Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Vo l u m e 1
Brasília
2002
PRESIDENTES DO CONGRESSO
IARA GLÓRIA AREIAS PRADO
Secretária de Educação Fundamental
MARIA AUXILIADORA ALBERGARIA
Chefe de Gabinete
COMISSÃO ORGANIZADORA
Coordenadora: Rosangela Maria Siqueira Barreto
Renata Costa Cabral
Fábio Passarinho de Gusmão
Lívia Coelho Paes Barreto
Sueli Teixeira Mello
COMISSÃO CIENTÍFICA
Coordenadora: Marilda Almeida Marfan
Ana Rosa Abreu
Cleyde de Alencar Tormena
Jean Paraizo Alves
Leda Maria Seffrin
Lucila Pinsard Vianna
Nabiha Gebrim de Souza
Stella Maris Lagos Oliveira
CDU 371.13
Patrocínio: PETROBRAS
Apoio: Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 5
Iara Glória Areias Prado
SIMPÓSIO 1 7
EDUCAÇÃO PARA A MUDANÇA
Andy Hargreaves – Canadá
Álvaro Marchesi – Espanha
SIMPÓSIO 2 25
UMA ESCOLA REFLEXIVA
Juan Casassus – Chile
José Tavares – Portugal
SIMPÓSIO 3 43
DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA LEITORA E ESCRITORA DOS PROFESSORES
Ângela B. Kleiman – Unicamp/SP
Beatriz Cardoso – Cedac/SP
Euzi Rodrigues Moraes – Ried/ES
PALESTRA 55
MEDIANDO A LEITURA: RUMO À AUTONOMIA DO LEITOR
Tânia Mariza K. Rösing – Universidade de Passo Fundo/RS
SIMPÓSIO 4 59
METODOLOGIA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES ENFOCANDO O TRABALHO DE GRUPO
Abílio Amiguinho – Portugal
Maria Eliana Matos de F. Lima – UFPE/PE
Ana Claudia Rocha – CEEV/SP
SIMPÓSIO 5 73
TRANSVERSALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE: DIFICULDADES, AVANÇOS E POSSIBILIDADES
Ralph Levinson – Inglaterra
SIMPÓSIO 6 81
O LIVRO DIDÁTICO E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Ângela Paiva Dionísio – UFPE/PE
Kazumi Munakata – PUC/SP
Márcia de Paula Gregório Razzini – Unicamp/SP
SIMPÓSIO 7 103
O DESENVOLVIMENTO DA EJA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA AMÉRICA LATINA
José Rivero – Unesco/Peru
Maria Dulce Borges – Unesco/Brasil
Graciela Messina – Unesco/Chile
SIMPÓSIO 8 123
O FUNDEF E A VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO
Ulysses Cidade Semeghini – Fundef/MEC
Oswaldo José Fernandes – Jundiaí/SP
SIMPÓSIO 9 129
DESEMPENHO DO PROFESSOR E SUCESSO ESCOLAR DO ALUNO
Charles Hadji – França
Maria Helena Guimarães de Castro – Inep/MEC
SIMPÓSIO 10 151
ARTICULAÇÃO ENTRE AS FORMAÇÕES INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORES
Rui Canário – Portugal
Célia Maria Carolino Pires – PUC/SP
Charles Hadji – França
SIMPÓSIO 11 175
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM, CURRÍCULO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Andy Hargreaves – Canadá
Iza Locatelli – Inep/MEC
SIMPÓSIO 12 187
FORMAÇÃO CONTINUADA DO PROFESSOR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Silvia Pereira de Carvalho – Instituto Avisa Lá/SP
Ana Paula Soares da Silva – USP/Ribeirão Preto
Aricélia Ribeiro do Nascimento – SEF/MEC
Rosaura de Magalhães Pereira – SME/Belo Horizonte/MG
SIMPÓSIO 13 209
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS VINCULADA AO TRABALHO
Enrique Pieck – México
SIMPÓSIO 14 217
DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM NÍVEL MÉDIO E SUPERIOR
Edla de Araújo Lira Soