e, por outro, da dissociação entre as


mero processo de continuidade, em relação à



experiência anterior. Valorizar a experiência sig-


In: VINCENT, G. (Org.). L’éducation prisonnière de la


nifica, sobretudo, aprender a aprender com a forme scolaire? Scolarisation et socialisation dans les



sociétés industrielles. Lyon: PUF, 1994.
experiência, o que, freqüentemente, só é possí-


BUTERA, F. La métamor phose de l’organisation. Du


vel a partir da crítica e da ruptura com essa ex-


château au réseau. Paris: Les Éditions d’Organisation,
periência. Aprender com a experiência não


1991.


pode, então, ser sinônimo de imitação, mas sim CANÁRIO, R. Ensino superior e formação contínua de pro-



de uma ação em que o prático se torna um in- fessores. Aprender , n. 15, p. 11-18, 1993.


vestigador no contexto da prática. . A escola, o lugar onde os professores



A segunda observação destina-se a esclare- aprendem. Psicologia da Educação, n. 6, p. 9-28, São


Paulo, 1998.


cer que a valorização da experiência no proces-


. Educação de adultos: um campo e uma pro-


so de formação profissional dos professores não blemática. Lisboa: Educa, 1999.


significa qualquer subestimação da teoria. O pro-


CANÁRIO, R. (Org.). Formação e situações de trabalho .


fessor, como profissional, encaro-o como um Porto: Porto Editora, 1997.



analista simbólico a quem compete equacionar DEJOURS, C. Souffrance en France: la banalisation de

○ l’injustice sociale. Paris: Seuil, 1998.
e “construir” problemas, no terreno da prática, ○

D E M A I L LY, L . L a q u a l i f i c a t i o n o u l a c o m p é t e n c e
marcado pela incerteza e pela complexidade, e

professionnelle des enseignants. Sociologie du Travail,


não a dar respostas previamente aprendidas para


n. 1, p. 59-69, 1997.

situações inteiramente previsíveis. DUBAR, C. La socialisation: construction des identités



Finalmente, gostaria de reafirmar a minha sociales et professionnelles. Paris: A. Colin, 1991.


convicção de que o modo como é pensado e or-


. Formação, trabalho e identidades profissi-


ganizado o processo de prática profissional onais. In: CANÁRIO, R. (Org.). Formação e situações

será, talvez, o mais pertinente analisador dos de trabalho . Porto: Porto Editora, 1997.

ESPINEY, L. Formação inicial / formação contínua de en-


cursos de formação profissional inicial de pro-

fermeiros: uma experiência de articulação em contex-


fessores, bem como um ponto de entrada para

to de trabalho. In: CANÁRIO, R. (Org.). Formação e


a implantação, por parte das instituições forma-


situações de trabalho. Porto: Porto Editora, 1997. p.


doras, de políticas integradas de formação ini- 169-88.


cial e contínua de professores.


LE BOTERF, G. De la compétence: essai sur un attracteur


étrange. Paris: Les Editions d’Organisation, 1994.



LESNE, M.; MYNVIELLE, Y. Formation et socialisation . Pa-


ris: Paideia, 1990.



Bibliografia MALGLAIVE, G. Enseigner à des adultes. Paris: PUF, 1990.


PÉREZ GÓMEZ, A. O pensamento prático do professor: a



BARBIER, J.-M. La recherche de nouvelles formes de formação do professor como profissional reflexivo. In:

formation par et dans les situations de travail. Éducation NÓVOA, A. (org.). Os professores e a sua formação .

Permanente, n. 112, p. 125-45, 1992. Lisboa: D. Quixote/IIE, 1992.


BARBIER, J.-M. (Dir.). Savoirs théoriques et savoirs PRIGOGINE, I. La fin des certitudes . Paris: Odile Jacob,

d’action. Paris: PUF, 1996. 1996.


BARROSO, J.; CANÁRIO, R. Centros de Formação das REINBOLD, M. F.; BREILLOT, J.-M. Gérer la compétence

Associações de Escolas. das expectativas às realida- dans l’entreprise. Paris: L’Harmattan, 1993.

des. Lisboa: IIE, 1999. SCHON, D. Formar professores como profissionais refle-

BERGER, G. A experiência pessoal e profissional na xivos. In: NÓVOA, A. (Org.). Os professores e a sua

certificação de saberes: a pessoa ou a emergência de formação. Lisboa: D. Quixote/IIE, 1992.



uma sociedade global. In: Conferência Nacional No- . A la recherche d’une nouvelle épistémologie

vos Rumos para o Ensino Tecnológico e Profissional . de la pratique et de ce qu’elle implique pour l’éducation

Porto: ME/Getap, 1991. des adultes. In: BARBIER, J.-M. (Dir.). Savo i r s

BERTHELOT, J. P. Société post industrielle et scolarisation. théoriques et savoirs d’action . Paris: PUF, 1996.










160
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

Formação inicial e continuada




de professores – uma síntese




das diretrizes e dos desafios a




serem enfrentados




161



Célia Maria Carolino Pires



Pontifícia Universidade Católica de São Paulo





Resumo





Esse documento tomou como base documentação já


As mudanças propostas para a educação bási-


ca no Brasil trazem enormes desafios à formação existente no MEC: textos elaborados por colaborado-



de professores. No processo de discussão dos Parâ- res individuais, comissões de especialistas e grupos

metros Curriculares Nacionais, um ponto foi ○

de trabalho, no âmbito das diferentes Secretarias da
consensual: se não houver um grande incentivo à estrutura do MEC, e estudos desenvolvidos pelo Inep.

carreira do Magistério e também um investimento O documento se caracteriza por buscar construir


significativo na formação de professores, dificilmen- uma sintonia entre a formação inicial de professo-

te ocorrerão as transformações que se deseja na res, os princípios prescritos pela Lei de Diretrizes e

educação básica. Bases da Educação Nacional (LDBEN), as normas ins-


No segundo semestre do ano 2000, o Conselho tituídas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Nacional de Educação (CNE) elaborou as Diretrizes Educação Infantil, para o Ensino Fundamental e para

Curriculares para a Formação Inicial de Professores o Ensino Médio, bem como as recomendações cons-

da Educação básica. Um dos subsídios para esse tra- tantes dos Parâmetros e dos Referenciais Curricula-

balho do CNE foi o documento enviado pelo MEC. res para a educação básica, elaborados pelo MEC.





Licenciatura: um curso em

de créditos burocraticamente definidos para a área


pedagógica do que preparação integrada que pro-


busca de identidade e da

picie uma reflexão dos conteúdos da área com a


superação de problemas

realidade específica da atuação docente.



Os cursos de Licenciatura têm funcionado,


Além dessa questão, outros desafios deve-


em geral como apêndices dos cursos de Bacha-


rão ser enfrentados. Resumidamente eles são os


relado e não como cursos com identidade pró-

seguintes:

pria que visam à formação de professores. O


• A segmentação da formação de professores (de


documento do MEC destaca:


Educação Infantil, Ensino Fundamental e En-


sino Médio), que provoca descontinuidade na


As questões a serem enfrentadas na formação ini-


formação dos alunos da educação básica.


cial são históricas. No caso da formação nos cur-


• A proposta pedagógica em geral se subme-


sos de Licenciatura, em seus moldes tradicionais,


a ênfase está contida na formação nos conteúdos te à organização institucional, que impos-

sibilita muitas vezes a implementação de


da área, onde o Bacharelado surge como a opção


propostas pedagógicas inovadoras.


natural que possibilitaria, como apêndice, também


o diploma de licenciado. Refere-se aqui a “diplo- • As escolas de formação em geral são mui-

ma” e não a “formação”, pois se trata muito mais to isoladas, especialmente em relação às

de uma certificação formal após o cumprimento escolas das redes pública e privada, além

de serem isoladas entre si. A concepção de competência



é nuclear na orientação do curso


• O distanciamento entre os cursos de forma-


ção e o exercício da profissão de professor no de formação inicial de professores



Ensino Fundamental e Médio.


As competências tratam sempre de alguma


• O distanciamento entre os cursos de forma- forma de atuação, só existem “em situação” e,



ção de professores e as instâncias de gestão portanto, não podem ser aprendidas apenas pela


dos sistemas de ensino da educação básica


comunicação de idéias. Para construí-las, as


(MEC, Secretarias de Educação, Diretorias


ações mentais não são suficientes – ainda que
Regionais de Ensino etc.).


sejam essenciais. Não basta a um profissional ter



• O repertório de conhecimentos dos profes- conhecimentos sobre seu trabalho; é fundamen-


sores em formação, tendo em vista que, em


tal que saiba fazê-lo.


geral, há sérios problemas decorrentes de uma


formação bastante deficiente que tiveram no



Ensino Médio e no Ensino Fundamental.


É imprescindível que haja coerência
• O tratamento inadequado dos conteúdos, com entre a formação oferecida e a prática

ênfase quase exclusiva em conceitos, em infor-


esperada do futuro professor

mações, nem sempre os mais significativos e



relevantes para a formação do professor. A preparação do professor tem uma peculia-



ridade muito especial: ele aprende a profissão no


• A desarticulação entre conteúdos pedagógi-

lugar similar àquele em que vai atuar, porém em


cos e conteúdos de ensino, mantendo-se


situação invertida. Isso implica que deve haver


uma dicotomia entre eles, quando não até


mesmo incoerências. coerência absoluta entre o que se faz na forma-



ção e o que dele se espera como profissional.


• A falta de oportunidades que durante os cur-

O conceito de simetria invertida ajuda a des-


sos poderiam ser oferecidas, visando ao de-


crever um aspecto da profissão e da prática de


senvolvimento cultural dos professores.


professor que inclui o conceito de homologia de


• O tratamento restrito da atuação profissio-


processos, mas vai além deste. A primeira dimen-


nal do professor, voltado apenas para sua


são dessa simetria invertida refere-se ao fato de

atuação no interior da sala de aula.


que sua a experiência como aluno, não apenas


• A concepção restrita de prática e a inadequação


nos cursos de formação docente mas ao longo


do tratamento da pesquisa na formação do


de toda a sua trajetória escolar, é constitutiva do


professor.
papel que exercerá futuramente como docente.

• A ausência de conteúdos relativos ao uso dos A compreensão desse fato, que caracteriza a

recursos tecnológicos e informacionais.


situação específica da profissão docente, descrita



• A desconsideração das especificidades próprias por alguns autores como homologia de proces-

dos níveis e/ou modalidades de ensino em que sos, evidencia a necessidade de que o futuro pro-

são atendidos os alunos da educação básica. fessor experiencie, como aluno, durante todo o

• A desconsideração das especificidades pró- processo de formação, as atitudes, os modelos



prias das áreas do conhecimento que com- didáticos, as capacidades e os modos de organi-

põem o quadro curricular na educação básica. zação que se pretende que venham a ser desem-

penhados nas suas práticas pedagógicas.



Ninguém promove o desenvolvimento da-


quilo que não teve oportunidade de desenvol-


Princípios orientadores

ver em si mesmo. Ninguém promove a aprendi-


dos cursos de formação


zagem de conteúdos que não domina nem a



constituição de significados que não possui ou a


de professores

autonomia que não teve oportunidade de cons-



O documento elege princípios orientadores truir. É portanto imprescindível que o professor



dos cursos de formação de professores. São eles: em preparação para trabalhar na educação bá-

162
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

sica demonstre que desenvolveu ou tenha opor- dos, de seus significados em diferentes con-



tunidade de desenvolver, de modo sólido e ple- textos e de sua articulação interdisciplinar;



no, as competências previstas para os egressos • domínio do conhecimento pedagógico;



da educação básica, tais como estabelecidas nos
• conhecimento de processos de investigação


artigos 27, 32, 35 e 36 da LDBEN, nas diretrizes,


que possibilitem o aperfeiçoamento da prá-


nos parâmetros e nos referenciais curriculares


tica pedagógica;


nacionais da educação básica. Isso é condição


• gerenciamento do próprio desenvolvimen- 163
mínima indispensável para qualificá-lo como


to profissional.


capaz de lecionar na Educação Infantil, no Ensi-



no Fundamental ou no Ensino Médio. Outra diretriz importante é a afirmação de


que a escola de formação de professores para a



educação básica deve, sempre que necessário,
A pesquisa é elemento essencial na



responsabilizar-se por oferecer aos futuros pro-
formação profissional de professor


fessores condições de aprendizagem dos conhe-



A pesquisa na formação de professores deve, cimentos da escolaridade básica, de acordo com



portanto, ser contemplada de modo a garantir: a LDBEN e as Diretrizes Curriculares Nacionais.


• a aprendizagem dos procedimentos neces-

O desenvolvimento das competências pro-

sários para acompanhar o processo de de- ○

fissionais de professor pressupõe que os estu-


senvolvimento e aprendizagem dos alunos e dantes dos cursos de formação docente tenham

para a produção de conhecimento pedagó-


construído os conhecimentos e desenvolvido as


gico;

competências previstos para a conclusão da es-


• a compreensão dos processos de produção colaridade básica. Entretanto, a realidade atual



de conhecimento nas ciências: naquelas com do sistema educacional brasileiro é marcada por

as quais interagem os conhecimentos esco-


uma formação básica precária e muitas vezes in-


lares que ensina (Matemática, História); na-


suficiente como base para qualquer formação


quelas que dão suporte a seu trabalho de profissional.


educador (Psicologia, Sociologia, Filosofia) e


Sendo assim, a formação de professores terá


naquelas que se dedicam a investigar os pro-


de garantir que os aspirantes a professor domi-


cessos de aprendizagem dos diferentes ob-


nem efetivamente esses conhecimentos: sempre


jetos de conhecimento (Didáticas);

que necessário, devem ser oferecidas unidades



• o conhecimento atualizado dos resultados curriculares de complementação dos conheci-


desses processos, isto é, as teorias e as infor-


mentos relacionados ao uso eficaz da linguagem


mações que as pesquisas nas diferentes ci-


e aos demais conteúdos.


ências produzem.

Como em qualquer campo de atuação, o co-



nhecimento profissional de professor representa


Diretrizes gerais para a


o conjunto de saberes que o habilita para o exer-


formação de professores cício da docência e de todas as suas funções pro-



fissionais: os saberes produzidos nos diferentes



O documento ressalta que a formação de campos científicos e acadêmicos que subsidiam


professores para a educação básica deverá vol-


o trabalho educativo; os saberes escolares que


tar-se para o desenvolvimento de competências deverá ensinar; os saberes produzidos no campo



que abranjam todas as dimensões da atuação da pesquisa didática; os saberes desenvolvidos



profissional de professor, que se referem a dife- nas escolas, pelos profissionais que nelas atuam;

rentes aspectos, como, por exemplo:


os saberes pessoais construídos na experiência


• comprometimento com os valores estéticos, própria de cada futuro professor. Assim, na for-

políticos e éticos inspiradores da sociedade mação de prfessores para a educação básica de-

democrática;

vem ser contemplados diferentes âmbitos do co-


• a compreensão do papel social da escola;


nhecimento profissional de professor, ou seja:


• cultura geral e profissional;


• domínio dos conteúdos a serem socializa-



• conhecimento sobre crianças, jovens e adul- zagem, esse crescimento foi mais significativo que



tos; em outras. Porém é possível afirmar que em to-



• conhecimento sobre a dimensão cultural, so- das elas há investigações em andamento.



cial, política e econômica da educação; Essas pesquisas ajudam a criar didáticas es-


pecíficas para os diferentes objetos de ensino da


• conteúdos das áreas de ensino;


educação básica e para seus conteúdos. Assim,


• conhecimento pedagógico;


por exemplo, estudos sobre a psicogênese da lín-


• conhecimento experiencial (conhecimento gua escrita trouxeram dados para a didática na



construído “na” experiência, que não pode ser área de Língua Portuguesa, especialmente no que


construído de outra forma e de modo algum


se refere à alfabetização. Do mesmo modo, na área


pode ser substituído pelo conhecimento “so-


de Matemática, tem havido progressos na produ-


bre” a realidade).
ção de conhecimento sobre aprendizagem de



Outro aspecto apontado refere-se à seleção dos números, operações etc. que fundamentam uma



conteúdos das áreas de ensino que compõem a didática própria para o ensino desses conteúdos.

Educação básica e que, na formação de professo- ○

Os professores em formação precisam conhe-
res, devem ir além daquilo que os professores irão cer tanto os conteúdos definidos nos currículos da

ensinar nas diferentes etapas da escolaridade. educação básica, pelo desenvolvimento dos quais

Polivalente ou especialista, aquilo que o pro- serão responsáveis, quanto as didáticas específi-

fessor precisa saber para ensinar não é equivalen-


cas que permitirão um ensino eficaz. Em outras


te ao que seu aluno vai aprender: são conheci- palavras, a melhor estratégia é tratá-los de modo

mentos mais amplos do que os que se constroem articulado, o que significa que o estudo dos con-

até o Ensino Médio, tanto no que se refere ao ní- teúdos da Educação básica que irão ensinar deve-

vel de profundidade quanto ao tipo de saber. Por- rá ser feito a partir da perspectiva de sua didática.

tanto, sua formação deve ir além dos conteúdos Com relação à avaliação, num curso de for-

definidos para as diferentes etapas da escolarida- mação de professores, o documento destaca que

de nas quais o futuro professor atuará, incluindo ela deve ter como finalidades a orientação do tra-

conhecimentos necessariamente a eles articula- balho dos formadores, a autonomia dos futuros

dos, que compõem um campo de ampliação e professores em relação ao seu processo de apren-

aprofundamento da área. dizagem e a habilitação de profissionais com con-



Isso se justifica porque a compreensão do pro- dições de iniciar a carreira.


cesso de aprendizagem dos conteúdos pelos alu- Tomando como princípio o desenvolvimento

nos da educação básica e a transposição didática de competências profissionais, é importante colo-



adequada dependem do domínio desses conhe- car o foco da avaliação na capacidade de acionar

cimentos. Sem isso fica impossível construir si-


conhecimentos e de buscar outros, necessários à


tuações didáticas que problematizem os conhe- atuação profissional, e não na quantidade de co-

cimentos prévios com os quais, a cada momento, nhecimento adquirido ao longo do curso.

crianças, jovens e adultos se aproximam dos con- Os instrumentos de avaliação da aprendiza-


teúdos escolares, desafiando-os a novas aprendi-


gem devem ser diversificados, para o que é ne-


zagens que vão constituindo saberes cada vez cessário transformar formas convencionais e cri-

mais complexos e abrangentes. ar novos instrumentos. Avaliar as competências



No documento defende-se a idéia de que os profissionais dos futuros professores é verificar se


conteúdos a serem ensinados na escolaridade


(e quanto) fazem uso dos conhecimentos cons-


básica devem ser tratados de modo articulado truídos e dos recursos disponíveis para resolver

com suas didáticas específicas. Nas últimas dé- situações-problema – reais ou simuladas – relacio-

cadas, cresceram os estudos e as pesquisas que nadas de alguma forma com o exercício da pro-

tomam a aprendizagem e o ensino de cada uma


fissão. Sendo assim, a avaliação deve pautar-se


das diferentes áreas de conhecimento como ob- por indicadores oferecidos pela participação dos

jeto de investigação. Em algumas áreas, e para futuros professores em atividades regulares do



determinados aspectos do ensino e da aprendi- curso, pelo empenho e desempenho em ativida-


164
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

des especialmente preparadas por solicitação dos bastante generalizada de que algumas áreas pou-



formadores, pela produção de diferentes tipos de ca relação têm com as demais áreas de conheci-



documentação, pela capacidade de atuar em si- mento ou com o tratamento de questões sociais



tuações-problema. urgentes.


A avaliação deve ser realizada mediante cri- O documento destaca que o tempo destina-



térios explícitos e compartilhados com os futu- do pela legislação à parte prática (800 horas) deve



ros professores, uma vez que o que é objeto de permear todo o curso de formação, de modo que


avaliação representa uma referência importante promova o conhecimento experiencial do profes- 165



para quem é avaliado, tanto para orientação dos sor. A finalidade desse tempo de prática é possi-



estudos como para identificação dos aspectos bilitar aos alunos da formação a construção da-



considerados mais relevantes para a formação em queles conhecimentos experienciais conforme


cada momento do curso. Isso permite que cada definidos anteriormente, essenciais a sua atuação



futuro professor vá investindo no seu processo de como professores.



aprendizagem, construindo um percurso pessoal Os cursos de formação de professores não



de formação. podem mais propor um espaço isolado para a ex-


Assim, é necessário, também, prever instru- periência prática, que faz com que, por exemplo,



mentos de auto-avaliação do processo de forma- o estágio se configure como algo com finalidade

ção pelos futuros professores, o que favorece a em si mesmo e se realize de modo desarticulado

tomada de consciência do percurso de aprendi- com o restante do curso. Também não é possível

zagem, a construção de estratégias pessoais de deixar ao futuro professor a tarefa de integrar e



investimento no desenvolvimento profissional, o transpor seu “saber” para o “saber fazer”, sem ter

estabelecimento de metas e o exercício da auto- oportunidade de participar de uma reflexão co-


nomia em relação à própria formação. Por seu letiva e sistemática sobre esse processo.

turno, o sistema de avaliação da formação inicial Nessa perspectiva, o planejamento dos cursos

deve estar articulado a um programa de acompa- de formação deve prever situações didáticas em

nhamento e orientação do futuro professor para que os professores coloquem em uso os conheci-

a superação das eventuais dificuldades. mentos que aprendem, ao mesmo tempo que pos-

sam mobilizar outros, de diferentes naturezas e



oriundos de diferentes experiências, em diferen-


Diretrizes para a organização

tes tempos e espaços curriculares, tais como:


curricular dos cursos de • no interior das áreas ou disciplinas, durante



o próprio processo de aprendizagem dos con-


formação de professores

teúdos que precisa saber;


Os cursos devem ser organizados de forma


• nos estágios a serem feitos nas escolas de edu-


que propiciem aos professores em formação


cação básica;

vivenciar experiências interdisciplinares. A cons-


• num tempo e espaço curricular específico


trução da maioria das capacidades que se preten-


de que os alunos da Educação Infantil, do Ensino chamado de “supervisão”, em trabalhos ori-


entados pelos diferentes formadores.


Fundamental e do Médio desenvolvam atravessa



as tradicionais fronteiras disciplinares e exige um A organização dos currículos deve contemplar


trabalho integrado de diferentes professores. atividades curriculares diversificadas. Ao elaborar



A construção de competência profissional re- seu projeto curricular, a equipe de formadores tem

quer da formação a utilização da estratégia didá- como primeira ação necessária a de buscar novas

tica de resolução de situações-problema contex- formas de organização, em contraposição a formas


tualizadas, que necessitam de abordagens inter- tradicionais concentradas exclusivamente em cur-



disciplinares. Sobretudo os cursos de formação de sos de disciplinas, a partir das quais se definem

professores especialistas devem promover ações conteúdos que nem sempre são significativos para

direcionadas para o desenvolvimento de verda- a atuação profissional dos professores.


deira postura interdisciplinar, pois há uma idéia Isso não significa renunciar a todo ensino


estruturado, nem relevar a importância das dis- O documento defende ainda que a organi-



ciplinas na formação, mas considerá-las como zação dos currículos de formação deve incluir



recursos que ganham sentido em relação aos uma dimensão comum a todos os professores de



domínios profissionais visados. Os cursos com educação básica.


tempos e programas predefinidos para alcançar Um dos grandes desafios da formação de



seus objetivos são fundamentais para a apropria- professores é atender às especificidades do tra-



ção e a organização de conhecimentos. Têm, as- balho educativo com as diferentes etapas de vida


sim, papel fundamental na atualização e no dos alunos, sem nela reproduzir uma visão seg-



aprofundamento dos conhecimentos relaciona- mentada do desenvolvimento e da aprendiza-



dos com o trabalho de professor, que são chaves gem humanas. Muitos conhecimentos são igual-



de leitura necessárias à atuação contextualizada mente necessários, muitas das temáticas são


e condição para a prática reflexiva do professor. igualmente pertinentes, assim como são comuns



O desafio principal da elaboração de um pla- os pressupostos para a formação do professor.



no de formação profissional não é dar lugar a Só é possível pensar na formação de profes-


todos os tipos de disciplinas, mas conceber um ○
sores da educação básica porque existe algo de
desenho curricular que permita construir, colo- comum a todo professor, atue ele na Educação

car em uso e avaliar as competências essenciais Infantil, no Ensino Fundamental ou no Ensino



ao seu exercício. Médio. Portanto, há competências profissionais



Para contemplar a complexidade dessa for- que todos eles precisam desenvolver.

mação, é preciso renunciar à idéia de repartir o Ao mesmo tempo, é preciso considerar que

tempo disponível entre as disciplinas. Ao con- há desafios próprios dos professores de atuação

trário, é preciso instituir tempos e espaços cur- multidisciplinar e outros dos especialistas, tanto

riculares diferenciados, como oficinas, seminá- em função da etapa da escolaridade em que atu-

rios, grupos de trabalho supervisionado, grupos am quanto do domínio de conteúdos a ensinar.



de estudo, tutorias e eventos, entre outros capa- Finalmente, há competências ligadas à espe-

zes de promover e ao mesmo tempo exigir dos cificidade da docência em cada etapa da escola-

futuros professores atuações diferenciadas, per- ridade. Contemplá-las de modo integrado exige

cursos de aprendizagens variados, diferentes manter o princípio de que a formação deve ter

modos de organização do trabalho, possibilitan- como referência a atuação profissional, na qual a



do o exercício das diferentes competências a se- diferença se dá principalmente no que se refere à


rem desenvolvidas. As oficinas, por exemplo, ofe- dimensão da docência. É aí que as especificidades

recem ótimas possibilidades de colocar em uso se concretizam e, portanto, é ela (a docência) que

tipos de conhecimento, construindo instrumen- deverá ser tratada no curso de modo específico.

tos e materiais didáticos, vivenciando procedi- Isso pede uma organização curricular que possi-

mentos próprios de cada área de ensino. bilite, ao mesmo tempo, um aprofundamento em



O currículo de formação deve ainda prever relação aos segmentos da escolaridade e uma for-

atividades autônomas dos alunos ou a sua par- mação comum a todos os professores.

ticipação na organização delas: a constituição de O detalhamento que segue está expresso em


grupos de estudo; a realização de seminários termos de competências indicativas da defini-



“longitudinais” e interdisciplinares sobre temas ção de conteúdos, uma vez que é por meio da

educacionais e profissionais; a programação de aprendizagem deles que se dá o desenvolvimen-



exposições e debates de trabalhos realizados ou to dessas diferentes competências. Os projetos


de atividades culturais são exemplos possíveis. pedagógicos dos cursos de formação de profes-

Convém ainda destacar a importância de ati- sores não podem, portanto, deixar de definir e

vidades individuais como a produção do explicitar os conteúdos ou conhecimentos es-



memorial do professor em formação, a recupe- senciais à constituição dessas competências, de


ração de sua história de aluno, projetos de in- modo que garantam sua qualidade.

vestigação sobre temas específicos e até mesmo Para que os futuros professores tenham uma

monografias de conclusão de curso. visão ampla e não fragmentada da vida e dos pro-

166
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

cessos de aprendizagem dos seus alunos e do tra- analogamente, nos cursos para atuação es-



balho escolar que realizam, os cursos deverão pecializada por áreas ou disciplinas, deverá



contemplar essas diferentes dimensões da for- haver uma formação comum a todos os pro-


fessores especialistas;


mação, de modo articulado e complementar.


Em decorrência, a organização curricular dos • assentada na base comum, os cursos deve-



cursos deve incluir sempre: rão oferecer formação específica de Licencia-



• espaços e tempos em que se garanta uma tura de professores para Educação Infantil,


formação comum aos professores de todas anos iniciais e anos finais do Ensino Funda- 167



as etapas da educação básica; mental e Ensino Médio, esta, por sua vez,


especializada por áreas de conhecimento ou


• nos cursos para atuação multidisciplinar, por


disciplinas;


sua vez, uma formação comum a esse tipo


de atuação, seja da Educação Infantil, seja • cursos optativos, a critério da instituição,



das séries iniciais do Ensino Fundamental; para atuação em áreas específicas.










Entre a formação inicial




e a formação continuada dos




professores: qual conexão?





Por uma estratégia de formação




continuada, com acompanhamento





Charles Hadji

Universidade Pierre Mendès-France/Grenoble/França






Resumo



Com o aparecimento de novos públicos esco- de uma dicotomia entre uma formação inicial, mi-

lares e o desenvolvimento das novas tecnologias nistrada a iniciantes ou a novatos, para armá-los

de informação e de comunicação, as atividades de bem para o exercício da profissão, e uma formação


ensino desdobram-se hoje em condições transfor- continuada oferecida alguns anos depois para per-

madas, que convidam a uma reflexão sobre as mo- mitir a “reciclagem” dos professores cujas compe-

dalidades de formação de professores que sejam tências teriam se desgastado com o tempo? Defen-

as mais apropriadas a esse novo contexto. A dupla deremos uma melhor repartição do esforço de for-

necessidade de uma maior profissionalização e de mação no tempo (da vida dos profissionais). Pois

levar em conta as novas tecnologias, por exemplo, ingressamos na era da “formação acompanhante”,

não parece ser absolutamente contestada. Mas ou seja, de uma formação concebida como um fa-

como a formação poderia, concretamente, levar tor contínuo de desenvolvimento profissional. Isso

em conta essas duas necessidades? Em particular, exigirá que nos situemos numa problemática de

qual poderia ser a estruturação adequada das ati- formação continuada e, portanto, de repensar a

vidades de formação na sua organização tempo- formação inicial situando-a num marco temporal

ral? Será que devemos aceitar sempre o esquema muito mais amplo.



Repensar a atividade de mais um simples aprendente.




• Dinâmica no sentido de uma série de ações
formação na sua relação


que se inscrevem na duração de uma vida


orgânica com o campo


profissional (formação permanente): o pro-


blema não reside em simplesmente prepa-


profissional


rar para o exercício profissional, mas em



manter e inclusive desenvolver o nível de


qualificação profissional ao longo de todo o


A formação: uma atividade dinâmica


período da vida ativa.


O que significa formar? Às vezes define-se a



formação como um conjunto de conhecimen-


A formação: uma objetivação


tos e de competências que um ensino permite


adquirir com anterioridade ao ingresso na vida profissional



ativa. Uma definição como essa é triplamente

O que especifica essa atividade dinâmica

problemática: ○
○ é a sua objetivação. A formação só existe em
• Primeiramente, a formação não é do gêne- referência a um campo profissional. Formar

ro do conteúdo (uma bagagem a ser adqui-


significa acompanhar alguém no seu trabalho


rida), mas do gênero da ação (ou das ativi-


de construção de uma determinada compe-


dades) visando adquirir essa bagagem.

tência social. Significa ajudá-lo a progredir no



• Essas atividades podem assumir a forma de domínio das competências necessárias para

um ensino; mas esta não é nem necessária,


se tornar profissional numa determinada


nem a única, nem necessariamente a mais área. Significa, portanto, em primeiro lugar,

útil. Poderemos realizar atividades especí-


fazer adquirir ou aperfeiçoar habilidades pro-

ficas de formação, diferentes daquelas ati-


fissionais. É essa relação com a profissão (fu-


vidades tradicionais de ensino, sobretudo


tura ou atual) que é essencial. Isso foi clara-


com um público constituído de adultos.


mente salientado por Guy Avanzini (1996). A

• Finalmente, se a formação antes de ingres- formação está sempre restrita a um objetivo


sar na vida ativa (formação inicial) é impor-


preciso. Ela propicia uma qualificação que só


tante, inclusive essencial, seria redutor de-


tem sentido dentro da perspectiva de exercer


mais esquecer a formação durante a vida


a profissão para a qual essa qualificação é

profissional (formação contínua ou forma-


requerida. Assim, a formação é uma ativida-


ção continuada).

de conduzida tendo em vista conceder ao su-


Assim sendo, a formação é triplamente di-


jeito uma competência que seja: a) precisa e


nâmica: limitada (visa-se um determinado objetivo



• Dinâmica no sentido de uma ação que se profissional); e b) predeterminada (viemos


exerce sobre um sujeito tendo em vista pro-


para adquirir aquilo que é necessário para o


vocar e/ou acompanhar mudanças nas suas


exercício desta profissão que se deseja exer-


maneiras de pensar e de fazer, para torná-

cer, ou que já exercemos).


lo capaz de agir com eficácia em certas ca-


A força dessa relação orgânica com o cam-


tegorias de situações bem definidas.


po profissional manifesta-se justamente no


• Dinâmica no sentido do processo de evo-


tema da necessária profissionalização. Dese-


lução e de autotransformação do formado,


ja-se hoje “formar professores profissionais”

sendo este sócio ativo dessa construção de


(Paquay et al., 2001). Indagamo-nos acerca da


si como mais competente. Isso faz da for-


inserção profissional dos professores jovens


mação um parceria formador/formado, de


tal forma que este último não vem a ser, (Hétu et al., 1999). Os ofícios (que se originam

primeiramente de uma camaradagem e que


absolutamente, um simples aluno: ele será


um novato (versus o especialista), ou um têm uma dimensão técnica predominante)



iniciante (versus o veterano), ou um apren- transformam-se em profissões quando a com-



diz (versus o profissional experiente); ja- plexidade do seu exercício exige o recurso a

168
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

uma base de saberes profissionais especia-


sionais tendo em conta essa dimensão dinâmi-


lizados, que será a prerrogativa de um grupo ca da formação e essa relação orgânica com o



de profissionais, com uma identidade reco- campo profissional do ensino.


nhecida pelo corpo social. Assim, podemos



entender por:


Superar os riscos


Profissão: uma prática social complexa, ori-


entada na direção de fins precisos, e que de contradição devidos



exige o domínio de um conjunto (em evo- 169


à presença de lógicas


lução) de saberes específicos e de savoir-


faire especializados, de alto nível (daí a ne- em tensão



cessidade der uma formação institucional-


Para atingir o objetivo que acabamos de


mente organizada).


identificar, será preciso, em primeiro lugar, re-


Profissionalidade: o conjunto de atributos


solver três dilemas. Todo processo de formação
do profissional, que lhe permite exercer


é, de fato, atravessado por tensões resultantes


essa atividade douta de maneira autônoma,


da presença de lógicas antagônicas. Isso nos


eficaz e respeitando um certo número de


regras de tipo deontológico. leva ao inevitável confronto com aquilo que


Ferry (1983) denomina como “dilemas
Profissionalismo: o resultado do processo ○

organizacionais”. Podemos detectar três dile-


de socialização profissional, que se carac-


mas principais, que se devem às tensões entre


teriza pela adesão ativa dos membros do


corpo de profissionais às regras, normas e três séries de lógicas em operação.



atitudes que definem uma consciência pro-


A tensão entre saberes e savoir-faire


fissional; ou, dito de outra forma, uma cer-


ta maneira socializada de ser, de pensar e (ou práticas)



de agir (Gauthier, 1997: 43 e 51). Ou, ainda,


Existe, para toda profissionalização, um ver-


sob um outro ponto de vista, a capacidade


do profissional em satisfazer a essas normas dadeiro paradoxo. A profissionalização é carac-


terizada pelo surgimento de saberes (profissio-


e padrões próprios da profissão.


nais) de alto nível (“um sólido núcleo de conhe-


Profissionalização:

cimentos” – Gauthier, 1997: 51). Porém esses


• para os indivíduos, o processo dinâmi-


co de aquisição de competências (sabe- saberes são, antes de mais nada, de ordem prá-

tica, pois se trata, concretamente, de confron-


res, savoir-faire, capacidades) e de atri-


tar-se com tarefas sociais contextualizadas. Ora,


butos (autonomia, altruísmo, autorida-


de sobre os “clientes”) necessários para o laboratório (onde se constroem os saberes)



o exercício da profissão; não é o campo profissional (onde se exercitam


as práticas). Mesmo que a formação, em parti-


• para uma prática social, o processo pelo


cular, no momento em que ela constrói seus


qual tal prática se institucionaliza numa


profissão, mediante a especificação de programas e escolhe seus currículos, deva es-



normas, regras e padrões de trato social tar atenta a duas séries de evoluções:

• a evolução dos “saberes doutos” que se


de certos problemas;

constroem nos campos disciplinares (novos


• para um determinado grupo social, a


conhecimentos referentes ao homem em


construção de uma identidade e a ob-

desenvolvimento, pontos de vista neuro-


tenção de um conjunto de direitos e de


biológicos, psicológicos, sociais etc.);


privilégios, indo de par com um certo


número de obrigações, e ligados ao do- • a evolução das práticas sociais de referên-



mínio de um know-how profissional de cia, tal como elas se modificam concreta-


mente no campo profissional.


alto nível.

Toda a questão reside em saber, concreta- Certamente, essas práticas estão relaciona-

das com os saberes. Mas são muito poucas as


mente, como formar, hoje, professores profis-




ligações unidimensionais saberes–práticas. deste, para tornar-se formativo e admitir a



Uma mesma prática depende de vários saberes. necessidade de relegar temporariamente ao



Um mesmo saber pode estar implicado em di- segundo plano as exigências da produção a


fim de dar aos novatos o tempo necessário


versas práticas. As evoluções de uns e de outros


não estão sincronizadas. E, sem dúvida, temos para a construção de si mesmo (o que im-


plica um direito ao erro, proibido ao profis-


de distinguir entre saberes de ação e saberes


sional em exercício). Huberman (1986) pro-


teóricos (Barbier, 1996).


pôs, nesse sentido, um modelo original que
Isso implica, para a formação, a dupla ne-


articula de maneira feliz um centro, conce-


cessidade de:


bido como “sistema com recursos”, ao tra-


• ter um cuidado pela profissionalização, en-


balho de campo, concebido como “sistema
tendida como atenção ao surgimento de


do usuário”.


“saberes doutos” úteis para a profissão;



• ter um cuidado pela operatividade (Durand,


A tensão entre a dimensão

1996), objetivando a construção das “ima-

gens operativas” e dos savoir-faire concre- ○

profissional (aprender um ofício)
tamente úteis para os profissionais. e a dimensão pessoal (desenvolver

A superação dessa tensão será precedida sua personalidade) da formação



pela construção de saberes diretamente opera-


Toda formação tem uma dimensão educati-


tivos, que designamos como “saberes de ação


va. E a educação constitui o substrato, como o


pedagógica” (Gauthier, 1997) ou “saberes da


trampolim, da formação. Entretanto, o objetivo

ação” (Barbier, 1996).


essencial da formação é, tal como assinala



Avanzini (1996), o de incrementar os “haveres” do


A tensão entre o centro (de formação)


sujeito (aquisição de competências precisas e pre-


e o trabalho de campo determinadas). Ora, os formados também podem



(de exercício da profissão) ter um objetivo, num certo sentido privado, por

mais educação (aumento da polivalência da pes-


• Sendo “científica” e visando o domínio de


soa). Trata-se, então, de um desenvolvimento do


saberes (acadêmicos, próprios das discipli-

“ser”. Esses dois objetivos podem entrar em con-


nas ensinadas; sobre o tema ensinado, pro-


flito, tal como podemos ver no uso que às vezes


duzidos pelas disciplinas contributivas; so-


bre a atividade do ensino, produzidos pela os professores fazem de um catálogo de ofertas


de formação (continuada), ou nas tentativas de


Pedagogia e pela Didática) a formação será


“desvio” de certos estágios em prol de objetivos


ministrada num “centro”, diferente do lugar


de trabalho de campo e, se possível, próxi- mais pessoais.



mo das universidades (até mesmo verdadei- Essas ambigüidades da articulação oferta/


demanda, bem como esses conflitos entre ob-


ramente universitário, para notabilizar a


dignidade dos saberes em causa). jetivos profissionais e objetivos pessoais, po-



• Sendo “profissional” e visando ao domínio derão ser superados tornando mais transpa-

de uma atividade complexa no terreno pro- rentes os objetivos da formação e, talvez, dis-

tinguindo, como proposto por Avanzini (1996),


fissional, essa formação deve: a) estar em


contato com o trabalho de campo; e b) fa- de um lado, educação (com fins indetermi-

zer intervir profissionais do trabalho de nados, focada no desejo de mudar) e forma-



campo. ção (com fins predeterminados, focada na ne-


cessidade de mudar) de adultos; do outro, no


• Tentar-se-á uma superação dessa tensão


nível da formação, distinguindo ações de for-


com uma melhor articulação centro/traba-


lho de campo, o que redundará num duplo mação de adultos (visando melhorar direta-

empenho: do centro, para levar em consi- mente a qualificação) e ações de formação per-

manente (visando melhorar indiretamente a


deração os problemas de campo e admitir


que está a serviço do trabalho de campo. E qualificação pelo expediente de uma evolução

170
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

da personalidade). O problema da articulação Estratégia 1: O essencial – inclusive a tota-



entre objetivo social e objetivo pessoal deve- lidade – do esforço de formação é feito an-



rá, portanto, ser sempre claramente colocado. tes da entrada na vida escolar. O que é ad-


quirido então é considerado como definiti-



vamente adquirido e não será jamais ques-
Inscrever-se decididamente


tionado. Trata-se da estratégia histórica na



numa dinâmica de projetos França, de uma formação inicial que se se-



gue imediatamente à aprovação num con- 171


Essa necessidade pode ser analisada sob o curso de emprego.



duplo ponto de vista da dinâmica do processo
Estratégia 2: A formação torna-se continu-



de formação e da dinâmica do processo de evo- ada, como continuação de uma formação


lução individual dos formados.


inicial anterior à qual reconhece-se um pa-


pel privilegiado, sendo que oportunidades



Do ponto de vista da dinâmica do de formação são oferecidas ao longo de uma



processo de formação carreira, eventualmente sob a forma de “cré-


dito formação”.


Junto com Lesne (1984), podemos conside-

Estratégia 3: A formação é contínua, após

rar quatro grandes momentos correspondentes


um início, que é uma primeira fase, mas não
a quatro subconjuntos de atividades.

essencial, com o qual ela está em continui-


dade; ela intervém regularmente durante o


O momento do projeto no sentido estrito


desenvolvimento da vida profissional, em



Trata-se de saber com que objetivo forma- momentos de igual importância.



mos os professores; isso implica determinar três Baseando-nos em todas as considerações


questões:

anteriores, a primeira estratégia nos parece ob-


a) os valores que dão sentido ao projeto e soleta e ultrapassada. Portanto, temos hoje a es-

que justificam as finalidades escolhidas. colha entre uma formação continuada e uma

Faz-se necessária aqui uma reflexão cole-


formação contínua. Essas duas estratégias têm


tiva para obter um consenso mínimo sobre


o mérito de permitir a consideração da “subver-


os fins, sem o qual não haverá projeto de


são das tarefas, das missões e das ocupações”,

formação que tenha verdadeiramente sen-


que produz uma prática docente caracterizada


tido (Avanzini, 1991);


pela passagem de uma obrigação de meios para


b) o ideal do “bom professor”, na direção do


uma obrigação de resultados (Demailly, 2001: 19)


qual se desejaria que os formados se orien- e a irrupção de novos públicos que transformam

tassem. A consideração dos resultados de


as condições e as formas da atividade docente.


trabalhos sobre os “efeitos-professor” seria


As duas implicam a organização de uma cone-


aqui especialmente útil (Bressoux, 1994);


xão entre formação inicial e tempo (ocasião) de


c) as modalidades eficazes de ação pedagó- formação continuada. Elas traduzem uma con-

gica, o que implica um recurso a trabalhos


sideração da temporalidade e das mudanças,


de pesquisa de ordem pedagógica ou, mais


tanto coletivas (tecnológicas, econômicas e so-


especificamente, didática (Durand, 1996).


ciais) quanto individuais (evolução pessoal e

O projeto se traduzirá concretamente numa profissional).



política (especificação de objetivos em função Entretanto, devido à importância particular


do triplo trabalho acima mencionado) e numa


do primeiro tempo, aquele durante o qual se


estratégia. adquire aquilo sem o qual o exercício da ocu-



É aqui que se coloca de maneira intensa o pação não seria possível, preferimos, por nossa

problema do tipo de formação privilegiado, se- vez, uma estratégia do tipo formação continua-

gundo o peso e a prioridade concedidos à for-


da, que: a) coloca a questão do viático inicial-


mação inicial. Poderíamos considerar três gran- mente necessário para o exercício da ocupação;

des casos: b) obriga a pensar esse momento de formação




inicial, articulando-o com os momentos de for- permitir uma condução (pilotagem) adequada



mação continuada que se seguirão; e c) convi- do processo. Evidentemente, trata-se do proble-



da a construir os momentos seguintes em coe- ma da condução conjunta das operações de for-



rência com aqueles que os antecederam. mação que deveria ser colocado. O processo


pedagógico é regulado com referência ao pla-



no. Mas este, não sendo imóvel, é, ele mesmo,
O momento do planejamento



regulado com referência às evoluções das reali-


A escolha de uma estratégia de formação con- dades (ferramentas e tecnologias disponíveis;



tinuada conduz a uma concepção necessariamen- novos públicos; condições de exercício) e às re-


te dinâmica do planejamento. De fato, será pre-


presentações (fins e valores de referência). Não


ciso considerar pelo menos duas séries de objeti-


se trata de regular um sistema fechado, mas um


vos: no curto prazo (constituição do “viático”) e a sistema verdadeiramente aberto.


médio ou longo prazos (garantia da “forma-



bilidade” e da “evolutividade” profissional e pes-

soal: o profissional deve estar, em certo sentido, ○

Do ponto de vista da dinâmica dos
adultos em formação

preparado para adaptar-se às futuras evoluções,


inclusive aquelas dificilmente previsíveis). E a


Não se pode esquecer de que, se a forma-


modalidade incluirá o conjunto dos momentos ção, de um lado, é uma atividade instituída que

de formação. Além disso, em suma, toda modali- se exerce sobre um ator com vista a sua profis-

dade deverá ser concebida como suscetível de sionalização, do outro, ela também é uma ati-

desenvolver-se em função das evoluções concre-


vidade pessoal que o formado exerce sobre si


tamente identificadas no contexto. mesmo, no âmbito de sua própria história. A



facilitação desse trabalho sobre si, produtor de



novas representações, atitudes e condutas


O momento do processo pedagógico

(Ferry, 1987), deverá, portanto, apoiar-se em



O que já falamos sobre a diferença entre en-


tudo aquilo que aprendemos com a pesquisa

sino e formação tem aqui grande relevância. A


sobre a formação de adultos.


educação visa à construção do saber ser; o ensi-


Trata-se de obter o engajamento do sujeito


no visa à construção dos saberes; e a formação,


para adquirir a “forma” julgada socialmente

as competências socioprofissionais (Hadji, 1995).


desejável sem confiná-lo num molde rígido. E,


Portanto, não se pode conceber, para as ativida-


também, de permitir a ele encontrar sua pró-


des de formação propostas, que se baseiem ape-


pria forma sem por isso afastar-se, perigosa-


nas no único modelo das atividades de ensino.


mente, da forma ideal do profissional eficaz.

As atividades de formação têm de ser mais


Para isso, será preciso respeitar as três condi-


envolventes, mais práticas, estando diretamen-


ções necessárias para a efetivação de aprendi-


te relacionadas com problemas profissionais. Por


zagens no adulto (Bourgeois, 1996):


outro lado, poderíamos imaginar, além das ati- • um suficiente embasamento na experiên-

vidades que visam aquisições precisas, ativida-


cia de sua própria vida, o único suscetível


des que privilegiem um modo de proceder, no


de tornar possível um investimento pessoal


curso do qual nos exercitaríamos; por último, num trabalho de construção da identidade

atividades de análise que priorizem “a capacida- (isso implica levar em conta a biografia es-

de de observar e de analisar as situações” (mo-


colar e universitária dos formados);


delos focados na aquisição, no procedimento ou


• a possibilidade de estabelecer laços de con-


na análise) (Ferry, 1983). fiança recíproca com os formadores;




• a realidade de um trabalho pessoal.


O momento das atividades de regulagem


Portanto, a formação continuada deverá ter


Tais atividades deverão ser concebidas de


a inteligência de outorgar um lugar essencial


forma precisa, não como um momento à parte para a experiência dos formados, partindo das

e isolável, mas operando continuamente para suas próprias indagações, no âmbito de suas

172
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores

problemáticas pessoais. Isso porque aprender, em situações de formação abstratas, artifi-



para um adulto, significa construir um sentido, ciais e, finalmente, sem interesse, se a lógi-



num ato criativo que se inscreve numa dinâmi- ca do ensino vier se impor e se não houver a


mínima relação com os problemas e com as


ca de (trans)formação pessoal. Isso significa:


• que a formação só pode ser contínua, no práticas de campo, sem as quais não pode-


ríamos nos preparar para a tarefa.


sentido de que é preciso dar um tempo para



que os formados façam sua experiência, sem Toda a dificuldade, e toda a arte, reside em


a qual se permanece no artificial; pensar, organizar, gerir esse duplo afastamen- 173



• que, já, o tempo de formação inicial deve to espacial (centro versus trabalho de campo) e



tornar possível o desenvolvimento dessa temporal (tempo da paciente construção das



experiência, em comparação com um tra- competências versus a urgência das tarefas de


balho de campo (no âmbito da articulação produção profissional). É preciso de tempo para



orgânica centro / trabalho em campo); fazer – e continuar a fazer – um bom profissio-



• que, a todo momento, deve-se dar priori- nal, nas atividades de formação ligadas ao tra-


balho de campo.


dade aos problemas encontrados pelos pro-


fessores no campo, sem o que se permane- Saber encontrar a boa distância nos parece



ce no abstrato; ser o maior desafio para a formação de docen-

• que, a todo momento, deve-se dar um lu- tes no século XXI. Isso resulta, dentre outras, em

três áreas de trabalho que irão condicionar uma


gar importante aos pares, que conhecem


esses problemas, para vivê-los. Uma forma- conexão feliz entre os tempos de formação ini-

ção continuada dará pelo menos importân- cial e continuada.



cia igual aos pares e aos especialistas.


A área da elaboração de programas de



formação centrados no essencial e


Gerir inteligentemente o

preservando o essencial

“suporte em falso”

Os “perfis dos egressos” que dão sentido à


A formação se situa sobre um paradoxo


formação inicial devem ser, de um lado, evolu-


constitutivo. Como se encontra necessariamen-


tivos, para ter em conta mudanças objetivas do


te defasada com respeito ao trabalho de cam- contexto profissional e da evolução dos saberes;

po, sem o qual ela se reduziria a uma formação de outro, devem ser “econômicos”, no sentido de

“em serviço” (a necessidade da produção iria


que eles não podem visar a, nem cobrir, todas as


impor então suas leis, o que seria contra o di-


situações imagináveis (a experiência deverá ser


reito ao erro pressuposto pela aprendizagem: o construída), nem prover de know-how pronto e

que quer dizer que é impossível, em última ins- acabado, nem colocar à disposição todas as téc-

tância, ter uma boa formação “em serviço”!), ela


nicas de trabalho existentes.


se coloca como um “suporte em falso” (desali-


Seria desmesurado visar à exaustão. E isso


nhada, em situação de desequilíbrio) em rela- cingiria na rigidez algumas técnicas que, pela

ção a tal trabalho de campo. Durante a forma- força das circunstâncias, tornar-se-iam rotinas.

ção em geral, e no centro em particular, anali-


Para fugir ao mesmo tempo a uma especializa-


samos, preparamo-nos para tarefas que só se-


ção precoce, um fator de rigidez, e a uma ex-


rão assumidas quando sairmos da situação de cessiva fragmentação, um fator de incoerência,



formação. Embora naveguemos sempre no a formação deverá objetivar algumas compe-


meio de dois grandes riscos:


tências centrais integrativas, mais do que uma


• o risco de nos afogarmos no exercício da pluralidade de saberes particulares ou de habi-



ocupação em campo, se não houver o míni-


lidades demasiado específicas (Hadji, 1997).

mo de defasagem e de distanciamento ne-


Será preciso identificar essas competências


cessários para “domesticar” a tarefa;


centrais e estar atento ao surgimento de possí-


•o risco de se perder e de perder seu tempo veis novas competências (Perrenoud, 1999).


A área da invenção de modalidades em ação (e sem sacrificar, em nada, cada um dos



adequadas de trabalho pedagógico fatores dinâmicos em causa); inserindo-se numa



verdadeira dinâmica de projeto; concedendo à


As atividades a ser implementadas em fase


temporalidade das evoluções todo o espaço ne-
de “processo pedagógico” devem responder a


cessário; propiciando os meios de gerir de ma-


uma dupla condição:


neira inteligente o “suporte em falso” formação/


• não se limitar a atividades de ensino;


exercício profissional.


• estar em relação de analogia estrutural com



as práticas profissionais que se deseja de-


senvolver, segundo um princípio de isomor-
Bibliografia



fismo (Ferry, 1983).


AVANZINI, G. L’école d’hier à demain. Toulouse: Éditions


Isso equivale a solicitar aos formadores uma


Eres, 1991.


intervenção, aplicando os princípios suscetíveis de . L’éducation des adultes . Paris: Anthropos,


tornar eficaz o trabalho do professor. Portanto, isso

1996.

exige progressos nas pesquisas sobre a eficácia do ○

BARBIER, J.-M. (Dir.). Savoirs théoriques et savoirs d’action.
ensino e um grande esforço de ativa apropriação Paris: PUF, 1996.

BOURGEOIS, E. (Ed.) L’adulte en formation. Regards


dos resultados dessas pesquisas pelos formadores!


pluriels. Bruxelles: De Boeck Université, 1996.


BRESSOUX, P. Les recherches sur les effets-écoles et les


A área da criação de centros de


effets-maîtres. Revue Française de Pédagogie, n. 108,


formação ligados organicamente ao p. 91-137.



DEMAILLY, L. (Ed.) Évaluer des politiques éducatives .


campo do exercício profissional

Bruxelles: De Boeck Université, 2001.



Trata-se (e podemos pensar aqui no “novo DURAND, M. L’enseignement em milieu scolaire. Paris: PUF,

1996.

modelo para o desenvolvimento profissional dos


FERRY, G. Le trajet de la formation. Paris: Dunod, 1983.


professores”, de Huberman, 1986) de articular,

. Au détour de la formation: le contrepoint de


de maneira suficientemente forte, o centro de


la recherche. Recherche et formation, n. 1, p. 27–36.


formação (imaginado como “centro de desenvol- GAUTHIER, Cl. (Ed.) Pour une théorie de la pédagogie.

vimento profissional”, ou sistema de recursos) e Bruxelles: De Boeck Université, 1997.


o trabalho de campo (pensado como espaço de HADJI, Ch. Penser et agir l’éducation. 2. ed. Paris: ESF

emergência dos problemas, ou sistema do usu- Éditeur, 1995.


. Pratiques innovatrices, évaluation et éthique.


ário) para tornar possível, entre atividades de


In: AQPC. Actes du 17e Colloque Annuel. Montreal:


formação e atividades profissionais, uma relação


AQPC, 1997.
que não seja de aplicação (da teoria em direção

HÉTU, J.-Cl. et al. (Eds.) Jeunes enseignants et insertion


à prática), nem simplesmente de alternância (um


professionnelle. Bruxelles: De Boeck Université, 1999.


ir-e-vir entre teoria e prática), mas, sim, de HUBERMAN, M. Un nouveau modèle pour le développement

regulagem (uma conduta constante da prática à professionnel des enseignants. Revue Française de

luz de referenciais teóricos) (Ferry, 1983). Pédagogie, n. 75, p. 5–15, 1986.



LESNE, M. Lire les pratiques de formation d’adultes. Paris:


Assim, uma estratégia de formação continua-

Edilig, 1984.

da nos parece ser do tipo de ligar organicamen-


PAQUAY, L. et al. (Eds.) For mer des enseignants


te a atividade de formação ao campo profissio- professionnels. Bruxelles: De Boeck Université, 2001.


nal: superando, tanto quanto possível, as tensões


PERRENOUD, P. Dix nouvelles compétences pour


derivadas das lógicas antagônicas que estiverem enseigner. Paris: ESF Éditeur, 1999.














SIMPÓSIO 11

AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM,
CURRÍCULO E FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
Andy Hargreaves

Iza Locatelli

175
A avaliação em sala de aula:




o que está em jogo?






Andy Hargreaves



International Centre for Educational Change – Toronto/Canadá






A reforma liderada pela avaliação dos alu- (feedback) no processo de ensino, que decidam



nos é atualmente uma das estratégias mais como satisfazer às diversas necessidades de



favorecidas para promover padrões de ensino e aprendizagem dos alunos ( Tunstall e Gipps,


aprendizagem mais elevados, um aprendizado 1996) e que aprendam como compartilhar o pro-



mais consistente e formas mais confiáveis de cesso da tomada de decisões sobre o ensino e a


prestação de contas para o público em geral ○

aprendizagem com os colegas, pais e alunos
(Murphy e Broadfoot, 1995; Gipps, 1994; Black, (Stiggins, 1996; Gipps, 1994). Tais métodos alter-

1998). Embora avaliações prescritas pela legis- nativos também implicam repensar para que

lação e feitas em grande escala recebam uma servem a avaliação e o ensino: de que maneira

maior atenção, as avaliações em sala de aula são ambos podem vir em apoio a uma melhor apren-

as que mais importam nesse caso. São estas que dizagem e que tipos de objetivos, cobertura e

determinarão tanto a pedagogia a ser padrões curriculares a avaliação e o ensino po-



implementada em sala de aula quanto a apren- dem contribuir para melhor cumpri-los (Wiggins

dizagem dos alunos (Stiggins, 1991). Muitas re- e McTighe, 1998).


formas educacionais têm anunciado a chegada


Essas mudanças na avaliação em sala de


de novas abordagens de avaliação em sala de aula colocam grandes desafios para os profes-

aula, para além das tradicionais técnicas de lá- sores. Eles são os únicos a terem contato per-

pis e papel, incluindo estratégias como a avalia- manente e conhecimento íntimo com seus alu-

ção de desempenho e a avaliação baseada em nos e com o currículo, ambos requisitos para a

portfólio (Marzano, Pickering e McTighe, 1993; elaboração de um quadro nítido da aprendiza-



Stiggins, 1995). Tais avaliações alternativas têm, gem de cada um no decorrer do tempo (Earl e

freqüentemente, o objetivo de incentivar os alu- Cousins, 1995). Ao mesmo tempo, os educado-


nos a assumir maior responsabilidade pela sua res estão ficando menos confortáveis com a sua

própria aprendizagem, de assumir a avaliação habilidade em alcançar bons julgamentos por



como parte integrante da experiência de apren- meio de métodos de testar tradicionais. Testes

dizagem e de inseri-la em atividades autênticas universais e neutros são difíceis de ser desenha-

que valorizarão e estimularão as habilidades dos dos e manuseados quando as turmas de alunos

alunos em criar e aplicar uma ampla gama de são diversificadas. O que está sendo testado

conhecimentos, e não apenas participar em encontra-se em mudança. Na atualidade, os



ações de memorização e de desenvolvimento de alunos também devem analisar e aplicar a in-


habilidades básicas (Earl e Cousins, 1995; formação, além de se lembrar dela. As aparen-

Stiggins, 1996). tes certezas acerca do que devia ser avaliado e



As mudanças na avaliação em sala de aula como devia ser avaliado estão desmoronando,

representam mudanças importantes no e muitos professores não têm, hoje, clareza ou


paradigma da forma de pensar em relação à certeza daquilo que devem fazer enquanto lu-

aprendizagem, às escolas e ao ensino. Avaliações tam para atender bem a todos os seus alunos.

alternativas em sala de aula requerem que os pro- As atuais mudanças que ocorrem na avalia-

fessores usem o seu julgamento no que se refere ção em sala de aula apresentam oportunida-

ao nível de conhecimento das crianças, que com- des fascinantes para os professores, pois os

preendam como incorporar retroinformação confrontam com grandes dificuldades técnicas



176
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores

e exigem intensamente o uso de sua energia habilidades necessárias para integrar, na sua



intelectual e emocional. Este capítulo analisa prática, novas técnicas de avaliação, tais como



como os professores do nosso estudo lidaram as avaliações baseadas no desempenho, com



com a reforma na avaliação, às vezes introdu- portfólio, a auto-avaliação, os videojornais e as


zindo-a, eles mesmos, em suas turmas, e exa- exibições. Stiggins escreve a respeito do “anal-



mina as condições que vieram ou não em apoio fabetismo na avaliação”, que permeia as esco-



aos seus esforços. las, e sugere que:


A avaliação em sala de aula é um fenômeno 177



multifacetado. Muitas questões entram em jogo [...] sem uma visão muito clara do significado do



ao reformá-la, o que pode ser visto examinan- sucesso na escola e sem a capacidade de tradu-


zir essa visão em avaliações de alta qualidade,


do-se a reforma dessa avaliação à luz de dife-


rentes óticas. Baseando-nos no tratamento clás- permaneceremos incapazes de ajudar eficaz-



sico da inovação educacional feita por House mente os alunos a atingirem níveis mais eleva-


dos de aproveitamento escolar e a serem capa-


(1981) e na discussão de Habermas (1984) a res-


zes de integrar tais avaliações em suas práticas


peito das diferentes dimensões da ação huma-


(Stiggins, 1995: 238).
na, queremos chamar a atenção para três pers-



pectivas em inovação educacional – a técnica,

○ As avaliações alternativas apresentam um
a cultural e a política – às quais acrescentamos

emaranhado de questões técnicas:


uma quarta: a perspectiva pós-moderna.


• demandam muito tempo (Stiggins, 1996);

A perspectiva técnica

• levantam preocupações sobre sua confia-


bilidade e validade (Linn, Baker e Dunbar,



Segundo House, a perspectiva técnica (ou 1991);


tecnológica) supõe que o ensino e a inovação


• às vezes, é difícil separá-las do próprio en-


são tecnologias com soluções previsíveis, que


sino e aprendizagem (Khattri, 1995);


podem ser transferidas de uma situação para


• na maioria da vezes, não são adequadamen-


outra. O foco dessa perspectiva está dirigido à


te descritas (Stiggins e Bridgeford, 1985).

própria inovação, nas suas características e



componentes e na sua produção e introdução, • freqüentemente pressupõem que os profes-


sores já possuem as suficientes habilidades


como tecnologia. A suposição subjacente den-


para implementá-las (Earl e Cousins, 1995).


tro da perspectiva técnica é que todos compar-


tilham um interesse comum pelo avanço da ino- A avaliação alternativa em sala de aula cons-

vação e de que os objetivos desta estão ou já titui um mundo novo para os professores, sen-

fixados, ou além de qualquer questionamento. do que a maioria deles possui pouco (se é que

Tudo o que resta a fazer é determinar a melhor possui algum) treinamento em avaliação. Fal-

maneira de implementá-la (House, 1981). tam-lhes, freqüentemente, os conhecimentos



No campo da reforma da avaliação, a pers- básicos do processo de medição e, em geral,



pectiva técnica se concentra em questões de or- sentem-se pouco confortáveis com a qualida-

ganização, estrutura, estratégia e habilidade em de de suas avaliações (Stiggins, 1991). Os pro-



desenvolver novas técnicas. Aqui, a avaliação fessores estão sendo compelidos a se tornarem

alternativa é uma tecnologia complexa, que exi- mais sofisticados quanto à implementação de

ge perícia sofisticada em, por exemplo, dese- novas estratégias de avaliação (Cunningham,

nhar medições válidas e confiáveis para avalia- 1998). Além de seu empenho em dominarem as

ções baseadas no desempenho em sala de aula, habilidades necessárias para se tornarem ava-

as quais irão captar as complexidades do de- liadores competentes, muitas restrições insti-

sempenho do aluno (Torrance, 1995). O desa- tucionais criam problemas técnicos que tornam

fio é criar tecnologias defensáveis que sejam difícil a implementação de tais avaliações. Al-

significativas e justas, e também ajudar os pro- guns dos problemas seriam a falta de tempo, a

fessores a desenvolverem a compreensão e as escassez de recursos, de desenvolvimento pro-




fissional e de orientação para os professores se blemas (Sheppard, 1991). Esse tipo de avaliação



tornarem profissionais mais eficazes com as tem sido descrito como “autêntico”. Wiggins de-



novas estratégias de avaliação (Stiggins, 1996). fine a avaliação autêntica como:



Em suma, a perspectiva técnica requer


atenção para as dificuldades em elaborar e [...] o trabalho dos alunos que imita / estimula



aprimorar formas válidas de medição; para os tarefas / critérios / contextos básicos realizados



desafios que os professores enfrentam quan- por aqueles que desempenham atividades na-


do adquirem uma variedade maior de habili- quelas áreas do conhecimento. Assim sendo,



dades e estratégias de avaliação; para a neces- encontrar um problema de pesquisa, desenhar



sidade de harmonizar as expectativas da ava- o experimento, eliminar os defeitos do desenho,


publicar os resultados, defendê-los contra evi-


liação entre o lar e a escola, bem como entre


dências e argumentos contrários constitui o ato
os níveis escolares; e para a questão do tempo



de “fazer” Ciência autenticamente (ao contrário
e dos recursos que contribuem ou restringem


de laboratórios que fazem Ciência como se fos-

a implementação de novas práticas de avalia-


sem livros de receita, transformados realmente
ção nas rotinas da escola. ○

em apenas lições já prontas). Dessa forma, os


matemáticos não ganham a vida preenchendo


A perspectiva cultural

planilhas – eles aplicam modelos matemáticos



a problemas teóricos e práticos etc. Na minha


A perspectiva cultural orienta a atenção para

opinião, a avaliação autêntica não deveria ser


a maneira como as inovações são interpretadas


definida como de importância ou dotada de sen-


e integradas no contexto social e cultural das


tido para crianças, tal como alguns autores a


escolas. Essa perspectiva está basicamente pre- definem. Para mim, esse é um erro bastante

ocupada com questões de significado, de com-


revelador, indicando que aquele que a está de-


preensão e de relações humanas. House (1981) finindo não pensa como um avaliador preocu-

sugere que o processo de inovação é realmente pado com a validez e a previsibilidade (em vez

uma interação de culturas, na qual a mudança de pensar como um professor que torne o ver-

mistura novas idéias com o histórico cultural da dadeiro trabalho acessível e interessante em

escola. Sob a perspectiva cultural, o desafio re- aula). (Wiggins, 1999, comunicação pessoal).

presentado pela reforma da avaliação é o de


reculturar (Fullan, 1993; Hargreaves, 1994) as


Nesse sentido, a avaliação “autêntica” é


relações humanas envolvidas nos processos de multidirecional, direta, profunda e depende em



avaliação – entre e no meio de alunos, profes- grande medida dos julgamentos dos professo-

sores e pais. res. Os alunos se envolvem em “tarefas reais”


A avaliação alternativa em sala de aula não


sob o olhar atento de um professor (ou vários


acontece no final da aprendizagem de uma clas- professores) que controla a agenda e faz uso

se, de uma unidade, de um semestre ou ano leti- positivo das oportunidades para propiciar uma

vo. Ela é parte integrante de ou uma janela que retroinformação, ou feedback (Torrance e Pryor,

dá para a própria aprendizagem durante o pro- 1998). Os critérios de avaliação não estão ocul-

cesso (Earl e LeMahieu, 1997; Wiggins e McTighe, tos nem são misteriosos. Os professores se en-

1998; Broadfoot, 1996). Ela se preocupa menos contram motivados a ensinar para o teste já que

em categorizar os alunos ou os resultados do as tarefas dos alunos incluem situações reais


conhecimento do que em desenvolver uma com- que precisam dominar para obter sucesso

preensão comum entre pessoas sobre quando e (Cunningham, 1998). Essa abordagem envolve

como ocorre a aprendizagem. Tal avaliação deve o diálogo com e entre os alunos e inclui uma

ser suficientemente sensível para detectar as re- reavaliação constante, uma permanente auto-

presentações mentais que os alunos formam so- avaliação e uma avaliação mútua entre colegas

bre idéias importantes. Ela terá de ser capaz de de turma. Neste caso, os alunos contribuem de

discernir até que ponto os alunos aplicam bem maneira ativa, engajada e desafiadora para a sua

aquilo que compreenderam para resolver pro- própria aprendizagem.


178
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores

Em suma, a perspectiva cultural de avalia- nos e freqüentemente desenvolvidos com a co-



ção em sala de aula enfatiza a interação entre laboração deles, para que assim possa haver



pontos de vista, valores e crenças. A tarefa de uma melhor compreensão e o poder na sala de



desenvolver avaliações alternativas vai muito aula possa ser redistribuído; que os julgamen-


além de questões técnicas de medição, habili- tos da avaliação sejam atos de negociação ex-



dade, coordenação e das relações existentes ao plícita entre todos os envolvidos; e que os pro-



se estabelecer uma comunicação e construir um cessos de avaliação se movam em múltiplas


entendimento entre todos aqueles que estão direções, por exemplo, de aluno para aluno, de 179



envolvidos no exercício da avaliação. aluno para professor e entre pais de alunos e



professores, bem como de professor para alu-



no. Essa é uma mudança fundamental na polí-
A perspectiva política


tica de avaliação à qual se recorreu durante



Toda avaliação acarreta atos de julgamen- décadas de prática, quando os professores se



to. O que, por sua vez, envolve o exercício e a utilizavam de seu poder para julgar e classifi-


negociação de poder, autoridade e interesses


car os alunos com base em critérios e proces-


competitivos entre diferentes grupos. Isso nos sos que eram misteriosos, secretos e freqüen-



leva ao cerne da perspectiva política sobre a temente arbitrários.

avaliação alternativa. Essa perspectiva vai além Em segundo lugar, se, de um lado, a avalia-

dos temas de coordenação técnica e de comu-


ção alternativa se compromete a estabelecer


nicação humana para abranger as lutas de po- relações micropolíticas mais positivas entre

der entre grupos ideológicos e de interesses nas professores, alunos e pais, do outro, a política

escolas e sociedades. Ela também trata a avalia- também pode minar a implementação dessas

ção alternativa em sala de aula como uma es- novas estratégias. Por exemplo, as escolas de

tratégia potencialmente problemática que, em Ensino Médio quase sempre pressionam as do



vez de outorgar poderes às pessoas, pode se Ensino Fundamental para usarem formas mais

transformar em uma nova e sofisticada forma convencionais de medição e de elaboração de


de seleção e de patrulhamento. Três aspectos relatórios. O mesmo fazem os pais. A coorde-



da perspectiva política são importantes para o nação das expectativas de avaliação entre co-

debate em torno da avaliação. munidades e sistemas é um desafio político


Em primeiro lugar, a avaliação alternativa


considerável para os reformadores, bem como


ou divergente, em sala de aula ( Torrance e um desafio técnico.



Pryor, 1988), coloca ênfase na compreensão do Muitas dessas contradições que surgem

aluno mais do que na agenda do avaliador. Ela com os nossos dados estão embutidas na pró-

se concentra em descobrir o que a criança


pria política de avaliação. Elas representam


sabe, compreende e pode fazer. Os alunos têm diferentes pontos de vista acerca da avaliação

de assumir alguma responsabilidade pela defendidos pelos professores, de um lado; e os



aprendizagem, e os professores estão encarre- pontos de vista tanto dos formuladores de po-

gados de criar as condições para que isso ocor-


lítica educacional quanto do público real e


ra. A avaliação é parte essencial do processo imaginário aos quais eles atendem, do outro.

da aprendizagem, que permite que os profes- Essas forças contraditórias têm tornado a re-

sores, os alunos e os pais identifiquem em que forma da avaliação uma atividade esquizo-

grau ocorreu essa aprendizagem e, assim, es-


frênica (Earl e LeMahieu, 1997; Firestone,


tabeleçam os rumos para o próximo estágio Mayorowetz e Fairman, 1998). Será difícil ter a

(Earl e LeMahieu, 1997; Gipps, 1994; Stiggins, esperança de que os professores possam har-

1995). Nessa abordagem, será importante que monizar suas práticas avaliatórias, enquanto

os critérios da avaliação sejam transparentes,


os formuladores de políticas educacionais e o


disponíveis por igual para todos e publicamen- público em geral não o conseguem.

te contestáveis em sua aplicação; que os crité- Essas inconsistências estão profundamen-



rios de avaliação sejam conhecidos pelos alu- te embutidas na política educacional (Nuttall,

1994; Darling-Hammond, 1992). Um grupo de sobre expectativas consistentes e eqüitativas



reformadores sustenta que a mudança educa- em termos de qualidade e criem circuitos com



cional e uma melhor aprendizagem por parte retroinformação (feedback), destinados a alte-



dos alunos são responsabilidades de algum in- rar a maneira como estão ensinando (a perspec-


divíduo ou grupo externo com a devida autori- tiva cultural).



dade, com o poder de julgar a qualidade, de O enigma prático e político para os profes-



exercer controle e de ordenar o seu cumprimen- sores é que os formuladores de políticas edu-


to. A avaliação seria então utilizada como um cacionais, com freqüência, evitam ter de esco-



mecanismo para proporcionar evidências para lher entre essas diferentes posições de valor



tais decisões. O que esses grupos de acerca da mudança educacional e os grupos de



reformadores desejam são dados de avaliações reformadores que as apóiam. Para manter o


sólidos, numéricos, padronizados e compará- apoio e evitar críticas, eles embaralham os as-



veis, colhidos a partir de testes ou de exames suntos e tentam agradar a ambos os lados



objetivos aplicados de forma consistente em (Hargreaves, Earl e Ryan, 1996; Firestone, 1998),


grandes populações. Essa visão baseia-se, ○
adotando padrões comuns e variação individu-
freqüentemente, na suposição de que os pro- al, comparabilidade numérica e sensibilidade

fessores têm tanto a capacidade quanto a habi- descritiva, melhorando a aprendizagem indivi-

lidade de agir de maneira diferente e mais pro- dual do aluno e apaziguando as exigências por

dutiva, mas que são dispersos, recalcitrantes, uma prestação de contas no âmbito do sistema

preguiçosos ou desmotivados. O remédio ób- como um todo. De resto, os professores terão



vio para melhorar a aprendizagem dos alunos é de arcar com as conseqüências – as quais, tal

o de exercer pressão e de emitir diretrizes de como veremos, mesmo nossos professores par-

reforma educacional. tidários de mudanças consideram irritantes.



Outros reformadores acreditam que a mu- Portanto, a resolução dessas contradições de-

dança educacional e uma melhor aprendizagem veria constituir um problema político a ser re-

dos alunos sejam, em grande medida, proces- solvido pelos formuladores de políticas educa-

sos internos que as pessoas que vivem e traba- cionais, e não simplesmente um problema prá-

lham em sala de aula devem empreender. O tico a ser descarregado sobre os educadores.

principal objetivo da avaliação, neste caso, se- A perspectiva política também realça os ris-

ria o de contribuir com os professores e alunos cos e os excessos das próprias práticas de avali-

para a melhoria da aprendizagem em sala de ação alternativa. Isso é especialmente verdadei-



aula. A avaliação seria uma oportunidade para ro na avaliação do afeto, situação em que alguns

refletir, questionar, planejar, ensinar, estudar e professores parecem exercer um patrulhamento



aprender. A reforma na avaliação não estaria comportamental sobre tudo aquilo que os seus

conectada ao acatamento de ordens, mas alunos fazem, como uma forma interminável de

enraizada na visão construtivista de que a julgamento e da qual não parece haver saída

aprendizagem depende de um automonito- (Foucault, 1977; Hargreaves, 1989). A avaliação



ramento e de uma reflexão. Os reformadores contínua do aluno, a auto-avaliação, a avalia-


defensores desta postura pressupõem que mui- ção dos pares e a avaliação com portfólio po-

tos professores não possuem atualmente o co- dem transformar os alunos, considerados indi-

nhecimento ou as habilidades no que se refere vidualmente, em casos documentados ou em



às mudanças nas teorias da aprendizagem ou dossiês, que podem ser consultados e citados

da avaliação (a perspectiva técnica) e requerem no futuro para classificá-los, normalizá-los ou



apoio para adquirir conhecimento e treinamen- excluí-los de alguma forma (Foucault, 1977).

to antes que possam mudar suas práticas. Se- Tais processos permitem que a seleção educa-

gundo essa visão, a reforma da avaliação provê cional seja autoconduzida e que o insucesso

uma oportunidade para que os professores escolar venha a ser revelado aos poucos, em

intercambiem idéias e discutam sobre seus pa- estágios, em doses homeopáticas, tal como os

drões de forma coletiva, cheguem a um acordo médicos são levados a fazer com seus pacien-

180
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores

tes nos hospitais, em vez de revelações repen- e as experiências de avaliação que alguns des-



tinas e chocantes acerca de doenças terminais crevem como “autênticos” são, em diversos sen-



(Hopfl e Linstead, 1993). As avaliações alterna- tidos, problemáticos. Assim, muito pouco é



tivas poderiam encenar revelações graduais do inquestionável ou indiscutivelmente “verdadei-


insucesso escolar, assim como a medicina mo- ro” num mundo pós-moderno. Existem poucas



derna nos encena a revelação da morte. respostas “corretas” ou, inclusive, processos de



Em resumo, a perspectiva política desperta avaliação que possam ser considerados como


a atenção para os atos e para as relações de po- “os melhores”. A avaliação alternativa pode ser 181



der incorporadas nos processos de avaliação, diversificada, de largo alcance, negociada, in-



tomem eles a forma de delegação de poderes clusiva e multifacetada, mas é exatamente por



para práticas de avaliação compartilhada, aber- isso que ela não pode ser “autêntica” no senti-


ta e negociada e de produção de relatórios de do de revelar alguma verdade imperativa.



resultados, de jogos de poder entre grupos de Na era da educação eletrônica, quando os



interesses concorrentes e suas expectativas no alunos têm o poder de colher informação ins-



campo da avaliação ou de formas mais sutis e tantânea proveniente de diversas fontes


sinistras de poder que possam impregnar e clicando num mouse, ou de fazer um download



infectar as próprias práticas de avaliação alter- de fotografias e gráficos em formato de pizza,

nativa com processos de patrulhamento em vez de os professores mesmos compilarem



comportamental e com práticas de seleção e representarem os dados, é mais difícil para


disfarçadas e “terapêuticas”, as quais se tornam eles decidir o que é real e o que é falso, perce-

a antítese daquilo que a avaliação alternativa ber quando o trabalho dos alunos é efetivamen-

alega ser. te deles, determinar se as fontes das quais ex-


traíram os dados de seu trabalho são bem con-



ceituadas e decidir se essas coisas têm impor-


A perspectiva pós-moderna

tância. Da mesma forma, no paradigma pós-



A perspectiva pós-moderna da avaliação al- moderno, é patente que as avaliações não po-

ternativa baseia-se na visão de que, no mundo dem ser “autênticas”, nesse sentido de ser sua

complexo, diverso e incerto de hoje em dia não origem indiscutível.



se pode conhecer integralmente os seres huma- Nesse sentido, enquanto um dos significa-

nos. Em salas de aula culturalmente diversas, a


dos de “autêntico”, segundo o dicionário


maneira como as crianças aprendem, pensam, Webster’s, é “em estreita conformidade com o

sentem e acreditam é reconhecida como sendo original: reproduz de forma precisa e satis-

complexa (Ryan, 1995). O que é importante ou fatória os traços essenciais”, como num retra-

real para as crianças de hoje em seu mundo da


to, as avaliações alternativas são realmente


“realidade virtual” – de CDs, MTV, walkmans, menos fotografias “realistas” ou retratos “fiéis”

discmans, computadores, videogames e televi- e, sim, mais pinturas cubistas – representan-



são de múltiplos canais – também é complexo do e interpretando, em vez de reproduzir a rea-


e está em constante mutação (Castells, 1997).


lidade, a partir de múltiplos ângulos e perspec-


“Os alunos mudaram”, dizem os professores. tivas.



Eles já não mais parecem ser conhecíveis ou Por último, ainda segundo o Webster’s, “au-

previsíveis. Muitos professores atualmente sen- têntico” também pode significar que possui

tem que têm “seres estranhos em suas turmas”


“sinceridade completa, sem disfarce nem hipo-


(Green e Bigum, 1993). crisia”. Entretanto, o mundo pós-moderno da



Nesse cenário complexo e mutável, nenhum simulação é aquele onde a ilusão é dissemina-

processo ou sistema de avaliação pode ser com- da e aceitável, onde calças jeans novas são des-

pletamente amplo, de incontroversa precisão


botadas para parecer velhas, onde alguns pré-


ou inabalavelmente revelador da “verdade”, da dios modernos recebem fachadas tradicionais,



essência da aprendizagem ou do aproveitamen- onde a música digital soa melhor do que o con-

to escolar das crianças. De fato, os significados certo ao vivo e onde rochas falsas adornam os

saguões espetaculares de hotéis em Las Vegas, mas de representação seriam reduzidas ou eli-



porque parecem mais reais do que as próprias minadas, fazendo com que o aproveitamento de



reais (Retzer, 1998). Avaliações “autênticas” si- alunos vindos de culturas visualmente orienta-



mulam a realidade tanto quanto a criam, pro- das, por exemplo, não fosse minorado quando


duzindo, por exemplo, lindas falsificações de comparado com o aproveitamento de alunos



publicações de livros, representações teatrais cujo ponto forte reside nas áreas da escrita e da



ou portfólios artísticos. Em todas essas manei- aritmética. Essa abordagem permite que o tra-


ras, será importante tratar a avaliação “autênti- balho e o aproveitamento dos alunos sejam vis-



ca” não como um clichê, mas, sim, como uma tos através de múltiplas perspectivas, bem



questão de indagação crítica (Meier, 1998). como permite que a complexidade de suas ap-



A perspectiva pós-moderna aponta tanto tidões e identidades seja reconhecida com mais


para os riscos quanto para as oportunidades na facilidade.



reforma da avaliação. Pelo lado dos riscos, as Tal abordagem pós-moderna envolve, ain-



avaliações alternativas, especialmente aquelas da, a participação dos alunos no processo de


com portfólio, podem simular mais do que es- ○
avaliação e na determinação de como os pro-
timular o aproveitamento escolar. Os alunos e dutos da avaliação poderão ser compilados e

os professores podem ser induzidos a valorizar utilizados. Esse envolvimento dos alunos não é

a forma mais do que a essência, a imagem mais apenas um ato de cessão de poderes: ele é tam-

do que a realidade – com trabalhos em capas bém uma maneira de os professores admitirem

brilhantes, com fontes elegantes, entremeados que não podem começar a conhecer seus alu-

de gráficos e diagramas multicores, que pode- nos sem terem acesso ao auto-entendimento

riam mascarar conteúdos e análises medíocres. feito por eles.


O portfólio pode se transformar num dispositi-



vo que serve para conduzir e definir o aprovei-


Conclusão

tamento dos alunos de forma tal que eles che-



guem a prestar serviços à comunidade ou a rea- Em vista das contradições e das complexi-

lizar atividades extracurriculares, não por cau- dades que vieram à tona com essas diferentes

sa de seu valor moral, mas porque querem ter o perspectivas, não é surpresa nenhuma que os

curriculum vitae ou o portfólio certo. Dessa for- professores, em nosso estudo, nos tenham dito

que a avaliação foi a parte “mais difícil” de seu


ma, as avaliações com portfólio e aquelas de


desempenho podem chegar a banalizar e mi- trabalho. A maioria das conversas que tivemos

norar a essência da aprendizagem, reduzindo- centraram-se na tentativa de ligar suas práticas



a a aparências superficiais e a uma “autentici- de avaliação e de produzir relatórios dos resul-


tados; de tentar superar expectativas contradi-


dade artificialmente elaborada” (Mestrovic,


1997), num mundo sem rigor, de melhorias que tórias; de estabelecer um canal de comunica-

apenas induzam a “sentir-se bem”, bem como a ção com os pais; de fazer com que os alunos

aquilo que Ritzer (1998) chama de cultura participem; de usar uma variedade de procedi-

mentos de avaliação alternativa; e de questio-


Disneyesca da “leveza”.

Em termos mais positivos, as práticas pós- nar tanto suas próprias práticas de avaliação

modernas de avaliação podem oferecer múlti- quanto as dos outros. Os professores também

plas representações da aprendizagem dos alu- se manifestaram acerca de suas sensações de


desconforto e de incerteza com relação à avalia-


nos, de maneiras tais que resultem em dar mais


voz e visibilidade para suas diversas atividades ção dos alunos e à avaliação do próprio traba-

e realizações, através de meios de comunicação lho pedagógico e confessaram que essa ansie-

escritos, numéricos, orais, visuais, tecnológicos dade já existia muito antes dos episódios recen-

tes de mudança curricular. É preciso olhar de


ou teatrais, os quais incorporariam uma mistu-


ra de estilos num portfólio diversificado quan- perto a maneira como essas complexidades e

to a atividades e aproveitamento. Distinções contradições se fizeram sentir no trabalho des-



hierárquicas de valor entre essas diferentes for- ses professores.


182
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores

Avaliação escolar no contexto




de novas competências:




o diálogo entre as escolas




e os sistemas de avaliação




183



Iza Locatelli*







A avaliação dos sistemas de ensino é algo liação das escolas por si próprias. Neste caso,


recente no Brasil. Temos apenas uma década de


além das avaliações nacionais, estaduais e mu-


avaliações sistemáticas, entendendo-se estas nicipais e além de avaliar sistematicamente os



como um processo amplo de tomada de deci- alunos, cada escola deve se auto-avaliar em fun-



sões no âmbito do sistema federal e dos siste- ção de seus programas, projetos, materiais pe-

mas estaduais e também municipais. A partir da ○

dagógicos, recursos, professores, gestão, pesso-
constituição do Sistema Nacional de Avaliação al de apoio, alunos e infra-estrutura.

da Educação Básica (Saeb), começou-se a esten- A importância de a escola se auto-avaliar está



der o âmbito da avaliação para além da avalia- no fato de que, sendo o local onde as coisas acon-

ção de alunos, com a introdução de novas ques-


tecem, é na escola que se dará o diálogo entre a


tões que permitiram detectar fatores associados equipe, pais, alunos e autoridades gestoras do

ao seu desempenho. Hoje, mais do que conteú- sistema. Toda a comunidade da escola deve ser

dos, são analisadas competências e habilidades, preparada para poder combinar os produtos das

o próprio currículo, os hábitos de estudo dos avaliações externas (como a realizada pelo Saeb)

alunos, as estratégias de ensino dos professores, e de suas próprias avaliações internas. Só uma

o tipo de gestão dos diretores e os recursos a eles boa e séria avaliação interna permitirá às esco-

oferecidos para melhor realizarem seu trabalho. las a construção de um diálogo efetivo com a ava-

A coleta, a análise e a disseminação desses da- liação externa. Quando isso não ocorre, a avalia-

dos compõem, hoje, uma parte expressiva da ção externa pode gerar atitudes defensivas, não

agenda de desafios compartilhada por todos os atingindo seus objetivos.



sistemas de avaliação, em seus diferentes níveis. A avaliação intra-escolar é um processo que


Apesar desses avanços e embora se fale mui- exige tomada de consciência da importância da

to em mudanças e inovações do sistema educa- avaliação para que se estruturem processos de



cional estimuladas pela avaliação, qualquer mudanças. Envolve, ainda, descentralização e



mudança tem de ser assumida e implementada treinamento de equipes escolares.


dentro das escolas. Mudar a educação é mudar Cabe aos gestores de políticas públicas em

a escola. Se tivermos a intenção de usar a avalia- educação, agora que a avaliação já está sendo

ção para melhorar a educação, ela terá que ser institucionalizada, tomar iniciativas para que

trabalhada dentro das escolas, além do nível em grupos de escolas se reúnam, discutam seus

que vem sendo executada. problemas, formulem estratégias de avaliação,



A avaliação, segundo Nevo (1995), deve pas- utilizem a linguagem da avaliação, descubram

sar “[...] de um discurso de descrição e julgamen- suas potencialidades e façam as adequações


to para um discurso de diálogo”. A avaliação do


necessárias de suas ações às necessidades es-


sistema de ensino deve se basear também na ava- pecíficas de suas clientelas.







* Diretora de Avaliação da Educação Básica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Daeb/Inep). Doutora em Educação

pela PUC/RJ.

Ninguém, na realidade, aprende a avaliar dis- refa buscar o equilíbrio e a harmonia entre o



cutindo conceitos de avaliação. É preciso experi- desenvolvimento humano sob a égide da res-



mentar, tentar, criar estratégias, envolver a equi- ponsabilidade com a vida em sociedade. Edu-



pe, tendo como horizonte melhorar a qualidade camos ou devemos educar para a vida coletiva.


da educação e diminuir índices negativos, sejam Devemos, portanto, avaliar, também, as com-



de desempenho, evasão ou repetência. Normal- petências sociais e não apenas os conhecimen-



mente, deve-se selecionar alguma questão e tos operacionais.


envidar esforços para praticar a avaliação interna Se educamos para a vida social, imensa é a



sobre essa questão. Não é difícil organizar uma tarefa de lidar, por exemplo, com a competência



base de dados por escola, base esta que deverá comunicativa que não se esgota no ensino das



conter os índices de matrícula, evasão, desempe- regras e normas da Língua Portuguesa. Para que


nho, repetência, projetos implementados, currí- os estudantes ascendam à cultura e obtenham



culo praticado e tudo que for julgado pela equipe sua própria autonomia, toda a educação deve



como insumo necessário à avaliação da escola. converter-se num processo comunicativo, pois


Envolver professores, pais e alunos na tare- ○
é com e através da linguagem que os estudantes
fa de avaliação intra-escolar não é fácil, mas não constroem e desenvolvem seus conhecimentos

é impossível. Quando se descobre onde estão num diálogo consigo próprios, com o “outro” e

os “nós”, é mais fácil desatá-los e criar laços. com o mundo, seja este “outro” o professor, a fa-

À medida que as escolas começarem a efe- mília, a televisão, a internet, os colegas.


tuar suas próprias avaliações, haverá maior faci- É através da linguagem que os alunos dão

lidade em obter subsídios a partir das avaliações significado a sua própria experiência e dão sen-

externas, de tal forma que o processo avaliativo tido às experiências dos outros. A linguagem está

cumpra sua função: mudar o que precisa ser na base da formação do universo conceitual do

mudado, aperfeiçoar o que precisa ser aperfei- homem e dá suporte à função cognitiva, permi-

çoado, construir o que precisa ser construído. tindo ao sujeito abstrair o mundo, conceituar

A avaliação, portanto, deve servir de base para sobre ele, simbolizá-lo, transformá-lo e

o diálogo e não para dar origem a descrições comunicá-lo. A linguagem, entendida como

assertivas e unilaterais. Escolas habilitadas à ava- mediação necessária, não é instrumento apenas

liação interna entenderão que avaliar é um pro- de comunicação ou de transmissão de informa-



cesso contínuo, coletivo e não uma atividade iso- ção, mas é ação que transforma, lugar de confli-

lada. Desta forma, se envolvidas em sua própria to, de confronto ideológico.



avaliação, as escolas terão condições de se con- Na avaliação da competência comunicati-



frontar com diferentes perspectivas e conclusões. va, isto é, na análise das possibilidades que tem

No âmbito da avaliação específica dos alunos, um estudante para compreender, interpretar,


tarefa a que as escolas se dedicam com mais vi- organizar, negociar e produzir atos de signifi-

gor, é preciso levar em conta a mudança de cação, por meio de distintas formas de lingua-

enfoque nos processos avaliativos. Já não basta a gem, destacam-se a leitura e a escrita. A leitura

avaliação dos conteúdos aprendidos mas torna- e a produção de textos não se fazem apenas na

se cada vez mais necessário avaliar as competên- escola, mas não há dúvida de que este é um lo-

cias e habilidades desenvolvidas pelos alunos. cal privilegiado para que crianças, adolescen-

O objetivo primordial do processo de edu- tes e jovens se apropriem das ferramentas ne-

cação deve ser o de desenvolver nos alunos es- cessárias para serem sujeitos ativos na compre-

tratégias para aprender a pensar e para saber o ensão e na produção de textos.



que fazer com a imensa quantidade de infor- O desenvolvimento desses processos, den-

mações recebidas na sociedade contemporâ- tro da ótica da competência comunicativa, é



nea. Já não cabe mais à escola ensinar ao aluno resultado de um processo histórico de sociali-

diferentes conteúdos, em geral desvinculados zação e depende das oportunidades que se ofe-

das práticas sociais, políticas, econômicas e reçam na escola, e fora dela, de ler/viver textos

culturais. O serviço educacional tem como ta- com compreensão e de produzir textos em fun-

184
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores

ção da construção de novos saberes que vão se o texto é apenas tinta sobre papel, num segundo



fazendo através da vida em si e da vida na esco- momento, aquele vazio é preenchido com uma



la. Se a função primeira da linguagem não é a troca entre o que é dito e o que se pensa sobre o



informação e se tomamos o texto como unida- que é dito. Não há homogeneidade entre o que


de significativa constituída pela interação, não diz o texto e o que o texto diz ao leitor. A partir



há por que considerar um sentido literal e seus do reconhecimento dessa heterogeneidade, o



efeitos: há múltiplos sentidos, há polissemia. leitor consegue interpretar o texto reconhecen-


Embora a escola não seja o único centro de do que quem fala através do texto é alguém di- 185



produção de saberes, é ela que dá ao estudante ferente de si próprio.



os instrumentos necessários que lhe irão per- As competências de leitura dos alunos expres-



mitir ser um sujeito ativo na construção de co- sam-se por meio do reconhecimento explícito das


nhecimentos. Esses instrumentos envolvem informações contidas no texto até o desvelamento



muito mais do que a memorização de regras de suas estratégias de sentido das condições prag-



descontextualizadas. O ensino e a avaliação em máticas que geraram sua produção.



Língua Portuguesa envolvem processos concre- Em relação às competências na área de Ma-


tos de comunicação que solicitam do sujeito o temática, já há alguns anos a escola vem mu-



exercício de determinadas habilidades. dando a postura antes adotada. Não mais a

Isso não significa desconhecer a importân- Matemática da memorização e da resolução de



cia do conhecimento sobre a língua mas é pre- séries intermináveis de exercícios para fixar

ciso que este não se faça sem uma consciência determinados conhecimentos, mas uma outra

das condições pragmáticas da enunciação em vertente que visa à contextualização do objeto



contextos particulares e específicos. de estudo. A educação matemática hoje está ou


O processo de interpretação textual supõe deve estar voltada para a vida.



uma série de operações que o leitor executa O conhecimento matemático caracteriza-se



sobre o texto. O leitor dialoga com palavras, por dois componentes inseparáveis: conceitos

ilustrações, gráficos etc. e constrói efeitos de e procedimentos, e deve ser construído a partir

sentido em que se mesclam os saberes do leitor de situações que permitam aos estudantes

e os saberes do texto. Sempre o leitor estará se construir significados.



confrontando com seus conhecimentos e as cir- O conhecimento conceitual caracteriza-se



cunstâncias da enunciação. “Quando se diz por um conjunto de fatos, conceitos, estrutu-


algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade ras e teorias. Já o conhecimento dos procedi-

para outro alguém também de algum lugar da mentos caracteriza-se por habilidades, estraté-

sociedade e isso faz parte da significação” gias e métodos que permitem aos alunos ma-

(Orlandi, 1987: 26). nifestar as relações e conexões existentes entre


Para que ocorra o processo de compreen- esses fatos, conceitos e estruturas.



são, o aluno precisará utilizar conhecimentos No que toca à avaliação, é importante tra-

prévios, representações sobre diferentes expe- balhar com as situações que dão sentido aos

riências vividas ou percebidas e saberes cons- conceitos matemáticos, entendendo-se que o


truídos nas relações com outros sujeitos e com sentido não está nem nas situações nem nas

o mundo. Através desses intercâmbios é que o representações simbólicas e, sim, na relação do



leitor irá construindo hipóteses de leitura so- sujeito com as situações e os significados. As-

bre o que estará dizendo o texto. sim, a avaliação em Matemática deve estar

As hipóteses de leitura de cada um são mui- centrada na resolução de situações problemas.



to amplas. No entanto, vão se estreitando à me- Estas, por sua vez, devem exigir do estudan-

dida que o leitor avança com a leitura. Vão sen- te diversos níveis de raciocínio, tentando fazer

do descartadas certas hipóteses e outras vão sen- emergir diferentes competências. Em cada si-

do construídas. O leitor constrói o sentido do tuação- problema devem estar subjacentes dis-

texto num jogo de ensaios e erros, de generali- tintas estruturas matemáticas. Assim, pode-se

zações e abstrações. Se num primeiro momento avaliar os alunos em vários níveis referenciados

à Aritmética, à Estatística, à Geometria etc. Em bre este tema.



muitos momentos, pode-se levar o aluno a ape- Currículo, avaliação e formação de profes-



nas realizar operações; em outros, a identificar sores baseados em novas competências pode-



representações, a estabelecer equivalências e rão servir à transformação de nossas escolas.


relações matemáticas simples ou complexas, a Mudar a educação é mudar a escola e essa mu-



buscar estratégias que relacionam vários con- dança só ocorre com participação, compromis-



ceitos e fatos, operações. so e competência de todos os envolvidos no


A resolução de problemas está presente em processo educacional.



nossa vida o tempo todo: resolvemos problemas Somente assim, com a participação ativa



pessoais, problemas sociais, problemas cientí- das próprias escolas no processo avaliativo será



ficos, e só se aprende a resolver problemas, re- possível o diálogo com os dados coletados pe-


solvendo-os. Todo o ensino de Matemática deve los sistemas de avaliação, instituindo-se um



pois centrar-se na resolução de problemas. espaço promissor e comprometido com mu-



A avaliação escolar no contexto de utiliza- danças para uma educação de qualidade.


ção de novas competências deveria, portanto, ○

ser trabalhada em duas vertentes: a avaliação



intra-escolar envolvendo as ações e relações



realizadas e estabelecidas no âmbito da escola


Bibliografia

e a avaliação centrada na análise das compe-


tências e habilidades desenvolvidas pelos alu-


BAKHTIN. Filosofia da linguagem . Porto Alegre: Artmed,


nos no transcurso de sua trajetória escolar.


1988.

Se a escola começar a se auto-avaliar e a ava- NEVO, D. Diálogos em avaliação. Daeb/Inep (mimeo.).


liar as competências e habilidades de seus alu-


ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento. Campi-


nos, serão ampliadas as possibilidades de diá- nas: Pontes, 1987.



logo entre ela e os sistemas de avaliação, po- PARDO, C. Estudo de qualificação por níveis de desempe-

nho. Daeb/Inep/MEC (mimeo.).


dendo cada escola reconhecer seus avanços e


PERRENOUD, P. Práticas pedagógicas, profissão docente


suas dificuldades em relação às demais, tornan-

e formação . Lisboa: Dom Quixote, 1993.


do-se não apenas objeto de avaliações externas


. Não mexam na minha avaliação: para uma


mas sujeito destas, reconhecendo-se como úni- abordagem sistêmica de mudanças pedagógicas. In:

ca e singular. A avaliação assim entendida, sem ESTRELA; NÓVOA (Orgs.). Avaliação em educação:

dúvida, contribuirá para que os diagnósticos


novas perspectivas. Porto: Porto Editora, 1993.


feitos nos ajudem a tomar decisões em prol de RICOUER, P. O conflito das interpretações. Imago Editora,

1978.
uma escola de qualidade. Melhorar a avaliação

SACRISTÁN. J. O currículo e a diversidade cultural. In: SIL-


das escolas é melhorar a educação. Sob este as-


VA; MOREIRA (Orgs.). Territórios contestados: o currí-


pecto, cabe lembrar o papel dos cursos de for-

culo e os novos mapas políticos e culturais. Rio de Ja-


mação de professores, que precisam incluir ur-


neiro: Vozes, 1999.


gentemente em seus currículos discussões so- SILVA, E. O ato de ler. São Paulo: Cortez, 1987.






















SIMPÓSIO 12

FORMAÇÃO CONTINUADA
DO PROFESSOR
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Silvia Pereira de Carvalho

Ana Paula Soares da Silva

Aricélia Ribeiro do Nascimento

Rosaura de Magalhães Pereira

187
Programa de formação




continuada na Educação Infantil






Silvia Pereira de Carvalho*



Instituto Avisa Lá/SP







Quero, antes de mais nada, agradecer ao instituições culturais e escolas particulares que


convite do MEC para participar deste im-


colaboram com a ampliação cultural e didáti-


portante evento. Para quem conhece e par- ca dos educadores.



ticipa da difícil trajetória da Educação In- O projeto inicial tinha como principais ob-


fantil rumo aos caminhos da educação, fa-

jetivos a criação de um espaço de reflexão dos

zer parte deste evento é motivo de regozi- ○

educadores com vista a mudanças paulatinas na
jo. Parece que a complexidade de educar
prática e o apoio para o desenvolvimento de um

crianças pequenas e a importância dos pri-


projeto coletivo na instituição. A formação teve


meiros anos da infância começam a ter


como base uma proposta de trabalho com as


mais espaço e reconhecimento. Vou discor-

rer brevemente sobre nossa experiência em crianças, a partir da qual foram delineadas di-

ferentes estratégias de capacitação de todos os


formação continuada, esperando contri-


buir com os colegas que se interessam pelo envolvidos: educadores, gerentes e pessoal de

assunto e têm sob sua responsabilidade a apoio. O processo de formação foi presencial,

formação continuada de educadores. aconteceu nas entidades, com toda a equipe


compartilhando momentos comuns e específi-



cos. Considerando que a formação envolvia


Breve histórico

mudanças e ressignificações em relação a ensi-



O Crecheplan, hoje Instituto Avisa Lá, por no, aprendizagem, visão de criança e tantas

outras, optou-se por um processo de dois anos,


iniciativa do Instituto C&A de Desenvolvimen-


to Social, iniciou em janeiro de 1994 um pro- com extensão para os coordenadores pedagó-

jeto de formação continuada em entidades so- gicos no terceiro ano. A carga horária total de

cada categoria profissional nos dois anos foi de


ciais nas cidades de São Paulo e Osasco. Essas


352 horas para gerentes e coordenadores, 33


entidades possuíam, então, 254 trabalhadores


– 144 educadores, 88 profissionais de apoio, horas para pessoal de apoio, 154 a 190 horas

22 gerentes e coordenadores – e atendiam para educadores. Trabalham, em cada institui-


ção, quatro formadores do Avisa Lá, dois na área


2.100 crianças e adolescentes em 12 creches e


6 centros de juventude. A necessidade de um de educação, um na área de saúde e um em



trabalho de formação partiu das próprias en- gerenciamento.



tidades, preocupadas em melhorar o desem- Todo o trabalho foi documentado por meio

de diagnóstico inicial, avaliações periódicas, re-


penho de seus profissionais e, conseqüente-


mente, em oferecer um bom atendimento às latórios de campo, projetos de trabalho, produ-



crianças. O projeto tornou-se um programa na ções das crianças e dos educadores. Parte do

nossa instituição. Tem sido, desde essa épo- material foi publicada no livro Por um triz e na

revista Avisa lá, ou editada em vídeos para for-


ca, uma parceria entre empresas finan-


ciadoras, o Instituto Avisa Lá – que desenvol- mação. O projeto inicial gerou também três te-

ve a formação –, entidades que atendem dire- ses de mestrado. Com a experiência acumula-

tamente as crianças e participam da formação, da, elaboramos para os educadores um currí-






* Coordenadora do Crecheplan/Instituto Avisa Lá, São Paulo.


188
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil

culo com as competências nas diferentes áreas, quisas em educação é condição fundamental



que ainda é material de uso interno. Nossa equi- para que a ação pedagógica seja coerente e efe-



pe passou por grandes aprendizados, de um iní- tiva. Délia Lerner, em seu texto sobre capaci-



cio de trabalho seguindo uma linha mais tradi- tação de professores em língua escrita, discor-


cional, transmissiva, para uma atuação cada vez re com muita propriedade sobre a dificuldade



mais centrada na resolução de problemas de se considerar a educação como ciência, que



advindos da prática dos educadores. Buscamos tanto quanto outras áreas produz conhecimen-


cada vez mais a coerência entre o modelo de tos que deveriam entrar no cotidiano escolar. 189



ensino e aprendizagem preconizado para as cri-



anças e o modelo da formação. A partir dessa Parece essencial, então, criar consciência de que



primeira experiência fomos construindo uma a educação também é objeto da ciência de que


metodologia de formação continuada que tem se produzem cotidianamente conhecimentos



sido desenvolvida em diferentes instituições de que, se entrassem na escola, permitiriam melho-


rar substancialmente a situação educativa. É


Educação Infantil, em programas de ação com-


necessário, além disso, fazer conhecer, da ma-


plementar à escola e, mais recentemente, em


neira mais aceitável que seja possível, quais são
escolas de Ensino Fundamental.


as práticas escolares que deveriam mudar para


○ adequar-se aos conhecimentos que hoje temos
Concepção do programa

sobre a aprendizagem e o ensino da leitura e da


escrita, assim como mostrar os efeitos nocivos


de formação continuada

dos métodos e procedimentos tradicionais que



se tornam tão “tranqüilizadores” para a comu-


Baseado em um projeto pedagógico nidade e tornar públicas as vantagens das estra-



tégias didáticas que realmente contribuem para


para as crianças

a formação de usuários autônomos da língua



Uma importante decisão foi tomada no iní- escrita (Lerner, 1993).


cio do programa de formação quando a equipe



responsável optou por eleger os conteúdos da O acesso à pesquisa e à produção de conheci-



capacitação a partir de um projeto pedagógico mento, que poderiam contribuir para uma me-

para as crianças. Embora não fosse um currícu-


lhoria substancial da prática educacional, tem


lo pronto e acabado, as linhas mestras estavam


sido difícil nas escolas. Nas instituições de Edu-


claramente delineadas. 1 Assim, em vez de cação Infantil, onde não há consenso sobre a sua

centrarmos em temas gerais como desenvolvi- função educacional, a possibilidade da entrada de


mento infantil, história da educação, teorias de


novos conhecimentos torna-se ainda mais remo-


aprendizagem etc., conteúdos mais apropria-


ta. Do nosso ponto de vista, resumindo, podemos


dos a uma formação inicial, demos um enfoque dizer que hoje em dia projetos pedagógicos teo-

maior à construção de conhecimentos pela cri- ricamente bem fundamentados têm como base

ança e à ação didática do educador no proces-


as seguintes premissas: construção de conheci-


so. Os conhecimentos de caráter mais geral en-


mentos pela criança; integração entre cuidados e


traram como temas transversais ao longo de educação; apropriação dos saberes socialmente

todo o projeto. valorizados pela sua comunidade e pela socieda-


A opção por uma visão construtivista dos


de como um todo; contato o mais direto possível


processos de desenvolvimento e aprendizagem


com as reais produções culturais; proximidade


foi outro fator decisivo para dar unidade e con- das práticas educacionais com as sociais; impor-

sistência à proposta. A relação entre o projeto tância da intervenção especializada do educador


pedagógico e as mais atualizadas teorias e pes-


no processo de aprendizagem das crianças; con-







1
A proposta que adotamos para o trabalho com as crianças acabou referendada anos mais tarde pelo Referencial Curricular Nacional para a

Educação Infantil (RECNEI), MEC.



sonância entre conteúdos mais tradicionais com em conhecimentos e necessita saber intervir



questões sociais e culturais, locais e gerais; exer- para que as crianças avancem. Nesse sentido, é



cício da cidadania. fundamental o conhecimento das didáticas es-



pecíficas, além de um contato sistemático com


Reflexão “na” e “sobre” a ação produções culturais que possibilitem variedade



de conteúdos. Privilegia-se na formação o pro-


Compartilhamos das concepções que en-


fissional ativo, autor e transformador de sua pró-


tendem que a formação continuada depende pria prática. Com isso possibilita-se maior con-



substancialmente das questões que emergem fiança e o desenvolvimento de sua auto-estima


da atuação direta do educador com as crianças.


como profissional competente.


Os educadores estão em um real contexto de



aprendizagem onde “se aprende a fazer fazen-
Contexto de formação coletiva



do: errando acertando, tendo problemas a re-


solver, discutindo, construindo hipóteses, ob- A formação em serviço, mais do que a inicial,


servando, revendo, argumentado, tomando de- ○

depende de questões institucionais, de modifica-
cisões, pesquisando” (Crecheplan, 1998). ções estruturais que possibilitem a construção

O processo de refletir sobre a prática, procu- coletiva e o desenvolvimento de um projeto com-



rar compreendê-la e analisá-la em busca de aper- partilhado entre todos os profissionais da insti-

feiçoamento, esteve desde o início do nosso pro- tuição. Questões de gerenciamento, estruturação

grama atrelado ao trabalho desenvolvido junto às da rotina, possibilidade de horas para reuniões,

crianças. Partindo dos problemas reais enfrenta- suficiência de materiais necessários à formação

dos pelos educadores, foi possível, por um lado, constituem elementos importantes que podem

valorizar sua experiência e, por outro, garantir limitar o trabalho. Além dos educadores, pessoal

de apoio, coordenadores e diretores passaram


maior participação e uma atitude investigativa


como base para novas aprendizagens. Os conhe- juntos pelo processo de formação.

cimentos teóricos eram trazidos pela formação É importante enfatizar que esse processo

como instrumentos valiosos de ressignificação da possibilita um intercâmbio de idéias entre os di-


ferentes atores, envolvendo tanto o desenvolvi-


prática. Considerando essa concepção, o progra-


ma privilegiou as estratégias centradas em troca mento de procedimentos para aprendizagem



de experiências, supervisão da prática, observa- coletiva como as reflexões individuais. Construir



ção de sala, desenvolvimento de projetos de tra- um projeto compartilhado implica tomada de


decisões em conjunto, esforço colaborativo en-


balho, análise de situações-problemas, parcerias


com educadores mais experientes. tre os parceiros e hábito de ouvir e de fazer críti-

cas construtivas. Além do trabalho com a equi-


Saber fazer – desenvolvimento de


pe interna feito em cada unidade, os encontros


competências de formação, as reuniões com as coordenações



e com o pessoal de apoio eram feitas intercreches


Ao longo do processo de formação, foi-se


(três instituições juntas).


delineando a importância do desenvolvimento


das diferentes competências que os educadores



deveriam construir para desempenhar bem sua


Estratégias formativas

função. A aprendizagem de conteúdos por si só



não significa uma prática eficiente. É fundamen- Ao longo do processo de formação, foram

tal aliar os conteúdos ao saber fazer. É a capaci- desenvolvidas diferentes estratégias formativas.

dade de resolver problemas que surgem na ação Algumas delas estão presentes desde a primeira

que pode transformar a prática. Para desempe- capacitação, outras foram sendo reformuladas e

nhar a contento a função de ajudar as crianças a novas estratégias foram incorporadas.


construírem significados a partir dos conteúdos Levantamento das práticas em curso. Por

disponíveis para as aprendizagens, o educador meio de entrevistas, questionários, filma-



precisa conhecer como elas pensam e constro- gens, fotos e análise das produções das cri-

190
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil

anças é feito um levantamento das princi- lidade formativa é uma das mais interessan-



pais práticas em uso, seguido de análise da tes porque alia a atuação direta de um pro-



equipe formadora. A partir daí estruturam- fessor experiente com a prática reflexiva


se os projetos de trabalho com os conteú- conjunta de três profissionais. Durante oito



dos da formação. encontros, o chamado “professor de apoio”


(formador da nossa equipe) desenvolve um


Desenvolvimento de projetos de trabalho.


projeto de trabalho com as crianças de uma


Esta estratégia incorporada bem recentemen-


te vem comprovando sua eficácia principal- das salas (ao todo, passam por essa modali- 191


dade quatro grupos de crianças em dois


mente para que a formação mantenha o foco


e possa avaliar melhor as aprendizagens de anos). Esse projeto é elaborado com ajuda



todos os envolvidos, crianças e adultos. Tra- do educador da turma, que desenvolve ati-


vidades complementares quando o educa-


ta-se do desenvolvimento de pequenos pro-


jetos de trabalho que são elaborados por to- dor de apoio não está. A atuação direta com


as crianças é quinzenal, durante duas ho-


dos os envolvidos no processo: educadores,


ras. Após esse momento, há uma reunião de


coordenadores das entidades, profissionais de


apoio. Esses projetos têm duração de quatro uma hora com o educador da sala e com o


coordenador pedagógico da instituição.

a seis meses. Por exemplo, se os educadores


vão desenvolver projetos de linguagem oral ○
Produção de documentação de caráter
com as crianças, é a partir desses projetos que formativo. É incentivada a produção de

o formador estrutura o seu trabalho. O pró- materiais a partir da capacitação, tais como:

prio formador também escreve e desenvolve reflexões, registros, projetos com as crian-

seu projeto de formação. Assim, em dois anos, ças, sugestões de atividades, planos anuais,

temos projetos de diferentes áreas que possi- estudos específicos etc. A sistematização e

bilitam aprendizagens diversas. É importan- socialização permitem que os profissionais



te ressaltar que, embora a ênfase dos projetos se reconheçam como produtores de conhe-

esteja em uma área, usam-se conhecimentos cimento.


diversificados em cada trabalho, assim como


Fruição cultural. Ampliamos e facilitamos


os conteúdos atitudinais e procedimentais são as possibilidades de acesso a bens culturais



partes inerentes de toda a ação. durante o processo de capacitação: idas a



Análise teórica de situações práticas. Nes- museus, teatros, rodas de leitura, sessões de

se modelo de formação, a teoria tem lugar cinema, música, contato permanente com

para servir de confronto, afirmação e eluci- livros, jornais e demais publicações e aces-

dação das questões cotidianas. O trabalho so a redes de informação e cultura.


com conteúdos e com textos serve para au-


Incentivo a mudanças na organização da ins-


xiliar problemas didáticos concretos e sub-


tituição. Como decorrência da capacitação,


sidiar a análise de diferentes pontos de vis- são necessárias mudanças na rotina das cri-

ta e estratégias. Portanto, a teoria se reveste


anças e dos adultos, na organização do espa-


de significância e pode possibilitar uma ço físico, na oferta, disposição e uso de mate-



apropriação original e criativa por parte do riais pedagógicos, livros, brinquedos, TV,

educador.

vídeo, nas relações com os pais e a comuni-


Supervisão da prática. Análise de registros dade. O projeto trabalha transversalmente os



dos educadores, observação em sala e aná- conteúdos procedimentais, atitudinais e



lise conjunta das atividades possibilitam conceituais que possibilitam a reorganização.


desenvolver a capacidade de observação e


Formação de formadores. Projetos de


reflexão sobre as reais situações de ensino e capacitação em serviço precisam envolver



aprendizagem que o educador propõe para toda a unidade, a equipe dirigente, os pro-

as crianças. Permite também que o forma-


fissionais de apoio, pois só isto vai possibi-


dor investigue com maior proximidade a litar a permanência da formação na organi-


real participação das crianças na constru-


zação institucional. A instrumentalização


ção de conhecimentos.

do diretor para a criação e implantação do


Atuação de professor de apoio. Essa moda- projeto pedagógico e a capacitação de co-



ordenadores vai permitir a continuidade do ao bom resultado esteja vinculado à dificuldade



projeto na instituição. Portanto, ao longo do ou mesmo à impossibilidade de o educador re-



projeto é dada ênfase na atuação da equipe ver sua prática, o que se constituiria em falta de


dirigente; no terceiro ano há um tempo de-


motivação interna, de um real desejo de trans-


dicado aos coordenadores pedagógicos. formação. Algumas representações sobre o pa-



Aplicação de avaliações. A partir do diagnós- pel da educação, a concepção de criança, o pa-



tico inicial, as avaliações devem garantir o pel do professor podem ser tão fortes e arraiga-


acompanhamento do trabalho do ponto de das que inviabilizam a transformação. Em outras



vista da produção das crianças, das compe- situações, a equipe dirigente não assume efeti-


tências desenvolvidas pelos profissionais, do


vamente os compromissos, tendo uma atuação


grau de coerência entre a prática e o projeto


frouxa que acaba desmotivado a equipe. Em


pedagógico, das mudanças nas relações en-
ambos os casos, nossos formadores têm apresen-


tre escola, pais e comunidade.


tado dificuldade para reverter a situação.


Relato de experiências. Saber explicar o que faz,

Sentimos também falta de maior apoio de pes-
como e por quê é para educadores um desafio ○


quisas nacionais sobre a formação continuada, já
de sistematização e explicitação de sua práti- que são poucos os estudos que se dedicam à cons-

ca. Ao se organizarem para apresentar seus pro-


trução de conhecimentos pelos educadores. Esse


jetos a profissionais de outras instituições, os


tipo de formação em que a tematização da prática


educadores desenvolvem diferentes compe-


é o eixo principal, carece ainda de mais estudos e


tências, entre as quais a de saber comunicar-

de pesquisas, o que, conseqüentemente, traz limi-


se profissionalmente. Fazem parte da forma-


tações. Temos lançado mão da literatura existente


ção seminários, mostras e exposições.


em Portugal, França, Argentina, entre outros paí-


ses, que muito tem subsidiado nossa atuação, mas,



Conclusões evidentemente, teríamos muito benefício com es-



tudos voltados para a nossa realidade.


A permanência do programa na nossa insti-



tuição atesta, em certa medida, sua aceitação


tanto por parte dos financiadores como das



entidades que participam da formação. Até o


Bibliografia

momento, atuamos diretamente em 60 creches



e 22 centros de juventude. Cerca de 85% das


ALARCÃO, I. Escola reflexiva. Porto Alegre: Artmed, 2001.

entidades participantes mudam substancial-


BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação


mente sua prática com as crianças, apresentan-


Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a


do uma qualidade efetiva no trabalho. A apren- Educação Infantil. Brasília, DF: SEF/MEC, 1998.

dizagem das crianças passa a ser o foco da ação . Referenciais para a Formação de Professo-

de toda a instituição. Os educadores têm sua res. Brasília, DF: SEF/MEC, 1999.

CRECHEPLAN, Instituto Avisa Lá. Currículo para Forma-


auto-estima fortalecida, tornam-se mais com-

ção Continuada na Educação Infantil. São Paulo, 1998.


petentes; muitos voltam a estudar, seguindo


LERNER, D. Capacitação em serviço e mudança na pro-


carreira na educação. A motivação para o tra- posta didática, encontro de especialistas . Bogotá:

balho se desenvolve em um crescendo que pros-


CERLAL, 1993.

segue mesmo após o término do projeto. Con- PERRENOUD, Philippe. Dez novas competências para en-

tinuamos mantendo contato com a maioria, sinar. Porto Alegre: Artmed, 2000.

SCARPA, L. “Era assim, agora não...”: uma proposta de for-


incorporando os profissionais em outros pro-


mação de professores. São Paulo: Casa do Psicólogo,


jetos, acompanhando o crescimento constante

1998.

das equipes.

ZABALA, P. A prática educativa: como ensinar. Porto Ale-


Como todo trabalho que envolve educação, gre: Artmed, 1998.


em algumas entidades (15%) não temos resulta-


ZEICHENER, K. A formação reflexiva: idéias e práticas. Lis-


dos tão brilhantes. Talvez o limite mais cerceador boa: Educa, 1993.



192
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil

Formação dos profissionais da Educação




Infantil: a pessoa no centro da ação






Ana Paula Soares da Silva



Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto



193



Resumo






Em decorrência da nova identidade que a Edu- 2. possibilite que o educador tome a sua prática


cação Infantil vem procurando construir, especial- como objeto de reflexão, tornando-a peça fun-



mente após alguns avanços legais, uma série de damental na construção do seu conhecimen-


exigências e desafios se impõem no que se refere à


to, do conhecimento das crianças e da propos-


formação, colocando os profissionais em uma po- ta pedagógica;



sição bastante diferenciada daquela ocupada até 3. produza condições para que o educador ori-

alguns anos atrás, ou ainda dominante em várias ente suas ações pelo princípio da promoção do

instituições. No país, existem experiências diver- desenvolvimento e do respeito à diversidade



sificadas, apontando para uma rica pluralidade de social e cultural;


concepções e projetos de formação. A experiência 4. possibilite espaços de socialização, de troca e



do Centro de Investigações sobre Desenvolvimen- de encontro;



to Humano e Educação Infantil da Universidade de 5. forneça instrumental e conhecimentos que


São Paulo (Cindeci/USP) em formação de educa- permitam ao educador criar e produzir, ligan-

dores tem-nos mostrado que a qualidade na ela- do-o ao mundo;



boração e execução de um programa ou política de 6. crie condições para a vivência da curiosida-


formação se estabelece, principalmente, quando se de criativa e para sua inserção na cultura ci-

tem como princípio a formação de uma pessoa ci- entífica;


dadã e não apenas a de um profissional. É a con-


7. insira o educador em um caldo cultural que


cepção de pessoa, intrinsecamente articulada a favoreça sua apropriação da cultura mundial e



nossa concepção de desenvolvimento, que vem do seu grupo social;


norteando nosso modo de pensar e de agir sobre 8. dê oportunidades para a construção de uma

formação, entendendo-a como processo que: identidade e de um autoconceito positivos,



1. busque fazer com que o educador construa promovendo o seu desenvolvimento como pes-

uma visão ética e política de sua prática; soa e como profissional engajado socialmente.





Profissional de Educação

ções. É consenso entre os pesquisadores na área,


seja em nível nacional ou internacional, que a


Infantil: exigências atuais


qualidade está intrinsecamente relacionada à for-



A formação do profissional em Educação In- mação profissional. A formação bem como aspec-

fantil tem se tornado um dos temas atuais mais tos ligados à regulamentação, à identidade pro-

fissional, à estrutura e aos conteúdos necessários


discutidos dentre aqueles relacionados ao cuida-


do e à educação de crianças pequenas em ambi- para o exercício do trabalho assumem novos con-

entes coletivos. De acordo com Fúlvia Rosemberg tornos na última década, ganhando destaque em

(1999), na Educação Infantil, a equalização de todos os fóruns e espaços de defesa de uma Edu-

cação Infantil de qualidade.


oportunidades sociais, princípio que a nosso ver


é fundamental para nortear as ações públicas, A formação de uma identidade profissional



torna-se possível apenas se contemplar a equa- está associada à formação de uma identidade

lização do padrão de qualidade de suas institui- institucional (Silva, 1999). Como não poderia

deixar de ser, o novo papel da Educação Infantil, cias que se apresentam na Educação Infantil, na



sistematizado nas normativas atuais, traz consi- América Latina como um todo, requerem um edu-



go não apenas uma nova visão de criança, mas cador capaz de criar modalidades curriculares e



também uma nova concepção de profissional. As promover o auto-estudo e a avaliação permanen-


expectativas atuais em relação a esse profissio- te dos avanços e das limitações de sua prática.



nal não são poucas. Zilma M. R. Oliveira, por A importância da formação profissional é



exemplo, argumenta que a sua formação deve reforçada quando se considera que, a partir de


incluir o conhecimento técnico e o desenvolvi- todas essas transformações legais, as institui-



mento de habilidades para realizar atividades ções deverão elaborar e efetuar sua própria pro-



variadas, particularmente expressivas, e para posta pedagógica. Para a efetivação de uma pro-



interagir com crianças pequenas (1994: 65). O posta que esteja realmente afinada com a nova


documento Subsídios para Credenciamento e função social da creche e da pré-escola e com



Funcionamento de Instituições de Educação In- as diretrizes estabelecidas na Política Nacional



fantil afirma que “as crianças precisam de edu- de Educação Infantil, um profissional qualifi-


cadores qualificados, articulados, capazes de ○
cado é claramente solicitado. E essa solicitação
explicitar a importância, o como e o porquê de se dá não apenas no que se refere ao momento

sua prática [...]” (SEF/MEC/Coedi, 1998: (I)18). de elaboração da proposta mas, principalmen-

Por sua vez, Maria Lúcia Machado (1999), a par- te, em sua gestão diária, posta em prática no

tir de uma postura interacionista, propõe que o dia-a-dia da instituição (MEC, 1996).

educador seja um mediador eficiente das Como se observa, trata-se de exigências que,

interações entre as crianças, capaz de organizar dependendo do modo como as encaramos, tor-

ambientes que promovam essas interações, além nam-se bastante pesadas. Mais do que isso, co-

de trazer sempre um elemento de conhecimen- locam os profissionais em uma posição bastante



to novo. A importância do educador é enfatizada diferenciada daquela ocupada até alguns anos

também por Moysés Kuhlmann Jr., alertando- atrás, ou ainda dominante em várias institui-

nos que, ao refletir sobre a formulação de pro- ções. Essas exigências constituem um reflexo de

postas pedagógicas que tomem como ponto de diversas conquistas de pesquisadores e militan-

partida a criança, “não é a criança que precisaria tes da área e, ao mesmo tempo, traduzem a ne-

dominar conteúdos disciplinares, mas as pessoas cessidade de um profissional bastante diferen-



que a educam” (1999: 65). te daquele apontado nos levantamentos de per-


Além das exigências advindas das novidades fil profissional de que dispomos.

introduzidas na área, os professores de Educação



Infantil sofrem também aquelas exigências oriun-


Como atender a essas


das das transformações no mundo do trabalho.


O discurso prevalente aponta que as competên-


exigências?

cias do novo trabalhador passam pela autonomia,



criatividade e produtividade, além da capacida- As exigências acima não se restringem ape-



de de adequar-se às mais variadas situações. Nas nas ao aspecto da formação inicial, mas indicam

palavras de Pedro Demo, “o que está em jogo é fundamentalmente posturas que deveriam ori-

um tipo de formação que garanta a competência entar a formação continuada. No primeiro caso,

humana em questão. Pesquisa e elaboração pró- a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) tem provocado

pria constituem as pilastras desse trajeto e fun- modificações profundas, obrigando municípios

damentam também a capacidade de re- a se adaptarem às exigências legais que, embora



capacitação permanente, que deveria ser primo- em ritmo lento, vêm possibilitando a adequação

rosa em todo educador. O fulcro da competência da formação inicial dos profissionais.


Quanto à formação continuada, as experi-


humana moderna está na capacidade de refazer


todo dia. Estudar sempre é condição essencial ências no país têm sido diversificadas, apontan-

profissional” (1996: 143). Para Maria Victoria Pe- do para uma rica pluralidade de concepções e

ralta (1996), especialista chilena, as novas exigên- projetos de formação. Algumas são explicitadas

194
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil

predominantemente em termos de aquisição de em consideração o contexto ideológico, histó-



conteúdo, tais como conhecimentos sobre edu- rico e cultural específico em que ele está inse-



cação e desenvolvimento infantil. Outras, não rido (Valsiner, 1987).



necessariamente exclusivas, priorizam treina- Não existe um profissional independente da


mentos para a atividade prática e para o desen- pessoa que exerce esse trabalho. A identidade



volvimento de habilidades específicas como profissional está, assim, associada à identida-



instrumentos da ação diária do educador. de pessoal. Dessa forma, crenças, valores, pro-


Essas e outras concepções, e até mesmo a jetos de vida são elementos importantes quan- 195



ausência total de uma política deliberada de do tratamos de formação, uma vez que se ex-



formação, têm sido constatadas há alguns anos primem na qualidade do trabalho desses pro-



pelos membros do Cindeci (FFCLRP/USP), em fissionais. No capítulo “A formação nossa de


seu trabalho junto às cidades da região de Ri- cada dia”, do livro Fazeres na Educação Infantil



beirão Preto (SP) e também a outros municípios (2000: 27), Rosa Virgínia Pantoni e colaborado-



e estados do país, seja na formação de educa- res estabelecem um conjunto de concepções no



dores, pessoal de apoio, coordenadores e equi- trabalho de formação, destacando-se a forma-


pe técnica ou mesmo na formação de estudan- ção como processo que: 1) busque fazer com



tes para atuarem na área. que o educador construa uma visão ética e po-

Esses longos anos de experiência nos foram lítica de sua prática; 2) possibilite que o educa-

possibilitando verificar que o processo de for- dor tome sua prática como objeto de reflexão,

mação vai muito além do estabelecimento de tornando-o peça fundamental na construção do



um rol de reuniões ou estratégias cujo objetivo seu conhecimento, do conhecimento das crian-

maior é a socialização do conhecimento atra- ças e da proposta pedagógica; 3) produza con-


vés de informações e treinamento. Não basta dições para que o educador oriente suas ações

uma política de formação. É necessária, tam- pelo princípio da promoção do desenvolvimen-



bém, uma formação com qualidade. Acredita- to e do respeito à diversidade social e cultural.

mos que a qualidade na elaboração e na execu- As novas formas de conceber os relacionamen-


ção dessa política se estabelece, principalmen- tos como mais democráticos, horizontalizados e

te, quando nos preocupamos com a formação abertos, formas estas enraizadas nas transforma-

de uma pessoa cidadã, e não apenas com a de ções sociais e numa concepção de pessoa humana

um profissional. É a concepção de pessoa, in- como sujeito de direitos, não permitem estratégias

trinsecamente articulada a nossa concepção de de formação não condizentes com essas novas for-

desenvolvimento, que vem norteando nosso mas. A formação deve caminhar, assim, para pro-

modo de pensar e de agir sobre formação. mover o professor como sujeito-cidadão. Maria

Temos assumido que o desenvolvimento Clotilde Rossetti-Ferreira, em recente artigo para


humano só se dá através da apropriação da cul- o jornal USP Ribeirão, ao defender o papel da es-

tura; a pessoa torna-se humana, portanto, a par- cola pública com qualidade, propõe que ao pro-

tir de sua imersão em um mundo simbólico e fessor dessa escola sejam possibilitados: 1) um es-

de um processo de contínua significação e paço de socialização, de troca e de encontro; 2) um


ressignificação do mundo, dos seus parceiros de instrumental e conhecimentos que lhe permitam

interação e de si mesma. A natureza humana é criar e produzir, ligando-se ao mundo; 3) condi-



essencialmente histórica e cultural, de onde de- ções para a vivência da curiosidade criativa e para

corre que tanto os pensamentos como as atitu- sua inserção na cultura científica; 4) um caldo cul-

des e os sentimentos de uma pessoa têm uma tural que favoreça sua apropriação da cultura mun-

origem social. Assim, as questões relacionadas dial e do seu grupo social; 5) oportunidades para a

ao humano, à sua constituição, ao seu desen- construção de uma identidade e auto-conceito po-

volvimento e à sua profissionalização devem ser sitivos, promovendo o seu desenvolvimento como

lidas em relação às vivências do indivíduo e ao pessoa e como profissional engajado socialmente.



seu momento de vida, dentro da realidade con- Como se observa, tanto no texto de Maria Clo-

creta da qual faz parte. Portanto, devem levar tilde Rossetti-Ferreira como no de Rosa Virgínia

Pantoni, são apresentados princípios que ultrapas- Cabe mencionar que as concepções apre-



sam qualquer ação com enfoque em atividades de sentadas não norteiam apenas o trabalho dire-



treinamento. Compartilhamos com Madalena to com o educador, mas estão atreladas aos di-



Freire a visão de que “só aprendemos a partir de ferentes níveis envolvidos no processo de for-


nossa experiência, do que nos faz sentido, do que mação. Esses princípios devem também estar



tem significado na nossa história” (1999: 1). Para dar presentes na formação da equipe técnica que



conta do conceito de formação que construímos, compõe a estrutura de formação, capacitação e


além de manter os princípios em cada atividade re- supervisão existente. Nossa experiência tem



alizada na instituição junto com os educadores, faz- mostrado que, quando as propostas ou progra-



se necessário que o programa formativo preocupe- mas são implementados sem a consideração da



se com a criação de espaços que possibilitem ao pessoa no centro da ação, ou seja, sem a pro-


educador a vivência da cidadania e o exercício do moção de posturas que façam a pessoa sentir-



seu papel enquanto educador-sujeito. Visita a mu- se sujeito da proposta, essas acabam por ser



seus, incentivo à participação nos Conselhos Mu- compreendidas como mais uma atividade a ser


nicipais de Educação e fóruns de discussão sobre ○
feita, uma obrigação burocrática que se sobre-
Educação Infantil, por exemplo, são ações concre- põe à pesada carga de trabalho diário, contri-

tas que propiciam ao educador a atualização na área, buindo muito pouco para uma modificação de

o encontro com múltiplas vozes que dialogam e atitudes que venha a promover a qualidade no

negociam concepções sobre educação e cuidado de atendimento. Como já afirmamos, propiciar


crianças pequenas e, principalmente, o seu reco- espaços que extrapolem uma visão de forma-

nhecimento como protagonista na construção da ção estritamente profissional e atrelar à forma-



história da Educação Infantil. ção oportunidades para a vivência da cidada-


É evidente que esses princípios e concepções nia constituem ótimas estratégias quando nos-

não se realizam facilmente. As instituições nas so interesse reside exatamente num trabalho

quais trabalhamos são microcosmos da realidade que pretende tocar na concepção de sujeito das

nacional e são nesses espaços que as diversidades, pessoas e das instituições.


resistências e potencialidades se atualizam e ma- Apenas experiências positivas de formação



nifestam. As relações de poder, a descontinuidade de profissionais no país, contudo, não bastam.



das propostas e de sua efetivação, as dificuldades É na construção de uma política nacional para

do financiamento, a hierarquia das relações cultu- o tema na Educação Infantil que se situam os

ralmente estabelecidas, as condições salariais e de maiores desafios no momento atual. Como su-

trabalho precárias, a desvalorização e a ausência perar iniciativas individuais ou localizadas para



de um plano de carreira, dentre diversas outras alcançar uma discussão ampla, na qual a for-

questões, são exemplos de alguns dos entraves que mação seja abordada como tema importante na

intrinsecamente acompanham e interferem na elaboração de políticas públicas para a área,



prática de formação dos professores e nos inter- sem restringi-la a aspectos legais que, embora

pelam a cada momento. Contudo, quando de fato necessários, merecem ser avançados? Como

o educador se coloca como produtor/co-autor do superar os desafios históricos que se concreti-


processo de educação da criança pequena, a ex- zam na realidade de nossas instituições se, den-

periência tem maior sucesso, apesar de todos os tre eles, está a pouca escolaridade dos profissio-

entraves. Isso, justamente, têm-nos levado a rea- nais que lidam diretamente com as crianças,

firmar cada vez mais esses princípios. Agindo de fato apontado em várias pesquisas? Como pen-

modo diverso, somos com freqüência capturados sar princípios norteadores que considerem e

por um pessimismo que paralisa a ação por conta respeitem a diversidade social, econômica e

das questões macrocontextuais que afetam a ques- principalmente cultural de nossos educadores?

tão da formação, ou corremos o risco de atribuir Ter como princípio a escuta dos próprios agen-

as dificuldades enfrentadas apenas aos próprios tes da Educação Infantil parece ser um bom iní-

profissionais, tornando-os o “lobo mau” da Edu- cio para começarmos a esboçar algumas respos-

cação Infantil. tas a essas questões.


196
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil

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Educação Infantil:


algumas reflexões sobre a formação




continuada em serviço*




Aricélia Ribeiro do Nascimento**







Pensando por onde iniciaria este texto, mos fortes, conseguiremos chegar à vitória. E

flagrei-me consultando o dicionário, onde li:


quem falou que os vitoriosos vivem só alegrias,


“infantil: ingênuo, tolo”. Nossa, que susto! Será não é mesmo?



que a trilha da formação continuada em servi- O patinho feio da formação em serviço está

ço do professor de Educação Infantil tem sido trocando as penugens por belas penas! E sabem

permeada pela ingenuidade, pela tolice?


por quê? Porque as professoras estão lutando


Ufa, que bom!!! Tudo não passou de um sus- para construir espaços de fazeres educativos. Um

to do século passado. É possível identificar si- lugar ideal para um bom ninho, um cantinho

nais de construção de uma nova era na forma- protegido não do mundo, mas no qual a exclu-

ção continuada. Dificuldades muitas mas, so-


são não tenha vez.






* Para a elaboração deste texto muito me valeu a experiência vivida e os cadernos produzidos pelo Programa de Formação Continuada – PCN

em Ação, da Secretaria de Educação Fundamental do MEC.



* * Técnica da Coedi/SEF/MEC, formadora nacional do Programa PCN em Ação, da SEF/MEC, e mestranda da Universidade de Brasília.

Mas ainda nos deparamos com propostas de frágeis estes ficarão. Dessa forma, terão poucas



formação cerceadoras do vôo de nossas crianças- possibilidades de partilhar e compartilhar expe-



passarinhos. Procurar compreender melhor o riências e, conseqüentemente, terão práticas



universo de formação continuada faz-se neces- pedagógicas pouco enriquecidas.


sário, bem como repensar as propostas de forma- Possibilitar aos professores de Educação In-



ção. Escolhi esse recorte na intenção de expor al- fantil a organização da formação continuada de



gumas idéias, dúvidas, reflexões e ansiedades. maneira sistematizada, em seu próprio locus de


A caminhada dos professores quase sempre atuação profissional, com a perspectiva de valo-



é rica, variada e recheada de “causos” e, na maio- rizar os saberes que esses professores construí-



ria das vezes, eles procuram compreender os ram ao longo de sua docência, seria um bom



muitos desafios com os quais lidam no dia-a-dia começo.


da instituição. Assim, procuram as propostas de Mas, para tanto, a organização do trabalho



formação continuada na perspectiva de encon- pedagógico da formação continuada necessita de



trar respostas para muitas de suas questões. um pensar mais atualizado, pois, de alguma ma-


Em um breve olhar para as minhas primeiras ○
neira, a vivência dos professores nesses espaços
experiências docentes, vejo que não fugi à regra, reflete-se na forma como eles organizam os am-

pois comparo o início de minha prática pedagó- bientes educativos das instituições em que tra-

gica a um dicionário onde todas as palavrinhas balham. Se, por um lado, em sua docência, o pro-

estão sempre em fila. Após ouvir um número sig- fessor convive com rotinas que põe em ação de

nificativo de professoras de Educação Infantil, forma relativamente consciente, mas sem avaliar

constatei que não foi tão diferente o lidar delas a sua repercussão, logo, sem escolhê-las e

com o mundo das metodologias e das didáticas controlá-las verdadeiramente — pois esta é a par-

no início de suas carreiras. Será o legado da for- te de reprodução, de tradição coletiva —, por ou-

mação inicial em Magistério? Fica a questão. tro lado, em outros momentos da prática, são a

Imagino que em virtude dessas semelhanças expressão do hábito, o ato mecânico de repetidas

na formação, mesmo em épocas tão distintas, é rotinas realizadas constantemente sob o não-con-

possível perceber, a partir da década de 1980, no trole da consciência que se cristalizam. Nesse sen-

cenário educacional brasileiro, maior procura tido, repensar a organização do trabalho pedagó-

dos professores em relação a propostas de for- gico é uma tarefa para ser refletida e vivida nos

mação continuada, na perspectiva de encontrar espaços onde efetivamente ela é implementada.


respostas para melhor lidar com sua prática pe- Tenho tido o privilégio de ouvir alguns pro-

dagógica. Porém, na mesma proporção, verifica- fessores da Educação Infantil que sinalizam a

se que, nem por isso, ao voltar para sua institui- ênfase no desenvolvimento de práticas pedagó-

ção, conseguem traduzir esperanças e sugestões gicas reflexivas como um dos caminhos que,

em estratégias metodológicas propiciadoras de gradativamente, descaracterizariam a matriz da



sucesso às crianças. formação inicial, para a maioria deles fortemente



Essas observações cotidianas levaram-me a marcada por uma concepção epistemológica da



supor que alguns aspectos da formação conti- prática voltada para a técnica, para o instrumen-

nuada precisam ser revisitados, mesmo timida- tal, na qual os saberes dos professores eram pou-

mente; pretendo, portanto, neste texto, realizar co considerados.



uma reflexão preliminar sobre desses aspectos. E como ajudá-los? Retirando-os de seus es-

Iniciando a reflexão, chamo para nossa paços de atuação profissional para falar de suas

rodinha, como um primeiro aspecto, o locus de práticas? Com uma certa freqüência, esta tem sido

organização do trabalho pedagógico nas propos- uma estratégia e, em conseqüência, os professo-



tas de formação continuada em serviço como um res de Educação Infantil, sem a intencionalidade

dos patinhos feios de nossa história. Será inten- do erro, vão subutilizando valiosos tempos edu-

cionalmente? Não creio. Temos tido pouca sen- cativos com a aplicação de exercícios que pouco

sibilidade para perceber que, quanto mais se fi- ou quase nada levam as crianças a pensar.

zer presente o isolamento dos professores, mais Mas temos muitos professores inquietos. É

198
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil

como se soubessem que precisam mudar o rumo compreensão, a interpretação e a intervenção so-



dessa prosa na rodinha dos educadores de Edu- bre a realidade, como cita Imbernón (2000: 48). E,



cação Infantil. Cobram-se, sabem que precisam além disso, a formação continuada deve ocupar o



mudar. Dessa inquietude origina-se um segun- seu espaço na participação efetiva da construção


do aspecto da formação continuada: a necessi- da qualidade da educação, para o que faz-se ne-



dade de sensibizar os professores para que pos- cessário conceber, como afirma Alarcão (2001: 53),



sam, também, a partir do estudo de suas práti- que a desburocratização e a humanização das so-


cas no dia-a-dia, promover mudanças mais sig- ciedades emergentes pressupõem novos conheci- 199



nificativas. mentos e novas formas de conhecer, investigar,



Há que perguntar: como trabalhar na pers- aprender, ensinar e desaprender para empreender,



pectiva da sensibilização? Quem sabe – se os pro- construir e desenvolver.


fessores tivessem espaço para refletir uns com Uma parcela considerável desses novos conhe-



os outros, diante de cada atividade trabalhada, cimentos tranforma-se em desafios diários para os



diante da reação das crianças, da observação di- professores e os leva na direção da construção de



ária do movimento do currículo vivido na insti- planejamentos mais sensíveis às aprendizagens


tuição, do olhar duvidoso sobre seus fazeres – dos meninos e das meninas com quem trabalham.



analisando, questionando os erros e acertos. No entanto, as propostas de formação continuada

Nessa perspectiva, os professores de Educa- consideram ainda muito pouco o processo de



ção Infantil precisariam firmar, ainda mais, um teorização preexistente em cada professor.

namoro com a reflexão dos seus fazeres educa- Para que a formação continuada sensibilize

tivos. Assim, terão maiores possibilidades de os professores na lógica do olhar sobre suas prá-

avançar de um lugar individual de “pensar edu- ticas, ela deve reforçar a construção de atitudes

cação” para uma compreensão mais ampla das reflexivas também por meio da ênfase no desen-

interações das relações de contéudo, de contex- volvimento da leitura e da escrita desses profes-

to e de aprendizagem. sores. Suponho que muito nos auxiliaria e seria



Entendemos que a reflexão requer imersão um passo significativo para enfrentarmos com

consciente do homem no mundo da sua experi- êxito mais esse desafio, apresentado como o ter-

ência, mundo este impregnado de conotações, ceiro aspecto para o repensar da formação con-

valores, intercâmbios simbólicos, correspondên- tinuada em serviço, a concepção de Nóvoa (1997:



cias afetivas, interesses sociais e cenários políti- 83), ao referir-se ao professor como um sujeito

cos. Mas faz-se necessário provocar nos profes- que se permite ser surpreendido pelos fazeres,

sores o desejo pelo desenvolvimento da obser- saberes e atitudes, que pensa sobre a complexi-

vação, pelo desenvolvimento da pesquisa de suas dade e, simultaneamente, procura compreender



práticas, pelo estudo de suas situações didáticas. a razão por que foi surpreendido. Mas não satis-

Mesmo percebendo os professores de Edu- feito, parte em busca de formular o problema



cação Infantil em uma busca maior pelo conhe- suscitado pela situação na perspectiva de inves-

cimento na perspectiva de constituírem uma tigar sobre o modo de pensar do sujeito, seja ele

postura investigativa e reflexiva diante do desa- criança adolescente ou adulto.


fio de não simplesmente estar professor, mas de Estamos diante do desafio de promover uma

ser professor e de admitir que carecem formar- formação continuada na qual os professores de

se diariamente, percebemos que falta a eles uma Educação Infantil desenhem, pintem, bordem,

maior compreensão na direção da complexida- escrevam um novo quadro de seus fazeres edu-

de e da provisoriedade do conhecimento para cativos, aprendendo a “brigar” contra o como-



assumirem a manivela da engenhosa máquina dismo da cópia, da memorização, dos exercícios



do saber como um espaço no qual também po- mimeografados, dos cadernos de planejamento

dem e devem construir saberes. descontextualizados.


A formação continuada do professor de Edu- A formação continuada propiciando reflexões,



cação Infantil precisa de maior reflexão prático-te- mesmo angustiantes, irá cutucar os pensamen-

órica sobre a própria prática mediante a análise, a tos dos professores, deixando-os a matutar, e eles

buscarão profissionalmente um novo lugar da Faz-se necessário, para tanto, questionar as



praxis, da leitura e da escrita. Mesmo acanhada- propostas de formação nas quais os professores



mente, perceberão o sentido da ação coletiva, o ficam sujeitos a programações assistemáticas,



sentimento e a importância de pertencer a um pontuais e externas. Neste alinhavo apresenta-


grupo, a magia do registrar e o significado da par- se a necessidade de constituir o professor como



ticipação efetiva e consciente no processo de for- um sujeito reflexivo. Diante do exposto, acredi-



mação de sua identidade profissional, forjada e to ser este um quarto aspecto relevante para uma


lapidada no cotidiano educativo e na literatura. formação continuada sensível ao sujeito-profes-



Revisitando fragmentos de minha história sor que se organiza, se forma, se constrói e se



profissional como professora formadora em di- constitui, também, no espaço institucional, com



versos grupos de professores e de minha prática toda a complexidade multifacetada do humano.


pedagógica como docente de crianças e adoles- Preocupações vividas por mim freqüente-



centes, percebo, na criação e na negociação de- mente levaram-me a pensar: como se caracteri-



mocrática de ações que proporcionem a organi- za e se constitui um sujeito reflexivo? Na tentati-


zação intencional e sistematizada da formação ○
va de responder a esta questão, elaborei outros
em uma perspectiva prático-reflexiva, um tercei- questionamentos:

ro aspecto que possibilitaria o avanço da forma- • Seria um ator que se inquieta em buscar

ção continuada. Dessa maneira os professores compreender as questões que compõem o


cenário formativo, o seu cotidiano?


seriam motivados a ver o processo de aprendi-


zagem como trabalho prático de modificação, de • A constituição de um professor reflexivo no



mudança, de reconstrução continuada, sem fim cotidiano da formação continuada teria de



(Schon, 2000: 227). Para tanto, reafirmo que o comportar as dúvidas e as reflexões de sua

investimento no desenvolvimento da competên- prática?



cia leitora e escritora do professor seria um pro-


• Um professor reflexivo observa a organiza-


cedimento bem promissor. ção de seu trabalho pedagógico?



Nessa intencionalidade, o agir e o pensar pre- • As dificuldades por parte dos professores em

cisam estar interligados, permeados pelo apro-


estabelecerem articulação entre a teoria e a


fundamento teórico, articulados com a prática


prática deveriam compor o seu cenário de


do “chão” da sala de aula, um dos ambientes investigação?



organizacionais de formação, a meu ver, privile-


• O professor deve se preocupar em criar es-

giado para o exercício diário da reflexão na ação,


tratégias problematizadoras?

partindo do pressuposto de que deve haver uma


• É preciso refletir sobre procedimentos nos


significativa e substancial relação entre a forma-


quais os professores registrem o seu próprio


ção do professor, os seus fazeres pedagógicos e


processo e percurso formativo?


os resultados educativos efetivamente observa-

dos junto às crianças. • O professor precisa produzir projeto peda-


gógico próprio?

É importante promover uma formação con-



tinuada, de acordo com Imbernón (2000: 49), Visitando a literatura com a intenção de am-

que valorize a descoberta, a organização dos pliar a compreensão, mesmo que ainda superfi-

conhecimentos, a fundamentação teórica, a re- cial, de algumas das questões apresentadas no



visão e a construção de teorias, com a intencio- parágrafo anterior, lendo Imbernón (2000: 50) foi

nalidade de remover o sentido pedagógico co- possível perceber que um sujeito se constitui

mum, recompor o equilíbrio entre os esquemas como profissional reflexivo se for orientado para

práticos predominantes e os esquemas teóricos o desenvolvimento de capacidades de proces-



que os sustentam, imprimimindo uma nova samento da informação, análise e reflexão críti-

matriz na qual o olhar e o registro reflexivo so- ca, diagnóstico, decisão racional, avaliação de

bre a prática ocupem lugar central, com vista à processos e reformulação de projetos. Também

tomada de decisões pedagógicas mais conscien- seria constituído na multiplicidade de suas fun-

tes, criativas e menos espontaneístas. ções e inquietudes, como define Freire (apud

200
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil

Alarcão, 2001: 17), vivenciando um processo de encaminharia soluções, auxiliaria nas dificulda-



formação permeado pela dor, pelo prazer, por des de problemas individuais e coletivos e en-



sensações de vitórias, derrotas, dúvidas, alegrias volveria os sujeitos em um processo vivo de pro-



e também disciplina. dução e de reconstrução de conhecimento.


Nesse sentido, a constituição do professor Assumir uma prática reflexiva na formação



reflexivo passaria pela compreensão de que ele continuada, a meu ver, indica a necessidade de



é “um profissional da ação cuja atividade impli- reestruturação da organização do trabalho pe-


ca um conjunto de atos que envolvem seres hu- dagógico, organização que carece, como cita 201



manos. Como tal, a racionalidade que impregna Nóvoa (1997: 23-31), de saberes e de saber-fazer



a sua ação é uma racionalidade dialógica, inte- pedagógico. Precisa de saberes teóricos e tam-



rativa e reflexiva” (Alarcão, 2001: 23). bém de colocar em prática esses saberes para


Parece-me que neste viés precisaríamos cons- construir um “saber fazer” teorizado, o que, em



truir, coletivamente, durante a formação continua- linhas gerais, significaria um conjunto de sabe-



da, procedimentos de registros individuais e cole- res relacionados com a organização: do trabalho



tivos. Estes teriam a função de acompanhar e ava- individual e em grupo, da organização espaço-


liar o processo educativo dos professores e em es- temporal, do conhecimento, dos procedimentos,



pecial seriam referenciais dinâmicos para a dos instrumentos, das tecnologias, das metodo-

autoformação. A meu ver, estamos diante do quin- logias, da construção de novas estratégias, do

to aspecto para o qual as propostas de formação incentivo às interações e às relações.


continuada deveriam dedicar mais esforços. Considero que, para o desenvolvimento do



O desenvolvimento do registro reflexivo registro reflexivo, precisamos abrir espaço para



como um procedimento formativo está direta- a formação de um professor reflexivo, o qual se


mente relacionado à organização do trabalho utiliza do próprio registro de maneira reflexiva,



pedagógico, que deve possibilitar o exercício do para pensar e ampliar o seu processo educativo.

“pensar” para que o “vir a ser” se torne realidade Nesse sentido, percebe-se nas propostas de for-

no “hoje” da prática docente. Tal atitude não é mação continuada pouco espaço para o pensar,

tarefa fácil. Ao contrário, exige muitos rompi- pois este está relacionado ao perguntar, ao in-

mentos, a começar por desinstalar a certeza de quietar, ao buscar, à incerteza. Não há conheci-

que a formação se encerra ao término de um mento que não esteja, de alguma maneira, amea-

curso. Compreender que o conhecimento não çado pelo erro. O conhecimento, sob a forma de

está pronto requer criar lugar para a proviso- palavra, de idéia, de teoria, é fruto de uma re-

riedade, assumir atitudes de investigação como construção, e reconstrução comporta a inter-



necessárias ao profissional professor. pretação, o que introduz o risco do erro na sub-



Se considerássemos esses aspectos na orga- jetividade do conhecedor, de sua visão do mun-


nização de propostas de formação continuada, do e de seus princípios de conhecimento.



estaríamos organizando um novo espaço no qual É necessário refletir que, em tempos recentes,

os professores não apenas estivessem mas que ora se concebia a prática como uma aplicação da

pudessem vivê-lo de forma a movimentar-se re- teoria, como uma conseqüência, ora, ao contrá-

petidamente entre a reflexão-na-ação e a refle- rio, como inspiradora da teoria. Porém, como afir-

xão-sobre-a-ação (Schon, 2000: 227). ma Foucault (2000: 70), “nenhuma teoria pode se

Dessa forma, os outros aspectos até aqui desenvolver sem encontrar uma espécie de muro

apresentados neste texto se articulam a este e é preciso a prática para atravessar o muro.” Acres-

quinto aspecto. Concebo a organização do tra- cento: para tanto é preciso que a formação crie con-

balho pedagógico como uma estrutura na qual dições para transpor esse muro.

cotidianamente se exercite a reflexão dos faze- Ainda na mesma obra, o autor nos faz refletir

res educativos e se concretize essa reflexão no sobre a relação entre a teoria e uma caixa de fer-

registro escrito, supondo que este viabilizaria a ramentas: se esta não servir, não funcionar, de

análise do percurso formativo, ajudaria na iden- nada serve a teoria para sua utilização, assim

tificação de problemas, reafirmaria objetivos, como, se não há pessoas para fazer uso da teoria,

esta não tem nenhuma validade. Continuando, formativo pelos professores, na perspectiva de



Proust (apud Foucault, 2000: 71) acrescenta: “tra- retomadas reflexivas com vista ao avanço de sua



tem meus livros como óculos dirigidos para fora formação. É caminho para o exercício do pen-



e, se eles não lhes servirem, consigam outros, en- sar, da busca de soluções, de auto-avaliação, de


contrem vocês mesmos seu instrumento, que é elaboração de perguntas.



forçosamente um instrumento de combate.” O desafio em aceitar a formação continua-



Nesse olhar, o registro reflexivo, se utilizado da em serviço como uma proposta de aprendi-


para o acompanhamento e a avaliação do pro- zagens reflexivas que considere os aspectos



cesso formativo dos professores em espaços de abordados neste texto parece-me que exige



formação continuada em serviço, pode vir a ser abrir espaço político-pedagógico, assumindo



uma possibilidade de promover um processo que é um trabalho que leva tempo. Tempo para


dinâmico no qual, de fato, os professores pos- viver os choques iniciais de confusão e misté-



sam perceber o sentido da prática reflexiva nos rio, tempo para desaprender expectativas ini-



espaços formativos. ciais e começar a maestria de uma prática do


Formar professores reflexivos decerto não é ○
ensino prático, tempo para viver os ciclos de
tarefa rápida, de curto prazo, e provavelmente aprendizagem, tempo para aprender a ver o

as dificuldades de produção de registro reflexi- processo de aprendizagem como um processo



vo dos professores existirão, mas insisto que seja formativo e autoformativo que requer mudan-

por falta de oportunidade de eles vivenciarem, ça e reconstrução continuada.


nos espaços de formação continuada, formas de Na tentativa de bordar um ponto não final,

organização das propostas metodológicas que para esse texto, mas de continuidade, diria que

desenvolvam atitudes para a produção de regis- a qualidade da construção de propostas de for-


tros reflexivos. mação continuada para o profissional da Edu-



Esse teria de ser um exercício contínuo, dia cação Infantil, que o provoquem a olhar com

após dia, encontro após encontro; teria de ser os olhos da diversidade, da reflexão, do belo,

concebido como uma construção; não pode- por ser multifacetada a realidade, será possí-

ria desmerecer o momento de formação de vel se garantirmos espaços para o pensar re-

cada professor; teria de promover o avanço flexivo, se não formatarmos os espaços de for-

para que o professor saísse da preocupação mação com um único referencial de criação,

centrada exclusivamente na simples anotação pois, assim, estaremos mutilando seres por

da fala do outro para a descoberta das suas natureza pensantes.



competências como produtor de escrita, para



que percebesse as funções formativas que o



registro reflexivo ocupa no processo de forma-


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Formação continuada do professor na Educação Infantil


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A política de formação continuada




e em serviço da rede municipal de




ensino de Belo Horizonte






Rosaura de Magalhães Pereira



Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG







Em 1995, foi implantada em Belo Horizon- da com um projeto de cidadania em que o


te a Escola Plural, programa de governo para a educando é considerado como sujeito so-

educação na rede municipal de ensino. cial em formação, que estabelece uma re-

O projeto político-pedagógico Escola Plural lação dinâmica com o conhecimento, num


processo de aprendizagem permanente,


foi aprovado pelo Conselho Estadual de Educa-


ção como experiência de inovação pedagógica, permitindo seu desenvolvimento integral.



tendo como princípios: 4. Gestão democrática da escola, articulada



com os processos de construção dos proje-


1. Concepção da educação como direito de tos pedagógicos em sintonia e com a parti-



todos visando à universalização da escola cipação da comunidade escolar, de onde a


básica no Brasil (inclusão).


busca por uma nova formação do profissio-


2. Processos de escolarização, entendidos nal da educação como um sujeito social que



como um tempo/espaço de formação das reflete sobre a prática pedagógica, que age e

interage com o seu aluno e a família, que for-


crianças e dos jovens como sujeitos sociais.


ma e se forma na dinâmica dessas relações.


3. Concepção de educação escolar articula-



A proposta se constitui a partir dos seguin- ado em 1991, foi parceiro da construção dessa



tes eixos norteadores: proposta, coletando e analisando experiências



1º Uma intervenção coletiva mais radical. significativas presentes nas escolas e organizan-



2º Sensibilidade com a totalidade da forma- do grupos de professores que participaram efe-


ção humana. tivamente de sua elaboração.



3º A escola como tempo de vivência cul- Nesses dez anos, e em especial nos últi-



tural. mos seis anos, o Cape vem passando por cons-


tantes reestruturações no sentido de enfren-


4º A escola como experiência de produção


coletiva. tar os desafios de construção de uma nova



5º As virtualidades educativas da materiali- escola organizada conforme os princípios aci-



dade da escola. ma relacionados.


Uma característica interessante do Cape é a


6º A vivência de cada idade de formação sem


interrupção. sua composição: somos atualmente 33 profes-



7º Socialização adequada a cada idade-ci- sores da rede municipal selecionados para tra-

clo de formação.

balhar nas equipes por um período de quatro
anos, depois do qual se volta para a escola.

8º Nova identidade da escola, nova identi-


Atualmente, estamos organizados em cin-


dade do seu profissional.


co grupos de trabalho (GTs) e em quatro co-


Para isso, propõe:


missões.
• Uma reorganização dos tempos escolares a

Os GTs são: Educação Infantil, Ensino Fun-


partir dos ciclos de idade de formação e uma


damental, Educação de Jovens e Adultos, Ensi-


reorganização do trabalho dos professores


no Médio e Educação Especial.


de modo a permitir o trabalho coletivo e a

As comissões são: Registro e Publicações,


flexibilização da organização dos alunos.


Rede de Trocas, Curso de Aperfeiçoamento da


• Uma nova relação da escola com o conhe-


Prática Pedagógica (CAPP) e Formação Inter-


cimento, que valorize a formação global dos


na; as comissões são compostas por profes-


educandos, rompendo com um modelo

sores dos GTs.


cognitivista e transmissivo, propondo uma


Temos, provisoriamente, no Cape, uma ou-


nova lógica processual. Para isso, aponta a


valorização da escola como espaço de socia- tra equipe composta por 24 professores, selecio-

lização e de vivência de experiências corpo- nados especificamente para trabalhar no Cur-


so de Formação de Educadores Infantis que vai


rais e manuais, considerando-as como in-


trínsecas ao processo de formação huma- habilitar, na modalidade Normal, todos os pro-



na. Sugere, ainda, os projetos de trabalho fessores leigos que trabalham nas instituições

como uma concepção metodológica que conveniadas com a Prefeitura de Belo Horizon-

permite o rompimento com a lógica disci- te. Esse município instituiu em 1998 seu siste-

plinar e fragmentada do modelo hegemôni- ma municipal de ensino, criando o Conselho



co e cristalizado da cultura escolar vigente. Municipal de Educação.



• Uma nova lógica de avaliação do aluno que O sistema municipal de ensino está assim

rompe com o atual modelo classificatório e composto:



excludente, visando à construção



de um novo modelo processual, 13 só de Educação Infantil


qualitativo que propicie a identi- 1 só de Educação de Jovens e Adultos



ficação de avanços e problemas, 3 só de Educação Especial


179 Escolas 27 com turmas de Ensino Médio


permitindo o redimensionamento municipais


da ação educativa de forma a ga- 162 de Ensino 65 com turmas de Educação


Fundamental de Jovens e Adultos


rantir a todos a aprendizagem e


28 com turmas de Educação Infantil


um rico processo formativo.

620 instituições 186 filantrópicas ou comunitárias conveniadas



O Centro de Aperfeiçoamento dos de Educação 74 filantrópicas ou comunitárias não-conveniadas


Profissionais de Educação (Cape), cri- Infantil 360 particulares



204
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil

A política de formação que ora desenvol- Sendo assim, entendemos que:



vemos tem na relação com as escolas munici- 1º A escola deve ser o local privilegiado para



pais e com as Instituições de Educação infan- as ações de formação docente. As ações de


formação desenvolvidas e propostas pelo


til (IEI) conveniadas com a Prefeitura de Belo


Horizonte sua estratégia privilegiada de imple- Cape/SMED devem privilegiar a realidade



mentação e formulação. das escolas - seus problemas, construções


e desafios - proporcionando debates e re-



flexões sobre ela. 205


Os princípios da política


2º Todas as ações de formação precisam con-


de formação


siderar o professor como sujeito do seu


próprio processo de formação. É preciso


Nesses dez anos de existência do Cape, fo-


levar em consideração o que o professor


ram construídos os princípios da formação que sabe, o que deseja saber, como constrói co-



praticamos: nhecimentos e, sobretudo, como constrói


• Reconhecimento da formação continuada


sua identidade profissional.


como direito e condição para construirmos


3º A formação é um direito do trabalhador.


uma escola pública democrática de quali-

Ela é um instrumento importante de valo-
dade e cada vez mais inclusiva. Uma for- ○

rização do trabalho docente, inerente ao
mação que provoque, sensibilize e nos faça

exercício da profissão e essencial para a re-


pensar sobre nós mesmos como pessoas e


alização pessoal e profissional dos traba-

como profissionais.

lhadores em educação.

• Uma relação de diálogo entre os sujeitos,



suas práticas e seus contextos, buscando


Os objetivos estratégicos

o conhecimento e a problematização da

realidade e das diferentes tendências pe-


da política de formação

dagógicas hoje em debate na sociedade,



criando assim novas perspectivas de refle- Desses princípios, decorrem sete objetivos

xão crítica sobre a prática. Refletir sobre a


primordiais:

prática não se resume a falar sobre ela, • assegurar aos profissionais da educação o

mas situá-la num contexto em que seja


direito à formação;

possível entender e nomear o que está


• dialogar com os saberes construídos pelos


sendo vivido. Trata-se de um processo de-


profissionais;
safiador que exige amadurecimento, sen-

sibilidade, comprometimento, perseve- • intermediar os saberes construídos no co-



rança e, acima de tudo, desejo de mudan- tidiano pedagógico e os princípios educa-


ça por parte de todos que o vivenciam. A cionais que norteiam a política pedagógi-

mudança da prática pedagógica não ocor- ca da rede municipal de educação;



re em um passe de mágica, conduzido pe- • socializar esses saberes e os conhecimen-


las mãos de um “outro”, detentor de sabe-


tos teóricos construídos em outros espaços


res “superiores”; trata-se, isto sim, de um de formação;



caminho complexo, cheio de idas e vindas,


• propiciar elementos para que a escola


avanços e recuos, que vamos construindo

construa o seu projeto de formação conti-


no processo.

nuada e em serviço;

Construir uma nova identidade profissional


• estimular os espaços de formação no coti-


é uma importante e complexa tarefa que exige


diano escolar;

o estabelecimento de uma nova relação com o


conhecimento, uma postura investigativa, • ampliar a política de formação da SMED


para o Sistema Municipal de Ensino, parti-


questionadora, problematizadora e criativa,


cularmente, para as Instituições de Educa-


transformando uma identidade construída em


ção Infantil conveniadas com a Prefeitura


séculos em uma outra, nova: de transmissores


de Belo Horizonte.

para produtores de conhecimento.



O desafio da política de formação é cons- semanais e duas semanas intensivas, no



truir estratégias que nos permitam atingir to- horário de serviço do professor. Atualmen-



das as escolas e IEI conveniadas e, para isso, te, temos seis turmas (duas turmas por tur-


no) com participação de representantes in-


faz-se necessária a articulação das várias


equipes pedagógicas da SMED (atualmente dicados pelas escolas.



existem nove equipes regionais com um Cen- Curso de libras e braille: destinado a pro-



tro de Educação Infantil (CEI) cada, bem fessores que trabalham com alunos cegos


como outras equipes político-pedagógicas e e surdos e a intérpretes da língua de si-



administrativas, no órgão central, que têm nais.



interlocução com as escolas), responsáveis



pelo apoio pedagógico e administrativo às
Os projetos que estão sendo


escolas e IEI. Para tanto, instituímos na SMED


construídos

um fórum interno de formação que organiza



e desenvolve, de forma articulada, a política

Estamos organizando, para responder às

de formação que praticamos.
demandas das escolas apontadas nos encon-

tros regionalizados, dois grandes projetos:


As ações de formação que


Projeto de investigação e formação em al-


fabetização e letramento, para enfrenta-


estão sendo desenvolvidas


mento de problemas apontados pela es-



Encontro regionalizado mensal, com todas cola, relacionados às dificuldades dos alu-

as coordenações pedagógicas das escolas nos no processamento da leitura e da es-



(incluídos diretores e vice-diretores que fa- crita.



zem parte dessas coordenações). Projeto Rede pela Paz, para equacionar

Acompanhamento sistemático de escolas problemas relacionados à violência e ao


consumo de drogas.

que o demandarem, com planejamento


construído conjuntamente e em torno de



questões ou temáticas levantadas pela es-


Não é só o Cape que faz

cola ou por parte dela.



formação na rede (sistema)


Rede de trocas: evento organizado para tro-


ca de experiências entre as escolas, para o


Como informamos acima, além do Cape,


qual é produzido um relato que é debatido


existem outros setores da SMED que, direta ou


e problematizado com a participação de um


mediador. Cada escola que participa da indiretamente, trabalham com formação de


professores, bem como com outros profissio-


Rede de trocas tem o registro de sua experi-


ência publicado em um caderno. O evento nais da escola.



inclui, ainda, a Rede de trocas de inclusão, São eles:



desenvolvida especificamente com as esco- Regionais. Organizam e implementam,


las que trabalham com alunos portadores de através das Gerências de Educação e dos

deficiência. CEI, ações além das organizadas em conjun-


to com o Cape.

Encontros de Formação: para profissionais



que trabalham com alunos portadores de Coordenadoria de Eventos. Desenvolve


projetos, como a Mostra Plural de Educa-


deficiência. É um desdobramento da Rede


de trocas de inclusão, objetivando estudos ção e o BH para Crianças, que têm como

e aprofundamentos no conhecimento das objetivo construir uma interlocução entre


diversas síndromes e deficiências e nas prá- a escola e a cidade. Implementa, como



ticas pedagógicas adequadas. ações de formação com os professores, a



Rede de Artes e o curso Horizontes da Ci-


Curso de Aperfeiçoamento da Prática Pe-

dadania em parceria com outras secreta-


dagógica: curso anual com carga horária de


rias e equipamentos públicos da cidade.


180 horas, que se desenvolve em encontros


206
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil

Coordenadoria de Bibliotecas. Promove


Questões que estão nos



cursos para bibliotecários e auxiliares de


desafiando hoje


biblioteca, objetivando a revitalização des-


se espaço.


A partir da avaliação feita pelo Grupo de


Gerência do Programa Bolsa-Escola. De-


Avaliação e Medidas Educacionais (Game), da


senvolve projetos de alfabetização com as Faculdade de Educação da Universidade Fe-



famílias dos alunos assistidos e projetos de deral de Minas Gerais e também da institui-


geração de emprego e renda. 207


ção do sistema municipal de ensino, alguns


Gerência de Funcionamento Escolar. De-


desafios novos estão se colocando para nós:


senvolve ações de formação com secre- 1º lugar da formação dos profissionais da



tários de escola e, em conjunto com o educação no processo de desenvolvimen-


Cape e outros setores, com diretores de to curricular da Escola Plural.



escola.


2º A relação do Cape com o sistema munici-


Gerência de Planejamento e Administra- pal de ensino.



ção. Desenvolve ações com diretores e
3º A descentralização da política de formação


membros da caixa escolar


tendo a escola como seu locus privilegiado.

Gerência de Coordenação de Política Pe- ○

4º O lugar e a estrutura institucional do Cape
dagógica. Organiza diversos fóruns e en-

de forma a garantir-lhe a necessária auto-


contros para tratar de questões específicas


nomia e exercício de crítica às políticas


ou gerais da política educacional.

educacionais, bem como a intervenção



política na construção destas.



















































SIMPÓSIO 13

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS


VINCULADA AO TRABALHO
Enrique Pieck

209
Problemática e considerações




sobre programas educacionais




vinculados ao trabalho*





Enrique Pieck



Universidade Ibero-Americana – México






Introdução


senvolvimento de programas orientados para


a formação para o trabalho em setores de po-


Entre outros questionamentos freqüentes


breza.


da Educação de Jovens e Adultos (EJA) desta-


ca-se o que diz respeito à sua falta de eficácia ○

Problemática

para contribuir no sentido de melhorar os ní-


veis de vida da população em zonas excluí- e pontos de partida



das, destinatários importantes desse campo



da educação. Observa-se atualmente um


A terra de ninguém

questionamento generalizado das atividades


de educação de adultos que não estejam vin- Um primeiro ponto de partida para abordar

culadas ao trabalho produtivo. O desafio é a problemática da EDJAT é o reconhecimento



enorme, à luz de inúmeras experiências fra- de que, nos setores em situação de pobreza, a

capacitação técnica – a capacitação para o tra-


c a s s a d a s e d e u m a t ra j e t ó r i a q u e t e m

priorizado o aspecto educacional, em detri- balho – é uma prática quase inexistente. Essa

mento de aspectos técnico-produtivos e de situação é resultado de duas ausências particu-



vinculação ao trabalho, deixando pouco espa- lares: por parte das instituições de educação de

adultos observa-se, na prática, uma ausência do


ço para demandas relacionadas ao trabalho,


à produção, à participação política e à supe- tema trabalho em seus programas, que não

ração da exclusão e da desigualdade social constitui uma área prioritária; no caso dos ins-

( Weinberg, 1994). A capacitação para o traba- titutos de formação profissional, as populações


excluídas não constituem suas populações-alvo,


lho continua sendo a área menos atendida no


campo da educação de adultos, enquanto a al- dada a orientação predominante de seus pro-

fabetização e a Educação básica têm recebi- gramas para o mercado formal de trabalho, re-

sultando na ausência de atividade nesses espa-


do mais atenção (García Huidobro, 1986).


Esta dissertação pretende abordar vários ços (Pieck, 1998). Embora em zonas rurais e ur-

aspectos fundamentais que configuram o banas excluídas exista, de um modo geral, uma

marco contextual – a problemática básica – da oferta, em alguns casos vasta, de programas de


educação não-formal – a chamada educação


Educação de Jovens e Adultos vinculada ao


Trabalho (EDJAT). Além disso e com o objeti- não-formal não-vocacional –, esses programas

vo de trazer informação e elementos que apói- estão longe de oferecer uma efetiva capacitação

em o trabalho educacional realizado pelos do- para o trabalho em decorrência dos poucos re-

cursos de que dispõem para operar (Pieck, 1996;


centes no setor social, serão tecidas algumas


considerações relevantes para o desenho e de- Stromquist, 1988).







*
Apresentação feita no Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação – Formação de Professores, realizado em Brasília no período de 15

a 19 de outubro de 2001.

Os elementos para a elaboração desta apresentação baseiam-se no relatório final sobre a problemática regional da “educação de jovens e

adultos vinculada ao trabalho”, documento elaborado no marco do “Acompanhamento Latino-Americano da Confintea” (v. Pieck, 2000).

210
SIMPÓSIO 13
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao trabalho

Parece existir um espaço sem responsável tiginoso desenvolvimento da informática pro-



entre ambas as estratégias educacionais – uma porcionaram um acesso sem precedentes à in-



terra de ninguém – que deixa sem atenção, no formação, exigindo novas competências e ge-



campo da capacitação para o trabalho, os gru- rando novos desafios nos espaços de trabalho.


pos populacionais que vivem em regiões de O limitado acesso de amplos setores da popu-



pobreza: a contraposição entre uma educação lação a essas novas possibilidades de acesso à



para os pobres e uma educação para o desen- informação e ao conhecimento gera situações


volvimento, entre uma lógica tradicionalmen- intoleráveis de exclusão – novos analfabetismos 211



te orientada para a sobrevivência e o e novos processos de exclusão. Esses atributos



assistencialismo e outra cuja natureza e razão certamente incidirão nas novas condições de



de ser é o trabalho. A oferta de uma EDJAT exi- empregabilidade e representarão um risco par-


ge articulação adequada entre ambas as ofer- ticularmente alto para populações em regiões



tas educacionais. De certa maneira, exige a de pobreza.



criação de uma lógica diferente, que envolva Esses elementos mexem nas estruturas do



duas racionalidades aparentemente opostas, sistema produtivo e do mercado de trabalho,


uma conjunção de estratégias que permita a bem como dos sistemas educacionais e de for-



combinação e a articulação de perspectivas e mação, gerando a premente necessidade de

de metodologias com o objetivo de liberar o redefinir papéis, perspectivas e estratégias. A



potencial produtivo dos programas de educa- educação geral e a formação para o trabalho

ção de adultos e fortalecer o impacto e a pre- deixam de ser opostas e a formação do cida-

sença dos institutos de formação profissional dão e do trabalhador se entrelaçam. Estar



nos setores em situação de pobreza. apto para a mudança e para a aprendizagem


permanente, para adaptar-se e ser competen-



te numa sociedade organizada em torno do


Os contextos da EDJAT

conhecimento torna-se condição básica para


e suas implicações

a vida em sociedade e cotidiana, para o de-


Atualmente, a preocupação com a EDJAT re- senvolvimento da convivência democrática e



side na dualidade de um contexto mundial carac- para a empregabilidade. Nessa ótica, a edu-

terizado pela coexistência do fenômeno da cação de adultos adquire uma nova dimensão,

globalização e da polarização das sociedades constituindo-se em instrumento de grande


(Unesco, 1997). Trata-se, na verdade, de duas di- potencial para permitir o acesso de amplos

mensões de um mesmo processo: I) o processo setores excluídos e marginalizados aos conhe-



de globalização e desenvolvimento tecnológico; cimentos e competências exigidas no novo



e II) o marco de pobreza que caracteriza as socie- cenário mundial (Silveira, 1998).

dades latino-americanas. Ambas as perspectivas De outro ângulo, o aumento do desempre-



têm implicações socioeconômicas importantes, go, a precariedade do emprego e a pobreza



com base nas quais se vislumbram novos desafi- endêmica suscitam tarefas fundamentais para

os para a educação de adultos que exigirão uma


este campo educacional no desenvolvimento


reconceitualização de sua noção e de sua prática. de capacidades que permitam a jovens e a



No que se refere à primeira dimensão, as adultos, homens e mulheres, incorporar-se



mutações observadas no mundo do trabalho, produtivamente na sociedade; nos países em


decorrentes do desenvolvimento de novas


desenvolvimento, não se trata somente de en-


tecnologias e de novas pautas de produção, exi- contrar um emprego e, sim, de garantir o sus-

gem que a Educação de Jovens e Adultos desem- tento de todos.



penhe um papel claro na formação de compe- A importância desse vínculo assumiu ma-

tências e aptidões para incorporar esses jovens


tizes particulares diante uma realidade na qual


e adultos ao mercado de trabalho e facilitar sua a população que vive em condições de pobre-

mobilidade social. A “mundialização” dos inter- za é cada vez maior e mais pobre a cada dia

câmbios, a globalização das tecnologias e o ver- que passa. Nesses setores, o mundo do traba-

lho adquire uma especificidade própria, que var em consideração possibilidades disponí-



define as características que um programa con- veis em contextos de pobreza. Se o mercado



cebido para responder às necessidades de for- formal de trabalho apresenta restrições para a



mação que prevalecem nos diferentes espaços incorporação de novos trabalhadores, o setor


deve ter. Nesse sentido, o trabalho adquire um informal e as atividades produtivas próprias



significado particular nas áreas marginais, es- dos meios informais oferecem espaços em po-



pecialmente na área rural, por estar estreita- tencial que podem redinamizar capacidades


mente ligado às características do contexto e produtivas inibidas no contexto do mercado



ao desenvolvimento de estratégias de sobre- globalizador. Atualmente, a idéia de mercado



vivência. A incorporação produtiva transfor- tende a subestimar a riqueza desses espaços,



ma-se no grande desafio dessa dimensão es- a esquecer e a mascarar a sociedade, a diluí-la


pecífica, pois envolve amplos setores da popu- e a fazê-la perder sua especificidade. A varie-



lação, principalmente em áreas rurais e nas dade de produtos locais, atividades produtivas,



periferias urbanas, que exigem programas de competências informais ficam perdidas num


formação relevantes que lhes permitam satis- ○
conceito de mercado que não tem relação –
fazer suas necessidades específicas de inser- não define nem inclui – com as miríades de

ção econômica. atividades que compõem o cotidiano social



À luz dessas duas dimensões, as tarefas da dos setores informais.



educação técnica nos setores de baixa renda se-


riam as seguintes: I) adequar-se e responder às A especificidade do trabalho nos



necessidades e possibilidades dos contextos


setores de pobreza

marginais, ou seja, disponibilizar uma oferta


educacional relevante e de qualidade; II) permi- Nos setores de pobreza, conceitos como o

tir o acesso da população desses setores às no- trabalho e a empregabilidade adquirem espe-

cificidades próprias. Enquanto o mercado for-


vas competências e ao alfabetismo tecnológico,


mal de trabalho apresenta demandas específi-


com vista a promover a empregabilidade nesses


setores e não desenvolver novos processos de cas ao campo da educação, no terreno da



exclusão social. informalidade (nos setores de pobreza) o mun-


do do trabalho – e suas necessidades – mantém



uma estreita relação com o próprio cotidiano


A EDJAT e a pobreza

dos sujeitos. Sob essa luz, a formação para o tra-


É importante ressaltar que, nos países la-


balho está mais relacionada às atividades pro-


tino-americanos, o tema da EDJAT passa, ne- dutivas das pessoas – suas estratégias de sobre-

cessariamente, pela lente da pobreza: a po- vivência – ou a outras atividades realizáveis e



pulação que vive em situação de pobreza em que se desprendem da natureza do contexto do


nossos países está se tornando maioria. Nes-


que à necessidade de capacitar para um mer-


se contexto, a educação de adultos está cado formal de trabalho ou de responder às exi-



inextricavelmente ligada à pobreza e se defi- gências próprias do desenvolvimento tecnoló-



ne a partir de sua relação com ela. Hoje em gico na corrente da modernidade.


dia, é difícil pensar numa educação desliga-


Nos setores de pobreza, a possibilidade de


da do trabalho e das atividades e necessida- incorporação produtiva está relacionada à ad-



des econômicas das pessoas. ministração de competências para a vida que



A pobreza e a exclusão apresentam-se atendam à diversidade dos espaços de trabalho


como problemas subjacentes, associados à


na esfera da vida cotidiana. A noção e a prática


aplicação prática de uma EDJAT. Por isso, é de uma “educação ao longo da vida” definem-

importante que as propostas estejam sintoni- se a partir da realidade de pobreza que caracte-

zadas com uma visão de desenvolvimento e se riza a grande maioria dos países latino-ameri-

enquadrem num projeto ético e político. Elas


canos, tornando-se um conceito subordinado


devem fortalecer as economias populares e le- às nossas realidades e relacionado às compe-



212
SIMPÓSIO 13
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao trabalho

tências necessárias para a incorporação produ- mente a população em ofícios geralmente mar-



tiva, para a eliminação da exclusão social, para ginais e com perfis de conclusão igualmente



ajudar a melhorar as condições de vida e para baixos. Uma capacitação técnica desvinculada



permitir que os indivíduos ocupem seu lugar na da promoção humana e do melhoramento da


vida da sociedade. qualidade de vida se transforma numa oferta



Nesse sentido, precisamos oferecer progra- educacional assistencialista e de contenção so-



mas que resgatem as esferas do trabalho coti- cial; ao contrário, uma estratégia de formação


diano das pessoas e o vinculem a atividades associada à Educação básica e devidamente 213



econômicas estratégicas que possibilitem a enfocada constitui um elemento importante da



transcendência das modestas inserções eco- empregabilidade.



nômicas e sua inserção com outros tipos de Mais uma vez, a capacitação isolada certa-


apoios. Isso nos leva, necessariamente, a mente não cria empregos. São necessários me-



questionar e a redefinir os conceitos de traba- canismos laterais de apoio e articulações ins-



lho, emprego e empregabilidade nesses seto- titucionais para que melhores possibilidades



res. No cenário dos setores de pobreza, a no- sejam geradas para a incorporação produtiva


ção de emprego perde força e se sujeita ao con- da população de baixa renda. A capacitação



ceito de trabalho, entendido como as ativida- precisa, também, estar orientada para o forta-

des produtivas das pessoas na vastidão que as lecimento de atividades econômicas vincula-

caracteriza e sem limitá-las ao vínculo que elas das ao setor informal, às atividades tradicio-

tenham com o mercado formal de trabalho. É nais das pessoas, às características próprias de

na esfera do cotidiano que residem os conteú- áreas rurais. Sabemos que a capacitação não

dos relevantes para uma EDJAT. A empre- pode estar desligada dos processos, pois ela

gabilidade nos setores de pobreza acaba por está estreitamente vinculada a eles. É impos-

traduzir-se na possibilidade de acesso aos es- sível separar a capacitação dos espaços nos

paços do trabalho, na geração de condições quais ela pretende incidir. São eles que defi-

(formação de competências, apoios orga- nem suas características e configuram as ba-


nizativos e financeiros etc.) que viabilizem o ses para se medir seu impacto.

exercício de uma atividade produtiva.



A vinculação aos projetos das pessoas



Algumas considerações sobre


A oferta de capacitação técnica nos setores


estratégias educacionais de pobreza não deve proporcionar apenas ha-



bilidades vinculadas aos setores de ponta, e sim


vinculadas ao trabalho

orientar-se predominantemente no sentido de



satisfazer necessidades de formação relaciona-


das às atividades econômicas e produtivas da


A capacitação técnica, por si só,


população e às características dos contextos


não é suficiente

locais. Para ser eficaz, a capacitação técnica


Como estratégia específica de uma EDJAT,


deve ser uma capacitação no trabalho das pes-


a capacitação técnica, por si só, não é suficien- soas, satisfazendo necessidades específicas de

te, não cria empregos, não garante melhores capacitação vinculadas aos problemas enfren-

condições de vida para a população e não gera tados pelos diversos microempreendimentos,

atividades produtivas. Não se trata de contar


em muitos casos estratégias de sobrevivência


com uma população capacitada, mas desem- de amplos setores da população em regiões de

pregada, e nem de promover ações cuja finali- pobreza cuja atividade econômica desenvolve-

dade não vá além da esfera dos registros esta- se predominantemente no terreno da informa-

tísticos em termos de cursos oferecidos.


lidade. É o caso de produtores de leite que de-


Pouca utilidade têm as ofertas de capaci- sejam começar a produzir laticínios; artesãos

tação de baixa qualidade, que capacitam fraca- que precisam de apoio técnico e de apoio na


comercialização de seus produtos; trabalhado- citação-consultoria que apóia projetos a par-



ras rurais que precisam de apoio financeiro para tir de um enfoque integral. Em outras pala-



desenvolver pequenos empreendimentos; orga- vras, não se trata de oferecer uma resposta



nizações sociais que precisam de assessoria téc- imediata a uma necessidade técnica ou eco-


nica na gestão de projetos de ecoturismo etc. O nômica de um projeto – uma necessidade



apoio dado a essas pequenas inserções econô- “sentida” –, que não constitui garantia de que



micas certamente não impedirá o desemprego, os recursos e apoios canalizados sejam utili-


mas poderá gerar espaços de participação so- zados eficazmente, mas de oferecer uma res-



cial e proporcionar às pessoas caminhos autên- posta com base numa análise-diagnóstico in-



ticos para o exercício de sua cidadania de uma tegral da atividade econômico-produtiva, que



forma diferente (Chourin, 1996). leve ao desenvolvimento de um plano de


Trata-se, particularmente, de criar estraté- melhorias desenhado para propor soluções



gias para o desenvolvimento de unidades eco- que desloquem qualquer atividade econômi-



nômicas a partir dos pequenos esforços que as ca na direção de um projeto de desenvolvi-


pessoas podem fazer, mas sem limitar-se a eles; ○
mento econômico. A perspectiva integral das
é fundamental transcendê-los. As estratégias de atividades da EDJAT revela claramente a in-

sobrevivência estabelecem um ponto de parti- suficiência da capacitação técnica isolada,



da orientado para a constituição de opções de dos cursos pontuais e do financiamento.



desenvolvimento. Isso pressupõe a articulação Essa premissa básica – a visão integral dos

da EDJAT com os circuitos da economia popu- projetos – tem constituído a grande ausência no

lar, os projetos locais de desenvolvimento e os desenvolvimento de programas de capacitação



movimentos cooperativos, com vista ao forta- técnica em áreas de pobreza. Isso tem ocasio-

lecimento e à promoção de programas educa- nado uma oferta de programas cujo interesse

cionais que contemplem projetos produtivos restringe-se aos cursos em si e, em algumas oca-

(como programas de auto-emprego e de micro- siões, uma oferta até sem interesse na perti-

empresas). nência dos cursos promovidos.




A dimensão integral das atividades


As articulações institucionais

econômicas

Um complemento da consideração anteri-



Uma estratégia de EDJAT deve partir de or é a necessidade de a EDJAT estar apoiada



uma perspectiva integral das atividades eco- na interinstitucionalidade. A coordenação


nômico-produtivas da população. É de pou-


interinstitucional garante que os programas


ca utilidade responder a demandas imediatas incidirão no desenvolvimento de atividades



dos projetos (créditos, cursos específicos etc.) econômicas e promoverão melhorias nas con-

se não se parte de um diagnóstico que permi- dições de vida das pessoas. A coordenação com

ta uma resposta integral aos problemas en-


instituições de financiamento, de organização,


frentados nos diferentes projetos da popula- de comercialização contribui para que os co-

ção. Nesse sentido, é importante considerar nhecimentos adquiridos pela capacitação le-

os projetos a partir de sua organização, pro- vem à incorporação produtiva e à geração e de-

dução, comercialização, processos técnicos, senvolvimento de empreendimentos. A coor-



sistemas contábeis, divisão do trabalho etc., denação interinstitucional potencializa a esfe-



independentemente do tamanho dos diferen- ra de possibilidades da capacitação técnica e



tes empreendimentos. Em alguns casos, pro- permite que ela seja complementada com ati-

curar-se-á apoiar tecnicamente o desenvolvi- vidades de saúde, habitação, Educação básica,



mento de pequenos produtores; em outros, certificação etc. Reconhecendo que os recur-



oferecer-se-á assessoria contábil a projetos sos são escassos e que a educação de jovens e

em vias de consolidação. A capacitação téc- adultos é limitada em seu alcance, é importan-


nica, uma EDJAT, torna-se, assim, uma capa- te envolver a participação tanto dos ministé-

214
SIMPÓSIO 13
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao trabalho

rios da Educação e do Trabalho, de organiza- no terreno da capacitação técnica. Isso



ções da mulher e da juventude, de trabalha- pode ser logrado a partir da inclusão de



dores rurais e de sindicatos como de empre- temas como saúde, nutrição, estimulação


precoce, sexualidade etc., que comple-


sários e de instituições de crédito e comer-


cialização, visando desenvolver estratégias co- mentam a EDJAT e conferem o caráter edu-


cacional que essas intervenções devem ter.


ordenadas e extrair aprendizagens de diferen-



tes experiências.


A educação básica nas estratégias 215



A dimensão educacional das de EDJAT



estratégias de EDJAT


A educação técnica representa apenas um


complemento da educação geral. Ela não pode


A EDJAT deve ser concebida como uma es-


substituir a educação geral e esse não é o seu


tratégia de longo prazo que transcenda ativida-


des estritamente capacitadoras – inclusive a propósito. Qualquer programa educacional vin-



incorporação produtiva – e faça com que os pro- culado ao trabalho em setores de pobreza deve


incluir a educação geral ou básica como a que


gramas se tornem estratégias de formação com


permite a abertura de novos horizontes de sen-

laços importantes nos âmbitos da formação de
○ tido, que dá acesso a novas noções de alfabeti-
competências básicas, da formação da cidada- ○

nia e da promoção da participação social. Nos zação e possibilita o desenvolvimento de com-


petências básicas. Essa educação geral, no en-


programas de Educação de Jovens e Adultos vin-


culada ao Trabalho a dimensão educacional está tanto, deve estar ambientada nos novos cená-

presente nas seguintes dimensões: rios, noções e práticas do trabalho e apoiar-se



a. No conteúdo da formação ao longo do pro- – complementar-se – em sistemas de educação


técnica que desenvolvam nas pessoas compe-


jeto, de forma que os programas transcen-


dam sua natureza puramente técnica e tências pertinentes para os diferentes contex-

incidam no desenvolvimento de compe- tos e para a dinâmica dos novos mercados de


tências básicas gerais que ajudem no pro-


trabalho.

cesso decisório e na utilização de habili-



dades em diversos contextos. Sob esse Diversidade e qualidade


prisma, a EDJAT deve promover uma cul-


Uma estratégia de EDJAT deve basear-se na


tura do trabalho (Weinberg, 1994) e ser


premissa de que a pobreza é heterogênea e de


concebida como uma atividade de forma-


ção no âmbito dos direitos humanos, do que é necessário especificar as ações no interi-

exercício da cidadania e da problemática or dos grupos vulneráveis, diferenciando e es-


tabelecendo prioridades entre jovens, trabalha-


de gênero.

dores rurais, mulheres, o que implica uma es-


b. Na participação da população ao longo do


processo produtivo, que nos leva a pensar tratégia de territorialidade que, entre outros

nas atividades educacionais como uma aspectos, assinale as diferenças existentes no


interior de cada um desses grupos. A definição


série de ações transformadoras que impli-


cam práticas educacionais em si mesmas. dos diversos perfis da população-alvo torna-se,



Essa participação é a que garante, de algu- assim, um processo-chave para que as experi-

ma forma, o crescimento e o fortalecimen- ências de aprendizagem efetivamente potenci-


to da população que vive em locais de po- alizem as capacidades. Isso gera a necessidade

breza no processo de superar gradualmen- de se planejarem diferentes modelos curricu-



te os desafios enfrentados no desenvolvi- lares e pedagógicos e diferentes objetivos e


mento de seus pequenos empreendimen-


orientações para os programas.


tos econômicos. Em atenção à diversidade, uma estratégia de



c. Na incorporação ao currículo de outras di- EDJAT deve contar com uma gama de opções

mensões educacionais que permitam seu que permitam a satisfação de expectativas de


enriquecimento e a superação de limites


diferentes grupos da população. Ela deve dife-



renciar jovens que abandonaram seus estudos outro lado, trata-se de proporcionar elementos



de segundo grau e desejam capacitar-se num que permitam à população de baixa renda en-



ofício; desempregados com experiência de tra- frentar sua necessidade de incorporação produ-



balho que querem continuar sua formação ou tiva a partir de ofertas que correspondam às ne-


estão em busca de opções de auto-emprego; cessidades locais e às características do traba-



adultos desempregados interessados em atua- lho nas diferentes localidades.



lizar-se; mulheres responsáveis por suas famí-


lias que desejam capacitação e apoio para im-


Bibliografia


pulsionar e desenvolver atividades econômicas;



pessoas interessadas em certificar estudos para BENNEL, Paul. Learning to change: skills development


among the economically vulnerable and socially


entrar no mercado formal de trabalho; jovens


excluded in developing countries. Employment and
de baixa renda que precisam de opções de


Training Papers. Genebra: OIT, 1999.


capacitação rápidas que lhes possibilitem uma


CHOURIN, Michel. Education et formation. In: HAUTECOEUR,


rápida incorporação produtiva; pessoas interes- Jean-Paul (Ed.). Alpha 96: literacy and work. Quebec:


sadas em opções de ensino médio que ofere- ○
Unesco, 1996.
çam articulação com espaços de trabalho; etc. GARCÍA HUIDOBRO, Juan E. Los cambios en las

As situações são múltiplas e podem variar mui- concepciones actuales de la educación de adultos. In:

UNESCO/UNICEF. La educación de adultos en Améri-


to mais dependendo dos contextos envolvidos.


ca Latina ante el próximo siglo. Santiago de Chile, 1994.


Assim, é importante dispor-se de uma am-


PIECK, Enrique. Función social y significado de la educación

pla gama de opções nos diferentes espaços, que


comunitaria . México: Unicef/El Colegio Mexiquense,


os programas tenham vínculos com opções su- 1996.



periores de formação, que melhorem os perfis . Educación de adultos y formación profesional.


de conclusão, que sejam oferecidos com base Incidencia y posibilidades en sectores de pobreza en

em critérios de integralidade e que as popula- América Latina. In: JACINTO, Claúdia; GALLART, Maria

Antonia. Por una segunda oportunidad: la formación para


ções pobres tenham múltiplas possibilidade de


el trabajo de jóvenes vulnerables. Montevideo: Cinterfor/


entrada e saída nos diferentes sistemas de edu- OIT/RET, 1998.


cação técnica.

. Educación de jóvenes y adultos vinculada


Precisamos, portanto, articular e distribuir as


ao trabajo. Projecto Principal de Educación en América


diferentes ofertas de EDJAT de uma maneira Latina y el Caribe . Boletín n. 50. Santiago de Chile:

mais justa, como um caminho para a superação Unesco, 2000.


SILVEIRA, Sara. La educación para el trabajo: un nuevo


da exclusão social, evitando que as oportunida-

paradigma. Dissertação (Seminário-Workshop do Gru-


des de uma melhor formação fiquem restritas

po do Rio: A educação como instrumento para a supe-


àqueles que contam com melhores condições de


ração da pobreza e do desemprego). Cidade do Pana-


vida. Nesse sentido, os programas de EDJAT têm má, ago. 1998.


a dupla missão de: a) ajudar as pessoas a passar


STROMQUIST, Nelly. Women’s education in development:


da favela ao computador; e b) contribuir no sen- from welfare to empowerment. Convergence, v. XXI, n.



tido de que a população possa sobreviver. Em 4, 1998.


UNESCO. La educación de adultos en un mundo en vías de


outras palavras, trata-se, por um lado, de não


polarización. França, 1997.


excluir as populações pobres do acesso a novas

WEINBERG, Pedro Daniel. Educación de adultos y trabajo


competências e de proporcionar oportunidades


productivo. In: UNESCO/UNICEF. La educación de adul-


de incorporação ao mercado formal de trabalho, tos en América Latina ante el próximo siglo . Santiago

ou de formação superior, a quem deseje. Por de Chile, 1994.















SIMPÓSIO 14

DIRETRIZES CURRICULARES
NACIONAIS PARA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
EM NÍVEL MÉDIO E SUPERIOR
Edla de Araújo Lira Soares

Sylvia Figueiredo Gouvêa

217

Formação de professores em




nível médio na modalidade




Normal: um novo paradigma?





Edla de Araújo Lira Soares*







A pretensão de elaborar um projeto de for- O artigo 13, inspirado no parágrafo único do



mação de docentes que implique a melhoria do artigo 1º da Carta Magna, define as incumbên-


cias dos professores, reconhecendo, a partir do


atendimento escolar, tem-se constituído, histo-


ricamente, uma das principais dimensões do inciso I, a importância da participação de to-


debate a respeito do processo de construção da ○

dos e o compromisso compartilhado, median-
qualidade social da educação brasileira. te um processo coletivo de elaboração da pro-

No caso, várias iniciativas, informadas cada posta pedagógica, com a aprendizagem do alu-

uma delas por um modo de entender a com- no e o atendimento das necessidades educacio-

plexa relação entre a formação de professores e nais da população.



a democratização da educação escolar, foram Essa compreensão, como se vê, retira do pro-

desencadeadas nos diversos sistemas de ensi- fessor a exclusividade das responsabilidades com

no do país. a tarefa de assegurar o bom desempenho dos sis-



No âmbito desses esforços, aponta-se como temas de ensino, reconhecendo, desde o início,

uma das principais mudanças pretendidas, a a dimensão coletiva da escolha a respeito de


“universitarização” da formação inicial e a quais elementos da cultura – em suas múltiplas



institucionalização de um processo continuado dimensões – devem ser transformados em valo-



de estudos e aperfeiçoamento que assegure, in- res, competências e conhecimentos a serem con-

dependente do patamar de ingresso desses pro- siderados pelas gerações que atualizam a traje-

fissionais na carreira, o diálogo permanente en- tória da humanidade. Há que registrar, neste

tre a produção contemporânea do conhecimen- momento, a possibilidade de o educador fazer



to e a fecunda reflexão sobre a sua prática. E, as- opções que possam vir a consolidar ou reorientar

sim sendo, a “postura de investigador”, que toma o projeto civilizatório em curso no país, exercen-

como objeto de estudo e reflexão a proposta pe- do sua condição cidadã de protagonista de um

dagógica da escola e a sala de aula, passa a inte- projeto social mais geral.

grar, entre outras, o perfil dos professores.


Art. 13. Os docentes incubir-se-ão de:


No Brasil, aproximando-se do debate pre-


sente no conjunto da sociedade, as exigências I – participar da elaboração da proposta pe-



da formação para o exercício da docência na dagógica do estabelecimento de ensino;


II – elaborar e cumprir plano de trabalho,


Educação básica são estabelecidas, principal-


segundo a proposta pedagógica do estabe-


mente, nos artigos 13, 22, 26, 27, 29, 32, 35, 36,

lecimento de ensino;
39, 61, 62, 63, 67 e 87 da Lei de Diretrizes e Ba-

III – zelar pela aprendizagem dos alunos;


ses da Educação Nacional (LDBEN) e nas Reso-


IV – estabelecer estratégias de recuperação


luções do Conselho Nacional que estabelecem


para os alunos de menor rendimento;


as Diretrizes Curriculares Nacionais orientado-


V – ministrar os dias letivos e horas-aulas

ras dos cursos nessa área.


estabelecidos, além de participar integral-






* Membro do Conselho Nacional de Educação, Presidente do Conselho Estadual de Educação de Pernambuco, Secretária de Educação de

Recife/PE, Professora da Universidade Federal de Pernambuco (aposentada).


218
SIMPÓSIO 14
Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores em nível médio e superior

mente dos períodos dedicados ao planeja- O artigo 62, por sua vez, elimina as Licencia-



mento, à avaliação e ao desenvolvimento turas curtas como possibilidade e nível de for-



profissional; mação aceitável pelos sistemas de ensino, pre-


VI – colaborar com as atividades de articula-


vendo que esta aconteça em nível superior, em


ção da escola com as famílias e a comunidade. cursos de Licenciatura Plena.



Contudo, ao admitir, no mesmo dispositivo,


É também do mesmo artigo, como se verifi-


sem estabelecer nenhuma excepcionalidade, que


ca nos demais incisos, a rigorosa vinculação que a modalidade Normal em nível médio é a forma- 219



a citada lei estabelece entre a liberdade de en- ção mínima exigida para o exercício da docência


sinar e o zelo pela aprendizagem do aluno. Ao


na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensi-


fazê-lo, exige, no nível do plano de trabalho, o


no Fundamental, contradiz, nas diposições per-


cumprimento dos acordos firmados coletiva- manentes do texto, segundo alguns estudiosos, o



mente na proposta pedagógica e a colaboração que está disposto no § 4º do artigo 87.


dos docentes nas atividades de articulação com


Assim, enquanto o artigo 62 da LDBEN dis-


a comunidade. Na verdade, o texto legal sinali-


põe que a formação de docentes para atuar na


za para a importância do entorno que dá signi- Educação básica far-se-á em “nível superior, em



ficado à autonomia escolar e determina as res- curso de Licenciatura, de graduação plena, em

ponsabilidades dos docentes, sem descuidar do ○

universidades e institutos superiores da educa-


projeto institucional dos estabelecimentos de

ção, admitida como formação mínima para o


ensino. exercício do magistério na educação infantil e nas


Quanto ao artigo 61, antes de mais nada,


quatro primeiras séries do ensino fundamental,


há de se convir que retoma, no território da for-


a oferecida em nível médio, na modalidade Nor-


mação de professores, a concepção de educa- mal”, o mesmo texto, no § 4º do artigo 87, das dis-

ção declarada no artigo 1º da LDBEN. Seu pro- posições transitórias, determina que até o fim da

pósito é ajustar os cursos às finalidades e mo-


década da educação “somente serão admitidos


dalidades de cada uma das etapas da Educa-


professores habilitados em nível superior ou for-


ção básica, bem como à faixa etária, aos pro- mados por treinamento em serviço”.

cessos próprios de aprendizagem e ao modo Em conseqüência disso, várias instituições,


particular de inserção no mundo social dos(as)


apoiadas numa interpretação que desconsidera


respectivos(as) alunos(as), tomando como re-


a substituição, na lei, da confusa habilitação de


ferência dos programas de formação inicial e Magistério até então vigente por um respeitá-

continuada o disposto nos artigos 22, 26, 27, vel curso, mesmo que na trajetória de um pro-

29, 32, 35, 36 e 39.


cesso de formação cuja perspectiva é a Licenci-



atura Plena, pronunciaram-se sobre a extinção


Art. 61. A formação de profissionais da educa-


imediata do curso Normal em nível médio. Com

ção, de modo a atender os objetivos dos diferen-


isso, assumiram a postura que nega a definição

tes níveis e modalidades de ensino e as caracte-


da matéria no artigo 62 e subordinaram, por


rísticas de cada fase do desenvolvimento do


inteiro, o estabelecido nas disposições perma-


educando, terá como fundamentos:

nentes da Lei à desejabilidade expressa em suas


I – a associação entre teorias e práticas, in-


disposições transitórias.

clusive mediante a capacitação em serviço;


II – aproveitamento da formação e de expe- Coube ao Conselho Nacional, por meio do



riências anteriores em instituições de ensi- Parecer nº 1/00 e da Resolução nº 2/99, salva-


guardar o disposto no artigo 62, incorporando


no e outras atividades.

essa alternativa de curso sem descuidar da im-



Além disso, tal dispositivo reafirma a impor- portância dos níveis mais elevados de formação.

tância da relação entre teoria e prática e torna Assim, reafirmados os níveis e as perspecti-

vas de formação docente previstos, nos termos


possível o aproveitamento de experiências e


aprendizagens vivenciadas ao longo da vida e da legislação vigente, cabe analisar quais são as

em diferentes situações. repercussões dessa discussão, seja na definição



de políticas mais gerais de desenvolvimento Educação disponibiliza recomendações para a



profissional dos docentes, seja no patamar de organização do ensino, mediante a divulgação



aprendizagem alcançado até então pelos estu- dos Parâmetros Curriculares Nacionais, e o



dantes, nos diversos sistemas de ensino. Na Conselho Nacional de Educação estabelece Di-


verdade, as taxas de reprovação, abandono e retrizes Curriculares Nacionais com caráter



distorção série/idade continuam preocupantes. mandatório para cada uma das etapas da Edu-



Acrescidas da manutenção das desigualdades cação básica, bem como para a formação de


regionais nos termos do atendimento escolar, professores, convém refletir sobre a organiza-



terminam por evidenciar, entre outros, os limi- ção curricular dos cursos de formação de do-



tes das análises e das políticas de valorização centes à luz desse novo paradigma.



dos profissionais da educação, fixadas apenas Se nos ativermos às Diretrizes para Forma-


na problemática da formação. ção de Professores seja em nível médio na mo-



No contexto desse debate, o artigo 67 da dalidade Normal, seja em nível superior, em



LDBEN extrapola os limites acima menciona- Licenciatura Plena, observa-se, nesse para-


dos e aborda a política de valorização dos do- ○
digma, que ambas trazem no seu bojo grandes
centes sob uma nova ótica, ampliando, com desafios. Sua inspiração nos valores que dão

certeza, o leque de possibilidades de que venha sustentação à convivência social nas socieda-

a provocar impactos nos sistemas de ensino. des democráticas é traduzida, em primeiro lu-

gar, no respeito à diferença e ao direito à igual-


Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a va- dade assegurados no conjunto das ações que

lorização dos profissionais da educação, assegu- viabilizam a política de educação escolar.



rando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos Além disso, essas diretrizes estabelecem o

e dos planos de carreira do magistério público: foco nas competências básicas necessárias ao

I – ingresso exclusivamente por concurso exercício da docência; privilegiam o domínio


público de provas e títulos;


dos conteúdos próprios de cada uma das eta-


II – aperfeiçoamento profissional continua-


pas da Educação básica e o seu tratamento nos


do, inclusive com licenciamento periódico


diversos contextos de atuação dos professores;

remunerado para esse fim;


propiciam, nos níveis em que cada curso é ofe-


III – piso salarial profissional;


recido, o conhecimento a respeito dos alunos e


IV – progressão funcional baseada na


titulação ou habilitação, e na avaliação do dos respectivos processos de aprendizagem;


possibilitam o acesso aos mecanismos de pro-


desempenho;

dução do conhecimento e à tecnologia; incen-


V – período reservado a estudos, planeja-


mento e avaliação, incluído na carga horá- tivam, na sociedade da comunicação e da in-



ria de trabalho; formação, a construção solidária da autonomia


intelectual e a busca do desenvolvimento pro-


VI – condições adequadas de trabalho.


Parágrafo único. A experiência docente é fissional permanente.



pré-requisito para o exercício profissional Na verdade, a perspectiva é instaurar o diá-


de quaisquer outras funções de magistério,


logo entre todos os que participam do projeto


nos termos das normas de cada sistema de educativo das instituições de ensino, eliminan-

ensino. do as fronteiras que isolam os professores e



compartimentalizam o trabalho pedagógico,



Na verdade, o artigo acima mencionado alar- reinventando a sala de aula como espaço

ga significativamente a compreensão do que seja constitutivo da identidade cidadã dos alunos e



uma política de valorização do magistério e, mais dos profissionais da educação. Isto é o que se

do que uma preocupação que se esgota em pro- pretende, por exemplo, com a definição das

postas de formação inicial e continuada, inclui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Forma-

condições de trabalho, salário e carreira. ção de Professores em nível médio, na modali-



Por fim, na medida em que o Ministério da dade Normal.




220
SIMPÓSIO 14
Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores em nível médio e superior

Formação de professores –




o grande desafio





Sylvia Figueiredo Gouvêa



Conselho Nacional de Educação




221




Todas as crianças,


• garantiu o aproveitamento das experiên-


cias anteriores dos docentes;


jovens e adultos têm direito



• estabeleceu:
à educação escolar



– a continuidade entre as etapas da Educa-


Este é um direito garantido pela Constitui- ção Básica;



ção Brasileira de 1988, reconhecido pelo gover-


– a participação dos docentes na elabora-


no como seu dever e exigido pela sociedade
ção da proposta pedagógica da escola e no

como um todo. ○

seu plano de trabalho;
Num contexto marcado pela redemocra-

– novas aprendizagens para os alunos e no-


tização do país, por profundas mudanças nas de-


vas tarefas atribuídas à escola;


mandas educacionais e por inúmeras descober-


tas a respeito das formas de aprendizagem, nem – ampliação da atuação dos docentes em di-

todos se lembram de que: reção à família, à comunidade e ao mundo



em geral.

Todo professor tem o direito de ser



preparado para ensinar Para que essas transformações aconteçam, as



São novos os desafios dos professores para questões mais urgentes a ser enfrentadas na forma-

o milênio que inicia. Já não basta o conheci- ção dos docentes são as de romper a segmentação

da formação atual e aproximar as instituições de


mento dos conteúdos que deve ensinar. É pre-


formação dos sistemas de ensino; dar tratamento


ciso compreender o mundo contemporâneo,


utilizar novas metodologias, saber elaborar e atualizado, significativo, contextualizado e interdis-



executar projetos para desenvolver os conteú- ciplinar aos conteúdos de formação e ampliar o tra-

tamento das práticas e dos estágios; incluir o estu-


dos. O professor deve lidar com a diversidade,


do das especificidades cognitivas, emocionais e so-


focar e comprometer-se com a aprendizagem


dos alunos, além de ser capaz de trabalhar em ciais dos alunos que são atendidos na Educação bá-

equipes multidisciplinares. Um novo perfil de sica. Urge que a formação também se preocupe com

a formação cultural e com as várias dimensões da


competências é requerido e, na verdade, exige-


atuação profissional do professor.


se um profissional capaz de “agir na urgência e


decidir na incerteza”. Nessa direção, o Conselho Nacional de Edu-



Em dezembro de 1996, a nova Lei de Dire- cação, no uso de suas atribuições legais, insti-

tuiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a


trizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)


finalmente introduziu mudanças significativas Formação de Professores da Educação básica,



em vários aspectos da educação e estabeleceu em nível superior, curso de Licenciatura, de gra-



novo paradigma de formação de professores: duação plena, baseado nos princípios orien-

tadores que: conceituam competência como ca-


• definiu todas as Licenciaturas como plenas;


pacidade de mobilizar ações que resultem em


• reafirmou o ensino superior como nível de-


aprendizagem dos alunos; apontam a necessi-


sejável para a formação de professores;

dade de coerência entre a formação oferecida e


• criou os Institutos Superiores de Educação; a prática esperada; e postulam a pesquisa como



• postulou a articulação entre teoria e prática; elemento essencial do curso.



Para que a educação brasileira se transfor- prio desenvolvimento, com ampla cultura ge-



me, para que a qualidade da relação ensino- ral e profissional, assim como sólidos conheci-



aprendizagem esteja à altura das expectativas mentos sobre crianças, jovens e adultos.



do nosso povo e de toda a nação, é preciso que Se esse é o professor de que o Brasil preci-


as instituições formadoras de professores cons- sa, urge preparar as novas gerações de docen-



truam projetos inovadores que garantam os tes e, ao mesmo tempo e com igual empenho,



conhecimentos da Educação básica, tratem os oferecer meios para aqueles que já estão lecio-


conteúdos articulados com suas didáticas es- nando refletirem sobre suas práticas e poderem



pecíficas e concebam a avaliação como orien- adequá-las às novas exigências do ensino.



tação de trabalho. Sua meta deve ser a de for- Esse é o nosso maior desafio dos próxi-



mar profissionais capazes de cuidar do seu pró- mos anos.




































































SIMPÓSIO 15

ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Telma Weisz

Ana Teberosky

José Rivero

223
Alfabetização no contexto




das políticas públicas






Telma Weisz



PROFA/MEC






No Brasil, recém se descobriu que a repetência A LDB anterior, de 1971, quando eliminou



reiterada gera um fantástico desperdício de di- a separação entre primário e ginásio, acaban-


nheiro público. No entanto, desde que dispomos do com o exame de admissão e tornando obri-



de estatísticas1 temos a seguinte situação: gatório o ensino até a 8ª série, produziu uma



política de garantia de

acesso – o que foi essen-
Taxa de reprovação ao final da 1ª série do Ensino Fundamental 2 ○

cial – mas não de sucesso.



1956 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 Ela garantiu a todas as cri-

56,6% 51% 52% 49% 48% 48% 48% 49% 46% 46% 41% anças a entrada na escola,

mas não a progressão. Não



Fonte: IBGE – Inep


garantiu que elas chega-

Esses dados estão e sempre estiveram dis- riam ao fim da escolaridade obrigatória de oito

poníveis. No entanto, só muito recentemente anos nem que aprenderiam o que precisavam

começou-se a considerá-los, a reconhecer o ab- aprender na escola.



surdo neles expresso e a pensar concretamente O mecanismo pelo qual era possível dar aces-

em buscar caminhos para mudar essa situação. so sem garantir o sucesso era a crença na repro-

Considerando que nenhum país do mundo, vação como único dispositivo capaz de garantir

mesmo aqueles mais pobres que o Brasil, tem índi- a qualidade da educação. A idéia, muito popular

ces de fracasso escolar no 1ª ano de escolaridade ainda hoje, como se pode notar quando se lêem

como os nossos, as questões que se colocam são: os jornais dirigidos à classe média, é que a ame-

1. Como foi possível aceitar esses índices pas-


aça da reprovação é a única forma de obrigar os


sivamente por quase cinqüenta anos? alunos a estudar. Que sem ela ninguém vai

2. Que explicações se construíram para o fe- aprender nada e a qualidade da educação vai fi-

nômeno? car péssima. Aliás, da mesma forma que em 1971,



3. O que se fez – do ponto de vista das políti- com a LDB anterior, dizia-se que, sem o exame

cas públicas – para mudar essa situação? de admissão, deixando qualquer um entrar em

Vamos tentar responder a uma questão de massa no ginásio, ia cair a qualidade.



cada vez, se é que isso é possível. Vemos hoje muita gente, inclusive jornalis-

Para refletir sobre a primeira: “Como foi tas que prestam serviços educacionais à classe

média, a discorrer com saudade sobre a mara-


possível aceitar esses índices passivamente por


quase cinqüenta anos?”, torna-se necessário vilhosa escola pública dos tempos de antanho,

pensar o funcionamento do sistema escolar bra- esquecidos do fato de que para entrar em um

sileiro anterior à Lei de Diretrizes e Bases da ginásio público de boa qualidade como, por

exemplo, aquele no qual eu estudei, era neces-


Educação Nacional atual.







1
As estatísticas do IBGE são anteriores a 1956, mas os dados parecem mais seguros a partir desse ano.

2
Não temos estudos que permitam afirmar com segurança, mas o ganho de 11 pontos percentuais que aparece entre 1988 e 1996 poderia ser

atribuído à introdução dos ciclos em vários estados. Por exemplo, no estado de São Paulo, a simples introdução do Ciclo Básico, em 1984,

diminuiu em 10% a retenção, que passou a acontecer apenas ao fim de dois anos.

224
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

sário concorrer, como eu concorri, com 3.500 a aprendizagem dependeria de pré-requisitos



candidatos por uma das 120 vagas disponíveis. (cognitivos, psicológicos, perceptivo-motores,



Da mesma forma que as outras 119 meninas lingüísticos...) e que as crianças que fracassavam



que, como eu, foram premiadas com uma vaga, o faziam por não dispor dessas habilidades pré-


precisei fazer curso de admissão, isto é, um cur- vias. O fato de o déficit se concentrar nas crian-



so preparatório para o exame, onde se estuda- ças das famílias mais pobres era explicado por



va durante um ano. Um curso vestibular parti- uma incapacidade das próprias famílias para es-


cular, inacessível aos alunos da escola pública. timular suas crianças, tanto cognitiva quanto 225



Os maravilhosos ginásios públicos de antiga- lingüisticamente. Baterias de exercícios de



mente, pagos com os impostos de todos, eram estimulação foram criados como remédio para



freqüentados principalmente pelos alunos de curar o fracasso, como se ele fosse uma doença.


maior poder aquisitivo, como eu, que vinham Esta abordagem, que já se anunciava no teste



das escolas privadas. Exatamente como acon- ABC de Lourenço Filho, teve muita penetração



tece hoje com as universidades públicas. no Brasil onde, nos anos 1970, foi largamente



Ainda tentando responder à nossa primeira difundida a idéia de que todas as crianças deve-


questão: “Como foi possível aceitar esses índi- riam passar, no início da escolaridade, por esses



ces passivamente por quase cinqüenta anos?”, exercícios aqui conhecidos como “prontidão (do

torna-se necessário considerar que os formado- inglês readiness) para a alfabetização”. Uma es-

res de opinião, que lêem jornais e têm poder de pécie de vacinação em massa. Mas a vacina, in-

influir nas políticas governamentais, sempre ti- felizmente, era inócua.



veram uma visão elitista da educação. Uma vi- Uma outra explicação, esta especificamen-

são excludente, fantasiada de meritocrática. te brasileira, relacionava o fracasso à pobreza:


Pois via-se como “natural” um ginásio (5ª a 8ª era a explicação nutricional. Segundo essa ex-

séries) de alto padrão de excelência para os pou- plicação, as crianças não aprendiam porque ti-

cos, pouquíssimos, capazes de competir por ele nham fome. Portanto era preciso alimentá-las.

e nenhum ginásio para os outros todos, a abso- No entanto, quando se perguntava diretamen-

luta maioria. te às professoras por que seus alunos eram re-



É apenas dentro dessa falsa meritocracia que provados em massa, a explicação campeã é a

se pode entender o massacre intelectual de me- que fala em problemas afetivos e familiares e

tade dos alunos no fim do primeiro ano da esco- na falta de interesse da família pela vida esco-

laridade obrigatória. A escola era obrigatória mas lar dos filhos, que se expressaria nas faltas fre-

isso não significava que era para todos: apenas qüentes e no fato de as famílias não ajudarem

para os mais capazes. Que por acaso são os mais nas lições. Famílias com baixíssima ou nenhu-

ricos. Ou melhor, os menos pobres. ma escolaridade eram responsabilizadas por


Agora vamos tentar responder à segunda não ensinar os conteúdos escolares aos filhos.

questão: “Que explicações se construíram para Em resumo: a culpa seria da família que não

o fenômeno?” Sem querer esgotar a questão, estimula, não alimenta e não cuida adequadamen-

podemos classificar essas explicações em dois te dos filhos, nunca da escola. É interessante ob-

grupos: as científicas e as do senso comum. servar que no Brasil, em São Paulo pelo menos, as

O fracasso escolar é fonte de preocupação em chamadas famílias desestruturadas (pais separa-



muitos e diferentes países. Em especial nos EUA, dos, famílias chefiadas pelas mães) são igualmen-

onde a questão da igualdade de oportunidades te freqüentes nas classes altas e baixas. Quando se

costuma ser levada a sério. Nos anos 1960 essa conversa com orientadores educacionais das es-

preocupação se acentuou e muito dinheiro foi colas da elite, o que se ouve é uma enxurrada de

investido em pesquisa para tentar compreender queixas com relação às famílias e aos problemas

o que havia de errado com as crianças que não emocionais dos alunos. No entanto, os números

aprendiam. Buscava-se no aluno a razão de seu do fracasso se concentram nas classes baixas.

fracasso. Desse período são as teorias que hoje Vamos cuidar agora da nossa terceira ques-

chamamos “teorias do déficit”. Supunha-se que tão: “O que se fez – do ponto de vista das políti-

cas públicas – para mudar essa situação?”. à escola mas também favorecer a progressão den-



A crença de que o fracasso escolar era fruto tro dela. O esforço de desmontar a armadilha



da fome, que incapacitava os alunos para a apren- excludente da repetência aparece na LDB como



dizagem, levou os sucessivos governos a expan- possibilidade. É a progressão continuada dentro de


dir continuamente o Programa da Merenda Es- ciclos. É interessante notar que foram os estados



colar. Travestido de programa educacional, tor- mais desenvolvidos que optaram pela organização



nou-se um dos maiores programas sociais do país: da escola em ciclos.


é a maior cadeia de restaurantes do mundo. Como E com ela recomeça a gritaria sobre a perda



os pesquisadores da área médica cansaram de da qualidade da escola pública. Revistas e jor-



avisar, não fez nenhuma diferença nos números nais têm andado cheios de matérias sobre alu-



do fracasso escolar. Nada contra alimentar as cri- nos analfabetos na 6ª e na 7ª séries. Como é pos-


anças brasileiras, mas o fato é que a fome não era sível que alguém passe cinco ou seis anos na



responsável pelas dificuldades de aprendizagem, escola e não aprenda nem a ler?



nome que se dava então ao problema. Em recente experiência acompanhando


Políticas públicas voltadas para o fracasso es- projeto de formação em serviço em um muni-

colar e mais especificamente para o fracasso de cípio nordestino3 foi possível analisar um fenô-

50% dos alunos na alfabetização inicial estão meno de que tínhamos notícia, mas que nunca

agora dando os primeiros passos. Um dos fato- havia sido empiricamente verificado e, princi-

res que contribuiu para isso foi a mudança no palmente, nunca tinha sido quantificado: os

olhar da sociedade brasileira para a questão da professores têm dificuldade para reconhecer o

educação. Finalmente se começa a compreen- quanto seus alunos aprenderam e se estão ou



der o papel econômico da educação no desen- não em condições de serem aprovados para a

volvimento do país e, com isso, ela começou a série seguinte.



ser levada mais a sério. Também a crescente pre- O que vemos no quadro abaixo é o resulta-

ocupação com as questões da cidadania, da par- do de uma ação cujo objetivo era ao mesmo

ticipação social e a compreensão, pela elite, de tempo de avaliação e de formação. A intenção


que a exclusão de grandes contingentes da po- primeira era informar o olhar dos educadores

pulação volta-se contra essas próprias elites de em formação, utilizando um instrumento que

duas formas: em primeiro lugar, porque só um permitisse analisar as idéias dos alunos sobre

grande mercado consumidor permite a econo- o sistema de escrita – e, portanto, avaliar com

mia de escala sem a qual as empresas não são razoável precisão se todas as crianças do mu-

competitivas e, em segundo lugar, o medo. Por nicípio que estavam na escola estariam ou não

isso a Bolsa-Escola, uma política pública de as- alfabetizadas.



sistência social com foco


na permanência das cri-



anças na escola. Alunos com escritas Alunos com Alunos com Alunos com

anteriores à escritas escritas silábico- escritas % de alunos


Essas preocupações silábicas


fonetização alfabéticas alfabéticas

permitiram que se rom-


pesse o imobilismo e se 1ª série 586 (45%) 276 (22%) 189 (15%) 225 (18%) 1.276 (49%)

conseguisse, finalmente, 2ª série 30 (4%) 21 (3%) 103 (14%) 578 (79%) 732 (28%)

aprovar no Congresso

3ª série — — — 452 (100%) 452 (17%)


uma nova Lei de Diretri-


zes e Bases. Nesta nova


4ª série — — — 162 (100%) 162 (6%)


LDB, buscou-se garantir


Total 2.622 (100%)


não só o acesso universal






3
Projeto desenvolvido no município de Batalha, Alagoas. Alguma informação sobre esse projeto pode ser encontrada no número 129

(mar./abr. 2000) da revista Nova Escola , Editora Abril.


226
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

O que encontramos aponta para a enorme


É de situações como essa que estamos


dificuldade que têm os professores de verificar partindo ao buscar saídas para a cultura da



o que os alunos já sabem e o que eles não sa- repetência, com a ambição de criar uma edu-



bem. Se considerarmos os alunos que produ- cação menos exclusora. E nossa falta de cla-


zem escritas silábico-alfabéticas e alfabéticas na reza sobre a questão vem, também, de longa



1ª série, no início do ano – 414 alunos, 33% dos data. Darcy Ribeiro costumava dizer que atri-



alunos da 1ª série – e que poderiam perfeita- buir nossos extraordinários índices de fracas-


mente acompanhar uma 2ª série pois podem ler 227


so escolar a uma hipotética incompetência da


e escrever, ainda que com precariedade, verifi- escola era uma rematada tolice. Que a nossa



camos que esses alunos foram retidos porque escola era não só competente como eficiente



os professores não tiveram condições de avali- pois preparava 50% da população para acei-


ar adequadamente e acabaram utilizando indi- tar a exclusão social e atribuí-la à sua própria



cadores como “letra bonita” ou “caderno bem incapacidade.



feito” para decidir o destino escolar de seus alu- Na mesma época em que os dados acima



nos. Quando o professor trabalha com este tipo foram colhidos, começou a ser desenvolvido


de indicador, até avanços na aprendizagem aca- um programa do MEC chamado PCN em


bam prejudicando o aluno. Por exemplo, quan- Ação, que tinha dois objetivos:

do o aluno aprende a ler, é comum que ele co- 1. Oferecer – principalmente às Secretarias

Municipais de Educação – uma referência


mece a “errar” na cópia. Isto é, deixa de copiar


letra por letra e começa a ler e a escrever gran- metodológica para a formação de profes-

des blocos de palavras, em geral unidades de sores em serviço.



sentido, o que faz com que cometa erros de or- 2. Ajudar a compreender os marcos teóricos

tografia ou escreva palavras grudadas. Isto, que


dos Parâmetros Curriculares Nacionais.


é na verdade indicador de progresso, acaba sen-


À medida que o Programa era desenvolvi-


do interpretado como regressão, pois o profes-


do em dois mil municípios, foi ficando clara


sor não tem clara a diferença entre copiar e es- – principalmente para os próprios professo-

crever. Constatação reforçada por outro dado


res – a dificuldade que eles tinham com a al-


interessante: a presença de 51 alunos não-lei-


fabetização. Começou-se então a produzir um


tores (7%) na 2ª série. Estes alunos foram pro- programa específico de formação de profes-

movidos porque eram bons copistas e isso pa- sores alfabetizadores, com duração de um

rece ter impedido o professor de perceber que


ano, que ficou conhecido como PROFA. Es-


não sabiam ler e escrever.


pera-se que este Programa – que está, neste


Os números da última coluna da tabela aci- momento, sendo desenvolvido em 1.188 mu-

ma, que não são tão diferentes do que acontece nicípios de 22 estados, atingindo 75.436 pro-

no resto do país, mostram o impacto da cultura


fessores – ajude a desmontar a armadilha que


da repetência: 49% dos alunos estão na 1ª série,


tem tornado a escola pública brasileira uma


28% estão na 2ª série, 17% na 3ª série e apenas fábrica de analfabetos. Um instrumento po-

6% conseguiram chegar à 4ª série. deroso na perpetuação da miséria.






















A alfabetização e a formação




de professores nas diferentes




etapas educacionais






Ana Teberosky


Universidade de Barcelona/Espanha







As últimas reformas educacionais propuse- plícito. Contudo, as maiores exigências profissio-


ram objetivos como o de lograr melhores resul- nais impostas aos docentes dizem respeito a este



tados escolares, acomodar as respostas instrucio- segundo tipo de conhecimento: o conhecimen-



nais à diversidade dos estudantes e fazer com que to prático e a habilidade necessária para desen-

os alunos aprendam criativa, produtiva e reflexi- ○

volver aprendizagens nos alunos, fazer uma ava-
vamente. Esses objetivos educacionais implicam liação razoável dessas aprendizagens e ser flexí-

enormes pressões e exigências tanto para os alu- vel para adaptar-se ao desenvolvimento de no-

nos como para os professores. Exigem professo- vas tecnologias da informação e da comunica-

res muito bem formados, com muitas capacida- ção, entre outros aspectos. Na oportunidade des-

des e habilidades, professores que entendam tan- te seminário, pretendo abordar algumas ques-

to de aprendizagem como de ensino, que este- tões relacionadas ao ensino da linguagem, levan-

jam familiarizados com perspectivas interdisci- do em consideração esses dois aspectos da for-

plinares e possam criar pontes entre as experiên- mação. Essas questões se referem:

cias dos alunos e os objetivos curriculares • às adaptações necessárias dos conhecimen-



(Darling-Hammond, 1994: 5). A área de ensino da tos teóricos para adequar a formação dos

professores ao estado atual da questão; e


linguagem oral e escrita apresenta, além das exi-


gências anteriores, algumas particularidades. É


• a algumas experiências de intervenção que


uma área na qual ocorreram, nos últimos anos, exemplificam adaptações introduzidas no

profundas mudanças em decorrência dos novos nível da prática na sala de aula.



conceitos e resultados de pesquisas sobre apren-


dizagem e também da reflexão sobre a importân-


Adaptações de conhecimentos

cia do papel que ela desempenha na cultura e na



educação. Essas mudanças suscitam uma série de


teóricos na formação

necessidades no terreno da formação dos profes-


dos professores

sores: a necessidade de um conhecimento mais



formal e teórico para que os professores se atua-


Entre as adaptações dos conhecimentos


lizem e adquiram mais conhecimentos diversifi- necessários para adequar a formação dos pro-

cados; e a necessidade de desenvolver esse co- fessores à situação atual, vamos abordar o que

nhecimento no contexto menos formal da práti-


os professores precisam saber sobre a lingua-


ca na sala de aula.

gem e o que precisam saber sobre os processos


A formação do professor implica um aspec- dos alunos na aprendizagem e sobre seus pró-

to teórico e formal e outro prático e contextual. prios processos psicológicos.


Embora freqüentemente influenciemos o pri-



meiro tipo de conhecimento (o teórico), o co-


O que os professores precisam saber


nhecimento que se desenvolve com a prática


geralmente não é assistido. Nesse contexto, o sobre a linguagem para ensiná-la



professor continua isolado e sozinho com um Todos os locutores, como falantes de uma

conhecimento prático não contrastado ou de- língua, possuem um conhecimento intuitivo ou



batido publicamente e que muitas vezes é im- espontâneo da linguagem, que é diferente do

228
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

conhecimento abstrato, reflexivo e formal do es- já ocorre um mínimo de reflexão. No entanto, a



pecialista (Reichler-Béguelin, 1993). Um tipo de que podemos atribuir a heterogeneidade na re-



conhecimento é implícito, o outro, explícito. flexão sobre a linguagem, na representação so-



Entre um e outro não existe uma dicotomia to- bre as unidades da língua? Existe alguma rela-


tal, e sim um contínuo, uma gradação de situa- ção entre a capacidade de reflexão e as práticas



ções que tomam a linguagem como objeto sem letradas? Esse problema é diferente em grupos



chegar a uma representação reflexiva totalmen- humanos nos quais a escrita está reservada a


te analítica. No meio desse contínuo podemos uma pequena parcela da sociedade? Ele é dife- 229



situar a linguagem escrita, a linguagem poética rente em países que apresentam um baixo nível



e determinadas criações que subvertem o uso de alfabetização? (Blanche-Benveniste, 1998).



cotidiano (como a ironia, as piadas). Entre o conhecimento intuitivo e o reflexivo,


Onde situamos a aprendizagem do aluno entre o conhecimento do aluno e o conhecimen-



nessa gradação? As discussões sobre a aprendi- to do professor e entre os conhecimentos dos



zagem, por exemplo, da leitura ou do vocabulá- mesmos professores, considerados em suas di-



rio dividem os autores entre os que defendem ferenças individuais e sociais, está a escrita


uma aprendizagem intencional e reflexiva e os (Halliday, 1993; Blanche-Benveniste, 1998). A



que defendem uma aprendizagem incidental e aprendizagem e o uso da escrita marcam dife-

implícita. Os primeiros defenderiam o ensino renças claras entre os locutores; por exemplo,

fônico na leitura inicial e os segundos defende- não se pode estudar (refletir, analisar, ensinar) a

riam a linguagem integral. No entanto, muitos linguagem sem a ajuda da escrita. Não se pode

estudos demonstraram que pouco se aprende fazer uma análise das palavras, dos componen-

como resultado de uma instrução direta. tes de uma palavra ou de diferentes formas de

Onde podemos situar as exigências impos- consciência lingüística sem a ajuda de algum tipo

tas ao professor nessa gradação? É suficiente que de representação escrita.



o professor seja um locutor intuitivo, com per- O reconhecimento do papel fundamental de-

cepções intuitivas ou ele deve ser um locutor sempenhado pela escrita na reflexão e análise da

reflexivo, analítico e consciente de sua língua? língua provoca uma segunda tensão no ensino da

Durante muito tempo, acreditou-se que o conhe- linguagem: o que os professores estão ensinando

cimento intuitivo seria suficiente e que a utili- em suas aulas de linguagem? Durante muito tem-

zação de um método introspectivo de consulta po, essa tensão foi deixada de lado pela orienta-

proporcionaria um acesso objetivo a esse saber ção prescritiva do ensino: ensinava-se o que a

subjetivo. Essa consulta permitia ao professor norma convencional estabelecia. No entanto,



diferenciar o correto do incorreto, o gramatical muitos autores atualmente acreditam que a re-

do não-gramatical. No entanto, muitos autores presentação normativa escrita da língua também


atuais questionam essa idéia: além de não ser su- interfere no seu ensino. Novamente, esses auto-

ficiente, a intuição do adulto freqüentemente res evidenciaram, por exemplo, que a represen-

interfere. Interfere na compreensão do processo tação normativa escrita impede que o professor

de aprendizagem dos alunos. Pesquisas “ouça” o verdadeiro discurso oral do aluno e afe-

sociolingüísticas, por sua vez, evidenciaram que ta sua capacidade de “ler” os textos escritos dos

nem todas as pessoas têm a mesma intuição so- iniciantes ou de “permitir” erros como constru-

bre a língua, por tratar-se de um conhecimento ções provisórias e o espontâneo como expressão

que não está homogeneamente distribuído en- do nível real de produção etc. Essa representação

tre a população: ele varia de acordo com diver- normativa escrita interfere porque exige que o

sos fatores contextuais, como a idade, a classe professor assuma uma atitude de correção das

social, o nível educacional, o gênero, a profissão, produções dos alunos, e não de interpretação

o lugar e a situação (Duranti, 2000). num contexto de aprendizagem.


O que provoca essa interferência? Quando se As pesquisas educacionais e sociolingüísticas



faz uma consulta ao saber intuitivo para se deci- mostraram que a norma lingüística não é neutra

dir se algo é correto, gramatical, adequado etc., do ponto de vista social e cultural: alguns gru-

pos estão mais próximos que outros da norma mal. De fato, já se reconhece, há muito tempo,



escolar porque receberam instrução de acordo que o conhecimento lingüístico do professor não



com essas convenções. reside somente na gramática ou na ortografia



Portanto, hoje sabemos que o conhecimen- normativa, mas também em suas habilidades


to necessário da linguagem para o ensino não pragmáticas de intercâmbio comunicativo, rela-



pode consistir na intuição do professor e tam- cionadas a sua função de promover a maior par-



pouco num saber inconsciente da diferença en- ticipação possível dos estudantes em situações


tre norma e dados lingüísticos. No entanto, in- de produção e intercâmbio de linguagem. Para



tuição, reflexão e norma intervêm no ensino alcançar esse objetivo, segundo Fillmore e Snow



como conhecimentos necessários, ainda que (2000), o professor precisa estruturar sua própria



distribuídos de outra maneira. Dissemos acima linguagem com clareza e, ao mesmo tempo, en-


que as necessidades de formação dos professo- tender o que os alunos dizem.



res consistiam num conhecimento formal e te- No entanto, sabemos atualmente que esse



órico e num conhecimento prático e contextual. princípio de intercâmbio comunicativo entre


No ato de ensinar, esses conhecimentos não são ○
professor e aluno não é suficiente para se alcan-
simples. Na verdade, são bem complexos. O co- çarem os objetivos de ensinar a linguagem. Os

nhecimento teórico implica um saber sobre um requisitos acadêmicos exigem que se vá além da

saber: um saber sobre o saber intuitivo e implí- situação comunicativa, porque nem todo regis-

cito do aluno como sujeito que aprende no pro- tro de linguagem serve para a aprendizagem aca-

cesso de apresentarmos a ele o saber da língua, dêmica. Somente o discurso formal e os textos

como objeto de ensino. No entanto, em seu de- escritos oferecem o vocabulário, as estruturas

senvolvimento contextual e prático, não é um gramaticais, a fraseologia e a retórica que se as-


simples processo de transmissão direta, e sim sociam ao registro acadêmico (Fillmore e Snow,

um complexo processo de participação ativa 2000), ou seja, os contextos acadêmicos exigem



tanto do professor como do aluno, no qual o uma linguagem oral formal e uma linguagem es-

professor desempenha um papel de modelo e crita que são diferentes da linguagem cotidiana.

uma função de modelação. Na função de



modelação, o professor participa como sujeito, Conhecimento pedagógico



como ouvinte/falante e leitor/escritor da lín-


e função avaliadora

gua. Por isso, todo ato de ensino e aprendiza-


gem é intersubjetivo, numa intersubjetividade Uma das maiores responsabilidades dos



desigual no que diz respeito ao conhecimento professores está relacionada à função de avalia-

ção: um juízo do professor pode ter enormes


e diferente no que diz respeito às funções.


conseqüências para a vida das crianças, afir-


Portanto, os professores precisam ter um co-


nhecimento psicológico e um conhecimento do mam acertadamente Fillmore e Snow (2000).



conteúdo (a linguagem oral e escrita) que lhes per- Por exemplo, a afirmação de um professor de

que um aluno é disléxico, imaturo ou lento pode


mitam fundamentar suas decisões curriculares e


ter grandes repercussões em seu destino edu-


sua função pedagógica. Alguns desses conheci-


mentos que o professor deve possuir e funções que cacional. As decisões pedagógicas relacionadas

ele deve desempenhar para satisfazer as necessi- à avaliação, como a promoção ou a repetição, a

classificação para a inserção de um aluno num


dades atuais do ensino e da aprendizagem da lín-


grupo ou outro etc. também têm grandes con-


gua são os que seguem (Fillmore e Snow, 2000).


seqüências para ele.



O conhecimento pedagógico que intervém no


Conhecimento lingüístico

processo de avaliação não reside somente na pron-


e função comunicativa

tidão para detectar erros e corrigi-los; reside na



A mudança nas perspectivas de ensino da lín- capacidade de distinguir diferentes tipos de erros,

gua pode ser descrita como da normativa ao in- de diferenciar erros e desvios, de separar o conhe-

tercâmbio comunicativo e deste à linguagem for- cimento insuficiente do obstáculo cognitivo.



230
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

Conhecimento letrado e função de pectivas e um conteúdo, implica intenção.



socialização A intenção nas relações triangulares pode ter



diversas formas de expressão. Por exemplo, ela


O objetivo do professor é a aprendizagem do


pode expressar-se por ações ou por ações e pa-
aluno. Poucas dessas aprendizagens podem ser


lavras. Essas formas de expressão têm significa-


adquiridas por meio de uma instrução direta; a


dos (Feldman, 1999). Ao ter significados, exigem


grande maioria ocorre em conseqüência de pro-


uma interpretação, porque, para compreender a


cessos de reorganização de conhecimentos an- 231
intenção, é preciso que se tenha uma interpre-


teriores. Esses processos são individuais, mas


tação de seus significados. Isso se aplica tanto à


também sociais.


intenção simples de uma ação individual como


Por exemplo, a aprendizagem inicial da lei-


a um complexo conjunto de intenções sociais.
tura e da escrita pode ser vista como uma ini-


A intencionalidade não pode estar desvin-


ciação num código por instrução direta ou


culada da interpretação (Feldman, 1999: 312),


pode ser orientada como a aprendizagem de


mas a aprendizagem da interpretação é um


comportamentos letrados, na qual não existe


exercício psicológico complexo, que implica a
uma delimitação clara entre pré-leitor e leitor,


capacidade de entender a vida interna de ou-


entre pré-escritor e escritor, e na qual também

tra pessoa, a partir da expressão verbal ou da
não há um início, um ponto zero. A separação ○

ação. Interpretar é um exercício complexo, mas


em dois momentos só é aceitável para os que


ele ajuda o intérprete a considerar as ações ou


têm uma postura normativa e esperam que

os enunciados dos outros antes ou depois de


todas as aprendizagens sejam convencionais.


sua ocorrência.

É por isso que o professor deve desempenhar


Qual seria, então, a relação entre a linguagem


uma função de socialização, para dar lugar à


e a intenção? A linguagem depende da intenção,

elaboração de conhecimentos a partir de prá-


porque falar é expressar idéias, crenças, pensa-


ticas letradas: uma função de interação com


mentos e interpretar é atribuir idéias, crenças


leitores, com material escrito e com os conhe-


etc. Inversamente, a intenção não depende da


cimentos socialmente transmitidos pelos adul-


linguagem, ou seja, pode haver intenção sem lin-

tos. Esses conhecimentos parecem estar influ-


guagem, como vemos, por exemplo, ocorrer en-


enciados pelas condições do ambiente: desen-


tre primatas, que são capazes de entender e de


volvem-se melhor quando o ambiente


expressar intenções (Tomasello, 1998).


alfabetizador é rico em materiais escritos e em


Na relação educacional entre um adulto e

interações e práticas letradas.


uma criança, a interpretação da intenção apre-



senta algumas particularidades. Podemos atri-


O conhecimento psicológico necessário


buir à criança conhecimentos (crenças, senti-


no ato pedagógico mentos e intenções) que ela não pode atribuir



A intersubjetividade do ensino que mencio- a si própria; inversamente, ela pode atribuir-



namos anteriormente implica uma capacidade se conhecimentos quando lhe atribuímos erro

própria dos seres humanos: a capacidade de ou ignorância. Olson e Kamawar (1999: 157)

analisam essas assimetrias: no primeiro caso,


atenção conjunta que lhes permite entrar numa


tríade de interação com outro ser humano, a a criança está numa posição intencional dife-

partir de um objeto. Davidson (1985, apud rente da do adulto, mas o adulto decide atuar

Olson e Kamawar, 1999: 160) chama essa capa- como se estivessem na mesma posição, como

se ela tivesse conhecimentos, sentimentos e


cidade de “metáfora da triangulação”. Trata-se


de uma capacidade que exige duas perspecti- intenções. Por exemplo, a mãe que fala com

vas e um objeto, ou seja, duas criaturas que cri- seu bebê como se ele pudesse entender tudo

am um conhecimento comum sobre uma reali- que ela diz. No segundo caso, a criança já de-

senvolveu a capacidade de se atribuir inten-


dade objetiva compartilhada. Diferentemente


de qualquer ação casual, uma ação com fins ções, embora possa equivocar-se no conteú-

pedagógicos entre duas pessoas, com duas pers- do. Quando percebe o erro, ela pode sofrer uma

decepção ou reconhecer seu erro; em ambos contextos escolares. Apoiados em ambos, os



os casos, ela é capaz de saber que sabe, ou seja, programas de intervenção com adaptação de



ela é capaz de uma metarrepresentação ou de objetivos e atividades aos diferentes níveis



uma representação sobre a representação (um evolutivos começaram a oferecer respostas e


conhecimento sobre o conhecimento). Por resultados alentadores (Snow, 1998). Mais que



exemplo, quando as crianças dizem “achei que dar suporte exclusivo a um processo singular,



se escrevia com ‘s’, mas depois vi que era com esses programas pretendem considerar o con-


‘c’”. É o “dar-se conta” de sua própria crença. junto dos processos de aprendizagem simulta-



O adulto aproveita essa capacidade para influ- neamente. Nesse sentido, as propostas de in-



enciar as crenças, sentimentos e conhecimen- tervenção (que procuram integrar diferentes as-



tos das crianças. Portanto, o ato de ensinar é pectos) constituem um bom ponto de partida


um ato psicológico. em relação às propostas instrucionais do pas-



A distinção entre o conhecimento intuitivo sado, que enfatizavam exclusivamente um com-



do usuário da linguagem, a intervenção do pro- ponente, como, por exemplo, o ensino da


fessor para ampliar os contextos de uso no sen- ○
decodificação de forma explícita e exclusiva.
tido de que inclua não só a linguagem cotidia- Esses projetos geralmente são experimentais e

na, mas também a linguagem oral formal e a lin- implicam a formação de professores(as) e a as-

guagem escrita, e a atuação sobre o “dar-se con- sistência de pesquisadores.



ta” ou a metarrepresentação corresponde à dis- Para exemplificar essa consideração simul-


tinção feita por M. Halliday (1982) entre três tânea de todos os componentes, podemos pen-

fases do desenvolvimento da linguagem e dos sar nas competências dos alunos e dos profes-

propósitos educacionais relacionados: aprender sores como usuários da linguagem: sua capaci-

a linguagem (conhecimento intuitivo), apren- dade de ouvir, falar, ler e escrever e os conteú-

der por meio da linguagem (linguagem oral for- dos sobre o que se ouve, fala, lê ou escreve. Uma

mal e escrita) e aprender sobre a linguagem das funções do professor é criar contextos nos

(metarrepresentação). quais essas competências se relacionem e se de-


senvolvam. Uma segunda responsabilidade re-



side na intervenção para oferecer modelos que


Experiências de intervenção

direcionem esses desenvolvimentos, como vi-


que exemplificam adaptações


mos no parágrafo anterior. E, finalmente, uma


de diferentes etapas terceira função consiste em escolher conteúdos



apropriados e de interesse para os alunos


educacionais na prática

(Richmond, 1990).

As pesquisas atuais sobre propostas de in-


Experiências que exemplificam


tervenção educacionais fazem dos processos


adaptações do ponto de vista da


psicológicos de aprendizagem dos alunos o


centro e foco do currículo escolar. Hiebert e


relação entre componentes

Taylor (2000; Hiebert, 2000) chamam de “in-


Uma consideração simultânea dos compo-


tervenção” os projetos que consistem: a) na


nentes do ponto de vista dos contextos deve


análise desses processos de aprendizagem dos


apresentá-los de maneira estreitamente relacio-


alunos; e b) na análise das tarefas escolares

nada, como proposto na figura à direita (adap-


para adaptá-las a esses processos de aprendi-


tada de Richmond, 1990).


zagem. Seu objetivo é programar a instrução


Vejamos alguns exemplos dessa abordagem


com base no conhecimento dos processos psi-

da consideração simultânea.
cológicos, e não tanto no estudo de uma téc-

nica ou método específicos.


Na pré-escola

Atualmente, dispomos de modelos de


aprendizagem da linguagem, da leitura e da es-


Embora na pré-escola os programas de in-


crita, bem como de experiências de ensino nos tervenção sejam díspares, muitos deles promo-

232
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

vem essa abordagem integral com atividades lido, juntamente com leituras e releituras



como: a) leituras em voz alta de narrativas e repetidas de forma independente por par-



comentários orais sobre essas leituras; b) es- te da criança;



crita de palavras de um vocabulário estabele- • escrita de palavras, pequenos enunciados


cido como vocabulário-chave extraído dessas e textos, após a leitura;



leituras; c) identificação dessas palavras e co-


• reconhecimento de palavras;


mentários sobre a relação letra/som em algu-


• jogos de palavras e reconhecimento de re- 233
mas palavras aprendidas. Alguns estudos in-


lações entre letras e sons.


cluem também: d) atividades de consciência



metalingüística de forma indireta, com tarefas


No primeiro grau


como a recitação oral de poemas, rimas e


aliteração e atividades diretas como o “canti-


Seguindo a linha da pré-escola, as propostas


nho da escrita”; e e) reescrita das narrações li- para o primeiro grau incluem leituras de livros



das. Outros estudos enfatizam aspectos soci- familiares e não-familiares, escrita de palavras e



ais, como, por exemplo, as relações com a fa- textos, instrução sobre a relação letra/som e re-


mília e o empréstimo de livros nos fins de se-


conhecimento de palavras. A seleção de livros e

mana, bem como a releitura desses livros na a utilização de diversos textos, e não de um úni-

escola e em casa. co texto, são muito enfatizadas. Os programas



Entre os objetivos dessas intervenções, caracterizam-se por tentar integrar os diferen-


Hiebert e Taylor (2000) e Teberosky (2001)


tes aspectos da alfabetização: leitura e escrita,


mencionam o desenvolvimento de concei- linguagem oral, metacognição e automatismos,



tos sobre a palavra impressa, experiência consciência fonológica e escrita etc.


com a linguagem escrita, experiências com


Os objetivos consistem em garantir os pa-


livros e sua manipulação, aprendizagem dos


drões da relação entre letras e sons, a denomi-


nomes das letras, desenvolvimento da cons- nação das letras, o desenvolvimento de estra-

ciência fonológica, reconhecimento e escri- tégias adequadas ao sistema de escrita, o re-


ta de palavras.

conhecimento de palavras e o desenvolvimen-



to de estratégias de compreensão.

Relações entre ouvir, falar, ler e escrever



No segundo grau


Nesse período, enfatiza-se, principalmente,


ESCREVER o desenvolvimento de automatismos de reco-


LER

nhecimento de palavras, mas não no sentido


LER PARA ESCREVER


estreito da ênfase fonológica, com exclusão do


ESCREVER PARA LER


significado, e sim num sentido amplo, sem pre-


judicar a leitura e a compreensão de textos.



OUVIR FALAR Os objetivos dessa etapa concentram-se



em promover o reconhecimento de palavras,



OUVIR E FALAR SOBRE O ESCRITO a fluidez e a automatização, e também a com-


preensão dos textos.


L E R E E S C R E V E R S O B R E O FA L A D O


Nos graus médios



Uma consideração simultânea dos compo-



nentes do ponto de vista dos conteúdos deve



apresentá-los no contexto de sua relação com


As atividades mais freqüentes são:


outras áreas do currículo escolar.


• leitura de livros, incluindo períodos de Nas últimas décadas, o enfoque do ensino



conversação e comentários sobre o que foi da linguagem mudou no sentido de enfatizar



mais a diversidade de tipos de textos e gêneros, ção científica”, um aspecto importante é a ca-



em oposição à pedagogia do texto único; e de pacidade de compreender e representar pro-



estabelecer uma maior relação entre alfabeti- blemas científicos em termos lingüísticos e de



zação, literatura e outras áreas do currículo, em recursos gráficos escritos na forma de textos,


oposição à pedagogia baseada no ensino direto tabelas ou diagramas.



de habilidades específicas. A inclusão de textos Como podemos alcançar esses objetivos da



literários nos currículos de leitura e escrita foi “alfabetização científica”? Para alcançá-los,


favorecida pela disponibilidade de literatura os(as) professores(as) precisam estar bem in-



infantil de qualidade, pela difusão de movimen- formados sobre o desenvolvimento dos conhe-



tos pedagógicos do tipo “linguagem integral” e cimentos científicos da criança e sobre sua re-



pela importância da resposta do leitor, propos- lação com a linguagem e a escrita.


ta pela teoria da leitura participativa (Morrow e Precisam saber, por exemplo, que entre os



Gambrell, 2000). Esse movimento aponta para cinco e seis anos de idade os meninos e as me-



resultados promissores, como observado em ninas estão em pleno processo de descobri-


diferentes pesquisas. Esses resultados indicam ○
mento e exploração do mundo. Os objetos e
que o interesse das crianças aumentou, que os espaços, o mundo dos seres vivos, os fenô-

suas atitudes mudaram e que elas apresenta- menos da natureza e os outros seres huma-

ram desenvolvimentos importantes em relação nos atraem sua atenção e interesse. Do ponto

a aspectos lingüísticos (vocabulário, sintaxe) e de vista do conhecimento, cada tipo de obje-


cognitivos (conhecimento conceitual). to do mundo tem suas particularidades. O



Essa mudança exige uma melhor forma- menino ou a menina percebe, por exemplo,

ção dos(as) professores(as) em relação à li- que os seres vivos se diferenciam dos objetos

teratura infantil, à sua capacidade de selecio- inertes por sua capacidade de (auto) movi-

nar livros adequados (diferentemente do tex- mento, que as plantas têm capacidade de

to único previamente selecionado pelo Mi- crescimento e que os seres humanos se dife-

nistério da Educação e pelas editoras), ao renciam dos objetos inertes e das plantas pe-

tipo de materiais, ao ambiente na sala de las intenções que colocam em seus movimen-

aula e às relações sociais com as crianças e tos e ações ( Wellman e Gelman, 1998). As cri-

suas famílias. anças desenvolvem conceitos ao perceberem



os distintos conteúdos do mundo, constroem


Propostas para a relação entre esses conceitos sobre explicações causais (por

exemplo, um ser vivo é caracterizado como tal


alfabetização e ciência

“porque se move”) e aprendem que os conteú-


Vamos descrever mais detalhadamente a


dos do mundo têm nomes diferentes. Ou seja,


relação entre a alfabetização e a Ciência. Além para entender o mundo, as crianças desenvol-

da literatura, o ensino da linguagem pode vem conceitualizações que relacionam con-


também estar relacionado à Ciência. A Ciên-


ceitos, causas e nomes.


cia e a linguagem oral e escrita não são domí-


A linguagem intervém nessas conceitua-


nios fechados e separados no contexto da ati- lizações do mundo num conhecimento que

vidade cognitiva da criança; pelo contrário, o chamamos de declarativo, para diferenciá-lo


interesse pelos objetos do mundo é um bom


do conhecimento procedimental e do conhe-


aliado da leitura e da escrita. A leitura e a es-


cimento estratégico. Por exemplo, numa situa-


crita são instrumentos básicos para a apren- ção de interação entre crianças, Josep, de cin-

dizagem, a reflexão e a comunicação do co- co anos, aponta para um letreiro e diz a um


nhecimento científico.

amiguinho: “Ali diz ‘elefante’. É seu nome”. Esse


Atualmente, fala-se em “alfabetização cien-


tipo de intercâmbio pode ser categorizado


tífica” (por exemplo, o Project 2061) como um como conhecimento declarativo, porque indi-

meio de se alcançarem objetivos letrados na ca que Josep “sabe” o que o letreiro contém e

área da Ciência. Para lograr uma “alfabetiza-


sua função.

234
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

Em suas atividades, as crianças também enciclopedista, uma segunda resposta con-



demonstram conhecimento sobre como fazer sistiu em recomendar aos professores que



alguma coisa ao desenvolverem uma série de encarassem a Ciência como ela é vista no



ações relacionadas. Por exemplo, o mesmo me- contexto do próprio método científico. A re-


nino Josep abre um livro, gira-o de modo a comendação é que eles deveriam “fazer ci-



colocá-lo na posição correta para a leitura, co- ência” imitando o método científico, mais



meça a lê-lo pela página da esquerda e depois que ensinar ou aprender fatos, princípios ou


passa para a página da direita; em ambos os leis. Nessa segunda perspectiva, enfati - 235



casos, orienta seu olhar de cima para baixo e zavam-se os aspectos mais ativos da apren-



da esquerda para a direita. Essa série de ações dizagem, mas ainda assim a alfabetização



indica que o menino tem um conhecimento científica era difícil. Um exemplo consistia


procedimental, que ele “sabe como” se deve ler em encarar o contato com a Ciência como



um livro, que tem informação sobre a rotina um processo prático que oferecia ao menino



da leitura de livros. e à menina oportunidades para observar, ex-



Além disso, Josep tem objetivos comuni- perimentar e manipular as coisas do mundo,


cativos com seu colega. Por exemplo, ele o começando pelo ambiente mais próximo,



corrige quando está escrevendo um texto: sem afastar-se demasiadamente do saber in-

“Não é assim que se escreve B. Olha como se tuitivo e usando “as próprias palavras” dos

faz (pega o lápis e escreve B)”. Apresenta, tam- alunos (Halliday e Martin, 1993). Uma das

bém, comportamentos de controle sobre seu conseqüências dessa segunda perspectiva foi

próprio processo de aprendizagem quando uma aprendizagem totalmente prática e oral,



afirma: “Droga! Errei. Queria colocar ‘elefan- que adiava qualquer contato com textos ci-

te’ e coloquei… Não sei, errei”. Comentários entíficos para um momento posterior do pro-

desse tipo indicam conhecimento estratégi- cesso de escolarização.



co, indicam saber sobre como algo deve ser ou Essas duas perspectivas passaram ao lar-

sobre como se deve fazer algo para se chegar go do que hoje é conhecido como “alfabeti-

a um fim. Como vimos anteriormente, trata- zação científica”, que faz referência ao fato

se de um tipo de conhecimento intencional, de que a Ciência é texto científico também.



que revela consciência de objetivos e compre- A representação que se tinha da Ciência es-

ensão do que se deve fazer para alcançá-los. tava associada ao laboratório, ao uso de apa-

O controle da própria conduta, a ajuda, a relhos, à observação e à experimentação.



autocorreção, a correção de coisas que outros Muito raramente ela era associada à lingua-

estão fazendo, são expressões desse tipo de gem ou à escrita. No entanto, os instrumen-

conhecimento estratégico. tos dos cientistas não se resumem a apare-


A aprendizagem da linguagem, da leitura lhos: as palavras e os textos são instrumen-



e da escrita, bem como a aprendizagem da tos técnicos também, particularmente os ter-



Ciência, implicam esses três tipos de conhe- mos técnicos e os textos explicativos. Para

cimento. explicar e comunicar resultados científicos,


são necessários textos e diagramas, tabelas



A alfabetização científica etc., que normalmente os acompanham. Para



aprender Ciência são necessários textos pe-


A resposta mais clássica do ensino da Ci-


los quais resultados, processos e fatos são


ência consistia em encará-la como conteú-

difundidos. Atualmente, a perspectiva é mais


do: um conjunto de fatos, princípios e leis


equilibrada e se enfatiza igualmente tanto a


que descrevem o mundo. Essa perspectiva di-


aprendizagem oriunda da experimentação


ficultava a alfabetização científica dos mais


como aquela oriunda do conteúdo e dos tex-


pequenos, pois eles não têm a capacidade de

tos científicos.

entender e aprender esse conteúdo em tex-


A alfabetização científica exige um tipo de


tos escritos. Como reação a essa postura


escrita diferente da escrita de outras discipli-



nas do currículo. Ela exige um gênero próprio, Vejamos o seguinte relato de experimen-



o expositivo, com termos técnicos e um tipo to: “A haste do ramo foi cortada e colocada em



especial de gramática. Por exemplo, para água e depois inserida num tubo de cristal fe-



compreender termos técnicos, precisamos in- chado numa de suas extremidades. A outra ex-


troduzir sua definição. tremidade foi conectada a um outro tubo de



As definições implicam enunciados borracha flexível onde se colocou água”.



relacionais que geralmente condensam mui- A característica mais importante do rela-


tas informações. A função das definições é to de um experimento consiste no uso de ver-



trasladar o conhecimento de sentido comum bos na voz passiva, em vez do modo impera-



ao conhecimento científico por meio dessa tivo próprio da linguagem que acompanha ou



condensação. Por exemplo, em vez de expli- organiza a ação. Ao passar a ser um texto es-


carmos que “a fêmea do canguru não tem pla- crito, a atividade desenvolvida na realização



centa e sim uma bolsa externa no ventre onde do experimento, que exigia imperativos (cor-



ocorre o desenvolvimento embrionário de tar, colocar, inserir, fechar, conectar, colocar),


suas crias”; essa explicação é compactada na ○
passou a ser um relato do que se fez. Trata-se,
expressão “o canguru é um mamífero marsu- assim, de uma modificação que dá lugar a um

pial”. A aprendizagem do vocabulário e das texto instrutivo expositivo.



definições é ampla e complexa: usa-se um ter- Os alunos mais novos entram em contato

mo técnico para definir outro termo técnico. com domínios pouco familiares quando co-

Assim, para sabermos o que um “canguru” é, meçam a estudar a partir de textos. Inicial-

precisamos saber o significado das palavras mente, possuem pouco conhecimento sobre

“mamífero” e “marsupial”. o tema ou sobre o domínio apresentado no


Além de definições, os textos científicos texto; além disso, esse pouco conhecimento

utilizam diagramas, que servem para tornar é fragmentado e superficial. Em grande par-

uma classificação visível, como os diagramas te, seu esforço é canalizado no sentido de

da taxonomia dos seres vivos, que indicam re- construir uma base de conhecimento

lações entre classes e subclasses, ou as tabelas conceitual em relação ao vocabulário. Con-



de duas colunas, que tornam visível uma cor- seqüentemente, eles têm dificuldade para

respondência entre termos não-relacionados. distinguir uma informação relevante de uma



Usam, também, desenhos para mostrar rela- informação irrelevante, ou o grau de impor-

ções entre partes e o todo. Esses diagramas, tância de diferentes conceitos. O pouco co-

tabelas ou desenhos são acompanhados por nhecimento que têm costuma também gerar

textos explicativos. Ser capaz de ir do diagra- pouco interesse pelo que lêem. Um terceiro

ma ao texto e do texto ao diagrama é um as- fator reside na falta de conhecimento estra-


pecto fundamental da alfabetização científica. tégico para procurar e localizar informações



Os textos que apresentam conhecimentos importantes no livro e no texto, a partir de



científicos também têm suas particularidades. indicadores estruturais (lingüísticos) e/ou



De acordo com os diferentes aspectos científi- gráficos.


cos que abordam, suas características são dife- Os livros têm uma ordem racional (têm di-

renciadas. Ser capaz de ler e escrever diferen- visões) e sua apresentação varia de acordo

tes tipos de textos relacionados aos diferentes com seu tipo (ou gênero) para cada campo de

campos científicos é um aspecto fundamental conhecimento. Além disso, têm outros ele-

da alfabetização científica. Existem relatórios de mentos, como notas de rodapé, referências e



pesquisas, artigos científicos, relatos de expe- citações, que indicam registros textuais visi-

rimentos, cada um dos quais com suas particu- velmente distintos. A função desses elemen-

laridades “gramaticais”. De todos os tipos de tos gráficos é validar as informações que apre-

textos usados no campo da Ciência, o relato de sentam, citando fontes e referências.



experimentos é o mais adequado para se traba- O problema dos leitores mais novos é que

lhar com crianças em idade escolar. eles têm pouco conhecimento do conteúdo e

236
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

desconhecem a função das divisões, dos gê-


FERREIRO, E.; PONTECORVO, C.; RIBEIRO MOREIRA,


neros e das referências; por essa razão, preci- N.; GARCÍA HIDALGO, I. Caperucita Roja aprende a



escribir . Barcelona: Gedisa, 1996.
sam de uma assistência maior (do professor e


FILLMORE, L. W.; SNOW, C. What teachers need to know


do texto) para poderem construir uma repre-


about language. In: <www.cal.org./ericcll/teachers.pdf>.
sentação das informações que leram.


HIEBERT, E. The national literacy strategy from an


international perspective”. Journal of Research in



Conclusão Reading , n. 23, p. 308-13, 2000.


HIEBERT, E.; TAYLOR, B. Beginning reading instruction: 237



Os requisitos culturais, educacionais e so- research on ear ly inter ventions. In: KAMIL, M.;


MOSENTAHL, P.; PEARSON, P.; BARR, R. Handbook


ciais impostos à escola são cada vez maiores,


of reading research. Mahwah, N.J.: Lawrence Erlbaum,
a população escolar apresenta uma diversida-


2000. v. 3.


de crescente e as autoridades educacionais


HALLIDAY, M. A. K. La lengua y el orden natural. In:


continuamente sugerem reformas que pres- CULLER, J.; DERRIDA, J.; FISCH, S.; JAMESON, F.



sionam os professores no sentido de dar uma (VVAA). A lingüística da escrita. Madrid: Visor, 1989.


instrução adequada aos alunos. Para que pos- p. 145-64. [Versão original em inglês, 1987].



sam oferecer essa instrução adequada, os pro- HALLIDAY, M. A. K.; MARTIN, J. R. Writings science.


Literacy and discursive power. Pittsburg: Pittsburg

fessores precisam ter uma formação sempre

○ University Press, 1993.
atualizada e constante. Nesta apresentação,

KAMAWAR, D.; OLSON, D. R. Children’s representational


defendemos a noção de que a preparação

theory of language: the problem of opaque contexts.


deve ser tanto teórica como prática, tanto de


Cognitive Development , n. 14, p. 531-48, 1999.


informação sobre o conteúdo quanto da for- MORRISON, K. Fixação do texto: a institucionalização do



mação psicológica necessária para fundamen- conhecimento em formas históricas e filosóficas da


tar decisões pedagógicas. argumentação. In: BOTTÉRO, J. et al. (Comp.). Cultu-



ra, pensamento, escrita. Barcelona: Gedisa, 1995.


REICHLER-BÉGUELIN, M.-J. Conscience du locuteur et



savoir du linguiste. In: RICARDA LIVER, H. von;


Bibliografia WERLEN, I.; WUNDERLI, P. (Eds.). Sprachtheorie und



Theorie der Sprachwissenschaft . Tübingen: Guner


DA R L I N G - H A M M O N D, L . D eve l o p i n g p r o fe s s i o n a l Narr Verlag, 1993.



development schools: early lessons, chalenge, and RICHMOND, J. What do we mean by knowledge about

p r o m i s e . I n : DA R L I N G - H A M M O N D, L . ( E d . ) . language? In: CARTER, R. (Ed.). Knowledge about



P r o fe s s i o n a l d eve l o p m e n t s c h o o l s. S c h o o l s for language and the curriculum . London: Hodder &


developing a profession . New York: Teachers College Stoughton, 1990.



Press, 1994. TEBEROSKY, A. Proposta constructivista per aprendre a


DURANTI, A. Antropología lingüística. Madrid: Cambridge llegir i a escriure. Barcelona: Vicens Vives, 2001.

University Press, 2000 [Versão original em inglês, 1997]. WELLMAN, H.; GELMAN, S. A. Knowledge acquisition in

FELDMAN, C. F. Intentionality and inter pretation. In: foundational domains. In: DAMON, W. (Ed. in Chief);

ZELAZO, P.; ASTINGTON, J.; OLSON, D. (Ed.). KUHN, D.; SIEGLER, R. S.(Volume Eds.). Child

Developing theories of intention. Mahwah, N. J.: Psychology: cognition, perception and language. New

Lawrence Erlbaum, 1999. p. 317-28. York: John Willey & Sons, 1998. p. 523-73.





















As diferentes faces




do analfabetismo





José Rivero*



Unesco/Peru






O analfabetismo é a expressão máxima da evasão. As concepções tradicionais e a aplica-


vulnerabilidade educacional. O problema do ção insuficiente de diversos métodos utiliza-



analfabetismo reside na desigualdade. A desi- dos na didática da leitura-escrita não possibi-



gualdade no acesso ao conhecimento está vin- litaram a muitos estudantes o desenvolvimen-


culada à desigualdade no acesso ao bem-es-


to de leitura e escrita adequadas.


tar. Observa-se, nos mapas, uma estreita coin- O fenômeno do analfabetismo “funcional”


cidência entre a localização das populações ○

é um dos principais resultados dessa situação
mais pobres e a das populações analfabetas e acumulada. É produto tanto de insuficiências

sem instrução suficiente.


no ensino da leitura e da escrita a crianças


A origem do analfabetismo está associada como de processos deficientes de alfabetiza-



à realidade socioeconômica e ao grau de de- ção para adultos que, ao não contemplarem

senvolvimento das diferentes regiões de um ações sustentadas de reforço e acompanha-


país, às diferenças entre os processos de urba- mento, geram consideráveis contingentes de



nização e o atraso rural, às desigualdades edu- analfabetos “regressivos”, ou seja, de pessoas



cacionais e aos problemas étnico-culturais não que em algum momento aprenderam a ler,

resolvidos. mas, por falta de reforço e uso prático da lei-


A concepção tradicional que definia as po- tura, perderam a leitura e a escrita como ar-

pulações analfabetas em função da ausência da mas fundamentais para transformar suas con-

escrita contrapõe-se à vigência e influência das dições de existência. 1



práticas orais na região. Essa oralidade, além O alfabetismo tem sido, por sua vez, fre-

de ser um patrimônio de culturas indígenas qüentemente qualificado como “direito huma-



ágrafas – com seus modos concretos de criar, no fundamental”, por constituir um bem ines-

organizar, transmitir e conservar conhecimen- timável para o indivíduo e para a sociedade



tos –, também está presente em pessoas de co- como um todo. Um melhor nível de alfabeti-

munidades rurais e urbanas que permanece- zação representa um dos principais indicado-

ram vários anos no sistema educacional e apre- res do estado de desenvolvimento humano de

sentam sérias dificuldades para utilizar códi- um país. No entanto, para influir na melhora

gos escritos. dos distintos níveis da vida humana, a alfabe-


No entanto, o analfabetismo também está tização precisa caminhar lado a lado com os

associado à ausência de oportunidades de demais fatores sociais.



acesso à escola e sua problemática tem vin- Valorizando-se cada vez mais as expressões

culação com a baixa qualidade do ensino es- culturais orais e admitindo-se a existência de

colar e com os fenômenos da repetência e da novos códigos de comunicação que podem ser




* José Rivero é educador peruano e consultor internacional na área de educação.



1
Luis Oscar Londoño (1990) apresenta uma concepção atualizada do analfabetismo funcional: “O analfabetismo funcional deve ser entendido

a partir de duas perspectivas. Em primeiro lugar, a partir da modernização e ‘tecnologização’ da sociedade, que exigem o domínio mais

completo possível das habilidades, das atitudes, do gosto pela leitura, pela escrita e pela Matemática e, acima de tudo, o desenvolvimento de

processos de pensamento associados à sua aprendizagem: a lógica, a gramática, a argumentação, o diálogo, a crítica, o método. Em

segundo lugar, dado o caráter excludente e de discriminação do modelo vigente em quase todos os países da América Latina, precisamos

entender o analfabetismo funcional a partir de uma perspectiva de transformação, de busca de modelos alternativos de economia, de cultura,

de educação e de sociedade”.

238
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

mais amplamente usados por pessoas que não Duas situações merecem uma análise mais



possuem códigos escritos, os conceitos de “al- detalhada:



fabetização”, “alfabetismo” e “analfabetismo” • Esses dados foram extraídos de censos na-


cionais de países nos quais basta que uma


começam a ser relativizados. É mais adequado


falar em “alfabetismos” e “analfabetismos” para pessoa responda que sabe ler e escrever



expressar as diferentes formas de expressão e para ser registrada como alfabetizada.


Além disso, não se sabe que qualidade de


os distintos níveis que exigem, bem como a


multiplicidade de sentidos que podem adqui- alfabetização ou que nível da capacidade 239



de ler e escrever é registrado. Por isso, os
rir em diferentes culturas. Seguindo essa linha


níveis de analfabetismo podem ser mais


de raciocínio, todos somos, de alguma manei-


significativos e preocupantes que os indi-


ra, “analfabetos” em relação a alguns tipos de
cados nos dados estatísticos oficiais.


informação e de conhecimento. O desenvolvi-



mento tecnológico e a expansão ilimitada da • O problema do analfabetismo caracteriza-


do como “funcional” não é registrado ape-


informação disponível ou o uso generalizado de


nas em países com taxas mais altas de anal-


meios eletrônicos, como computadores, acres-
fabetismo absoluto, mas também nos que


centam novas matizes à idéia do alfabetismo.


registram taxas elevadas de escolarização



(na Argentina, no Chile, na Costa Rica e no
O analfabetismo em números Uruguai, a proporção de adultos com es-

colaridade básica incompleta situa-se na


Dados da Unesco para 1995 indicam que


faixa de 40%).

nossa região tem 43 milhões de pessoas em



condição de analfabetismo absoluto – nenhum


acesso ou domínio de códigos de leitura e es- A necessidade de promover



crita – e que a idade média das pessoas analfa-


políticas públicas e de

betas aumentou de 43 anos em 1980 para 45


superar preconceitos

anos em 1995. A América Latina é a única re-


gião do hemisfério sul que registra uma queda


institucionais e ideológicos

no número total de analfabetos nos últimos



quinze anos; em 1980, esse número era de 44 Em que pesem os avanços registrados no

milhões de pessoas analfabetas (Unesco, 1995). reconhecimento e na análise desses fatores, são

O caso mais dramático em matéria de anal- esporádicas as iniciativas empreendidas para



fabetismo é o do Haiti, que apresenta taxa de enfrentar o analfabetismo como um problema


que envolve múltiplos atores e soluções, que


alfabetização inferior a 50%. A Guatemala e a


Nicarágua ainda não chegam a ter uma taxa de não está centrado exclusivamente nas pessoas

70% de alfabetização. O Brasil, embora apre- adultas e exige políticas públicas concretas.

sente taxas de alfabetização entre 70 e 90%, Há muitos obstáculos a serem superados,


um dos quais merece particular atenção. Re-


ainda tem 20 milhões de analfabetos absolu-


tos, situados, principalmente, em áreas caren- firo-me à clara tendência, observada em nú-

tes da Região Nordeste. Áreas indígenas de cleos tecnocráticos influentes em administra-



países como Bolívia, Equador, Peru, México e ções centrais do setor público educacional e

em organismos internacionais de financia-


Guatemala continuam apresentando conside-


ráveis percentuais de analfabetismo feminino. mento, de minimizar e até ignorar o proble-



De acordo com projeções da mesma fonte, ma do analfabetismo em suas prioridades



os seguintes países entrarão no século 21 com para ação. Essa atitude pode ser observada,

inclusive, em países com importantes bolsões


taxas superiores a 10% de analfabetismo: Jamaica


(13,6%), Brasil (14,6%), Bolívia (14,4%), Repúbli- de analfabetismo absoluto.



ca Dominicana (16%), Honduras (24,4%), El Sal- As razões apresentadas para sustentar es-

vador (25,9%), Nicarágua (32,8%), Guatemala sas decisões são a considerável ampliação da

cobertura escolar, o fato de que uma propor-


(42,1%) e Haiti (50,6%).



ção considerável do volume total de analfabe- dispensável para a sobrevivência e a competên-



tos absolutos corresponde a uma população em cia social e cidadã. O jovem e o adulto bem al-



faixa etária acima dos 35 anos, com idades que fabetizados terão, como indicado acima, maior



dificultam processos de aprendizagem, e o ar- possibilidade de optar por um posto de traba-


gumento de que o desenvolvimento dos países lho, de melhorar sua qualificação como produ-



deve estar assentado nos setores mais moder- tores, de participar ativamente na solução de



nos da sociedade. Sem declarar explicitamen- problemas sociais e de exercer seu direito à par-


te, estão aplicando a teoria do “custo-benefício” ticipação política.



exigida pelo mercado e sugerindo que esse pro- Por último, uma importante razão coloca-



blema pode ser resolvido pela simples amplia- da por Jacques Hallak: os especialistas e



ção da matrícula escolar. planejadores freqüentemente ignoram que


Os que assumem essa postura esquecem-se quanto maior a proporção de adultos alfabeti-



de vários elementos importantes. zados, mais fácil será ampliar a educação pri-



Em primeiro lugar, esquecem-se de que o mária, e vice-versa. “Em termos puramente


problema do analfabetismo tem raízes estrutu- ○
econômicos, é provavelmente menos dispen-
rais e históricas e envolve relações complexas – dioso, em termos de tempo e recursos, com-

como as relações étnico-culturais, que exigem partilhar as prioridades entre programas de



tratamento cuidadoso e necessário. A vigência educação primária e de adultos, desde que



e a gravidade do problema expressam-se no fato atendam às mesmas famílias da população”


de que, apesar dos avanços registrados na am- (Hallak, 1991).



pliação educacional, o volume total de analfa- Não se pode, portanto, reduzir o problema

betos se manteve, nos últimos 20 anos, no pa- do analfabetismo a índices, variáveis e proje-

tamar de cerca de 43 milhões de pessoas e de ções estatísticas ou abordá-lo com base em cri-

que – como efeito da crescente pobreza e misé- térios estritamente econômicos ou “de eficácia”.

ria na região – essa cifra tende a manter-se nos Precisamos reconhecer que ele constitui uma

mesmos níveis e até a crescer na ausência de parte importante da dívida social interna que

uma ação decidida e integral que abranja tam- nossas sociedades têm obrigação de conside-

bém a alfabetização das crianças. rar e assumir.



Outro elemento-chave a ser considerado é No entanto, como veremos, será necessário,



que o analfabetismo de adultos repercute dire- também, definir claramente as idéias vigentes

tamente na baixa escolaridade, num menor ren- sobre o analfabetismo e a alfabetização e, fun-

dimento e no analfabetismo de crianças. As cri- damentalmente, evitar os sucessivos erros de



anças em situação de pobreza exigem espaços e estratégia que têm caracterizado a abordagem

climas familiares nos quais seus próprios pais do problema na região.


sejam seu principal estímulo para freqüentar a



escola. Não é por acaso que a maior persistência


O alfabetismo funcional:

de mães de família em programas de alfabetiza-


resultados de

ção se deve ao fato de que um bom número de-


las deseja alfabetizar-se e educar-se para poder


uma pesquisa regional


ajudar seus filhos em suas tarefas escolares.



Um terceiro contra-argumento está relacio- A preocupação com o analfabetismo fun-



nado à necessidade de visualizarmos a alfabe- cional tornou-se patente na América Latina


tização e educação básica de jovens e adultos nos últimos anos. Várias recomendações de

como um extraordinário investimento econô- reuniões ministeriais mencionam o problema.



mico e cívico, e não como um problema de es- Na Declaração Presidencial da Reunião de Cú-

cassez de recursos, pois, em que pese a moder- pula das Américas II, o problema do analfabe-

nização registrada nas sociedades latino-ame- tismo foi reduzido ao nível funcional. No en-

ricanas ou em grande parte delas, o domínio da tanto, além da plena vigência, assinalada na

leitura e da escrita continua sendo um fator in- declaração, do analfabetismo absoluto, que

240
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

contradiz o otimismo dos mandatários, a au- ciadas aos níveis de alfabetismo foram a esco-



sência de estudos sobre as características do laridade e o posicionamento no trabalho.



chamado analfabetismo “funcional” dificulta A escolaridade determina fortemente os ní-



sua abordagem. veis e afeta significativamente os resultados em


A Unesco desenvolveu uma primeira pes- todos os domínios. Nos sete países, os que ti-



quisa regional sobre alfabetismo funcional nham seis ou sete anos de escolaridade ainda



em sete países da região. 2 O objetivo da pes- se situam, numa proporção de 50% ou mais, no


quisa foi dimensionar e analisar esse fenô- primeiro e no segundo níveis. 241



meno por meio de abordagens quantitativas Isso significa que, para uma pessoa se situ-



e q u a l i t a t i vas, e s t a b e l e c e n d o, e m b a s e s ar no terceiro nível – com algum domínio do



empíricas, um perfil da população quanto a alfabetismo –, ela deveria ter cerca de oito anos


suas habilidades de leitura e relacionando de escolarização e mais anos ainda em alguns



essas habilidades com determinadas compe- países da amostra. Quanto ao quarto nível de



tências sociais e profissionais supostamente competência em todos os domínios, que



exigidas nos centros urbanos onde foi desen- corresponde a uma inserção alta no trabalho,


volvida. O estudo aplicou instrumentos que verificou-se que, na maioria dos países, as pes-



envolveram os campos da economia, da pro- soas precisavam ter onze, doze ou mais anos de

dução e da vida cotidiana e se propôs a indi- escolaridade.



car níveis de escolaridade necessários para Um dos resultados mais importantes da


se alcançarem os domínios que possibilitem pesquisa foi a constatação efetiva de que po-

uma alfabetização efetiva. demos distinguir, na população adulta dos



Com os instrumentos de leitura/escrita e países envolvidos, níveis estatisticamente di-


Matemática, a pesquisa procurou, fundamental- ferentes de habilidades nos domínios da pro-



mente, avaliar níveis de desempenho nas habi- sa, dos documentos e da Matemática. Isso é

lidades relacionadas a diferentes domínios.3 projetado para toda a população adulta. Por

Os resultados preliminares indicam que, essa razão, a clássica diferenciação estatísti-


embora os itens do teste preliminar fossem con- ca entre pessoas alfabetizadas e analfabetas

siderados relativamente “fáceis”, apenas um não é suficiente. De acordo com a pesquisa,



percentual flutuante de 39% (no caso do Méxi- todos nós temos algum grau de alfabetismo,

co) a 72,3% (no caso da Argentina)4 da popula- segundo nosso grau de escolaridade, a qua-

ção pesquisada conseguiu apresentar respostas lidade de nossas aprendizagens e o uso que

corretas para os itens necessários.5 fazemos de nossas habilidades, principal-



Nesses resultados, as variáveis mais asso- mente no trabalho.







2
A pesquisa foi coordenada pela pesquisadora Isabel Infante e abrangeu os seguintes sete países: Argentina, Brasil (Estado de São Paulo),

Colômbia, Chile, México, Paraguai e Venezuela. As amostras selecionadas, em número não inferior a mil pessoas, foram representativas da

população adulta de zonas urbanas na faixa etária de 15 a 54 anos (no Paraguai, a pesquisa limitou-se à faixa etária dos 15 aos 34 anos).

3
O instrumento de leitura/escrita procurou medir algumas das habilidades que as pessoas adultas devem ter para lidar com textos escritos em

diferentes formatos, com diferente organização e diferentes graus de complexidade lingüística. Eles consistiram em textos curtos sobre

sinais de um ataque de coração, notícias de jornais sobre indígenas e o meio ambiente e anúncios em jornais para diferentes empregos em

restaurantes. Na área da Matemática, a pesquisa incluiu operações de numeração, adição, subtração, multiplicação, proporções, adição e

divisão seqüenciada (cálculo de médias), quadro de distâncias aproximadas em quilômetros, leitura de textos esquemáticos, como tabelas

gráficas e níveis de habilidades na compreensão de textos com informações numéricas (depósitos bancários, ingredientes para receitas

culinárias).

4
No Brasil, 67% da amostra conseguiram apresentar respostas corretas para os itens exigidos. No Chile, 70%; na Colômbia, 55%; na Venezuela,

43%; e no Paraguai, 49,7%.



5
Em seu relatório preliminar sobre a pesquisa, Isabel Infante assinala as seguintes possíveis explicações para esses fracos resultados:

– os que responderam não tinham familiaridade com provas escritas ou fazia muito tempo que não se submetiam a uma prova;

– as pessoas deviam seguir instruções, e essa “talvez seja a primeira das habilidades exigidas”;

– para muitos, os formatos podem ter sido novos;


– possivelmente, medo de provas dessa natureza.



Em direção a políticas públicas reconhecidas na década de 1970. A bem-suce-



dida campanha nacional cubana mobilizou ou-


que incluam estratégias


tros intentos nacionais e não levou em consi-


integrais de alfabetização


deração a impossibilidade de “modelos”


replicáveis sem contextos originários seme-


A alfabetização dos mais pobres continuará


lhantes. Vários esforços de alfabetização con-


sendo uma tarefa prioritária. O analfabetismo


seguiram mobilizar vontades e criar condições


não constitui apenas expressão da pobreza, mas
para maior conscientização das desigualdades


também impedimento para a sua superação e


nacionais e a necessidade de maior integração


para o acompanhamento e estímulo da própria


nacional. A prioridade de alfabetização na re-


educação dos filhos. Além disso, apesar da alen-


gião está orientada para a necessidade de ações


tadora queda nos índices de analfabetismo ab-
localizadas no Nordeste do Brasil, em países


soluto, os efeitos da crescente pobreza na re-


como Haiti, Honduras, Guatemala, Nicarágua,


gião serão decisivos para o aumento desses ín-

República Dominicana e El Salvador e também

dices em determinadas áreas das populações ○

nas populações indígenas femininas da Bolívia,
nacionais.
do Equador, do Peru e do México.

Ainda prevalece alguma imprecisão em tor-



no da noção de analfabetos e de pessoas alfa-


A necessidade de uma melhor


betizadas. A noção de analfabeto está exclusi-


vamente associada à falta de escolaridade. Li-


compreensão da alfabetização

mita-se à aprendizagem formal de um alfabe-



to que possibilite a leitura e a escrita. Precisa- Nas sociedades onde coexistem a oralidade

que perdura como experiência cultural inicial


mos insistir no sentido de que a alfabetização


seja vista como um processo mais longo e com- e uma “oralidade secundária” alentada pelo rá-

plexo, que envolve a aprendizagem de diferen- dio, pelo cinema, pela televisão, pelo vídeo e

tes níveis de domínio da linguagem escrita e pelo computador, não se pode limitar a alfa-

betização à escrita alfabética. No entanto, essa


de outros códigos, e que se perceba que as no-


ções de “alfabetismo” e “alfabetização” não têm cultura alfabética continua sendo insubs-

idade. Por isso, quando se fala de analfabetos, tituível para que se tenha acesso aos códigos

não devemos pensar apenas em alguém sem da modernidade, incluindo a comunicação ele-

trônica.

competências básicas de leitura, mas em al-


guém que não possui as competências e des- A compreensão do significado da alfabeti-



trezas básicas para sua inserção social e no zação progrediu consideravelmente com as

mercado de trabalho e para assumir tarefas sig- idéias propostas por Paulo Freire desde as dé-

cadas de 1960 e 1970, que a associavam a um


nificativas, capazes de melhorar sua qualida-


de de vida. processo pelo qual os analfabetos tomam cons-



A alfabetização teve que enfrentar, como ciência de sua situação pessoal e aprendem a

criar ou a utilizar meios para melhorá-la. Para


primeiro obstáculo, o fato de ter sido assumida


Freire, a aprendizagem da leitura, das contas e


como problema que podia ser abordado por


meio de campanhas nacionais, que foram se da escrita está associada a etapas que dão aces-

esgotando por si próprias. O caráter estrutural so a direitos políticos, econômicos e culturais,


afetando ou modificando a forma pela qual o


do analfabetismo coincidente com a pobreza e


poder é compartilhado na sociedade. A influ-


a miséria dos analfabetos e a necessidade de


associar a alfabetização a conquistas econômi- ência de Freire ultrapassou muito as fronteiras



cas e político-sociais só foram regionalmente latino-americanas.6







6
A figura e a obra de Freire receberam homenagem póstuma mundial em ato especial realizado na Confitea V, na presença de representantes

de todos os continentes, que reconheceram o valor de suas ações e as repercussões de sua obra em seus países.

242
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

Emilia Ferreiro contribuiu, com suas pes- Na estratégia regional de acompanhamento



quisas e estudos sobre alfabetização inicial de dos acordos de Hamburgo, uma das sete áreas



crianças, com a mais importante solução para definidas como prioritárias na estratégia regio-



o problema da alfabetização paliativa de ado- nal acordada para a América Latina é a da “Alfa-


lescentes e adultos. Ela nos indica elementos betização: acesso à cultura escrita, à educação e



substantivos sobre a natureza do objeto de co- à informação”. Judith Kalman, como especialis-



nhecimento envolvido na aprendizagem ta encarregada da coordenação técnica dessa


alfabetizadora. A distinção que faz entre siste- área, assinala que a recente discussão em torno 243



ma de codificação e sistema de representação da alfabetização indica que devemos abandonar



pressupõe conseqüências na concepção e na a visão mecanicista da aprendizagem da leitura



ação alfabetizadora. Quando a escrita é conce- e da escrita, que presumia unicamente – num


bida como simples transcrição do sonoro para processo linear – a apropriação do código, o tra-



um código visual, a linguagem é reduzida a uma çado das letras e sua correspondência sonora e



série de sons e os programas de preparação para posteriormente, por meio da apropriação de ora-



a leitura e a escrita ficam centrados na discri- ções controladas, o uso da língua escrita.


minação das formas audiovisuais e auditivas A postura atual, sem negar as letras ou os



“sem jamais questionar sua natureza”. sons, aborda o problema da alfabetização como

O sentido da alfabetização será outro se um processo sociocultural mais complexo, que



concebermos a aprendizagem da língua escrita assume uma multiplicidade de formas, usos e


como a compreensão da construção de um sis- significados e se insere ou é aplicado em dife-



tema de representação. “Em última análise, a rentes contextos sociais. Esse processo consi-

conseqüência dessa dicotomia se expressa em dera a diversificação de usos e formas e de en-


termos ainda mais dramáticos: se a escrita é tendimentos em relação às raízes da vida co-

concebida como um código de transcrição, sua municativa das pessoas. A aprendizagem da lei-

aprendizagem é concebida como a aquisição de tura e da escrita é vinculada à vida cotidiana e



uma técnica; se a escrita é concebida como um seu uso constitui uma forma de participação no

sistema de representação, sua aprendizagem se mundo.



transforma na apropriação de um novo objeto



de conhecimento, ou seja, numa aprendizagem Ser um leitor e escritor competente implica a



conceitual” (Ferreiro, 1989). possibilidade de participação em situações so-


Na Conferência Regional de Brasília, prepa-


ciais nas quais a utilização da língua escrita tem


ratória para a Confitea V, a alfabetização foi vin- um peso fundamental; significa ler e escrever

culada “ao acesso aos códigos da modernidade”. para relacionar-se com outros, para aprender,

A conferência propôs, também, que se deveria para conhecer e para expressar-se. Por isso, já

“revisar o conceito de ‘alfabetização’ como ação não se pode falar da alfabetização e da pós-al-

descontínua e limitada no tempo, bem como fabetização como um processo linear, pelo qual

seu conteúdo, no sentido de se promover uma primeiro se aprendem as letras e, depois, como

concepção mais ampla de ações inseridas nos usá-las. Atualmente, sabemos que a língua es-

processos de educação básica contínua duran- crita é um conjunto de práticas contextualiza-



te toda a vida”. das que variam de forma, significado, uso e pro-



A declaração de Hamburgo assinala que “a pósito de acordo com situações específicas.



alfabetização, concebida em termos gerais O desafio que enfrentamos atualmente é de pro-


como os conhecimentos e as capacidades bási- por políticas públicas e levar a cabo as ações

cos que todas as pessoas que vivem num mun- necessárias para promover uma melhor distri-

do em rápida evolução precisam ter […] e como buição da língua escrita, da educação e da in-

fundamento dos demais conhecimentos exigi- formação no sentido de garantir o direito à edu-

dos pela vida diária […] é, além disso, um cação mediante a criação de oportunidades edu-

catalisador da participação em atividades soci- cacionais viáveis para as pessoas jovens e adul-

ais, culturais, políticas e econômicas”. tas no contexto de suas vidas. (Kallman, 1998)

A necessidade to na alfabetização escolar de crianças po-



bres nos primeiros graus de instrução:


de respostas integrais


• Centralizando a ação da mudança edu-



Um problema de longa data é a crença de cacional nos três primeiros graus da edu-


cação primária e básica, no bom ensino e


que a alfabetização deve ser coordenada e as-


sumida exclusivamente por unidades adminis- na aprendizagem da leitura, da escrita e



trativas responsáveis pela educação de adultos, do cálculo básico.



sem recursos suficientes. Hoje em dia, o anal- • Fazendo com que a leitura não fique as-


fabetismo não é exclusivamente associado ao sociada apenas às atividades escolares e



mundo adulto e sua necessária vinculação com estimulando o prazer de ler e a seleção de



os baixos resultados dos sistemas educacionais leituras pelas próprias crianças.



é reconhecida. • Qualificando os docentes, em sua forma-


Os elementos mencionados anteriormente


ção inicial, em metodologias e práticas


exigem uma estratégia qualitativamente distin- pedagógicas que garantam bons resulta-

ta e de caráter prospectivo, baseada no reconhe- ○

dos na primeira alfabetização e traba-


cimento de que não podemos resolver o pro- lhando com grupos heterogêneos, com

blema do analfabetismo presente e futuro – que crianças de idade mais avançada e sem

tem suas raízes numa educação básica defici- estímulos pedagógicos em suas famílias.

ente – unicamente pela via da educação de • Distribuindo materiais de leitura que es-

adultos e de que é necessário que a alfabetiza-


timulem a imaginação infantil e o gosto


ção inicial das crianças em centros escolares e pela leitura e montando bibliotecas nas

as diversas expressões do problema do analfa- salas de aula.



betismo sejam abordadas no contexto de uma • Oferecendo atenção especial a crianças


estratégia integral ou global que considere os


com dificuldades de aprendizagem.


fundamentos indicados anteriormente.


• Motivando os pais a desenvolver sua pró-


Trata-se de promover, nos países, a formu-


pria alfabetização e exercício da leitura.


lação e execução de uma estratégia nacional


integral de alfabetização, envolvendo ação 2. Ações estratégicas de alfabetização em


núcleos populacionais sem escolaridade,


interinstitucional representativa de setores pú-


atendendo, preferencialmente, à popula-


blicos e de organismos da sociedade civil, em-


ção adolescente e juvenil – de núcleos ur-


presariais e universitários, associações de pro-


banos marginais, rurais e indígenas – em

fessores e igrejas.

situação de analfabetismo absoluto:


Essa estratégia teria que ser convocada e


• Redefinindo o que se entende por alfa-


liderada pelos Estados, por meio de seus mi-


betização e o que se propõe fazer para


nistérios ou secretarias de Educação, que de-


alcançá-la.
veriam assumir o problema como uma políti-

ca pública que preveria níveis e modalidades • Enfocando a ação de alfabetização em


áreas geográficas e faixas etárias defi-


de ações complementares entre setores edu-


nidas.

cacionais, sociais e produtivos, linhas conver-


gentes de ação entre diferentes níveis e moda- • Organizando, com vista à coordenação e

lidades educacionais e convênios com entida- execução de ações de alfabetização, ma-



des de caráter técnico, investigativo ou pas de instituições estatais, organizações


não-governamentais e associações que


promocional e com associações de professo-


res para o desenvolvimento das diferentes ati- desenvolvam ou tenham a possibilidade



vidades contempladas. de executar diversas tarefas para comba-


ter o analfabetismo.

Os diferentes elementos dessa estratégia


integral estariam vinculados aos seguintes âm- • Desenvolvendo convênios entre ministé-

bitos: rios ou secretarias de Educação e organi-



1. Esforços para promover melhor rendimen- zações não-governamentais de fomento,


244
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas

universidades e outros centros de educa- lerada para quem apresente, reconheci-



ção superior e associações de professo- damente, uma aprendizagem por expe-



res, visando organizar estratégias e a pró- riência de vida.


pria execução da alfabetização para che-


• Desenvolvendo acordos com estações pri-


gar a acordos sobre os propósitos, os pro- vadas de televisão para desenvolver pro-


cedimentos e os métodos a serem


gramas educacionais contra o analfabetis-


adotados para a certificação.


mo funcional caracterizado em cada país.


• Criando mecanismos que possibilitem a 245


• Gerando ambientes favoráveis à leitura


participação dos educandos jovens e adul- e à educação básica com o apoio dos


tos em decisões que afetem tanto os pro-


meios de comunicação e de bibliotecas


gramas como os processos educacionais.


populares.


• Organizando registro de materiais utili-


4. Assumir as demandas de alfabetização as-


zados e sistematizando experiências e sociadas ao conhecimento e acesso à


intercâmbios desses materiais.


informática e aos meios de comunicação



• Priorizando programas especiais para a nos setores populares:


alfabetização feminina em populações


• Promovendo ações educacionais com se-

indígenas e rurais. tores populares tendentes à alfabetização

3. Conhecimento do problema dos níveis de científico-tecnológica, ao domínio



alfabetismo funcional e estratégias para computacional, à “audiovisão” crítica dos


enfrentar os baixos resultados escolares: meios de comunicação, particularmente



a televisão, ao conhecimento de deveres


• Desenvolvendo diagnósticos e pesquisas


para caracterizar as distintas expressões e e direitos da cidadania e do que fazer para


proteger o meio ambiente.


diferentes níveis de alfabetismo alcança-



dos, no sentido de visualizar a gravidade • Transformando a escola pública no princi-


do problema do analfabetismo funcional. pal mecanismo institucional para que as



• Formulando uma estratégia nacional com novas gerações de crianças e jovens em si-

tuação de pobreza tenham acesso à


elementos locais e municipais para fazer


informática e ao uso dos meios eletrônicos.


frente aos efeitos de má educação básica


em populações em situação de pobreza.



• Optando por dar atenção preferencial a Bibliografia



jovens com baixa escolaridade.


FERREIRO, Emília. Los hijos del analfabetismo: propuestas


• Promovendo modalidades semipre-


para la alfabetización escolar en America Latina. Méxi-


senciais de educação básica e média para co: Siglo XXI, 1989.



jovens e adultos em situação de margi- HALLAK, Jacques. Investir en el futuro. Definir las priorida-

nalidade. des educacionales en el mundo en desenvolvimento.



Pnud/IIPE. Madrid: Tecnos/Unesco, 1991.


• Promovendo, nos últimos graus da edu-

KALMAN, Judith. Alfabetização: acesso à cultura escrita,


cação primária e secundária, mais estí-

à educação e à informação (Área Temática 1.). In:


mulos para a leitura de romances, contos


Guías de discusión para las reuniones nacionales e


e lendas, superando a leitura exclusiva e

subregionales. Estratégia regional de seguimiento a


obrigatória de textos escolares.


Confitea V. Santiago de Chile: Unesco/Ceaal/Crefal/


• Desenvolvendo estratégias para progra- Inea, 1998.



mas educacionais de aprendizagem ace- UNESCO. Compendium of statistics on illiteracy. Paris, 1995.












SIMPÓSIO 16

PROJETO PEDAGÓGICO:
POR QUÊ, QUANDO E COMO
Márcia Cristina da Silva

247
Como um programa de formação pode




auxiliar na reflexão sobre




o projeto pedagógico da escola






Márcia Cristina da Silva


PEQV/Fundação Vale do Rio Doce/Cedac






Resumo






O Programa de Formação do Programa Esco- las e profissionais se encontrarem semanalmente


la que Vale (PEQV) – parceria entre a Fundação Vale para planejar suas ações, a inserção da comunidade

do Rio Doce e o Centro de Educação e Documen- ○


nas diferentes etapas dos projetos, a utilização de al-


tação para a Ação Comunitária (Cedac), organiza- guns recursos tecnológicos como ferramentas para a

ção não-governamental ligada à educação – ini- aprendizagem, o desenvolvimento de projetos liga-



ciou seu trabalho em junho de 1999, em seis cida- dos à gestão escolar por parte dos diretores, a forma-

des brasileiras, com professores de escolas muni- ção de supervisores, a necessidade de estabelecer par-

cipais de 1ª a 4ª séries. Inicialmente privilegiou o ceria entre os diferentes interlocutores participantes



trabalho de formação de professores e teve como (técnicos da Secretaria de Educação, diretores,


eixo a realização de projetos didáticos em sala de supervisores, professores, outros funcionários da es-

aula, centrados na área de Língua Portuguesa. cola, alunos, pais e comunidade escolar em geral). A

Essa escolha deve-se ao fato de acreditarmos que implantação paulatina dessas ações fez com que

tal modalidade organizativa garante o sentido das muitas questões gerenciais, de concepção, de atitu-

aprendizagens dos alunos e, ao mesmo tempo, resga- des fossem revistas para que os projetos pudessem

ta o sentido do ensino por parte dos professores. ser desenvolvidos.


Colocar em prática os projetos em sala de aula Esta palestra tem como objetivo central a apre-

fez com que o paradigma vigente nas escolas envol- sentação desse histórico do PEQV sob a ótica da

vidas fosse, pouco a pouco, sendo revisto. Esse pro- mudança de paradigma vigente e da formação de

cesso de revisão de algumas práticas já institucio- equipes reflexivas que se comprometam e se respon-

nalizadas partiu da análise e reflexão de ações sabilizem por essas transformações, necessárias

implementadas pelo PEQV: a necessidade de esco- para reinventar o papel do professor e da escola.





Introdução

Fundação Vale do Rio Doce. Atualmente esse



A apresentação estará centrada na tentativa programa desenvolve-se em 8 municípios bra-



de fazer uma reflexão sobre como um projeto sileiros e atende a 33 escolas, 300 professores,

8.500 alunos, 114 diretores e 116 supervisores.


de formação de educadores pode contribuir


O projeto deve ser desenvolvido em dois anos


com algumas transformações do projeto peda-


gógico da escola. A partir dessa reflexão, tenta- de trabalhos intensos em cada município, contan-

rei contextualizar o Projeto Escola que Vale. do com mais meio ano de manutenção. O PEQV

tem uma intencionalidade clara no sentido de pro-



mover a autonomia dos profissionais envolvidos,


Contextualização do PEQV: o que é,


uma vez que uma intervenção externa ao sistema


diretrizes e funcionamento

escolar costuma ser provisória e ter um tempo de


O Programa de Formação de Educadores duração definido. Por essa razão, há uma preocu-

(professores, supervisores e diretores) foi ela- pação explícita em criar mecanismos para que as

borado pela equipe do Cedac e financiado pela aprendizagens se institucionalizem de fato.


248
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como

Contexto de formação: trabalho com Basta observar as aulas dadas ou olhar o que está



projetos didáticos de leitura e escrita exposto nas paredes, por exemplo, pois tudo isso



revela o que as professoras ensinam e o que as


O contexto da formação de professores cria-


crianças aprendem e, portanto, qual a concep-
do pelo programa consiste no trabalho com pro-


ção de criança e o que esta escola pensa e faz a


jetos didáticos de leitura e escrita e na supervi-


respeito da aprendizagem delas, ou seja, qual o


são permanente do desenvolvimento desses


seu projeto pedagógico.


projetos pelos professores. 249
Sabemos que até há pouco tempo, pouquís-


Projetos de leitura e escrita. Ao iniciar o tra-


simos profissionais de educação sabiam qual o


balho, os professores recebem um “cardápio”


com diversos projetos didáticos de leitura e projeto pedagógico da sua instituição que, quan-



escrita e escolhem um deles para ser desen- do o tinha, desempenhava função puramente


burocrática. O que víamos, então, era os profis-


volvido em classe. Todos obedecem a uma


estrutura básica, com sugestões didáticas que sionais trabalharem, sem saber explicar o que



devem ser detalhadas e transformadas em faziam, por que optaram por trabalhar daquela



seqüências de atividades específicas junto maneira e não de outra, e a única explicação


com cada grupo de professores. O que garan- possível para sustentar sua prática estaria pau-



te a transformação do “cardápio” inicial no tada na tradição: “Faço assim porque sempre fi-

que acontece em aula é o planejamento se- zemos desta forma”.


manal realizado pelos professores e super-


Quando a política nacional de educação pas-


visores. Nesse percurso, os professores apro- sou a exigir que as escolas apresentassem seus

fundam diversos conteúdos de leitura e escri-


projetos pedagógicos registrados, as instituições


ta com seus alunos. Os alunos aprendem de


entraram em desespero, porque não sabiam nem


forma contextualizada, sabendo o que, para


como nem para que fazer tal tarefa. Muitas escre-

que e para quem estão escrevendo. Os pro-


veram o projeto, mas sem atribuir sentido ao do-


fessores aprofundam conhecimentos, já que,


cumento e sem fazer uso dele para a reflexão con-


para a realização do projeto, é preciso plane-


jar, prever, dividir responsabilidades, adqui- tínua. O projeto pedagógico, então, passou a ser

mais uma tarefa burocratizada e realizada pelo


rir conhecimentos específicos relativos ao


diretor da escola, mas não se transformou em


tema em questão, desenvolver capacidades e


procedimentos determinados, usar recursos referencial a ser consultado cotidianamente pe-



tecnológicos, aprender a trabalhar em grupo, los membros da equipe, seja para recuperar seus

princípios ou para reformulá-los de acordo com


de acordo com as normas, os valores e as ati-


tudes esperados, organizar o tempo, dividir e as reflexões realizadas a partir das práticas e es-

redimensionar as tarefas e avaliar os resulta- tudos realizados pelos funcionários da escola.


dos em função do plano inicial. Tudo isso fa-


Atualmente, diversas frentes de formação


vorece ao sujeito que se comprometa com sua têm contribuído para que a instituição escolar

própria aprendizagem, pois essa é muito mais pare, pense e reflita sobre seu projeto pedagógi-

produtiva quando o grupo que realiza tal pro-


co: PCN em Ação, PROFA e programas diversos


jeto conta com a participação de cada um para


contratados pelas prefeituras locais.


alcançar a meta comum.


Sabemos que a formação é importante, por-

que auxilia os profissionais a tomarem consci-



Para que o projeto pedagógico ência do conhecimento didático e faz com que

as ações relacionadas ao ensino e à aprendiza-


da escola e por que o projeto

gem ganhem sentido. Por meio da formação, é



pedagógico na escola possível que os profissionais parem para pensar



no porquê, no para que e no como fazer. Ao dis-


O projeto pedagógico de uma escola torna-


cutir as práticas realizadas na escola, é possível


se visível no próprio acontecer cotidiano da es- avaliar qual a concepção de ensino, de aprendi-

cola. Ao entrarmos em uma escola, já é possí-


zagem e de criança que a escola assume; con-


vel antecipar qual o seu projeto pedagógico.


frontar essa realidade com as intenções da esco-



la será um fértil caminho para que ela reflita so- Reflexão sobre o trabalho



bre o seu próprio projeto pedagógico. com professores



O PEQV faz um recorte na formação: traba-


O trabalho com projetos. O que é projeto? A


lha somente com os conteúdos de Língua Por-
primeira questão apontada pelos professores


tuguesa. Essa opção está relacionada à impor-


dizia respeito ao próprio trabalho com proje-


tância social e política dessa área. Um outro pon-


tos, pois, afinal, até então desenvolviam pro-


to é que sabemos que, para trabalhar com uma jetos predeterminados pela supervisão, dire-


área de conhecimento com um grau relativo de


ção ou secretaria e eram realizados em prazo


aprofundamento, é necessário tempo. curto de tempo, sem produto final, com eta-



Ao optarmos em trabalhar com projetos di- pas fixas, sem a possibilidade de reavaliar o



dáticos de língua, é inevitável o confronto entre planejamento e também sem pensar na toma-


diferentes concepções, assim como o questiona- da de decisões por parte dos alunos. Assim, o



mento da gestão de sala de aula, da rotina da primeiro choque referia-se a essa maneira di-


ferente de trabalhar com a Língua Portugue-

escola, da relação entre família e escola, comu-

○ sa, onde há uma seqüência lógica que privile-
nidade e escola, além da concepção de criança. ○

As transformações ocorridas até o momento ain- gia as situações de aprendizagem com um


sentido social. Essa prática confrontou-se


da são pequenas e podem ser efetivas dentro das


com a proposta vigente na qual o trabalho


escolas, mas para isso é preciso que estas saibam


com temas geradores aspirava a uma falsa in-


como manter o grau de reflexão e discussão que


terdisciplinaridade e apresentava uma lista de

já vem sendo conseguido pelos seus profissio-


conteúdos sem fim, além da proposta de tra-


nais. A questão fundamental é como


balhar, a cada dia, com um conteúdo, sem


institucionalizar essa reflexão dentro da escola, importar o sentido de por que fazer aquilo e

porque só assim os profissionais terão como pre-


para que fazer daquela forma, tanto para os


ocupação cotidiana o que querem para seus alu-


alunos quanto para os professores.


nos. Tudo isso passa pela reinvenção do papel A realização de projetos sugere problemas

do professor, do supervisor, do diretor, da rela- concretos e o formador atua em função das


ção que a escola estabelece com os pais e com a questões que emergem desse processo de

comunidade. Sabemos hoje que a reflexão per- implementação. O importante para os profes-

manente é fonte de conhecimento importante sores é compreender o que eles têm de ensi-

nar e por que ensinar. Se é isso que faz senti-


para o professor e isso não está necessariamen-


te nas mãos de especialistas, mas, sim, na for- do para os professores, torna-se necessário,

mação contínua desse profissional, que faz par- então, conciliar duas classes de propósitos: a

dos que ensinam e a dos que aprendem.


te de uma escola com identidade e tem, como


Para que planejar? Um outro ponto que


um dos princípios de seu projeto pedagógico, a


formação de uma equipe reflexiva e autora de avaliamos nestes quatro semestres de tra-

suas práticas. balho com os professores refere-se à neces-


sidade do planejamento. Inicialmente, al-



guns grupos de profissionais pouco plane-


O projeto pedagógico

javam: ou porque não tinham prática de pla-


nejamento e/ou porque pouco se encontra-


e o papel do professor,

vam para discutir sobre o próprio trabalho


do supervisor e do diretor

e/ou o próprio espaço físico da escola não


favorecia esses encontros. Outros grupos


O programa de formação trabalha com esses


conseguiam produzir e compartilhar mais


três profissionais. Vou especificar o trabalho com


as idéias entre os participantes. Iniciamos


cada um deles, mas não descreverei o processo trabalhando com grupos da própria escola

de trabalho, e, sim, as principais questões e pouquíssimas experiências agrupavam


desencadeadas pelo programa de formação – no duas escolas numa mesma reunião. Perce-

sentido da reflexão da prática educativa que te- bemos rapidamente que propiciar maior

nha relação com o projeto educativo da escola. interação entre escolas seria o melhor, por-

250
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como

que poderia haver troca de experiências, tiveram de discutir e decidir entre 13 propos-



além da observação de como se posicio- tas por apenas um projeto por série. Essa reu-



navam, como organizavam o material. Tudo nião foi bastante difícil, porque os professores


isso fez com que todos no grupo tentassem não estavam acostumados a negociar entre si



imitar uns aos outros, trocassem materiais, e nem a argumentar sobre suas escolhas. Fi-


endereços; enfim, começaram a ver que ha- cou evidente que não sabiam como exercer



via outras formas de se relacionar com o essas ações. Esta foi, então, a primeira questão



saber e a organização. Ou seja, o fato de ve- do semestre: o professor é o responsável tam- 251


rem outros colegas de outras escolas expli- bém pelo que desenvolve em sala de aula e tem



citava que cada instituição poderia ter a sua de ter poder de voz e decisão, pois estará à fren-



própria forma de organização e construção te das crianças cotidianamente. Tudo isso pode


de saberes, que muitas vezes é necessário parecer óbvio, mas, dependendo do projeto pe-



sair do próprio universo para ampliar expe- dagógico da escola, o poder de decisão nunca


riências e referenciais para, posteriormen- passa pelo educador.



te, poder voltar para a sua própria institui-


Tematização da prática. A análise de vídeo


ção e refletir sobre seus pressupostos. de sala de aula foi uma das estratégias utili-



Formação de uma equipe colaborativa. De zadas na formação. Pudemos observar que


forma geral, os professores tinham pouca ou ○
os professores já conseguem ver a si mesmos
nenhuma prática de trabalho reflexivo feito nos encaminhamentos que deram certo,

coletivamente, sofriam muito no planeja- como também entender os equívocos e falar


mento individual a ser compartilhado pos-


sobre isso. O grande avanço aqui é o fato de


teriormente. Mudamos o pedido e autoriza- poderem se expor, conseguirem ouvir uns



mos que planejassem em duplas e, depois, aos outros e saberem que isso não é pura gen-

as duplas compartilhavam com o grupo todo


tileza, mas, sim, a própria construção de co-


para chegar a um planejamento comum. As nhecimento do grupo sobre pedagogia.



discussões sobre a elaboração desses plane- A questão da discussão sobre o confronto


jamentos procuravam antecipar quais difi- entre o que se planeja e o que se realiza em sala

culdades/desafios os alunos enfrentariam de aula também desestabilizou não só os pro-



em determinadas situações, assim como fessores, como também os supervisores, já que,


quais intervenções os professores poderiam até então, as observações de sala de aula e a



fazer para atingir as aprendizagens dos alu- análise das produções das crianças não eram

nos. Essas discussões eram coletivas e base-


vistas como ferramentas importantíssimas


adas na prática já vivenciada. para refletir sobre como se faz e por que se faz.

Neste semestre, a estratégia de colocar Um outro mito que veio abaixo é que não bas-

juntos os diferentes grupos de escolas e exi-


ta um planejamento burocrático, mas, sim, que


gir de maneira mais enfática a realização de este precisa estar vinculado a avaliações peri-

planejamentos por parte dos professores fez ódicas de como cada criança aprende. Ou seja,

com que, inicialmente, houvesse muitas re-


uma escola que tem como projeto pedagógico


sistências, porque até então estavam habi- a concepção de que a avaliação está centrada

tuados ao planejamento realizado pelo no percurso, e não apenas no resultado final,


supervisor ou ditado pelo livro didático. Co-


está preocupada não só com o planejamento,


locar-se como autor de sua prática foi uma mas também como esse planejamento ganha

grande novidade para todos e avaliar que sentido no cotidiano da sala de aula.

suas decisões, no momento do planejamen-


Um outro ponto importante foi a utiliza-


to, poderiam ou não favorecer a aprendiza- ção da análise de produção das crianças

gem dos alunos foi um grande marco no per-


como instrumento de investigação sobre


curso de formação desses professores.


como as crianças aprendem e pensam.


O que se aprende quando se escolhe. A partir Essa supervisão constitui um dos grandes

do 2º semestre, os projetos escolhidos foram diferenciais que o PEQV oferece para que os

restritos a um por série. Para isso se efetivar, os problemas advindos da prática em sala de aula

professores das quatro escolas se juntaram e sejam nomeados, interpretados e transforma-




dos. Nessa interlocução, o professor é ajudado flexão coletiva, ou seja, eram escolas que



tanto do ponto de vista da implementação da não valorizavam a formação. Isso se refletia



prática, quanto da compreensão da teoria que na representação que o supervisor tinha de


a sustenta. A configuração de um espaço de seu papel: aquele que deve fornecer o tra-



troca e de aprendizagem dessa natureza é mui- balho pronto para os professores, se possí-


to comum em diversas profissões e em muitas vel até com as matrizes de atividades já



escolas que oferecem ensino de qualidade. prontas; aquele que entende como obser-



Para quase todos os profissionais, o seu desen- vação de sala aquela passada rápida para


volvimento conta com a possibilidade de diá- verificar a lista de presença, se o professor



logo entre pares, pois isso estimula a troca de está sentado ou em pé, se o professor está



saberes. O fato de configurar uma arquitetura dando a aula correspondente à lista de con-


de funcionamento do programa apoiada na teúdos elaborados pelo supervisor, que sim-



idéia de que a possibilidade de troca, a refle- plesmente copiou o que a Secretaria indi-


xão compartilhada e o acesso à informação cou como um possível currículo.



devam ser pilares do processo tem feito com Atualmente, alguns supervisores ainda


que as respostas e o nível de compreensão dos ○
oscilam entre esse paradigma de escola e
professores envolvidos nessa experiência se- outro, em construção, que é aquele em que

jam surpreendentemente rápidos. a escola tem tempo para planejar e refletir



Construção de autonomia. Todo programa sobre a coerência do trabalho pedagógico e


que, por conta disso, cria um contexto de for-


de formação precisa refletir sobre o encerra-


mento de suas atividades no município e mação e desenvolvimento profissional. Os



também sobre como poderá multiplicar pela supervisores estão em plena reinvenção do

seu papel e atuação dentro das escolas, es-


rede as suas ações. Para conseguir atingir es-


ses pontos, é importante que a clientela for- tão sendo cobrados sistematicamente pelos

professores assim como pelos diretores. Al-


mada conquiste sua autonomia em relação


guns já conseguiram montar uma rotina mais


aos formadores e passe a criar a própria rede


de comunicação e formação na cidade. próxima da necessidade real de formação de


seus profissionais. Estão iniciando filmagens


No caso do PEQV, pudemos perceber que,


em salas de aula, transferindo para outras


nos municípios em que houve maior integra-


ção entre Secretaria e PEQV, essa passagem se áreas alguns procedimentos vistos no desen-

volvimento do trabalho com o projeto em


efetivará com maior consistência, porque ine-


vitavelmente refletirá na mudança de algumas língua; outros estão fazendo registros e co-

práticas vigentes dentro das secretarias: defi- locando questões para além das descrições

e percebendo que algumas questões, antes


nir de quadros fixos para supervisores, garan-


tir hora-atividade, saber priorizar o que se vistas como problema de um determinado



quer com relação ao ensino e à aprendizagem, professor, são, na realidade, de mais profes-

sores e que, portanto, a melhor estratégia é


saber priorizar onde investir recursos pró-


prios, saber que uma política municipal não promover uma reunião geral com os profes-

sores e com uma pauta de reunião em que se


é equivalente a querer homogeneizar todas as


discuta o assunto a partir das observações em


escolas – afinal todos nós queremos o fortale-


cimento da escola como “uma organização- sala de aula. Alguns supervisores estão en-

contrando dificuldades em desenvolver o tra-


aprendiz que tem que ser alvo de uma forma-


balho nestes moldes, porque os diretores es-


ção adaptada para ela e suas características


próprias e do conjunto de seus professores”. tão se sentindo ameaçados e exigindo que os


supervisores saiam do PEQV, uma vez que



este implica mudanças que inicialmente


Reflexão sobre o trabalho desenvolvido

desestabilizam e fazem com que todos pre-


com supervisores

cisem rever suas propostas, assim como a



Redefinição de função e tempo para o tra- própria escola.



balho. Em relação aos supervisores, até en- Um exemplo de atuação de supervisores


tão a maioria das escolas ignorava a neces- e professores de uma escola que está em fase

sidade da prática de planejamento e de re- de transição e não aceita mais alguns padrões

252
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como

externos de forma impositiva é a resolução não conseguiram sustentar o projeto como



de eles não fazerem remanejamento de alu- prioridade, e continuaram atuando nas



nos de 1º ciclo durante o ano (ainda há esco- emergências do cotidiano), saber escolher


las que transferem alunos até quatro vezes um projeto que tenha relação com a neces-



ao ano). Esses profissionais apresentaram sidade real da escola e fazê-lo por meio da


suas justificativas por meio da produção dos discussão com a equipe escolar. Deve fazer



alunos e do quanto a heterogeneidade é uma parte de qualquer projeto pedagógico de



condição importante para o processo de al- uma escola saber olhar a realidade para de- 253


fabetização. O diretor dessa escola concor- finir em quais prioridades investir, seja no



dou com os profissionais e argumentou com campo do ensino-aprendizagem seja em



o técnico da Secretaria sobre a não-partici- questões operacionais e administrativas.


pação da escola nessa tarefa. Nessa situação,



podemos ver uma escola utilizando-se de ex-
O papel do diretor


periências práticas dos professores e



supervisores, assim como dos conteúdos de Formação de uma equipe colaborativa. O


projeto de diretores proposto pelo PEQV


formação já incorporados e transferíveis para


outras situações. Por meio dessa atitude, a como estratégia freqüentemente utilizada



escola deixa de ser anônima e passa a cons- tem de ser o tempo todo compartilhado com

truir sua identidade, diferenciada de tantas




os profissionais da escola, e as ações futuras
outras da cidade – e essa ação passa a fazer têm de ser fruto das reflexões do grupo. Essa

estratégia utilizada (que é favorecida por meio


parte do projeto pedagógico da escola.


do trabalho com projetos) fez com que os di-



retores enfrentassem dificuldades até então


Trabalho com diretores

não vivenciadas por eles: a impossibilidade de



O trabalho com projetos e a eleição de prio- ter um horário para encontro com o grupo da

ridades. A partir de algumas avaliações, o escola ou, então, a descoberta de que os re-

PEQV elaborou também um cardápio de pro- sultados alcançados não foram os esperados,

jetos para diretores: Comunidade leitora, Re- porque as decisões tomadas foram unilaterais.

lação família e escola, Lazer e convívio e Co- Essa questão de formação de equipe

municação no espaço da escola. Os direto- colaborativa é um dos pressupostos não só do



res de toda a rede foram convidados a parti- projeto de diretores, mas de todos os outros

cipar e a desenvolver o projeto que mais se segmentos do PEQV. Nesse caso, porém, al-

aproximava de suas realidades. O desenvol- guns estereótipos surgiram e até impediram



vimento dos projetos colocou, logo de início, o andamento do projeto com maior eficiên-

diversos problemas para os diretores: cia. Por exemplo, uma escola que não valori-

za, no seu projeto pedagógico, a formação de


• até então, os diretores só desenvolviam


projetos pontuais – desfile, festa para pais, uma equipe reflexiva e colaborativa acaba cri-

ando dentro de si nichos que não interagem,


festa para alunos;


a não ser quando obrigados pela Secretaria;


• esses projetos pontuais geralmente eram


ou seja, houve escolas em que os supervisores


determinados e já planejados pelas Secre- ou professores não participaram das ações e


tarias de Educação;

diziam: “Aquele é o projeto de diretores e, por-



• escolher o projeto e executá-lo demandaria tanto, é ele que tem que fazer e não eu, como

participar de reuniões sistemáticas e fazer re- professora!”.



gistros das ações desencadeadas na escola. Um outro ponto importante desencade-


O próprio fato de o diretor ter de esco-


ado pela própria prática do projeto foi quan-


lher um projeto já demanda uma série de to à representação que os diretores tinham



decisões que o coloca em outro lugar, até sobre a comunidade escolar. Para eles, essa

então não vivenciado por muitos profissio- comunidade era composta pelos diretores,

nais: eleger uma prioridade e persegui-la supervisores, professores, pais e alunos, ex-

por um tempo mais longo (alguns diretores cluindo os profissionais de limpeza, cozi-

desistiram de continuar no PEQV, porque nha, portaria e outras pessoas da comuni-




dade. Contudo, algumas etapas, para serem O papel dos diretores e a identidade das es-



desenvolvidas, necessitavam dos saberes, colas. Alguns problemas iniciais enfrentados



da contribuição e da reflexão destes impor- pela formação estavam relacionados à con-


tantes profissionais, que também compõem cepção que se tem do papel de diretor dentro



a comunidade escolar, como ocorreu nos de uma escola: é aquele profissional respon-


sável pelos eventos, que executa as normas da


casos do projeto Família e escola e do em-


preendimento do Self-Service. Atualmente, Secretaria, que está ligado a questões buro-



alguns diretores estão fazendo roda de his- cráticas, como matrículas e transferências,


tórias com os setores operacionais. mas não registra nenhuma ação da escola;



Essa questão da formação de equipe, também está ligado ao bom andamento da



que surgiu na própria ação do projeto e evi- escola (entendendo por isso a presença de


denciou-se na reflexão, fez com que algu- todos os profissionais da escola no horário de



mas escolas, que estavam funcionando sob trabalho, o fornecimento da merenda, etc.).


Com o andamento do projeto de forma-


o paradigma que privilegia ações compar-


timentalizadas e isoladas, passassem a re- ção, o papel do diretor passou a ser refor-

fletir e a tentar elaborar estratégias em que



mulado na própria ação, já que, pela primeira
vez, os diretores passaram a elaborar um pro-

o trabalho colaborativo em equipe fosse


fundamental para o desenvolvimento das jeto a longo prazo, registrando suas ações, re-

ações, como, por exemplo, o trabalho de re- fletindo sobre a prática realizada, elaborando

ações diferenciadas em relação às que até en-


creio monitorado.

tão vinham sendo feitas. Isso fez com que esse


Saber avaliar o processo. Alguns diretores


grupo de profissionais passasse a olhar para


não realizaram registros e sempre justifica-

suas escolas de outra forma. O desafio, neste


vam o não-fazer ou os fracassos, assumindo


momento, do programa é fazer com que os


uma postura de alunos que deixaram de fa-


diretores passem a refletir sobre quais estra-

zer a lição de casa, enquanto outros direto-


tégias devem utilizar para garantir a manuten-


res passaram a querer observar o insucesso,


ção de algumas ações já conquistadas, assim


o fracasso de outra forma. Uma escola, por


como também discutir e refletir sobre o fato

exemplo, dentro do projeto Comunidade de


de que alcançar um resultado positivo inicial


leitores, planejou como uma etapa as leitu-


não significa que o projeto está concluído. Ou


ras, nas segundas séries, de obras de Mon-


seja, dentro de uma escola tudo precisa ser

teiro Lobato para, no final do projeto, fazer


revisto o tempo todo, porque novas idéias e


uma exposição do autor, de reescritas, ilus-


concepções surgem e é preciso estar em con-


trações e recontos, mas, durante o desenvol-


sonância com as reflexões externas para

vimento do trabalho, as professoras disse-


utilizá-las e até mesmo refutá-las, de acordo


ram, em uma das reuniões de equipe, que os


com os pressupostos do projeto pedagógico


alunos estavam detestando o autor e a reali-


adotado pela escola.

zação do projeto Comunidade de leitores



estava ficando inviável. A partir dessa infor-


mação dos professores, a diretora e a vice Conclusão



resolveram observar os momentos de leitu-


Estamos finalizando o projeto-piloto do PEQV


ra e descobriram que os professores não pre-


e podemos avaliar que, com todos os acertos e


paravam a leitura previamente, escolhiam

equívocos nos encaminhamentos da formação,


livros inadequados para a faixa etária, não


sabemos, hoje, que, se um programa de forma-


sabiam ler em voz alta, ou seja, as duas pre-


cisariam refazer o planejamento inicial, in- ção pretende criar uma metodologia de trabalho

cluindo nele um trabalho sistemático de lei- que discuta a formação de uma maneira mais pro-

funda, é necessário que inclua, em suas estraté-


tura com os professores. Aqui a aprendiza-


gem foi bastante grande, porque a escola saiu gias, ações que auxiliem a escola no aprimora-

do lamento, procurou avaliar o próprio tra- mento sistemático de seu projeto pedagógico real

balho e, a partir disso, buscar novos encami- e que essas escolas passem a valorizar a reflexão

nhamentos. contínua como parte de sua ação pedagógica.




SIMPÓSIO 17

LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO
Isabel Cristina Alves da Silva Frade

Priscila Monteiro

255
Leitura na alfabetização –




velhos e novos problemas






Isabel Cristina Alves da Silva Frade*



Ceale/UFMG






Resumo


ler? Quais são os velhos/novos problemas que



surgem no contexto atual?


Mediante análise de alguns movimentos de


Assim, mediante análise de alguns movimen-


pesquisa e de inovações pedagógicas dos últimos
tos de pesquisa e de inovações pedagógicas dos


anos e sua materialização na sala de aula, preten-

últimos anos e sua materialização na sala de aula,

de-se analisar o que se lê na alfabetização do pon- ○

pretende-se aqui analisar o que se lê na alfabeti-


to de vista de gêneros, que materiais são lidos, do
zação, do ponto de vista de gêneros, que materi-

ponto de vista dos suportes, onde são lidos, quais


ais são lidos, do ponto de vista dos suportes,


são as modalidades de leitura e quais são os leito-


onde são lidos, quais são as modalidades de lei-


res. Num contexto teórico em que se discutem o


letramento e novos letramentos e numa conjun- tura e quais são os leitores. Num contexto teóri-

co, em que se discutem o letramento e novos


tura de implantação de ciclos, pretende-se solu-


letramentos, numa conjuntura de implantação


cionar alguns problemas que permanecem no en-


sino da leitura e outros que surgem pela introdu- de políticas, como a de ciclos, pretende-se solu-

ção de novas práticas culturais de leitura e que cionar alguns problemas que permanecem no

constituem desafios a serem enfrentados pelos ensino da leitura e outros que surgem pela in-

professores alfabetizadores. trodução de novas práticas culturais de leitura,



constituindo desafios a serem enfrentados pe-



Problematizando o tema “leitura na alfabe- los professores alfabetizadores.



tização” para comunicação neste simpósio,


ocorre perguntar: o que há de novo sobre o


O que se lê na alfabetização?

tema “leitura na alfabetização”, nestes últimos



anos, que já não tenha sido explorado ou de- Partindo do ponto de vista de que a escrita

batido? Na tentativa de encontrar alguns pon- e a leitura são práticas sociais, das quais fazem

tos de reflexão – talvez de inquietações –, op-


parte as práticas escolares, constata-se que se


tei por fazer uma breve análise de como os mo- ampliou, sobremaneira, a entrada de textos na

vimentos de inovação pedagógica na alfabeti- escola. Nos últimos anos, pode-se afirmar que

zação têm tratado a leitura, uma vez que par- a abertura para os textos que circulam na so-

ticipo de movimentos de alfabetização e tam-


ciedade está presente, seja porque se pergun-


bém tenho feito pesquisas sobre inovações. ta aos alunos sobre os textos que circulam em

Além disso, os trabalhos de extensão possibi- seu ambiente e solicita-se que sejam trazidos

litam tomar conhecimento de dilemas dos pro- alguns para a sala de aula, seja porque os pro-

fessores em torno dos problemas de ensino e


fessores levam esses textos para a sala de aula,


aprendizagem da leitura. Como as escolas li- fazendo uso pedagógico deles. Assim, pode-se

dam com problemas de ensino da leitura? dizer que circulam na escola panfletos, folhe-

Como as práticas sociais de leitura vêm alte- tos publicitários, cartazes, folders de divulga-

rando as práticas escolares? Como as práticas


ção, revistas, jornais, livros de literatura, bu-


escolares de leitura reordenam os modos de las, entre outros.






* Doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do Ceale/FAE/UFMG.

256
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização

Como conseqüência, percebe-se uma am- turais vividas no bairro ou no espaço domésti-



pliação dos tipos de suporte, como jornal, li- co. Essa constatação levou a professora a criar



vro, cartaz, folheto, revista, embalagens, e dos um projeto de estudo, envolvendo outros alu-



gêneros que são lidos: textos narrativos nos de outra escola, que passaram a enviar


jornalísticos e literár ios, publicitár ios, embalagens para troca.



epistolares, informativos, instrucionais, entre Em um curso de formação de professores,



vários outros. Nesse conjunto de novos supor- listamos alguns tipos de textos existentes na


tes, permanece o livro didático, hoje estrate- zona rural e conseguimos encontrar muito 257



gicamente denominado “livro de alfabetiza- mais textos do que se imaginava circular na-



ção”, em contraponto a uma idéia de cartilha, quele ambiente: a Bíblia, folhetos religiosos



que se pretende combater simbolicamente, já utilizados nas missas ou em outras celebra-


que o problema não é o nome, mas o conteú- ções, calendários da Folhinha Mariana, instru-



do existente no suporte “livro didático” ou ções sobre uso de produtos agrícolas, embala-



mesmo o uso que se faz dele. gens de alimentos e de produtos usados na-



quele contexto, contas de água e luz, informa-


tivos dos movimentos rurais e de sindicatos,
Onde e como se lê e quem lê?


cartas, entre outros. Também nesse caso, cres-

Uma observação sobre os espaços de lei- ce a responsabilidade dos professores em fa-


tura revela sua concretização em espaços va-


zer dessa circulação um objeto de curiosidade


riados, mediante esforço dos professores para e investigação.



criar um “ambiente lingüístico/alfabetizador”. Nas regiões urbanas, vem se diversifican-



Esse ambiente comporta sala de aula, corre- do o trabalho com leitura mediante a visita a

dores, pátios escolares, bibliotecas, escritos do livrarias, bancas e a eventos como feiras de li-

bairro e da cidade, ou seja: onde quer que os vros, demonstrando que, para a compreensão

textos existam, também existem espaços de de determinados aspectos da leitura, também



leitura. Parece óbvio dizer que os espaços de contribui o conhecimento sobre as instituições

leitura acompanham a presença dos escritos envolvidas na fabricação, distribuição e divul-



na sociedade. Entretanto, não basta que exis- gação dos impressos e sobre determinadas so-

tam materiais escritos em diversos lugares, se ciabilidades criadas em torno dos livros, como

esses materiais não se tornam observáveis


a de falar sobre eles e a de saber que existem


como objeto de interesse e façam sentido para autores e ilustradores, entre outros. Essa pers-

os alunos. pectiva é reforçada por Chartier (1996), quan-



Nesse caso, faz diferença o trabalho do pro- do apresenta uma série de atividades de dis-

fessor: como esse profissional trabalha com a


cussão sobre o funcionamento do mundo da


tarefa de criar um motivo para que os apren- escrita no espaço urbano, doméstico e esco-

dizes olhem com outros olhos coisas (supor- lar. Uma parte das propostas de intervenção

tes/textos) aparentemente “naturais”, que fa- envolve a descoberta e a identificação de su-


zem parte do cotidiano da escola e da socie-


portes, a convivência com eles e a compreen-


dade, da zona urbana e mesmo da zona rural? são do modo como os textos circulam, como

O relato de uma professora sobre o desconhe- são armazenados e classificados, atividades



cimento do suporte “embalagem” por crianças que podem ser desenvolvidas paralelamente

de uma favela do inter ior de Minas é


ao trabalho de construção do sentido dos tex-


elucidativo dessa tarefa: as crianças não ti- tos e da decodificação. Essas são práticas que

nham acesso a embalagens porque seu contex- trabalham não só a leitura em si, mas também

to era “pobre” em estímulos ou porque nunca o que a antecede e o que pode prolongá-la.

tinham parado para observá-las? Uma pesqui-


Houve e há também uma crescente amplia-


sa nos locais de moradia evidenciou que essas ção das situações pelas quais a leitura ganha

embalagens chegavam às casas dos alunos, significado na própria escola. Josette Jolibert,

mas não eram evidenciadas nas práticas cul- autora que enfrenta a dimensão didática do

trabalho com leitura e escrita de forma mais ficcional, no imaginário, no nonsense, no



explícita e é, por isso, muito utilizada por pro- humor. São os livros de literatura, os qua-



fessores, apresenta, em seu livro Formando cri- drinhos, que têm o potencial de trabalhar


com representações, com sentimentos e


anças leitoras (1994: 31), um tipo de classifi-


cação para esses usos escolares, tais como os com a dimensão estética.



de ler: Aspecto interdisciplinar: material que pos-



• para responder à necessidade de viver com os sibilita o trabalho com diversos aspectos da


outros na sala de aula e na escola; formação e não apenas com a leitura.



• para se comunicar com o exterior; Produção coletiva: materiais produzidos



• para descobrir informações das quais neces- por professores, por alunos e por turmas,


sita; que passam a ser lidos, socializados e con-



• para fazer (brincar, construir, levar a termo sultados por outras turmas.


um projeto ou empreendimento);


Por motivos pedagógicos, mais do que


• para alimentar e estimular o imaginário;

lingüísticos ou de alfabetização, verifica-se,

• para documentar-se no quadro de uma pes- ○
nos últimos anos, uma certa tendência de uti-
quisa em andamento.

lização de materiais de leitura de uso mais prá-



tico e/ou informativo, na sala de aula. Isso


A introdução de novos usos escolares da


leitura também é decorrente de outros tipos pode contribuir para uma ampliação dos usos,

de preocupação, que extrapolam seus aspec- mas pode também fazer com que certos tex-

tos, antes mais presentes e valorizados na es-


tos específicos. Os professores têm se preocu-


cola (como as poesias, as narrativas), percam


pado em introduzir materiais que respondam


a alguns desafios inerentes às inovações peda- espaço. O fato de serem também utilizados

gógicas, com foco na interdisciplinaridade, em materiais produzidos no interior da escola co-


loca em dúvida se têm sido bem considerados


novas metodologias – como a de trabalho com


determinados aspectos editoriais que se con-


projetos –, em conteúdos próprios da con-


temporaneidade, respondendo a uma neces- figuram nos impressos e constituem elemen-



sidade de contextualização das aprendizagens. tos importantes para os sentidos e para sua

apreciação estética.

Com essas inovações, os materiais de leitura


Por outro ângulo, quando se consideram as


são reordenados no âmbito das necessidades


pedagógicas gerais. Algumas dessas necessida- práticas de leitura realizadas a partir de dife-

rentes suportes e gêneros, cabe perguntar: as


des também vão interferir nas práticas cultu-


leituras são as mesmas para todos? Com que


rais de leitura na escola. Essas preocupações


concepção de leitura se trabalha? Nesse aspec-


têm se baseado nos seguintes focos:


Funcionalidade: materiais de leitura que to, constata-se que a produção de sentidos na


leitura extrapola o próprio texto, uma vez que


apresentam valor funcional, com ênfase


não é necessário lê-los para ter acesso a deter-


nos aspectos práticos e em necessidades


pedagógicas e de leituras mais emergentes, minadas camadas de sentido. Quando os pro-



a partir da utilização de manuais de jogos fessores alfabetizadores introduzem diferentes


e de instruções para trabalhos, de listas, re- suportes nem sempre o foco a ser privilegiado

ceitas, cartazes, obras de referência etc. é o conteúdo textual. Muitas vezes, o uso pe-

Atualidade: materiais de leitura, como jor- dagógico é o de classificar materiais de leitu-



nais e revistas, que focalizem aspectos da ra, identificando sua materialidade, como ob-

jetos, seus usos sociais, suas semelhanças e di-


ordem do dia e que possam, ao mesmo


tempo, informar e manter a escola e os alu- ferenças talvez para antecipar, assim, o seu

nos em ligações mais estreitas com deter- conteúdo. Essa pode ser considerada uma nova

minados acontecimentos sociais.


forma de leitura, introduzida em sala de aula


de alfabetização.

Foco na ficção, no humor e no imaginário:


material de leitura que possibilita a saída E a leitura dos textos, propriamente dita,

do real e do emergente, com foco no como vem se dando? Uma primeira mudança

258
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização

nesse aspecto é a de que não se espera que as pidez e coordenação entre a recepção do texto



crianças saibam ler para que tenham acesso (às vezes fixo, às vezes em movimento) e da



aos conteúdos dos textos. Os professores as- imagem em movimento.



sumem, eles mesmos, o papel de leitores, me- Apesar da ampliação de usos e de supor-


diando o aspecto da decodificação para que os tes, novas linguagens devem suscitar, em pro-



alunos tenham acesso aos diferentes aspectos fessores e alunos, intervenções pedagógicas



da significação. Os textos também são lidos por específicas. É crescente, nos textos oferecidos


alunos que “já sabem ler” (da mesma turma ou à leitura, a introdução de apelos gráficos e vi- 259



de outras turmas, ou ciclos e séries), alteran- suais que alteram os movimentos dos olhos e



do papéis e posições de quem pode ler para o os sentidos do texto, assim como a presença



outro. de uma certa esquematização na apresentação


Verifica-se grande crescimento no uso da das informações. De forma especial, destaca-



modalidade oral e coletiva da leitura, em se um outro desafio que precisa tornar-se ob-



contrapartida a uma prática de leitura silencio- jeto de reflexões: a iconização e/ou a introdu-



sa e individual, priorizada em outras situações ção de imagens. Não se pode dizer, a partir


e momentos da história da escola, porque não dessa constatação, que a aprendizagem de ou-



se faz mais leitura oral para verificação de com- tros códigos não altere as formas de recepção.

petências, ou seja, para avaliar leitura, mas A imagem não possibilita apenas a entrada

como uma prática que visa a favorecer e de- plástica nos livros de leitura, sobretudo como

mocratizar o acesso a conteúdos e gêneros, um substitutivo para quem “ainda não sabe

logo nas primeiras oportunidades, sem que se ler”, mas constitui, junto com o texto, signifi-

estabeleça a velha lógica dos pré-requisitos – cados especiais para qualquer leitor.

no caso, a decodificação. Essa lógica de pré-



requisitos excluiu, por muito tempo, os alunos As necessidades



do acesso a textos plenos de sentidos e a usos


de decodificação

mais elaborados da leitura. Isso não quer di-


zer que a ênfase nas modalidades individual e e da sistematização:



silenciosa deixe de ser buscada e de ser um dos


o ler para aprender a ler


principais objetivos da leitura.



Verifica-se, então, que se ampliam os espa-


O que falta pesquisar ços de leitura, os tipos de suportes, os usos so-



ciais dos textos, assim como são ressignificadas


e tratar

as modalidades coletiva/individual, oral e si-



Nos últimos anos, vêm-se alterando as prá- lenciosa de leitura na escola, entre outros as-

ticas culturais de leitura e modos de ler, sina- pectos ainda não explorados.

lizando para novos desafios de letramento, No discurso teórico, é comum a idéia de



pouco enfrentados nas práticas de alfabetiza- que se aprende a ler lendo e se aprende a es-

ção. Magda Soares (1998: 47) considera


crever escrevendo. Entretanto, a afirmação de


letramento “estado ou condição de quem não que devemos ler “para valer” na escola e o re-

apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exer- forço da perspectiva de que os textos para ser

ce as práticas sociais que usam a escrita”. Se as lidos estão por todo lado, desde que saibamos

ações de cultivar e exercer práticas sociais de


procurá-los, resolvem os problemas do “ler


leitura são também vinculadas ao movimento para aprender a ler”. Estaríamos falando das

de transformação dos textos e das formas de mesmas coisas? Qual o sentido que os profes-

ler, novos desafios se colocam. Ler em telas de sores e as pesquisas vêm dando às necessida-

computadores ou de televisão, por exemplo,


des pedagógicas de ensinar a decodificação e


envolve outros movimentos de leitura. A lei- às necessidades de o leitor aceder a ela para se

tura de legendas de filmes, de games e de tornar cada vez mais autônomo em relação à

videoquê exige, entre outras habilidades, ra- leitura de outrem?



Alguns aspectos metodológicos e técnicos não havia recebido os livros. Para ela, o livro



envolvidos no ato de ler têm ficado esqueci- didático teria sido um dos primeiros livros aos



dos, em função do trabalho com determinados quais os alunos teriam acesso e de que teriam



aspectos da compreensão e do letramento. As- posse, sendo fundamental a oportunidade de


sim, precisamos fazer diversas perguntas: Qual recebê-lo.



o significado da decodificação após certas No entanto, ao avaliar o livro a que sua tur-



apropriações construtivistas que se negaram a ma não tivera acesso, apareceram outros ques-


enfrentar aspectos metodológicos desse apren- tionamentos. Para essa professora de 1ª série,



dizado? Por que a necessidade de decodifi- o livro didático utilizado pela outra professo-



cação e de abordagem didática dessa faceta do ra – que “foi mais rápida e pegou os livros” – é



ato de ler não tem sido claramente tratada nas melhor que o do ano anterior porque é inte-


discussões teóricas e em pesquisas acadêmi- grado e interdisciplinar, mas não atende à cli-



cas, no momento atual? Talvez, se estivéssemos entela, pois se destina a crianças que já sabem



enfrentando esse tipo de demanda do proces- ler textos longos. É bom, mas não dá para se-


so de alfabetização e, conseqüentemente, dos ○
gui-lo. É usado para tirar algumas atividades e
professores, não estaríamos negando uma ne- mais para consulta. Segundo seu depoimento,

cessidade legítima e constitutiva do ato de en- “o livro didático não atende às necessidades

sinar e aprender a ler: a decodificação. Deve- dos alunos, apesar de ser bom. Para os alunos

ríamos, no momento atual, acrescentar mais daqui trabalharem nele, tem que ser para as

polêmicas às discussões entre métodos analí- séries subseqüentes”. Ela se utiliza de



ticos e sintéticos presentes, no Brasil, desde o parlendas e de músicas para alfabetizar, por-

final do século 19, e não negar a relevância que avalia que o livro didático que sua escola

desses processos de ensino para a construção recebeu não traz essa abordagem relativa a

de uma história da alfabetização e das práti- músicas. Complementa suas aulas com ativi-

cas pedagógicas. dades xerocopiadas de outros livros, literatu-



Deveríamos perguntar hoje: como garan- ra, jornal, revista, letras de macarrão, jogos,

tir o trabalho com a decodificação e com o sen- enfim, segundo ela, “todas as bugigangas que

tido, sem cair na ausência de sentido do tra- um professor tem que produzir”. Além disso,

balho escolar, respeitando os resultados de essa professora baseia suas atividades numa

novas pesquisas sobre o aprendizado da leitu- apostila elaborada de acordo com um método

ra? Ao analisar as práticas de muitos professo- musical para alfabetização, por uma professo-

res, mesmo daqueles bem informados sobre ra de Belo Horizonte, há mais de vinte anos.

novas descobertas em alfabetização, encontra- É interessante observar pelo menos duas



mos necessidades mais perenes, que não po- questões a respeito desse episódio. A primeira

dem ser compreendidas como contra-sensos, é o reconhecimento, pela professora, de algu-



mas como forma de conhecimento pedagógi- mas qualidades do livro que viera para a outra

co que pode nos auxiliar na compreensão dos turma. Essa professora é uma profissional que

processos de ensino. Em recente pesquisa so- sabe avaliar a qualidade de um livro de leitura

bre escolha de livros de alfabetização, em duas (ou de alfabetização?). No entanto, quando se



escolas públicas, apareceram dados que de- trata de ensinar a ler/decodificar, precisa va-

monstram alguns desses “paradoxos” de leitu- ler-se de determinada metodologia e de avali-



ra na alfabetização. ar “negativamente” livros que vêm com textos


Uma escola de periferia de uma capital não longos para crianças que ainda não domina-

tinha recebido livros de alfabetização para to- ram a decodificação. Triste também é consta-

das as turmas, em 2001. Constatou-se, então, tar que, apesar de uma séria política de livro

que nem mesmo o objeto livro didático fazia didático no Brasil, ainda existem alunos sem

parte do processo de alfabetização para deter- livro.



minados alunos. O interessante é que a pro- Essa escola não adota postura muito alter-

fessora sentia-se indignada, porque sua turma nativa para a alfabetização e algumas profes-

260
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização

soras chegaram a entender, mediante a análi- so diferenciado. Até 1987, já havia experimen-



se de alguns livros enviados por editoras, que tado diferentes formas de ensinar a leitura,



não havia mais cartilhas no PNLD, desmo- com diversos processos, entre eles o global, o



bilizando-se para a escolha, que ficou a cargo musical, o silábico e os ecléticos. Passou tam-


de alguém que, na falta de “cartilha”, escolheu bém por um processo de inovação com um



um livro de alfabetização para 2001. Antes al- rompimento da idéia de métodos rígidos para



gum livro do que nenhum. ensinar a leitura. As professoras mantêm de-


Seriam essas professoras conservadoras? O terminadas posições, quando destacam a im- 261



que procuram num livro de alfabetização para portância de respeitar o processo de constru-



seus alunos? ção do aluno e a necessidade de que as tare-



Uma segunda escola pesquisada, que já ha- fas escolares tenham significado. Não dizem


via vivenciado significativas inovações nos que seus alunos têm problemas de compre-



anos 1980, optando naquela época por banir a ensão dos textos, quando as professoras são



cartilha em favor de textos de uso social, en- as leitoras. Em contrapartida, deparam-se



contra-se, em 2001, em outro processo. Apa- com a necessidade de ensinar a decodificação


receu, no discurso das professoras, o mesmo para muitos alunos, o que significa questio-



argumento da necessidade de textos de leitu- nar a idéia de que “se aprende a ler lendo”. Ar-

ra mais curtos. Explicitando melhor os senti- gumentam justamente sobre a necessidade de



dos de tais comentários, algumas professoras que os alunos criem coragem de ler, tenham

alegaram que, se é para o professor ler para os disponibilidade para ler e não se cansem com

alunos, é melhor que peguem bons livros de o esforço.



literatura ou que os textos venham como ane- As alfabetizadoras precisam negociar pon-

xos no livro, para que os alunos não tenham tos de convergência entre o sentido e a

que enfrentá-los sozinhos, no começo. Uma decodificação. Poderíamos dizer, então, que se

delas mencionou que alguns de seus alunos lhe aprende a ler lendo, mas isso não é válido

disseram: “Adoro quando você lê, porque as- igualmente para todos?

sim eu entendo” (referindo-se às dificuldades Anne-Marie Chartier et al. (1996) dedicam,



de enfrentamento de um texto longo, que faz em seu livro, uma parte para atividades mais

os alunos perderem o sentido devido à dificul- amplas com os textos, incluindo-se aí as



dade de decodificar). sociabilidades inerentes ao mundo da leitura.


Destaco, a seguir, alguns argumentos em Apresentam também formas de leitura que



torno do tamanho dos textos: “Os textos têm buscam destacar mais o sentido que a

que ser pequenos senão os alunos se cansam, decodificação. No entanto, não negam as

vão apenas até a metade”; “Os textos menores dificuldades que os aprendizes possam

funcionam melhor, todos lêem e dão conta”; apresentar no esforço de juntar decodificação

“Textos menores, porque textos grandes abor- e compreensão. Exemplificam os problemas de



recem e queremos que os alunos iniciem len- compreensão, destacando que, enquanto os

do, porque é preciso que criem coragem de ler, aprendizes concentram-se na decodificação,

para que mantenham a disponibilidade de ler”. podem perder o sentido do conteúdo do texto

Foram destacados também os gêneros de ou mesmo esquecer o que leram antes. Leitura

um texto e evidenciou-se que alguns gêneros com compreensão envolve memorização, e



facilitam a leitura, como pequenas trovas, facilita-se a compreensão se a leitura é feita


parlendas e poesias, que agradam pelo ritmo, com maior rapidez e quando se podem

entonação e musicalidade. “Os alunos gostam antecipar conhecimentos em relação ao



e favorece a pontuação, que ajuda na compre- conteúdo e ao gênero textual.



ensão. No texto maior, o aluno, em período ini- A partir dessa breve argumentação teóri-

cial, passa de uma frase para outra, sem per- ca, poderíamos entender a preocupação das

ceber o significado.” professoras das duas escolas como legítima?



Nota-se, nessa segunda escola, um proces- Ou continuaríamos a enquadrar suas necessi-



dades pedagógicas e funcionais como Trata-se não apenas de ensinar determinados



conservadorismo no ensino da leitura para conteúdos, mas de fazer da escola um espaço



principiantes? de sentido, onde se estuda para conhecer e não



Os professores estariam indo na contramão para “passar de ano”, em que a convivência


das discussões teóricas, quando fazem esse com grupos da mesma idade é um critério tão



tipo de demanda ou consideração, ou estari- importante como o da aquisição de determi-



am demonstrando um conhecimento pedagó- nadas habilidades.


gico que precisa ser mais bem compreendido Recentemente as escolas vêm buscando



por nós, formadores e pesquisadores? inovações em suas metodologias, num senti-



Cabe ainda perguntar: o que fizemos nes- do mais amplo. Se era para romper com a ló-



tes últimos vinte anos para dialogar com as ne- gica transmissiva e de pré-requisitos, os alu-


cessidades metodológicas dos professores nos agora iriam para a frente e aprenderiam



alfabetizadores, em relação ao ensino da lei- o que fosse possível, em todos os sentidos.



tura? Ao tentar garantir o trabalho com senti- Assim, alguns problemas de aprendizagem,


do e funcionalidade, jogamos fora o bebê e a ○
entre eles o da leitura, que antes ficavam re-
água do banho? presados no universo de alguns professores –

sobretudo daqueles que sempre enfrentaram



Algumas políticas de diretamente o processo de aquisição inicial,



passaram a ser de todos. Alunos com proble-


organização da escola

mas de aquisição do código estão em todos



e a leitura: novos problemas os ciclos e a aposta de que “se aprende a ler



lendo” provou não funcionar para muitos de-


ou velhos dilemas?

les. O depoimento de uma coordenadora de



Na década de 1980, tivemos o embrião de escola pública evidencia claramente essa



uma nova forma de organizar a alfabetização, constatação: “Só agora é que a escola vem

com a introdução dos ciclos básicos em vários tomando conhecimento de que a alfabetiza-

estados, como Rio Grande do Sul (especial- ção dos alunos de outros ciclos não aconte-

mente no município de Porto Alegre), Rio de cerá naturalmente e que vai ser necessário

Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Essa deman- priorizar a alfabetização nessas salas”.

da vinha de professores inovadores, com seus Em recente curso de formação, uma pro-

questionamentos sobre os tempos de apren- fessora relatou-me que, trabalhando com o ci-

dizagem e a rigidez do sistema de ensino. clo intermediário e enfrentando problemas de



Quando reduzidos a meros discursos, os ciclos alfabetização de vários alunos de mais de 11



não foram implantados, de fato, em muitas anos de idade, teve uma idéia: usar com aque-

escolas. Quando levados a termo, com uma le grupo um pré-livro antigo, com pequenas

política de formação consistente, o saldo de historietas em seqüência narrativa. Destacava,



possibilidades dos ciclos para o ensino da lei- em seu trabalho, a decoração e o reconheci-

tura foi grande. Não basta criar estratégias par- mento do texto, assim como a garantia de

ticulares para resolução do problema de inclu- suspense para o “conto” a seguir. No momen-

são dos ciclos em cada classe ou estabeleci- to do relato, apareciam resultados inesperados,

mento, se também não se quebra a ossatura da com uma metodologia e conteúdos tão “anti-

escola no período da alfabetização inicial. gos”: muitos alunos passaram a reconhecer e


Anos depois, precisamente em meados da a ler palavras e a se sentir incluídos, de fato.



década de 1990, a implantação de ciclos con- Outra professora relatou-me como vinha dan-

tínuos fez deslocar o problema da alfabetiza- do certo a abordagem com um método silábi-

ção para a questão do direito à permanência co, em situação individual, para alunos com

na escola. Assim, ampliaram-se as discussões dificuldade de aprendizagem. Não se trata de



pedagógicas para outras esferas, sendo uma desenterrar “fantasmas” ou de ressuscitar uma

das mais importantes a da formação humana. discussão restrita quanto aos métodos de en-

262
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização

sino da leitura, mas de começar a enfrentar Contudo, com o advento de tantas pesqui-



discussões negadas ou não priorizadas, nos sas sobre os processos de construção do senti-



últimos tempos. É preciso reconhecer que de- do na leitura, não é mais possível empregar



terminados aspectos técnicos do trabalho com apenas as estratégias de antes. Se alguns pro-


a aquisição do código podem ser reapro- fessores se reapropriam de estratégias ditas



priados no contexto de novos suportes, de no- tradicionais de forma menos sistemática e es-



vos conteúdos, temas e gêneros, enfim, num pontânea, mesmo negando-as, e obtêm suces-


contexto de novos modos de ler. so no ensino da leitura, é preciso que outros 263



as tomem sistematicamente, abordando ques-



tões do sistema sem se sentirem intimidados
Reflexões finais



e entendendo a especificidade de um conhe-


Alguns resultados de hoje nos obrigam a cimento pedagógico para ensinar leitura para



uma reflexão. Os alunos de muitas escolas ino- “iniciantes”, seja com crianças, com adolescen-



vadoras presenciam atos de leitura, têm aces- tes ou com adultos.


so a vários gêneros, com níveis de complexi-


Pode-se interpretar, mediante texto de


dade compatíveis com seus interesses e pro- Magda Soares (1990), que as propostas socio-



cessos cognitivos, mas falta ainda para muitos interacionistas não são incompatíveis com

a autonomia de leitura. Os resultados para a condutas metodológicas específicas para alfa-


auto-estima não são os esperados. Os alunos


betizar. Afinal, o conceito de letramento com-


sabem que não sabem ler, apesar de toda a porta o conceito de alfabetização, também

valorização em outros aspectos. Também os definido pela mesma autora (1998: 47) como

professores que trabalham em ciclos posterio- “ação de ensinar/aprender a ler e a escrever”.


res sabem que não sabem alfabetizar. Ou seja,



há também um conhecimento metodológico



sobre o ensino da leitura, entre eles o da


Bibliografia

decodificação, que precisa ser enfrentado com


e por quem entende de alfabetização. Os ma- CHARTIER, Anne-Marie et al . Ler e escrever: entrando no

teriais e conteúdos temáticos podem ser apro- mundo da escrita. Porto Alegre: Artmed, 1996.

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores, autores e


priados a diversas idades de formação, mas


bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII.


algumas condutas metodológicas de sistema-

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994.


tização precisam ser recuperadas, sem radica-


FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Mudança e resis-


lismos. tência à mudança na escola pública: análise de uma



A história da utilização dos métodos de al- experiência de alfabetização “construtivista”. 1993.


fabetização no Brasil, desde o final do século Tese (Mestrado). Faculdade de Educação, Universida-

19, demonstra-nos que a pretensão do novo/ de Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

JOLIBERT, Josette et al. Formando crianças leitoras . Por-


moderno contra o tradicional marca diferen-


to Alegre: Artmed, 1994.


ças nos campos teórico e prático e intenta eli- MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfa-

minar, a cada disputa, um tipo de conhecimen-


betização (São Paulo, 1876/1994). São Paulo: Unesp/


to pedagógico anterior, muitas vezes pertinen-


Comped, 2000.

te para determinadas situações. No entanto, SOARES, Magda. Alfabetização: em busca de um méto-



percebe-se até hoje, no plano prático, a busca do? Educação em Revista, n. 12, p. 44-50, dez. 1990.

. Letramento: um tema em três gêneros. Belo


pela conservação de saberes que funcionam

Horizonte: Autêntica, 1998.


pedagogicamente.












Leitura na alfabetização






Priscila Monteiro



Programa Crer para Ver/Fundação Abrinq/São Paulo







Resumo





Não podemos falar de leitura na alfabetização entre a leitura do mundo e a leitura da palavra. É


sem nos remetermos à importância da leitura de possibilitar que uma seja a continuidade da outra,



mundo que cada um de nós tem, que se encontra permitindo, assim, que a leitura da palavra seja a



encharcada do nosso contexto sociocultural, mar- leitura da “palavramundo”.


cando nosso corpo e revelando, assim, a forma Outro aspecto importante da leitura é o apren-

como aprendemos e apreendemos o mundo. ○

dizado daquele que se exercita como leitor, a dialo-


É na relação dialética entre a leitura de mundo e a

gar com o texto. É por meio do exercício desse diálo-


leitura da palavra que construo e reconstruo significa- go que se descobre a inter-relação existente entre

dos. É na gostosura das brincadeiras e dos encontros texto e contexto. Relação essa que, quando negada,

marcados entre esses dois tipos de “leituras” que me leva-nos a uma leitura não-crítica. Porém, quando

“experiencio” no aprendizado de ler a palavra escrita. reconhecida, possibilita o aprendizado de tecer per-

Isso porque: o que é ler, senão construir signi- guntas sobre o que se lê. É muito mais interessante

ficados? aprender a fazer perguntas sobre o texto lido do que



Se acreditamos que leitura é construção de sig- responder às perguntas do professor. Não é a habili-

nificados, o desafio que temos, então, em sala de tação à leitura que torna o aluno um leitor crítico; é

aula, é o de ensinar a ler sem realizar a dicotomia necessário o intercâmbio de idéias e de significados.





O que é o Crer para Ver regionais e encontros nacionais.



Anualmente o Programa Crer para Ver rea-


O Programa Crer para Ver é uma iniciativa


liza um seminário de divulgação das experiên-


da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança


cias apoiadas e de prestação de contas à socie-

e da Natura Cosméticos. Essa parceria foi cri-


dade e elabora publicações impressas e

ada em 1995, com a missão de contribuir para


audiovisuais como forma de sistematização dos


a melhoria da qualidade do ensino público no


projetos e estímulo da comunicação entre eles.


Brasil, por meio da participação da sociedade


Números. 1 Desde 1995, são 142 os proje-

civil e do diálogo com o poder público.


tos apoiados, beneficiando 770 mil crianças,

Os recursos arrecadados voluntariamente


3.500 escolas em 21 estados (não temos proje-


pelas consultoras Natura são destinados ao


to em Sergipe, Maranhão, Roraima, Piauí, Dis-


apoio financeiro e pedagógico de projetos que,


trito Federal e Rio Grande do Norte).

vindos da comunidade, contribuam para a me-



lhoria da escola pública brasileira e possam ser


O protagonismo da comunidade

referência para a elaboração de políticas pú-


escolar

blicas em educação.

O acompanhamento pedagógico se dá por


O Programa Crer para Ver acredita que a so-


meio da leitura de relatórios, troca de e-mails lução para os problemas de cada escola vem da

ou telefonemas, visitas aos projetos, reuniões própria comunidade escolar. A comunidade es-





1
Números referentes a 18 de outubro de 2001, quando foi ministrada a palestra.

264
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização

colar precisa se organizar para pensar nas suas Ler não é decifrar. Ler é construir signifi-



necessidades e possíveis soluções para elas. cados. Não é a habilitação à leitura que trans-



Por isso, os projetos apoiados pelo Crer forma uma pessoa num leitor crítico. É neces-



para Ver, espalhados por todo o Brasil, dão um sário o intercâmbio de idéias e de significados.


panorama da escola pública brasileira. A leitura supõe um processo ativo de cons-



De acordo com essa característica, o Pro- trução de significados, um processo comple-



grama Crer para Ver tem como objetivos: ofe- xo de coordenação de informações de distin-


recer à sociedade oportunidades concretas de 265


tas naturezas, de reorganizações e ressig-


participação em ações que levem à sua pró- nificações de saberes em jogo, em que o tex-



pria transformação, contribuindo para uma to, o leitor e o contexto contribuem para a



escola de qualidade; apoiar a iniciativa e a compreensão.


criatividade da comunidade escolar, assim É por meio desse diálogo que se descobre



como sua capacidade de diagnosticar os pró- a inter-relação existente entre texto e contex-



prios problemas e apontar, ela mesma, as so- to. Relação esta, que, negada, nos leva a uma



luções; financiar e apoiar tecnicamente pro- leitura não-crítica. Porém, quando reconhe-


jetos que contribuam para melhorar as rela- cida, possibilita o aprendizado de tecer per-


ções de aprendizagem na Educação Infantil e guntas sobre o que se lê. É muito mais inte-

no Ensino Fundamental das escolas da rede ressante aprender a fazer perguntas sobre o

pública, que sejam referências positivas para texto lido do que responder às perguntas do

a criação de políticas educacionais de boa


professor. Fazer perguntas quer dizer signifi-


qualidade; sistematizar, avaliar e divulgar ex- car o que se lê – no que este texto me toca,

periências educacionais bem-sucedidas. por que eu gosto ou não gosto dele, ao que

É importante ressaltar que a metodologia


ele me remete, por que eu quero compartilhá-


de cada projeto não é imposta pelo Progra-


lo com os outros –, pois a mágica da leitura


ma Crer para Ver, mas discutida com cada não está no livro nem no leitor. Está justa-

proponente. mente na significação, no diálogo único que



cada um estabelece com o livro.


A leitura nos projetos


No momento em que um leitor pega um


livro, traz vida a ele pois estabelece seus pró-


apoiados pelo Crer para Ver


prios sentidos.

A escola tem a responsabilidade social de A autonomia para escolher o que se quer



ensinar significativamente os objetos de co- ler, a possibilidade de identificação com o que


se lê, passa, necessariamente, pela diversida-


nhecimento. É sua responsabilidade ensinar


a ler e a escrever, assegurando uma ampla de e riqueza de um acervo de livros.



gama de textos e de situações permanentes de Mas ler o quê? A maioria de nossas esco-

leitura para que as crianças tenham a opor- las só tem acesso a livros didáticos. O livro di-

tunidade de se transformar em leitores críti- dático pede respostas fechadas, exclui a inter-

cos de nossa cultura. pretação e, nesse sentido, exila o leitor.



Um dos grandes problemas de nosso país Porém tampouco basta prover as escolas

é garantir o letramento para todos os cida- de acervos de livros; é necessário que os pro-

dãos. Muitas crianças saem da escola alfabe- fessores saibam trabalhar com eles.

tizadas de forma precária ou não-alfabetiza- A identificação com a leitura passa pela



das. A impossibilidade de ler ou ler precaria- sensibilidade de cada um; portanto, para tra-

mente aprisiona e confina. Nega-se a essas balhar com leitura na escola, sem impor, mas

crianças a ampliação dos limites, a possibili- propondo, é necessário que o professor tam-

dade de conhecerem novas realidades, do in- bém se identifique com a leitura. Por ser um

tercâmbio de idéias e de significados, de es- processo de identificação pessoal, não se en-



tabelecerem novos sentidos para a vida. sina a gostar de ler.




Projetos apoiados 2 História do mundo




Vou escrever sobre a história do mundo no
Selecionamos alguns projetos apoiados pelo


meu pensamento quando eu era menino.


Programa Crer para Ver para exemplificar o


O mundo que eu pensava era que nem tocaia.


tema em questão:


A Terra remendava com o céu.
• Lazer e Recreação Infantil: Círculo de Pais e


O Sol, eu pensava que eram muitos, passan-


Mestres da Escola Estadual de 1º e 2º Graus


do dias e dias. A noite, eu pensava que era que


Modelo, Ijuí/RS. A introdução na oficina de


nem fumaça, porque quando o Sol ia embora a
leitura e a recuperação da pracinha infantil


noite vinha cobrir o mundo. O céu eu pensava


da escola estimulam a descoberta e a apren-


que era que nem ferro. Que nunca acaba.
dizagem infantis.


A chuva eu pensava que era alguma pessoa



• Capacitação dos Professores Leigos para que mora no céu e derramava água.


Alfabetização do Projeto Seringueiro: Cen-


A água eu pensava que era alguns bichos


tro dos Trabalhadores da Amazônia, Rio mijando, em cima do rio. Bichos: queixada, vea-

Branco/AC. Na Amazônia, as lendas, casos


do, anta.
e histórias dos seringais viram livros a par-

O trovão eu pensava que era alguns bichos


tir dos relatos de professores. grandes estourando em cima do céu.



• Aprender a Ler Lendo: Associação de Pais e O homem, eu pensava que só nós mesmos

vivíamos, só nós o povo Kaxinawa.


Mestres da Escola Municipal “Bairro Planal-


to”, Pato Branco/PR. Biblioteca circulante A língua eu pensava que todo mundo só fa-

leva livros às escolas, introduzindo crianças lava a língua kaxinawa.


Um dia eu vi um branco chegando na nossa


no mundo mágico da leitura.


casa falando diferente, mas pensei que eu che-


• Oficinas de Leitura: Aprendendo a Gostar de


gasse na casa dele ele ia falar kaxinawa.


Ler: Centro de Cultura Luiz Freire, Olinda/

Um dia fui viajar com meu pai para ver onde


PE. A partir da literatura infanto-juvenil, pro-


estava a terra remendando com o céu. Fomos


fessores e alunos estão debatendo temas so-


viajando e, no segundo dia de viagem, perguntei


ciais e pedagógicos em Pernambuco.

para meu pai onde a Terra remendava com o céu.



Meu pai disse que não está remendando, não.


Compartilhando significados

Que o mundo é muito grande e não tem fim. Hoje


em dia eu entendo isso mais ou menos. É estu-



Por fim, gostaria de compartilhar com vocês dando Geografia que entendemos sobre a Terra,

uma história do professor Noberto Sales Tene sobre seu movimento



Kaxinawa (projeto Uma Experiência de Autoria



dos Índios do Acre – Comissão Pró-Índio do Acre): Norberto Sales Tene Kaxinawa


























2
Para saber mais sobre os projetos apoiados, consulte o site do Programa – <www.fundabrinq.org.br/crerparaver>

SIMPÓSIO 18

LETRAMENTO
Vera Masagão Ribeiro

Rosaura Soligo

267
O conceito de letramento e




suas implicações pedagógicas






Vera Masagão Ribeiro



Ação Educativa/São Paulo






Resumo




é a de Jack Goody, antropólogo americano, que


A exposição tem como objetivo geral discu- elaborou uma teoria segundo a qual a escrita



tir o conceito de letramento e suas implicações seria um elemento-chave para diferenciar as



pedagógicas. Para isso, discute-se, em primeiro sociedades ditas primitivas ou tradicionais das
lugar, o surgimento do conceito de letramento, ○


sociedades modernas ou históricas (Goody e
evidenciando a natureza interdisciplinar do cam- Watt, 1968). Argumentava esse autor que o re-

po teórico em que é desenvolvido. Nesse campo,


gistro do legado cultural por meio da escrita

o letramento se configura como um fenômeno


permitiu que as sociedades desenvolvessem


cultural complexo, com diversas implicações psi-


sua consciência histórica, a autoconsciência,

cológicas e sociais. Em segundo lugar, defende-


o pensamento crítico e científico, além da


se que a apropriação desse conceito pelo campo


autonomização das instituições.


pedagógico encerra grandes potencialidades, à


medida que favorece o cotejo entre práticas es- Um autor mais conhecido entre nós, brasi-

leiros, que também assumiu essa perspectiva


colares e práticas socioculturais, provocando o


desenvolvimento curricular no sentido de con- no âmbito da Psicologia, foi Vygotsky. Com



ferir maior relevância às aprendizagens escola- base em estudos realizados por Luria com

res. Defende-se, por último, a posição de que o camponeses analfabetos, esse autor postulou

conceito de letramento pode ser o eixo condutor que a aquisição da escrita promovia o desen-

do desenvolvimento curricular de toda a Educa- volvimento psicológico dos indivíduos, espe-



ção Básica e que, portanto, as problemáticas nele cialmente no que se refere ao raciocínio lógi-

envolvidas não dizem respeito apenas a alfabeti-


co-científico (Vygotsky e Luria, 1993). Influen-


zadores e professores de Português.


ciados pelo materialismo dialético, tanto

Vygotsky quanto Luria reconheciam também



O conceito de letramento foi desenvolvi- a coletivização do trabalho, no contexto da re-



do num campo teórico para o qual contribuí- volução soviética, como fator de desenvolvi-

ram diversas disciplinas das ciências huma- mento cognitivo. Mesmo assim, não deixaram

nas: a Sociologia, a História, a Antropologia, de conferir um papel crucial à escolarização e



a Psicologia, a Lingüística e os Estudos Lite- à aquisição da escrita, o que se coaduna com



rários. Mais recentemente, no Brasil, vem sen- sua teoria sobre o papel dos instrumentos sim-

do também apropriado pelo campo pedagó- bólicos no desenvolvimento da psique huma-



gico, no qual ganha novas conotações, passan- na. No âmbito dos estudos da linguagem, não

do a ser referência principalmente para a re- faltaram também estudos que trataram de de-

flexão sobre práticas de alfabetização e de finir as características da linguagem escrita em


ensino de língua. contraposição à linguagem oral, agregando ar-



A tese central que animou esse campo teó- gumentos para os que postulavam o poder do

rico na década de 1960 foi a de que a dissemi- registro escrito de moldar o pensamento e a

nação da linguagem escrita na sociedade e sua


comunicação (Ong, 1993).


aquisição por parte dos indivíduos tinham um Esse tipo de otimismo em relação ao valor

impacto crucial no desenvolvimento social e da escrita impulsionou diversas campanhas de



psicológico. Uma posição clássica nessa linha alfabetização de adultos em todo o mundo e

268
SIMPÓSIO 18
Letramento

sempre esteve presente nos discursos em prol oralidade e escrita e um crescente interesse



da universalização da educação elementar. En- pelo tema dos gêneros textuais. O conceito de



tretanto, não tardaram a surgir questionamen- gênero aparece como mais apropriado para a



tos a essa posição, baseados em estudos his- análise das diferentes práticas sociais nas quais


tóricos, antropológicos, psicológicos e a linguagem escrita participa, implicando mo-



lingüísticos mais rigorosos. Demonstrou-se, dos específicos de se posicionar na situação



por exemplo, com base em análises históricas discursiva. Evidencia-se, por exemplo, que cer-


de dados estatísticos, que as relações entre ní- tos gêneros orais, tais como essa exposição que 269



veis de alfabetização e desenvolvimento eco- faço agora, têm muitos elementos em comum



nômico ou decréscimo de taxas de natalidade com o gênero ensaístico escrito, enquanto uma



ou criminalidade, para citar alguns exemplos carta pessoal guarda muitas das característi-


de indicadores sociais, não eram nada linea- cas de uma conversa entre amigos.



res e dependiam sempre de outros fatores so- David Olson (1997) sintetiza bastante bem



ciais (Graff, 1994). No campo da Psicologia, essa mudança de perspectiva verificada nos es-



Scribner e Cole (1981) demostraram que o tipo tudos sobre o letramento, expressando a posi-


de habilidade cognitiva que até então se atri- ção de que não importa tanto o que a escrita



buíra ao aprendizado da escrita era, de fato, faz com as pessoas, mas, sim, o que as pessoas

resultado da escolarização de tipo ocidental. fazem com a escrita.



O inglês Brian Street (1993) elaborou uma das Mas que implicações esse desenvolvimen-

mais contundentes críticas a essa visão de to teórico em torno do conceito de letramento



letramento, segundo a qual a escrita encerra- pode ter para as práticas pedagógicas? Antes

ria em si o poder de transformar as pessoas e de tentar responder diretamente a essa per-


as sociedades. Ele denominou essa perspecti- gunta, vale a pena fazer uma retomada sinté-

va sobre o letramento de modelo autônomo e, tica das múltiplas dimensões que o conceito

em contraposição, propôs o modelo ideológi- abarca. Para isso, é útil adotarmos a análise

co, que compreende o letramento como fenô- proposta por Magda Soares (1998), que distin-

meno cultural complexo, cujos efeitos estão gue basicamente duas dimensões do

relacionados aos contextos sociais em que se letramento: a individual e a social. A dimen-



realiza. são individual diz respeito à posse individual



Desse modelo emerge o interesse pela di- de capacidades relacionadas à leitura e à es-

versidade das práticas culturais relacionadas crita, que incluem não só a habilidade de

à escrita: passa-se então a falar em “letra- decodificação de palavras, mas um amplo con-

mentos”. Além de Scribner, Cole e de Street, junto de habilidades de compreensão e inter-



que estudaram o letramento em sociedades pretação, como, por exemplo, estabelecer re-

tradicionais, Shirley Heath (1996) realizou pes- lações entre idéias, fazer inferências, reconhe-

quisas interessantes em segmentos da socie- cer linguagem figurada, combinar informação



dade americana, demonstrando que, ao lado textual com informação extratextual etc. Tais

das práticas escolares – normalmente tomadas habilidades podem ainda ser aplicadas a uma

como padrão único para a análise do fenôme- ampla gama de textos. A dimensão social do

no do letramento –, existiam outras modalida- letramento diz respeito às práticas sociais que

des de uso social da escrita, às quais estavam envolvem a escrita e a leitura em contextos

associadas outras habilidades cognitivas, ou- determinados. O que está em jogo, nesse âm-

tros modos de relação entre os participantes bito, são os objetivos práticos de quem utiliza

da interlocução e desses com o texto, outras a leitura e a escrita, as interações que se esta-

representações e atitudes por parte dos leito- belecem entre os participantes da situação

res e escritores. discursiva, as demandas que os contextos so-


Outro resultado das críticas ao modelo au- ciais colocam, as representações e os valores

tônomo de compreensão do letramento foi a associados à leitura e a escrita que um deter-



relativização da dicotomia rígida entre minado grupo cultural assume e dissemina.



As pesquisas na área vêm enfocando uma letramento, que não podiam contar com o



ou outra dessas dimensões e ainda, dentro de ambiente familiar para sua socialização na



uma delas, uma infinidade de aspectos espe- cultura da escrita.



cíficos. Quando se trata de estabelecer parâ- Ao evidenciarem que não é a aprendizagem


metros para a prática alfabetizadora, entre- da linguagem escrita em si que transforma as



tanto, é fundamental buscar as conexões en- pessoas, mas, sim, os usos que elas fazem des-



tre essas duas dimensões, pois o fazer peda- se instrumento, os estudos sobre o letramento


gógico consiste exatamente na orientação sis- abrem novas perspectivas para a reflexão crí-



temática do desenvolvimento de indivíduos tica sobre o papel da escola e também para o



no sentido de sua inserção num contexto desenvolvimento de práticas pedagógicas que



sociocultural específico. No caso da educação respondam com mais eficiência às demandas


escolar própria das sociedades letradas, esse sociais relativas ao letramento. Esses estudos



projeto consiste prioritariamente na capaci- convidam a escola a refletir sobre os gêneros



tação dos indivíduos para transitar, com al- textuais que circulam no meio social, sobre os


gum nível de autonomia, nesse contexto ca- ○
diversos usos sociais da leitura e da escrita e
racterizado pelo uso intenso e diversificado também sobre as habilidades cognitivas, ati-

da linguagem escrita. tudes e valores neles implicados. Convidam,



Este é, sem dúvida, o aspecto crucial das ainda, a uma a análise das inter-relações entre

implicações pedagógicas do conceito de oralidade e escrita e entre o letramento e ou-


letramento: ele nos convida a refletir sobre o tras esferas da cultura.



grau de autonomia que as práticas escolares A preocupação de que a escola trabalhe com

têm podido promover por meio da alfabetiza- maior diversidade de gêneros textuais já apare-

ção inicial e, posteriormente, por meio do en- ce plasmada nas orientações curriculares e nos

sino das disciplinas curriculares. Tradicional- critérios de avaliação dos livros didáticos que se

mente, a educação escolar concentrou-se no implantaram recentemente em nosso país (MEC,



desenvolvimento de um conjunto delimitado 1997). Essa orientação é especialmente valiosa


de habilidades de leitura e escrita: na alfabeti- para alunos oriundos de ambientes familiares



zação inicial, o foco eram os mecanismos de pouco letrados, que podem encontrar na escola

codificação e decodificação de letras, sílabas oportunidade única de se familiarizarem com



e palavras. O professor de Português seguia suportes de escrita, tais como, por exemplo, re-

com o treino da ortografia, fluência da leitura vistas, jornais, sites de internet, livros outros além

em voz alta e, finalmente, compreensão e in- dos didáticos, com toda a diversidade de gêne-

terpretação de textos principalmente narrati- ros que neles figuram.



vos e literários. Os professores das demais dis- Com relação à diversidade de usos sociais

ciplinas, por sua vez, apesar de fazerem uso da escrita, às habilidades cognitivas e aos con-

intenso de textos didáticos para ensinar e ava- teúdos culturais a eles associados, há ainda um

liar os conteúdos, não focalizavam os proces- campo enorme de pesquisa e experimentação



sos de leitura propriamente ditos. a ser explorado pelos educadores. Em estudo


Esse tipo de prática escolar não produziu sobre o letramento realizado com a população

os resultados esperados em um grande núme- paulistana, identificamos quatro domínios



ro de alunos: eles não adquiriam o hábito da atitudinais relacionados ao uso da leitura e da



leitura, não se tornavam leitores e escritores escrita no cotidiano de pessoas jovens e adul-

autônomos, não conseguiam utilizar, com efi- tas: a expressão da subjetividade, o planeja-

ciência, a leitura como meio de aprender os mento e controle, a busca de informação e a



demais conteúdos escolares nem a escrita aprendizagem. O domínio da subjetividade diz



para demonstrar as aprendizagens realizadas. respeito à leitura e escrita de cartas, diários,


Essa crise do ensino da leitura ficou mais pa- livros religiosos ou de auto-ajuda, atividades

tente à medida que chegavam à escola alunos nas quais o que está em jogo é expressar a pró-

or iundos de famílias com baixo grau de pria experiência e evocar sentimentos ou fé.

270
SIMPÓSIO 18
Letramento

Trata-se de usos que mesmo pessoas com bai- e oralizar o texto com certa fluência, o aluno



xo grau de escolarização realizam em alguma está pronto para utilizar esse instrumento para



medida em seu cotidiano. Já a utilização da lin- aprender os conteúdos das ciências e encontrar



guagem escrita para planejar e controlar pro- informações em quaisquer tipos de texto. Ora,


cedimentos é a dominante no universo do tra- o estudo mencionado acima e outros que foca-



balho e das organizações sociais. Podem ser lizam a temática (Kleiman, 1989) mostram



tomados como exemplos desse domínio des- quantas habilidades cognitivas específicas e


de o ato de fazer uma lista de compras até es- disposições detêm aqueles que normalmente se 271



tratégias mais complexas de controle de pro- servem da escrita para aprender ou informar-



cessos coletivos, tais como a contabilidade de se, conservando o interesse por aprender e se



uma empresa, o plano de um curso etc. informar após o período da escolarização. É pre-


Esses são usos da escrita que muitas pes- ciso que todos os professores estejam consci-



soas fazem, lidando com textos de complexi- entes de que a capacidade de ler para buscar



dade variável, dependendo do grau de exigên- informação e aprender com autonomia é nor-



cia das atividades, da maior ou menor neces- malmente resultado de um investimento edu-


sidade de planejamento e possibilidade de cativo alongado, que pode durar toda a Educa-



controle das atividades pelo próprio indivíduo. ção Básica ou ainda a educação superior, quan-

Finalmente, a utilização da linguagem escrita do se requer um maior grau de aprofundamen-



para se informar, tanto para orientar a ação to e especialização.


imediata como para atualizar-se e formar opi- Uma proposta pedagógica que certamen-

nião sobre assuntos públicos, é prática restri- te abre um amplo leque de possibilidades de

ta a pessoas com níveis mais altos de escolari- aproximar as práticas escolares dos usos da

zação, assim como o ler para aprender, para e s c r i t a m a i s re l e v a n t e s s o c i a l m e n t e é a



adquirir novos corpos de conhecimento. Pu- metodologia dos projetos. Envolvidos numa

demos observar que esses usos da linguagem proposta dessa natureza, alunos e professo-

escrita exigem atitude específica do leitor di- res são incitados a estabelecer um projeto de

ante do texto: postura analítica, disponibilida- construção de conhecimento ou intervenção,



de para examiná-lo e retomá-lo na busca de definir produtos esperados e um plano para



informações e relações específicas, interesse chegar a eles. O livro Leitura e interdiscipli-



pelo cotejo objetivo entre as idéias expressas naridade, de Angela Kleiman e Silvia Morais

no texto e os conhecimentos prévios do leitor. (1999), ilustra o potencial dessa metodo-



Essa tipologia parece útil para analisarmos logia, focalizando especialmente a leitura de

até que ponto a escola oferece as oportunida- textos jornalísticos como base de exploração

des para as pessoas se desenvolverem em cada das relações entre as disciplinas, entre dife-

um desses domínios. Quais são as oportunida- rentes textos escolares e não-escolares que

des de expressão de subjetividade e, principal- devem compor o universo de um leitor au-



mente, quais são as oportunidades dadas aos tônomo e criativo, com maiores possibilida-

estudantes de planejar e controlar algo nos es- des de utilizar suas aprendizagens para além

paços escolares? Certamente, serão muito limi- dos muros da escola. As autoras destacam a

tadas se a aprendizagem dos conteúdos é pra- presença, nas revistas e jornais, de diversos

ticada, dominantemente, como uma atividade recursos comunicativos e fontes de informa-



repetitiva, controlada pelo livro didático ou pelo ção, que ampliam o universo de relações pos-

professor. Mesmo a leitura realizada para apren- síveis e dão lugar a experiências com muitos

der ou informar não é suficientemente tratada modos de ler e escrever.



do ponto de vista pedagógico, embora sejam Um último aspecto que os estudos sobre

essas duas funções da leitura as dominantes no o letramento destacam e que as práticas pe-

contexto escolar. Professores das diversas dis- dagógicas podem tratar de modo mais produ-

ciplinas quase sempre partem do princípio de tivo é o da relação entre a oralidade e a escri-

que, tendo aprendido a decodificar as palavras t a . Mu i t o s a l u n o s j ove n s e a d u l t o s, a o



reavaliarem a sua passagem pelo Ensino Fun- Bibliografia



damental, destacam ganhos relativos à capa-


BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secreta-


cidade de comunicação oral entre os princi-


ria de Educação Fundamental. Parâmetros Curricula-


pais benefícios que a escola lhes trouxe, por- res Nacionais. Brasília, DF, 1997. 10 v.


que, mesmo sem intervenção mais sistemáti-


GOODY, Jack; WATT, Ian. The consequences of literacy.


ca sobre o desenvolvimento da oralidade, a In: GOODY. Jack (Org). Literacy in tradicional societies .



escola promove ocasiões de fala em contex- Cambridge: Cambridge University, 1968.


tos públicos ou de trabalho coletivo, quase GRAFF, Harvey. Os labirintos da alfabetização: reflexões



sobre o passado e o presente da alfabetização. Porto
sempre permeados por referências a textos


Alegre: Artmed, 1994.


escritos, que certamente ampliam os recur-


HEATH, Shirley. Ways with words: language, life, and work


sos expressivos dos alunos. Esse desenvolvi- in communities and classrooms. Cambridge: Cambridge


mento da oralidade, por sua vez, apóia o


University, 1996.


aprendizado da leitura e da escrita, possibili- KLEIMAN, Ângela. Leitura: ensino e pesquisa . Campinas:



tando a partilha do trabalho de compreensão Pontes, 1989.

e interpretação da palavra escrita, principal- ○

KLEIMAN, Ângela; MORAES, Silvia. Leitura e interdisci-
plinaridade . Campinas: Mercado de Letras, 1999.
mente por meio do comentário oral.

LURIA, A. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos


Não circunscrito aos problemas da alfabe-


culturais e sociais. São Paulo: Ícone, 1990.


tização ou do ensino de línguas, portanto, o OLSON, David. O mundo no papel . São Paulo: Ática, 1997.

processo de letramento, ou seja, de apropria- ONG, W. Oralidad y escritura: tecnologías de la palabra.


ção da linguagem escrita como ferramenta de México: Fondo de Cultura Económica, 1993.

pensamento e comunicação, pode ser tomado RIBEIRO, Vera. Alfabetismo e atitudes . São Paulo/Campi-

nas: Ação Educativa/Papirus, 1999.


como o vetor principal do currículo de toda a


SCRIBNER, Silvia; COLE, Michael. The psychology of


Educação Básica. A leitura direcionada para a

literacy . Cambrigde: Harvard University Press, 1981.


exploração das relações intertextuais presta-se


SOARES, Magda. Letramento: como definir, como avaliar,


como base comum para o tratamento interdis- como medir. In: SOARES, Magda. Letramento: um tema

ciplinar dos temas, para o desenvolvimento de em três gêneros . Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

projetos de ensino e aprendizagem que favo-


STREET, Brian V. Alfabetización y cultura. Boletín Proyecto


reçam a formação dos alunos não só como lei- Principal de Educación en América Latina y el Caribe,

n. 32, p. 39-46, 1993.


tores e escritores autônomos, mas também

VYGOTSKY, L.; LURIA, A. Studies on the history of behavior:


como sujeitos criativos e aptos a formularem


ape, primitive and child. Hillsdale, Nova Jersey: Lawrence


e realizarem seus projetos de vida.

Erbaum Associates, 1993.

































272
SIMPÓSIO 18
Letramento

O direito de se alfabetizar na escola *





Rosaura Soligo



PROFA/MEC






Um pouco de história desuso a partir da difusão do método que, na


273


época, foi identificado como “misto” – nada


O modelo escolar de alfabetização1 nasceu


mais que nossa conhecida cartilha, baseada


há pouco mais de dois séculos, precisamente


em análise e síntese e estruturada a partir de


em 1789, na França, após a Revolução France- um silabário.


sa. A partir de então,


O segundo momento, cujo pico foi nos anos



1960, teve por centro geográfico os Estados


[...] crianças são transformadas em alunos,
Unidos. A discussão das idéias sobre alfabeti-



aprender a escrever se sobrepõe a aprender a
zação foi levada para dentro de um debate


ler, ler agora se aprende escrevendo – até esse


mais amplo, em torno da questão do fracasso

período, ler era uma aprendizagem distinta e


escolar. A luta contra a segregação dos negros,
anterior a escrever, compreendendo alguns
com a conseqüente batalha por sua integração

anos de instrução através do ensino individua-


nas escolas americanas, contribuiu para que


lizado. É, então, no jogo estabelecido pela Re-


volução entre a continuidade e a descontinui- se tornassem mais explícitas as dificuldades



dade do tempo, onde a ruptura vai sendo atro- escolares dessas minorias. Muito dinheiro foi

investido em pesquisas para tentar compreen-


pelada pela tradição, que a alfabetização se tor-


na o fundamento da escola básica e a leitura/ der o que havia de errado com as crianças que

escrita, aprendizagem escolar. (Barbosa, s. d.) 2 não aprendiam. Buscava-se no aluno a razão

de seu próprio fracasso.


Analisando a evolução da investigação e do São desse período as teorias que hoje cha-

debate em relação à alfabetização escolar no mamos “teorias do déficit”. Supunha-se que



século XX, é possível definir, em linhas gerais, a aprendizagem dependeria de pré-requisitos



três períodos. (cognitivos, psicológicos, perceptivo-moto-


O primeiro período corresponde, aproxi- res, lingüísticos…) e que certas crianças fra-

madamente, à primeira metade do século, cassavam por não disporem dessas habilida-

quando a discussão dava-se estritamente no des prévias. O fato de o fracasso concentrar-



terreno do ensino. Buscava-se o melhor “mé- se nas crianças das famílias mais pobres era

todo” para ensinar a ler, com base na suposi- explicado por uma suposta incapacidade de

ção de que a ocorrência de fracasso se relacio- as próprias famílias proporcionarem estímu-



nava com o uso de métodos inadequados. A los adequados.



discussão mais candente travou-se entre os Baterias de exercícios de estimulação fo-


defensores do método global e os do método ram criadas como “remédio” para o fracasso,

fonético. 3 No Brasil, essa discussão caiu em como se ele fosse uma doença. Essa aborda-





* Este texto é um fragmento do documento Apresentação do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, desenvolvido, em todo o

país, pelo Ministério da Educação, em parceria com Secretarias de Educação e Universidades, a partir de 2001.

1

Embora o termo “alfabetização” tenha diferentes sentidos, neste documento ele está usado com o significado de “processo de ensino e

aprendizagem do sistema alfabético de escrita”, ou seja, o processo de ensino e aprendizagem inicial de leitura e escrita.

2
A referência é apenas ao Ocidente: Europa e Américas do Norte e do Sul.

3
O método global ou analítico defendia que o melhor era oferecer ao aluno a totalidade, ou seja, palavras, frases ou pequenos textos, para que

ele fizesse uma análise e chegasse às partes, que são as sílabas e letras. O método fonético ou sintético, ao contrário, propunha que o aluno

aprendesse primeiro as letras ou sílabas e o som delas para depois chegar à palavra ou frase.

gem, que já se anunciava no teste ABC, de Lou- diferentes classes sociais. Portanto, já não se



renço Filho – um conjunto de atividades para pode mais ensinar como antes.



verificar e, principalmente, medir a “maturida-



de” que a ciência de então supunha necessária [...] as mudanças necessárias para enfrentar so-


à alfabetização bem sucedida –, teve muita in- bre bases novas a alfabetização inicial não se



fluência no Brasil. Nos anos 1970, foi largamen- resolvem com um novo método de ensino, nem



te difundida a idéia de que, no início da escola- com novos testes de prontidão, nem com novos


ridade, toda criança deveria passar pelos exer- materiais didáticos. É preciso mudar os pontos



por onde nós fazemos passar o eixo central das
cícios conhecidos como “prontidão” (do inglês,


nossas discussões. Temos uma imagem


readiness) para a alfabetização. Seria uma es-


empobrecida da língua escrita: é preciso


pécie de vacinação em massa. Mas a vacina, in-


reintroduzir, quando consideramos a alfabetiza-
felizmente, era inócua.


ção, a escrita como sistema de representação da


O terceiro período começa em meados dos


linguagem. Temos uma imagem empobrecida da


anos 1970, sendo marcado por uma mudança criança que aprende: a reduzimos a um par de


de paradigma. O desenvolvimento da investi- ○

olhos, um par de ouvidos, uma mão que pega


gação nessa área mudou radicalmente seu

um instrumento para marcar e um aparelho


enfoque, suas perguntas. Em lugar de procurar fonador que emite sons. Atrás disso há um su-

correlações que explicassem o déficit dos que jeito cognoscente, alguém que pensa, que cons-

não conseguiam aprender, começou-se a ten- trói interpretações, que age sobre o real para

tar compreender como aprendem os que con- fazê-lo seu. (Ferreiro e Teberosky, 1985)

seguem aprender a ler e a escrever sem dificul-



dade e, principalmente, o que pensam a respei-


A alfabetização

to da escrita os que ainda não se alfabetizaram.


e o fracasso escolar

Um trabalho de investigação que desenca-



deou intensas mudanças na maneira de os edu- Infelizmente, não é injusto afirmar que, ao

cadores brasileiros compreenderem a alfabeti- longo da história, a escola brasileira tem fracas-

zação foi o coordenado por Emilia Ferreiro e Ana


sado em sua tarefa de garantir o direito de to-


Teberosky (1985). A partir dessa investigação, foi


dos os alunos à alfabetização. Em um primeiro


necessário rever as concepções nas quais se momento, porque o acesso à escola não estava

apóia a alfabetização. Isso tem demandado uma assegurado a todos; depois, porque, mesmo

transformação radical nas práticas de ensino da


com a democratização do acesso, a escola não


leitura e da escrita no início da escolarização, ou


conseguiu – e ainda não consegue – ensinar efe-


seja, na didática da alfabetização. Já não é mais tivamente todos os alunos a ler e escrever, es-

possível conceber a escrita exclusivamente como pecialmente quando provêm de grupos sociais

um código de transcrição gráfica de sons, já não


não letrados.

é mais possível desconsiderar os saberes que as


Desde a época em que as estatísticas estão


crianças constroem antes de aprender formal- disponíveis, é possível constatar que aproxima-

mente a ler, já não é mais possível fechar os olhos damente metade das crianças que entra na 1ª

para as conseqüências provocadas pela diferen-


série do Ensino Fundamental é reprovada no


ça de oportunidades que marca as crianças de


final do ano, como indica a tabela abaixo.





Taxa de aprovação ao final da 1ª série do Ensino Fundamental




1956 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997* 1998*


41,8% 47% 46% 49% 51% 51% 51% 50% 53% 53% 58% 65% 68,7%

Fonte: IBGE – Inep. * Nos anos de 1997 e 1998 algumas secretarias de Educação passaram a adotar o sistema de ciclos, previsto na Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).




274
SIMPÓSIO 18
Letramento

O fato é que, há muito tempo, os índices de sobre os alunos que fracassam, bem como na



fracasso escolar na alfabetização são inaceitá- sua relação com eles: freqüentemente, essas



veis e as medidas tomadas no âmbito dos siste- representações expressam-se em falta de con-



mas públicos não têm contribuído para trans- fiança nas reais potencialidades que eles têm


formar esse quadro de forma significativa. A para as aprendizagens de um modo geral. Se é



tabela anterior parece indicar que é completa- verdade que esses alunos chegam à escola sem



mente falsa a crença de que “antigamente to- muita intimidade com os usos sociais da escri-


dos aprendiam na escola”. Desde 1956, com es- ta e com os textos escritos, também é verdade 275



tatísticas mais precisas a respeito dos índices que eles trazem um repertório de saberes que



de promoção e retenção na escola pública bra- as crianças e jovens de classe média e alta não



sileira, constata-se que os alunos reprovados possuem, saberes que não são valorizados e


(ou “retidos”, como se preferiu chamar anos nem validados do ponto de vista pedagógico.



depois) já representavam mais da metade do Todo aluno tem direito a uma educação escolar



total – e isso sem contar o grande número de que, pautada no princípio da eqüidade, garan-



crianças brasileiras que nem freqüentava a es- ta o conhecimento necessário para que desen-


cola. volva suas diferentes capacidades – uma edu-



A falta de explicações para as causas do fra- cação que não acentue as diferenças provocadas

casso da escola em alfabetizar todos os alunos pela desigualdade de oportunidades sociais e



fez com que essa responsabilidade, direta ou culturais, que não as tome, sob nenhum pretex-

indiretamente, fosse a eles atribuída (à sua su- to, como diferenças relacionadas às suas possi-

posta incapacidade de aprender e e/ou às suas bilidades de aprendizagem. Não se pode espe-

perversas condições de vida). Apesar de todas rar que os alunos iniciem a escolaridade saben-

as razões sociais e políticas para não se deposi- do coisas que nunca tiveram a chance de apren-

tar a responsabilidade pelo fracasso apenas no der: quando eles não sabem o que se espera, é

aluno, as teorias do déficit cognitivo e/ou da preciso ensiná-los.



“carência cultural” acabaram por consolidar a


crença de que a possibilidade de os indivíduos Por que é tão difícil



aprenderem teria direta relação com a sua con-


alfabetizar todos os alunos?

dição econômica, social e cultural.



Em oposição a uma concepção de escola A análise de quem são os alunos que a esco-

“conteudista”, ou seja, preocupada, acima de la não tem conseguido alfabetizar ao longo dos

tudo, com a transmissão de conteúdos escola- anos (em geral, 50%) indica que não se trata de

res, foi se configurando uma concepção – e vá- uma metade qualquer, aritmeticamente neutra:

rias experiências – de uma escola transforma- essa metade é formada, majoritariamente, pe-

dora, progressista. Mas, infelizmente, nem as- los mais pobres. E por que seria mais difícil al-

sim se conseguiu garantir a todos os alunos o fabetizar esses alunos?



direito de desenvolver diferentes capacidades Como se sabe, até vinte anos atrás, profes-

sores, especialistas e pesquisadores se empe-


na escola, o que, evidentemente, pressupõe


aprender a ler e a escrever. nhavam em tentar compreender o que havia de



Com isso, consolidou-se progressivamente errado com esses alunos, em descobrir por que

uma cultura escolar da repetência, da reprova- eles não aprendiam. A compreensão dos pro-

cessos pelos quais se aprende a ler e a escrever,


ção, que acabou por ser aceita como um fenô-


meno natural. O país foi se acostumando com possível somente a partir das últimas duas dé-

o fato de cerca de metade de suas crianças não cadas, foi fundamental para que se deixasse de

se alfabetizar ao término do primeiro ano de olhar para as crianças das classes populares

como se não pertencessem à raça humana. Sim,


escolaridade no Ensino Fundamental.


Essa cultura teve uma enorme influência no porque até então um dos raros consensos entre

universo de representações que os educadores os estudiosos brasileiros acerca dessa questão



foram construindo sobre o fracasso escolar e era: o que servia para ensinar as crianças de

classe média e alta não servia para as crianças Depois de uma longa trajetória de reflexão



pobres. Acreditava-se que os processos de a respeito dessas questões, finalmente é possí-



aprendizagem das diferentes classes sociais se- vel compreender a natureza da relação entre



riam decididamente diferentes, e isso explica- fala e escrita, desvendando o mistério que o


ria desempenhos tão díspares. funcionamento da escrita representa para to-



No entanto, a descrição psicogenética do dos os analfabetos, quando se alfabetizam, no



processo de alfabetização mostrou que o pro- sentido estrito da palavra.


cesso pelo qual se aprende a ler e escrever é o E por que, então, os alunos pobres custam



mesmo, em linhas gerais, para indivíduos de mais a conquistar a condição de alfabetizados,



diferentes classes sociais – inclusive, tanto para se nada deixam a desejar do ponto de vista da



crianças como para adultos. A aparente diferen- capacidade intelectual? O que têm a menos que


ça é conseqüência da diferença no repertório os demais? Em geral, esses alunos começam tar-



de conhecimentos prévios, que faz que os alu- diamente a pensar sobre a escrita e desenvol-



nos pobres cheguem à escola geralmente em vem procedimentos de análise desse objeto de


fase menos avançada do processo, o que lhes ○
conhecimento muito depois das crianças de
dificulta a assimilação de certas informações. classe média e alta.

Se antes se acreditava que o fundamental São as situações de uso da leitura e da es-



para alfabetizar os alunos era o treino de deter- crita e o valor que se dá a essas práticas sociais

minadas habilidades – memória, coordenação que configuram um ambiente alfabetizador, um


motora, discriminação visual e auditiva, noção contexto de letramento e um espaço de refle-



de lateralidade –, a recente pesquisa sobre a xão sobre como funcionam as coisas no mundo

aprendizagem da leitura e da escrita mostrou da escrita: os materiais em que se lê, as situa-


que a alfabetização (como tantas outras apren- ções em que se escreve e se lê, a forma como os

dizagens) é fruto de um processo de constru- adultos lêem e escrevem, a direção da escrita e



ção de hipóteses; que esse não é um conteúdo da leitura em nossa língua (da esquerda para a

simples – ao contrário, é extremamente com- direita), como se escrevem os nomes das pes-

plexo – e demanda procedimentos de análise soas queridas, quantas e quais letras se colocam

também complexos por parte de quem apren- para escrever, por que há mais letras do que

de; que, por trás da mão que escreve e do olho parece necessário nos textos escritos, o que está

que vê, existe um ser humano que pensa e, por escrito aqui e ali, que letra é essa, como se lê

isso, se alfabetiza. essa escrita, e assim por diante.



Hoje sabemos que, no processo de alfabeti- Enquanto as crianças de classe média e alta

zação, as crianças e adultos – independente- passam a primeira infância aprendendo coisas



mente da classe social a que pertencem e da desse tipo, em suas casas, com seus pais, tios e

proposta de ensino do professor – formulam avós, as crianças pobres estão aprendendo o



hipóteses muito curiosas, mas também muito que seria impensável a uma criança pequena de

lógicas. Progridem de idéias bastante primiti- classe média e alta: cozinhar para os irmãos

vas pautadas no desconhecimento da relação menores, dar banho sem derrubá-los, acordar

entre fala e escrita para idéias surpreendentes de madrugada para ir trabalhar na roça ou na

sobre como seria essa relação: alguns preocu- rua, vender objetos nos semáforos. As primei-

pados com a quantidade de letras, outros com ras ocupam seu tempo desenvolvendo proce-

a qualidade das letras, outros em conflito com dimentos que as farão se alfabetizar muito cedo;

a coordenação entre quantas e quais letras se as últimas, por sua vez, estão desenvolvendo

usam para escrever.4 procedimentos que permitem sua sobrevivên-






4
Quando ainda não tinha sido possível conhecer as razões de os alunos terem essas idéias e escritas estranhas, dizia-se que eles eram

portadores de “dificuldade de aprendizagem”. Os índices desses “distúrbios” chegavam a 30%, segundo os especialistas. Depois que se pôde

compreender o que acontecia com os alunos ainda não alfabetizados e que revelavam as suas hipóteses, esses percentuais caíram muitíssimo,

oscilando de 1% a 3%, segundo os mesmos especialistas (Cadernos Idéias, n. 2 e 19, FDE-SEE/SP, 1989 e 1993, respectivamente).

276
SIMPÓSIO 18
Letramento

cia como crianças pobres que são. O repertório construção conceitual, por ser de simples assi-



de saberes é outro, é outra a bagagem de vida, milação, depende da memorização de informa-



como se dizia há algum tempo. ções: nomes em geral (das letras, por exemplo),



Em outras palavras, as crianças pobres não informações e instruções simples (como, “em


aprendem a ler e a escrever aos seis ou sete anos português, escrevemos da esquerda para a di-



pela mesma razão que as outras não aprendem reita”), respostas a adivinhações, números de



a cozinhar, lavar, passar, cuidar da casa, carpir telefone, endereços.


o roçado, desviar-se dos carros na rua, porque O grande equívoco, no qual a concepção tra- 277



a vida exige delas coisas muito diferentes e lhes dicional de ensino e aprendizagem se apoiou



oferece oportunidades de aprendizagem mui- nas últimas décadas, consiste em acreditar que



to diferentes. os conteúdos escolares de modo geral são


Quando a escola não valoriza os saberes que aprendidos por memorização. Não são, hoje



os alunos pobres trazem, fruto de sua experi- sabemos.



ência anterior, faz que eles se sintam entrando Para aprender a ser solidário, a trabalhar em



em novo mundo, estranho e hostil. Por não po- grupo, a respeitar o outro, a preservar o meio


derem corresponder ao que os professores es- ambiente, a gostar de ler e escrever é preciso



peram deles e percebendo que frustram as ex- vivenciar situações em que essas ações repre-

pectativas da escola, é de se esperar que aca- sentam valores. Não adianta memorizar infor-

bem se sentindo incapazes. Respeitar e, de fato, mações, como a de que é preciso ser solidário,

considerar as diferenças, valorizar os saberes respeitar os outros, dar importância à leitura e



que os alunos possuem e criar um contexto es- à escrita. Isso pouco representa, pois a consci-

colar favorável à aprendizagem não são apenas ência de quais atitudes são necessárias e ade-

valores de natureza ética: são a base de um tra- quadas não garante que elas existam.

balho pedagógico comprometido com o suces- Para aprender a interpretar textos, redigir

so das aprendizagens de todos. textos e refletir sobre eles e sobre a escrita con-

vencional, não basta memorizar definições e


Uma cultura escolar centrada seqüências de passos a serem desenvolvidos. É



preciso exercitar essas atividades com freqüên-


no direito de aprender

cia para chegar a realizá-las com habilidade e



Nas duas últimas décadas, a pesquisa a res- desenvoltura. Procedimentos – quaisquer pro-

peito dos processos de aprendizagem da leitu- cedimentos – são aprendidos com o uso.

ra e da escrita vem comprovando que a estraté- Para aprender conceitos e princípios com-

gia necessária para um indivíduo se alfabetizar plexos – como é o caso do sistema alfabético de

não é a memorização, mas a reflexão sobre a escrita –, ou seja, para se alfabetizar, não basta

escrita. Essa constatação pôs em xeque uma memorizar infinitas famílias silábicas. Propor

antiga crença, na qual a escola apoiava suas prá- que se aprenda a ler e escrever dessa forma sig-

ticas de ensino, e desencadeou uma revolução nifica tratar um conteúdo de alto nível de com-

conceitual, uma mudança de paradigma. Esta-


plexidade como se fosse uma informação sim-


mos agora passando por esse momento, com as ples, que supostamente poderia ser assimilada

vantagens e os prejuízos que caracterizam um com facilidade apenas pela memorização.



período de transição, de transformação de idéi- A compreensão das regras de geração do sis-


as e de práticas cristalizadas ao longo de mui-


tema de escrita em português depende de um


tos anos. processo sistemático de reflexão a respeito de



Mas, se não é por um processo de memo- suas características e de seu funcionamento.



rização, como funciona o aprendizado da lei- Quer dizer: para se alfabetizar, o indivíduo pre-

tura e da escrita?

cisa aprender a refletir sobre a escrita (um pro-


Em primeiro lugar, é preciso considerar que cedimento complexo, que requer exercício),

alguns conteúdos escolares são, de fato, apren- além de compreender o funcionamento do sis-

didos por memorização. Tudo o que não requer tema alfabético da escrita (um conteúdo tam-

bém complexo, cujo aprendizado requer a cons- gua. Não basta ensinar aos alunos as caracte-



trução de interpretações sucessivas, que se su- rísticas e o funcionamento da escrita, pois, em-



peram umas às outras). bora fundamental, esse tipo de conhecimento,



Portanto, a afirmação de que se aprende a por si só, não os habilita para o uso da lingua-


ler e escrever lendo e escrevendo textos não gem em diferentes situações comunicativas. E



quer dizer que se trata de um processo simples, não basta colocá-los na condição de protago-



como o enunciado pode enganosamente suge- nistas das mais variadas situações de uso da lin-


rir. Aprender a ler e escrever lendo e escreven- guagem, pois o conhecimento sobre as carac-



do requer um conjunto de procedimentos de terísticas e o funcionamento da escrita não de-



análise e de reflexão sobre a escrita – um objeto corre naturalmente desse processo. Em outras



de conhecimento que, por suas características palavras, isso significa dizer que é preciso pla-


e seu funcionamento, exige alto nível de elabo- nejar o trabalho pedagógico de alfabetização,



ração intelectual por parte do aprendiz, seja ele articulando as atividades de uso significativo da



criança ou adulto. linguagem com as atividades de reflexão sobre


Para poder ler textos quando ainda não se ○
a escrita. Isso significa dizer que a alfabetiza-
sabe ler convencionalmente, é preciso utilizar ção – tomada como aprendizagem inicial da lei-

o conhecimento de que se dispõe sobre o valor tura e escrita – deve ocorrer em contextos de

sonoro convencional das letras e ter informa- letramento que potencializem o domínio da lin-

ções parciais acerca do conteúdo do texto, po- guagem.


dendo assim fazer suposições a respeito do que É a resposta ao desafio de promover, ao



pode estar escrito. Em outras palavras, é preci- mesmo tempo, um processo de alfabetização

so utilizar simultaneamente estratégias de lei- e de letramento que pode conferir eficácia ao


tura que implicam decodificação, seleção, an- ensino nas séries iniciais, instaurando uma

tecipação, inferência e verificação e, em alguns cultura escolar centrada no direito à apren-



casos, ajustar o conteúdo que se sabe de cor ao dizagem.



que está escrito. Para assegurar aos alunos seu direito de


Para poder escrever textos, quando ainda aprender a ler e escrever, é indispensável que

não se sabe escrever, é preciso escolher quantas os professores tenham assegurado seu direito

e quais letras utilizar e, se a proposta for escre- de aprender a ensiná-los. Cabe às instituições

ver junto com um colega que faz outras opções formadoras a responsabilidade de preparar

de uso das letras, refletir a respeito de escolhas todo professor que alfabetiza crianças, jovens e

diferentes para as mesmas necessidades. adultos para:



Para poder interpretar a própria escrita (ler • encarar os alunos como pessoas que preci-

sam ter sucesso em suas aprendizagens para


o que escreveu), quando ainda não se sabe ler e


escrever, é preciso justificar as escolhas feitas, se desenvolverem pessoalmente e para te-



para si mesmo e para os outros, com todas as rem uma imagem positiva de si mesmos,

orientando-se por esse pressuposto;


explicações que isso demanda: por que sobram



letras, por que elas parecem estar fora de ordem, • desenvolver um trabalho de alfabetização

por que parece estar escrito errado conforme adequado às necessidades de aprendizagem

seu próprio critério etc. dos alunos, acreditando que todos são ca-

Como se pode ver, nada há de fácil ao se al- pazes de aprender;



fabetizar lendo e escrevendo textos, como tam- • reconhecer-se como modelo de referência

bém nada há de fácil (aliás, é seguramente mui- para os alunos: como leitor, como usuário

to mais difícil) ao se alfabetizar memorizando da escrita e como parceiro durante as ativi-



sílabas: em ambos os casos, trata-se de uma dades;



aprendizagem complexa. • utilizar o conhecimento disponível sobre os


O desafio consiste em organizar as propos- processos de aprendizagem dos quais de-



tas didáticas de alfabetização a partir do que pende a alfabetização, para planejar as ati-

hoje se sabe sobre as formas de aprender a lín- vidades de leitura e escrita;


278
SIMPÓSIO 18
Letramento

• observar o desempenho dos alunos duran- • ao desenvolvimento profissional e às condi-



te as atividades, bem como as suas ções institucionais necessárias para um tra-



interações nas situações de parceria, para balho educativo sério: consolidação de pro-


fazer intervenções pedagógicas adequadas; jetos educativos nas escolas, formas ágeis e



• planejar atividades de alfabetização desafia- flexíveis de organização e funcionamento da


rede, quadro estável de pessoal e formação


doras, considerando o nível de conhecimen-


adequada dos professores e técnicos;


to real dos alunos;


• à infra-estrutura material: adequação do 279


• formar agrupamentos produtivos de alunos,


considerando seus conhecimentos e suas espaço físico e das instalações, qualidade


dos recursos didáticos disponíveis, existên-


características pessoais;


cia de biblioteca e de acervo de materiais


• selecionar diferentes tipos de texto, que se-


diversificados de leitura e pesquisa, tempo


jam apropriados para o trabalho; adequado de permanência dos alunos na



• utilizar instrumentos funcionais de registro escola e proporção apropriada na relação



do desempenho e da evolução dos alunos, alunos–professor;


de planejamento e de documentação do tra-


• à carreira: valorização profissional real, sa-


balho pedagógico; lário justo e tempo previsto na jornada de


• responsabilizar-se pelos resultados obtidos ○

trabalho para o desenvolvimento profissio-
em relação às aprendizagens dos alunos. nal permanente, o planejamento, o estudo

e a produção coletiva.

O desenvolvimento dessas competências



profissionais é condição para que os professo- Sempre que se põe em foco a formação dos

res alfabetizadores ensinem todos os seus alu- educadores, é fundamental contextualizá-la,



nos a ler e a escrever. Não é possível ensinar a considerando o conjunto de variáveis que inter-

todos quando se sabe ensinar apenas àqueles ferem na qualidade das aprendizagens dos alu-

que iriam aprender de qualquer forma, por vi- nos. Do contrário, corre-se o risco de responsa-

verem em um contexto que provê condições e bilizar unicamente os educadores por resultados

favorece suas aprendizagens. que, apenas em parte, lhes dizem respeito.



Evidentemente, os educadores são, sim, res-


A importância e a insuficiência

ponsáveis pelo fracasso escolar, mas não pes-


soalmente responsáveis. A grande pergunta a


da formação de professores

ser respondida é: por que os cursos de forma-



É certo que a qualidade da formação dos ção inicial não habilitam adequadamente os

educadores não garante, por si só, a qualidade


profissionais da educação para o exercício do


da educação escolar, mas é condição indispen- magistério? É essa distorção (cursos de habili-

sável a ela. As outras condições são: valoriza- tação que, de fato, não habilitam) que provoca,

ção profissional, adequadas condições de tra- em nosso país, uma outra distorção, com a qual

balho, contexto institucional favorável ao espí- temos nos debatido há vários anos: o papel

rito de equipe, ao trabalho em colaboração, à compensatório da formação em serviço.



construção coletiva e ao exercício responsável Em geral, os jovens professores – que são



da autonomia. As transformações que a reali- maioria em várias regiões do país – já foram alu-

dade hoje exige só poderão ser conquistadas nos de uma escola pública que não lhes garantiu

com investimentos simultâneos em todos esses os conteúdos básicos a que todo cidadão brasi-

aspectos – já, há alguns anos, a prática vem leiro tem direito (conforme revelam os indica-

comprovando que são bem poucos os efeitos da dores de desempenho escolar das últimas dé-

priorização de um determinado aspecto em cadas); passaram por um curso de Magistério



detrimento dos demais. que, além de não habilitá-los adequadamente



Isso significa que as políticas públicas para a para o exercício profissional, roubou-lhes o di-

educação só terão eficácia real se tiverem como reito à formação de nível médio (ao ocupar o

meta melhorias relacionadas, ao mesmo tempo: espaço do Ensino Médio com as disciplinas di-


tas profissionalizantes); e não contam com um


prestarem serviço de qualidade à população, é


processo assistido de inserção na carreira, como preciso que as instituições formadoras cum-



professores iniciantes. Não é raro que essa in- pram a tarefa de habilitá-los adequadamente


serção ocorra por “tratamento de choque”: nas


para o exercício da profissão.


escolas mais distantes, nas classes mais difíceis,



sem apoio para o trabalho pedagógico.


Bibliografia


Nessas condições, manter-se professor é um


ato de valentia. Não seria justo que os sistemas


BARBOSA, José Juvêncio. A herança de um saber: a alfa-


de ensino e seus gestores assumissem uma po-


betização. In: Alfabetização – Catálogo de base de da-


sição de responsabilizar pessoalmente os edu- dos. São Paulo: FDE, s. d. v. 1.


cadores pelo fracasso do ensino. Se a sociedade


FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da lín-


demanda profissionais bem formados para gua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1985.



































































SIMPÓSIO 19

ESCOLHA E USO DO LIVRO


DIDÁTICO –
IMPLICAÇÕES PARA A
FORMAÇÃO DO PROFESSOR
Lucília Helena do Carmo Garcéz

Marildes Marinho

Lívia Suassuna

281
O livro didático e a construção




social da autoria na produção




de textos






Lucília Helena do Carmo Garcéz


Universidade de Brasília/DF







Em uma terceira série do Ensino Fundamental de uma pequena escola



pública da periferia, próxima a um hospital, uma jovem professora aplica


um exercício de redação do seu livro didático: redigir um texto a respeito



de projetos pessoais para o futuro a partir do poema “Verbo ser”,



de Carlos Drummond de Andrade, que começa assim:
“Que vai ser quando crescer? vivem perguntando em redor”.

Antônio, de 11 anos, entrega seu texto em poucos minutos.



Nele estava escrito um único período:


“Eu queria ser doutor, mas sei que não dá”.






cidadania. Sob esse ponto de vista, o papel do


Estaria nossa professora


educador é o de interlocutor privilegiado, ca-


preparada para lidar com


paz de diagnosticar as necessidades dos alu-



nos, de orientá-los interativamente, reorien-


essa situação?

tando também suas próprias diretrizes peda-



A formação do professor, no que se refere gógicas para criar situações favoráveis ao cres-

ao trabalho com a língua portuguesa, com a ex- cimento e à reflexão sobre a linguagem, o co-

pressão, com a autoria, exige uma sólida base nhecimento e o mundo social.

de conhecimentos lingüísticos em todos os Todo o percurso de aquisição, desenvolvi-



seus aspectos: especialmente os discursivos. mento e construção do conhecimento inicia-



Além disso, é essencial uma fundamentação se na interação social para então realizar-se,

pedagógica que lhe permita, com tranqüilida- consolidar-se no interior do indivíduo, ou seja,

de e segurança, tomar decisões adequadas, internalizar-se, não como cópia, mas como

originais, flexíveis e eficientes nas diversas si- reelaboração. É assim, nesse movimento do so-

tuações. Mais que isso, exige profissionalismo cial para o individual, pela mediação do ou-

e compromisso com os objetivos educacionais


tro, que se constroem o pensamento abstrato,


transformadores. a memorização, a atenção voluntária, o com-



Na educação comprometida com a cons- portamento intencional, as ações consciente-



trução da cidadania, o professor favorece as mente controladas, a generalização, as associa-


condições para que o aluno possa desenvolver ções, o planejamento, as comparações, ou seja,

e ampliar continuamente seu universo existen- as funções superiores da mente, as que nos fa-

cial, cognitivo e de ação interindividual. É o zem humanos, como afirma Vygotsky.



professor que catalisa o processo pelo qual os O trabalho pedagógico atual têm procura-

indivíduos se constituem como sujeitos, com do, cada vez mais, privilegiar o desenvolvimen-

capacidade de pensar sobre as questões do to do raciocínio, em detrimento da memori-



mundo e, conseqüentemente, com capacida- zação e da automatização pura e simples de



de de agir sobre o mundo e no mundo, condi- conteúdos isolados e descontextualizados, in-


ção imprescindível para o exercício pleno da centivando a construção de competências e



282
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor

habilidades. Em decorrência dessa postura, vos conteúdos com conceitos, idéias e conhe-



são favorecidas as atividades interativas e cimentos que o aluno já adquiriu em experi-



interdisciplinares. ências anteriores. Leva o aluno a reformular



Esses procedimentos situam a aprendiza- idéias anteriores, substituindo-as por uma vi-


gem significativa como aquela em que concei- são nova e diferente, e assim a adquirir as ha-



tos mais inclusivos, ou seja, com maior poder bilidades necessárias à constituição das com-



de generalização e aplicação, funcionam como petências básicas, que serão gradativamente


base prévia à qual vêm se articular e agregar os consolidadas de acordo com o grau de matu- 283



conceitos novos, a partir de intensas operações ridade e que são essenciais para uma educa-



cognitivas do próprio aprendiz mediadas pelo ção integral de qualidade.



outro. Nesse processo há uma profunda Tendo como horizonte essa concepção de


interação entre os conhecimentos novos e os educação e de aprendizagem, para que o pro-



prévios, por meio de uma adesão total do su- fessor escolha com segurança o livro didático,



jeito à atividade de incorporação desses novos que poderá ser um auxiliar efetivo do seu tra-



conceitos, e é essa participação individual que balho, o ideal seria que ele desenvolvesse uma


torna a aprendizagem realmente significativa. ampla reflexão sobre o próprio objeto de aná-



Para que seja assim, o processo exige um en- lise, em consonância com suas concepções de

volvimento real do educador no empreendi- língua e de aprendizagem. Inúmeras são as



mento pedagógico, pois é nessa interação hu- questões que podem orientar essa reflexão, no

mana, nessa mediação qualificada e solidária, que se refere, por exemplo, ao livro de Língua

que os limites dos conhecimentos prévios re- Portuguesa.



ais são revelados e pode ser determinado o ho- Uma ordem preliminar de indagações di-

rizonte em que o desenvolvimento é possível ria respeito à própria validade do instrumen-



com maior apoio e participação do professor, to: O livro didático (LD) é necessário? Poderia

ou seja, o que Vygotsky (1930) chama de zona ser dispensado? Por que, quando, em que cir-

proximal de desenvolvimento. cunstâncias? Por que não poderia ser dispen-


Essa nova atitude pedagógica está em fran- sado? Como o LD tem sido escolhido na práti-

ca oposição aos procedimentos tradicionais, ca? Como o LD é usado na prática? Qual a sua

behavioristas, que privilegiam a memorização relação com os programas de ensino? Ele fun-

de itens isolados, arbitrários, pouco inclusivos, ciona como “o” programa de ensino propria-

com menor poder de generalização e baixa pos- mente? Qual a relação entre LD, em geral, e

sibilidade de articulação com conhecimentos projeto pedagógico do professor e da escola?



anteriores. Tais práticas, que a reflexão atual Tais reflexões, evidentemente, exigem do

procura afastar de forma definitiva do cotidia- professor desnaturalização da rotina e ampla


no escolar, enfatizam o adestramento, a visão de suas próprias potencialidades e com-



automatização e exigem do professor uma ati- petências, bem como das condições de traba-

tude de treinador, caçador de erros, cobrador, lho em que atua.



repressor, vigia, punidor, e não propriamente Quanto ao conhecimento da proposta pe-


de educador. Nesse universo, a interação fica- dagógica do LD, seria importante analisar: O

ria excluída em nome da hierarquia e da LD apresenta um projeto pedagógico claro,



assimetria entre professor e aluno. Compreen- explicitado, organizado? Quais são as informa-

de-se hoje que tal método não assegura a du- ções de apoio ao professor? Elas contribuem

rabilidade, a solidez e a utilidade dos conheci- para o processo educacional? Há sugestão de



mentos, de forma que esses se tornam voláteis estratégias de trabalho por aula, por semana,

e desaparecem logo depois da “prova”, pois não por unidade ou por mês e semestre? São

têm raízes nem aplicabilidade ou significação exeqüíveis? Quais os fundamentos psico-


real no repertório cognitivo do estudante. pedagógicos e lingüísticos implícitos no LD?



Em contraposição, a aprendizagem signi- Qual a visão da escola refletida no LD? A pro-



ficativa acontece com a combinação dos no- posta pedagógica é crítica e flexível ou acrítica

e imobilizante? teórica? Há variedade de exercícios? Como é a



No que diz respeito à área de conhecimen- seleção e ordenação dos assuntos? Quais são



to específica – Língua Portuguesa –, há aspec- as capacidades cognitivas enfatizadas? Qual a



tos extremamente relevantes que devem ser relevância dos tópicos em relação às dificul-


observados no LD: Quais as concepções de lín- dades reais dos alunos? Como se dá a contex-



gua, de linguagem, de aprendizagem implíci- tualização quanto à função estilística dos ele-



tas no LD? O LD contempla as diversas verten- mentos enfocados? Há progressão e articula-


tes da língua: expressão oral, leitura informa- ção entre os exercícios e as explicações? Há



tiva, literária e história literária; a produção relação com a escrita real do aluno? O livro



escrita em todas as suas habilidades; a siste- propõe atividades complementares de enri-



matização gramatical? quecimento? Há coerência entre os objetivos


Expressão oral: Estão previstas atividades estabelecidos na proposta do autor e as ativi-



de expressão oral? O LD considera as diferen- dades realmente apresentadas no livro?



ças entre modalidade oral e escrita da língua? O professor deve levar em conta também a


As atividades estabelecidas prevêem o desen- ○
qualidade material do LD: A durabilidade de
volvimento do discurso oral de forma plena ou material do LD é satisfatória? A programação

apenas da leitura em voz alta e da declamação? visual é interessante, atraente e adequada aos

Leitura: Quais as concepções de leitura objetivos? O tipo de letra está de acordo com o

subjacentes à proposta do LD? Qual o tipo de nível de leitura do aluno? A ilustração tem qua-

leitura privilegiado? Qual a variedade e a quan- lidade estética? É apropriada? Relaciona-se de



tidade de textos versus gênero versus temas forma ideal com os textos? Pode ser utilizada

versus autores? Os textos são integrais? Qual é como uma introdução à linguagem visual? O

a qualidade dos textos? São adequados às ha- livro é consumível ou não-consumível?



bilidades de leitura dos alunos e ao interesse? Essa listagem preliminar de questões de-

Há valorização da literatura brasileira? Quais monstra como a análise do LD depende de co-



são os temas enfatizados? Eles configuram uma nhecimentos, valores, representações, concei-

ideologia predominante? Qual? A proposta de tos e atitudes do professor diante do seu obje-

interpretação de textos é coerente? Há coerên- to de ensino, diante do ato de ensinar e do que



cia nos princípios teóricos focalizados? Há va- entende por aprender. Ou seja, depende de sua

riedade ou conduzem à rotina e à reprodução formação como profissional, de sua clareza em


mecânica? Há oportunidade de reflexão e in- relação aos objetivos que estabelece para a sua

terpretação ou a ênfase está na decodificação? prática em sala de aula e da amplitude de sua



Os exercícios auxiliam o desenvolvimento reflexão a respeito dos diversos aspectos de sua



cognitivo e afetivo? Há estímulo à leitura de própria ação como professor.


outros textos? Vamos focalizar mais detidamente a ques-



Produção de textos: A produção de textos tão do desenvolvimento da produção de tex-



é vista como um processo? As várias etapas da tos. Durante muito tempo, a escola enfatizou,

produção são contempladas: enriquecimento no ensino da escrita, o produto, a redação, a


de informações, motivação, planejamento, or- primeira versão do texto. As práticas didáticas



ganização das idéias, idealização do tradicionais ignoravam a natureza recursiva es-



interlocutor, estabelecimento de objetivos, sencial da escrita (cheia de idas e vindas) e



elaboração, análise, revisão, reescritura? Há consideravam a redação do aluno o momento


critérios de avaliação? Há variedade de propos- em que ele demonstrava seus conhecimentos



tas e de objetivos? de língua e de organização de texto



Reflexão sobre a língua: Qual a relação da internalizados nas aulas e nas tarefas voltadas

gramática com o texto? Qual a concepção de para a leitura e para as noções gramaticais. A

língua e de aprendizagem subjacente aos exer- partir de um tema, geralmente escolhido pelo

cícios? Quais os conceitos enfatizados? A vari- professor, o aluno deveria demonstrar sua

ação lingüística é considerada? Há coerência competência na produção de textos corretos,


284
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor

sem que, para o desenvolvimento dessa habi- da pela palavra, mas também com a experiên-



lidade, tivesse compartilhado uma reflexão cia de vida do indivíduo.



direcionada para os aspectos discursivos ou Escrever é um processo complexo inserido



recebido orientações mais específicas sobre o em práticas sociais que elegeram, no decorrer


ato de escrever. Esse texto, em sua primeira ou, da história coletiva, formas relativamente es-



no máximo, segunda versão, serviria natural- táveis de ação pela linguagem, a que chama-



mente para o processo de avaliação. mos gêneros. Por meio dos gêneros disponí-


O livro didático de Língua Portuguesa cris- veis na sociedade, o redator pode agir: expres- 285



talizou essa tradição, localizando a produção sar, imaginar, informar, expor, relatar, narrar,



de textos como simples adendo, exercício fi- persuadir, descrever, dialogar, dissertar, argu-



nal, encerramento da unidade de ensino. Caso mentar, contratar, atestar, declarar, convidar,


o professor acompanhasse rigorosamente as solicitar, registrar etc.



propostas do LD, todo o processo de desenvol- Empreender uma ação de escrita envolve:



vimento da escrita ficaria reduzido ao mínimo, motivação, interesse e necessidade; a configu-



e muitas das habilidades necessárias para a ração do destinatário e o estabelecimento dos


constituição da competência na produção de objetivos do texto; o uso intenso da memória;



textos seriam ignoradas. múltiplas e infinitas escolhas e decisões base-

O resultado disso foi que a pesquisa de de- adas no conhecimento acerca do tema, da lín-

sempenho na escrita, nas décadas de 1970 e gua e das estruturas textuais e discursivas pos-

1980, explorou as possibilidades de constituir síveis; diversas releituras avaliativas para



um inventário de problemas a partir da análi- reformulação e reescrita, até que o produtor



se de textos produzidos em situação de exa- do texto se sinta satisfeito na comparação en-


me, teste, concurso. Compreendeu-se, com o tre seus objetivos iniciais e o resultado obtido.

avanço dos estudos dos resultados dos candi- O redator estabelece inicialmente um base

datos aos exames vestibulares, que aquela prá- de orientação: Qual é o assunto em linhas ge-

tica tradicional de ensino de redação estava rais? Qual o gênero mais adequado aos objeti-

sendo insuficiente e que a escrita exigia novas vos? Quem provavelmente vai ler? Que nível de

perspectivas de trabalho. linguagem deve ser utilizado? Que grau de sub-



Hoje, a questão que se coloca retrocede às jetividade ou de impessoalidade deve ser atin-

origens da construção da autoria no percurso gido? Quais as condições práticas de produção:


escolar do aprendiz. As novas investigações tempo, apresentação, formato?



procuram compreender como e por que ele Cada redator desenvolve, na sua história

chega a produzir um texto empírico com de- pessoal de consolidação da habilidade de es-

terminadas características insatisfatórias e crever, determinado percurso de trabalho, que


como seria possível transformar práticas esté- é diferente de pessoa para pessoa. Não há um

reis em um trabalho interativo e produtivo. único caminho a ser percorrido e é necessário



Nesse sentido, compreender a natureza da es- conhecer seus próprios procedimentos: fazer

crita foi o passo inicial. anotações soltas, independentes; fazer uma


Uma primeira aproximação revela que o lista de palavras-chaves; anotar tudo o que vem

aprendiz apresenta uma dificuldade básica de à mente, desordenadamente, para depois cor-

adaptação do gênero/modelo à situação de tar e ordenar; elaborar um resumo das idéias



ação (Bronckart, 1999), em vista de o “texto para depois acrescentar detalhes, exemplos,

escolar” ter sido assimilado como um formu- idéias secundárias; construir um primeiro pa-

lário a ser preenchido, o que impedia o exercí- rágrafo para desbloquear e depois ir desenvol-

cio da autoria. O texto somente se constrói e vendo as idéias ali expostas; escrever a idéia

tem sentido inscrito em uma prática social, em principal e as secundárias em frases isoladas

que o envolvimento do redator se realiza em para depois interligá-las; elaborar inicialmen-



vários níveis, pois lida com a capacidade sim- te uma espécie de sumário ou esquema geral

bólica e com a habilidade de interação media- do texto; organizar mentalmente os grandes



blocos do texto, escrevê-lo e reestruturá-lo sucesso da realização dessas decisões no texto



várias vezes. quanto:



Qualquer que seja o procedimento utiliza- ao leitor: Inseri-lo no texto ou tratá-lo de


forma neutra e distanciada. A opção esco-


do, ou o conjunto de procedimentos conjuga-


dos entre si, para que o autor fique satisfeito lhida foi mantida durante todo o texto? O



com o seu próprio texto, o trabalho de ajuste é leitor que se tem em mente é atendido du-


rante todo o texto?


imprescindível. Nesse momento, que é o mais


produtivo em termos de aprendizagem do fun- ao gênero de texto: Que plano de escrita



cionamento do texto, a colaboração de um lei- utilizar para a situação. O formato é ade-



tor próximo com o qual seja possível trocar quado à situação? As exigências referentes


ao gênero foram respeitadas ou há ambi-


idéias é fundamental (Garcez, 1998). As trans-


formações percebidas como necessárias pelo güidades e inconsistências?



autor ou sugeridas pelo leitor/colaborador às informações: O que informar e o que



podem levar a: enfatizar as idéias principais; considerar pressuposto. As informações

○ fornecidas são suficientes ou o texto ficou
reordenar as informações; substituir idéias ○

inadequadas; eliminar idéias desnecessárias; muito denso, exigindo muito do leitor? A



alcançar maior exatidão para as idéias; acres- introdução de informações novas é bem

realizada? Há informações irrelevantes que


centar exemplos, conceitos, citações, argu-


podem ser dispensadas? Há excesso de in-


mentos; eliminar incoerências; estabelecer


formação? Há informações incompletas ou


hierarquia entre as idéias; criar vínculos entre

confusas? As informações factuais estão


uma idéia e outra.


corretas?

Para efetivar esses aperfeiçoamentos, ge-


ralmente é preciso: acrescentar palavras ou fra- à linguagem: Formal ou informal. A lingua-



ses; eliminar palavras ou frases; substituir pa- gem está adequada à situação? A opção es-

colhida tornou o texto harmonioso ou há


lavras ou frases; transformar períodos, unin-


oscilações súbitas e inadequadas? Os efei-


do-os por meio de conectivos ou separando-


tos de sentido construídos são satisfatórios?


os por meio de pontuação; acrescentar transi-

ções entre os parágrafos; mudar elementos de à impessoalidade ou subjetividade: O


posicionamento adotado como predomi-


lugar, reagrupando-os de forma diferente; cor-


nante mantém-se ou essa opção não ficou


rigir problemas gramaticais, entre outras


consistente no texto?
transformações.

Nessa etapa do processo de escrita, há uma ao vocabulário: As escolhas estão adequa-


das ou há repetições enfadonhas e pobre-


adesão total do sujeito à atividade, uma inten-


za vocabular? Algum termo pode ser subs-


sa participação do autor. Essa atitude permite


a interação entre situações novas de inter- tituído por expressão mais exata? Há

clichês, frases-feitas, excesso de adjetivos,


locução e os conhecimentos prévios em rela-


expressões coloquiais inadequadas, jargão


ção à lingua, ao tema, ao gênero e à prática


profissional?

social e torna a aprendizagem realmente sig-


nificativa. É o momento também de um envol- às estruturas sintáticas e gramaticais: O



vimento real do educador no empreendimen- texto está correto quanto às exigências da


língua padrão? As transições entre as idéias


to pedagógico, já que é a interação humana, a


estão corretas e claras? Os conectivos são


mediação qualificada e solidária, que cria a


adequados às relações entre as idéias? A di-

oportunidade para que os limites dos conhe-


visão de parágrafos corresponde às unida-


cimentos prévios reais sejam revelados e se


des de idéias?

possa determinar o horizonte em que o desen-


ao objetivo e à situação: Está de acordo


volvimento é possível com maior participação


com o objetivo estabelecido inicialmente?


do professor. Uma leitura compartilhada

As idéias principais estão evidentes?


(Garcez, 2001) com o professor levará o apren-


Como é evidente, produzir um texto envol-


diz a analisar as decisões tomadas e o nível de


286
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor

ve diversas etapas, não necessar iamente


. Aprender e ensinar com textos dos alunos.


seqüenciais, e múltiplos aspectos discursivos São Paulo: Cortez, 1997.



. L i n g u a g e m e e n s i n o - exe r c í c i o s d e
que precisariam ser considerados no processo


militância e divulgação. Campinas: Mercado de Letras/


pedagógico e na formação inicial e continua-


ALB, 1996.
da do professor (Nóvoa, 1999). Para que o re-


GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Pau-


dator aprendiz vivencie a constituição da au- lo: Martins Fontes, 1985.



toria pelas decisões e escolhas pessoais, é im- GÓES, M. C. R. de. A criança e a escrita: explorando a


prescindível a participação colaborativa do dimensão reflexiva do ato de escrever . In: SMOLKA. A. 287



professor e é essencial que esse professor tam- L. B. et al. (Orgs.). A linguagem e o outro no espaço


escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento .


bém tenha tido oportunidade de constituição


Campinas: Papirus, 1993. p. 101-20.


de sua própria autoria. ILARI, R. Uma nota sobre redação escolar. In: ILARI, R.


Tanto na formação inicial, como nas situa-


A Lingüística e o ensino da Língua Portuguesa. São


ções de qualificação contínua em serviço, quan- Paulo: Martins Fontes, 1985. p. 51-66.



do o professor vivencia a escrita de diversos gê- KATO, M. O aprendizado da leitura . São Paulo: Martins


Fontes, 1985.


neros, com diversos objetivos, aprofundando sua


. No mundo da escrita . São Paulo: Martins
própria experiência de produtor de texto, com-


Fontes, 1986.

preende melhor o objeto com o qual trabalha

○ . A concepção da escrita pela criança . Cam-
com o aluno e amplia suas condições de colabo-

pinas: Pontes, 1992.


ração efetiva no crescimento do outro. LEMOS, C. T. G. Coerção e criatividade na produção do


Nesse sentido, tanto a escolha como o uso


discurso escrito em contexto escolar, algumas reflexões.


do livro didático serão enriquecidos a partir de In: SÃO PAULO. Secretaria de Estado da Educação.

uma formação que considere o professor não Subsídios à proposta curricular, São Paulo: CENP, 1978.

NÓVOA. A. Os professores e sua formação . Lisboa: Dom


só como mediador da produção do aluno, mas

Quixote, 1999.
como efetivo autor.

OSAKABE, Hakira. Redações no vestibular: provas de ar-



gumentação. Cadernos de Pesquisa , n. 23, São Paulo,


1977.

Bibliografia PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. São Paulo: Martins


Fontes, 1983.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem . São Pau- ROCCO, M. T. F. Crise na linguagem: a redação no vesti-

lo: Hucitec, 1981. bular. São Paulo: Mestre Jou, 1981.



. Estética da criação verbal. São Paulo: S C H N E U W LY, B. G e n r e s e t t y p e s d e d i s c o u r s ,


Martins Fontes, 1992. considerations psychologiques et ontogénétiques. In:



BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e dis- REUTER, Yves. Les interactions lecture -écriture. Berne:

cursos. São Paulo: Educ, 1999. Peter Lang, 1994. p. 155-73.



CALKINS, L. M. A arte de ensinar a escrever . Porto Ale- SMOLKA, A. L. B. A dinâmica discursiva do ato de escre-

gre: Artmed, 1989. ver: relação oralidade escritura. In: SMOLKA, A. L. B.



FRANCHI, Eglê. E as crianças eram difíceis... A redação et al. (Orgs.). A linguagem e o outro no espaço esco-

na escola . São Paulo: Martins Fontes, 1984. lar: Vygotsky e a construção do conhecimento. Campi-

GARCEZ, Lucília H. C. A escrita e o outro . Brasília: Edito- nas: Papirus, 1993.


ra da Universidade de Brasília, 1998. VAL, Maria da Graça da Costa. Redação e textualidade .



. Técnica de redação. São Paulo: Martins São Paulo: Martins Fontes, 1991.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo:


Fontes, 2001.

GERALDI, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Martins Fontes, 1978.


. Pensamento e linguagem . Lisboa: Antído-


Fontes, 1991.

to, 1979.














Livro didático: uma possibilidade




de formação do professor?





Marildes Marinho



Universidade Federal de Minas Gerais/MG






Diante desse interesse, seria razoável supor


A temática desta mesa nos sugere abordar


as implicações decorrentes da escolha e do uso que os tempos mudaram, mas isso não é bem



do livro didático na formação do professor. Ao verdade, quando se observa que esse interesse


tem endereço bastante conhecido e forma bem


final do percurso que tracei para a reflexão so-

bre esse tema, percebi que ele foi de muitas direcionada, as políticas de melhoria das con-

perguntas e de poucas respostas; talvez uma dições de existência (seu conteúdo e seu uso

resposta apenas, se é que podemos considerá- “eficaz” na escola), de renovação de determina-


do olhar sobre o livro didático: “como deve ser”,


la assim. O próprio título já é uma interroga-


ção: Livro didático: uma possibilidade de for- o que fazer para aperfeiçoar um manual esco-

mação do professor? lar específico, que seleciona e organiza, de ma-



neira progressiva, os conteúdos e as atividades


que os alunos realizam no dia-a-dia da sala de


O lugar do livro didático no


aula; de um manual que, normalmente, se di-


cenário da cultura brasileira


vide em dois, o do aluno e o do professor.



Ao observar essa tendência histórica com


Um novo momento para a história do li-

que se olha para o livro didático, no Brasil, Mag-


vro didático no Brasil parece ter começado.


da Soares (1996) chama a atenção para a ausên-


Basta observar o quanto ele tem se tornado


cia de um olhar distanciado da pesquisa sobre


alvo das atenções em conferências, seminá-


o livro didático, um olhar que reflita sobre as


rios, pesquisas, políticas governamentais,

suas condições sócio-históricas, saindo do “de-


ações do mercado editorial, da mídia etc. Este


ver ser” para “o que tem sido” esse livro na his-


seminário é um exemplo. Mas essa atenção


tória da educação e da cultura brasileiras. Uma


não parece capaz de atribuir ao livro didático


pesquisa dessa natureza poderia, quem sabe,


os mesmos significados e valores que são atri-

aprofundar a desconfiança de que o livro didá-


buídos a outros livros e aos sujeitos que deles


tico teria um prestígio compatível ao prestígio


se ocupam. Ou seja, o livro didático não goza


atribuído à escola, às funções, aos papéis e às


de prestígio nem no âmbito das práticas de


representações a ela atribuídos no campo do


leitura a que se destina, nem no âmbito da

letramento. Nesse sentido, a escola despres-


pesquisa. Batista (2000: 529-30) define com


tigiaria os próprios objetos e práticas que pro-


perspicácia esse desprestígio:


duz, como ocorre com a escolarização da lite-



ratura, da “ciência” etc.


Não são poucos, portanto, os indicadores do

Provavelmente, em função desse interesse


desprestígio social dos livros didáticos. Livro


visivelmente pragmático do foco com que se


“menor” dentre os “maiores”, de “autores” e não


de “escritores”, objeto de interesse de “colecio- toma o livro didático, nesse momento pode-se

nadores” mas não de “bibliófilos”, manipulado observar uma tendência a não problematizar a

sua forma de existência, a sua concepção; ao


por “usuários” mas não por “leitores”, o pres-


suposto parece ser o de que seu desprestígio, contrário, busca-se solução para os problemas

por contaminação, desprestigia também aque- da “vida cotidiana” desse objeto, como se ela

fosse naturalmente dada e necessária. Que ra-


les que dele se ocupam, os pesquisadores ne-


les incluídos. zões políticas, ideológicas e pedagógicas esta-


288
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor

riam por detrás desse movimento histórico em ações transformadoras do livro didático e da sua



que – diferentemente de um outro anterior – inserção na história das disciplinas escolares e



bastante se escreve e se fala, com convicção, da das políticas educacionais. Enquanto elas não



necessidade do livro didático, ou seja, de um existem, continuamos ousando algumas postu-


livro didático com características bem especí- ras e perspectivas, a exemplo das posições con-



ficas? tra ou a favor do uso do livro didático.



Quem não se lembra da “ousadia” daqueles


que imaginavam uma escola sem livro didáti- Contra ou a favor do livro 289



co, com um professor mais autônomo nas suas
didático. Por quê?



ações pedagógicas? Mesmo nesse momento,



parece que pouco se escreveu a favor do livro Posicionar-se contra o uso de um manual


didático e, provavelmente, nada se escreveu didático na escola foi e será por algum tempo



contra ele. Encontram-se, sim, análises sobre a uma ousadia. Uma das explicações – como já



ideologia e o preconceito do livro didático ou dito antes – para essa ousadia é o investimento


ainda tímido das pesquisas das universidades


sobre os conteúdos específicos a cada área de


ensino (Faria, 1991; Molina, 1987; Nosella, com o livro didático, a não ser para destinar a



1988). No entanto, foram significativas as expe- ele críticas severas. Se a pesquisa ainda é pou-

riências que ensaiaram essa “liberdade” e “au- co significativa, o que falar da própria produ-

ção de livros ou textos didáticos para o profes-


tonomia”. Que fim e que sentidos teriam tido


essas experiências? Teríamos mesmo superado sor e para o aluno? A escrita acadêmica legíti-

essa polêmica ou existiriam razões ainda pou- ma, que rende tributos para o acadêmico, é a

co compreendidas para o seu esfriamento ou da pesquisa, aquela que ele produz para os seus

até mesmo “esquecimento”? Teria o professor pares, principalmente se for publicada no mer-

superado essa polêmica (para ele, dificuldade) cado editorial estrangeiro (Soares, 2000).

ou ele estaria lançando mão de novas estraté- Assim, temos que nos reportar a um antigo

gias de relação com esse objeto, deixando cada (e ainda muito importante) refrão para justifi-

vez mais de utilizá-lo, a exemplo do que aqui car por que é ousadia ser contra o livro didáti-

relatou o pesquisador Jean Hébrard sobre o li- co. Do ponto de vista do professor, as suas con-

vro didático na França? O que sabemos sobre dições de exercício da profissão: para sobrevi-

os usos do livro didático na sala de aula é mui- ver, ele se ocupa quase que estritamente da ta-

to pouco. refa de ministrar aulas, ou seja, não pode pla-



Enfim, a pergunta maior entre todas que nejar as suas aulas, escolher e produzir o seu

aqui vêm se apresentando poderia ser assim material. As escolas não disponibilizam, ade-

resumida: como transformar o livro didático em quadamente, materiais didáticos de que o pro-

objeto de estudo para melhor compreensão da fessor possa lançar mão, de forma ágil, dentro

história das práticas escolares, compreensão de uma condição de trabalho “sem planejamen-

esta que possa se reverter em ações para a to prévio”, “improvisado”. Não há livros, jornais,

revistas, internet, vídeos, etc. e, quando há, eles


reinvenção do aprendizado da leitura e da es-


crita por meio de um novo livro didático? não se encontram organizados de forma a per-

Para compreender as condições de existên- mitir o seu uso no cotidiano da sala de aula. O

cia desse objeto escolar, seria importante: a) livro didático torna-se, então, o material mais

visível e garantido, porque ou está na mochila


conhecer as características desse livro e como


ele se insere no conjunto dos objetos pedagó- do aluno, ou no armário/estante da sala de aula.

gicos e das práticas escolares de ensino-apren- Dessa forma, a ausência de planejamento, a



dizagem; b) conhecer a história de construção “improvisação” não seria também o resultado


dessas condições precárias de organização e


do modo de ser desse livro, particularmente no


que diz respeito aos sujeitos a quem se destina disponibilização dos espaços e dos materiais

(professor e aluno). Essas e outras pesquisas indispensáveis para o trabalho na “sala de aula”?

poderiam, certamente, sustentar discussões e Do ponto de vista do aluno, como ousar di-

zer “não” ao livro didático, quando se reconhe- políticas de compra e distribuição de livros –



ce, por explicações sociológicas, políticas, an- didáticos ou não – sobre o processo de leitura,



tropológicas, o significado da posse de livros, sobre os usos que se fazem deles?



ainda que de um livro desprestigiado e doado? Ainda assim, neste momento, acredito que


(Ou também desprestigiado porque é doado?) as dificuldades de relação com o livro no Brasil



A grande maioria de alunos só conta com esse – particularmente quando se trata do poder



livro didático como material de leitura. Esse li- aquisitivo da grande maioria de professores e


vro, por sua vez, extrapola o seu espaço escolar alunos – não permitem ousar romper com uma



e ganha função específica nas práticas de leitu- lógica das políticas de leitura e de acesso ao li-



ra fora da escola, na família. vro, neste caso, de acesso a um livro didático.



A questão do valor do livro didático em es- Paradoxalmente, um livro que teria uma função


colas e em grupos sociais distintos – tanto para específica de organizar e sistematizar determi-



o professor quanto para o aluno – é muito im- nados conteúdos de uma disciplina escolar



portante para se pensar a política do livro di- pode se transformar em símbolo e instrumen-


dático no Brasil. Que efeitos tem uma política ○
to de outras práticas de leitura fora da escola.
governamental de doação de livros, e de quais Contudo, mesmo se essas apropriações ou

livros? Que relações os estudantes, as famílias reinvenções dos modos de ler livro didático sus-

dos estudantes e os professores mantêm com pendem, de certa forma, nossas descrenças em

os livros distribuídos gratuitamente pelo gover- relação a efeitos positivos, é necessário reco-

no? Seriam diferentes, se comprassem os livros? nhecer que os problemas que a sua história nos

Se os retirassem emprestados na biblioteca pú- tem apresentado são graves. O professor



blica, na biblioteca da escola? Como se compor- Levinson, ontem, apresentou-nos alguns deles.

tam as famílias e os estudantes que compram O mais evidente desses problemas se fez visível

os seus livros? Por que se atribui – se é que se no mercado editorial, que, apoiado pelas polí-

atribui – tanto valor à posse de livros? Seria re- ticas de produção e distribuição do livro didá-

sultado das políticas precárias de socialização tico, pelas precárias condições de formação do

do livro por meio das bibliotecas, dos emprés- professor e do exercício da profissão docente,

timos? O que significaria para os grupos tornou-se o responsável mais visível pelo perfil

desfavorecidos socioeconomicamente, ou seja, desqualificado do livro escolar.



pais e filhos desses grupos, entrarem em uma Nesse sentido, a avaliação do livro didático,

livraria para comprar o seu material escolar, os conforme o Programa Nacional do Livro Didá-

seus livros, assim como o fazem os outros gru- tico (PNLD), tem um papel fundamental ao atu-

pos? Ou também o contrário: seria possível re- ar diretamente na modificação do perfil desses

criar formas mais coletivas de uso de livros, de manuais. Penso que, neste momento, as conse-

leitura, também nesses grupos de elite econô- qüências dessa avaliação recaem preferencial-

mica e intelectual que fazem do livro um obje- mente sobre os editores, que tentam adequar

to de posse, um fetiche? Em pesquisa sobre os os seus livros às orientações teórico-metodo-



usos da escrita no cotidiano de camadas popu- lógicas indicadas por instituições de ensino e

lares, pude observar famílias queimando livros pesquisa. No entanto, a influência dessas avalia-

escolares ou porque, segundo elas, não tinham ções na escola, no processo de seleção dos li-

espaços para guardá-los, ou porque não tinham vros, ainda vai levar algum tempo, por questões

tido e não teriam mais utilidade, diante do “fra- de implementação de todo o processo de avalia-

casso” escolar dos filhos. ção e de escolha. Já sabemos de algumas difi-



Em síntese, as políticas públicas de distri- culdades de finalização do processo de avalia-



buição do livro didático têm um efeito simbó- ção, na distribuição do manual de resenhas, na

lico e precisam ser mais bem analisadas, se qui- distribuição dos livros, na organização do tra-

sermos desfazer alguns nós historicamente ata- balho de seleção nas escolas etc.

dos em torno das práticas sociais de leitura e Imaginando, então, um momento em que o

escrita em nosso país. Que efeitos teriam essas processo de avaliação (do ponto de vista das

290
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor

ações das equipes avaliadoras: MEC e universi- 1. Um livro didático tende a selecionar uma



dades) esteja consolidado, o foco de atenção perspectiva teórico-metodológica, enquan-



passa a ser o professor e a escola onde se dá a to que a prática de sala de aula permite (ou


até mesmo exige) a diversidade; a prática de


escolha. O professor estaria preparado para ava-


liar um manual didático? É importante lembrar ensino na sala de aula envolve uma história


(sujeitos e ações, num determinado mo-


que os critérios e as estratégias de escolha dos


mento, com determinadas expectativas,


professores estarão marcados pela sua forma-


objetivos e conhecimentos), enquanto o li- 291
ção inicial e capacitação em serviço. Já existem


vro é um material previamente definido,


dados disponíveis de pesquisas sobre escolha e


endereçado a um perfil projetado de aluno


uso do livro didático que apontam a dificulda-


e de professor. Portanto, não pode ser o úni-


de de professores em adotar livros que exigem co material a ser “seguido”.


um conhecimento de que eles não dispõem.1


2. O livro didático não é o material e nem o


Disso se pode concluir que o conhecimen-


conteúdo de ensino-aprendizagem, nem os


to sobre livro o didático, a sua história, as suas


representa na sua amplitude: os livros, os


condições de produção, os seus conteúdos de-
jornais, as revistas, os filmes, os cd-roms que


veriam fazer parte da formação desse profes-


os alunos devem e podem ler, ver, ouvir não

sor. No entanto, sabemos (embora não tenha


podem estar dentro dos livros didáticos,
feito uma pesquisa e nem tenha levantado pes- assim como não estão as bibliotecas, as li-

quisas existentes sobre o assunto) que, mesmo vrarias, as ruas, as editoras etc. Os livros di-

nos cursos de Pedagogia, esses manuais têm dáticos podem representar apenas parte do

presença tímida. Nos cursos de licenciatura, a conteúdo e dos procedimentos que envol-

ausência do livro didático é conseqüência da vem o ensino-aprendizagem de uma disci-


própria concepção de que a licenciatura é uma plina.



complementação dos bacharelados.


3. Mesmo no espaço em que um livro didáti-


Assim, deixam-se para o final do curso os co pode operar, ainda existem restrições sig-

conteúdos de natureza pedagógica, que têm re- nificativas, pela própria diversidade de con-

lação com a escola, com o ensino-aprendizagem. cepções que o objeto de ensino em uma dis-

Assim também, mesmo que se queira abordar a ciplina pode apresentar, além dos proble-

questão do livro didático, ela só pode se apre- mas já cristalizados na história do livro di-

dático, o maior deles relacionado às orien-


sentar no interior de um conjunto de todos es-


ses conteúdos. O mais provável é que o livro di- tações dadas pelos próprios editores e à

dático ganhe existência, de fato, no momento em competência ou ao perfil de autores que es-

crevem livros didáticos no Brasil.


que o aluno for para o estágio e esbarrar inevita-



velmente com esse objeto. Por isso, além dos Magda Soares (1996: 63) destaca o processo

processos de avaliação e mudanças do livro, é de “desprestígio do lugar da autoria de livros di-



importante o processo de avaliação e de mudan- dáticos” no Brasil, em função da democratiza-



ças nos cursos de licenciatura e nos processos ção do ensino que amplia “enormemente o

de capacitação em serviço dos professores. mercado para o livro didático”:


É nesse espaço que se poderia pensar tam-



bém em reconfiguração do conceito ou da con- Como conseqüência dessa ampliação, altera-se



cepção do livro didático. Ao livro didático ain- o valor social e cultural atribuído aos livros di-

dáticos, afastando-se por isso da autoria deles


da se atribui uma função centralizadora,


monopolizadora do trabalho em sala de aula, o os intelectuais de alta qualificação científica e



que exige cobrar dele conteúdos, procedimen- educacional, principalmente responsáveis por

sua produção na primeira metade do século.


tos e materiais que a sua própria natureza não


Cresce, entretanto, o número de autores didáti-


permite assumir. Exemplos:






1
O MEC/Ceale está finalizando uma pesquisa sobre o processo de escolha do livro didático em escolas brasileiras.

cos, quase sempre professores dos níveis em que Nesse sentido, o problema do conteúdo do



ensinam. livro didático não se encontra apenas no mer-



cado editorial, nos seus autores, mas também


Além das questões que envolvem a produ-


nas condições históricas do seu leitor. O pro-


ção do livro didático, outros fatores comprome- fessor, como leitor e usuário do livro didático,



tedores da sua qualidade e do seu uso na escola define, de certa forma, os conteúdos e as estra-



geram dúvidas, sim, sobre a sua utilidade pe- tégias editoriais de produção desse livro. É prin-


dagógica e cultural. Um desses fatores são as cipalmente por ele e para ele que os editores/



condições de formação do professor e de exer- autores formulam uma imagem de leitor, com-



cício da sua profissão. Ou seja, muitas vezes, patível com seus conhecimentos, expectativas


vemos um professor com uma competência


e condições de exercício da profissão.


maior do que a do próprio livro submetendo O que adiantariam, então, propostas inova-



seus alunos ao livro didático, porque é o recur- doras, materiais sofisticados nos livros didáti-



so mais rápido e eficiente que ele tem para que cos, se o professor (ou a escola) não apresentar

a sua aula aconteça. Ele só toma conhecimento ○

as disposições esperadas – entendendo-se dis-
do conteúdo e da atividade que propôs ao alu- posições como o conhecimento desejável para

no no momento de “corrigir” os exercícios. a disciplina em que atua e as condições de exer-



cício da sua profissão (carga horária, número


O livro didático é também


de alunos, salário, infra-estrutura, materiais


etc.) – para utilizá-lo?


uma possibilidade para a


Dessa forma, somente uma mudança nas


formação do professor

condições de formação e de exercício da pro-


fissão docente pode propiciar uma melhoria na



Concluindo, no seu sentido mais amplo (o concepção e no conteúdo do livro didático, já


que se produz para a escola), o livro didático


que esses livros, a produção editorial, os pro-


também tem, historicamente, se constituído em


cessos de escolha e seus usos refletem com bas-


instrumento para a formação do professor. Es- tante evidência o estado da educação e da pro-

ses impressos têm papel significativo nessa for- fissão docente no Brasil.

mação, se considerarmos que é principalmen-



te por meio deles que o professor exerce e, mui-



tas vezes, aprende a sua profissão. Contudo,


Bibliografia

nem sempre se pode garantir a qualidade des-


sa formação.

BATISTA. Um objeto variável e inevitável: textos, impressos


Nesse sentido, mais do que os seus conteú- e livros didáticos. In: ABREU, M. (Org.). Leitura, história

dos, é importante pensar como esses materiais e história da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2000.

BONAZZI, M.; ECO, U. Mentiras que parecem verdades. São


a que podemos chamar manuais didáticos es-


Paulo: Summus, 1980.


tão organizados e são utilizados na prática de

FARIA, A. L. de. Ideologia no livro didático . São Paulo:


sala de aula. Atualmente, as demandas e pro-


Cortez. 1991.

postas políticas têm se pautado preferencial- MOLINA, Olga. Quem engana quem: professor x livro didá-

mente pelos guias curriculares e pelo livro di- tico . Campinas: Papirus, 1987.

dático, ou seja, por uma definição mais clara dos NOSELLA, Maria de Lourdes. As mais belas mentiras: a

conteúdos e procedimentos didáticos que de- ideologia subjacente aos textos didáticos. São Paulo:

Moraes, s. d.

vem reger a prática de ensino na sala de aula.


SOARES, Magda. Trabalho apresentado na XXIII Reunião


São importantes, sim, essas ações, mas elas po-


da Anped. Caxambu/MG, set./2000.

dem perder o seu alcance, quando tendem a ser


. Um olhar sobre o livro didático. Presença


vistas como redutoras de todo o conjunto das Pedagógica, n. 12, p. 53-63, Belo Horizonte, nov./dez.

questões que cercam o universo pedagógico. 1996.






292
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor

Escolha e uso do livro didático:




implicações para a formação




do professor






Lívia Suassuna


Universidade Federal de Pernambuco/PE 293






Resumo





Neste trabalho, pretendemos discutir o tema do


brasileira, dando especial ênfase ao conceito de au-


livro didático de Português – e, eventualmente, de toria. Nessa segunda parte, nosso objetivo é, de um



qualquer outra disciplina escolar, – a partir de pres- lado, ampliar o campo de análise do livro didático


supostos teóricos da análise do discurso. Em virtu- para além de sua dimensão propriamente didático-



de das muitas correntes de pensamento que se pedagógica e, de outro, relacionar alguns pressupos-

estruturaram em torno do rótulo “análise do discur- tos da análise do discurso com a prática pedagógica

so”, esclarecemos que será adotada aqui a linha fran- e o papel do professor como elaborador de aulas e,

cesa de estudo, caracterizada, grosso modo, pela ar- supostamente, responsável pela escolha e uso do li-

ticulação do discurso com a história e a ideologia. vro didático (daí a ênfase no conceito de autoria).

Inicialmente, faremos um rápido levantamen- Nas conclusões, tal como sugerido no título do

to de alguns estudos sobre livro didático para sali- trabalho, indicaremos algumas implicações do de-

entar que, seja qual for a especificidade de seus bate para a formação do professor. Nosso foco re-

subtemas – produção, circulação, avaliação, escolha, cairá sobre questões do tipo: o que significa, em

uso –, em grande parte deles é apontada ou persiste termos discursivos, adotar um livro didático? Como

a polêmica questão sobre se é válido ou não adotar


os sentidos se constroem e circulam no livro didá-


o livro didático nas aulas de Língua Portuguesa. tico e por meio dele? O que há de singular na práti-

Em seguida, exporemos alguns conceitos bási- ca pedagógica/discursiva de cada professor, ainda


cos da análise do discurso, a partir dos quais é pos- que ele adote um livro didático? Há lugar para a

sível pensar o livro didático e sua inserção na escola autoria no livro didático?






mesa-redonda, este trabalho não pode ser mui-


Alguns estudos

to extenso, citaremos aqui alguns desses estu-


sobre o livro didático


dos sobre LD, que consideramos relevantes e


e uma persistente questão exemplares da multiplicidade de perspectivas



em que as discussões se embasaram.


Historicamente, o livro didático (LD) tem


Um primeiro texto, datado de 1987, é, na


sido objeto de inúmeros estudos e pesquisas, re-


verdade, uma entrevista que João Wanderley


alizados sob os mais diferentes enfoques teóri- Geraldi deu a Ezequiel Theodoro da Silva,

cos e metodológicos. Para além da paixão que o publicada no periódico Leitura – teoria e práti-

tema desperta, os autores desses estudos pare-


ca. Nessa entrevista, Geraldi expôs algumas po-


cem ter em conta, freqüentemente, que o LD


sições que marcaram fortemente o debate em


constitui, de fato, material instrucional impres- torno do LD. Entre elas, figuram as seguintes:

cindível ao professor do Ensino Fundamental e a. “[...] a adoção de um LD [...] significa, na


Médio, chegando mesmo a orientar a prática


teoria e na prática, a alienação, por parte


pedagógica nesses níveis de instrução. do professor, de seu direito de elaborar suas



Dado que, como parte integrante de uma aulas” (p. 4);



b. “[...] uma vez adotado, o LD passa a condu- análises de produções, traduções e adaptações



zir o processo de ensino: de adotado passa para o público infanto-juvenil.



a adotar o professor e os alunos” (idem); Dentro da linha de pesquisa sobre o conteú-



c. “O LD se organiza em função dos conteú- do ideológico do LD, citamos os trabalhos de


dos a serem ensinados, não em função do Bonazzi e Eco (1980), Nosella (1981) e Faria



movimento do processo de ensino-apren- (1986). Ressalvadas certas peculiaridades de


dizagem.” (p. 5);


cada estudo, os três apontam para a mistifica-


d. “[...] o LD é adotado [...] porque dá as aulas ção da realidade presente no LD, que funciona-



prontas, dispensando de criá-las segundo ria como veículo de transmissão da ideologia



as necessidades concretas do movimento dominante e, por extensão, da reprodução das


do ensino-aprendizagem.” (idem);


relações de produção da sociedade capitalista.


e. “[...] os professores de Língua Portuguesa e O estudo de Perez (1991) tem como objetivo



os professores de Linguagem das séries ini- identificar e compreender o projeto de ensino


ciais do 1º grau deveriam, a meu ver, trocar

de Língua Portuguesa e de Literatura Brasileira
o LD pelo livro (sem adjetivos)” (p. 7). ○


subjacente a alguns manuais, pela análise de
Outro trabalho importante é o de Britto suas fontes teóricas e das relações dessa produ-

(1997). Depois de fazer uma retrospectiva do ção com o contexto social, em geral, e com a in-

debate nacional em torno do LD, o autor salien- dústria cultural em particular. Segundo o autor,

ta que alterações mais recentes na produção de


a pretensão era captar o diálogo entre o “antigo”


materiais didáticos (tais como a incorporação de e o “novo” saber, isto é, verificar como os discur-

novas linguagens e o tratamento politicamente sos contemporâneos sobre língua e literatura



correto de temas sociais) não evidenciam a exis- foram incorporados ao LD, ou, como disse Joa-

tência de mudanças substanciais nos livros, nos quim Fontes, no prefácio da obra, como esses

manuais e nas cartilhas. Para Britto, a questão discursos foram deslocados das universidades e

central repousa na relação que se estabeleceu centros de pesquisa para o livro escolar.

entre o LD e a prática pedagógica, e essa relação Perez concluiu, em sua análise, que esses sa-

interfere no estabelecimento de conteúdos e beres constituem, na verdade, uma série de frag-



programas, nas práticas de ensino e na própria mentos sobre língua e literatura, agrupados em

dinâmica do cotidiano escolar. dois blocos estanques. Considerando o LD um



O vínculo entre o LD e a prática escolar se fetiche cultural, ele afirma que mudar o LD im-

explica por três razões principais: 1) a plica uma nova concepção de cultura e a trans-

estruturação do sistema escolar na sociedade formação desse material em instrumento que



industrial de massa (que obriga a uma produ- propicie o enriquecimento cultural, a reflexão

ção em série e faz o LD se impor como necessi- sobre a sociedade e o acesso a formas efetivas

dade pragmática para as políticas de educação e de participação no capital cultural.



os agentes pedagógicos); 2) o papel ideal e ideo- O livro de Freitag, Costa e Motta (1997) cons-

logicamente atribuído à escola (que faz o LD to- titui um marco dos estudos acerca do LD. As au-

mar para si a tarefa de estabelecer uma ponte toras realizaram um “estado da arte” do LD no

entre as instâncias produtoras do conhecimen- Brasil, tomando para análise manuais e pesqui-

to e o processo pedagógico e funcionar como sas produzidos nos últimos quinze a vinte anos.

formulador do currículo); 3) a visão do aluno Nessa obra, defende-se que o estudo do LD não

como ser em formação (que dá origem a um pro- faz sentido se isolado dos demais componentes

cesso de simplificação e padronização da expo- do sistema educacional e que, por isso, a exposi-

sição do conteúdo, na forma de um “didatismo ção se organiza em torno dos seguintes eixos:

reducionista”, segundo o autor). histórico do LD, política do LD, economia do LD,


O que também vale destacar do estudo de


conteúdo do LD, uso do LD pelo professor e pelo


Britto é a riqueza de seus exemplos, que aluno, o LD em seu contexto.



extrapolam os manuais didáticos tradicionais e Em cada um dos eixos, as autoras procura-



se estendem aos livros paradidáticos, incluindo ram indicar os trabalhos de maior projeção, as

294
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor

lacunas de cada um e as críticas que merecem, à gares específicos numa dada sociedade; ao con-



luz do debate internacional, do funcionamento trário, ambos são encarados como “executores



do sistema educacional brasileiro e do LD no de tarefas” preconcebidas e padronizadas.1



contexto da alfabetização e da leitura em geral. Para concluir esta parte, reafirmamos que


Por fim, as autoras apresentam as conclu- são múltiplos os enfoques a partir dos quais se



sões, salientando que a pesquisa sobre LD no vem estudando e pesquisando o LD. Mas, a des-



Brasil tem longa tradição e veio apresentar mai- peito dessa diversidade, de um modo ou de ou-


or importância nos últimos cinco a dez anos. Elas tro, os autores sempre colocam, para si e para 295



ainda ressaltam, ao lado da quantidade, a quali- seus leitores, questões relativas à adoção ou não



dade, a profundidade e a heterogeneidade dos do LD e ao que se poderia fazer diante de suas



trabalhos empreendidos, dos quais tentaram fa- limitações e problemas (Mudar ou melhorar o


zer uma síntese, agrupando conhecimentos LD? Aboli-lo? Preparar melhor o professor? Dar-



dispersos e buscando “inserir cada peça dessa lhe outras condições de vida e trabalho?).



produção no imenso painel que representa a No caso deste ensaio, por já termos feito um



questão do LD no Brasil, com vista à elaboração outro estudo em que discutimos a adoção ou não


de um quadro básico para a formação e infor- do LD e possíveis critérios de análise, avaliação



mação do leitor”. e escolha (Suassuna, 1994), vamos propor um

Mais recentemente, o LD passou a ser estuda- deslocamento no eixo do debate e nos interro-

do na perspectiva teórica da análise do discurso. gar sobre outros aspectos pertinentes ao tema.

Na coletânea Interpretação, autoria e legitimação



do livro didático: língua materna e língua estran-


Análise do discurso

geira, busca-se compreender o LD e seus usos


como parte e momento do discurso escolar. e livro didático:



Destacamos, na obra, o trabalho de Coracini


autoria e subjetividade

(1999a), que considera o LD um lugar de estabi-


Pensamos que, embora já existam estudos


lização de sentidos – na medida em que ele mas-


cara a constitutividade heterogênea e polifônica sobre o LD embasados em conceitos e pressu-



do sujeito do discurso – e de homogeneização postos teóricos da análise do discurso (AD),



do discurso – na medida em que veicula verda- como já mostramos no item 1, não seria demais

propor mais este. A AD tem-se mostrado um


des tidas como absolutas e inquestionáveis, res-


paldadas que são pela Ciência. campo de conhecimento bastante produtivo no



Outra autora que se refere, nesses termos, ao que diz respeito à investigação sobre o ensino-

LD é Souza (1999), para quem esse tipo de ma- aprendizagem de línguas.


Em termos muito gerais, pode-se dizer que a


terial constitui elo importante na corrente do


discurso da competência, pois funciona como AD tem como objeto de estudo específico o dis-

espaço de um saber definido, pronto, acabado, curso como efeito de sentidos entre locutores. A

correto e, por isso, fonte última e, às vezes, úni- língua seria, na verdade, o lugar material em que

se realizam esses efeitos de sentido (Gregolin,


ca de referência.

Citamos, ainda, dessa mesma coletânea, o 1995). Assim, diante do texto, tomado como for-

artigo de Carmagnani (1999), que tematiza as mulação do discurso, o analista deve-se perguntar

não apenas o que texto diz e como diz, mas tam-


concepções de professor e aluno no LD e o ensi-


bém por que o texto diz o que diz (idem, ibidem).


no de redação em língua materna e língua es-


trangeira. Diz Carmagnani que o professor e o É ainda em Gregolin (1995: 20) que podemos ler o

aluno não são vistos como sujeitos situados po- que significa empreender AD: “[significa] tentar

entender e explicar como se constrói o sentido de


lítica e ideologicamente, como ocupantes de lu-







1
Silva e outros (1997) compartilham da mesma opinião e se referem à monofonização do discurso do aparelho escolar, cujo tom único é dado

pelo material didático.



um texto e como esse texto se articula com a his- zeres. Há, portanto, uma relação intrínseca en-



tória e a sociedade que o produziu”. tre autoria e locutor (como falante responsável



A AD coloca-se diferentemente em relação à pelo que diz) e a singularidade (forma peculiar



Lingüística tradicional não apenas por articular pela qual o autor se faz presente no texto).


os campos da língua e da ideologia, mas tam- Possenti indaga em seu trabalho: Como co-



bém porque parte de uma outra concepção de locar a questão da autoria nas redações de ves-



sujeito (Possenti, 1995): não se trata mais do su- tibular?3 Se antes se considerava bom um texto


jeito idealizado, consciente, fonte dos sentidos, gramaticalmente correto, pois as categorias de



mas de um sujeito dividido, heterogêneo, cons- julgamento eram claramente estabelecidas nas



tituído pelo outro (e aqui se vê claramente a in- gramáticas normativas, agora se trata de ir adi-



fluência da psicanálise na AD). ante: um texto só pode ser avaliado em termos


A questão que nos interessa de perto neste discursivos, mais exatamente, “[...] a questão da



artigo é exatamente a do sujeito (da autoria, mais qualidade do texto passa necessariamente pela



precisamente), no seguinte sentido: consideran- questão da subjetividade e de sua inserção num


do que o processo de ensino-aprendizagem de ○
quadro histórico – ou seja, num discurso – que
Língua Portuguesa é um discurso, que lugar (po- lhe dê sentido” (Possenti, 2000: 3).

sição discursiva) cabe ao professor que escolhe/ Trata-se, pois, para Possenti, de singularida-

adota/usa o LD na aula? Seria o professor um de e de tomada de posição do sujeito. Isso por-



autor (sujeito do discurso)?2 que o sujeito sempre enuncia a partir de posições


Para empreender a discussão, vamos tomar historicamente dadas, num aparelho discursivo

como referência um trabalho ainda inédito em institucionalizado e prévio. Assim, assumindo



que Possenti (2000) coloca questão parecida ao uma posição histórico-ideológica, o sujeito, em-

tratar de textos de vestibulandos. bora heterogêneo, cindido, pode ser ele mesmo,

O autor inicia seu artigo afirmando que es- ou seja, diferente de outro que esteja numa mes-

crever (bem) é mais uma questão de como do ma posição discursiva. O que vai distingui-los,

que uma questão de o quê. Segundo ele, houve conforme Possenti, é exatamente o como.

um tempo em que a escola valorizava mais o Prosseguindo em sua argumentação, o autor



conteúdo das redações, seja pela necessidade tenta mostrar como seria possível identificar a

de tornar o aluno sujeito de um discurso críti- presença do autor num texto, ou mesmo distin-

co, seja porque, a partir de um pressuposto bá- guir textos com e sem autoria. Para tanto, ele faz

sico da Teoria da Informação, sem mensagem algumas afirmações:



não haveria texto. O autor defende, todavia, 1. Não basta que o texto satisfaça exigências

que, do mesmo modo como ler não é exatamen- de ordem gramatical.



te captar o conteúdo de um texto e, sim, 2. Não basta que o texto satisfaça exigências

desmontá-lo para ver como ele se constrói, para de ordem textual.



verificar a relação entre seu modo de ser 3. As verdadeiras marcas de autoria são da or-

construído e os efeitos de sentido que ele pro- dem do discurso, e não do texto ou da gra-

duz, escrever seria, mais do que expor uma mática.


mensagem, articular informações, idéias, dis-


Isso posto, Possenti estrutura sua tese: pode-


cursos; trabalhar sobre e a partir de outros tex- se dizer que alguém se torna autor quando as-

tos ou de textos de um outro. sume, fundamentalmente, duas atitudes:



A autoria residiria exatamente nessa opera- a) dá voz a outros enunciadores, incorpora ao


ção de construção do dizer a partir de outros di-


seu texto discursos correntes;





2
Souza (1999) também aborda essas questões, mas de um ângulo diferente. Ela mostra que a autoria do LD está associada, predominante-

mente, ao sujeito escritor, considerado autor desde que sua autoridade seja legitimada pela editora que o valida. Souza ainda situa o autor

como um “intérprete de conteúdos complexos”, responsável pela configuração do conhecimento a partir da seleção do conteúdo a ser

veiculado na escola.

3
Pensamos que a indagação é cabível também na discussão sobre os textos escolares em geral.

296
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor

b) mantém distância em relação ao próprio Retomemos o pressuposto de que o processo de



texto. ensino de Português é um discurso. Acrescente-



Em termos da primeira atitude, o discurso do mos que a aula seria um espaço de construção



autor, na verdade, não lhe pertence; pertence a da autoria do professor. Argumentemos agora


em defesa desse não.


toda uma comunidade cultural; seu discurso é


atravessado pelo do outro. No entanto, nesse O professor não é autor da aula, primeiramen-



gesto de dar voz a outros enunciadores, há algo te porque o como não cabe a ele e, sim, ao autor


do LD, ou seja, este é quem articula discursos e 297


do autor: o jeito, o como. Quanto a manter dis-


os entrega ao professor, mero repassador do já-


tância, o locutor/enunciador constitui-se como


tal por marcar sua posição em relação ao que diz dito e já-articulado.



e também ao seu interlocutor. Essa marcação de Em segundo lugar, pensando o professor


como um leitor e tomando a concepção de leitu-


posição é uma exigência do próprio discurso,


decorrente do fato de que a língua não é um có- ra de Possenti (2000), verifica-se que o professor



digo transparente e sua relação com a posição/ não é o sujeito que desmonta os textos para ver



ideologia não é direta. como eles são construídos, verificando a relação


entre a sua construção e os efeitos de sentido que


Assim, o discurso e a intervenção no discur-

so se estruturam: produzem. Estão fora do controle do professor a

a) no sentido histórico, pois não se trata de escolha e a desmontagem dos textos, tendo em

invenção individual (há um já-dito posto na vista que suas aulas são como momentos de um

sociedade); projeto pedagógico. Os textos do LD, previamen-



b) no sentido da singularidade, pois não se tra- te escolhidos por um outro leitor, devem fazer

ta de intervenção idêntica à de um outro sentido em qualquer aula pensada em abstrato.


Outro aspecto a ser pensado é o da relação


sujeito que esteja na mesma posição.


autoria–locutor–singularidade. O professor não


Uma questão importante, então, passa a ser:


é o responsável pelo dizer do LD e, de modo


como dar voz ao(s) outro(s)? Para Possenti, é o


correlato, não se faz presente no fluxo do discur-


caso de fazer isso de modo variado, tomando


so escolar de modo peculiar, não havendo aí

posições ou fazendo sentido de outras formas.


marcas (indícios) de subjetividade.


O sujeito adequaria as suas escolhas ao contex-


Em quarto lugar, podemos fazer um paralelo


to, conferindo densidade ao seu discurso e rela-


com o que Possenti diz sobre a qualidade de um


cionando-o com outros discursos e com a me-

texto. Esta passaria, necessariamente, pela ques-


mória social em que ele está inscrito.


tão da subjetividade e de sua inserção num qua-


Para finalizar, o autor afirma que há indícios


dro histórico que lhe dê sentido. Se, de um lado,


de autoria quando os diversos recursos da língua


como já visto, não há subjetividade, por outro lado


são agenciados de modo mais ou menos pessoal.

é difícil acreditar que o professor (re)assumiria a


Simultaneamente, o apelo a tais recursos só pro-


autoria da aula – esta, um quadro histórico – ao


duz efeitos de autoria quando eles são agencia-


reproduzir e repassar as escolhas de um outro


dos em contextos históricos definidos, pois só


sujeito, o autor do LD.


assim é que fazem sentido.

Mais um ponto a debater: “As verdadeiras



marcas de autoria são da ordem do discurso, e não


Conclusão

do texto ou da gramática”. Transpondo a tese para


Nosso intuito, já anunciado, foi discutir o LD


a sala de aula, vemos que o LD, por mais bem fun-


com base em conceitos e fundamentos da análi- damentado e elaborado que possa ser, por mais

se do discurso. Especificamente, nossa questão que tenha coerência interna, está fora da ordem

dizia respeito à autoria e a questão teórica que do discurso instituída na aula e por ela. Sua ado-

nos preocupava era: o professor de Português, ao


ção é incompatível com a idéia do processo edu-


usar o LD, é um autor? cativo e da linguagem como eventos discursivos.



A resposta, conforme nosso ponto de vista e Quanto às duas atitudes que fazem de alguém

o diálogo com o texto de Possenti (2000), é não. um autor – dar voz a outros enunciadores e man-

ter distância em relação ao próprio texto –, não é Bibliografia



do professor a “operação de caça” aos dizeres dos


BONAZZI, M.; ECO, U. Mentiras que parecem verdades. São


outros;4 eles já estão ali, no LD, escolhidos, recor-


Paulo: Summus, 1980.


tados, configurados; e, como a articulação desses BRITTO, L. P. L. A concepção de língua e gramática nas produ-


dizeres já está dada, não se pode dizer que o pro-


ções didáticas. Leitura – teoria e prática, n. 29, p. 3-15, ano


fessor mantenha distância em relação ao seu pró- 16, jun. 1997.


CARMAGNANI, A. M. G. A concepção de professor e de aluno


prio texto, já que este não existe como produto da


no livro didático e o ensino de redação em língua materna
reflexão e do trabalho docente (como manter dis-


e língua estrangeira. In: CORACINI, M. J.(Org.). Interpreta-


tância em relação ao meu dizer se eu não digo?).


ção, autoria e legitimação do livro didático: língua materna


Por último, e sem a pretensão de esgotar o e língua estrangeira. Campinas: Pontes, 1999. p. 127-33.


CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 4. ed. Petrópolis: Vozes,


debate, retomemos a idéia de Possenti, de que


1994. v. 1: Artes de Fazer.
ser autor é agenciar os recursos da língua de


CORACINI, M. J. Apresentação. In: CORACINI, M. J. (Org.). Inter-


modo mais ou menos pessoal e de que esse


pretação, autoria e legitimação do livro didático: língua mater-


agenciamento só produz efeitos de autoria quan- na e língua estrangeira. Campinas: Pontes, 1999a. p. 11-14.

○ .A produção textual em sala de aula e a identi-
do se dá num contexto histórico definido. Há ○

dade do autor. In: .(Org.). Interpretação, au-


aqui uma questão bastante interessante: quais

toria e legitimação do livro didático: língua materna e lín-


recursos (textos, informações, conceitos cientí-


gua estrangeira. Campinas: Pontes, 1999b. p. 167-75.


ficos, crenças, ideologias, conteúdos, dados cul- FARIA, A. L. G. Ideologia no livro didático. 4. ed. São Paulo:

turais etc.) o professor agencia de modo mais ou Cortez/Autores Associados, 1986.


menos pessoal em contextos históricos defini- FREITAG, B. et al. O livro didático em questão. 3. ed. São Pau-

lo: Cortez, 1997.


dos (suas aulas)? Seria isso possível quando a ele


GERALDI, J. W. Livro didático de Língua Portuguesa: a favor ou


cabe, quando muito, escolher um LD a partir de contra? Entrevista a Ezequiel Theodoro da Silva. Leitura –

catálogos pouco informativos? Seria isso possí-


teoria e prática, n. 9, p. 4-7, ano 6, jun. 1987.


vel com o salário que ele ganha e com as condi- GREGOLIN, M. R. V. A análise do discurso: conceitos e aplica-

ções. Alfa, n. 39. p. 13-21, 1995.


ções em que vive e trabalha? Seria isso possível

NOSELLA, M. L. C. D. As belas mentiras: a ideologia subjacente


numa escola sem biblioteca (o que significa di- aos textos didáticos. 4. ed. São Paulo: Moraes, 1981.

zer livros, revistas, jornais, mapas e também


PEREZ, J. R. R. Lição de Português: tradição e modernidade


aconchego, curiosidade, alegria de aprender)?5 no livro escolar. São Paulo/Campinas: Cortez/Editora da



Fica assumido aqui, portanto, que um impe- Unicamp, 1991.


POSSENTI, S. Indícios de autoria (a propósito de textos de


rativo da formação inicial e continuada do profes-


vestibulandos). Campinas: Unicamp, 2000 (mimeo.).


sor é que ele seja um articulador de dizeres e um

.O “eu” no discurso do “outro” ou a subjetividade


crítico de seu próprio dizer. Isso só é exeqüível se mostrada. Alfa, n. 39, p. 45-55, 1995.

houver livros (sem adjetivo, como diria Geraldi), SILVA, A. C. et al. A leitura do texto didático e didatizado. In:

CHIAPPINI, L. (Coord.). Aprender e ensinar com textos. São


idéias a mancheias e um clima de vivência demo-


Paulo: Cortez, 1997. p. 31-93. v. 2: Aprender e ensinar com


crática em que a crítica seja uma constante. Como

textos didáticos e paradidáticos.


sugere Coracini (1999b), trata-se de abrir espaço


SOUZA, D. M. Autoridade, autoria e livro didático. In: CORACINI,


para a alteridade, para o estranhamento do outro; M. J. (Org.). Interpretação, autoria e legitimação do livro

didático: língua materna e língua estrangeira. Campinas:


de promover a disseminação dos sentidos. Assim


Pontes, 1999. p. 27-31.


talvez nos desobrigássemos da repetição de uma

SUASSUNA, L. Contribuições ao debate sobre o material didá-


velha frase que sempre nos soou incômoda: “O li-


tico de Língua Portuguesa. Leitura – teoria e prática, n. 24,


vro didático é um mal necessário”. p. 83-90, ano 13, dez. 1994.









4
A expressão “operação de caça” é de Michel de Certeau (1994), que a empregou para descrever o processo de leitura.

5
Cf. também Silva et al. (1997: 81): “Tal independência [a do professor em relação ao LD] só será conquistada pelo professor se este desenvol-

ver suas próprias habilidades de leitura. É preciso gostar de ler – seja pelo prazer pessoal ou pelo comprometimento com a sua opção de

trabalho – e criar um repertório significativo, que dê respaldo à necessidade prática do cotidiano escolar, incluindo obras literárias, os

chamados paradidáticos, ensaios críticos e outros subsídios que o façam refletir sobre o exercício de sua atividade”.

SIMPÓSIO 20

POR UMA PROPOSTA


CURRICULAR PARA
O 2º SEGMENTO NA EJA
Célia Maria Carolino Pires

Maria Cecília Condeixa

Maria José M. de Nóbrega

Paulo Eduardo Dias de Mello

299
Por uma Proposta Curricular




para o 2º segmento de EJA





Célia Maria Carolino Pires – PUC/SP




Maria Cecília Condeixa – Especialista em Ciências Naturais




Maria José M. de Nóbrega – Especialista em Língua Portuguesa




Paulo Eduardo Dias de Mello – Especialista em História e Geografia








A Coordenação de Educação de Jovens e segmento tem a finalidade de apresentar ele-

Adultos (Coeja) da Secretaria de Educação ○

mentos para a construção de uma proposta
Fundamental do Ministério da Educação curricular local que subsidie a implementa-

disponibiliza às Secretarias de Educação do- ção dos Parâmetros Curriculares Nacionais do



cumentos que subsidiam o trabalho no 1º seg- Ensino Fundamental em turmas de jovens e


mento (1ª a 4ª séries/1º e 2º ciclos) da Educa- adultos que cursam etapas equivalentes ao

ção de Jovens e Adultos (EJA). No que se refe- terceiro e quarto ciclos (5ª a 8ª séries).

re ao 2º segmento (5ª a 8ª séries/3º e 4º ciclos),



o material que tem sido oferecido às equipes


Introdução

pedagógicas das Secretarias de Educação, às



escolas e aos professores são os Parâmetros A Proposta Curricular para o 2º segmento



Curriculares Nacionais (PCN) de 5ª a 8ª série, da EJA parte do princípio de que a constru-


ção de uma educação básica para jovens e


considerando-se que a Educação de Jovens e


Adultos é uma modalidade do Ensino Funda- adultos, voltada para a cidadania, não se re-

mental. solve apenas garantindo a oferta de vagas,



No entanto, a Coeja tem recebido inúme- mas, sim, oferecendo-se ensino de qualidade,

ministrado por professores capazes de incor-


ras solicitações no sentido de elaborar orien-


tações de adequação das propostas contidas porar ao seu trabalho os avanços das pesqui-

nesse documento às especificidades dos alu- sas nas diferentes áreas de conhecimento e de

nos – jovens e adultos – e também às limita- estar atentos às dinâmicas sociais e a suas

implicações no âmbito escolar. Além disso, é


ções de tempo que caracterizam os cursos de


suplência, indicando critérios de seleção e or- necessário definir claramente o papel da Edu-

ganização de conteúdos e alternativas de tra- cação de Jovens e Adultos na sociedade bra-



tamento didático compatíveis com um ensi- sileira e de que modo os objetivos propostos

para o Ensino Fundamental podem ser atin-


no de qualidade.

A oferta de ensino de qualidade em todas gidos por esses alunos.



as instituições que trabalham com a Educa- Como a Proposta Curricular para a Edu-

ção de Jovens e Adultos constitui necessida- cação de Jovens e Adultos é construída a par-

tir das orientações dos Parâmetros Curricu-


de urgente em função do respeito que mere-


cem as pessoas que buscam a escola para re- lares Nacionais, é fundamental destacar que

tomar sua trajetória escolar, muitas vezes estes se caracterizam por:


• apontar a necessidade de unir esforços


motivadas pela demanda crescente de um ní-


entre as diferentes instâncias governa-


vel de escolaridade cada vez maior para in-


serção no mundo do trabalho e da cultura e mentais e da sociedade, para apoiar a es-


cola na complexa tarefa educativa;


na própria sociedade.

Assim sendo, a Proposta Curricular do 2º • mostrar a importância da participação da


300
SIMPÓSIO 20
Por uma Proposta Curricular para o 2º segmento na EJA

comunidade na escola, de forma que o co- práticas educativas e como mediadores do



nhecimento aprendido gere maior com- conhecimento socialmente produzido;



preensão, integração e inserção no mun- destacar a importância de que os docentes


do; a prática escolar comprometida com possam atuar com a diversidade existente



a interdependência escola–sociedade tem entre os alunos e com seus conhecimentos


como objetivo situar as pessoas como par- prévios como fonte de aprendizagem de



ticipantes da sociedade – cidadãos – des- convívio social e meio para a aprendizagem



de o primeiro dia de sua escolaridade; de conteúdos específicos. 301



• contrapor-se à idéia de que é preciso estu- A formação para o exercício da cidadania –


dar determinados assuntos porque um dia


eixo condutor dos Parâmetros Curriculares Na-


eles serão úteis; o sentido e o significado da cionais do Ensino Fundamental – é também a



aprendizagem precisam estar evidenciados linha mestra da Proposta Curricular para a


durante toda a escolaridade, de forma a es-


Educação de Jovens e Adultos apresentada.


timular nos alunos o compromisso e a res-


São essas definições que servem de norte
ponsabilidade com a própria aprendizagem;


para o trabalho das diferentes áreas curricu-



• explicitar a necessidade de que os jovens e lares que estruturam o trabalho escolar: Lín-


os adultos deste país desenvolvam suas di-

gua Portuguesa, Matemática, Ciências Natu-
ferentes capacidades, enfatizando que a ○

rais, História, Geografia, Arte, Educação Físi-


apropriação dos conhecimentos social-

ca e Língua Estrangeira, e também para a


mente elaborados é base para a construção


abordagem das questões da sociedade brasi-


da cidadania e da sua identidade e que to-


leira, como aquelas ligadas a Ética, Meio Am-


dos são capazes de aprender; mostrar que

biente, Orientação Sexual, Pluralidade Cultu-


a escola deve proporcionar ambientes de


ral, Saúde, Trabalho e Consumo ou a outros


construção dos seus conhecimentos e de


desenvolvimento de suas inteligências, temas que se mostrem relevantes.



com suas múltiplas competências;



• apontar a fundamental importância de que


A Língua Portuguesa

cada escola tenha clareza quanto ao seu


na Educação de Jovens

projeto educativo, para que, de fato, possa



se constituir em unidade com maior grau


e Adultos

de autonomia, e que todos que dela fazem


parte possam estar comprometidos em Os cursos destinados à Educação de Jo-



atingir as metas a que se propuseram; vens e Adultos devem oferecer a quem os pro-

• ampliar a visão de conteúdo para além dos cura a possibilidade de desenvolver as com-

petências necessárias para a aprendizagem


conceitos, inserindo procedimentos, ati-


tudes e valores como conhecimentos tão dos conteúdos escolares, bem como a possi-

relevantes quanto os conceitos tradicio- bilidade de aumentar a consciência em rela-



nalmente abordados; ção ao estar no mundo, ampliando a capaci-


dade de participação social, no exercício da


• evidenciar a necessidade de tratar de te-


mas sociais urgentes – chamados Temas cidadania. Para realizar esses objetivos, o es-

Transversais – no âmbito das diferentes tudo da linguagem é um valioso instrumen-



áreas curriculares e no convívio escolar; to. Qualquer aprendizagem só é possível por


meio dela, já que é com a linguagem que se


• apontar a necessidade do desenvolvimen-


to de trabalhos que contemplem o uso das formaliza todo conhecimento produzido nas

tecnologias da comunicação e da informa- diferentes disciplinas e que se explica a ma-



ção, para que todos, alunos e professores, neira como o universo se organiza.

possam delas se apropriar e participar, O estudo da linguagem verbal traz em sua



bem como criticá-las e/ou delas usufruir; trama tanto a ampliação da modalidade oral,

• valorizar os trabalhos dos docentes como por meio dos processos de escuta e de produ-

produtores, articuladores, planejadores das ção de textos falados, como o desenvolvimen-



to da modalidade escrita, que envolve o pro- da EJA sobre esse processo, tarefa da área de



cesso de leitura e o de elaboração de textos. Língua Portuguesa, é estabelecer a cumplicida-



Além dessa dimensão mais voltada às práticas de entre ele e a palavra.



sociais do uso da linguagem, o estudo da lin-


guagem envolve, também, a reflexão acerca de



seu funcionamento, isto é, dos recursos estilís- A Matemática na Educação



ticos que mobiliza e dos efeitos de sentido que
de Jovens e Adultos


produz. Participamos de um mundo que fala,



escuta, lê, escreve e discute os usos desses atos As exigências do mundo moderno têm



de comunicação. Para compreendê-lo melhor, pressionado as sociedades a investir na ele-



é necessário ampliar competências e habilida- vação dos níveis de escolarização de toda a


des envolvidas no uso da palavra, isto é, do- população. Os esforços de inclusão de jovens



minar o discurso nas diversas situações comu- e adultos nos sistemas escolares aos quais eles



nicativas, para entender a lógica de organiza- não tiveram acesso quando crianças e adoles-

ção que rege a sociedade, bem como interpre- ○

centes respondem por essas exigências e são,
tar as sutilezas de seu funcionamento. A tarefa em grande parte, definidos por elas. A quase

de ensinar a ler e a escrever e tudo que envol- totalidade dos alunos desses programas são

ve a comunicação favorece a formação dessa trabalhadores, com responsabilidades profis-


sionais e domésticas, pouco tempo de lazer e


estrutura de pensamento específico e ajuda a


desenvolver as habilidades que implicam tal expectativas de melhorar suas condições de



competência. O trabalho com a oralidade e a vida. No entanto, esses programas não devem

escrita anima a vontade de explicar, criticar e se ater à preparação de mão-de-obra espe-


contemplar a realidade, pois as palavras são cializada nem se render, a todo instante, às

instrumentos essenciais para a compreensão oscilações do mercado de trabalho, mas, sim,



e o maravilhamento. desenvolver uma educação que não dissocie



Em uma série de circunstâncias, a necessi- escola e sociedade, conhecimento e trabalho


dade do uso da linguagem se manifesta: da lei- e coloque o aluno ante desafios que lhe per-

tura do nome das placas à leitura de jornais, mitam desenvolver atitudes de responsabili-

textos científicos, poemas e romances; da ela- dade, compromisso, crítica, satisfação e reco-

boração de um bilhete à comunicação e expres- nhecimento de seus direitos e deveres.


são de pensamentos próprios e alheios. Daí a A Matemática tem um papel fundamental



importância de um curso que permita ao aluno nessa formação. Aprender Matemática é um di-

da EJA ter uma experiência ativa na elaboração reito básico de todas as pessoas e uma resposta

de textos, um curso que discuta o papel da lin- a necessidades individuais e sociais do homem.

guagem verbal, tanto no plano do conteúdo Nesse aspecto, a Matemática pode dar sua

como no plano da expressão. É importante que contribuição à formação dos jovens e adultos

o aluno perceba que a língua é um instrumento que buscam a escola, ao desenvolver metodo-

vivo, dinâmico, facilitador, com o qual é possí- logias que enfatizem a construção de estratégias,

vel participar ativamente e essencialmente da a comprovação e a justificativa de resultados, a



construção da mensagem de qualquer texto. As criatividade, a iniciativa pessoal, o trabalho co-



experiências conseguidas por meio da escuta e letivo e a autonomia advinda da confiança na



da leitura de textos, bem como do freqüente própria capacidade para enfrentar desafios. Além

exercício de expressar idéias oralmente e por disso, para exercer a cidadania é necessário sa-

escrito, são grandes fontes de energia que im- ber calcular, medir, raciocinar, argumentar, tra-

pulsionam novas descobertas, elaboração e di- tar informações estatisticamente etc.


Outra contribuição da Matemática é au-


fusão de conhecimento. Um texto, como a de-


cifração de qualquer ato de comunicação, é, xiliar a compreensão de informações, muitas



antes de tudo, uma prática social que se dá na vezes contraditórias, que incluem dados es-

interação com o outro. Conscientizar o aluno tatísticos e tomadas de decisões diante de


302
SIMPÓSIO 20
Por uma Proposta Curricular para o 2º segmento na EJA

questões políticas e sociais que dependem da aprendizagem dos alunos de EJA, sejam valo-



leitura crítica e interpretação de índices di- rizados os conceitos e categorias da Geografia



vulgados pelos meios de comunicação. já apropriados por eles, estabelecendo um elo



De modo geral, um currículo de Matemá- com as noções dos diferentes espaços conhe-


tica para jovens e adultos deve procurar con- cidos em seu cotidiano. A partir de sua reali-



tribuir para a valorização da pluralidade dade, gradativamente e dialogando sobre os



sociocultural e criar condições para que o alu- conhecimentos que obtiveram de modo infor-


no se torne ativo na transformação de seu am- mal com os saberes geográficos já adquiridos 303



biente, participando mais ativamente no na escola, que esses alunos possam estabele-



mundo do trabalho, da política e da cultura. cer ligações entre esse cotidiano e os diferen-



tes espaços geográficos – local, regional, nacio-


A Geografia na Educação de nal e internacional.



Esses conhecimentos geográficos que os
Jovens e Adultos



alunos da EJA já detêm irão contribuir para a


No ensino de Geografia para EJA, é impor-


sistematização e ampliação dos conceitos e


tante que o aluno observe, interprete e compre- noções necessários para ajudá-los a fazer a



enda as transformações socioespaciais ocorri- leitura e a análise do lugar em que vivem, a

das em diferentes lugares e épocas e estabeleça relacionar e a comparar o espaço local, o es-

comparações entre semelhanças e diferenças


paço brasileiro e o espaço mundial, ajustan-


relativas às transformações socioespaciais do do a escola às demandas sociais atuais.



município, do estado e do país onde mora. Segundo os PCN, a Geografia estuda as re-

Ele deve participar ativamente do procedi- lações entre o processo histórico que regula a

mento metodológico da construção de conhe- formação das sociedades humanas e o funcio-



cimentos geográficos, valendo-se da cartogra- namento da natureza, por meio da leitura do



fia como forma de representação e expressão espaço geográfico e da paisagem. As percep-



dos fenômenos socioespaciais; da construção, ções, as vivências e a memória dos indivíduos


leitura e interpretação de gráficos e tabelas; da e dos grupos sociais são, portanto, elementos

produção de textos e da utilização de outros importantes na leitura da espacialidade da so-



recursos que possibilitem registrar seu pensa- ciedade, tendo em vista a construção de pro-

mento e seus conhecimentos geográficos. Não jetos individuais e coletivos que transformam

significa que, ao finalizar o Ensino Fundamen- os diferentes espaços em diferentes épocas,



tal, ele terá se tornado um geógrafo, mas, de incorporando o movimento e a velocidade, os



acordo como os PCN, deve ser conduzido a ritmos e a simultaneidade, o objetivo e o sub-

examinar um tema, a analisar e a refletir sobre jetivo, o econômico e o social, o cultural e o


a realidade, utilizando diferentes recursos e individual.



métodos da Geografia e valendo-se do modo



de pensar próprio dessa disciplina.


As Ciências Naturais

Para concretizar esse processo de trabalho



com o aluno, é fundamental que seja elabora- na Educação de Jovens



do um projeto para estabelecer os objetivos e


e Adultos

conteúdos a serem tratados, as diferentes dis-


cussões sobre os temas escolhidos, as formas, O ensino de Ciências Naturais vem pas-

as possibilidades e os meios de trabalhá-los. É sando por profundas transformações nas úl-



necessário que o professor estude e reflita co- timas décadas. Tradicionalmente priorizam-

se a descrição dos fenômenos naturais e a


letivamente, com áreas afins ou mesmo indi-


vidualmente, para escolher o objeto de estudo transmissão de definições, regras, nomencla-



que deve interessar os alunos da EJA e ampliar turas e fórmulas, muitas vezes sem se estabe-

o conhecimento deles sobre a realidade. lecerem vínculos com a realidade do estudan-


te, o que dificulta a aprendizagem. As discus-


É fundamental que, no desenvolvimento da



sões acumuladas sobre o ensino de Ciências e contrapõem as observações de fenômenos,



apontam para um ensino mais atualizado e estabelecendo relações entre informações. As-



dinâmico, mais contextualizado, onde são sim, podem tornar-se indivíduos mais consci-



priorizados temas relevantes para o aluno, li- entes de suas opiniões, mais flexíveis para


gados ao meio ambiente, à saúde e à trans- alterá-las e mais tolerantes com opiniões di-



formação científico-tecnológica do mundo e ferentes das suas. Essas atitudes colaboram



à compreensão do que é Ciência e Tecnologia. para que o aluno cuide melhor de si e de seus


Busca-se a promoção da aprendizagem familiares, permanecendo atento à prevenção



significativa tal que ela se integre efetivamen- de doenças, às questões ambientais, e se utili-



te à estrutura de conhecimentos dos alunos e ze das tecnologias existentes na sociedade de



não aquela realizada exclusivamente por forma também mais consciente.


memorização, cuja função é ser útil na hora



da prova. A aprendizagem significativa é uma A História na Educação de


teoria da Psicologia desenvolvida com base
em diversos estudos teóricos e práticos. Ela ○


Jovens e Adultos
afirma que toda aprendizagem real tem por Geralmente os alunos da EJA de 5ª a 8ª

base conhecimentos anteriores, que são mo- séries, como também acontece com os ado-

dificados, ampliados ou renegados mediante lescentes e alunos de cursos noturnos do


Ensino Fundamental regular, trazem uma


a aquisição de novas informações e de novas


reflexões sobre um determinado conteúdo. concepção prévia de que a História estuda



No caso de Ciências Naturais, esses conteú- o passado.



dos são temas ou problemas relativos aos fe- Isso é fruto, entre outras razões, do fato

nômenos naturais e às transformações pro- de que na maioria das escolas brasileiras



movidas pela ação humana na natureza. ainda se ensina essa disciplina de forma

A mesma tendência vem sendo conferida bastante tradicional, fundamentada numa



no campo da EJA, com novas propostas, de visão de tempo linear, e também verbalista,

modo que a área de Ciências possa colaborar com base em aulas expositivas sobre temas

com a melhoria da qualidade de vida do es- desvinculados de problemáticas da vida



tudante e a ampliação da compreensão do real, nas quais o professor entende ser seu

mundo de que participa, profundamente mar- papel apenas fornecer conhecimentos aos

cado pela Ciência e pela Tecnologia. estudantes.



É preciso selecionar temas e problemas re- Outra idéia comum entre alunos da EJA e

levantes para o grupo de alunos, de modo que de outras faixas etárias é a de que obras e do-

eles sejam motivados a refletir sobre as suas cumentos histór icos são como verdades

próprias concepções. Essas concepções po- inquestionáveis. O educador deve estar aten-

dem ter diferentes origens: na cultura popu- to a isso e planejar momentos em que essas

lar, na religião ou no misticismo, nos meios concepções prévias sejam questionadas. Tam-

bém deve considerar que tanto os textos quan-


de comunicação e ainda na história de vida


do indivíduo, sua profissão, sua família etc. to os diferentes tipos de fontes constituem ver-

São explicações muitas vezes arraigadas e sões da realidade. Dois exemplos de ativida-

preconceituosas, chegando a constituir obs- des, para ilustrar essas idéias: comparar tex-

tos didáticos que tenham visões diferentes so-


táculo à aprendizagem científica.


Os estudos, as discussões e a atuação do bre um mesmo tema; comparar matérias de



professor devem ajudar os alunos a perceber e diversos jornais escritos que tratem de assun-

a modificar suas explicações. Portanto, é es- to atual de interesse dos estudantes e relacio-

nar o tema a outros momentos históricos.


sencial oferecer oportunidades para que de-


senvolvam o hábito de refletir sobre o que ex- Como apontam os Parâmetros Curricula-

pressam oralmente ou por escrito. Sob a con- res Nacionais de História, o conhecimento

dução do professor, os alunos questionam-se histórico é “um campo de pesquisa e produ-


304
SIMPÓSIO 20
Por uma Proposta Curricular para o 2º segmento na EJA

ção de saber em permanente debate que está nísticos, principalmente entre aquelas pessoas



longe de apontar para um consenso”. Assu- que vivem nos grandes centros urbanos do Bra-



mir essa postura diante do conhecimento é sil e do mundo, regiões em que o consumismo,



também perceber que, no espaço escolar, “o o imediatismo e o “presentismo” têm marcado


conhecimento é uma reelaboração de mui- as relações sociais.



tos saberes, constituindo o que se chama de Como atualmente a maioria dos alunos da



saber histórico escolar”, elaborado no “diá- EJA têm mais idéias e percepções sobre o mun-


logo entre muitos interlocutores e muitas do atual, o professor deve aproveitar essa ca- 305



fontes”, sendo “permanentemente recons- racterística para aprofundar suas capacidades



truído a partir de objetivos sociais, didáticos de refletir sobre as mudanças e as permanên-



e pedagógicos”. cias nos temas e sociedades em estudo. Desen-


Além de questionar as visões tradicionais da volvendo essa capacidade de comparar e a ha-



História e do ensino dessa disciplina nas esco- bilidade de opinar sobre determinado tema his-



las, é fundamental que os professores da EJA tórico, estaremos contribuindo decisivamente



busquem entender a realidade do mundo atual para o incentivo à participação de alunos e pro-


juntamente com seus estudantes e também que fessores na vida política, social, cultural e eco-



os incentivem a se tornarem cidadãos ativos nas nômica de suas comunidades. Assim agindo, o

suas comunidades. Nesse processo, é importan- professor estará valorizando o estudo sobre a

tíssimo buscar o resgate dos valores huma- variedade das experiências humanas.





















































SIMPÓSIO 21

A EJA COMO DIREITO:


DIRETRIZES CURRICULARES
NACIONAIS E PROPOSTA
POLÍTICO-PEDAGÓGICA
Carlos Roberto Jamil Cury

Guilherme Costa

Leda Maria Seffrin

307
Por uma nova Educação




de Jovens e Adultos





Carlos Roberto Jamil Cury



CNE/PUC/MG








Muitos brasileiros, provavelmente, foram ele na idade própria. Trata-se do artigo 208 da


um dia à escola. A esperança de concluir um Constituição Federal. Se não oferecido pelo



curso os animava. Contudo, fatores adversos fi- poder público e não atendido o cidadão em sua



zeram com que não pudessem terminar a sua demanda, outra lei importante, a das Diretri-


zes e Bases da Educação Nacional (LDBEN),

escolarização. Para uns, foi a necessidade do
trabalho precoce, para outros foi a falta de con- ○

○ explicita o que já está contido na Constituição.
dições materiais e para muitos a própria escola O Ensino Fundamental é um direito público

não foi capaz de retê-los estudando. E muitos subjetivo. Como tal, exigido o direito pelo ci-

brasileiros sequer puderam entrar na escola. dadão, o poder público responsável tem de

Para atender a estes, agora há a alternativa da atender a essa demanda sob pena de se ver

Educação de Jovens e Adultos (EJA) como um acossado por ações civil e penal. Estamos, pois,

recomeço desse importante instrumento de ci- diante de um direito claramente protegido e


dadania: a educação escolar. assegurado. O Ensino Médio também é gratui-



A ausência da educação escolar representa to nas escolas do Governo e, se exigido, essa



uma grande lacuna para o indivíduo e uma per- exigência deve ser atendida, porque essa etapa

da enorme para a cidadania. A Educação de Jo- do ensino é a coroação da Educação Básica que

vens e Adultos representa um novo começo sob todo brasileiro deve ter.

uma alternativa legal, que vem acompanhada A escola não chegou a todos os brasileiros.

de garantias legais. A lei buscou reparar esse Essa realidade possui uma longa história. Ela

vazio e cabe ao indivíduo exigir seu direito à começa com o desapreço que nossos coloniza-

educação escolar. dores ibéricos tinham para com a leitura e a



A EJA não é um presente e nem um favor, escrita a ser dada aos habitantes deste país. Para

tal como antes a própria legislação ou a prática eles, não fazia sentido propiciar educação es-

das políticas educacionais viam-na. Desde a colar a um país agrário, enorme, com a qual

Constituição de 1988, ela se tornou um direito poderia pleitear a sua independência política.

de todos os que não tiveram acesso à escolari- Além disso, sendo um país escravocrata, nega-

dade e de todos os que tiveram esse acesso, mas va-se a quem não fosse branco o direito de sen-

não puderam completá-lo. tar em bancos escolares.


Esse direito está inscrito em duas tábuas: na Essa realidade tem a ver com um país que,

tábua da dignidade de cada um e na tábua da desde o seu início, foi bastante injusto com os

lei. A primeira é a necessidade sentida em re- que, com seu trabalho, construíram as riquezas

parar ou completar essa lacuna. É a tábua da da nação e não viram distribuídas essas rique-

vivência dos que sabem da importância da lei- zas acumuladas, de modo que todos pudessem

tura e da escrita e sentem a falta desse direito ter acesso aos bens sociais e necessários a uma

que, muitas vezes, vêem efetivado nos outros. participação política consciente. Até hoje esse

padrão de desigualdade estende-se à educação


A segunda é a tábua da lei brasileira: a Consti-


tuição Federal. Lá está dito e escrito que o En- escolar. E a existência da Educação de Jovens e

sino Fundamental obrigatório e gratuito é um Adultos visa reparar essa situação, que é, em si

direito do cidadão e dever do Estado, valendo mesma, intolerável do ponto de vista da cida-

dania.

isso também para os que não tiveram acesso a


308
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica

Isso tem a ver também com um determi- é condição prévia a muitas outras coisas de nos-



nado tipo de escola, que nem sempre conse- sa sociedade: ler livros, entender cartazes, es-



guiu acolher e entender os diferentes perfis de crever cartas, sentar-se ao computador, nave-



alunos que a procuram. Somos todos iguais e gar na rede mundial de computadores, votar


diferentes ao mesmo tempo. Às vezes, a escola com consciência, assinar o nome em registros,



confundiu igualdade com uniformidade e di- ler um manual de instruções, participar mais



ferença com inferioridade (para muitos) e su- conscientemente de associações, partidos e


perioridade (para poucos). Por isso mesmo, desenvolver o poeta ou o músico ou o artista 309



houve leis que proibiram o acesso de negros e que reside em cada um. Estes últimos aspectos,



de índios à escola, que só incentivavam as es- uma vez reparada a falta social de que tantos



colas da cidade, deixando de lado as escolas foram vítimas, devem ser encarados como o


da roça. Não se pode deixar de dizer que hou- caminho mais qualificado para se falar em Edu-



ve muito preconceito com relação às mulhe- cação de Jovens e Adultos. Trata-se do desen-



res, que deveriam ficar em casa e, por isso, não volvimento das capacidades de cada um e do



necessitavam de leitura e de escrita. Durante usufruto prazeroso delas.


longos anos, quem não sabia escrever seu pró- Ao entrar em um curso de Educação de Jo-



prio nome não podia votar. vens e Adultos, o estudante não estará apenas

Hoje, todos sabem da importância da esco- sendo alfabetizado. Isso é muito pouco para o

la. Para uns, é a empresa que está exigindo es- conteúdo do direito à educação. Além da alfa-

colaridade cada vez mais elevada. Afinal, em um betização, etapa propedêutica, o aluno deve ter

mundo tornado próximo, não se pode deixar de acesso aos conhecimentos que todo o indivíduo

contar com as novas formas de comunicação e que freqüenta a escola na idade convencional

as habilidades que se exigem para a própria está recebendo. Conhecer o mundo em que vive,

manipulação de aparelhos complexos. para poder agir sobre ele com consciência, críti-

Para outros, trata-se de um sentimento in- ca e efetividade, sobretudo em nosso tempo, não

dividual, mas bastante agudo: se alguém não pode dispensar a escolaridade plena. Conteúdos

tiver completado estudos mais elevados estará importantes de Aritmética e de Matemática vão

correndo risco com o seu emprego. muito além das quatro operações. A Geografia,

Entretanto, a qualificação para o trabalho é a História do Brasil e do mundo são conhecimen-



incompleta se não vier acompanhada tos significativos para um posicionamento ante


concomitantemente das exigências da cidada- a sociedade e o mundo de que participamos.



nia. O sentimento de participação e o dever de Expressar-se na língua portuguesa com precisão



não estar sujeito a poderes estranhos implicam e sem medo de cometer erros na fala ou na es-

a necessidade peremptória da educação esco- crita é outro fator significativo, inclusive para as

lar. Ela não só abre o caminho para ser votado, relações pessoais ou corporativas. O mesmo se

como também abre mais espaços para tomadas deve dizer de conhecimentos importantes pró-

de decisão coletivas e para a ampliação dos es- prios das Ciências Naturais e Exatas, que expli-

paços de participação. Além disso, ela é uma cam as coisas materiais, a fórmula de um remé-

fonte indispensável para que o cidadão possa dio, a composição de uma bebida e o som de uma

usufruir aspectos múltiplos da cultura, como a corda de viola. Além disso, ser cidadão do Brasil

estética e o lazer. e do mundo é poder se aproximar de outros po-



De qualquer modo, é certo que há um “es- vos e de outras culturas. Nada melhor do que co-

pírito do tempo” que implica a consciência do meçar a aprender uma língua estrangeira. No fu-

acesso aos conhecimentos da escola como uma tebol, quem chuta com os dois pés pode fazer

chave importante para ler o mundo e a socie- mais e melhores jogadas e, em casa, quem bate

dade em que vivemos e neles atuar crítica e bolo com as mãos não se aperta, quando a ener-

dignamente. gia elétrica desliga a batedeira. Assim também é



Por isso a Educação de Jovens e Adultos é com quem fala o português e começa a apren-

um direito tão importante. Ela é tão valiosa que der outra língua.

Isso é tão importante que a Constituição adequada aos conteúdos estudados, poderão



brasileira e, depois, a Lei de Diretrizes e Bases atribuir créditos a ela, desde que submetida a



da Educação Nacional reconheceram que todos uma avaliação.



os brasileiros, de qualquer idade ou de qualquer Assim, não convém que adolescentes e


outra situação, são titulares desse direito. Por adultos convivam nas mesmas salas. É por isso



isso, não devem abrir mão dele. Por isso, o cur- que meninos ou meninas com menos de 14



so que será ministrado não pode ser uma “cai- anos completos não podem freqüentar a Edu-


xa-preta”. Antes do curso, todos devem saber cação de Jovens e Adultos, na etapa do Ensino



qual será a sua duração, quais conhecimentos Fundamental, e é também por isso que nenhum



lhes serão passados, quais os tipos de avaliação jovem com menos de 17 anos completos pode



a que se submeterão e que tipo de certificado estudar em salas de Educação de Jovens e Adul-


de conclusão obterão ao seu final. Isso signifi- tos, na etapa do Ensino Médio.



ca que o ensino da Educação de Jovens e Adul- No caso de um curso presencial e com ava-



tos deve ser de qualidade. E, para ser de quali- liação em processo ter sido autorizado e reco-


dade, é preciso também contar com a idonei- ○
nhecido pelo Conselho de Educação, ele po-
dade da instituição que oferece o curso. Essa derá avaliar os estudantes e, ao final do curso,

idoneidade implicar possuir um registro míni- emitir o certificado de conclusão do Ensino



mo: a aprovação certa e determinada do Con- Médio ou do Ensino Fundamental. Mas quem

selho de Educação com os respectivos prazos estuda em curso presencial e é avaliado duran-

de validade. te toda a sua duração fará todo seu trajeto nes-



Durante muitos anos, a Educação de Jovens sa escola e ela mesma poderá certificá-lo. Mas,

e Adultos não se chamava assim. Ela já se cha- atenção! Essa escola tem de ser autorizada e

mou Madureza, Suplência, Supletivo, Alfabeti- reconhecida pelos poderes públicos, em espe-

zação, entre outros nomes. Por não representar cial pelos Conselhos e Secretarias de Educação.

um direito, esse ensino nem sempre foi assu- Esses cursos devem apresentar as datas de va-

mido por profissionais. Era muitas vezes aten- lidade dessa autorização e desse reconheci-

dido por pessoas de boa vontade, voluntários mento.



ou mesmo por docentes que aplicavam para É verdade que alguém pode preferir estudar

adultos os mesmos métodos com que ensina- em casa, sozinho ou com outros, tendo um cur-

vam crianças e adolescentes. so a distância, por correio, rádio ou televisão


A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- como suporte. O autodidatismo não é proibi-

cional não quis deixar esse campo em aberto. do. Neste caso, se essa pessoa quiser obter um

Por ser a Educação de Jovens e de Adultos uma certificado de conclusão, ela deverá prestar os

modalidade da Educação Básica, por ser ela um chamados exames supletivos, “abatendo” ma-

direito, por poder emitir um certificado de con- téria por matéria. Não podemos fechar as pos-

clusão com validade nacional, é preciso que sibilidades e as alternativas de as pessoas estu-

seus professores sejam formados adequada- darem e prestarem exames oficiais, mas é pre-

mente e apresentem o diploma de licenciado e, ciso verificar se tais exames são mesmo ofici-

de preferência, um currículo adequado a essa ais, se estão autorizados, a fim de que certos

modalidade. O Parecer nº 11/2000 da Câmara grupos pouco éticos não usem essa possibili-

de Educação Básica do Conselho Nacional de dade para finalidades extorsivas.



Educação, ao regulamentar a Educação de Jo- Tanto num caso como no outro, o que se

vens e de Adultos, insiste nesta tecla de acen- avalia são os componentes curriculares nacio-

tuar o perfil diferenciado desses alunos. Eles nais válidos para o Ensino Fundamental ou

devem ser tratados como tais e não como ex- Médio. O que muda para a EJA é o modo de en-

tensão de crianças e de adolescentes. Muitos carar e de propor esses conteúdos.


desses professores são até mais jovens do que Cabe aos Conselhos de Educação dizer o

seus alunos. Por isso, devem acolher a experi- tempo de duração dos cursos da EJA e a sua or-

ência vivida dos estudantes e, quando esta for ganização funcional, mas é importante obser-

310
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica

var as orientações tanto do Parecer CEB/CNE


ar a ser praticada por meio de livros, filmes,


nº 11/2000 quanto da Resolução CEB/CNE nº


novas leituras, acesso à rede mundial de com-


1/2000. Ambos ajudam na compreensão e no putadores (Internet) e, por que não?, em novos



significado maior da EJA. cursos.


Os certificados são a expressão oficial de que


Esse desafio de reentrada na vida escolar é


o estudante conseguiu transformar um direito o reconhecimento de um direito desde sempre



num exercício de cidadania, que deve continu- havido, que, agora, poderá ser posto a serviço


ar a vigorar na família, no trabalho, na política 311


de um cidadão mais ativo, tendo em vista uma


e no lazer e deve significar que a Educação de


sociedade brasileira que venha a ser mais igual


Jovens e Adultos não pára. Ela poderá continu- e mais justa.











Sinopse do programa ○

de Educação de Jovens e Adultos




de Mato Grosso




Guilherme Costa

Seduc/MT




A rede estadual de ensino tem oferta de Edu- gramas de aceleração de estudos/correção



cação de Jovens e Adultos (EJA) em 172 unida- do fluxo escolar, e conferir qualidade à EJA,

des escolares, onde atuam mais de 1.900 profes- superando a concepção que associa o su-

sores (Seduc/Asseplan/DMIE, 2000) e estudam pletivo à ligeireza do ensino e à facilitação



cerca de 52.500 alunos (Censo Escolar Inep/ na certificação.



2000), a maioria (2/3) dos quais cursa o Ensino


Médio.

O primeiro objetivo do

A recente formulação do Programa de EJA


programa é assegurar o

procurou responder simultaneamente a três de-



safios:
direito de todos à educação

1. Ampliar o atendimento escolar a jovens e



adultos, de modo a tornar a oferta compa- A cobertura escolar pública atual no Ensino

tível com os direitos educacionais dos cida- Fundamental e no Médio para jovens e adultos

dãos, consagrados na Constituição e na é deficitária em face da demanda potencial por



LDB, e com as metas do Plano Nacional de essa modalidade educativa, motivo pelo qual é

Educação (PNE) e, ao mesmo tempo, res- necessário ampliá-la substancialmente no trans-


ponder às exigências crescentes de escola-


correr da próxima década para assegurar aos ci-


ridade do mercado de trabalho.


dadãos seus direitos constitucionais e atingir as

2. Ajustar o atendimento da EJA das redes pú- metas do Plano Nacional de Educação.

blicas de ensino às novas exigências do Pa- A Lei nº 10.172/2001, que institui o PNE, es-

recer nº 11/2000 do CNE e da Resolução nº


tabelece para a Educação de Jovens e Adultos as


180/2000 do CEEMT. seguintes metas prioritárias:



3. Resgatar a identidade própria da EJA, que • alfabetizar em cinco anos dois terços do con-

nos últimos anos acabou diluída nos pro- tingente total de analfabetos, de modo a

erradicar o analfabetismo em uma década; mas a maioria da população que necessita de



atendimento escolar vive nas zonas urbanas.


• assegurar, em cinco anos, a oferta de Educa-


ção de Jovens e Adultos equivalente às quatro Ainda segundo a PNAD, 258.962 pessoas com



séries iniciais do Ensino Fundamental para idade igual ou superior a 15 anos estavam estu-


50% da população de 15 anos ou mais que não dando no Ensino Básico em 1999, mas a maioria



tenha atingido esse nível de escolaridade; delas eram jovens que freqüentavam o Ensino



• assegurar, até o final da década, a oferta de Fundamental ou Médio regular na idade adequa-


da ou com alguma defasagem entre a idade e a


cursos equivalentes às quatro séries finais do


Ensino Fundamental para toda a população série ideal; apenas 25.859 pessoas freqüentavam



de 15 anos ou mais que concluiu as quatro alguma modalidade de Ensino Supletivo



séries iniciais; (presencial ou não) no nível de Ensino Funda-


mental; e outras 20.755 pessoas declararam es-


• dobrar em cinco anos e quadruplicar em dez


anos a capacidade de atendimento nos cur- tudar no Ensino Supletivo de nível médio, so-



sos de Educação de Jovens e Adultos de nível mando 46.614 pessoas.


médio. ○
Esses dados não são discrepantes das esta-
tísticas do Censo Escolar realizado pelo INEP,

O analfabetismo absoluto atingia, em 1999,


segundo o qual as matrículas no ensino


193.601 pessoas, o que representava 11,78% da


presencial de jovens e adultos, em Mato Grosso,


população matogrossense com idade igual ou

chegaram, em 1999, perto de 45 mil, 27 mil das


superior a 15 anos (PNAD/IBGE).1 Para atingir

quais no Ensino Médio e cerca de 17 mil no En-


as metas do PNE, será necessário que Mato Gros-


sino Fundamental.

so alfabetize cerca de 25 mil jovens e adultos ao


ano, de modo a reduzir à terça parte o contin-



gente total de analfabetos nos próximos cinco O segundo objetivo é ajustar-se



anos, viabilizando a erradicação do analfabetis-


à legislação vigente

mo em uma década.

No grupo etário com 10 anos ou mais, 70% A princípio, o CNE julgou que a LDB era auto-

da população de Mato Grosso não havia conclu- aplicável e não seria necessário emanar diretri-

ído o Ensino Fundamental em 1999; 11,78% não zes para a EJA pois, sendo ela uma modalidade

receberam qualquer instrução ou possuíam me- da Educação Básica, deveria reger-se pelas mes-

nos de um ano de estudos. Quase um quinto da mas diretrizes curriculares do conjunto do Ensi-

população já havia freqüentado escolas, mas ti- no Fundamental e Médio. A freqüência com que

nha menos de quatro anos de estudos. Somados, o Conselho respondeu a consultas dos sistemas

esses dois subgrupos totalizavam cerca de 600 estaduais de ensino levou à elaboração do Pare-

mil pessoas, mais de 30% da população cer nº 11, que trata das Diretrizes Curriculares

matogrossense com mais de 10 anos de idade, Nacionais para a EJA. O longo parecer elaborado

que potencialmente demandariam por progra- pelo Professor Carlos Roberto Jamil Cury tem os

seguintes traços principais:


mas de alfabetização do primeiro segmento do


Ensino Fundamental de jovens e adultos. O con- • defende o direito público subjetivo dos jo-

tingente que tinha entre 4 e 7 anos de estudos e vens e adultos à Educação Básica gratuita;

necessitaria cursar o segundo segmento do En- • limita o acesso ao Ensino Fundamental e


sino Fundamental era ainda maior, reunindo


Médio aos jovens e adultos com mais de 14 e


mais de 734 mil pessoas, o que representava 17 anos, respectivamente;



38,6% da população com mais de 10 anos de • abandona a nomenclatura “Ensino Supleti-



Mato Grosso. Na zona rural, os níveis de escola- vo” em favor da expressão “Educação de Jo-

ridade dos jovens e adultos são ainda menores,


vens e Adultos”;





1
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

312
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica

• afirma que a EJA é modalidade e parte


piciar às escolas tempo adequado para conhecê-


constitutiva da Educação Básica e não mais lo, opinar sobre ele, adequar-se a ele e propiciar



um subsistema de ensino (como prescrevia à Seduc tempo para que possa disseminá-lo ade-


a legislação anterior);


quadamente e desencadear ações prévias de for-


• requer contextualização curricular e mação.



metodológica, bem como formação especí-



fica dos professores;
O terceiro objetivo é propiciar


313


• lista três funções para a EJA: reparadora,
aos jovens e adultos uma


equalizadora e qualificadora;



educação de qualidade


• determina que a EJA obedeça aos princípios


de eqüidade, diferença e proporção.


Com o objetivo de melhorar a qualidade do


Para adequar-se à nova norma federal, o


ensino, a Resolução nº 180 elevou substancialmen-


CEE/MT fez emanar a Resolução nº 180/2000, te a carga horária mínima dos cursos presenciais



que, entre outras medidas, obriga a Seduc a cri- com avaliação no processo para seis fases anuais



ar o programa de EJA. Para elaborar esse progra- de 800 horas cada, no Ensino Fundamental, e três


ma, a Seduc nomeou um grupo de trabalho

fases anuais de 800 horas cada, no Ensino Médio.

interinstitucional (Portaria nº 204/2000 Seduc/ ○

Um sistema flexível de avaliação por competên-


GS/MT) e contratou uma assessoria externa – cias, com possibilidades de reclassificação dos

Professora Maria Clara Di Pierro, da Ação Edu- educandos a qualquer momento, deve propiciar

cativa. A plena vigência do programa foi adiada


aos jovens e adultos percorrer trajetórias mais ou


para 2002 pela Resolução nº 272, de modo a pro- menos aceleradas nesses cursos.







A EJA como direito: Diretrizes




Curriculares Nacionais e a proposta




político-pedagógica




Leda Maria Seffrin*



SEF/MEC




Nos últimos anos, a Educação de Jovens e integrada no conjunto das políticas da Educa-

Adultos passou a fazer parte das agendas edu- ção Básica, a qual deve contemplar tanto a ex-

cacionais. De forma crescente e significativa, os pansão do atendimento aos jovens e aos adul-

municípios começaram a comprometer-se com


tos pouco ou não escolarizados quanto a quali-


esse segmento, dividindo a tarefa que antes era dade da oferta.



quase que exclusivamente dos estados, sobre- Um dos grandes instrumentos disponíveis

tudo nas Regiões Norte e Nordeste. Todos os aos sistemas, visando à construção de uma

esforços devem convergir para a institucio-


identidade própria de EJA, refere-se à formu-


nalização da EJA como política pública nos sis- lação de propostas político-pedagógicas – con-

temas de ensino, para que seja definitivamente templada nas Diretrizes Curriculares Nacionais





* Pedagoga e Coordenadora-Geral de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria de Educação Fundamental do MEC.



para EJA – que fundamentem uma prática co- cípios norteadores de sua ação pedagógi-



erente com as características desse segmento ca:



e assegurem o direito que os alunos têm a um a) princípios éticos: autonomia, respon-



ensino de qualidade. sabilidade, solidariedade; respeito ao


A EJA, como modalidade da educação bá- bem comum;



sica e por atender a um público jovem e adul-


b) princípios políticos: direitos e deveres


to, excluído do sistema de ensino na idade pró- da cidadania; criticidade; respeito à or-


pria, deve ter tratamento que atenda à sua es-


dem democrática;


pecificidade, que considere as vivências, os co-


c) princípios estéticos: sensibilidade,


nhecimentos e a cultura que esses alunos tra-


criatividade; diversidade de manifesta-


zem para a sala de aula. ções artísticas e culturais.


Uma das formas de agregar significado à


2. Ao definir a proposta político-pedagógi-


ação educativa nesse segmento é por meio da


ca, as escolas deverão explicitar o reco-

execução de propostas político-pedagógicas.

nhecimento da identidade pessoal dos

No entanto, no contexto das escolas brasilei-
alunos, dos professores e outros profissio-

ras que oferecem EJA, ainda há um imenso ca-


nais e da sua própria identidade – unida-


minho a ser percorrido, pois a realidade mos- de escolar – e dos respectivos sistemas em

tra que poucas escolas/sistemas embasam seu que estiver inserida.



trabalho em propostas político-pedagógicas,


3. Ao elaborar a proposta político-pedagó-

sejam específicas ou integradas na escola


gica, as escolas deverão partir do pressu-


como um todo. Pouca importância é, ainda,


posto de que:

conferida tanto a sua elaboração quanto a sua


• as aprendizagens são constituídas na


execução. Da mesma forma, falta reflexão

interação entre os processos de conheci-


quanto a sua importância; os planos, quando


mento, linguagem e afetivos, como con-


existem, são meramente burocráticos e o tem-


seqüência das relações entre as distintas


po destinado à formulação dessas propostas é identidades dos vários participantes do


curto, geralmente no início do ano, sem a par-


contexto escolarizado, por meio de ações


ticipação do coletivo da escola e sem sintonia


intersubjetivas e intra-subjetivas;

com a realidade na qual a escola está inserida.


• as diversas experiências dos alunos, pro-


Não há preocupação com a avaliação, nem


fessores e demais participantes do ambi-

durante nem no final do processo.


ente escolar, expressas por meio de múl-


De acordo com a legislação, a elaboração e


tiplas formas de diálogo, devem contri-


a execução de uma proposta político-pedagó- buir para a construção de identidades



gica dá aos sistemas de ensino e às escolas a afirmativas, persistentes e capazes de


oportunidade de concretizar a flexibilidade


protagonizar ações solidárias e autôno-


responsável decorrente da autonomia pedagó- mas de constituição de conhecimentos e



gica. Ela deve ser a expressão de um conjunto valores indispensáveis à vida cidadã.

de princípios e objetivos já estabelecidos na le- 4. A proposta político-pedagógica da escola


gislação federal, adequando-os à EJA e à etapa


deverá garantir a igualdade de acesso dos


que o sistema oferece em sua rede, definindo alunos a uma base nacional comum, de

o que quer alcançar, por que, como vai fazê- maneira que legitime a unidade e a quali-

lo, quando vai realizá-lo e com quem conta dade da ação pedagógica na diversidade

para atingir seus objetivos. nacional, bem como a parte diversificada.



As Diretrizes Curriculares Nacionais para Tanto a base nacional comum como a par-

EJA (CNE, 2000), no que se refere à orientação te diversificada deverão integrar-se em


torno do paradigma curricular – Parâme-


curricular, remetem às Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação Fundamental. Nes- tros Curriculares Nacionais – que visa es-

se sentido, as orientações são as seguintes: tabelecer a relação entre:



1. As escolas deverão estabelecer como prin- • a vida dos alunos, por meio da circulação

314
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica

dos seus aspectos, como a saúde, a sexua-


ridades serão estabelecidos tendo por base


lidade, a família, o meio ambiente, o tra- esse levantamento, crucial para que a escola



balho, a ciência e a tecnologia, a cultura e possa cumprir seu papel social.


as linguagens;


Definidos os objetivos pela equipe escolar,


• as áreas de conhecimento de Língua Por-


os quais representarão onde a escola quer che-


tuguesa e Língua Materna (para a popu- gar, elabora-se o plano estratégico das ações,



lação indígena), Língua Estrangeira Mo- que irá desenvolver para alcançar os objetivos


derna, Matemática, Ciências, História, 315


propostos, no qual serão explicitados todos os


Geografia, Arte, Educação Física.


passos necessários, como: planejamento


5. As escolas utilizarão a parte diversificada curricular, disciplinas, carga horária, duração



de suas propostas curriculares para enri- e organização do curso, matrícula, freqüência,


quecer e complementar a base nacional


aproveitamento de estudos, estrutura e funcio-


comum, com a introdução de projetos e


namento do curso, composição do corpo do-
atividades de interesse de suas comuni-


cente, documentos comprobatórios de esco-


dades.


larização, entre outros.


Além desse conjunto de princípios, objeti-

O processo de avaliação deverá estar des-

vos e orientações legais, nos quais toda ação


crito tanto no que diz respeito à avaliação da
educativa deve estar embasada, apresentarei aprendizagem dos alunos e a forma de expres-

alguns elementos constitutivos de uma pro- são dos resultados, como à avaliação do desen-

posta político-pedagógica, de uma forma am-


volvimento da proposta político-pedagógica.


pla, lembrando que todo curso para jovens e


A proposta político-pedagógica é o resul-


adultos oferecido pelos sistemas deve passar


tado de um processo contínuo de reflexão so-


por autorização dos respectivos Conselhos de


bre a prática pedagógica, sua concepção e fi-

Educação – municipal ou estadual –, respeitan-


losofia, em que a equipe escolar propõe, reali-


do a autonomia conferida pela legislação, para


za, acompanha, avalia e registra as ações que


que os estudos dos alunos sejam regularizados.


irá desenvolver para atingir objetivos coletiva-


As orientações devem ser buscadas nos órgãos


mente definidos, de acordo com a realidade na

competentes, responsáveis pela normatização


qual a escola está inserida.


em cada estado ou município.


Assim, a proposta político-pedagógica deve


A proposta político-pedagógica, como ex-


ser a expressão do conjunto de atores do uni-


pressão das intencionalidades da escola, deve


verso escolar, congregando professores, alu-


partir de uma fundamentação teórica, na qual

nos, funcionários e comunidade em torno de


serão explicitadas a concepção pedagógica que


objetivos e metas comuns.


norteia o processo de aprendizagem, a filoso-


fia que permeia o trabalho escolar, bem como No processo de construção da proposta po-

os princípios políticos, tendo em vista a for- lítico-pedagógica, a equipe escolar discute e


expõe valores coletivos, define prioridades, de-


mação do cidadão.

limita resultados desejados, reflete sobre sua


A partir da fundamentação elaborada co-


letivamente, inicia-se o processo de constru- realidade, dá sentido às ações contidas no pla-



ção de uma identidade para a escola, em con- nejamento e incorpora a auto-avaliação.



sonância com as expectativas dos alunos. Para A vivência de uma proposta político-peda-

gógica propicia que a equipe escolar produza


tanto, é imprescindível elaborar um diagnós-


tico da escola e da realidade em que ela está seu conhecimento pedagógico, construindo-o

inserida, contextualizando a situação socio- e reconstruindo-o cotidianamente, com base



econômica e cultural dos alunos e da comu- em estudos teóricos na área da educação e em



nidade, o desempenho escolar, relativizando outras áreas, na troca de experiências entre os


a função social da escola em relação àquela pares e com outros agentes da comunidade, in-

realidade. cluídos os alunos, os quais devem ser a primei-



Os objetivos gerais e específicos e as prio- ra fonte de pesquisa.




Bibliografia


nº 1/2000.



BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Lei de Diretri- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação


zes e Bases da Educação Nacional – LDBEN. Lei nº Fundamental. Diretrizes Curriculares Nacionais para



9.394/95, de 20 de dezembro de 1996. Educação Fundamental. Brasília, 1998.


. Diretrizes Curriculares Nacionais para Edu- . Proposta Curricular para o 2º segmento de



cação de Jovens e Adultos . Parecer nº 11 e Resolução EJA. Brasília, 2001.












































































SIMPÓSIO 22

ALFABETIZAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS
Ângela B. Kleiman

Maurilane de Souza Biccas e Cláudia Lemos Vóvio

317
A leitura como prática social




na alfabetização de adultos*






Ângela B. Kleiman



Universidade Estadual de Campinas/SP







Na alfabetização de adultos, assim como em • conhece o funcionamento de diversos dis-


outros contextos de ensino, a leitura e a escrita cursos, como o do discurso didático, do dis-



são introduzidas como capacidades ou compe- curso de vulgarização, do discurso científi-



tências. Na escola, a leitura e a escrita são con- co, entre outros;



cebidas como um conjunto de habilidades de • conhece diversos gêneros e como eles fun-
uso (compreensão e produção) da língua escri- ○


cionam. Por exemplo, para atingir seu obje-
ta, progressivamente desenvolvidas até se che- tivo de aprender um assunto novo, ele sabe

gar a uma competência ideal, a do leitor ou es- como funcionam o livro didático, a enciclo-

pédia, o manual de auto-ajuda, os suple-


critor proficiente. Em princípio, essa competên-


cia plenamente desenvolvida emanciparia o lei- mentos informativos ou de ciências no jor-



tor para continuar sua própria aprendizagem, nal, o texto de divulgação, o texto intro-

dutório, o artigo científico etc.;


independentemente do professor. Argumenta-


rei neste trabalho sobre a necessidade de con-


• conhece as formas de produção, consumo e


ceber o ensino da língua escrita como uma prá- divulgação dos textos; ou seja, ele sabe se o

tica social, focalizando o ensino da leitura e de leitor previsto é o grande público, o iniciante

que começa sua formação na matéria, os


uma prática de leitura, ler para conseguir infor-


mações ou aprender um novo assunto. pares do autor, qual o conhecimento pres-



Mesmo se a escola se propusesse apenas suposto etc. (ver Maingueneau, 2001).



a ensinar essa única competência, ler para Sem dúvida, trata-se de um conjunto de

aprender, a complexidade das capacidades conhecimentos, estratégias e habilidades im-


envolvidas é impressionante. Assim, o leitor portantes. Mas não é suficiente para formar lei-

competente: tores, porque a noção de competência é estáti-



• é capaz de abordar um assunto desconheci- ca, implicando um conjunto de capacidades já


do e de selecionar textos relevantes para en-


prontas para realizar um determinado fazer.


tender o assunto que lhe interessa conhecer; Ainda, ela é redutora no contexto da escola, que

• é capaz de avaliar suas opções, descartan- fragmenta o saber e concebe sua aquisição por

do, mudando de rumo, acrescendo quando meio de acréscimos por etapas, tanto nos con-

necessário; teúdos como nas habilidades visadas. Nesse


contexto, o desenvolvimento de uma compe-


• é independente, pois é capaz de auto-ava-


liar seu nível de conhecimento, compará-lo tência consiste, na maioria das vezes, num pro-

ao nível exigido pelo texto e tomar decisões grama de atividades em que se lê para desen-

em relação ao seu projeto didático indivi- volver a competência leitora; lê-se para apren-

dual, baseado nessas avaliações e compa- der a ler. Não se aprende lendo.

rações; Assim, nos primeiros contatos com a leitura,



• é capaz de se engajar cognitivamente, utili- aprende-se o alfabeto para um dia, no futuro, po-

zando estratégias complexas para atingir der compreender o texto e oraliza-se a leitura

seus objetivos pessoais, específicos; para aprender a ler silenciosamente. Fragmen-






*
Os resultados apresentados neste trabalho fazem parte do projeto Letramento do professor: implicações para a prática pedagógica, financi-

ado pela agência de fomento à pesquisa, CNPq.


318
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos

ta-se o texto para aprender a perceber o todo, é a função referencial. Os textos escritos que



um tema, uma idéia principal. Impõe-se um lhes são conhecidos servem para registrar fa-



mesmo texto ao grupo para desenvolver o gosto tos e eventos que acontecem, para fazer refe-



individual pela leitura, a relação estética e de rência ao mundo real. Os textos conhecidos são


prazer, íntima e privada. Procura-se fazer com os formulários e papéis que registram informa-



que o aluno responda somente ao que está pre- ções vitais (certidão de nascimento, por exem-



visto na leitura do professor ou do autor do livro plo), os bilhetes que a escola manda para casa


didático e exige-se um leitor crítico e partici- registrando fatos acontecidos ou por aconte- 319



pativo. Trata-se de uma pedagogia da contradi- cer; os anúncios de emprego nas bancas de jor-



ção, marcada por um conjunto de atividades de nal. A leitura não tem como função importan-



“fazer de conta”: o aluno escreve bilhetes que te a de capacitá-los para adquirir novos conhe-


ninguém lerá, textos de opinião sem ter forma- cimentos, nem a de legitimar esses conheci-



do uma opinião; responde às perguntas na se- mentos. Isto é, a concepção de texto e de es-



ção de “interpretação livre”, já cerceado, sem li- crita desse aluno não prevê algumas importan-



berdade e muitas vezes sem leitura. Ele “lê” sem tes funções da leitura, justamente aquelas que


entendimento, interpreta sem ter lido e realiza lhe permitiriam continuar aprendendo e, com



atividades sem nenhuma função na sua realida- isso, se desenvolver e ajudar o desenvolvimen-

de sociocultural (cf. Foucambert, 1994). to de seu grupo (ver Kleiman, 2000).



Por isso, consideramos importante, para for- Ensinar a ler, nesse contexto, implica ajudar o

mar e desenvolver leitores, partir de uma con- aluno a transformar essa visão mais utilitária da

cepção de leitura como prática social, com leitura, enriquecendo-a de modo a incluir seu po-

múltiplas funções, relacionada aos contextos de tencial para a aprendizagem independente e con-

ação. Uma dessa funções pode ser a facilitação tinuada. Isso envolve partir das necessidades dos

da aprendizagem, não para um dia longe, no alunos, mesmo que estas sejam de caráter

futuro, se converter num leitor e aprendiz in- instrumentalizador e pragmático. É pela prática de

dependente, mas para aprender dia a dia, mes- leitura que se pode alcançar a paulatina transfor-

mo quando ainda estiver soletrando a escrita, mação da concepção do adulto não-escolarizado



durante todo o processo, aquilo que vale a pena numa concepção com funções sociais ampliadas,

aprender. que possibilite a aprendizagem independente. É



Na perspectiva da leitura como prática por meio da prática de leitura que podem ser cria-

facilitadora da aprendizagem, o objetivo da ati- das novas necessidades de leitura.



vidade didática de leitura é aprender alguma Um caso específico que ilustra essa dife-

coisa nova. Não se justifica a atividade de ler rença deu-se numa aula de mulheres analfa-

para aprender a ler. O objeto da aprendizagem betas num ano de eleição, em uma das tur-

é configurado pelas necessidades e caracterís- mas acompanhadas num projeto a longo pra-

ticas do grupo. Embora as atividades possam ser zo desenvolvido em uma pequena cidade do

diferentes, a prática tem o mesmo objetivo, ou interior do Estado de São Paulo (ver Kleiman

seja, o de aprender a usar a língua escrita para e Signorini, 2000). Nessa turma, as alunas

fazer novos sentidos do mundo, para se desen- queriam votar mas, como não sabiam ler a cé-

volver a si mesmo e para contribuir com o de- dula, pediram à professora que lhes ensinas-

senvolvimento do grupo. se a reconhecer os nomes dos vários candi-



Na educação básica de jovens e adultos, a datos. Transcrevo, a seguir, o trecho pertinen-


concepção de leitura (e de produção da escri- te (Kleiman, 2000: 228):



ta) que deve imperar para facilitar a aprendiza-



gem do aluno é a concepção da atividade como A leitura da cédula sem uma reflexão consciente

sobre o voto é, para os sujeitos já aculturados pela


prática social.

As práticas de leitura no cotidiano dos escrita, uma paródia do ato de cidadania que o ato

adultos não-escolarizados sugerem que, para de votar representa. Essas alunas, no entanto, não

solicitaram ser preparadas para votar nesse senti-


eles, a função predominante na língua escrita



do mais amplo, mas apenas naquele sentido por suas comunidades de origem. E, quando ensi-



elas delimitado, ou seja, o de reconhecer o nome namos a leitura apenas para desenvolver a com-



dos candidatos. A alfabetizadora então levou as petência, o aluno deve, por si próprio, construir


cédulas e realizou uma série de atividades de


uma função para a atividade.


decodificação dos nomes e números que consta- Finalizando, gostaria de apontar que uma



vam na cédula, a fim de atender às necessidades
constante na alfabetização de jovens e adultos


de leitura que haviam sido delimitadas pelo gru-


é, a meu ver, o desejo e a necessidade do aluno


po. Porém, durante essa atividade, surgiu o inte-
de se apossar da escrita e daquilo que ela re-


resse, motivado pelas intervenções de professora


presenta na sociedade tecnológica (ver Street,


e alunas, de conhecer melhor as pessoas a quem


1994). Esse desejo fica evidente nos esforços


as palavras aprendidas nomeavam e, então, pe-


quenos artigos sobre os candidatos – biográficos que o adulto sem escrita realiza e na variedade


de estratégias que ele cria a fim de funcionar


e programáticos – foram lidos.


na sociedade letrada, às vezes escondendo sua



A moral dessa história seria, segundo a au- condição de não-escolarizado; fica evidente na

tora, que “se a alfabetizadora tivesse tentado



sua volta à escola; um retorno em geral associa-
do à sobrevivência, à promoção no trabalho, ao

começar pela ampliação da concepção de voto


dessas mulheres, propondo primeiro a leitura convívio social. O incentivo para a leitura, por-

que permitisse conhecer os candidatos para tanto, precede a entrada do aluno na escola.

depois ler a cédula, provavelmente nem a pri- Perde-se pela circularidade de um método de

ensino que só se preocupa com o objetivo final


meira nem a segunda atividade teriam sido re-


alizadas com sucesso”. – a competência – e que fracassa na criação de



Ou seja, a decisão dessa alfabetizadora, de atividades didáticas que permitam o


engajamento na prática social para se chegar à


partir da função para a leitura tal qual delimi-


competência individual que permitiria a intro-


tada pelas mulheres, caracteriza a leitura como


prática social, a leitura para a aprendizagem. A dução dos alunos nas práticas socioculturais da

leitura criou a necessidade de mais leitura. sociedade letrada.



Engajar o aluno na prática social da leitura



significa, portanto, reverter a direção da ativi-


dade, começando pela necessidade e pela fun-



ção que atende a essa necessidade, mesmo que Bibliografia



aquela seja limitada. Quando houver uma fun-


FOUCAMBERT, J. A leitura em questão . Porto Alegre:


ção para a leitura, as capacidades necessárias


Artmed, 1994 [Ed. francesa, 1989].


para ler independentemente deixarão de ser um

KLEIMAN, A. B. O processo de aculturação pela escrita:


problema. Os problemas se originam, muitas


ensino da forma ou aprendizagem da função?. In:


vezes, na circularidade da atividade, que come- KLEIMAN, A. B.; SIGNORINI, I. (Orgs.). O ensino e a

ça e acaba focalizando os aspectos formais do formação do professor de alfabetização de adultos. Porto


texto. É incoerente pensar que as razões para Alegre: Artmed, 2000.



KLEIMAN, A. B.; SIGNORINI, I. (Orgs.). O ensino e a for-


ler, as funções da leitura tal qual percebidas

mação do professor de alfabetização de adultos. Porto


pelos grupos de tradição mais letrada, serão


Alegre: Artmed, 2000.


encontradas pelos alunos membros de comu- MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação . São

nidades de tradição mais oral. Não é, de forma


Paulo: Cortez, 2001.


alguma, evidente que seja necessário saber ler STREET, B. V. Literacy in theory and practice . Cambridge:

para funcionar no cotidiano desses alunos, nas Cambridge University Press, 1994.










320
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos

Programas de Educação de Jovens




e Adultos: um olhar sobre a




formação dos educadores *






Maurilane de Souza Biccas e Cláudia Lemos Vóvio


Ação Educativa/SP 321







A proposta de formação de educadoras 1 gramas de alfabetização é o de que o tipo de


educação que se quer propiciar aos alunos


que vem norteando as atividades de assesso-


ria e formação desenvolvidas pelo Programa de deve ser o mesmo que se propicia às educado-



Educação de Jovens e Adultos de Ação Educa- ras. A formação da educadora deve pautar-se,


desse modo, pela prática do diálogo entre co-


tiva, junto com outros programas de alfabeti-


zação de jovens e adultos, tem como pressu- ordenadoras e pares, bem como pela reflexão



posto dois importantes aspectos. O primeiro sobre sua ação e os resultados obtidos, que

deles refere-se à sua finalidade: propiciar a devem ser coerentes com os objetivos educa-

tivos e as opções metodológicas traçados pelo


pessoas pouco ou não-escolarizadas o domí-


nio sobre conhecimentos e aquisição de apren- programa. Nesse sentido, o investimento na



dizagens que contribuam para ampliar a pos- formação das educadoras deve ter a perspec-

sibilidade de intervenção na sociedade da qual tiva de que elas consigam construir uma prá-

tica diária, na qual sejam sujeitos e produto-


fazem parte e continuar aprendendo ao longo


de suas vidas. O segundo aspecto refere-se à ras de sua própria ação educativa, historica-

concepção de alfabetização assumida pelo mente contextualizada e justificada por conhe-



programa, segundo a qual o aprendizado da cimentos pedagógicos e outros, advindos de


diferentes áreas.

leitura e da escrita se realiza numa prática


constante de diálogo entre educadores e alu- A formação entendida como a promoção



nos, de modo que os jovens e adultos possam de aprendizagens, a reflexão sobre a própria

refletir maneira crítica sobre suas próprias ex- ação e a busca de informações e conhecimen-

tos para superação de problemas enfrentados


periências e sobre suas relações com o meio


ambiente físico, cultural, social e político. Co- no fazer pedagógico partem de pontos comuns

erentemente com esses aspectos, para formu- ao processo de aprendizagem dirigido aos alu-

lar ou planejar qualquer ação que vise à for- nos do programa. Se acreditamos que a etapa

inicial para a promoção de aprendizagens sig-


mação de educadoras, é preciso responder à


seguinte questão: com que tipo de educadora nificativas deve pautar-se pelo conhecimento

os programas devem contar e como pretendem da realidade dos educandos (suas condições de

formá-la durante o exercício de sua prática pe- vida, de trabalho, sua experiência escolar an-

terior, sua bagagem cultural e de conhecimen-


dagógica?

Um primeiro princípio que deve reger qual- tos prévios, entre outros aspectos), o mesmo

quer ação de formação das educadoras de pro- princípio deve nortear a formação das educa-







*
Este texto foi originalmente elaborado no âmbito da assessoria junto ao Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – Conse-

lhos Comunitários de Educação, Cultura e Ação Social) e faz parte do documento: Alfabetização e escolarização de jovens e adultos:

diretrizes (São Paulo, 2001).


1

O termo “educador” será utilizado no feminino já que a maior parte do corpo docente do programa é formado por mulheres; o mesmo critério

será aplicado ao termo “coordenador”.



doras. Logo de início, é importante privilegiar Traçando o perfil



momentos para que se possa conhecê-las, ten-


das educadoras


do como eixo central a concepção educativa



que carregam e as representações de aluno que Quando a equipe de educadoras já estiver


possuem e que são formadas:


selecionada é importante que as coordenadoras


• pelos conhecimentos adquiridos em seu pedagógicas possam lançar mão de alguns ins-



processo de formação inicial (nos cursos de trumentos para coletar e organizar algumas in-


habilitação para o Magistério);


formações básicas sobre elas. Traçar um diagnós-


• pela experiência como educadora; tico do grupo com o qual irá trabalhar auxilia a



definição de estratégias e de temas importantes


• por sua trajetória e experiência como


aprendiz, em seu próprio processo de es- para as reuniões de formação.



colarização; A seguir, sugerimos uma lista de informações


que podem ser levantadas com as educadoras:


• por sua representação de como se dá o pro-

nome completo; data de nascimento; raça e/ou

cesso de aprendizagem de pessoas jovens

e adultas e suas necessidades de aprendi-


etnia; endereço; cidade e estado de nascimento;


tempo de moradia na cidade; escolaridade; es-

zagem;

tado civil; número de filhos e suas idades; se ti-


• por outras experiências como cidadãs e


veram experiências anteriores como educadoras


suas histórias de vida.


e especificamente com EJA; se lêem regularmen-


Os momentos para levantar essas informa- te jornais, revistas, livros (especificar); se fre-

ções podem ser os mais variados, sendo al- qüentam regularmente livraria, cinema, teatro,

guns deles dependentes do próprio plano de


museus etc.; se assistem à televisão, quais os pro-


formação. É possível coletar informações no


gramas preferidos; o que fazem nos momentos


momento em que são selecionadas ou incor- de lazer, se participam de alguma atividade cul-

poradas ao programa, por meio de entrevis- tural de sua comunidade; quais são os materiais

tas e questionários. Mas apenas esse levanta-


utilizados para preparar as atividades pedagógi-


mento não basta. A cada reflexão ou aprendi-


cas que serão desenvolvidas com os alunos;


zagem que se deseja promover no processo de como planejam e avaliam as atividades pedagó-

formação, é importante que as educadoras gicas desenvolvidas com os alunos.


possam expor e refletir sobre suas concep-


Tais informações podem ser coletadas por


ções, representações e ações pedagógicas e,


meio de questionários, de entrevistas individu-


caso seja necessário, problematizá-las, bus- ais ou em pequenos grupos e registradas em re-

cando informações e conhecimentos que as latórios ou quadros. Essas informações organi-


transformem.

zadas e analisadas são importantes indicadores



sobre as necessidades de formação das educa-


Como conhecer melhor doras e proporcionam conhecimentos sobre seu



cotidiano. São um importante subsídio para que


as educadoras?

as coordenadoras pedagógicas conheçam me-



Quanto mais as coordenadoras pedagógi- lhor quem são os profissionais com os quais es-

cas, pessoas responsáveis pelo acompanhamen- tarão trabalhando e também para que possam

to pedagógico, conhecerem as educadoras com elaborar uma proposta de trabalho a ser desen-

as quais trabalham, melhores serão suas con- volvida sistematicamente com as educadoras.

dições de realizar um bom trabalho de forma-


ção e promover aprendizagens significativas.


Reuniões pedagógicas:

Esse é um conhecimento que deverá ser



construído informalmente, no convívio cotidia-


reflexão antes e sobre a ação

no, e formalmente nos momentos de visitas,


reuniões pedagógicas e capacitações das quais Será principalmente nas reuniões pedagógi-

participam. cas que as educadoras terão a oportunidade de


322
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos

falar a respeito dos alunos, de seus interesses, da gógica. Aqui, necessariamente, a educadora



prática de sala de aula, do planejamento, da ava- precisa de um interlocutor, de alguém com



liação, de suas dúvidas e até de suas vidas. Além quem possa discutir e debater as razões que


a levam a agir desse ou daquele modo, ao


disso, é o momento no qual elas explicam o


modo como realizam atividades, analisam os realizar uma atividade em sala de aula. O


interlocutor, a coordenadora ou o colega de


resultados que obtiveram e apresentam a pro-


trabalho, fazem perguntas sobre a descrição


dução de seus alunos, trocam experiências e re-


oral ou escrita que a educadora elaborou. 323
fletem sobre elas, planejam novas atividades e


Para que a educadora responda com tranqüi-


estudam os temas e conhecimentos de que ne-


lidade a essas questões é preciso confiança e


cessitam para inovar e transformar sua ação.


clareza sobre o que se pretende. Não se trata


Para promover a reflexão sobre a ação da edu- de modo algum de uma investigação visan-


cadora é possível seguir algumas estratégias:


do à censura da ação que ocorreu em sala.


Esse momento, quando pensado para forma-



Descrição ou relato da experiência. Esta é ção e aprendizagem, ensina a educadora a


uma etapa na qual a educadora descreve


buscar em si mesma as justificativas para o


sua prática em sala de aula, relatando como que faz, articulando sua prática às teorias e


a atividade que planejou foi desenvolvida, às experiências que a informam, isto é, leva-

que resultados obteve, o que deu certo e o ○

a a percebê-la como algo que é muito mais


que não deu, de quais estratégias lançou do que o mero fazer por fazer.

mão. É o momento em que ela pode perce-


Confrontação. É nesse momento que a for-

ber as regularidades que dirigem sua pró-


madora e os pares podem questionar, in-


pria prática (por exemplo, estratégias e eta-


dagar e problematizar aspectos desencade-


pas que utiliza sempre para dar início às

ados na atividade que se mostram contra-


atividades, o modo como introduz textos


ditórios aos objetivos e às opções meto-


escritos, conversas coletivas que introdu-


dológicas descritas pela educadora. A


zem novas aprendizagens etc.); as contra-

problematização deve levar à busca de no-


dições entre o que planejou e o que desen-


vos conhecimentos e informações que fo-


cadeou em sala de aula; e, ainda, selecio-


mentem a reconstrução da prática da edu-


nar o que foi relevante e deve ser descrito

cadora. É essa estratégia que motiva e pro-


e o que não foi. Além de atividades, pode-


porciona estudo, leitura e debates no gru-


se descrever o desempenho do grupo de


po de educadoras.
alunos ante a atividade ou o desempenho

de parte do grupo ou de um dos alunos. A Reconstrução. Por fim, a partir de estudos,


leituras, seminários e debates chega-se ao


descrição pode ser feita oralmente ou por


escrito: muitas educadoras descrevem sua momento de reorientar o fazer. Todas essas

prática em forma de diários. As descrições perguntas devem ser respondidas a partir


da prática em sala de aula podem ser das conclusões a que se chegou coletiva-

dirigidas à própria educadora, que tem a mente. Nesse momento, elaboram-se mo-

oportunidade, nesse momento, de obser- dos de atuar, firmam-se acordos, definem-


var de um outro ponto de vista a ação que se metas que devem ser utilizadas coletiva-

desencadeou. Mas, com seu consentimen- mente, observadas e avaliadas pelo grupo.

to, pode ser um material utilizado em reu-


niões pedagógicas e em encontros indivi-


O que se espera

duais com a coordenadora pedagógica. Tor-


da educadora?

na-se, então, material de reflexão coletiva


e para elaborá-la é preciso prever o que o



leitor ou ouvinte precisa saber para com- Às educadoras cabe o papel de diagnosti-

car, planejar, avaliar e criar situações de


preender o que se quer comunicar.


aprendizagem que problematizem e interfi-


Estudo e informação. Essa estratégia deve


resultar na identificação das teorias e con- ram no processo de construção do conheci-



cepções que se expressam na prática peda- mento de seus alunos. Esse processo dinâmi-

co de produção e de acesso ao conhecimen- Considerações finais



to, em que educadora e aluno são agentes e


A formação da educadora deve ter como


não meros espectadores, só será possível no


principal objetivo o de melhorar a qualidade


momento em que tiverem clareza quanto aos


objetivos a serem perseguidos, às opções da sua intervenção educativa e pedagógica.


Para que isso ocorra, é fundamental que se pri-


metodológicas e orientações didáticas que


vilegiem momentos e espaços específicos para


deverão seguir para mediar a apreensão do


conhecimento, organizando-o e viabilizando- uma formação contínua e sistemática: por



o por meio de atividades. meio de reuniões de estudo, de troca de expe-


riências; possibilitando a participação em se-


Nesse sentido, o papel das coordenadoras


minários e cursos; buscando materiais de pes-


pedagógicas junto das educadoras seria o de


garantir o acesso ao conhecimento científico quisa; adquirindo livros; acompanhando o tra-


balho com jovens e adultos, pelo planejamen-


e de relacioná-lo à prática cotidiana.


to, pelo registro e por visitas à sala de aula. Para

Deveríamos reconhecer a importância dos

elementos contidos nas suas práticas ○

muitas educadoras de jovens e adultos o regis-
educativas cotidianas, tentando perceber seus tro escrito pode vir a ser a primeira possibili-

dade e/ou necessidade de exercitar o uso da


limites e dificuldades, articulando-os com um


escrita. O exercício da escrita deve ser consi-


saber teórico que vem sendo construído ao


derado e privilegiado como um dos principais


longo dos anos, nas diversas áreas do conhe-


cimento. aspectos da formação, pois a prática da escri-


ta exige planejamento, reflexão e organização


O espaço e as condições para que a forma-


de idéias de forma coerente.


ção ocorra devem possibilitar que as educado-


ras construam sua própria prática. Para isso, é O processo e o resultado do trabalho de sis-

necessário definirmos outros objetivos para a tematização da prática devem ser discutidos e

refletidos pelo grupo de educadoras e coorde-


formação, como: capacitá-las para que sejam


nadoras com o intuito de perceber e identifi-


seres autônomos, capazes de interagir e de res-


ponder às necessidades impostas pelo mundo car os avanços e as dificuldades, na perspecti-



moderno. va de traçar estratégias para atendê-las em


suas necessidades de formação.


Na atuação da educadora devem estar re-


Um outro aspecto a ser destacado é o in-


fletidos os seguintes princípios que dizem res-


peito aos alunos: vestimento no acompanhamento do trabalho



• A consideração do aluno como sujeito ati- específico das educadoras, por meio de super-

visão realizada pelas coordenadoras pedagó-


vo da aprendizagem.

gicas. Esse trabalho pode contribuir para uma


• O diagnóstico de quais são seus conheci-


mentos prévios. maior segurança delas na integração e na arti-



culação das atividades desenvolvidas com os


• A promoção de situações nas quais os alu-

alunos. Além disso, é fundamental que todo


nos interajam entre si e consigo mesmos.


profissional tenha espaços para discutir dúvi-


• A consideração das práticas cotidianas dos


das, trocar experiências e pesquisar, ou seja,


jovens e adultos, consolidando as aprendiza-


para que continue aprendendo e aperfeiçoan-


gens escolares a partir dessas experiências.

do seu fazer.

• O respeito às diversidades de personalida-


É importante, ainda, que as coordenado-


des e de culturas.

ras pedagógicas estejam sempre atentas e pró-


• A valorização da autonomia de seus alu- ximas das educadoras, avaliando o que não

nos.
está bom no relacionamento pessoal, no tra-

• A promoção da autoconfiança dos alunos balho cotidiano da sala de aula e procurando,


diante de seus saberes, valores e atitudes.


durante as reuniões, discutir e buscar, com o


• O incentivo à cooperação e à solidarieda- grupo, alternativas para mudanças que alterem



de entre os alunos. o que não está funcionando bem.



324
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos

As relações entre as educadoras, os alunos gógicos que de fato contribuem para o desen-



e outras pessoas envolvidas no trabalho devem volvimento de um trabalho de qualidade.



ser objeto de reflexão cotidianamente. Esse Por último, a formação das educadoras deve



momento de avaliação é importante para que articular a prática e a teoria a todo momento,


possam entender o que lhes é mais fácil, quais pois o que queremos alcançar é um maior co-



suas dificuldades e também para buscar co- nhecimento da realidade e de formas para in-



nhecer melhor seus alunos. É nesse momento tervir nesse contexto, melhorando a qualidade


que se pode organizar e pensar tudo o que já da prática das educadoras junto dos alunos. 325



sabem e vivenciam no dia-a-dia. Esse espaço



ajuda na organização de idéias e na elabora-



ção do planejamento.
Bibliografia


Nesse sentido, as educadoras devem estar



constantemente avaliando sua prática pedagó-


C O N T E R A S, J. C o n d i c i o n e s y c o n t ra r i e d a d e s d e l


gica, buscando aprofundar teoricamente as- profesional reflexivo al intelectual critico. La autonomía



pectos ligados à educação de jovens e adultos: del profesorado. Madrid: Morata, 1997. p. 98-142.


quem são eles; como pensam; como dimen- PIMENTA, S. G. Formação e docente: identidade e sabe-



res da docência. In: PIMENTA, S. G. (Org). Saberes
sionam seu tempo; quais seus interesses; como


pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez,
percebem o mundo a sua volta; quais suas ne-

1999. p. 15-34.

cessidades; como constroem conhecimento; RIBEIRO, Vera Maria Masagão (Coord.). Educação de Jo-

etc. Se não sabemos quem são nossos alunos,


vens e Adultos : proposta curricular para o primeiro


o que eles já sabem e quais são as nossas ques- segmento do Ensino Fundamental. São Paulo: Ação

tões em relação a esses aspectos, é muito difí- Educativa/MEC, 1997.


cil pensar em objetivos e metodologias que SESC – DEPARTAMENTO NACIONAL. Projeto Sesc-Ler:

diretrizes para a orientação pedagógica. [Documento


possibilitem desenvolver um trabalho mais

elaborado por Ação Educativa, Monica Moreira de Oli-


seguro e competente. Somente quando conse-


veira Braga Cukierkorn] Rio de Janeiro: Sesc, 1999.


guimos explicitar nossas perguntas sobre a VÓVIO, C. L. (Coord.). Viver e aprender: guia do educa-

prática pedagógica, num processo reflexivo, é


dor – livros 1, 2, 3 e 4. São Paulo/Brasília: Ação Edu-


que podemos pensar sobre os recursos peda- cativa/MEC, 1999.








































SIMPÓSIO 23

CONCEPÇÃO DOS LIVROS


DIDÁTICOS: MODELO ATUAL
E NOVAS PERSPECTIVAS
Jorge Megid Neto

Luiz Percival Leme Brito

Luiz Roberto Dante

327
Representações e novas




perspectivas do livro didático




na área de Ciências:




o que nos dizem os professores,




as pesquisas acadêmicas e




os documentos oficiais






Jorge Megid Neto



Universidade Estadual de Campinas/SP





Esta exposição toma por base um conjunto apresento dados coletados por nosso grupo de

de ações realizadas pelo Grupo Formar – Ciên-


pesquisa durante cursos de extensão realizados


cias (Estudos e Pesquisas sobre Formação de recentemente, com aproximadamente 180 pro-

Professores da Área de Ciências), da Faculdade fessores de Ciências do Ensino Fundamental,



de Educação da Unicamp, e também minhas em várias cidades da região de Campinas (SP).


experiências docentes como professor de Físi-


Um dos temas desenvolvidos nos cursos


ca do Ensino Médio e professor da área de Di- abrangia o livro didático e seu papel no ensino

dática e Prática de Ensino de Ciências na uni- de Ciências. Quando perguntados sobre os usos

versidade. que fazem do livro didático em suas atividades


As reflexões serão norteadas por três aspec-


docentes, os participantes apresentaram respos-


tos principais: a) o papel atribuído ao livro di- tas que podem ser aglutinadas em três grandes

dático e seu uso no contexto escolar; b) os cri- grupos. Os professores fazem uso simultâneo de

térios de análise, de avaliação e de escolha de várias coleções didáticas, de editoras ou auto-


livros didáticos adotados por equipes de espe- res distintos, para elaborar o planejamento anu-

cialistas do MEC, por pesquisadores da univer- al de suas aulas e para a preparação delas ao lon-

sidade e por professores de Ciências da rede go do ano letivo. Também comentam que o li-

pública; c) as representações epistemológicas vro didático é utilizado como apoio às ativida-


e pedagógicas sobre livro didático presentes no des de ensino-aprendizagem, seja na sala de



ideário de professores, pesquisadores e currí- aula, seja extra-escola, visando à leitura de tex-

culos oficiais. tos, à realização de exercícios e outras ativida-



Cabe destacar, ainda, que não se pode de- des e ainda como fonte de imagens (fotos, de-

bruçar sobre o tema do Simpósio, particulari- senhos, mapas, gráficos etc.) para os estudos es-

zando para os livros didáticos de Ciências no colares. Por fim, salientam que o livro didático

Ensino Fundamental, sem externar explícita ou é utilizado como fonte bibliográfica, tanto para

implicitamente concepções de ciência, de am- o professor complementar seus conhecimentos,


biente, de educação, de sociedade, das relações quanto para os alunos, em especial na realiza-

entre ciência–tecnologia–sociedade, entre tan- ção das chamadas “pesquisas” bibliográficas.



tas outras concepções de base pertinentes ao Durante os mesmos cursos, os professores



campo da educação em Ciências, as quais de- eram instigados a estabelecer critérios para ana-

terminam a própria concepção de livro didáti- lisar e avaliar coleções didáticas e, a partir dis-

co e de seu papel educacional. so, apresentar suas concepções sobre um “bom”



Iniciando pelas concepções e práticas de livro didático. Em linhas gerais, eles indicam os

professores sobre o livro didático de Ciências,


seguintes critérios ou características de uma boa


328
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas

coleção didática de Ciências: a) apresentar in- do aprofundamentos teóricos, discussão de



tegração ou articulação dos conteúdos e assun- objetivos, sugestão de bibliografia, entre



tos abordados; b) trazer textos, ilustrações e ati- outros.



vidades diversificados, que mencionem ou tra- Posteriormente, em anos subseqüentes,


tem de situações do contexto de vida do aluno;


como 1997, 1998, 2000 e 2001, o MEC produziu


c) apresentar informações atualizadas e lingua- novos documentos, agora denominados Guias



gem adequada ao aluno; d) estimular a reflexão, do livro didático, envolvendo avaliação de co-


o questionamento, a criticidade; e) as ilustra- 329


leções ora de 1ª a 4ª séries, ora de 5ª a 8ª séries.


ções devem ter boa qualidade gráfica, ser visua- No caso da área de Ciências, uma nova equipe



lmente atraentes, compatíveis com a nossa cul- de especialistas foi constituída, a qual estabe-



tura, conter legendas e proporções espaciais leceu dois conjuntos principais de critérios para


corretas; f ) as atividades experimentais devem


avaliação das coleções. Os critérios eliminató-


ser de fácil realização e com material acessível, rios das coleções, segundo a equipe, consistem



além de não apresentar riscos físicos ao aluno; de: conceitos e informações básicas incorretos;



g) o livro deve ter isenção de preconceitos incorreção e inadequação metodológicas; pre-


socioculturais; h) a coleção deve manter estrei-


juízos à construção da cidadania; e riscos à in-

ta relação com as diretrizes e propostas curricu- tegridade física do aluno. Os critérios

lares oficiais. classificatórios envolvem adequação dos con-



Praticamente todos os critérios e caracterís- teúdos; atividades propostas; integração entre


ticas mencionados pelos professores compare- temas nos capítulos; valorização da experiên-

cem nos documentos de avaliação do livro di- cia de vida do aluno; aspectos visuais das ilus-

dático do MEC, integrantes do Programa Nacio- trações; e manual do professor.


nal do Livro Didático (PNLD). Desde 1994, te-


Quando questionamos os professores, du-


mos contado com esse trabalho de avaliação rante os referidos cursos de extensão, se os cri-

nacional de livros didáticos direcionados ao térios que estabelecem são específicos de livros

Ensino Fundamental. didáticos de Ciências ou se poderiam ser utili-


Em 1994, o MEC publicou o documento


zados para avaliar e selecionar livros didáticos


Definição de critérios para avaliação dos livros de outras disciplinas escolares, eles se assustam.

didáticos, em que eram analisados livros didá- Tomam consciência de que, à exceção da pre-

ticos de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental sença de “atividades experimentais” e “riscos


nas várias disciplinas do currículo escolar. Os


físicos”, a relação de características/critérios de


critérios estabelecidos pela equipe de Ciências um livro didático por eles indicada pode ser

distribuíram-se em quatro grupos: também utilizada para análise de livros didáti-



Descritores da estrutura, envolvendo carac- cos de Português, Matemática, História e Geo-


terísticas físicas e gráficas dos livros e aspec-


grafia, por exemplo.


tos pedagógico-metodológicos, como ade- Se notarmos os critérios eliminatórios e



quação e articulação dos conteúdos, presen- classificatórios dos Guias do MEC divulgados a

ça de erros conceituais, inserção de precon-


partir de 1997, encontramos um único critério


ceitos, entre outros.


entre aqueles colocados em destaque – riscos à


Descritores das concepções de natureza, integridade física do aluno – que representa



matéria/espaço/tempo/processo de trans- uma especificidade do ensino de Ciências, mais


formação, de seres vivos, de corpo huma-


diretamente ligada à realização de atividades


no, de saúde, de ciência e tecnologia, de


experimentais com materiais ou equipamentos


cotidiano.
passíveis de provocar danos à saúde do aluno.

Descritores das atividades como práticas Em suma, esses primeiros comentários in-

propostas no livro, diversidade de ativida-


dicam que nem os professores de Ciências com


des, habilidades e capacidades intelectuais,


quem trabalhamos, nem os especialistas da


entre outros aspectos.


área de Ciências do PNLD conseguem estabe-

Descritores do Livro do Professor, envolven- lecer – como critérios para avaliação de livros

didáticos – aquilo que há de mais específico cia & Ensino (Amaral e Megid Neto, 1997), tive-



no ensino de Ciências, os fundamentos ou as mos oportunidade de comentar sobre essa



bases teórico-metodológicas que demarcam, questão. Com base em estudos avaliativos de



que distinguem o campo curricular das Ciên- coleções didáticas afirmamos, na época, que os


cias Naturais das demais disciplinas do currí- autores de livros didáticos até procuram incor-



culo escolar. Muito provavelmente os autores porar nas páginas iniciais das coleções, nas ex-



e editores de livros didáticos também não con- plicações e na introdução ao professor e ao alu-


seguem fazer essa distinção, razão pela qual as no, essas bases, esses avanços educacionais na



coleções de Ciências vêm sofrendo, nos últi- área de Ciências. Contudo, na implementação



mos anos, melhorias localizadas principal- dessas idéias ao conteúdo do livro (texto, ativi-



mente no aspecto gráfico e visual, na correção dades, orientações metodológicas etc.) comu-


conceitual, na eliminação de preconceitos e mente isso não se efetiva.



estereótipos de raça, de gênero ou de nature- Analisando várias coleções de Ciências de



za socioeconômica, na supressão de informa- 5ª a 8ª séries, notamos a presença de erros


ções ou ilustrações que podem propiciar ris- ○
conceituais ou de preconceitos sociais, cultu-
cos à integridade física do aluno. Muitas des- rais e raciais, conforme a imprensa fartamen-

sas melhorias foram certamente impulsiona- te divulgava naquele momento. Todavia, esses

das pelos Guias de avaliação do MEC. erros e preconceitos são pontuais, podem ser

Podemos afirmar que as coleções didáticas detectados diretamente no texto, na ativida-


não sofreram qualquer tipo de mudança subs- de, na ilustração e podem ser corrigidos com

tancial nos aspectos que determinam as pecu- alguma facilidade. De modo semelhante, as de-

liaridades, as bases do ensino no campo das ficiências gráficas, qualidade inadequada do


Ciências Naturais. As diretrizes e orientações papel ou uma diagramação cansativa podem



estabelecidas nas atuais propostas curriculares também ser corrigidos por intermédio de nova

oficiais de vários estados e municípios do país editoração da coleção. Mas que dizer de con-

e também nos Parâmetros Curriculares Nacio- cepções errôneas, superadas, parciais, envie-

nais (de Ciências) derivam dessas bases. Que sadas, mitificadas sobre ciência, ambiente,

características são essas, que fundamentos são saúde, tecnologia, entre tantas outras? Como

esses, os quais são esquecidos por professores alterar um tratamento do conteúdo presente

de Ciências, pelos autores de livros didáticos e no livro, que configura o conhecimento cien-

também pelas equipes de especialistas de as- tífico como produto acabado de algumas men-

sessoria ao MEC? tes privilegiadas, desprovidas de interesses



Ora, como disse, basta ler os PCN de Ciên- político-econômicos e ideológicos, que apre-

cias do Ensino Fundamental ou outros progra- senta o conhecimento sempre como verdade

mas curriculares oficiais para encontrar lá, de absoluta, sem contexto histórico e socio-

maneira bastante explícita, esses fundamentos cultural? Como modificar um enfoque ambien-

teórico-metodológicos. Por mais estranho que tal fragmentado, estático, antropocêntrico,



possa parecer, esses mesmos critérios encon- sem localização espaço-temporal? Ou ainda,

tram-se muito bem explicitados no citado do- como substituir um tratamento metodológico

cumento, Definição de critérios para avaliação que concebe o aluno como ser passivo, depo-

dos livros didáticos, de 1994, do próprio MEC. sitário de informações desconexas e des-

Dizem respeito às concepções de natureza, de contextualizadas da realidade? Todas essas


matéria/espaço/tempo/processo de transfor- deficiências no tocante aos fundamentos teó-



mação, de seres vivos, de corpo humano, de saú- rico-metodológicos do ensino de Ciências são

de, de ciência e tecnologia, ou ainda de ambi- extremamente difíceis de modificar nas cole-

ente e das relações de todos esses elementos ções hoje existentes no Brasil. Há necessida-

com a educação e com a sociedade em última de, em quase todos os casos, de se reescrever

instância. por completo cada livro, cada coleção.



Em breve artigo publicado no jornal Ciên- Fica-nos, assim, a indagação: por que esses

330
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas

critérios de cunho teórico-metodológico e bas- De nossa parte, tomando por base estudos



tante inerentes e peculiares ao ensino de Ciên- e pesquisas acadêmicas realizadas em diversas



cias, estabelecidos por especialistas do próprio universidades brasileiras de diferentes regiões



MEC em 1994 e, posteriormente, reafirmados geográficas, podemos dizer que as coleções di-


pelos PCN – Ciências, não continuaram a cons- dáticas de Ciências da década de 1970 lograram



tituir o eixo principal e norteador dos critérios relativo êxito na sua aproximação com as dire-



para avaliação de coleções didáticas de Ciên- trizes curriculares oficiais daquela época. Toda-


cias nos demais documentos do MEC? via, nos anos 1980, após os processos de 331



Se isso tivesse ocorrido desde o Guia de Ava- reformulação curricular em vários estados e



liação de 1997 e subseqüentes, talvez algumas municípios e, mais recentemente, com a edi-



coleções já tivessem sofrido mudanças não ape- ção dos PCN, essa aproximação não mais se


nas em aspectos periféricos, como projeto grá- evidencia. Nos últimos dez a quinze anos, as



fico e correções conceituais, mas também nos coleções didáticas de Ciências não conseguiram



elementos essenciais do ensino-aprendizagem acompanhar os novos princípios educacionais



de Ciências. Poderíamos ter, assim, mais ele- difundidos pelos estudos e pesquisas acadêmi-


mentos para avaliar a viabilidade de investir em cas e pelos currículos oficiais. Pode-se dizer,



um projeto de reformulação do modelo atual de então, que os atuais livros didáticos de Ciências

livro didático e de melhoria da sua qualidade, correspondem a uma versão “livre” das diretri-

em vez de vislumbrarmos tão-somente os ca- zes e dos programas curriculares oficiais em vi-

minhos que iremos apontar na última parte gência. Em linhas gerais, as atuais coleções ain-

deste trabalho. da mantêm uma estrutura programática e teó-



Quanto às representações pedagógicas e rico-metodológica mais próxima das orienta-


epistemológicas do livro didático de Ciências, ções curriculares veiculadas nos anos 1960 e

pode-se dizer que os professores mantêm forte 1970. A pretensão de que as coleções colabo-

expectativa – ou crença – de que as coleções rem na difusão das atuais orientações e currí-

correspondem a uma expressão fiel das propos- culos oficiais, contribuindo para que o profes-

tas e das diretrizes curriculares e do conheci- sor consiga perceber como essas diretrizes po-

mento científico. Todavia, por julgar que isso é dem tomar forma na prática escolar, de modo

de difícil consecução, atenuam suas pretensões, algum é conseguida pelos livros didáticos hoje

acreditando que ao menos as coleções são ver- presentes no mercado, mesmo entre aqueles

sões adaptadas das propostas curriculares e do que são recomendados pelos Guias do MEC.

conhecimento científico. Autores de livro didá- Quanto ao conhecimento científico propa-



tico e editoras, por sua vez, difundem até como lado nos livros didáticos de Ciências, não se

estratégia mercadológica que os livros são fiéis nota qualquer mudança substancial nas duas ou

representantes tanto do conhecimento cientí- três últimas décadas. As coleções enfatizam



fico como das diretrizes curriculares oficiais. Do sempre o produto final da atividade científica,

ponto de vista do conhecimento científico, os apresentando-o como dogmático, imutável e



autores indicam que o livro apresenta informa- desprovido de suas determinações históricas,

ções científicas atuais e corretas, as quais so- político-econômicas, ideológicas e socio-



frem pequenas adaptações em vista de uma di- culturais. Realçam sempre um único processo

vulgação de caráter didático. Quanto a acom- de produção científica – o método empírico-



panhar fidedignamente os programas curricu- indutivo –, em detrimento de se mostrar a di-


lares oficiais, autores e editoras reforçam que versidade de métodos e ocorrências na constru-

os respectivos livros atendem aos avanços da ção histórica do conhecimento científico, como

psicologia educacional, da metodologia do en- formulações teóricas sem evidências empíricas,



sino e às diretrizes curriculares oficiais. Estam- ensaio-e-erro, acaso, compilação de resultados


pam invariavelmente em suas capas expressões de pesquisas, entre outras formas. Pode-se di-

como “de acordo com os PCN”, ou “edição zer, então, que o conhecimento trazido pelos

reformulada para atender à avaliação do MEC”. livros didáticos de Ciências situa-se entre uma

versão “adaptada” do produto final da ativida- consultas bibliográficas; etc.). Contudo, consi-



de científica e uma versão “livre” dos métodos derando a baixa qualidade das coleções didáti-



de produção do conhecimento científico. cas da atualidade mesmo esse uso alternativo



Em suma, o livro didático não corresponde não pode ser estimulado.


a uma versão fiel das diretrizes e programas cur- Com a difusão de princípios educacionais



riculares oficiais, nem a uma versão fiel do co- como flexibilidade curricular, abordagem



nhecimento científico. Não é utilizado por pro- temática interdisciplinar, vínculo com o cotidi-


fessores e alunos na forma intentada pelos au- ano (real) do aluno e com seu entorno sócio-



tores e editoras, como guia ou manual relativa- histórico, atendimento à diversidade cultural de



mente rígido e padronizado das atividades de cada local ou região, atualidade de informações,



ensino-aprendizagem. Acaba por se configurar, estímulo à curiosidade, à criatividade, à reso-


na prática escolar, como um material de con- lução de problemas, entre outros, fica cada vez



sulta e apoio pedagógico à semelhança dos li- mais difícil conceber um livro didático adequa-



vros paradidáticos e de outros tantos materiais do a todos esses princípios.


de ensino. Introduz ou reforça equívocos, este- ○
Penso, assim, em pelo menos dois cami-
reótipos e mitificações com respeito às concep- nhos. A curto prazo, uma vez que as atuais co-

ções de ciência, ambiente, saúde, ser humano, leções permanecerão em circulação por algum

tecnologia, entre outras concepções de base tempo e pela dificuldade em se produzir novos

intrínsecas ao ensino de Ciências Naturais. materiais em questão de dois ou três anos, pro-

Ora, com tudo isso, podemos nos interro- põe-se manter esse uso alternativo do livro di-

gar: para quê livro didático com esse modelo e dático com seu modelo atual, investindo na

qualidade atuais? Indo mais a fundo, será que é ampla divulgação dos estudos de avaliação do

possível elaborar alguma coleção didática que livro didático e em cursos de formação de pro-

seja coerente com o conhecimento científico e fessores em exercício para discussão das defi-

seus métodos de produção e também com as ciências e limites das coleções didáticas atuais

diretrizes e orientações curriculares de cada e estímulo à produção coletiva de modos alter-


época? Não seria mais prudente abandonar o nativos de uso.



modelo em vigência de livro didático ou, pelo A médio prazo, várias ações podem ser em-

menos, abandonar o investimento de recursos preendidas. Uma primeira consiste em inves-



públicos na sua aquisição e distribuição ampla tir na produção de livros paradidáticos, com

pelas escolas públicas brasileiras, e investir em abordagem temática única para cada volume

outros caminhos, em outros materiais e recur- de uma coleção ou série, com melhor qualida-

sos para apoiar o trabalho pedagógico de pro- de gráfica e maior diversidade de textos/lin-

fessores e alunos? guagem, ilustrações e atividades. A abordagem


Essas indagações e incertezas remetem-nos de cada tema focalizaria com maior particula-

à segunda parte do tema deste Simpósio, qual ridade conhecimentos do campo das Ciências

seja, refletir sobre as perspectivas futuras para Naturais, porém de maneira multidimensional,

o livro didático. de forma a articular essa área com as demais


De início deve-se reforçar que nas escolas áreas do conhecimento humano relacionadas

públicas já se consagram mudanças na forma ao tema em questão. Esses livros paradidáticos



de utilização do livro didático. Cada vez mais o poderiam constituir livros didáticos “modula-

professor deixa de usar o livro como manual e res”, de maneira que o professor pudesse ir

passa a utilizá-lo como material bibliográfico de compondo seu compêndio didático ao longo

apoio a seu trabalho (leitura, preparação de do ano, a partir da sua realidade escolar, da sua

aulas etc.) ou material de apoio às atividades vivência profissional e das vivências de seus

dos alunos (confronto de definições e assuntos alunos, do contexto sociocultural deles e das

em duas ou mais coleções; fonte de exercícios ocorrências do processo de ensino-aprendiza-



e atividades; textos para leitura complementar; gem ao longo do ano letivo nos últimos anos –

fonte de ilustrações e imagens; material para as quais nos fazem constantemente avaliar os

332
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas

resultados parciais e os rumos do processo e ações já foram realizadas no passado, planeja-



implementar mudanças naquilo que foi previ- das tendo em vista implementar inovações e



amente planejado. melhorias no ensino à revelia do professor. Não



A par da multiplicação e da difusão desse lograram êxito, acabando por ser rejeitadas pe-


novo modelo de livro didático (modular), uma los próprios professores e convertendo-se em



segunda ação investiria na reedição de livros mais um fantasma que atemoriza os docentes



clássicos e de projetos curriculares de ensino, e inculca-lhes a pecha de incompetentes e in-


bem como de inúmeros projetos alternativos capazes. Ora, sem uma formação contínua e 333



produzidos em universidades e em escolas do permanente, sem melhorias substantivas nas



ensino básico ao longo das duas últimas déca- condições de trabalho e nas condições salariais



das, cujos materiais podem ser excelente fonte dos professores da Educação Básica, não se


de apoio ao trabalho pedagógico coletivo de pode conseguir melhoria da qualidade de ensi-



professores e alunos. Também seria incentiva- no escolar.



da a produção de outros recursos didáticos, Enquanto aceitarmos a perspectiva de que



como atlas, vídeos, CD-ROMs, cadernos de ati- um “bom” livro didático e programas curricu-


vidades para os alunos, textos e revistas de di- lares bem definidos e determinados podem su-



vulgação científica. Muitos desses recursos já prir possíveis deficiências de formação do pro-

estão presentes no mercado, porém deveriam fessor e também suprir suas inadequadas con-

ser multiplicados e chegar de fato às escolas da dições de trabalho e seu salário indigno, pouco

rede pública do Ensino Fundamental. Esses há a se fazer. Melhor ficar com a ordem edito-

materiais diversificados devem procurar aten- rial e mercadológica vigente dos livros didáti-

der às diretrizes e orientações curriculares ofi- cos convencionais e manter o modelo e o esta-

ciais, além de levar em consideração os resul- do atual de nossas escolas.



tados e as contribuições das pesquisas educa- De forma totalmente oposta, acreditamos



cionais, bem como o contexto histórico e a di- sinceramente que novas experiências e ações no

versidade cultural de municípios e regiões. campo da produção e da difusão de recursos


Lembro, neste ponto, da extinta Fename, didáticos impressos e de multimídia podem ser

que editava, até os anos 1960 e 1970, materiais realizadas articuladamente com a formação

didáticos de excelente qualidade e baixo custo, contínua dos professores e com as devidas

sendo a maioria textos alternativos de ensino e melhorias das suas condições de trabalho e de

bastante inovadores até mesmo para os dias de profissão.



hoje. Os recursos do PNLD poderiam ser cana-



lizados para apoiar a produção da ampla gama



de materiais e recursos citados, nas próprias


Bibliografia

unidades escolares, nas universidades, nos cen-



tros pedagógicos das Secretarias de Educação AMARAL, I. A.; MEGID NETO, Jorge. Qualidade do livro

didático de Ciências: o que define e quem define? Ci-


municipais e estaduais, nos museus e centros

ência & Ensino, n. 2, p. 13-14, Campinas: Faculdade de


de Ciências, justamente para atender às deman-


Educação/Unicamp, jun. 1997.


das específicas de cada local ou região. Gradual-

AMARAL, I. A.; MEGID NETO, J.; AMORIM, A. C.; SERRÃO,


mente, os recursos do PNLD poderiam deixar


S. M. Algumas tendências de concepções fundamen-


de ser utilizados para compra de livros didáti- tais presentes em coleções didáticas de Ciências de 5ª

cos com o modelo atualmente vigente, inves- a 8ª séries. Atas do II Encontro Nacional de Pesquisa-

tindo-se na distribuição, para todas as escolas dores em Educação em Ciências. Valinhos: Abrapec, set.

1999. 16 p. (Edição eletrônica em CD-ROM.)


públicas, dos novos materiais e recursos em

BATISTA, Antônio A. G. Recomendações para uma política


quantidade suficiente para atender a bibliote-


pública de livros didáticos. Brasília: SEF/MEC, 2001.


cas de salas-ambiente e bibliotecas escolares. BRASIL. Ministério da Educação. FAE. Definição de critéri-

Finalizando, devemos esclarecer que todos


os para avaliação dos livros didáticos: Português, Ma-


esses novos documentos e ações não garantem temática, Estudos Sociais e Ciências – 1ª a 4 ª séries.

por si só a melhoria do ensino. Muitas dessas Brasília, 1994.




BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação dáticos para o ensino de Ciências no Brasil. Tese (Dou-


Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais – 1º, torado). Faculdade de Educação/Unicamp, 1993.



2º, 3º e 4º ciclos. Brasília, 1997/1998. FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. As propostas curriculares


. Guia de livros didáticos – 1ª a 4ª séries – oficiais . São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1996.



PNLD 2000/2001. Brasília: SEF/MEC/FNDE/Ceale/ (Textos FCC, 10).


Cenpec, 2000. MEGID NETO, Jorge. Tendências da pesquisa acadêmi-


. Guia de livros didáticos – 5ª a 8ª séries –


ca sobre o ensino de Ciências no nível fundamental.


PNLD 2002. Brasília: SEF/FNDE/Cenpec, 2001. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação/Unicamp,


FRACALANZA, Hilário. O que sabemos sobre os livros di-


1999.











Livro didático e autonomia docente






Luiz Percival Leme Brito



Universidade Estadual de Campinas/SP






A instrução formal nas


O tema deste simpósio – “Concepção dos


livros didáticos: modelo atual e novas pers-


sociedades industriais

pectivas” – traz associado um conjunto de



afirmações possíveis ou necessárias sobre li- No mundo globalizado, ser escolarizado –



vro didático, que é interessante explicitar: isto é, ter freqüentado a escola por uns tantos

em primeiro lugar, está o fato de que o livro


anos e saber ler, escrever e operar com núme-


didático tem um modelo e de que existiria a ros, bem como realizar determinadas tarefas em

possibilidade ou o desejo de um livro didá- que a leitura e a escrita estão pressupostas – é



tico em outro(s) modelo(s); mais que isso, condição de participação social com relativa in-

está sugerido nessa possibilidade que esses


dependência e autonomia; isso implica, entre


outros modelos, que representariam a supe- outras coisas, a possibilidade de empregar-se,



ração do atual, seriam mais interessantes e de usufruir (consumir) dos benefícios da pro-

apropriados a uma proposta pedagógica ino- dução industrial e de manter acesso aos varia-

vadora; finalmente, está a idéia de que é pos-


dos bens culturais.


sível transformar o ensino – ou contribuir Diferentemente dos anos 1960, quando,



para sua transformação – pela redefinição de para explicar os altos índices de analfabetismo,

livro didático. se afirmava que não interessava às classes do-


O debate, contudo, só faz sentido se


minantes dos países periféricos – particular-


extrapolar o campo em que se circunscreve mente às oligarquias reacionárias – que os tra-



mediatamente, de modo que seja desenvol- balhadores tivessem instrução, porque assim

vido a partir da compreensão de como funcio- seriam mais fáceis de controlar e de se subme-

na a educação na sociedade urbano-indus-


ter ao poder, o discurso liberal atual é o de que


trial. Isso porque o livro didático é parte da o trabalhador moderno deve ter autonomia,

cultura escolar e só pode ser devidamente iniciativa e capacidade de análise e decisão. A



compreendido se se considera esta. Assim, educação regular, de massa, generalizada, pas-


antes de entrar propriamente no tema pro- sou a ser um das características mais significa-

posto, cabe estabelecer alguns pressupostos tivas das sociedades ocidentais industriais.

de minha análise. Não se deve compreender essa transformação


334
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas

como um processo de redução das desigualdades. a escola como paradigma do conhecimento. Nes-



A demanda por qualificação resulta das necessi- se sentido, fazem parte do capital cultural histo-



dades do modelo de sociedade. Do ponto de vis- ricamente estabelecido.



ta do sistema, a escolarização se faz necessária Além da função informativa, a escolarização


para que o indivíduo seja mais produtivo, para cumpre uma função que apenas tem sido objeto



que saiba seguir instruções e movimentar-se no de investigação, que é a função formativa, en-



espaço urbano-industrial, para que possa consu- tendida como o desenvolvimento de habilidades


mir produtos e respeitar ou assumir os valores cognitivas articuladas às formas do saber escri- 335



hegemônicos. Do ponto de vista do trabalhador, to (isto é, aquele que se constitui em função de



como indivíduo, a escolarização impõe-se como uma tradição de escrita, aí incluídas a Matemá-



condição de possibilidade de inserção no merca- tica, as Ciências, a Literatura, a Informática, a


do de trabalho e, em tendo emprego, de partici- imprensa, as leis).



pação – ainda que mínima – do mercado de con- Nesse sentido mais genérico, a escolarização



sumo. Se a escolarização não garante o emprego supõe o letramento do sujeito – entendido como



de ninguém, nenhuma ou pouca escolarização é o estado ou a condição de quem interage com


um impedimento ao trabalho. diferentes discursos, saberes e comportamentos



Em outras palavras: a instituição escolar na articulados em função da cultura escrita. Quan-

sociedade urbano-industrial tem a dupla função to maior o letramento, maior será, entre outras

de atuar como instrumento de reprodução da coisas, a freqüência de manipulação de textos


estrutura social, contribuindo para a manuten- escritos variados, a de realização de leitura au-

ção de diferenças e de privilégios, e de inserir no tônoma (sem intervenção ou apoio de outra pes-

mercado de trabalho e de consumo os diferen- soa), a interação com discursos menos contex-

tes sujeitos, conforme sua condição de classe. tualizados ou mais auto-referidos, a convivên-

A educação regular cumpre, nesse quadro, cia com domínios de raciocínio abstrato, a pro-

quatro funções complementares. dução de textos para registro, comunicação ou



Em primeiro lugar, está a função informati- planejamento, enfim, maior será a capacidade e

va, que supõe que todo indivíduo deve conhe- a oportunidade do sujeito de realizar tarefas que

cer o conjunto de informações que permite sua lhe exijam monitoração, inferências diversas e

participação apropriada na sociedade. Desde ajustamento constante.



essa perspectiva, a escola expressaria o “consen- Além das funções informativa e formativa,

so” histórico (segundo a visão hegemônica) dos a escolarização tem, complementarmente e de



saberes que, idealmente, devem ser de conheci- modo articulado a elas, uma função valorativa,

mento comum, como a noção moderna de uni- pela qual se estabelece e se reafirma o conjun-

verso, os conceitos de corpo e de vida, a repre- to de valores que informam o conceito hege-

sentação de mundo, os fatos históricos represen- mônico de sociedade, tais como o sentido de

tativos da sociedade, a língua considerada pa- liberdade, de respeito, de autoridade, de supe-



drão, entre outros. Esses saberes se organizam rioridade, de propriedade. Essa função, apesar

nas disciplinas escolares – Português, Matemá- de menos explícita do que as anteriores, está

tica, História, Biologia, Geografia–, as quais têm fortemente imbricada na organização escolar e

relativa autonomia nos processos de produção na razão de ser da escola. É em função dela que

de conhecimento extra-escolar. se organiza o calendário escolar, que a escola



Apesar de os saberes escolares não terem, se relaciona com a comunidade e com as ins-

muitas vezes, aplicação prática para a maioria tâncias oficiais, que se estabelecem os critérios

dos cidadãos, o fato é que seu domínio contri- de seleção e avaliação.



bui para sustentar privilégios ou permitir ascen- Ao lado da função valorativa e intrinsecamen-

são social. Eles compõem o ideal social de pes- te ligada a ela, está a função normativa, à qual

soa culta e estão presentes em concursos e tes- compete implementar o processo de socialização

tes, além de serem constantemente reproduzi- das crianças, estabelecendo o lugar e o compor-

dos de diferentes maneiras pela mídia, que toma tamento de cada uma no meio imediato e na so-

ciedade como um todo. A dinâmica das aulas, a • a atribuição de uma natureza teleológica à



repartição do espaço físico escolar, os sistemas de produção discursiva, cujo fim é definido pela



avaliação e promoção, as categorias de punições cumulação de um volume de conhecimentos;



e censura, tudo isso concorre para a construção • sua acumulação progressiva por meio de for-


de um modelo disciplinar e de relação com o co- mas de desenvolvimento cumulativo;



nhecimento e de comportamentos esperados.


• a construção do tempo escolar como um es-


João Wanderley Geraldi observa que se pode com- paço de tempo útil, delimitado pela conse-


preender a escolarização como uma aplicação


cução de um objetivo e pela transmissão de


paradigmática das modernas técnicas de gover- uma determinada porção de conhecimento;



no, cujas estratégias, mais do que silenciar e cons-


• a redução da dispersão e da heterogeneida-


tranger, agem pela liberdade, sintonizando dese- de das formas de interlocução presentes na


jos e capacidades aos objetivos políticos da orga-


situação imediata de uso da linguagem em


nização e construindo o autogoverno como for- sala de aula, favorecendo a manutenção dos



ma de realização da liberdade. dois pólos de produção discursiva, realizada


Deve-se destacar que tanto os valores como ○
mediante a unificação do corpo de alunos;
os comportamentos esperados, diferentemen-

• a objetivação e a avaliação das relações dos


te do que ocorre com os saberes enciclopédi- alunos com os conhecimentos a serem acu-

cos, raramente estão explicitados nos progra- mulados;



mas e currículos. Eles compõem o currículo


• a manutenção da finalidade corretiva da

oculto e se manifestam nas práticas pedagógi-


interlocução entre professor e alunos, e a


cas (formas de ensinar, relação professor-alu-


conseqüente unificação de grupos e sua dis-


no, processos de avaliação), na organização do tinção de outros grupos, de acordo com a


sistema escolar, no exercício da autoridade e


distância maior ou menor que os separa des-


nas ações de garantia da disciplina, na come-


ses saberes;

moração das datas cívicas.


• o desenvolvimento de estratégias para ate-


nuar a contradição existente entre, de um



lado, a situação imediata de interlocução e a


O livro didático na escola

necessidade de unificação dos alunos num


de massa único pólo e, de outro, a finalidade corretiva



da interlocução, que cria uma permanente


Livro didático poderia ser, em princípio, todo


instabilidade na produção do discurso;


livro que se organiza em função do processo pe-


• o reforço da autoridade do professor e seu


dagógico, visando a apresentar um conteúdo re-

domínio na interlocução;

lativo a uma área de conhecimento escolar. En-



tretanto, o modelo atual de livro didático obri- • a distribuição da realização do trabalho de


produção do discurso em instâncias que al-


ga-nos a fazer uma interpretação mais restrita


desse tipo de livro, diferenciando-o de outras ternam e em que se alternam diferentes


agentes na sua produção.


produções pedagógicas, inclusive as que supõem



seu uso do espaço da aula. A semelhança entre esse conjunto de condi-


ções do discurso escolar e o modelo atual do li-


Para compreender apropriadamente o que é


e como funciona o livro didático, é necessário vro didático é imediata. Ele supõe o princípio da

perceber como se estrutura a educação escolar, acumulação progressiva, a repartição do tempo



que tem na “aula” seu paradigma. Em trabalho (as unidades) em atividades bem definidas, a

ação normativa rotineira. Mas é na redução da


no qual se investiga a definição do objeto de en-


sino na aula de Língua Portuguesa, Antônio dispersão e da heterogeneidade das normas de



Augusto Batista, em seu livro Aula de Português interlocução que o modelo do livro didático mais

(1996), identifica um conjunto de condições que se impõe: ele determina as falas e os comporta-

mentos possíveis, instituindo uma voz fixa e


a cultura escolar estabelece para que um saber


possa ser transmitido em sala de aula: norteadora de todas as ações; apresenta-se como

336
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas

portador do conhecimento verdadeiro e neces- dade) e, complementarmente, de concepção



sário; traz previamente estabelecidas as pergun- pedagógica. Ainda em razão desse debate, co-



tas e as respostas. nhecemos nesse período, diversas propostas de



O livro didático funcionaria, desse modo, livros com modelos diferentes e de outros mate-


como “antenas” da sociedade, estabelecendo riais didáticos, além de ações complementares



uma ponte entre as instâncias produtoras do (sempre circunstanciais, mas significativas do



conhecimento e o processo pedagógico, sistema- ponto de vista político-pedagógico), como a cri-


tizando e didatizando os saberes escolares. ação de bibliotecas, acervos de classe, salas de 337



Como o conteúdo e a organização escolar são criação, salas informatizadas. Devem-se regis-



fruto das disputas e dos compromissos sociais, trar, ainda, as propostas de abandono do livro



o livro didático tende a trazer a versão didático, seja em função de um modelo de aula


hegemônica, isto é, aquela que corresponde à incompatível com ele, seja pela produção pelo



visão de mundo das forças político-sociais do- docente de seu próprio material didático.



minantes. Entretanto, nenhuma das ações de condena-



Enfim, o livro didático é a expressão maior ção e substituição do livro didático foi, do ponto


da cultura escolar, manifestando uma concep- de vista da organização do sistema escolar, bem-



ção de ensino em que a exposição do conheci- sucedida. Os livros “diferentes” foram sempre

mento, distribuída em áreas específicas corres- bem avaliados e serviram, muitas vezes, de mo-

pondentes às disciplinas escolares, supõe uma delo para reajustes de aspectos periféricos de

espécie de progressão curricular cumulativa, outros produtos didáticos mais convencionais,



numa estreita relação com o princípio de mas não tiveram sucesso de mercado. As biblio-

seriação escolar. Seu uso supõe um tipo deter- tecas de classe e outras ações semelhantes fo-

minado de aula padronizada, em que as ativida- ram muito bem recebidas e implementadas com

des propostas se enquadram em unidades diferentes graus de radicalidade, mas não trou-

temáticas tipificadas, com seções sistematica- xeram mudança para o modelo de aula, tornan-

mente repetidas, pautando o dia-a-dia da sala do-se uma espécie de complemento. A produ-

de aula. Ao apresentar-se como um curso pron- ção do material pelos docentes, quando possí-

to, o livro didático assume responsabilidades vel, costuma reproduzir o modelo didático e as

atribuídas aos professores, tais como o estabe- experiências diferenciadas de aula, centradas,

lecimento do programa, a organização dos con- por exemplo, na pesquisa, mantêm-se limitadas

teúdos e a elaboração dos exercícios. a lugares e modelos bem localizados.



A pergunta que faço é: por que – contra todo



o discurso que predominou no debate pedagó-


Educação e autonomia docente

gico e à revelia do processo de condenação – o


O teor das críticas ao modelo atual de livro livro didático sobrevive e tem seu uso expandi-

didático sugere equivocadamente que a solução do, contando com enorme investimento estatal?

se encontraria na redefinição do padrão de livro, A questão principal para explicar esse


incluindo a revisão dos conteúdos e do modo de


insucesso está na “autonomia docente”, enten-


sua apresentação e a seleção acurada de textos dida como possibilidade de uma ação educativa

diversificados e representativos. Essa perspecti- em que os professores e alunos envolvidos no



va é a que, mais freqüentemente, tem sido ado- processo pedagógico possam efetivamente to-

tada pelos editores, que tratam de ajustar seus


mar decisões e agir com independência.


produtos às exigências do discurso institucional, A autonomia docente não é um elemento



manifestado principalmente nos processos de abstrato nem decorre de decisão individual. Ela

avaliação estatal dos livros didáticos. é um fato político-social e supõe um conjunto


De fato, temos testemunhado nos últimos


de condições de exercício profissional, incluin-


trinta anos um processo contínuo de denúncia do a formação cultural e acadêmica, a articula-



contra o livro didático, em função de questões ção didático-pedagógica na unidade escolar, a



ideológicas ou de conteúdo (correção e proprie- carga horária de docência, a quantidade de alu-



nos em sala e o total de alunos assistidos, as aco- de educação quanto para os próprios agentes



modações físicas, o mobiliário escolar, os recur- pedagógicos.



sos de apoio (biblioteca, computador, televisão, A diferença qualitativa do ensino não esta-



vídeo, DVD, CD-ROM, retroprojetor, mapas), a rá, então, na melhor qualidade do livro didáti-


conectividade (telefone, Internet, sistema de co, mas nas condições em que se dá o proces-



tevê), o padrão salarial. so pedagógico. Crianças ou adolescentes que



O que ocorre é que faz parte do processo de tenham à disposição o mesmo livro didático


massificação do ensino a depreciação da função terão experiências escolares completamente



docente. O aumento da oferta de vagas signifi- distintas em função das condições de sua pró-



cou recrutamento mais amplo de professores, re- pria escola. Aliás, os resultados das avaliações



baixamento salarial, condições de trabalho pre- do sistema escolar sugerem exatamente essa


cárias e formação deficiente, obrigando os pro- mesma conclusão.



fessores a buscar formas de facilitação e de su- Não se deve, contudo, concluir desta expo-



porte de sua atividade docente, já que, no mais sição que as produções didáticas sejam todas do


das vezes, não existem condições objetivas de ○
mesmo nível ou que uma política de livro didá-
construção de processo pedagógico autônomo tico não seja importante. O que se postula é que

e criativo, nem ação coletiva do corpo docente. qualquer política de livro didático só terá efici-

O livro didático, muitas vezes a única fon- ência se houver uma profunda reorganização do

te de informação e atualização, impõe-se como sistema educacional, investindo-se maciçamen-


necessidade pragmática tanto para as políticas te na autonomia docente.











Concepção dos livros didáticos:




modelo atual e novas perspectivas






Luiz Roberto Dante



Universidade Estadual Paulista/SP






Há trinta anos, quando o uso do livro didá- lização, o “siga o modelo”, as centenas de exer-

tico começava a se intensificar, ele era consi- cícios similares de adestramento em que ape-

derado um dos maiores problemas da educa- nas os números eram trocados, o predomínio

ção. Responsável por simplificar o conhecimen- de alguns assuntos (números e álgebra) sobre

to, era visto por especialistas como uma espé- outros (geometria, grandezas e medida, estatís-

cie de muleta para os professores que se aco- tica, probabilidade e raciocínio combinatório)

modavam no exercício de sua profissão. Em eram motivos de severas críticas dos educado-

suas páginas eram divulgados erros conceituais res matemáticos.



graves, reforçavam-se discriminações, precon- Nas duas últimas décadas, essa visão se

ceitos e visões ideológicas comprometidas. Na modificou, sobretudo pelo fato de o livro didá-

área de História, por exemplo, recorria-se às tico ter assumido papel crucial no processo de

páginas de um livro didático toda vez que al- ensino e aprendizagem e de a própria educa-

gum historiador precisava ilustrar o “atraso” do ção formal ter-se transformado, para muitos, no

senso comum em relação aos novos estudos de


grande trampolim para as melhorias das con-


sua disciplina. Em Matemática, a mecanização, dições sociais do indivíduo e, mesmo, para o



a decoreba, os problemas-tipo sem contextua- desenvolvimento nacional.


338
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas

A crescente importância dos livros didáti- zer; isso sem contar com a diversidade de abor-



cos aconteceu ainda pelo fato de este ser, para dagens existentes em cada disciplina do currí-



muitos brasileiros, a única fonte de leitura e culo escolar.



informação sobre assuntos específicos nas áre- Independentemente da metodologia, os li-


as de Matemática, Português, História, Ciências vros didáticos ganharam também em dinamis-



e Geografia. Graças ao seu alcance (representa mo, ao incorporarem recursos diversificados. Os



70% do que se publica no país e atinge um pú- livros de História, por exemplo, abandonaram


blico de 44 milhões de pessoas), tornou-se tam- a antiga concepção de documento histórico e 339



bém o principal instrumento de consolidação passaram a utilizar, como fonte do conhecimen-



dos currículos escolares. to, textos literários, objetos do uso cotidiano,



Nesse cenário, os olhares de especialistas letras de música, imagens, etc. Os de Matemá-


acabaram por se voltar para o livro didático, tica buscam apresentar os problemas



com a preocupação de produzir um livro de contextualizados, estimulam a investigação, o



melhor qualidade. Exemplo disso é a política fazer pensar, a compreensão dos conceitos e dos



estabelecida pelo atual governo. Enquanto os procedimentos, as aplicações, o desencadear


Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) in- conceitos e procedimentos pela resolução de



centivam novas abordagens, a política de problemas, o uso da história e dos recursos

avaliação do livro didático obriga autores e edi- tecnológicos. Isso confere ao professor maiores

tores a publicarem livros sem erros conceituais, opções para o trabalho em sala de aula, e ao alu-

sem preconceitos, sem discriminações, sem no uma gama maior de conhecimento e estímu-

simplificações de conteúdo e com metodologia los para a aprendizagem.



adequada. Quanto aos recursos didáticos, estes sim


Isso está levando à profissionalização da mudaram radicalmente. As antigas atividades



produção do livro didático. Antes escrito por um padronizadas foram sendo substituídas por ati-

único autor experiente, mas nem sempre espe- vidades reflexivas, redações de textos, sugestões

cialista na área, e publicado por editoras de de pesquisas e de trabalhos em grupo. A inter-


pequeno porte, o livro didático passou a ser fei- disciplinaridade e a contextualização passaram

to por equipes de especialistas da área e a ser a pautar todos os conteúdos. Agora, torna-se

produzido por grandes empresas editoriais. indispensável aproximar o conhecimento da



As mudanças podem ser verificadas ao se realidade vivida pelos alunos e integrar as áre-

compararem os atuais livros didáticos com os as do saber, em um projeto educacional mais



de trinta anos atrás. Em época de ditadura, os amplo.



conteúdos dos livros didáticos de trinta anos De todas as mudanças verificadas nos últi-

atrás refletiam uma visão “oficial” da socieda- mos trinta anos a respeito do livro didático, esta

de. Pouco críticos, reproduziam um conheci- que se testemunha atualmente é, sem dúvida,

mento enciclopédico, que facilitava os métodos a de maior envergadura. Aliada à não menos

de memorização dos conteúdos escolares. importante mudança que se pretende atual-



Com o processo de abertura política, na dé- mente na formação do professor da Educação


cada de 1980, os livros passaram a apresentar Básica, num futuro próximo, ela pode implicar

um conteúdo mais crítico. mesmo uma mudança do paradigma de educa-



Nos anos 1990, a valorização desse material ção brasileira. O certo é que agora se pretende

didático por educadores e técnicos responsá- formar um sujeito capaz de agir com rapidez

veis pelas políticas educacionais foi crucial para num mundo em constante modificação e em

o surgimento de outras mudanças. O incentivo rápido processo de globalização, com intensa



à novas abordagens provocou a diversificação circulação de pessoas, informações e mercado-



do livro didático. Hoje, os professores têm à dis- rias.


posição coleções em que se aplicam as mais Prever quais as mudanças para os próximos

variadas metodologias, algumas com aborda- anos é sempre tarefa ingrata. Entretanto, a im-

gens mais críticas e que privilegiam o saber fa- portância que o livro didático ganhou dentro do

ensino parece ser, durante os próximos anos, exemplo, foram responsáveis por enterrar de



irreversível. Ele deve continuar a ser no Brasil vez o questionário tradicional e as atividades



um dos principais recursos didáticos para pro- padronizadas, mas ainda não conseguiram



fessores e alunos, apesar da crescente entrada impor um modelo que se possa dizer aceito


de novas opções, como a Internet, o CD-ROM e por grande parte dos educadores. A própria



os livros paradidáticos. experimentação desse material em sala de



Quanto às mudanças verificadas na natu- aula pelos professores mantém em aberto es-


reza dos livros didáticos durante os últimos ses caminhos. Mas, independentemente dos



anos, essas ainda continuam em franco de- rumos que irão ser tomados, os próximos



senvolvimento. Os modelos iniciados nos anos devem testemunhar a consolidação des-



anos 1990 ainda não se consolidaram total- se livro didático diversificado e dinâmico que


mente. Os princípios construtivistas, por os anos 1990 viram surgir.



































































SIMPÓSIO 24

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO
INCLUSIVA
Álvaro Marchesi

Carlos Roberto Jamil Cury

Soraia Napoleão Freitas

341
O necessário porém difícil avanço




em direção às escolas inclusivas





Álvaro Marchesi



Universidade Complutense de Madri/Espanha







Resumo





O objetivo de estabelecer escolas inclusivas tor- Acreditamos e proclamamos que:


nou-se uma das principais aspirações de todos os que • todas as crianças de ambos os gêneros têm



defendem a eqüidade na educação. As escolas para um direito fundamental à educação e devem


todos, sem exclusões, nas quais convivem e apren- ter a oportunidade de alcançar e manter um

dem alunos de diferentes condições sociais, culturas, nível aceitável de conhecimentos;



capacidades e interesses, desde os mais capazes até • cada criança tem características, interesses

os que apresentam alguma deficiência, é um modelo e necessidades de aprendizagem próprios;


ideal que motiva muitas pessoas comprometidas com • os sistemas educacionais devem ser conce-

a mudança educacional. bidos e os programas aplicados de modo que



Avançar no sentido de se estabelecerem esco- levem em consideração toda a gama dessas


las inclusivas não é uma tarefa simples. Precisamos diferentes características e necessidades;

estar conscientes de que existem resistências, con- • as pessoas com necessidades educacionais

tradições e dilemas importantes que dificultam ou especiais devem ter acesso a escolas regu-

mesmo impedem o desenvolvimento de políticas lares, que deverão integrá-las numa peda-

eficazes em prol da inclusão. No entanto, o fator mais gogia centrada na criança e capaz de satis-

importante para o progresso de uma educação para fazer suas necessidades;



todos, sem exclusões, é adotar uma atitude positiva • as escolas regulares que baseiam sua didática

em relação a esse tipo de ensino, que se fundamen- nessa orientação integradora representam o

ta na justiça, na igualdade e na solidariedade. meio mais eficaz para se combater atitudes



Essa proposta foi explicitamente discriminatórias, criar comunidades receptivas,



delineada na Declaração Final da Conferência construir uma sociedade integradora e garantir


Mundial sobre Necessidades Educacionais Es- uma educação para todos; além disso, elas ofe-

peciais realizada em Salamanca, Espanha, no recem uma educação eficaz à maioria das cri-

período de 7 a 10 de junho de 1994 (Unesco e


anças, promovem a eficiência da educação e, em


Ministério da Educação e Ciência, 1995). Essa última análise, melhoram a relação custo-bene-

conferência contou com a participação de re- fício de todo o sistema educacional.


presentantes de 88 países e de 25 organizações



internacionais atuantes na área da educação. Nestas páginas, abordaremos os principais dile-



Um de seus compromissos foi formulado nos mas e contradições enfrentados pelas escolas inclusi-

seguintes termos: vas e as condições que possibilitam sua consolidação.










Reforma da educação especial geral, as reuniões científicas, as conferências in-



ternacionais e os comentários sobre o significa-


ou reforma da educação

do e o alcance da inclusão envolvem profissio-



O conceito das necessidades educacionais es- nais da educação especial. No entanto, como

peciais, da integração e da inclusão tem sua ori- também se defende em reuniões desse tipo, o

avanço no sentido de se estabelecerem escolas


gem no campo da educação especial. De modo


342
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas

inclusivas deve ocorrer a partir de uma reforma Escolas inclusivas e qualidade



educacional global e envolver não apenas os res-


ou o dilema de que apenas


ponsáveis pela educação especial, mas principal-


algumas ou todas as escolas


mente os responsáveis pela educação básica.


A reforma da educação especial, que inicial-


sejam inclusivas


mente apontava para a transformação das escolas



no sentido de integrar alunos com necessidades O objetivo desejável não se restringe a ga-


educacionais especiais, envolve um objetivo mais rantir a disponibilidade de um número cres- 343



radical. Sua meta é estabelecer escolas capazes de cente de escolas inclusivas. Essas escolas de-



educar todos os alunos com base em critérios de vem também ter uma qualidade reconhecida,



qualidade. Seriam escolas dispostas a incorporar o que pressupõe, em grande medida, que elas


todos os alunos, a despeito de sua cultura, origem sejam atraentes para a maioria dos pais. No



social e familiar ou capacidade, para participar, entanto, precisamos reconhecer o risco de que



conjuntamente, do processo de aprendizagem. as escolas inclusivas concentrem um número



Os esforços para estabelecer uma educação excessivo de problemas, porque, além de


inclusiva não advêm exclusivamente do campo da escolarizar alunos com necessidades educa-



educação especial. Os modelos de educação cionais especiais associadas a algum tipo de

multicultural ou os movimentos progressistas que deficiência, elas precisam integrar um per-



acreditam na capacidade da escola de reduzir de- centual importante de alunos com dificulda-

sigualdades sociais também desenvolveram mo- des de aprendizagem, relacionadas, principal-



dalidades inclusivas de educação. Em todas essas mente, a suas condições sociais ou culturais.

propostas, observa-se um claro reconhecimento da Quando os problemas superam as possibilida-


diversidade de culturas, de grupos sociais e de alu- des de uma escola, os pais dificilmente dese-

nos que convivem nas escolas. A resposta educa- jam escolarizar seus filhos nela.

cional a essa diversidade talvez constitua o mais A solução seria fazer com que todas as esco-

importante e difícil desafio atualmente enfrenta- las públicas e mantidas com recursos públicos

do por centros docentes. Essa situação impõe a fossem inclusivas e oferecessem condições se-

necessidade de se promoverem mudanças profun- melhantes. Assim, os problemas seriam distri-



das para que todos os alunos, sem qualquer tipo buídos equilibradamente e não condicionariam

de discriminação, desenvolvam ao máximo suas a decisão dos pais.


capacidades pessoais, sociais e intelectuais. Uma das estratégias que ajudam a promo-

Precisamos considerar que os principais ver uma maior valorização social das escolas

problemas enfrentados por muitas escolas, inclusivas é canalizar mais recursos para elas e

principalmente as de Ensino Médio, não estão dar-lhes preferência em todas as iniciativas ino-

relacionados à aprendizagem dos alunos que vadoras: computadores, programas de forma-



apresentam alguma deficiência e, sim, às difi- ção, incorporação de uma maior oferta de lín-

culdades apresentadas por alunos com atrasos guas estrangeiras etc. Assim, a demanda dos

acumulados, desmotivados ou não-adaptados. pais por essas escolas seria estimulada.


Esse fato reforça o argumento de que as mudan-



ças necessárias para estabelecer escolas de qua-



lidade para todos os alunos devem ser impulsi- Diagnóstico dos problemas

onadas pelos principais responsáveis pelo sis-


dos alunos

tema educacional e afetar o currículo, os crité-



rios de avaliação, a formação dos professores, a A avaliação dos problemas de desenvolvi-



organização dos centros e os recursos disponí- mento ou de aprendizagem dos alunos envolve

veis. Quando a educação na diversidade torna- uma das controvérsias mais importantes no

se o eixo da reforma educacional de um país, a


campo da educação e, mais especificamente, no


possibilidade de fortalecer as escolas inclusivas campo da educação especial: a opção por situar

torna-se muito mais factível. os alunos em uma determinada categoria de di-



agnóstico com base em diagnósticos médicos ditiva profunda vive exclusivamente imersa na



ou a rejeição dessa alternativa em decorrência comunidade dos que ouvem sem problemas.



do risco de classificar alunos. No segundo caso, O dilema do diagnóstico deve ser resolvido in-



enfatiza-se, principalmente, a detecção das ne- sistindo-se em que seu objetivo principal é ori-


cessidades educacionais do aluno e a resposta entar a resposta educacional mais adequada para



educacional mais adequada. cada aluno. Para se lograr esse objetivo, no en-



Na discussão desse dilema inicial, precisa- tanto, precisamos colher o maior número possí-


mos reconhecer que a informação biomédica vel de informações relevantes, que devem incluir



nos permite conhecer o desenvolvimento de todas as dimensões significativas do aluno: a ori-



um aluno em bases mais abrangentes. Além dis- gem dos problemas de aprendizagem, suas carac-



so, os avanços registrados na determinação do terísticas, os estilos de aprendizagem do aluno, a


genoma humano e as insuspeitas possibilida- incidência do contexto social e cultural, o papel



des que se abrem no campo da intervenção ge- da família e a influência da escolarização. O



nética nos obrigam a levar essa informação em enfoque mais correto é o contextual e interativo,


consideração. No entanto, existe também o ris- ○
no qual nenhuma dimensão pode ser contempla-
co, como assinalado acima, de que os avanços da isoladamente das demais. No entanto, preci-

genéticos levem a uma proliferação desneces- samos reconhecer também que, em alguns casos

sária e prejudicial de categorias diagnósticas, específicos, as informações sobre as característi-



gerando programas separados, aulas especiais cas psicológicas associadas a determinadas


e professores especializados para cada síndromes são extremamente úteis para a inter-

síndrome identificada. Precisamos evitar uma venção educacional.



nova “balcanização” da educação especial


(Forness e Kavale, 1994) e a perda da necessá- Currículo comum



ria transformação do ensino para educar todos


ou currículo diversificado

os alunos. Porém, a ênfase na etiologia reforça



a perspectiva de que a educação especial se re- A integração baseia-se na adoção de um


duz a um grupo específico e muito limitado de currículo comum para todos os alunos. Os alu-

alunos. Finalmente, não devemos nos esquecer nos com problemas graves de aprendizagem são

de que muitos problemas que podem ser abor- incorporados à escola regular para terem, com

dados a partir de uma perspectiva biomédica seus colegas, experiências semelhantes de


podem também ser equacionados de uma ma- aprendizagem. A ênfase nos aspectos comuns

neira mais completa a partir de um enfoque da aprendizagem constitui o aspecto mais



sociocultural. A situação dos portadores de de- enriquecedor e positivo das escolas inclusivas.

ficiências auditivas profundas é um caso Os alunos, no entanto, têm ritmos diferen-


paradigmático. Embora esses alunos efetiva- tes de aprendizagem e modos pessoais de enca-

mente apresentem graves problemas auditivos, rar o processo educacional. A atenção às diferen-

que condicionam o desenvolvimento de sua ca- ças individuais constitui, também, um compo-

nente de todas as estratégias de aprendizagem


pacidade de comunicação e até mesmo seu de-


senvolvimento cognitivo, precisamos levar em baseadas no respeito à individualidade de cada



consideração que os portadores de deficiências aluno. Em alguns casos, o currículo comum pre-

auditivas têm uma linguagem própria, a dos si- cisa ser significativamente modificado para se

proporcionar um ensino adequado a alunos com


nais, e que eles vivem numa cultura própria na


qual estabelecem sólidos laços sociais, afetivos necessidades educacionais especiais.



e de comunicação. A incorporação da lingua- Essas duas demandas podem, às vezes, não



gem dos sinais e da cultura dos portadores de ser nada compatíveis, já que a primeira reforça

a dimensão da igualdade e a segunda a dimen-


deficiências auditivas em seu desenvolvimen-


to e educação modifica drasticamente os pro- são da diferença. Um comentário apresentado



blemas que normalmente são enfrentados num bom livro sobre o tema das escolas inclu-

quando a criança portadora de deficiência au- sivas sintetiza com clareza esse dilema:

344
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas

É fácil ver como se pode acomodar o que é comum de propor adaptações curriculares específicas di-



– mediante a formulação de um currículo comum, ante de suas limitações, devem abrir caminho



a criação de escolas completamente inclusivas e a para propostas mais amplas e globais de trans-


disponibilização de experiências idênticas de


formação da escola, para se lograr uma maior


aprendizagem para todas as crianças. É fácil, tam- igualdade. O objetivo principal não é fazer com



bém, ver que os caminhos mais óbvios para lidar
que alunos diferentes tenham acesso ao currí-


com a diferença baseiam-se em estratégias opos-


culo estabelecido para a maioria dos alunos, mas


tas: a formulação de currículos alternativos, a cri- 345
reformular o currículo visando a garantir uma


ação de tipos diferentes de escolas para diferen-


maior igualdade entre todos eles e respeito por


tes alunos e a disponibilização de diferentes ex-


suas características próprias. A maior importân-


periências de aprendizagem para grupos ou indi-


víduos diferentes. No entanto, como se pode har- cia que se atribui às mudanças gerais da escola


estende-se à necessidade de se coordenarem


monizar precisamente esses enfoques tão diferen-


programas sociais e econômicos que reduzam as


tes de modo que os currículos sejam comuns e


múltiplos, as escolas sejam inclusivas e seletivas e desigualdades iniciais e ao reconhecimento da



as aulas proporcionem experiências de aprendi- participação dos pais no processo educacional


zagem que sejam iguais para todos e, ao mesmo de seus filhos.



tempo, diferentes para cada um? (Clark, Dyson, Seis fatores são particularmente importantes:

Millward e Skidmore, 1997: 171). a modificação dos valores culturais da sociedade;



a transformação do currículo; a importância da


Esse dilema não pode ser facilmente resol- cultura e da organização das escolas; a colabora-

vido e também não nos podemos aprofundar ção de novos setores sociais; o desenvolvimento

nas alternativas que podem ser sugeridas para profissional dos professores; e a revisão da ins-

os distintos elementos que constituem um cur- trução na sala de aula.



rículo: objetivos gerais, áreas curriculares, con-



teúdos, critérios de avaliação e metodologia. No


A modificação dos valores

entanto, podemos destacar três estratégias que


da sociedade

podem nos ajudar a encontrar um equilíbrio



entre o comum e o diversificado. Os valores e as atitudes dos cidadãos consti-



• As adaptações dos conteúdos se concreti- tuem um fator importante que condiciona as


zam no fato de os principais conhecimen-


possibilidades de mudança. A prioridade da


tos serem apresentados com um nível dife- competência em relação à solidariedade, a mai-

rente de profundidade. or importância atribuída às realizações acadê-



• O trabalho cooperativo entre os alunos e a micas do que ao desenvolvimento social e da


possibilidade de os alunos mais capazes se-


personalidade e o conceito de que a presença de


rem tutores dos demais são métodos de en- alunos com maiores dificuldades prejudica o

sino habituais. progresso dos mais capazes são crenças, muitas



• Os professores de apoio trabalham conjun- vezes implícitas, que afetam o alcance e a pro-

fundidade das reformas educacionais. Os valo-


tamente com o professor regular na aten-


ção a todos os alunos. res cívicos majoritários podem contribuir pode-



rosamente no sentido de que a integração esco-



lar seja posteriormente estendida à integração


As condições das escolas

social e do mercado de trabalho.



inclusivas

A transformação do currículo

Os estudos sobre as mudanças educacionais



necessárias para se estabelecerem escolas inclu- Para favorecer a educação comum de todos

sivas coincidem em uma proposta: as iniciativas os alunos, é necessário que um currículo comum

mais individuais, orientadas no sentido de com- para todos eles seja adotado e que posteriormen-

pensar desigualdades iniciais entre os alunos ou te seja ajustado ao contexto social e cultural de


cada instituição educacional e às diferentes ne- mudança que potencializa a cooperação entre os



cessidades de seus alunos. Uma vez estabeleci- professores e que defende a flexibilidade organi-



do esse currículo comum, cabe à comunidade zacional e a identificação conjunta de soluções para



educacional e a sua equipe de professores refle- os problemas colocados pelos alunos. Essa flexibili-


tir novamente sobre o currículo, visando adaptá- dade organizacional possibilita a incorporação de



lo à população específica de estudantes que está novos colaboradores à tarefa educacional, amplian-



sendo escolarizada em cada instituição. do, assim, as possibilidades dos alunos.


Um currículo aberto à diversidade dos alunos



não é apenas um currículo que oferece a cada alu- A incorporação de novos colaboradores



no o que ele precisa de acordo com suas possibi-


As escolas, que estão enfrentando desafios ex-


lidades. É um currículo proposto para todos os


traordinários, como o de integrar alunos com ne-
alunos no sentido de que todos aprendam quem


cessidades educacionais associadas a deficiên-


são os outros, e deve incluir, em seu conjunto e


cias, não poderão alcançar os objetivos aqui pro-

em cada um de seus elementos, a sensibilidade


postos por conta própria, senão em casos excep-
necessária às diferenças existentes na escola. A ○

cionais. Mesmo que os recursos a elas disponibi-


educação para a diversidade deve estar presente

lizados sejam adequados, as dificuldades com que


em todo o currículo e em todo o ambiente esco-


se deparam são extremamente importantes. Uma


lar. A diversidade dos alunos é uma fonte de enri-


educação de qualidade para todos exige a parti-


quecimento mútuo e de intercâmbio de experi-


cipação, na escola, de associações e pessoas dis-


ências que lhes permite conhecer outras manei-

postas a colaborar no sentido de estabelecer re-


ras de ser e viver e desenvolver atitudes de res-


lações com instituições externas à escola. A par-


peito e tolerância, além de uma ampla compre-


ticipação de pais, ex-alunos, voluntários, organi-


ensão da relatividade de seus valores e costumes.

zações não-governamentais e outros grupos sem


As pessoas desenvolvem melhor seus conheci-


fins lucrativos pode ampliar a oferta educacional


mentos e sua identidade em contato com outros


para todos os alunos e enriquecer as experiências


grupos que têm concepções e valores diferentes.


dos que têm problemas mais acentuados de


aprendizagem. Além disso, acordos ou convênios


A modificação da cultura e da

com governos municipais, centros de lazer, em-


organização da escola

presas, oficinas etc. podem lhes oferecer novas



A cultura da instituição educacional consti- possibilidades de aprendizagem.



tui a base principal sobre a qual se apoiará o de-


senvolvimento do currículo. Os valores, as nor-


O desenvolvimento profissional

mas, os modelos de aprendizagem, as atitudes dos


dos docentes

professores, as relações interpessoais existentes,



as expectativas mútuas, a participação de pais e A formação dos professores é imprescindível


alunos e a comunicação desenvolvida na institui- para se fazer frente adequadamente às deman-



ção, entre todos os membros da comunidade edu- das educacionais dos alunos. Precisamos reforçar

cacional, são os elementos que determinam o tipo essa posição e indicar claramente que não se pode

de projeto que a instituição irá elaborar e a orien- avançar no sentido de estabelecer escolas inclu-

tação que será seguida na aplicação do currículo. sivas se todos os professores, e não apenas aque-

A reforma da educação e o avanço no sentido les especializados na educação especial, não al-

de se estabelecerem escolas mais inclusivas pres- cançarem um nível suficiente de competência



supõem, ao mesmo tempo, uma transformação da para ensinar a todos os alunos. Além disso, a for-

cultura das escolas, uma mudança no sentido de mação tem estreita relação com a atitude assu-

uma cultura educacional que valoriza a igualdade mida em relação à diversidade dos alunos. Sen-

entre todos os alunos, o respeito pelas diferenças, a tindo-se pouco competente para facilitar a apren-

participação dos pais e a incorporação ativa dos alu- dizagem dos alunos com necessidades educacio-

nos ao processo de aprendizagem. Trata-se de uma nais especiais, o professor tenderá a desenvolver

346
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas

expectativas mais negativas, que se traduzirão em


• A consideração de que seu desenvolvimen-


uma menor interação e menos atenção para com to pessoal e social é tão importante quanto



eles. O aluno, por sua vez, tenderá a enfrentar mais seu desenvolvimento cognitivo.



dificuldades para levar a cabo as tarefas propos- • A concepção de situações de aprendizagem


tas, reforçando as expectativas negativas do pro-


significativas, que o aluno possa posterior-


fessor. Essas considerações nos levam a afirmar mente aplicar em outros contextos.



que a forma mais segura de se melhorarem as ati- • A utilização de materiais audiovisuais e de


tudes e expectativas dos professores é desenvol- 347


informática, no sentido de ampliar o nível


vendo seu conhecimento da diversidade dos alu-


de informação dos alunos e contribuir para


nos e sua capacidade de proporcionar-lhes um despertar seu interesse.



ensino adequado.
• O planejamento do ensino de modo que a


Essa proposta, no entanto, deve considerar


aprendizagem ocorra por meio da colabo-


todo o conjunto de condições que influenciam o


ração entre os colegas.


trabalho do professor. Sua remuneração econô-


• Coordenação dos objetivos didáticos, dos


mica, suas condições de trabalho, sua valoriza-
métodos pedagógicos e dos critérios de ava-


ção social e suas expectativas profissionais cons-


liação com a participação de todos os pro-

tituem, juntamente com a formação permanen-


fessores.
te, fatores que facilitam ou dificultam sua moti-

Algumas das condições indicadas nestas


vação e dedicação.

páginas dependem mais diretamente das au-


toridades educacionais; outras, da direção das


A revisão da instrução na sala de aula


escolas e dos professores, mas todas estão es-



As mudanças sociais e culturais, a flexibili- treitamente relacionadas. Quando a política


dade organizacional, a possibilidade de adap-


educacional favorece mais firmemente as es-


tar o currículo e a preparação dos professores colas inclusivas, a probabilidade de que o nú-

devem, em última análise, contribuir no senti- mero de escolas comprometidas com a inclu-

do de que todos os alunos participem do pro- são aumente e se consolide é maior. Em situa-

cesso de aprendizagem junto com seus colegas


ções menos favoráveis, as escolas e os profes-


da mesma faixa etária. O trabalho do professor sores também têm uma margem de ação, em-

na sala de aula torna-se, assim, um fator fun- bora mais reduzida, que pode influenciar as au-

damental. Isso ocorre não apenas em decorrên- toridades educacionais. O esforço conjunto de

cia de sua possibilidade de desenvolver um cur-


todos constituirá, sem dúvida alguma, a melhor


rículo acessível a todos os alunos, mas também garantia para criar condições favoráveis para

porque sua experiência posteriormente influ- uma educação para todos os alunos.

enciará as atitudes de outros professores, a ela-


boração de projetos da escola e a avaliação dos


Bibliografia

pais da experiência concreta de uma sala de



aula integradora. CLARK, C.; DYSON, A.; MILLWARD, A. J.; SKIDMORE, D.


New directions in special needs: innovation in


Para lograr esse objetivo, os professores de-


mainstream schools. London: Cassel, 1997.


vem manter uma atitude de revisão permanen-

FORNESS, S. R.; KAVALE, K. A. The balkanization of special


te de sua prática docente com base nas seguin-


education. Proliferation of categories for ‘new’ behavioral


tes orientações: disorders. Education and Treatment of Children, n. 17,



• Avaliação das necessidades educacionais p. 215-27, 1994.


dos alunos.











Educação inclusiva






Carlos Roberto Jamil Cury



PUC/MG – CNE





Eugênia desataviou-se nesse dia por minha cau- instinto, de modo que a necessidade consiste nes-



sa... Nem as bichas de ouro, que trazia na véspera, te caso em não poder fazer ou suportar de outra


lhe pendiam agora das orelhas, duas orelhas


forma” (Aristóteles, Metafísica, V, 5, 1014 b 35).


finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um
De um lado, é preciso fazer a defesa da igual-


simples vestido branco, de cassa, sem enfeites, ten-


dade como princípio de cidadania. Mas isso não


do ao colo, em vez de broche, um botão de


é fácil, já que a heterogeneidade é visível, é sensí-


madrepérola... Era isso no corpo; não era outra cousa


vel e imediatamente perceptível.
no espírito. Idéias claras, maneiras chãs, certa graça

O pensamento “único” ou empirista não apre-

natural... Saímos à varanda, dali à chácara, e foi en- ○

cia a abstração, preferindo o manifesto, o visível, o


tão que notei uma circunstância. Eugênia coxeava


um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar- palpável. O empírico é necessário e é até “porta”

lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha res- de entrada para uma realidade mais ampla. Essa

pondeu sem titubear: realidade mais ampla para o gênero humano é o



— Não, senhor, sou coxa de nascença. reconhecimento da igualdade básica de todos os



Mandei-me a todos os diabos; chamei desastra- seres humanos, fundamento da dignidade da pes-

do, grosseirão. Com efeito, a simples possibilidade


soa humana. É dessa fonte, sem cujo reconheci-


de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. mento e respeito se dão as entradas para todas as

Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas formas de racismo e correlatos, que se nutrem os

direito, perfeitamente são... O pior é que era coxa.


artigos 1º e 5º da Constituição Federal Brasileira,


Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma


além do seu artigo 205, referente à educação. E a

compostura tão senhoril; e coxa. Esse contraste fa-


igualdade não se obtém a não ser por meio de exer-


ria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso


cício teórico, abstrativo e que dê acesso ao caráter


escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se


bonita?... (Machado de Assis, 1992: 553-54)


universal e igualitário de todos e de cada um.

Contudo, a negação ou o esquecimento de



categorias gerais, universais, erroneamente con-


Além de processos de conversão em direito posi-


tivo, de generalização e de internacionalização [...] sideradas totalitárias, acabam por colocar, em



manifestou-se nestes últimos anos uma nova linha seu lugar, o micro, a subjetividade, o privado.

Estes últimos, por sua vez, desconectados daque-


de tendência, que se pode chamar de especificação;


ela consiste na passagem gradual, porém cada vez la fonte igualitária, introduzem sérios problemas

mais acentuada, para ulterior determinação dos su- para a conceituação e mesmo para as políticas

jeitos titulares de direito. [...] Essa especificação ocor-


públicas. Não há universal sem abstração.


reu com relação ao gênero, seja às várias fases da As causas diferencialistas causam problemas

vida, seja à diferença entre estado normal e estados sérios quando elas não evidenciam como sua base

excepcionais na existência humana. [...] Com rela-


o direito à igualdade. A defesa das diferenças, hoje


ção aos estados normais e excepcionais, fez-se valer


tornada atual, não subsiste se levada adiante em


a exigência de reconhecer direitos especiais aos do-


prejuízo ou sob a negação da igualdade.

entes, aos deficientes, aos doentes mentais etc.


Riscos sérios de:


(Bobbio, 1992: 62-63)


• identificar desigualdade e diferença;


Todos somos portadores de necessidades:


• descolar a eqüidade da igualdade;


manifestas ou não, especiais ou não.


• propiciar a emersão de um fundamentalismo


Aristóteles conceitua a noção de necessida-


de: “Aquilo a que estamos forçados se diz que é diferencialista;



necessário quando uma força qualquer nos obri- • cultura do fragmento e essencialização da di-

ga a fazer ou a sofrer alguma coisa que é contra o ferença: classificação infinda...;


348
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas

• defesa da diferença pela diferença e não pela o “repúdio ao terrorismo e ao racismo”.



igualdade; O artigo 5º é uma longa e saudável lista de



• no vazio do Estado do Bem-Estar Social, no incisos na defesa dos direitos e deveres indivi-



vácuo do genérico, na crise da esquerda, na duais e coletivos. Para as finalidades deste texto,


não-realização do projeto socialista de uma cumpre destacar entre os 77 incisos que o com-



maior igualdade material duradoura, além da põem os seguintes:



igualdade formal e jurídica: abre-se mão da


igualdade em favor da diferença. 349


Todos são iguais perante a lei, sem distinção de


Os portadores de necessidade especial carre- qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros



gam consigo alguma limitação, no plano físico ou e aos estrangeiros residentes no País a


inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à


psíquico, temporária ou permanente, parcial ou


igualdade, à segurança e à propriedade [...].


total, que pode afetar o modo de aprendizagem e


I – homens e mulheres são iguais em direitos e
que, por meio de processo pedagógico, pode ser


obrigações, nos termos desta Constituição;


reduzido ou eliminado.


[...]


A educação inclusiva responde por uma mo-


III – ninguém será submetido a tortura nem a


dalidade de escolarização em que os estudantes tratamento desumano ou degradante;

e os professores freqüentam os mesmos estabe- ○

[...]
lecimentos sem nenhuma discriminação de sexo, XLI – a lei punirá qualquer discriminação

raça, etnia, religião e capacidade. atentória dos direitos e liberdades fundamentais;



Trata-se de uma integração adaptada às ne- XLII – a prática do racismo constitui crime

cessidades específicas do aluno, que lhe permita inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de

participar das atividades da maioria dos alunos reclusão, nos termos da lei [...]3

de sua idade.

A Constituição formaliza em si, como Lei De acordo com esse artigo, as normas nele

Maior, algo que os sujeitos sociais já defendiam definidas têm aplicação imediata.4 Esses direitos,

e em certo sentido haviam conquistado na prá- segundo o artigo 60 da Constituição, não podem

ser objeto de emenda constitucional e a própria


tica. Dessa maneira, a Constituição Federal de


1988 vai incorporar em seu Preâmbulo, entre Constituição prevê entre as funções do Ministé-

outros princípios, o de assegurar no Brasil uma rio Público a defesa da ordem jurídica, do regime

“sociedade fraterna e pluralista”.1 democrático e dos interesses sociais e individu-


ais indisponíveis (artigo 127).


O artigo 1º da Constituição assinala como um


dos fundamentos do “Estado Democrático de Di- O artigo 34 possibilita a intervenção da União



reito” a “dignidade da pessoa humana” e o nos estados e municípios que não assegurarem a

“pluralismo político”. O artigo 3º afirma ser “obje- observância dos “direitos da pessoa humana”. De

mais a mais, eles não excluem outros direitos e


tivo fundamental” da República “promover o bem


de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, garantias fundamentais assinados pelo Brasil em

cor, idade e quaisquer outras formas de discri- tratados internacionais.



minação”.2 O artigo 4º estabelece como princípio Ao lado da defesa contra os atentados à digni-





1
O princípio da fraternidade simboliza a igualdade universal dos “irmãos” (frater) e o do pluralismo (plus = mais que um) já sinaliza a diferença.

Pode-se ler aqui uma relação dialética entre “o todo e as partes” no interior de uma sociedade democrática.

2
Ver a esse respeito o Programa Nacional dos Direitos Humanos no Decreto nº 1.904, de 1996.

3
As Leis nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, e nº 9.459, de 13 de maio de 1997, regulam os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de

cor. Já a Lei nº 8.081, de 21 de setembro de 1990, estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceitos

de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza. O

Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991, reforça a condenação à tortura e o Decreto Legislativo nº 26, de 22 de junho de 1994, visa à

eliminação de todas as formas de discriminação das mulheres.



4
Pelo inciso LXXI, concede-se o mandato de injunção quando a efetivação de um desses direitos se torne inviável por falta de norma regula-

dora. Isso coloca na mão dos sujeitos um instrumento jurídico importante na defesa de seus direitos individuais e coletivos.

dade da pessoa humana, há outros direitos especi-


socialista por excelência aquela que, liberando,


ficados no capítulo dos “Direitos sociais” e listados iguala e iguala quando elimina uma discriminação;



no artigo 7º. O inciso XX desse artigo reconhece di- uma liberdade que não somente é compatível com



reitos específicos das mulheres no mercado de tra- a igualdade, mas que é condição dela” (1987: 23).


balho, o inciso XXX proíbe diferença de salários por Todas as formas impeditivas da igualdade, to-



“motivos de sexo, idade, cor ou estado civil” e o madas pelo ângulo da uniformidade, ignoram o



inciso XXXI proíbe a discriminação de salário e de valor das diferenças ou as condenam aos estreitos


critérios de admissão para alguém que seja “porta-


espaços do privado, terminam em regimes auto-


dor de deficiência”. Este último inciso reserva ritários, ditatoriais ou mesmo totalitários. Porém



“percentual dos cargos e dos empregos públicos” a excessiva consideração das diferenças pode re-



para portadores de deficiência. O trabalho de me- dundar no oposto de sua valorização, isto é, como


nores é proibido antes dos 16 anos, a fim de que o não-enriquecimento do ser social do homem.



possam cumprir a escolaridade obrigatória.5 Algo que se pode verificar em sociedades toma-



A Lei nº 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases das por fundamentalismos ou crispações identitá-


da Educação Nacional, também reafirma o prin- ○
rias de qualquer espécie nas quais, como diz
cípio do direito à diferença complementar e recí- Rouanet (1994), domina a ontologização da dife-

proco ao conjunto dos direitos comuns inerentes rença. É o mesmo autor que defende o que cha-

à igualdade. Assim, seu artigo 3º reafirma vários ma “universalismo concreto”: “A utopia iluminista

princípios constitucionais, entre os quais o é a de uma ética fundada na razão, voltada para a

pluralismo. A lei introduz a referência à “tolerân- felicidade, capaz de julgar e criticar o existente, e

cia” como princípio da educação, tanto quanto “a tendo como telos uma comunidade argumen-

gestão democrática” como princípio inerente ao tativa sem fronteiras, em que a igualdade não sig-

ensino público. O artigo 4º reconhece a necessi-


nifique nivelamento e em que a universalidade


dade de atendimento diferenciado “aos edu- não leve à dissolução do particular” (1994: 162).

candos com necessidades especiais” e adequação A democracia supõe tanto a igualdade para o

às condições peculiares de jovens e adultos que que é igual ou que deve ser igual, quanto a con-

queiram se escolarizar. Tal especificidade é repos-


sideração positiva da diferença como reveladora


ta nos artigos 37 e 38. da profunda riqueza de que se revestem todos



Essa tomada axiológica se justifica porque por os seres humanos, desde que tal diferença se ex-

meio dela se reconhecem a complexidade do real presse na matriz igualitária do ser humano.6 Re-

e seu caráter matizado. A identificação histórica de


tomando Aristóteles, pode-se dizer que o ente é


várias culturas presentes no país não significa um a síntese aberta entre o ser e o modo de ser. É

amálgama entre elas ou o esquecimento no modo este o entendimento que se pode ter do texto

como elas se encontraram em distintas circunstân- constitucional e da lei de educação.


cias históricas ou mesmo tomar partido de uma



delas em detrimento de outras. Daí a condenação



ao racismo e ao preconceito existentes no Brasil.


Bibliografia

A relação entre condenação a práticas discri-


minatórias e a afirmação de direitos foi posta em ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.

evidência por Bobbio (1987). Para ele, a valorização Rio de Janeiro: Aguillar, 1992. Obra Completa, v. I.

BOBBIO, Norberto. Reformismo, socialismo e igualdade. No-


afirmativa da pluralidade ganha substância cada vez


vos Estudos, n. 19, São Paulo: Cebrap, dez. 1987.


que ela serve para pôr abaixo uma discriminação . A era dos direitos. 1992.

baseada em qualquer modalidade de preconceito.


ROUANET, Sérgio Paulo. Dilemas da moral iluminista. In:


É nesse sentido que ele aponta para uma dialética NOVAES, Adauto. (Org.). Ética. São Paulo: Cia. das Le-

entre liberdade e igualdade: “Considero liberdade tras, 1994.






5
O artigo abre exceção para aprendizes que tenham completado 14 anos.

6
O racismo e todos os seus correlatos nascem do não-reconhecimento da igualdade e da dignidade de todas as pessoas humanas.

350
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas

A formação de professores




para a Educação Especial na




Universidade Federal de




Santa Maria/RS, na perspectiva




da educação inclusiva 351





Soraia Napoleão Freitas



Universidade Federal de Santa Maria/RS





A Universidade Federal de Santa Maria Maria, em março de 1962. Esse curso, sem dúvi-



(UFSM) vem formando recursos humanos para a da, criou uma nova perspectiva para a Educação



Educação Especial desde 1962, na gestão de seu Especial, na medida em que a Universidade, pela


fundador, o professor José Mariano da Rocha Fi- seqüência de cursos que continuou a oferecer,


lho. A origem da Educação Especial foi no Insti- ○

constitui uma referência para a cidade, para o es-
tuto da Fala, que tinha como diretor o professor tado e mesmo para o país.

Reinaldo Cóser. No Instituto da Fala desenvolvi- Em 1974 foi criada a habilitação em Deficien-

am-se atividades de ensino, pesquisa e extensão tes da Audiocomunicação no curso de Pedagogia.



nas áreas da audição, fala e linguagem. Em 1976, após aprovação do Conselho de Ensino,

Sensível à necessidade de atendimento edu- Pesquisa e Extensão da UFSM, foi implantada, no



cacional a um considerável número de crianças curso de Pedagogia, a habilitação específica para


com surdez, sem possibilidade de recuperação clí- a Formação de Professores de Excepcionais Defi-

nica, o professor e médico otorrinolaringologista cientes Mentais. No ano de 1977, o curso de For-

Reinaldo Fernando Cóser percebeu que a perspec- mação de Professores para Deficientes Mentais

tiva de integrar a criança deficiente auditiva na es- passou a constituir um curso em separado, como

cola exigia a habilitação de professores. Iniciou Licenciatura Curta. Nos anos seguintes, o curso

então, com muito rigor e persistência, a formação de Educação Especial passou por nova reestrutu-

de professores para a Educação Especial. ração, para transformar-se em Licenciatura Ple-



O primeiro episódio dessa história de quaren- na, sendo reconhecido como tal pelo Parecer do

ta anos foi possibilitar a duas pessoas a realiza- Conselho Federal de Educação (CFE) nº 1.308/80,

ção de um curso no Instituto de Educação de Sur- e homologado esse reconhecimento pela Porta-

dos (INES), no Rio de Janeiro, a única instituição ria do MEC nº 141/81.



que oferecia oportunidade de formação na área. Em 1982, o Centro de Educação encaminhou


O curso durou três anos e uma das professoras ao CFE proposta de reestruturação dos cursos de

não retornou para Santa Maria, fixando-se no Rio Pedagogia e de Formação de Professores em Edu-

de Janeiro. Esse processo de formação de recur- cação Especial: propunha-se um curso que reunis-

sos humanos era dispendioso e demorado e ha- se a habilitação em Deficientes da Audioco-


via necessidade urgente de integrar a criança sur- municação, do curso de Pedagogia, e o curso de

da na escola regular. Em decorrência do elevado Formação de Professores em Deficientes Mentais.



custo, a alternativa encontrada para formar pro- Houve aprovação de tal solicitação pelo Parecer do

fessores foi a criação de cursos de extensão uni- CFE nº 65/82. A partir do ano de 1984, o ingresso

versitária. Um acordo com o Departamento de dos alunos passou a ser no curso de Educação Es-

Educação Especial da Secretaria Estadual de Edu- pecial – Licenciatura Plena, nas habilitações Defi-

cação possibilitou que o primeiro curso para a cientes Mentais (DM) ou Deficientes da Audioco-

formação de professores de deficientes auditivos municação (DA), sendo oferecidas 40 vagas no con-

fosse realizado na Universidade Federal de Santa curso vestibular, assim distribuídas: 20 vagas para


a habilitação em Audiocomunicação e 20 vagas ciedade. O curso oferece dez vagas, das quais seis para



para a habilitação em Deficientes Mentais. Deficientes Mentais e quatro para Deficientes da



O curso de Educação Especial, com as duas Audiocomunicação, com ingresso anual. Ainda em



habilitações – DA e DM –, tem para cada habili- nível de pós-graduação, o Programa de Pós-Gradua-


tação os seguintes objetivos específicos: ção em Educação (PPGE) oferece curso de Mestrado,



• Formar profissional, no plano biopsicossocial, nas linhas de pesquisa de Formação de Professores e



capaz de atuar na Educação Especial de defi- Práticas Educativas nas Instituições, um núcleo


cientes da audiocomunicação ou de deficien- temático denominado Educação de Pessoas em Cir-



tes mentais. cunstâncias Especiais, cujos estudos são orientados



• Desenvolver atividades cognitivas, psicomotoras para a produção e a aplicação de conhecimentos que



e afetivas para o desempenho das atividades pro- provocam a inserção social de pessoas impossibili-


tadas da realização de interações comuns para a cons-


fissionais inerentes ao seu campo de atuação,


segundo diretrizes do sistema de ensino. trução de conhecimentos.



As décadas de 1970 a 1990, no Brasil, foram o
• Aplicar metodologia científica na realização

das atividades de planejar, executar e ava-



período em que a Universidade Federal de Santa
Maria se estruturou e elaborou os cursos de For-

liar o processo ensino-aprendizagem.


mação de Professores em Educação Especial.


• Investigar, cientificamente, novas estratégias


Sendo necessário entender o pensamento e a


de ensino aplicáveis ao seu campo de atuação.


prática educacional relacionados com a realidade


• Participar, de forma integrada, dos programas social, onde nascem e se desenvolvem; não poden-

de Educação Especial no sistema de ensino, do ignorar que a realidade é condicionada pelas


na família e na comunidade (Guia Acadêmi-


relações econômicas e políticas nacionais e inter-


co. Pró-Reitoria de Graduação/UFSM/1998). nacionais, às quais se refere e também sobre as



A formação de recursos humanos para a Edu- quais influi, ocasionando transformações, essas

cação Especial desenvolveu-se acompanhada articulações ou relações do fenômeno educacio-



pela prestação de serviços de extensão à comuni- nal com condições internas e externas explicam a

sua constituição, os seus limites e as direções de


dade. Em 1980, foi criado o Serviço de Atendimen-


to Complementar ao Deficiente Auditivo sua transformação. A educação influi sobre essa



(SACDA), em convênio com a Legião Brasileira de realidade, podendo direcionar transformações.



Assistência (LBA). O SACDA servia de local de es- Em síntese, a Educação Especial na Univer-

tágio aos alunos dos cursos de Educação Especial, sidade Federal de Santa Maria se efetiva em mo-

Fonoaudiologia e Pedagogia. No ano de 1983, as mentos distintos. Privilegiou-se a formação de



atividades do SACDA foram reformuladas e am- recursos humanos como objeto de envolvimen-

pliadas e o serviço recebeu nova denomina- to curricular regular, separando-se, para efeito

ção: Centro de Atendimento Complementar em de análise, quatro momentos distintos:



Educação Especial (CACEE), fundamentando suas Momento 1: Curso de Pedagogia – Habilita-



atividades de cunho complementar no modelo ção em Formação de Profissionais para Ex-


cepcionais – Deficientes Mentais (1975 a


médico-psicológico. Em 1993, o Departamento de


Educação Especial implantou no CACEE uma 1976) – 3.135 horas (2.280 horas no Núcleo

Comum + 855 horas na Habilitação DM).


nova metodologia de trabalho baseada em outro



paradigma teórico: o modelo pedagógico, com Momento 2: Curso de Formação de Profes-


sores para Educação Especial – Deficientes


ênfase definida em ensino, pesquisa e extensão.


Foi, então, criado o Núcleo de Ensino, Pesquisa e Mentais – Licenciatura Curta (5 semestres)

(1977 a 1980) – 2.010 horas.


Extensão em Educação Especial (Nepes).



Em nível de pós-graduação, o curso de especiali- Momento 3: Curso de Formação de Profes-


sores de Educação Especial –Licenciatura


zação, criado em 1993, tem como objetivo possibili-


tar a compreensão das potencialidades, das limita- Plena – Habilitação em Deficientes Mentais

(1981 a 1983) – 2.550 horas.


ções e das diferenças dos portadores de necessida-



des especiais, propondo ações interativas com a so- Momento 4: Curso de Educação Especial – Li-

352
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas

cenciatura Plena – Habilitação em Deficientes tos relacionados entre si, que são: desenvolvimen-



Mentais – Habilitação em Deficientes da to, aprendizagem e ensino. Deste ponto de vista, o



Audiocomunicação (1984 à atualidade) – 8 se- currículo entendido como Projeto Curricular pode


mestres, com carga horária distribuída entre


efetivamente contribuir para a formação e o aper-


disciplinas obrigatórias (3.525 horas) e disci- feiçoamento dos professores. Projeto Curricular é,


plinas optativas (90 horas), totalizando 3.615


sobretudo, um projeto de ação educativa que enri-


horas (carga horária total do curso na Habili-


quece o processo de desenvolvimento de todos os


tação Deficientes Mentais). 353
alunos em todos os níveis de ensino, pois o traba-



Procuramos verificar como se deu a forma- lho do professor, se por um lado tem o aspecto inte-



ção docente, estabelecendo agrupamentos de dis- lectual, por outro lado não se limita a ele. O traba-


ciplinas e tendo como preocupação captar: a con-


lho intelectual do professor exige deste uma atitu-


cepção de deficiência possivelmente envolvida; de prática de transformação estrutural da organi-



se houve preocupação em proporcionar visão ge- zação escolar, que tem uma íntima relação com a



ral do ser humano, inserido num contexto social sociedade da qual ele participa.


por meio de disciplinas filosóficas, históricas e


Sob esse ponto de vista, entendemos que o


sociológicas; como se desenvolveu a preocupa- trabalho do professor não se limita a uma ativi-



ção com a especificidade do ser humano, sujeito dade livre e descompromissada, mas, sim, é um

da ação pedagógica, isto é, por meio de discipli- ○


evento de grande responsabilidade social daque-


nas e metodologias gerais e específicas.

les que o exercem para com o conjunto da popu-


Os momentos analisados são reveladores da lação. Portanto, a Educação Especial, como uma

forma de pensar a formação de professores e a modalidade de ensino no contexto da educação


concepção de aluno.

geral, tem o compromisso de dar a todos a opor-


Nas quatro grades curriculares analisadas, tunidade de acesso e de permanência na escola.



percebemos, pelo número de horas e pelo con- Acreditamos que a formação do professor

teúdo das ementas de cada disciplina, qual foi para trabalhar com alunos portadores de defici-

a “visão” de excepcionalidade veiculada, como


ência mental deva enfocar o princípio ético, que


também constatamos qual o enfoque prio- consiste em não considerar apenas os “meus in-

rizado, ou seja, o deficiente mental como um teresses” ou os “teus interesses”, mas os interes-

sujeito incompleto e a educação como uma ses de todo e qualquer aluno. A verdadeira igual-

possibilidade de reabilitação desse sujeito.


dade de oportunidades exige a certeza da


Diante dessas evidências, reforça-se nossa inexistência de privilégios, em que uma desvan-

constatação de que o aluno da Educação Espe- tagem inicial possa ser compensada por um tra-

cial é visto ainda como defeituoso, doente e que tamento diferencial. Com essa perspectiva edu-

a intervenção educacional pontuou-se pelo diag-


cacional é imprescindível ao professor o exercí-


nóstico e pelo emprego de técnicas. A nosso ver, cio investigativo, que compreende seu compro-

o alunado da Educação Especial permanece, ain- misso com pesquisas que possam contribuir para

da, centrado na idéia do defeito, da diferença. o desenvolvimento de conhecimentos na área, da


A formação de professores oscilou entre a


sua realidade, bem como um intercâmbio com


ênfase específica e a ênfase metodológica, aspectos políticos, administrativos e pedagógicos.



priorizando ora uma, ora outra, em função dos As políticas públicas e, portanto, a educa-

condicionantes sociopolíticos, das concepções ção, deverão levar em conta fatores que visem

teóricas e da prática docente.


proporcionar a tais indivíduos uma vida plena-


A análise dos grupos de disciplinas nos mo- mente feliz, isto é, possibilitar-lhe o gozo de

mentos considerados revela que para algumas seus direitos e deveres de cidadão.

delas se percebe um movimento no sentido da Entretanto, devemos evitar o reducionismo,


adequação de conteúdo ao momento histórico.


não colocando a deficiência quer somente como


Para a implementação de uma ação pedagógi- patologia individual, quer como dominação social,

ca eficiente e de qualidade, a tendência atual da Edu- mas como resultado dos dois pólos, isto é, da situ-

cação Especial destaca como essenciais três elemen- ação de cada um (limites e potencialidades), den-

tro de uma sociedade que solicita modos de ser, mentar, na formação de professores e especialistas



aspirações, modelos necessários a uma certa or- no planejamento, na gestão e na supervisão da edu-



ganização social. cação, em nível de pós-graduação.



O nosso desafio em educação é, respeitando Tendo a Universidade Federal de Santa Maria sido


as individualidades do aluno, com suas potencia- pioneira na interiorização do atendimento por meio



lidades e limitações, possibilitar-lhe os conheci- das atividades de extensão e ensino e tendo persistido



mentos necessários para viver integralmente na- nesse trabalho ao longo de quarenta anos, julgamo-


quela sociedade, modificando-a nas “brechas” pos- nos habilitados para realizar a formação de recursos



síveis de melhoria das condições de vida. Não é humanos para a Educação Especial consoante as di-



reproduzir indivíduos para o contexto, adaptando- retrizes políticas formuladas para a área. Também – e



os, sufocando-os, mas permitir-lhes o desenvolvi- avançando as atividades de extensão e ensino –, a pro-


mento pleno para viver e ser mais, ser além de có- dução e a divulgação de conhecimentos têm sido per-



pias, e isto vale para todos os educandos. seguidas por meio de projetos e pesquisas que envol-



Daí a importância de não ignorar o contexto, vem discentes e docentes da instituição.


com suas limitações e avanços. Em cada momen- ○
Neste momento, parece-nos importante que a
to histórico, em função das condições econômi- atual formulação curricular que o curso de Educa-

co-sociais e político-culturais, “a sociedade pro- ção Especial apresenta, com pequenas adequa-

duz a escola de que necessita e a transforma den- ções, possa permanecer como reserva institucional

tro das possibilidades concretas e dos limites im- para referenciar o currículo de formação de pro-

postos pelo avanço real da totalidade dentro da fessores de forma que atenda às demandas pro-

qual ela se organiza no tempo” (Xavier, 1997: 229). postas na política educacional do país.

Estão sendo realizados estudos para refor-


mulação curricular dos cursos de graduação e de


Bibliografia

especialização em Educação Especial. Tais



reformulações visam à sua adequação às Dire- BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1966. Diretrizes e

Bases da Educação Nacional.


trizes Nacionais para a Educação Especial na


. Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Plano


Educação Básica e ao Plano Nacional de Educa-

Nacional de Educação.

ção (Lei nº 10.172/2001).


. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial


A formação de recursos humanos com capa- na Educação Básica.



cidade de oferecer atendimento aos educandos BREZINSKI, Íria. Pedagogia, pedagogos e formação de profes-

especiais, a implantação e a ampliação de aten- sores. São Paulo: Papirus, 1996.



dimentos a alunos com necessidades especiais BUENO, J. Geraldo Silveira. A produção social da identidade do

anormal. História social da infância no Brasil. São Paulo:


são metas do Plano Nacional de Educação para


Cortez, 1997.

os próximos dez anos.


CANDAU, Vera M. F. Formação continuada de professores: ten-

A formação de professores e alunos que apresen-


dências atuais. São Carlos: EDUFSCar, 1996.


tam necessidades educativas especiais deverá ocor-


CARVALHO, Rosita E. A nova LDB e a educação especial. Rio de


rer nos âmbitos da: formação inicial de todos os pro- Janeiro: WVA, 1997.

fessores; formação de professores de Educação Es- COELHO, I. M. A formação do educador: dever do Estado, tarefa

pecial; e formação de professor dos professores. Na da universidade. Formação do educador. São Paulo: Unesp,

1996. v. 1.
formação inicial em nível médio ou superior, o pro-

CÓSER, Reinaldo Fernando. Comentários. Boletim do Instituto


fessor deverá construir conhecimentos que lhe dêem


da Fala, v. 3, UFSM, 1971.


possibilidade de identificar e reconhecer a existên- FREITAS, S. N. A formação de professores em Educação Especi-


cia de necessidades educacionais e também buscar


al na Universidade Federal de Santa Maria. Tese (Doutorado


e implementar ações e apoios pedagógicos em clas- em Educação). UFSM/Unicamp, Santa Maria, 1998.

ses comuns da Educação Básica. Para o atendimen- MARQUEZAN, Reinoldo; TOALDO, Marilene Machado. Formação

de recursos humanos para Educação Especial na Universida-


to orientado a uma categoria específica de necessi-


de Federal de Santa Maria. Santa Maria/RS, 1986. v. 2.


dades, a formação do professor deverá se processar

XAVIER, Maria Elizabeth; RIBEIRO, Maria L.; NORONHA,


na formação para a Educação Infantil e as séries ini-


Olinda M. História da educação – a escola no Brasil. São


ciais do Ensino Fundamental ou, de forma comple- Paulo: FTD, 1994.



SIMPÓSIO 25

ORGANIZAÇÃO DOS SISTEMAS


DE ENSINO E FORMAÇÃO
DOCENTE
João Barroso

Jean Hebrard

Miriam Schlickmann

355
Da formação de professores




à formação das escolas






João Barroso



Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação/Universidade de Lisboa/Portugal







Resumo





As transformações em curso na formação de necessário que se estabeleçam novas relações de



professores são determinadas, fundamentalmente, força que lhe sejam favoráveis, mas também que os



por três ordens de razões: mudança nos processos atores desenvolvam novas capacidades cognitivas e

de trabalho de alunos e professores; mudança nas relacionais, e que se estabeleçam novas formas de

organizações e modos de gestão; mudança nos mo- governo. Por isso, como insistem Crozier e Friedberg

(1977), qualquer processo de mudança deverá re-


delos de formação contínua, em geral.


No primeiro caso, a mudança do público escolar sultar de uma ação convergente sobre os homens e

resultante do alargamento da base de recrutamento as estruturas.


dos alunos e a perda da eficácia dos mecanismos de No terceiro caso, a formação contínua de adul-

seleção tornaram caducas uma organização pedagó- tos valoriza cada vez mais as modalidades que favo-

gica e uma prática de ensino que se baseava numa recem a capacidade de os atores, nas organizações,

cultura de homogeneidade, cujo objetivo era “ensi- “produzirem” o seu próprio conhecimento, quer seja

nar a muitos como se fossem um só” (Barroso, 1995a). pelos “métodos autobiográficos” e outras formas de

Hoje em dia, para atender à heterogeneidade dos alu- “formação experiencial”, quer pela “aprendizagem

nos, promover a igualdade de oportunidades e a jus- autodirigida” e outras formas de “autoformação”.



tiça é preciso reinventar a organização escolar e alte- Assiste-se, assim, a um processo sincrônico e recí-

proco de “destaylorização” das organizações e de


rar os processos de trabalho de alunos e professores.


A escola torna-se um lugar de vida, uma “cidade polí- “destaylorização” das formações. Como notam Nelly

tica” (Ballion, 1998). Os alunos deixam de ser vistos Bousquet e Colette Grandgérard (1990: 79), “nas or-

ganizações do trabalho transformadas, o processo


como consumidores de conhecimentos transmitidos


pelos professores, tornando-se co-produtores dos de mudança, de modernização, torna-se em si mes-



saberes necessários ao seu crescimento e desenvol- mo um processo de formação, pondo fim a uma con-

vimento. Os professores tornam-se, cada vez mais, cepção demasiado estreita e tradicionalmente es-

gestores de situações educativas. O professor já não é colar de formação, que se limitaria às situações for-

o que transmite conhecimentos aos alunos, mas o que mais de aquisição de conhecimentos”.

cria as condições necessárias para que estes apren- É no contexto dessas três mudanças que se si-

dam. Ele é, portanto, um organizador e um tua a minha intervenção, subordinada ao tema “Da

disponibilizador de recursos, em conjunto com os formação de professores à formação das escolas”.


colegas ou outros técnicos de educação e em Com ela pretendo pôr em evidência o isomorfismo

interação com outras instituições educativas. que deve existir entre “práticas de ensino”, “mode-

los de formação” e “modos de gestão”.


No segundo caso, as mudanças vão no sentido


de reconhecer as organizações como construções Numa primeira parte, irei analisar o paralelismo

sociais e os seus membros como atores estratégicos existente entre a evolução dos modos de organiza-

ção e dos modos de formação.


capazes de cálculo e escolha. A atividade de traba-


lho deixa de ser vista unicamente como um lugar de Numa segunda parte, aplicando às escolas o

execução (Moisan, 1993) e passa a ser vista como conceito de “organizações aprendentes”, irei subli-

um “sistema concreto de ação” (Crozier e Friedberg, nhar a necessidade de incluir as práticas de forma-

1977; Friedberg, 1995). Nesse sentido, para que a ção na própria organização do trabalho dos profes-

mudança possa ocorrer numa organização não só é sores e nas funções da gestão escolar.

356
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

A formação e o as “modernas teorias das organizações” acon-



selham: “pensar ao mesmo tempo o indivíduo


desenvolvimento


e a organização”.


organizacional


Essa aproximação entre “formação” e “orga-


nização” é favorecida pelos próprios efeitos in-


O processo de institucionalização de um sis-


diretos que, entretanto, a proliferação de cur-


tema de formação contínua, que se desenvol-


sos (mesmo quando decorriam sem qualquer


veu, principalmente a partir da década de 1960, 357
relação imediata com a situação de trabalho)


na maior parte dos países industrializados de-


passa a exercer nos processos de mudança


correu numa relativa marginalidade em relação


organizacional.


aos problemas das organizações e das situações


Esses efeitos da formação sobre as estrutu-


de trabalho.
ras da organização foram estudados por


Ao mesmo tempo, a excessiva formalização


Sainsaulieu e outros sociólogos cujos trabalhos


da “educação permanente” e a sua transforma-


sobre a formação profissional mostram que “as


ção em “mito regenerador” de todos os proble-


ações de formação contínua são portadoras de


mas individuais, profissionais e sociais, criaram
processos transformadores e de mudanças


uma “sociedade pedagógica” que, como dizia

organizacionais suficientes para que se possam

Beillerot (1982) no início da década de 1980, ○

integrar no números de vias privilegiadas do


parecia concorrer mais para a normalização do


desenvolvimento social das empresas contem-


que para o despertar crítico das consciências.

porâneas” (Sainsaulieu, 1987: 295).


As concepções de formação dominantes


Dentre essas mudanças, Sainsaulieu desta-


eram marcadas (como assinala Guy Jobert,


ca o efeito de sociabilidade e de abertura do sis-


1987, na sua análise diacrônica do trabalho do


tema, bem como a redistribuição do saber e das

formador de adultos em França, entre 1950 e


profissões, com incidência visível no maior grau


1980) pelo “regresso à escola e adaptação ao


de participação nas estruturas de organização


posto de trabalho” e por aquilo a que chama de


por parte dos trabalhadores.


“estagificação”: um processo formativo pouco


articulado com as situações de trabalho, que


Novos paradigmas

mobiliza saberes de tipo disciplinar, utilizando



como modalidade pedagógica única o estágio.


de análise organizacional

Contudo, as modificações que se foram ope-


e práticas de gestão

rando, quer no contexto político e econômico



das empresas, quer nos seus processos de ges-


Como é evidente, esses efeitos organizacio-


tão, fizeram com que emergissem novas práti- nais da formação contínua de adultos só são

cas de formação mais integradas na organiza- possíveis porque os paradigmas da análise


ção. Como assinala Dubar (1983: 28), caracteri-


organizacional se encontravam em profunda


zando a situação que se vivia em França, no iní-


transformação e porque nas próprias empresas


cio da década de 1980: “já não era a procura in- se faziam sentir as transformações decorrentes

dividual de formação que constituía o seu ‘ob- de novas práticas de gestão, abertas à partici-

jeto’, mas a oferta institucional de formação, em


pação dos trabalhadores e à mobilização da sua


ligação com a oferta de emprego e a definição inteligência e criatividade.



dos postos de trabalho, da sua qualificação e das Assim, é a inexistência dessas alterações dos

suas evoluções, sob o efeito conjunto das mu- princípios e práticas de gestão que explica a “re-

danças tecnológicas e da crise econômica”.


sistência à formação”, em muitas empresas, que


A função de mediação que a formação exer- mantém no essencial uma estrutura e organi-

cia entre a necessidade de desenvolvimento zação do trabalho de tipo “taylorista”. E, do



pessoal e a necessidade de desenvolvimento mesmo modo, é a alteração dessa estrutura que


organizacional acelera-se no sentido de uma


permite avançar na integração estratégica da


maior integração, visando permitir aquilo que formação como instrumento de gestão e de de-


senvolvimento organizacional. 2. O princípio segundo o qual a mudança nas



Os aspectos das novas teorias das organiza- organizações é um fenômeno político que



ções e da gestão e da sua aplicação prática que não pode ser reduzido a simples decisões


hierárquicas e que depende da capacidade


mais favorecem a integração da formação nas


situações de trabalho estão relacionados com a de aprendizagem, pelos atores, de novos


modos de relação e de novas formas de ação


importância que é dada aos “atores” nas orga-


coletiva. Para que a mudança possa ocorrer


nizações e com o abandono de uma visão


numa organização, não só é necessário que
funcionalista delas.


se estabeleçam novas relações de força que


As organizações passam a ser consideradas


lhe sejam favoráveis, mas também que os


como construções sociais e não como uma en-


atores desenvolvam novas capacidades


tidade natural (“reificada”) que existe para lá da cognitivas e relacionais, e que se estabele-


ação humana. O desenvolvimento da sociolo-


çam novas formas de governo. Por isso,


gia das organizações veio pôr em causa alguns como insistem Crozier e Friedberg (1977),



dos “mitos” que durante o período anterior ser- qualquer processo de mudança deverá re-


viram de modelos de referência às práticas de ○
sultar de uma ação convergente sobre os
gestão e à organização do trabalho. homens e as estruturas.

Entre os princípios que mais alteraram a


Mas essa mudança de paradigma na análise


nossa maneira de encarar as organizações são organizacional tem também repercussões evi-

de referir: o da complexidade organizacional dentes na evolução das “ciências da gestão” e


que decorre da racionalidade limitada não só


nas suas práticas.


dos indivíduos, mas também, e por conse-


Não vou enunciar aqui as profundas mu-


qüência, dos conjuntos que eles formam (as or- danças que estão a ocorrer nesse domínio e as

ganizações); a natureza “debilmente acoplada”


influências que elas exercem nas relações entre


e “anárquica” das organizações, que põe em


“formação” e “organização”, quer se trate da


causa os modelos “clássicos” da tomada de de-


“gestão estratégica”, do “desenvolvimento


cisão e o caráter instrumental da própria orga- organizacional”, da “gestão participativa”, da


nização; a dimensão fluida das fronteiras da or-


“gestão pela cultura” etc. Estamos perante prin-


ganização e a diversidade e imprevisibilidade


cípios e modalidades de gestão que alteram


das suas relações com o meio externo.


profundamente as relações na empresa e os


Dos vários princípios que decorrem dessa mecanismos de controle, o nível das qualifica-

nova perspectiva de análise organizacional e


ções dos trabalhadores e os seus processos de


cujo impacto numa redefinição dos modelos e


trabalho - e conseqüentemente a procura e a


práticas de formação contínua de adultos me oferta de formação contínua.



parece mais relevante, gostaria de destacar dois


que, em França, muito ficaram a dever aos tra-


As organizações também

balhos de Crozier e de Friedberg (ver, entre ou-



tros, Crozier e Friedberg, 1977; Friedberg 1995): aprendem



1. O princípio segundo o qual os indivíduos


numa organização são atores capazes de Um dos elementos essenciais dessas mu-

cálculo e de escolha, isto é, com um racio- danças consiste na importância que é dada ao

cínio estratégico. Este princípio tem reper- “saber” nas organizações. Como afirma hoje

cussões evidentes na atividade de trabalho, Donald Schon (que já em 1978 escrevera, com

que deixa de ser vista unicamente como um Argyris, uma obra significativamente chamada

lugar de execução (Moisan, 1993) e passa a Organizational learning):



ser vista como um sistema de ação concre-



ta pelo qual os diferentes atores organizam As sociedades comerciais, as associações sem


o seu sistema de relações para resolver pro-


fins lucrativos, os governos, as regiões, as nações


blemas concretos colocados pelo funciona- no seu conjunto sentem a necessidade de se



mento da organização. adaptar às mudanças do meio externo e querem



358
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

tirar lições dos seus êxitos e dos seus erros do aprendizagem em equipe, autonomia, novos



passado, empreender certas experiências e em- estilos de liderança”.



penhar-se numa inovação permanente. No É nessa perspectiva que se radicam, por


mundo acadêmico, como no mundo do traba-


exemplo, várias formas de organização do tra-


lho, a aprendizagem organizacional, ou (o que balho que começam a ser divulgadas como “as



não é bem a mesma coisa) a “organização apta à
equipes autogeridas”, “os círculos de qualida-


aprendizagem”, tornou-se uma idéia corrente


de” etc.


(Schon, 1990: 220). 359
Outro exemplo da importância que o “sa-



ber” tem na concepção de novas formas


Para isso, como diz o mesmo autor (recor-


organizacionais nas empresas e na sua gestão é


dando os contributos que a perspectiva


dado por Handy (1989) e pelo seu modelo de
“sociotécnica” trouxe a este conceito de “orga-


“organização do triplo I”.


nização apta à aprendizagem”), é preciso que


Segundo esse autor, a nova fórmula do su-


se desenvolvam processos de participação co-


cesso e da eficácia das companhias do futuro


letiva pelos quais grupos de indivíduos, em es-


reside na capacidade de os trabalhadores usa-
pecial assalariados, desenvolvam novos esque-


rem a sua Inteligência para analisar a Informa-


mas de trabalho, novas perspectivas de carrei-

ção adequada, com o fim de gerar Idéias para
ra, capazes de melhor articular a sua vida fami- ○

novos produtos e novos serviços. Inteligência,


liar e a sua vida profissional. Desse ponto de


Informação e Idéias constituem assim, para


vista, afirma Schon, “são os indivíduos, os as-

Handy, o primado do capital intelectual nas


salariados e os seus superiores hierárquicos,


novas organizações.

que podem e devem aprender a reconcei-


Como sublinha Burnes, ao comentar essa


tualizar o seu trabalho, e são os gestores de alto


“fórmula” de Handy, nessas organizações será

nível que devem aprender a criar os contextos


necessário dedicar mais tempo e esforço à


adequados” (1990: 220).


aprendizagem e ao estudo, em todos os níveis:


Nesse sentido podemos dizer com Koenig


“as novas organizações serão sociedades dinâ-


(1994) que as organizações aprendem por meio


micas e interativas onde a informação está aber-

de um “fenômeno coletivo de aquisição e ela-


ta a todos, sendo recebida e fornecida livremen-


boração de competências que, de um modo


te. Na organização do ‘triplo I’ espera-se que


mais ou menos profundo e perdurável, modifi-


toda a gente seja capaz de pensar e aprender


ca não só a gestão como as próprias situações


tão bem como fazer” (Burnes, 1992: 77).

em que ela se desenrola”.



Para que as organizações aprendam é pre-


A “destaylorização”

ciso desenvolver diversas atividades de traba-


lho coletivo que passam, no dizer de Garvin


das formações

(1993), por: resolução sistemática dos proble-



mas; experimentação com novos enfoques; Como se vê, a evolução recente nas teorias

das organizações, bem como nos princípios e


aprender com a sua própria experiência e his-


tória passada; aprender com as melhores expe- práticas de gestão, constituem um contexto fa-

riências e práticas dos outros; transferir rápida vorável à busca de novos modelos e práticas de

e eficientemente o conhecimento para toda a formação.


Assiste-se assim, cada vez mais, a uma in-


organização.

Mas, como assinala Bolívar (2000), “as orga- tegração entre o campo da formação e o campo

nizações de aprendizagem não surgem do nada. da organização, o que leva a uma articulação (ou

São fruto de um conjunto de atitudes, compro- mesmo simbiose) das situações de formação

com as situações de trabalho.


missos, processos e estratégias que têm de ser


cultivados. Por isso é preciso construir um am- Uma das perspectivas que mais tem favore-

biente que favoreça as aprendizagens em con- cido essa integração é a que encara a formação

junto: tempo para reflexão, visão partilhada, como um investimento produtivo, integrada na


decisão política e na estratégia geral da empre- autodirigida” e outras formas de “autoformação”.



sa (Jobert, 1987). Assiste-se, assim, a um processo sincrônico



Como assinala Le Boterf (1988), os planos e recíproco de “destaylorização” das organiza-



de formação tendem a articular-se estreitamen- ções e de “destaylorização” das formações.


te com o plano estratégico da empresa e orien- Como notam Nelly Bousquet e Colette



tam-se para a resolução de problemas e reali- Grandgérard (1990: 79):



zação de projetos.


Nesse sentido torna-se necessário identifi-


Nas organizações do trabalho transformadas, o


car nas empresas as “situações-problemas” que processo de mudança, de modernização, torna-



são suscetíveis de tratamento educativo. se em si mesmo um processo de formação, pon-


do fim a uma concepção demasiado estreita e


Viallet (1987) identifica as seguintes: proble-


mas ligados à gestão de topo; problemas pró- tradicionalmente escolar de formação, que se



limitaria às situações formais de aquisição de
prios das unidades de trabalho; o estado das


conhecimentos. A formação é entendida como

equipes; o profissionalismo do pessoal; o ser-


uma dinâmica global que faz apelo a conteúdos
viço prestado ao consumidor; o futuro profis- ○

formalizados organizados em situações clássi-


sional dos assalariados.

cas de aprendizagem ou em situações de traba-


Mas, para esse autor, o objetivo dessa for-


lho, mas também a conteúdos mais difusos li-


mação centrada na resolução de problemas não gados à evolução das tarefas, a uma maior dele-

é o de propor um sistema novo que venha subs- gação da responsabilidade, à associação à vida

tituir o anterior, mas, pelo contrário, “está ori-


da empresa etc.

entada para a procura de soluções pelos pró-



prios atores, cada um com a sua forma de inte-


A formação de professores

ligência, e que por contributos sucintos estão



em condição de reparar os defeitos dos siste- Como é evidente, todas essas transforma-

mas em que vivem” (Viallet, 1987: 153). ções no domínio da formação contínua de adul-

A modalidade de formação que é desenvol- tos e nas suas organizações de trabalho tiveram

vida, nesse contexto, é aquilo que alguns auto-


naturais conseqüências na formação de profes-


res chamam de “formação-ação”. Essa modali- sores:



dade de formação “apresenta-se como um pro- • Por um lado, reforça-se a idéia de que os

cesso de resolução de problemas que associa os modelos de formação de professores têm de


atores que são afetados por eles” ( Jobert, 1987: estar orientados para a mudança dos com-

27) e que integra, simultaneamente, as dimen- portamentos e das práticas, o que exige um

sões formação, investigação e ação (Boterf, trabalho simultâneo sobre a pessoa do pro-

fessor, sobre o seu universo simbólico e so-


1988).

Essas e outras práticas de formação que se bre as suas representações, mas também

sobre os seus contextos de trabalho e o


desenvolvem no interior das próprias organi-


modo como se apropria deles (perspectiva


zações (ainda que não confinadas aos seus es-


crítico-reflexiva).

paços e aos saberes) constituem um claro exem-


plo da emergência de novos paradigmas no • Por outro lado, as escolas são consideradas

campo da educação de adultos em geral, que como lugares de formação por excelência,

o que está na origem dos modelos de “for-


tem claros pontos de contato com o que se ob-


mação centrada na escola” (perspectiva


servou no estudo das organizações e na gestão.


experiencial).
É nesse contexto que na formação contínua

de adultos se valoriza cada vez mais as modali- Essa evolução da formação de professores

dades que favorecem a capacidade de os atores, inverte a posição tradicional como era vista a

relação entre a formação de professores e a mu-


nas organizações, “produzirem” o seu próprio co-


nhecimento, quer seja pelos “métodos autobio- dança das escolas.



gráficos” e outras formas de “formação Já não se trata de, primeiro, formar profes-

sores, para que depois eles possam aplicar o que


experiencial”, quer por meio da “aprendizagem


360
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

aprenderam na transformação das escolas, mas, senvolvimento organizacional da escola.



partindo do princípio de que, como diz Rui Ca- Se é verdade que “a otimização do poten-



nário (1994), “os indivíduos mudam mudando cial formativo das situações de trabalho passa,



o próprio contexto em que trabalham”, de fazer em termos de formação, pela criação de dispo-


da mudança das escolas um processo de forma- sitivos e dinâmicas formativas que propiciem,



ção (e mudança) dos professores. no ambiente de trabalho, as condições neces-



Essa perspectiva desloca o problema da for- sárias para que os trabalhadores transformem


mação de professores para o problema da for- as experiências em aprendizagens a partir de 361



mação das escolas. um processo formativo” (Canário, 1994: 26), não



Como assinalam Monica Thurler e Philippe nos podemos esquecer também que é preciso



Perrenoud (1990) num texto apresentado ao criar dispositivos e dinâmicas organizacionais


Congresso da Sociedade Suíça de Investigação que propiciem que os trabalhadores transfor-



em Educação, que tinha o sugestivo título de mem as suas “aprendizagens” em “ação”.



“L’instituition scolaire est-elle capable Nessa relação entre formação – gestão – mu-



d’apprendre?”: dança (que está subjacente a essa perspectiva da


“formação centrada na escola”) estamos peran-



Podemos recusar entrar no jogo da metáfora te um problema típico do “ovo e da galinha”!

[as escolas também aprendem] e compreender A questão que se coloca é a seguinte:


a questão num sentido clássico: como muda a


Para que seja possível pôr em prática mo-


escola? quais são os processos e as estratégias dalidades de formação que permitam aos tra-

de inovação? balhadores aprender por meio da organização


Outra maneira de encarar o problema é inda-


e das suas situações de trabalho, é preciso que


gar como é que aprendem as pessoas que fazem


a própria organização “aprenda” a valorizar a

funcionar a escola, o que remete para a proble-


experiência dos trabalhadores e a criar condi-

mática clássica da formação de professores e dos


ções para que eles participem na tomada de


quadros, da mudança das atitudes e das práti-


decisão.
cas, da difusão das idéias no sistema escolar.

Ora, as organizações não aprendem por si


Parece-me mais interessante, para renovar o


(se não queremos ir contra uma das regras es-


debate, tentar aplicar a idéia da aprendizagem


da própria organização escolar. Encarando a es- senciais do “individualismo metodológico”, que



cola como um sistema social, de que modo ela impede tratar os coletivos como indivíduos);

portanto há que mudar as organizações para


constrói as representações, os saberes, os sabe-


res-fazer, como capitaliza e teoriza a experiên- que por meio delas seja possível mudar as mo-

cia, tanto na escala do estabelecimento de ensi- dalidades e dispositivos de formação. Mas isso

no como na de organizações mais vastas? não deve ser cumulativamente, porém sim

integradamente, no quadro de uma abordagem



Isso significa que é na mudança da escola global do processo de mudança organizacional.



que o professor se forma. O que implica esta- Para isso há que evitar duas coisas:

belecer uma integração entre o “lugar de


1. Assumir uma perspectiva “gerencialista” e


aprender” e o “lugar de fazer”, criando condi- normativa da formação contínua de adul-



ções para que se produza uma outra relação tos, vendo nela, unicamente, uma das

componentes de uma “tecnização da mu-


entre “o saber” e o “poder”, nas escolas. Para


isso, é preciso que as escolas disponham de dança organizacional” (de que fala

espaços significativos de autonomia e que a Friedberg, 1995: 328-29), à semelhança da


“gestão por objetivos”, dos “círculos de


sua gestão seja assegurada de modo


qualidade” e de outras técnicas de gestão.


participativo, por meio de lideranças individu-


ais e coletivas (ver a esse propósito Barroso, 2. Assumir uma perspectiva “voluntarista” da

1995b; 1997). Só assim será possível empreen- formação contínua de adultos, julgando

der as mudanças necessárias para que a for- que todos os profissionais se deixam atra-

ir pela “bondade dos seus princípios”, ca-


mação se possa finalizar na inovação e no de-



indo na “ilusão pedagógica” de mudar a


. Autonomia e gestão das escolas . Lisboa:


sociedade (e as organizações) porque se Ministério da Educação, 1997.



mudam as práticas de formação. BEILLEROT, J. La société pédagogique. Paris: PUF, 1982.


BOLÍVAR, António. Los centros educativos como


Por isso, a “formação centrada na escola” organizaciones que aprenden: promesa y realidad.



não deve ser vista unicamente como uma mo- Madrid: Editorial La Muralla, 2000.


dernização das políticas e práticas de formação, BOUSQUET, Nelly; GRANDGÉRARD, Colette.



mas sim como um dos instrumentos de uma Détaylorisation des formations et stratégie de flexibilité.


Éducation Permanente, n. 104, p. 73-82, 1990.


estratégia mais geral de mudança


BURNES, Bernard. Managing change: a strategic approach
organizacional, entendida como uma ação po-


to organisational development and renewal. London:


lítica que tira a sua racionalidade e legitimida-


Pitman Publishing, 1992.


de dos atores que a praticam e das característi- CANÁRIO, Rui. Centros de formação de escolas: que futu-



cas dos seus sistemas concretos de ação ro?. In: AMIGUINHO, A.; CANÁRIO, Rui (Org.). Escolas


(Friedberg, 1995). e mudança: o papel dos centros de formação. Lisboa:



A principal finalidade da “formação Educa, 1994.

○ CROZIER, Michel; FRIEDBERG, Erhard. L’ acteur et le
centrada na escola” deve ser a de animar e ○

système. Paris: Éditions du Seuil, 1977.


estruturar o processo de mudança. A formação


DUBAR, Claude. La formation continue en France et ses

deve permitir que os próprios professores dis-


sociologues (1960-1980). Éducation Permanente, n. 68,


ponham de um conhecimento aprofundado e


p. 25-32, 1983.

concreto sobre a sua organização, elaborem um FRIEDBERG, Erhard. O poder e a regra: dinâmica da ação

diagnóstico sobre os seus problemas e mobili-


organizada. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.


zem as suas experiências, saberes e idéias para GARVIN, D. A. Building a learning organization. Harvard

Business Review, v. 71, n.4, p. 78-91, 1993.


encontrar e aplicar as soluções possíveis.

HANDY, C. The age of unreason. London: Arrow, 1989.


A integração da formação na organização-


JOBERT, Guy. Une nouvelle professionalité pour les


escola faz-se, desse modo, por meio da sua mo-

formateurs d’adultes. Éducation Permanente, n. 87, p.


bilização a serviço de um projeto de mudança.


19-33, 1987.

Para isso é preciso utilizar dispositivos e moda- KOENIG, G. L’ apprentissage organisationnel repérage des

lidades de formação adequadas, como vimos. lieux. Revue Française de Gestion, n. 97, p. 76-83, 1994.

E, quanto ao resto, é de repetir o que Crozier LE BOTERF, Guy. Le schéma directeur des emplois et des

resources humaines. Paris: Les Éditions d’Organisation,


e Friedberg dizem do processo de mudança em

1988.

geral:

MOISAN, André. Pratiques d’ autoformation en entreprise.


“[...] como na guerra e no amor, a arte da Révue Française de Pédagogie, n. 102, p. 45-54, 1993.

mudança está na sua execução!”.


SAINSAULIEU, Renaud. Sociologie de l’ organisation et de


l’entreprise. Paris: Dalloz, 1987.



SCHON, Donald A. Quelques questions à propos du concept


d’apprentissage organisationnel. In: PAVÉ, Francis (Dir.)


Bibliografia

L’ Analyse stratégique: sa genèse, ses applications et


ses problèmes actuels. Actes du Colloque de Cerisy.


BALLION, Robert. La démocratie au lycée . Paris: ESF


Paris: Éditions du Seuil, 1990.


Éditeur, 1998.
THURLER, Monica Gather; PERRENOUD, Philippe. L’ école

BARROSO, João. Os liceus: organização pedagógica e ad-


apprend si elle s’en donne le droit, s’en croit capable et


ministração (1836-1960). Lisboa: Fundação Calouste


s’organise dans ce sens. In: congrès de la Société Suisse

Gulbenkian /Junta Nacional de Investigação Científica,


de Recherche en Éducation – L’institution scolaire est-


1995a.
elle capable d’apprendre?. Actes..., 1990.

. Para o desenvolvimento de uma cultura de


VIALLET, François. L’ingénierie de la formation . Paris: Les


participação na escola . Lisboa: Instituto de Inovação


Éditions d’Organisation, 1987.

Educativa, 1995b.









362
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

A formação de professores




polivalentes do Ensino Fundamental




no Brasil e na França:




balanço, perspectivas




363


Jean Hebrard



Ministério da Educação Nacional/EHESS/Paris/França







Resumo





A formação dos professores deve hoje fazer concernem à evolução da educação em âm-


frente a missões complexas e freqüentemente con-


bito mundial. É nessa perspectiva que tenta-

traditórias. No entanto, ela é o instrumento decisi- rei comparar aqui as grandes evoluções das

vo para o sucesso das evoluções em curso. Tentar políticas de formação em dois países que co-

definir as suas restrições implica situá-la nos con-


nheço bem, mas que são, evidentemente,


textos políticos de onde ela nasceu. A partir dessa


muito diferentes, pelo seu tamanho, pelas


análise, torna-se possível revisar as suas grandes


suas organizações políticas e administrativas,

problemáticas nas etapas anteriores da evolução


pelas suas histórias, pelos desafios aos quais


de nossos sistemas educativos. Dentro dessa pers-


se vêem confrontados: o Brasil e a França.


pectiva, a comparação entre o Brasil e a França é


particularmente esclarecedora. Limitar-me-ei a evocar apenas alguns dos


problemas que me parecem ser comuns: as ra-



zões da emergência de uma exigência crescen-


As políticas de recrutamento e de forma-


te de formação, as dificuldades que esses paí-


ção dos professores das escolas de Ensino


ses encontram para articular formação acadê-


Fundamental têm evoluído muito na maioria


mica e formação profissional, as contradições

dos países nestes últimos anos. A Declaração


que nascem das delicadas relações entre forma-


de Jomtiem, no final da década de 1980, tem


ção inicial, formação continuada e pesquisa em


contribuído para essa evolução, que afetou a


educação. No entanto, é importante, em primei-


maioria dos países signatários. O mesmo


ro lugar, situar bem os contextos nos quais es-

aconteceu com aqueles países agrupados na


sas problemáticas estão enraizadas.


OCDE, os quais aceitam as avaliações e as di-



retrizes desse organismo internacional. O re-


O contexto político e social


latório que a Comissão Jacques Delors reme-


teu à Unesco em 1996 reforçou essas orienta-


das novas exigências


ções. Certamente, essas profundas modifica-


de formação no Brasil

ções produziram-se em países cujos passados,



em matéria de educação, eram muito diferen-


e na França

tes. Assim sendo, cada um encontrou-se dian-



te de tarefas específicas. Entretanto, não se- Desde a última guerra mundial, os nossos

ria inútil tentar fazer um comparativo dessas dois países têm conhecido, quase que no mes-

evoluções, ainda que estas possuam um gran- mo momento, períodos de forte crescimento

de contraste, pois, por trás das políticas apa- econômico que foram acompanhados por uma

rentemente diferentes, inclusive opostas, si- intensificação do êxodo rural e do desenvolvi-



tuam-se problemas freqüentemente simila- mento rápido dos empregos urbanos (cresci-

res, bem como tendências de fundo que


mento do setor terciário). Ora, os nossos dois



países tinham herdado do século XIX sistemas tamente satisfizeram os meios católicos, mas não



educativos duais, pouco adaptados à formação permitiram que o ensino público, único suscetí-



desses novos atores da vida econômica: um en- vel de alfabetizar milhões de crianças das famí-



sino primário (universalizado na França, por lias mais desfavorecidas, encontrasse, no Brasil,


muito tempo lacunar no Brasil) destinado à al- a imagem que deveria ter sido a sua. É interes-



fabetização limitada da maior parte da popula- sante ressaltar que, entre o regime de Vargas e o



ção, um ensino secundário e superior (para os regime militar, no momento em que tudo, de


quais a França serviu amplamente de modelo, novo, voltaria a tornar-se possível, os meios mais



particularmente como pioneira da école influentes do Brasil (em particular, os intelectu-



nouvelle – escola nova – nos anos 1920-1930) ais) tenham escolhido apoiar um sistema dual



destinado à formação das elites recrutadas no (público/privado) mais do que um sistema pú-


meio das classes burguesas urbanas. blico universalizado. A partir daí, e até um perí-



No melhor dos casos, o pólo secundário1 só odo muito recente, a qualidade do ensino públi-



escolarizava entre 2 e 3% da população, mas, co não foi um problema prioritário no Brasil, na


em geral, o fazia visando à excelência. A forma- ○
medida em que as classes em ascensão social
ção dos seus professores colocava poucos pro- (que cresciam com o nascimento de uma classe

blemas, na medida em que dizia respeito a po- média muito ativa) tinham à sua disposição um

pulações culturalmente homogêneas. Forma- ensino privado de qualidade que havia tomado

dores universitários (responsáveis pela prepa- o lugar do sistema secundário público no mo-

ração para as licenciaturas de ensino), profes- mento em que este tinha começado a crescer e,

sores e alunos do secundário possuíam as mes- portanto, a perder seu caráter elitista.

mas origens culturais, dedicavam-se às mesmas Na França, a lei da obrigatoriedade escolar


leituras, compartilhavam as mesmas discus- de 1882 foi, muito cedo, respeitada. Daí resul-

sões. A licenciatura para o ensino, uma forma- tou um sistema público certamente ignorado

ção acadêmica de prestígio, era suficiente para pelas elites, mas muito presente no espaço pú-

legitimar os professores desse nível. blico e dotado de uma imagem muito poderosa.

Porém o pólo primário, por sua vez, conhe- As escolas normais transformaram-se em cen-

ceu, nos nossos dois países, sortes muito tros de formação, respeitados na medida em que

díspares. No Brasil, foi considerado, durante as primeiras constituíam um instrumento de



muito tempo, como algo acessório e abandona- ascensão social das camadas populares (um fi-

do à boa vontade das autoridades municipais ou lho de camponês podia, pela escola normal, che-

à dos estados da federação. O resultado foi a gar a ser professor do ensino primário; seu filho

constatação de situações totalmente díspares tinha grandes possibilidades de incorporar-se ao



que nenhuma organização federal, até estes úl- sistema secundário para nele tornar-se profes-

timos anos, veio a corrigir. O status dos profes- sor; e, com isso, seu neto podia ascender a car-

sores, seu nível de recrutamento e sua formação reiras que antes tinham acesso reservado, tais

permaneceram, durante muito tempo, anárqui- como Direito ou Medicina). Todavia, não é certo

cos. Apenas os estados mais ricos souberam que essas escolas normais tenham preservado

criar, graças a escolas normais estreitamente sempre a qualidade da formação. Sabemos que,

integradas na vida política e cultural, um na França, apenas a metade dos professores do



movimento de confiança na escola pública que ensino primário foi formada nas escolas nor-

poderia ter permitido ao Brasil avançar mais ra- mais, a outra metade entrou na profissão certa-

pidamente rumo a soluções eficazes. No mo- mente com um nível de qualificação equivalen-

mento decisivo, as arbitragens do regime de Ge- te (o brevet, ou seja, diploma de fim do Ensino

túlio Vargas em favor da liberdade de ensino cer- Fundamental até 1945 e, depois, com o





1
Na França, o ensino secundário recrutava seus alunos desde os 7 ou 8 anos de idade naquilo que se denominava petits lycées , permitindo,

assim, que as famílias burguesas evitassem as escolas comuns, as quais faziam parte da rede do ensino primário.

364
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

baccaleuréat), porém sem a menor formação. urbano (desde 1954, mais de 50% das comunas



É depois da última guerra mundial e com o possuem mais de 2.000 habitantes). É, portan-



crescimento econômico que caracteriza esse to, nessa interface entre mundo rural e mundo



período que profundas transformações sociais urbano que as necessidades por educação se


vêm afetar os nossos dois países e contribuem tornam as mais sensíveis: o nível primário



para modificar profundamente nossos sistemas mune-se de uma prolongação (o curso comple-



educativos. O nascimento das classes sociais mentar), que conduz os alunos até o nível do


“médias”, produzidas pelo crescimento do setor cours moyen (séries finais do Ensino Fundamen- 365



terciário das economias, e o aumento do papel tal). Essa profunda evolução que, na França,



dos executivos nas empresas criam novos reque- constitui o verdadeiro motor da democratiza-



rimentos de ensino. No Brasil, o regime militar ção do ensino, se faz com os professores


escolhe a rede de escolas privadas para oferecer polivalentes das escolas primárias e sem a mí-



às famílias preocupadas com a ascensão social o nima formação. Nesse período, o crescimento



instrumento que lhes permitirá promover a for- demográfico é tão forte que ele interdita toda



mação de seus filhos no nível exigido pelo rápi- ação voluntarista de formação: a duras penas


do crescimento de uma economia urbana em encontram-se os professores necessários para



pleno desenvolvimento. Assim, com esse instru- serem instalados na frente dos alunos, e não é

mento, as famílias encontrarão aquilo que pro- raro encontrar um recém-egresso do ensino se-

curam prioritariamente: nem tanto pedagogias cundário, três meses após os exames de final de

renovadas, mas um ambiente social preservado, curso (com 17 ou 18 anos de idade), ensinando

que, a seus olhos, é mais a criação do contexto uma turma do ensino primário. Aliás, é duran-

do qual seus filhos têm necessidade para ter su- te esse período que se inventa uma nova fun-

cesso na escola e para se incorporarem às ma- ção no sistema educativo: o orientador peda-

neiras de viver das elites. É interessante salien- gógico, um professor do primário, experimen-

tar que as classes médias, tanto no Brasil quanto tado, que é encarregado de fazer o acompanha-

na França, sempre acharam que as formas mais mento dos professores recentemente nomea-

clássicas de ensino (ou seja, aquelas que são her- dos, sem formação.

dadas do antigo ensino secundário elitista) são A partir da V República (1958), desenha-se

as mais eficazes. A formação de professores sur- uma nova política. O general De Gaulle está

ge, nas escolas privadas, como um problema se- convencido de que a escola pública pode for-

cundário com respeito à preservação de uma necer os quadros médios de que o país necessi-

homogeneidade social percebida como o prin- ta. Ele opta, então, por transformar a rede de

cipal instrumento da educação. De forma para- cursos complementares (assistida por mestres

lela, o ensino público, abandonado pelas classes polivalentes do ensino primário) numa verda-

médias, torna-se, progressivamente, na opinião deira rede de ensino secundário (assistida por

delas, um ensino de menor valor e para o qual professores especializados egressos do secun-

não é necessário aumentar a despesa pública.2 dário). 3 Essa reforma, que seria progressiva-

Na França, durante o mesmo período, o mente implantada, terminaria após sua morte,

crescimento econômico produz uma primeira em 1975. Ela é conhecida sob a denominação

transformação. Desde então, de país eminen- “reforma do colegial único”. Visava reconstruir

temente rural, a França se transforma num país um sistema público obrigatório unificado (dos





2
Essa análise tem de ser mais elaborada. Em função dos estados e dos municípios, constata-se que o ensino público pôde ser, durante esse

período, mais ou menos preservado, oferecendo assim, durante estes últimos anos, as bases mais ou menos sólidas para a sua renovação.

3
É interessante ressaltar que essa transformação se produz tendo, como pano de fundo, uma luta sindical tão forte que e inscreve na Guerra Fria:

os sindicatos do ensino primário francês são majoritariamente reformistas (ligados à social-democracia, representada na França pelo Partido

Socialista), os sindicatos do ensino secundário são, pelo contrário, majoritariamente revolucionários (e, portanto, muito ligados ao Partido

Comunista). A reforma gaulista vem então em apoio dos sindicatos comunistas e produz, em permanência, a minoração dos sindicatos reforma-

dos (essa política há de lembrar a posição muito específica da diplomacia da gestão de De Gaulle durante a Guerra Fria).

6 aos 16 anos), que incluía duas etapas: uma de sua disciplina (principalmente na Matemá-



escola primária (dos 6 aos 11 anos) e um cole- tica, em Ciências, na Lingüística, na Literatu-



gial (de 11 aos 16 anos). O sistema dual, herda- ra). Paralelamente, esse movimento se vê for-



do do século XIX, foi aparentemente suprimi- talecido pela implantação de uma formação


do. Com efeito, durante o mesmo período, o sis- continuada da qual muito se espera, em parti-



tema de ensino católico privado se viu cular, para os professores do colegial. De fato,



grandemente fortalecido (os salários são res- se as escolas normais se renovam, o mesmo não


ponsabilidade do Estado, com a condição de acontece com os setores universitários que for-



que a escola respeite o currículo público), ofe- mam em licenciaturas, docentes para os quais



recendo, assim, às famílias uma alternativa ao a Pedagogia continua sendo uma disciplina pri-



ensino público, de forma semelhante ao que mária e que estão convencidos de que um pro-


aconteceu com as escolas privadas no Brasil. fessor especializado deve, acima de tudo, co-



Além disso, a segregação geográfica que preva- nhecer bem o que ensina. O Ministério da Edu-



lece no novo urbanismo contribui rapidamen- cação francês, então, decide não atrapalhar es-


te para distinguir, de um lado, as escolas e colé- ○
sas sensibilidades e apoiar a formação conti-
gios dos bairros burgueses dos centros das ci- nuada mais do que a formação inicial universi-

dades e, do outro, as escolas e os colégios mui- tária, e cria, nos colégios, a competência peda-

to populares nas novas periferias urbanas, onde gógica necessária para a acolhida de novos pú-

as moradias de baixo custo (tanto imóveis bai- blicos oriundos dos meios populares.

xos e alongados, quanto edifícios altos) concen- Num segundo momento, quando a esquer-

tram as populações de imigrantes que, por sua da socialista assume a direção do governo, a

vez, vêm reforçar o crescimento. partir de 1981, uma série de importantes refor-

É por ocasião dessa importante transforma- mas conduz à necessidade de repensar a forma-

ção que todo o sistema de formação francês é ção. A nova política educativa encontra sua ex-

repensado. Num primeiro momento (de 1969 a pressão legislativa na lei de orientação de 1989,

1981), quando a direita permanece no poder que prevê uma formação longa, de massas, e

após os acontecimentos de 1968 e a saída do exige que nenhuma criança saia do sistema edu-

general De Gaulle, as escolas normais são com- cativo, após 16 anos de escolaridade, sem ao

pletamente reformadas. Até então, elas visavam menos uma qualificação de nível V (qualifica-

propiciar a alunos oriundos dos meios popula- ção profissional), e que pelo menos 80% de cada

res a formação acadêmica à qual não poderiam geração tenha acesso ao nível IV (que conduz

ter pretendido (elas preparavam, essencialmen- ao diploma de ensino secundário geral ou ao



te, para a obtenção do diploma de estudos se- diploma do ensino secundário profissional). A

cundários). A formação profissional estava li- lei também prevê um reajuste dos salários dos

mitada à descoberta dos instrumentos simples professores (todos os professores do primário



do ofício: livros escolares, técnicas da discipli- e do secundário – escola maternal, escola de En-

na. A partir de 1969, tais escolas centram-se sino Fundamental, colegial, liceu – serão recru-

apenas na formação profissional. É preciso in- tados ao nível de licenciatura – três anos de for-

ventar novas didáticas e novas pedagogias. A mação universitária – e receberão uma forma-

época era propícia. A educação é um dos temas ção profissional durante dois anos nos Institu-

mais trabalhados pelos movimentos que nas- tos de Formação dos Mestres – IUFM). Por últi-

ceram por todo o mundo durante os anos 1960. mo, a lei prevê um importante dispositivo de

É o papel dos novos professores da escola nor- avaliação nacional que engloba toda a escola-

mal e, também, dos departamentos de ciências ridade obrigatória, bem como uma profunda

da educação criados nas universidades (mais transformação da estrutura curricular (ciclos de



centrados na formação de adultos e, portanto, três anos), cujo objetivo é o de eliminar as


na formação de formadores). É também o pa- repetências e comprometer os professores



pel, na universidade, de alguns pesquisadores, numa pedagogia mais diferenciada. O domínio



em minoria, que optam por explorar a didática da linguagem oral e da escrita transforma-se no

366
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

âmago de todos os aprendizados. Por último, tar a uma formação longa para todos os alu-



realiza-se um esforço muito grande para alon- nos – demandam uma vontade política tão for-



gar a duração da Educação Infantil (que perma- te que se arrisca a tropeçar, com a dispersão



nece sendo não-obrigatória): 4 desde o final dos dos meios e dos esforços, num sistema de es-


anos 1980, a totalidade dos alunos de 4 e 5 anos cola fundamental mais desbaratado, na medi-



se encontram escolarizados; no final dos anos da em que é crescentemente municipalizado.



1990, são todas as crianças com 3 anos de ida- Os Cefam(s), criados experimentalmente em


de que são acolhidas e, hoje, metade das crian- alguns estados em 1983, e que vão estender-se 367



ças de 2 anos de idade toma o caminho da es- progressivamente ao longo de toda a década,



cola. As necessidades de formação explodem. tentam responder a todas as exigências ao mes-



O IUFM, inicialmente encarregado apenas da mo tempo. Lamentavelmente, as escolhas fei-


formação inicial e, depois, a partir de 1999, da tas anteriormente conduzem à coexistência de



formação inicial e continuada, tem de inventar realidades escolares totalmente heterogêneas.



novos dispositivos de formação. Para a forma- O Brasil do início dos anos 1990 dispõe, de fato,



ção inicial, os Institutos caracterizam-se pela de diversos sistemas escolares que coabitam em


sucessão de um primeiro ano que visa dotar espaços diferentes (oposição norte/sul) ou, às



cada estudante com uma “alfabetização profis- vezes, nos mesmos espaços (em particular, as

sional” séria, ou seja, com uma capacidade de megalópoles) e que incluem tanto o ensino pri-

ler com folga toda a literatura profissional e de vado quanto o ensino público. Satisfazer ao

escrever os principais tipos de textos necessá- mesmo tempo todas as necessidades, com as

rios para o exercício da profissão. É no fim des- restrições dos financiamentos disponíveis, num

se primeiro ano que um concurso irá selecio- momento em que a inflação interdita as ações

nar os estudantes do segundo ano, que se trans- de longo prazo, leva numerosos estados a orga-

formam em funcionários públicos estagiários. nizar seus próprios dispositivos, ao mesmo



O segundo ano é dedicado a perfazer a tempo que buscam, fora do Brasil, os financia-

polivalência dos jovens mestres e, por meio de mentos necessários (FMI, Banco Mundial etc.).

uma série de estágios, dos quais diversos com a Segundo o estado federado concernente, é um

efetiva responsabilidade pelo ofício, a iniciá-los ou outro objetivo que é prioritariamente visa-

nas práticas da ocupação, em contato com os do: valorização do antigo Magistério, utilização

“professores-formadores” (professores experi- de fundações que assumem a responsabilidade


entes, parcialmente desobrigados da turma). por programas de formação continuada, cria-



Por sua vez, a formação continuada, que é efe- ção de institutos estaduais, desenvolvimento de

tivada ao mesmo tempo pelos inspetores das institutos universitários especializados etc.

circunscrições e pelo IUFM, visa essencialmen- Paralelamente, assiste-se, na opinião públi-


te a fazer ingressar todos os professores na nova ca, a uma forte valorização da escola pública

pedagogia definida pela lei de orientação. (graças, em particular, aos movimentos



É só no final dos anos 1980 que o Brasil, associativos, sindicais ou políticos, sejam eles

como conseqüência de importantes mudanças de origem católica ou marxista). Entretanto, o


políticas que o país conhece e da promulgação projeto de reunificação de ambos os sistemas



de sua nova Constituição (1988), se encontra (privado e público) é raramente levantado, e as



realmente diante das opções políticas comple- classes médias, sempre crescentes, continuam

xas com as quais os países da Europa (em parti- a pensar que é preferível um sistema dual.

cular, a França) já se haviam confrontado. As Quando ele é formulado, o compromisso em



duas exigências – de universalizar a alfabetiza- favor das escolas públicas (mesmo naqueles

ção de base e de fazer passar a totalidade do sis- estados onde são os municípios que realmente

tema educativo de uma alfabetização elemen- mantiveram esse setor) continua sendo um ob-




4
Na França, a escolaridade obrigatória começa aos 6 anos de idade (primeiro ano da escola elementar), e não à idade de 7, como no Brasil.

jetivo em atenção às classes mais desfavoreci- um observador estrangeiro como eu, a necessi-



das, mais do que uma opção pessoal de educa- dade de formação, que tinha crescido de manei-



ção para seus próprios filhos. ra importante durante a primeira parte do decê-



Assim sendo, a exigência de formação defi- nio, mas que permanecia pulverizada entre a


ne-se de maneira bastante complexa. Ela pode multiplicidade de parceiros que estavam a car-



visar à melhoria das competências profissionais go dela e sujeita à boa vontade das



dos professores em exercício, já possuidores de municipalidades ou dos estados, aparece, cada


uma boa formação inicial (em geral, o Magisté- vez mais, como uma necessidade absoluta. Ela



rio) e dos quais se espera que sejam os media- dispõe dos instrumentos (os PCN) que tornam



dores entre o Ensino Fundamental tradicional e possível sua organização clara, visando objeti-



um ensino modernizado suscetível de favorecer vos explícitos. O debate nacional que cresceu em


uma escolarização longa e aberta para o gina- torno dos Parâmetros Curriculares permitiu, de



sial. Pode-se visar também à formação inicial de fato, que os múltiplos participantes que intervêm



jovens professores que irão, imediatamente de- na formação chegassem a um consenso (certa-


pois, desempenhar esse papel. Pode-se, ainda, ○
mente, não foi fácil) e que pudessem, depois,
tentar propiciar aos professores menos forma- apoiar-se num texto amplamente aprovado para

dos (professores leigos) a base mínima a que eles pensar, de uma maneira mais uniforme do que

deveriam ter tido direito. Mas, ao mesmo tem- no passado, o que podia ser a formação.5 A faça-

po, tem-se de recrutar professores para abrir es- nha efetuada nesse caso pelo governo federal foi

colas naqueles lugares em que nunca existiram a de criar uma representação suficientemente

(ou de onde há muito desapareceram), sabendo clara e poderosa dos objetivos da educação, para

que terão poucas probabilidades de receber um que ela pudesse ser aceita, sem reserva, pelos

salário equivalente ao salário mínimo. É claro estados e municípios e também por instituições

que o Plano Decenal de Educação para Todos, tais como as universidades e ONGs. A muni-

que responde, em 1993, ao engajamento do Bra- cipalização do Ensino Fundamental, que se ace-

sil à Conferência de Jomtiem, está especialmen- lerou durante esses mesmos anos, seguiu no

te atento a todas essas dimensões da formação; mesmo sentido, criando uma ligação direta, nova

dispõe, porém, de poucos meios de incorporar no Brasil, entre os municípios e o governo fede-

os municípios ou, até, os estados federados que ral que, acima das disparidades nacionais, ori-

demonstram as maiores necessidades dentro enta-se no sentido de uma maior unificação da


dessa difícil dinâmica. É certo que o esforço fei- política educacional brasileira e, portanto, faci-

to no âmbito do governo federal, nos anos se- lita o processo de formação.



guintes (LDB de 1996), para traçar mais especi- Certamente, a complexidade da iniciativa

ficamente as grandes orientações (graças, em brasileira ainda subsiste. À imensa iniciativa de


particular, aos PCN), para controlar de maneira elevar o nível dos professores com menos for-

mais firme as alocações financeiras para os mu- mação vem se acrescentar a iniciativa igual-

nicípios mais pobres e criar os meios para um mente importante de reorientação das práti-

reajuste dos salários dos professores (graças ao cas educativas capazes de fazer do sistema

Fundef ), bem como para exigir uma progressiva educacional público brasileiro um sistema de

homogeneização do recrutamento e da forma- formação de massas, que conduza cada crian-



ção (ao nível superior), torna possível o que não ça ao nível de uma alfabetização do tipo se-

era, na primeira metade da década dos 1990. Para cundário (autonomia no uso da escrita, utili-





5
Na França, foi preciso esperar até o ano de 2001 para que parâmetros curriculares fossem elaborados no modelo brasileiro. Até

aí, a França produzia apenas “programas” que definiam os conteúdos de conhecimento a serem adquiridos, sem fornecer nenhu-

ma orientação acerca da organização dos aprendizados. Tendo tido a oportunidade de participar, na qualidade de especialista

internacional, da iniciativa brasileira, a experiência que obtive pôde ser reinvestida de forma muito útil na iniciativa francesa. Nas

negociações que se desenvolvem atualmente em torno desses programas, é possível já enxergar que se reproduzem, na França,

os efeitos muito positivos que se produziram no Brasil, em particular, na área da formação inicial e continuada.

368
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

zação da escrita para construir conhecimen- meio de aulas magistrais, das disciplinas de re-



tos). Pode-se ver também, dentro desse imen- ferência da educação: Sociologia, Psicologia, His-



so esforço de formação, as premissas de uma tória da Educação...). Inversamente, pode-se



nova valorização do Ensino Fundamental pú- propor, nas faculdades de educação ou nos


blico, suscetível de reincorporar uma parte das IUFM, um treinamento profissional que, em ou-



classes médias que dele se afastaram para, as- tra época, caracterizava as escolas normais. Pa-



sim, aceitar novamente correr o risco e ter in- rece ser necessário hoje redefinir de maneira


teresse por ele. mais precisa o que se entende por formação aca- 369



Dentro dessa nova exigência de formação dêmica e por formação profissional.



que caracteriza o atual estado dos sistemas edu- No que se refere aos professores polivalentes



cativos de nossos dois países, quais são os prin- do Ensino Fundamental, é possível imaginar a


cipais obstáculos que nos corresponde superar? formação como um processo que deve obriga-



toriamente comportar diversos estágios. O pri-



meiro deles concerne à formação antes da es-
A articulação entre



pecialização. Todos concordam hoje que ela
a formação acadêmica e a

deve ser de nível universitário e conduzir o es-
formação profissional ○

tudante ao nível de uma licenciatura. De que,

então, se trata? É importante que esse estágio


Com certeza, esse é o problema mais impor-


seja visto como uma formação que permita ao


tante de toda formação inicial. Ele acontece na estudante dispor, numa área dada do saber, da

maioria dos países que recorrem a um recruta- capacidade de ler e escrever de maneira autô-

mento de professores de nível universitário.


noma, ou seja, da capacidade de poder consti-


Devemos lembrar que essa evolução foi, em tuir práticas de leitura e de escritura suscetíveis

grande medida, ligada às críticas feitas às anti- de permitir a análise das produções de uma área

gas escolas normais: estas só produziam pro- do saber. Em geral, os universitários são exce-

fessores adaptados a metodologias rígidas, de-


lentes acompanhantes para a aquisição dessa


finidas pelo uso restritivo de livros escolares competência, pois ela corresponde a uma de

simples demais para permitir a todos os alunos, suas principais atividades: a inquietude cientí-

sem exceção, ingressar numa alfabetização de fica na sua área e a elaboração de sínteses dos

êxito. Ao situar o recrutamento e a formação no


conhecimentos disponíveis.

nível universitário, esperou-se propiciar a cada O problema que aqui se coloca com os pro-

professor o domínio de sua competência pro- fessores polivalentes do Ensino Fundamental é



fissional, isto é, a possibilidade de adaptar, de aquele da transferência dessas competências


forma permanente, seus savoir-faire aos públi-


para a totalidade das áreas do conhecimento


cos que lhe fossem confiados. Ora, é amplamen- relativas à escola primária. Por exemplo, será

te sabido que os professores que trabalham na preciso propiciar licenciaturas polivalentes es-

universidade vêem sua carreira evoluir em fun- pecíficas para os professores do Ensino Funda-

ção de suas competências de pesquisa e que


mental? Trata-se, de fato, de um falso proble-


eles têm a tendência natural para reproduzir ma. A licenciatura permite adquirir atitudes

pesquisadores. A pergunta que se coloca então, intelectuais mais do que uma especialização. A

em todos os nossos países, é a seguinte: será


área na qual se exercem essas atitudes deve ser


que, no caso, as competências de pesquisa são


suficientemente específica para que o estudan-


capazes de oferecer a um professor a possibili- te tenha a possibilidade de assimilar as princi-



dade de dominar seu arcabouço profissional? pais problemáticas, mas será preciso que, na

Por trás desse debate, em si muito acadêmi-


maioria dos casos, ele espere pela pós-gradua-


co, escondem-se de fato práticas de formação ex-


ção para adquirir um conhecimento realmente


tremamente diversificadas. Não é forçosamente científico de uma parte dessa área. A licencia-

entre os agentes universitários que se desenvol- tura universitária deve ser hoje concebida como

vem as ações mais acadêmicas (transmissão, por


um mecanismo de aquisição de uma “alfabeti-



zação generalista” que se exerceu numa deter- sor a possibilidade de adaptar sua ocupação às



minada área do saber, mas que pode transferir- rápidas evoluções das missões que lhe são con-



se para outras áreas. O ideal seria que o estu- fiadas. Uma grande parte da formação continu-



dante licenciado pudesse ser um bom leitor de ada deve hoje ser confiada à escrita (seja ela


qualquer texto de divulgação, de qualquer cam- impressa ou informatizada).



po científico (por exemplo, páginas especia- O terceiro estágio de uma formação é o



lizadas dos grandes jornais e revistas). de acesso às práticas profissionais (formação


A partir daí, o segundo estágio da forma- inicial) ou de modificação das práticas pro-



ção, aquele de uma “alfabetização profissio- fissionais (formação continuada). Hoje sabe-



nal”, articula-se diretamente com o primeiro. mos melhor que as atitudes profissionais de



Os institutos de formação, quaisquer que se- base só podem ser aprendidas no exercício


jam eles, têm de, como missão primeira, en- da profissão. Não há nenhum curso teórico



sinar aos seus estudantes em formação inicial que possa ensinar a um jovem professor a



a capacidade de ler qualquer documento pro- maneira de construir uma relação de autori-


fissional e de elaborar sínteses de qualquer ○
dade com os seus alunos. Tal relação envol-
campo do conhecimento ligado à vida profis- ve milhares de ajustes, ao longo de uma hora

sional. Portanto, corresponde a esses institu- de aula, que constituem um mesmo número

tos selecionar as noções e os conceitos cuja de respostas a análises quase instantâneas de



aquisição é necessária para ingressar nessa s i t u a ç õ e s e m e v o l u ç ã o p e r m a n e n t e. A


literatura e, também, de estruturar as gran- ergonomia tenta atualmente abordar essa



des problemáticas que se situam no centro questão para múltiplas profissões, reconhe-

dos principais debates que aí se produzem. cendo, ao mesmo tempo, que, se se conse-

Esse é um trabalho muito específico, que tam- gue descrever esses processos especialistas,

bém pode envolver tanto os campos de co- ainda se está muito longe de saber como é

nhecimento a serem transmitidos (Lingüísti- que podemos transmiti-los de outra forma



ca, Matemática, História, Ciências, Literatu- que não seja pela repetição de tentativas, de

ra), quanto os processos de transmissão (psi- acertos e de erros. Sabe-se também que um

cologia, sociologia, didática dos aprendizados professor sem experiência raramente é capaz

etc.). O objetivo é de tornar o professor sus- de “ver”, durante um estágio junto de um



cetível de trabalhar permanentemente com a mestre mais antigo, quais são os atos que

literatura profissional que se desenvolve na produzem os efeitos pretendidos. A prática



sua área, ou seja, torná-lo particularmente ca- profissional é um processo tão complexo que

paz de descobrir, apenas pela simples leitura supõe muitos anos de experiência antes de

da literatura profissional, as novas maneiras poder ser um pouco objetivada.


de pensar seu trabalho e, inclusive, de inven- O que se tenta transmitir com maior fre-

tar práticas inovadoras. qüência hoje em dia, tanto na formação inicial



É interessante constatar como os professores quanto na formação profissional, são os proce-



recrutados sem nível universitário, isto é, sem a dimentos mais estáveis da vida profissional,

primeira etapa de alfabetização, seja na França ou aqueles que, em geral, constituem os marcos do

no Brasil, raramente atingem essa autonomia ante trabalho. É assim que, nos IUFM franceses,

a literatura profissional e ficam, em grande me- grande parte da formação profissional consiste

dida, dependentes de modelos de transmissão de em ensinar aos estudantes do segundo ano a


conhecimentos que não resultam da cultura es- arte de escrever uma “preparação”, isto é, o pre-

crita. Eles têm necessidade de ver fazer e de ouvir visível desenrolar de uma seqüência de apren-

dizer. Eles não sabem identificar, a partir de uma dizagem. É interessante observar que os profes-

leitura, aquelas ações profissionais que, de outro sores que ensinam esse savoir-faire são, em ge-

modo, poderiam efetuar. ral, professores especialistas numa disciplina



Essa dupla alfabetização (geral e profissio- (um matemático ensina a arte de fazer prepa-

nal) é a única capaz de oferecer a cada profes- rações de Matemática), enquanto o estudante

370
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

permanece sendo polivalente. O resultado mais lisar os efeitos desse novo dispositivo sobre os



freqüente são profundas defasagens entre a alunos e para estabelecer as etapas sucessivas.



tecnicidade pretendida pelo professor e as com- Esses procedimentos de formação também



petências disponíveis no estudante. Ainda as- supõem, por um lado, mestres capazes de as-


sim, esses marcos de trabalho são justamente similar rapidamente a literatura profissional



aqueles mais facilmente acessíveis na literatu- disponível sobre o tema explorado e, por ou-



ra profissional (nas revistas, nos manuais etc.). tro, mestres que não se sintam perturbados


Pode-se, contudo, pressupor que, se um profes- pelas ações elementares do ofício. Podemos 371



sor adquiriu a capacidade de conceber instru- ver, então, que tais procedimentos têm mais



mentos desse tipo, ele será capaz de utilizar chances de ter êxito na formação continuada



melhor aqueles que achará em outro lugar, já do que na formação inicial.


elaborados. Esse é, portanto, um aspecto não- Em suma, é claro que a formação chamada “te-



desprezível da formação inicial. Ele deve ser órica” e a formação prática são hoje duas vias de



também um aspecto importante da formação trabalho que evoluem em paralelo. Seria talvez in-



continuada, quando surgem outros instrumen- teressante extrair disso todas as conseqüências, em


tos que não aqueles que constituem a cultura particular na medida em que nos interessarmos na



tradicional da profissão. formação dos formadores. Os “alfabetistas” respon-

Em geral, deposita-se confiança nos está- sáveis pela formação teórica não farão nunca o tra-

gios para efetivar a transmissão daquilo que al- balho dos práticos aguerridos (mestres-formado-

guns chamam de a “pedagogia invisível”, ou res). Porém é crucial que eles sejam excelentes es-

seja, o conjunto de práticas da profissão que pecialistas da literatura profissional e que esta os

dizem respeito diretamente à perícia no ofício. remeta a realidades concretas nas quais terão ex-

Ora, devido à sua própria invisibilidade, essas periência. Com os universitários, a pesquisa per-

práticas não são transmissíveis nem nos está- mite freqüentemente obter uma experiência dire-

gios, nem em cursos teóricos. Os estágios em ta da vida das escolas e das turmas. Por sua vez, os

geral asseguram a formação num mínimo pro- mestres-formadores devem aprender a “falar” as

fissional vital, ou seja, algumas atitudes mais práticas invisíveis da profissão, de maneira a tor-

previsíveis da profissão. Eles são, certamente, nar possível compartilhar as experiências direta-

uma contribuição essencial, mas muito insu- mente vividas nas aulas. É essencial que eles per-

ficiente. Sabemos hoje que a formação para a maneçam, para uma parte importante do seu tra-

especialização depende do acompanhamento balho, como professores responsáveis de uma tur-



profissional em início de carreira e foge, por- ma. Essa é, para eles, a única forma de criar as con-

tanto, com maior freqüência, aos institutos de dições desse intercâmbio sobre a qualificação para

formação inicial. Alguns centros universitários a profissão.


especializados e algumas ONGs, no Brasil, fi- Uma das evoluções mais recentes das fun-

xaram-se como objetivo o de explorar essas no- ções do professor é aquela que consiste em

vas vias de formação. Na França, elas depen- confiar a ele menos a condução da seqüência

dem daquilo que se chama “dinâmica na cir- didática (que, com certeza, no futuro será

cunscrição” (animation en circonscription) e confiada a uma máquina) do que a interação



são colocadas sob a responsabilidade do ins- com o aluno singular ao longo de sua tarefa.

petor da circunscrição e da sua equipe de for- A qualidade da interação (análise do erro, re-

madores (em geral, dois a três mestres-forma- tomada da aprendizagem, explicitação das di-

dores). As práticas mais freqüentes consistem ficuldades, diálogo didático) certamente se



em colocar um grupo de professores diante de tornará o ponto mais crucial da formação, se



um dispositivo didático inovador. A primeira é que se deseja ter profissionais capazes de



fase é, portanto, uma fase de concepção de uma verdadeira diferenciação em sua ação.

preparos; posteriormente, numa segunda eta- Por enquanto, não sabemos como é que se

pa, a prática consiste em contatar esses mes- adquire esse tipo de qualificação num proces-

mos professores de maneira regular, para ana- so de formação.



A articulação entre a a pesquisa seja a melhor via de acesso para a



qualificação esperada. A França, de maneira to-


formação inicial, a formação


talmente experimental, está em via de explorar


continuada e a pesquisa em


a possibilidade de fazer evoluir o status de mes-


tre-formador7 para responder a essas exigências.


educação


A Universidade de Clermont-Ferrand inaugurou



A articulação entre a formação inicial e a um sistema de formação de mestres-formado-


formação continuada é a segunda das dificul- res, no nível do Diplôme d’Enseignement



dades com as quais os nossos sistemas educa- Supérieur Spécialisé (DESS),8 que os inicia na



tivos se confrontam hoje. Ela se coloca com tan- análise ergonômica das práticas profissionais.



ta força que, para uma parcela do pessoal, a for- O interesse da formação continuada, quan-


mação continuada pode ser a primeira forma- do se visam aspectos mais complexos da



ção de que participa. É o caso de muitos pro- profissionalização, tem possibilitado levar ao



fessores leigos no Brasil; é também o caso da- desenvolvimento de certas experiências de for-


queles professores que entraram na profissão ○
mação inicial particularmente originais. É o
na condição de suplentes, na França.6 caso, na França, de formações atualmente de-

Evidentemente, a formação continuada tor- senvolvidas na Guiana Francesa (um departa-



nou-se atualmente um excelente dispositivo de mento da França onde o recrutamento perma-



formação profissional. Com efeito, ela se apóia nece deficitário), que visam colocar num mes-

numa primeira experiência da profissão e per- mo cargo duas pessoas não-formadas. Cada um

mite ao jovem professor basear-se na sua baga- dos membros dessa “dobradinha” passa, de for-

gem profissional para analisá-la e melhorá-la. ma alternada, de uma situação de professor en-

Entretanto, tal formação supõe a existência de carregado de turma à situação de estudante do



formadores de altíssima qualidade e centro de formação. O ritmo das alternâncias



freqüentemente exclui professores de índole é, em geral, de três meses em cada uma das si-

universitária, que têm pouca experiência com a tuações. A duração total da formação (para um

vida em sala de aula. É claro que o formador- recrutamento após dois anos de estudos uni-

modelo deve ser, nesse caso, um professor mu- versitários) é de três anos. Esse sistema parece

nido de boa experiência profissional no âmbito ser muito apreciado pelos estudantes. No en-

da escola de Ensino Fundamental (se é que ele tanto, para os formadores, a tentação de só se

forma professores para esse nível) e que, além empenharem no terceiro estágio da formação e

disso, tenha adquirido uma formação nas prin- de menosprezarem a alfabetização geral e pro-

cipais didáticas bem como nas áreas de conhe- fissional é forte. Se a inserção no trabalho se

cimento de referência da educação. Dentro des- processa com maior rapidez, não é certo que,

sa perspectiva, utilizam-se freqüentemente an- no longo prazo, as bases assim adquiridas per-

tigos professores que adquiriram formação em mitam ao professor ter acesso à autonomia pro-

nível de pós-doutorado. Todavia, não é certo que fissional que atualmente todos procuram.





6
É o que se observa com muita freqüência no departamento da Guiana Francesa.

7
Na França, um Instituteur-Maître-Formateur – IMF (NT Professor de pré-escola ou de escola primária que ensina nos centros de formação de

professores) é um professor com pelo menos seis anos de experiência na profissão e que tem o diploma Certificat d’Aptitude aux Fonctions

d’Instituteur-Maître-Formateur – CAFIMF [Certificado de Aptidão para as Funções de IMF]. Esse certificado é obtido após a defesa de uma

monografia profissional e de uma prova de análise e de conselho da atividade de um professor estagiário. Os IMF são, em parte, liberados

das atividades docentes para trabalhar nos centros de formação, mas mantêm pelo menos dois terços de sua carga normal. Eles podem se

tornar Conselheiros Pedagógicos de uma Circunscrição – CPC. Nesse caso, eles estão capacitados a se tornarem adjuntos de um Inspetor

da Educação Nacional – IEN, que é encarregado de uma circunscrição. Uma circunscrição é um conjunto de escolas colocadas sob a

autoridade do IEN, que é responsável pela avaliação dos professores e pela sua formação. Em geral, um inspetor trabalha com 280 a 300

professores. Ele dispõe de uma equipe de circunscrição composta por uma secretária, e dois conselheiros.

8
O DESS é um diploma universitário de 3 e Cycle (análogo ao Diplôme d’Études Approfondies – sigla DEA, em francês), mas que tem uma

objetivação profissional e, portanto, não permite, como o DEA, preparar uma tese de doutorado.

372
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

Um dos principais problemas da formação to do referido estágio. Talvez seja necessário



continuada é hoje, com certeza, o de negligen- simplesmente aceitar que esse aspecto da for-



ciar os primeiros estágios de um dispositivo mação seja relegado a um acompanhamento



completo de formação, em particular quando dos primeiros anos de carreira profissional.


essa formação visa prioritariamente a uma ele- Com efeito, o principal perigo refere-se direta-



vação na qualificação de professores que tive- mente aos formadores. Estes podem ser condu-



ram pouco ou nenhuma formação inicial. Está zidos a centrar suas atividades apenas sobre a


claro que os professores leigos ou, inclusive, formação inicial e, a partir daí, perder os bene- 373



aqueles que já atingiram o nível de Magistério, fícios do contato regular com os práticos expe-



e que vão hoje, no Brasil, efetuar a formação rientes que, para esses formadores, constituem



para eles exigida pela Lei de Diretrizes e Bases, um princípio de realidade que se opõe às su-


encontram-se exatamente nessa situação. Eles gestões que são levados a oferecer. Nesse senti-



continuam a lidar de maneira difícil com a lite- do, pode-se considerar que a prática regular de



ratura profissional e se sentem incomodados atividades de formação continuada constitui a



quando se trata de sintetizar as informações melhor formação possível para um formador de


oferecidas. Assim sendo, a tendência é a de formadores. Num certo sentido, ela vem com-



abandonar essa alfabetização para retornar à pletar seu trabalho de inquietude científica na

análise das práticas profissionais. Não é certo área que é sua, bem como seu trabalho de pes-

que seja disso que eles mais necessitam. Reen- quisa, se ele for universitário.

contramos na França problemas idênticos A implantação, em algumas Faculdades de



quando se deseja completar com uma forma- Educação das universidades brasileiras, de cen-

ção continuada os conhecimentos das discipli- tros consagrados à formação continuada dos

nas dos professores. Na medida em que, entre professores da escola fundamental é, a esse res-

nós, a formação continuada exige uma candi- peito, um avanço muito importante. Na Fran-

datura por parte do professor, acontece, com ça, os IUFM assumiram recentemente (em

muita freqüência, ser impossível encontrar vo- 1999) a responsabilidade pela formação conti-

luntários que aceitem atualizar seus conheci- nuada. Eles ainda não integraram essa dimen-

mentos em Matemática, em Lingüística ou em são às suas atividades e ainda diferenciam em



História. As propostas de formação que visari- demasia as pessoas que trabalham com a for-

am a alfabetização geral ou a alfabetização pro- mação inicial daquelas que assumem a forma-

fissional, e que foram mencionadas neste tra- ção continuada. Podemos considerar que a for-

balho, seriam então ainda menos acolhidas. mação inicial sofre de bastante irrealismo e que

É possível afirmar hoje que o principal pe- os estágios dos estudantes que cursam o segun-

rigo que ronda a formação continuada é o de do ano de formação não são realmente condu-

fechar-se em volta de um aspecto limitado do zidos pelo instituto de formação.



processo de formação, que seria pouco capaz A articulação entre formação e pesquisa em

de construir a necessária autonomia profissio- educação coloca o mesmo tipo de problemas.



nal, ou seja, a construção de progressões de Durante muitos anos, privilegiou-se a visão um


aprendizagens-modelo e a análise das supostas pouco romântica da “pesquisa-ação”, fazendo



práticas didáticas. com que todo professor que buscasse inovar



A formação inicial, à medida que se torna fosse um pesquisador em potencial. Está claro

de nível universitário, enfrenta um perigo bem hoje que nós não podemos desperdiçar os pou-

diferente. Certamente, ela pode negligenciar o cos recursos para pesquisa, de que dispomos no

terceiro estágio da formação (a profissio- campo da educação, para substituir as pesqui-



nalização propriamente dita) não porque tal sas de que realmente temos necessidade, por

formação possa não desejar colocá-lo em prá- ações disfarçadas de formação profissionali-

tica, mas porque os estudantes na formação zante. Contudo, é pertinente que sejam os pró-

inicial não possuem nunca a experiência pro- prios pesquisadores os encarregados de colo-

fissional que lhes permitiria tirar pleno provei- car os resultados de suas pesquisas à disposi-

ção, tanto dos formadores de formadores quan- bém, à qualificação para todos), bem como para



to dos professores cursando uma formação. Isso permitir que o Ensino Fundamental prepare mais



é perfeitamente possível a partir do segundo e mais alunos para uma escolarização longa. O fato



estágio do dispositivo (a alfabetização profissi- de que essa evolução se faça no próprio âmbito dos


onal), na medida em que um professor deve sistemas públicos de educação deveria permitir a



aprender a ler e a utilizar os resultados de pes- estes últimos reconquistar – ou não perder – as fa-



quisas divulgados. Todavia, para o pesquisador, mílias das camadas médias que, desde meio sécu-


a qualidade da divulgação da qual é capaz vai lo atrás, têm-se transformado nos principais con-



depender, em grande parte, do conhecimento sumidores de educação. A presença de seus filhos



que ele pôde adquirir das representações de que nas escolas públicas é o único meio de evitar que



dispõe o público ao qual ele destina os conhe- os sistemas educativos reproduzam e ampliem


cimentos que produziu. Novamente aí, uma segregações sociais inaceitáveis. As escolhas que



prática assídua da formação continuada é a serão feitas deverão fornecer às instituições de for-



única capaz de permitir-lhe transformar-se mação as orientações capazes de permitir a esses


num bom divulgador. ○
sistemas conduzir, para novas práticas pedagógi-
cas, mais exigentes e mais complexas, um pessoal

que já foi há algum tempo recrutado, ao mesmo


Conclusões

tempo em que forma jovens estudantes recruta-


As despesas destinadas à formação serão cer-


dos em nível universitário avançado. Não dispo-


tamente um dos fatores em jogo mais importan- mos ainda de instrumentos suscetíveis de satisfa-

tes dos orçamentos das políticas educativas no zer a todas essas exigências. Cabe às instituições

decorrer dos próximos anos. Esse será o preço a de formação, tanto quanto aos poderes públicos,

pagar para alcançar a democratização do ensino orientar sua ação, no sentido de encontrar rapida-

(um acesso não apenas à alfabetização, mas, tam- mente o meio de constituí-los.






Organização dos sistemas




de ensino e formação docente






Miriam Schlickmann

Secretária de Educação do Estado de Santa Catarina/Vice-Presidente do Consed







Com a aprovação do Plano Nacional de emergiram como importantes atores no de-


Educação e a recente definição das diretrizes


senvolvimento das políticas de Educação Bá-


curriculares para formação inicial de profes- sica. Na verdade, do ponto de vista institucio-

sores da educação básica, o Brasil está com- nal, os estados e municípios assumiram uma

pletando a primeira geração de reformas edu- posição de liderança no processo de mudan-


cacionais iniciadas após a redemocratização


ças. Como fruto dessa luta pela democratiza-


do país. Esse movimento teve dois ciclos bem ção e descentralização das políticas educacio-

distintos: o primeiro estendeu-se de 1983, nais, que contava com forte apoio de organi-

com a posse dos governadores eleitos pelo zação da sociedade civil, e como decorrência

voto popular, a 1993-1994, com a mobilização direta da renovação política, que começou

nacional em torno do Plano Decenal de Edu- pelos governos estaduais e municipais, em



cação para Todos. 1986 seriam criados o Consed e a Undime. Em



Nesse período, os estados e municípios 2001, portanto, essas duas instituições come-

374
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

moraram 15 anos. Durante esse período, ti- dadania. Em segundo lugar, pretendeu-se



veram uma participação destacada na lide- comprometer o Estado com o adequado pro-



rança das reformas. vimento desse direito, mediante vinculação



Ao longo da década de 1980 e da primei- de parcela das receitas públicas para o finan-


ra metade dos 1990, alguns sistemas estadu- ciamento da educação pública. As reformas



ais e municipais de ensino se destacaram por educacionais terão, portanto, como objetivo



iniciativas inovadoras de gestão e de organi- prioritário assegurar a universalização do


zação pedagógica, transformando-se em pre- atendimento escolar. 375



cursores e em referência nacional para as re- O cumprimento dessa meta, no entanto,



formas que seriam desencadeadas a partir de seria postergado pela desarticulação entre as



1995, quando teve início o segundo ciclo. Os três esferas de governo, problema que só co-


estados e municípios continuariam a desem- meçaria a ser resolvido com a aprovação da



penhar um papel central, mas a liderança das Emenda nº 14 e a criação do Fundef. Portan-



reformas foi assumida pelo Ministério da to, grande parte das energias que poderiam



Educação. ter sido canalizadas para fazer as reformas


Essa nova safra de reformas institucionais, avançar foram consumidas pelos impasses



consubstanciadas por meio da Emenda Cons- gerados pela quase interminável disputa tra-

titucional nº 14, da criação do Fundef (Lei nº vada em torno do controle de recursos da



9.424/96) e da LDB (Lei 9.394/96), incorpo- educação. O próprio processo de descen-


rou as lições, as experiências e as inovações tralização, que havia tido forte impulso no

trazidas pelas iniciativas pioneiras de alguns início dos anos 1980, acabaria bloqueado até

estados e municípios. A nova Lei de Diretri- meados dos anos 1990. O Fundef, como sabe-

zes e Bases da Educação Nacional, sobretu- mos, deu novo alento à municipalização do

do, beneficiou-se largamente das mudanças Ensino Fundamental.



que vinham sendo implementadas pelos sis- A descentralização está associada a outro

temas estaduais e municipais de ensino. A fle- componente fundamental dessa primeira ge-

xibilidade e o estímulo a formas inovadoras ração de reformas, que é a reorganização dos



de organização e gestão dos sistemas de en- sistemas de ensino. Ao chegar a este ponto,

sino, que constituem as características bási- pretendo confrontar mais diretamente o tema

cas da LDB, refletem tendências que já esta- desta sessão que, de acordo com a minha in-

vam presentes desde a década de 1980. terpretação, problematiza a relação entre a



Podemos afirmar, portanto, que a LDB ins- “organização dos sistemas de ensino e a for-

tituiu e legitimou princípios que já haviam mação docente”.



sido incorporados à organização dos sistemas Se observarmos o que aconteceu na déca-


de ensino. Todavia, é preciso reconhecer que da de 1990, vamos verificar que profundas

foi a partir da LDB e do Fundef que aconte- mudanças estruturais e organizacionais foram

ceu um verdadeiro surto de mudanças e ino- promovidas pelos sistemas de ensino. E, até

vações em todo o país. O panorama atual é, onde consigo enxergar, essas mudanças tive-

portanto, muito diferente daquele observado ram pequena, para não dizer nenhuma, reper-

há cinco anos. Essas mudanças na organiza- cussão nos programas de formação docente,

ção dos sistemas de ensino, conforme preten- seja ela inicial ou continuada. Não quero di-

do argumentar, têm profundas conseqüências zer com isso que tenha havido ou que haja

– ou, pelo menos, deveriam ter – para a for- descaso em relação ao problema da formação

mação de professores. de professores. Ao contrário, essa tem sido



No que consistiu essa primeira geração de uma preocupação permanente.



reformas educacionais pós-redemocratização No entanto, é muito mais fácil para qual-


do país? Em primeiro lugar, prevalece a ênfa- quer gestor educacional reorganizar o siste-

se na constitucionalização do direito de to- ma de ensino do que promover mudanças na



dos à educação como um direito básico de ci- área de formação, sobretudo a formação ini-

cial, a cargo de instituições externas aos sis- uma estratégia inteligente que trabalha os



temas de ensino e com elevado grau de auto- PCN dentro de um programa estruturado de



nomia, como é o caso das universidades. Não capacitação docente. Creio que os resultados



é surpresa, portanto, constatar que tem havi- dessa experiência são bastante encorajadores,


d o u m d e s c o m p a s s o e n t re a s m u d a n ç a s sobretudo por comprovar a viabilidade de



organizacionais e curriculares e a formação parcerias entre os sistemas estaduais e muni-



docente. cipais de ensino e as instituições formadoras.


Insisto, mais uma vez, que essa tem sido Esse trabalho também tem sido facilitado pela



uma preocupação central nos últimos anos. qualidade das propostas e dos materiais de-



Todavia, tem sido muito mais difícil avançar senvolvidos pelo Ministério da Educação.



na área de formação de professores do que nas Todavia, é preciso ainda muito esforço


demais reformas. É bem verdade que tem ha- para que se estabeleça uma fina sintonia en-



vido certa coerência nos passos que têm sido tre as mudanças organizacionais promovidas



dados, pois a definição das diretrizes e dos pelos sistemas de ensino, as diretrizes e os


parâmetros curriculares nacionais para as três ○
parâmetros curriculares e as atividades de
etapas da Educação Básica precedeu, como capacitação docente. O Censo Escolar apre-

não poderia deixar de ser, a elaboração das di- senta um retrato, ainda que superficial, da di-

retrizes curriculares para formação inicial de versidade existente hoje na organização dos

professores. Essas diretrizes delineiam um sistemas de ensino.


perfil profissional requerido pela nova pro- Em 2000, cerca de 38% dos alunos do En-

posta organizacional e curricular da Educa- sino Fundamental estavam matriculados em



ção Básica. escolas que implantaram o sistema de ciclos


No entanto, não podemos esperar até que ou mais de uma forma de organização, en-

as instituições formadoras implementem as quanto 62% permaneciam no sistema tradi-



novas diretrizes curriculares definidas pelo cional seriado. A organização do Ensino Fun-

Parecer CNE/CP nº 9/2001 e comecem a for- damental em ciclos é mais comum na Região

mar professores com um novo perfil. Numa Sudeste, onde cerca de 57% dos alunos já par-

previsão bastante otimista, esses profissionais ticipam desse modelo, enquanto 28% seguem

deverão começar a sair das Faculdades de no sistema seriado e 15% em escolas que com-

Educação em 2005. Portanto, o novo modelo binam mais de uma forma de organização. O

de formação inicial deverá demorar para pro- sistema de ciclos também avançou em alguns

duzir impacto nos sistemas de ensino. estados de outras regiões, como Ceará, Rio

Devemos pensar, assim, em políticas de Grande do Norte, Amapá, Mato Grosso e Mato

formação continuada que dêem conta de ca- Grosso do Sul.


pacitar em serviço os professores que estão Paralelamente à implantação de ciclos, al-



na ativa. São esses profissionais que estão guns sistemas de ensino decidiram ampliar o

sendo pressionados a desenvolver a nova pro- Ensino Fundamental para nove anos, anteci-

posta curricular para as diferentes etapas da pando-se à diretrizes do Plano Nacional de


Educação Básica. O programa Parâmetros em Educação. Essa medida tem sido incentivada,

Ação é um exemplo das alternativas que de- obviamente, pelo critério de distribuição de

vemos explorar e expandir. Creio que não des- recursos do Fundef. A ampliação para nove

merece essa iniciativa reconhecer que ela veio anos e a redução da idade de ingresso para 6

como resposta à percepção de que os Parâme- anos permitem a esses sistemas de ensino au-

tros Curriculares Nacionais não estavam sen- mentar o número de matrículas e, com isso,

do apropriados e incorporados pelos sistemas receber mais recursos.



de ensino porque muitos professores não es- A organização do Ensino Fundamental em


tavam capacitados para desenvolver a nova ciclos aparece associada a diferentes propos-

proposta curricular. tas pedagógicas nos sistemas de ensino que



Para remediar esse problema, criou-se implantaram essa medida. Em São Paulo, por

376
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas

exemplo, o Ensino Fundamental foi organiza- tema-chave da segunda geração de reformas



do em dois ciclos de quatro anos, combina- educacionais que terão lugar nos próximos



dos com a adoção do regime de progressão anos no Brasil. Essas reformas serão indispen-



continuada ou de promoção automática. Essa sáveis para que as metas traças pelo PNE se-


mudança foi precedida de um processo de re- jam efetivadas ao longo desta década.



organização da rede escolar, que separou fi- A primeira onda de reformas promoveu



sicamente o primeiro segmento do Ensino como prioridade a universalização do aten-


Fundamental (1ª a 4ª série) do segundo seg- dimento escolar. Para garantir o direito de 377



mento (5ª a 8ª série). todos à educação, foram enfrentados os pro-



Já no Ceará, a proposta é organizar o En- blemas do financiamento da educação, da dis-



sino Fundamental em três ciclos, mudança tribuição de competências e responsabilida-


acompanhada da sua extensão para nove des entre as três esferas de governo e da or-



anos. Encontramos ainda sistemas de ensino ganização dos sistemas de ensino.



que mantêm apenas o tradicional Ciclo Bási- A nova onda de reformas educacionais, na



co de Alfabetização, que em geral congrega as qual de certa forma o Brasil já está inserido


duas primeiras séries do Ensino Fundamen- desde meados da década de 1990, pois faz par-



tal. É o caso do Paraná, um dos Estados que te de uma tendência internacional, define

foi pioneiro na adoção dessa política, no iní- como prioridades a garantia de eqüidade de

cio dos anos 1980. oportunidades de aprendizagem e a melho-


Existe, portanto, uma variedade significa- ria da qualidade do ensino. A equalização do



tiva de experiências que estão sendo desen- financiamento, compatível com um padrão

volvidas por sistemas estaduais e municipais mínimo de qualidade, é uma precondição. O


de ensino. A organização em ciclos é uma ten- foco das políticas, portanto, passa da alocação

dência que ganhou velocidade nos últimos de recursos para os resultados do processo de

anos, graças à flexibilidade assegurada pela ensino-aprendizagem.



LDB. Essa política, no entanto, tem profun- E é nesse sentido que a profissionalização

das implicações pedagógicas. Na verdade, o do Magistério assume uma importância vital.



sistema de ciclos implica a reorganização Se se espera que o(a) professor(a) assuma res-

curricular. Uma das dificuldades mais óbvias ponsabilidade pela aprendizagem dos alunos,

é a substituição dos livros didáticos, desen- é indispensável que ele (a) seja munido dos

volvidos para atender o sistema seriado. recursos necessários para atender a essa ex-

Mas é na área da formação de professores pectativa. O profissionalismo que o Magisté-



que reside o maior desafio. Capacitar os pro- rio requer deve contemplar competência pe-

fessores para trabalhar de acordo com a nova dagógica, conhecimento e valores.


proposta pedagógica e curricular é um impe- Embora todos nós tenhamos uma idéia

rativo para que as mudanças não sejam ape- aproximada das competências e habilidades

nas formais. Essa é uma preocupação central que constituem requisitos básicos de um

hoje dentro do Consed. Para conhecer algu- professor eficiente, certamente nenhum de

mas experiências que possam inspirar alter- nós tem uma receita pronta de como formar

nativas nessa área, o Consed estará promo- esse profissional. Certamente também não

vendo em breve uma missão técnica de Secre- encontraremos uma resposta satisfatória das

tários de Educação à Espanha, Inglaterra e instituições formadoras. Da mesma forma,


França. O objetivo será especificamente co- temos ouvido e repetido o chavão de que a

nhecer programas e políticas na área de for- educação para o século XXI requer do pro-

mação docente. fessor diferentes habilidades e conhecimen-



Creio que a formação inicial e continuada tos. Todavia, a definição desse perfil é ainda

de professores, que poderíamos associar ao muito vaga.



tema mais amplo da valorização e da profis- Finalmente, está em voga a idéia de que,

sionalização do Magistério, tornar-se-á um para atender às novas exigências que recaem



sobre ele, o professor deve cultivar um conhe- vimento das competências que habilitam para



cimento profundo e sofisticado sobre a disci- o Magistério.



plina que lhe compete lecionar. Formação es- O desenho do novo modelo de formação



pecífica para o Magistério, ou seja, competên- inicial é coerente com as Diretrizes, com os


cia pedagógica, tem sido reputada por alguns Parâmetros Curriculares Nacionais e com a



como requerimento secundário. Essa visão nova concepção integrada da educação bási-



simplista e distorcida precisa ser confronta- ca, assentada pela LDB. No entanto, esse mo-


da, antes que se torne um novo senso comum. delo não responderá adequadamente às ne-



Creio que as novas diretrizes nacionais cessidades da educação básica se as institui-



para formação inicial de professores respon- ções formadoras não estiverem atentas às



dem bem a esse desafio, ao reafirmar catego- novas formas de organização adotadas pelos


ricamente que a formação pedagógica é indis- sistemas de ensino. Ou seja, é essencial que



pensável. Essa orientação é clara no Decreto seja estabelecida uma sintonia fina entre os



nº 3.276/99, alterado pelo Decreto nº 3.554/ sistemas de ensino e as instituições formado-


2000, que regulamenta a formação básica co- ○
ras em cada unidade da federação.
mum que, do ponto de vista curricular, cons- O Consed vem dialogando com o Conse-

titui o principal instrumento de aproximação lho de Reitores das Universidades Brasileiras



no processo de formação dos professores das (Crub) com o objetivo de criar canais institu-

diferentes etapas da educação básica. cionais que favoreçam essa indispensável in-

Essa regulamentação foi interpretada pelo tegração entre as universidades e os sistemas



Parecer nº 133/2001, da Câmara de Educação de ensino. Tem havido, por parte do Crub,

Superior do Conselho Nacional de Educação. uma boa vontade muito grande em trabalhar

De acordo com o entendimento firmado pelo em conjunto com os sistemas de ensino na



CNE, a formação de professores para atuação implementação da nova proposta de forma-



multidisciplinar terá de ser oferecida em cur- ção inicial. Essa integração também é alta-

sos de Licenciatura Plena, eliminando-se por- mente desejável em relação à formação con-

tanto a possibilidade de uma obtenção medi- tinuada. As universidades, sobretudo as pú-



ante habilitação. Portanto, foram bloqueados blicas, têm uma enorme contribuição a dar

os atalhos que levavam ao Magistério pessoas para a melhoria dos sistemas de ensino.

com escassa formação pedagógica. Finalmente, a descentralização da educa-


As Diretrizes Curriculares para a Forma- ção básica não deve ser uma desculpa para

ção Inicial de Professores da Educação Bási- que estados e municípios não trabalhem em

ca adota uma abordagem que enfatiza o de- regime de colaboração na área de formação

senvolvimento das competências necessárias docente. Creio que esse deve se tornar um

à atuação profissional, integrando os conteú- tema prioritário na agenda do Consed e da



dos das áreas de ensino da educação básica à Undime, bem como das Secretariais Estadu-

formação pedagógica. Portanto, a formação ais e Municipais de Educação. Sem essa cola-

pedagógica não é uma camisa que será vesti- boração, recursos preciosos continuarão sen-

da sobre a formação específica, mas parte do gastos em atividades de capacitação de



constitutiva de todo o processo de desenvol- duvidosa validade.



















SIMPÓSIO 26

FORMAÇÃO DE PROFESSORES
E INCLUSÃO DIGITAL
Cláudio Francisco de Souza Salles

Luis Huerta

379
Formação de professores e inclusão




digital: a experiência do ProInfo





Cláudio Francisco de Souza Salles



Seed/MEC







Implantado a partir de 1997, o Programa Nacio- dades, em programas e cursos que favoreçam


nal de Informática na Educação (ProInfo) deu iní- aos interesses locais.



cio ao processo de universalização do uso das no-


O sucesso desse programa depende funda-


vas tecnologias de informática e telecomunicações mentalmente da capacitação dos recursos huma-



nos sistemas escolares públicos e à introdução de nos envolvidos com sua operacionalização. Ca-

inovações pedagógicas e gerenciais nas escolas.


pacitar para o trabalho com novas tecnologias de
Seu objetivo principal é promover o desenvol- informática e telecomunicações não significa ape-

vimento e o uso pedagógico das novas tecnologias nas preparar o indivíduo para um novo trabalho

de informática e telecomunicações e também docente. Significa, de fato, prepará-lo para o in-


utilizá-las como ferramentas para alavancar um


gresso em uma nova cultura, apoiada em tecno-


processo de inovação em todos os sentidos, den- logia que suporta e integra processos de interação

tro do ambiente escolar, visando: e comunicação.


• melhorar a qualidade do processo de ensino-


A capacitação de professores para o uso das


aprendizagem;

novas tecnologias de informação e comunicação


• propiciar uma educação voltada para o pro- implica redimensionar o papel que o professor

gresso científico e tecnológico; deverá desempenhar na formação do cidadão do



• preparar o aluno para o exercício da cidada- século XXI. É, de fato, um desafio à pedagogia tra-

nia numa sociedade desenvolvida, dicional, porque significa introduzir mudanças no


processo de ensino-aprendizagem e, ainda, nos


• valorizar o professor.

modos de estruturação e funcionamento da es-


Partindo desses pressupostos, a importância


cola e de suas relações com a comunidade.


do programa para o desenvolvimento da informa-


Os professores destinados à formação dos


tização da escola pública destaca-se principal-


multiplicadores serão selecionados em função de

mente quanto aos aspectos de:


sua qualificação profissional em informática e


• apoio aos estados na informatização de suas


educação. Os demais – multiplicadores e aqueles


redes de ensino;

que atuarão em salas de aula – deverão ter um


• oportunização de acesso e familiarização dos perfil que os leve a ser:



alunos do Ensino Fundamental e Médio da • autônomos, cooperativos, criativos e críti-


rede pública com as novas tecnologias de


cos;

informática, numa dinâmica educacional que


• comprometidos com a aprendizagem per-


poderá favorecer o surgimento de novas ha-

manente;

bilidades e competências;

• mais envolvidos com uma nova ecologia


• valorização e atualização de milhares de pro-

cognitiva do que com preocupações de or-


fessores com a aprendizagem de novos conhe-


dem meramente didática;


cimentos e técnicas para a melhoria de sua


prática pedagógica e para o desenvolvimento • engajados no processo de formação do in-



de projetos e atividades com seus alunos, ou, divíduo para lidar com a incerteza e a com

a complexidade na tomada de decisões e


ainda, para o aperfeiçoamento dos modelos


de gestão escolar, que podem ser construídos com a responsabilidade daí decorrente;

de acordo com a realidade de cada contexto; • capazes de manter uma relação prazerosa

• utilização dos equipamentos pelas comuni- com a prática da intercomunicação.


380
SIMPÓSIO 26
Formação de professores e inclusão digital

Internet: educação informal




e formação de professores





Luis Huerta



INCITE, Inversiones en Ciencia y Tecnologia e INVENCION, Aplicaciones en Ciencia y Educación/Chile




381








Resumo



A globalização incorpora à reflexão tam-



A Internet está se tornando uma das principais bém os países de menor desenvolvimento.


matérias na formação de professores. As reformas Ainda hoje, as respostas às necessidades edu-



curriculares incluem sugestões freqüentes para que cacionais incluem a busca de novas tec-



os professores incluam recursos da Internet em nologias que certamente se encontram mais

seus planos de ensino. De certa forma, a Internet ○

ao alcance das economias desenvolvidas, en-


na sala de aula é um passo para a remoção de algu- quanto o mundo mais atrasado deve encon-

mas barreiras entre o sistema de educação formal trar uma forma de incorporar-se. As frontei-

e o ambiente educacional externo. A influência do


ras econômicas abertas dos países não-de-


ambiente na formação de hábitos e de interesses


senvolvidos fazem-nos sensíveis às mudan-


nos alunos é consideravelmente forte, e as escolas


ças ou orientações ditadas pelo virtual do-

estão atrasadas nessa tarefa. Em nossos países, as


mínio global exercido pelo mundo desenvol-


novas tecnologias de comunicação poderiam ser a


pedra angular para a massificação de mudanças


vido. Sabemos hoje que a globalização e a

tecnologia de Internet não aproximam, ao


educacionais e para superar a atual escassez de re-


contrário, podem distanciar as diferenças na


cursos humanos. Entretanto, novos esforços deve-


rão ser empreendidos, a fim de que a Internet seja renda dos países mais pobres em relação à

validada como uma ferramenta de comunicação dos países mais ricos.


Todavia, também existem oportunidades


que vá além da abordagem “enciclopédica” que se


faz da Rede. Um dos principais problemas é como provenientes da globalização e estas devem ser

aproveitar a independência e a liberdade promo- consideradas com alguma hierarquização, de-



vidas pela Internet, considerando-se o fato de que vendo-se centralizar esforços nas de maior re-

as novas tecnologias de aprendizagem eletrônica torno. Para a educação, a Internet é uma dessas

colocam em xeque conceitos clássicos de aprendi- oportunidades.


zagem e ensino.


Internet e reforma curricular




Não é possível conceber a introdução de


Globalização e educação

novas formas de aprendizagem e novos currí-


culos, sem considerar o meio externo ao siste-


O mundo atual e o porvir colocam novas


exigências educacionais. Pela natureza da eco- ma escolar. Atualmente, o meio externo tem

nomia global, essas necessidades não fazem um ator de grande influência: a Internet.

parte do planejamento, ou não podem ser pre- Apesar da débil incorporação de nossos

países à Internet, ela pode ser considerada


vistas adequadamente. É o mercado que as im-


põe e, conseqüentemente, as respostas às de- relativamente acelerada. Quando a Internet



mandas normalmente exibem algum atraso. é acessível, a tendência é conectar-se e



Esses tempos de desajustes são um estímulo à utilizá-la, o que é especialmente importante


procura e à pesquisa. no sistema privado de educação. Isso gera,




dentro dos próprios países, diferenças que A Internet e os recursos



afetam a igualdade de oportunidades ante o


humanos para a educação


conhecimento e a aquisição de habilidades.



Assim, um país pode crescer desequilibrada- Um único olhar sobre as relações hoje pre-


mente, o que, além dos efeitos desiguais na


sentes na escola e a sua comparação com o que


área social, também produz dificuldades na se espera que elas sejam no futuro coloca enor-



coordenação de recursos humanos competi- mes desafios. Com certeza, a gestão escolar, os


tivos dentro desse país. Em termos de eqüi-


atuais professores e as características dos alu-


dade e equilíbrio, as novas tecnologias de nos revelam profundos desajustes que aparen-



informação são um dever nos novos planos temente não encontrarão solução nos mesmos



nacionais de educação. atores da atualidade. Em alguns casos, a gravi-


Assim sendo, o conceito de currículo alcan-


dade do problema não apenas reside nas con-


ça hoje um significado maior, abrangendo os dutas dos atuais profissionais, mas numa



domínios da auto-aprendizagem e da área quantidade de recursos humanos absoluta-


educativa informal. Naturalmente, a reforma ○

mente insuficiente para a implementação de


curricular deve possibilitar novos esquemas qualquer programa educacional novo. Por

formativos e de aquisição de conhecimentos exemplo, no Chile, o número de professores de



dentro e fora da escola, de maneira comple- Física é 60% inferior ao requerido pelo novo

mentar. Portanto, o próprio conceito físico de currículo.


escola é colocado em questão. Portanto, é evidente que não se trata ape-



Quanto aos processos de aprendizagem, nas de introduzir mudanças na própria forma-



isso certamente sugere questões relevantes ção dos professores mas, também, da incorpo-

que devem ser verificadas. Mas mudanças que


ração de novas soluções em relação ao uso dos


vêm ocorrendo pela aparição dos computa- recursos. É também evidente que a grande es-

dores também podem proporcionar alguns cassez na quantidade de recursos implica um



enquadramentos empíricos. esforço de longo prazo, num país que não pode

No ensino de Ciências, por exemplo, a


oferecer a profissionais estrangeiros condições


crescente introdução de computadores tem econômicas atraentes para vir trabalhar nele.

substituído muitas operações experimentais Portanto, a Internet desempenha um papel



que eram usuais e consideradas sagradas nos relevante, se considerarmos o seu potencial

planos educacionais. Um sensor eletrônico


para tornar-se um elemento ativo em termos


conectado a um computador, que produz um de auto-aprendizagem ou de educação a dis-



gráfico devidamente organizado, tem substi- tância, com o objetivo de aumentar a produti-

tuído difíceis ações manuais. Será que essas vidade dos recursos humanos disponíveis.

formas são menos eficazes em transmitir os


Todavia, fica evidente que os estabeleci-


conceitos da Ciência ou em gerar habilidades mentos educacionais devem passar a conside-



suficientes para o trabalho criativo, ou para rar os computadores e a Internet como recur-

induzir uma atitude reflexiva e próxima da na- sos fundamentais e de uso obrigatório. Con-

tureza?

seqüentemente, os profissionais dos estabele-


É claro que a resposta a essa pergunta pre- cimentos devem passar a satisfazer as deman-

cisaria de um espaço e de um tempo maior das de usuários que já são relativamente es-

do que aquele já transcorrido. Obviamente, tal pecialistas com respeito à utilização dessas fer-

resposta está fora do âmbito desta apresen-


ramentas.

tação. Porém a verdade é que quaisquer que Na transição ao uso de novas tecnologias

sejam as respostas elas não significarão que na educação, cientistas e engenheiros podem

teremos de abrir mão das novas ferramentas. ser aproveitados num esforço de estender suas

Seria essa a premissa para o conjunto da re- experiências para, assim, assistir os professo-

forma curricular em relação às novas tecno- res a compreender a tecnologia da Internet,



logias de informação. bem como sua utilização.


382
SIMPÓSIO 26
Formação de professores e inclusão digital

Com respeito à educação, existe bastante


A Internet e a educação



identidade de recursos e formatos com as for-


A Internet constitui uma comunicação re-


mas tradicionais, sendo certamente aquela da


mota, um conceito diferente, em que os com- dimensão real tridimensional a que falta na



putadores são elementos de grande importân- Internet. Esta última envolve certos aspectos


cia, mesmo quando, em termos tecnológicos,


sensoriais cujo papel na aprendizagem pare-


essa significação não seja imprescindível para ce ser importante, embora não existam expe-



o estabelecimento da própria comunicação. riências claras a respeito dos efeitos de sua au- 383



A comunicação via Internet inclui a web, a sência nos processos educativos.


qual permite compartilhar documentos em


A Internet redunda numa revisão da vali-


formatos crescentemente poderosos. A infor- dade de certas idéias longamente aceitas, ain-



mação em código, que viaja pela rede de fios da que o questionamento num ou outro sen-


e cabos e por satélites, incorpora instruções


tido venha com o transcurso da sua amplia-


que devem ser processadas num computador, ção. O importante é não se deter diante das



e as tarefas resultantes dessa informação que possibilidades abertas. Nesse sentido, nossos



foi transferida envolvem todas as operações países podem efetuar um esforço controlado,


das quais um computador é capaz. Podemos,

o qual será necessariamente compartilhado

então, imaginar o que ocorrerá em cada pon- ○

com formas mais tradicionais, sendo que es-


to da rede com os futuros avanços na compu- tas últimas teriam uma maior participação em

tação. tal esforço.





















































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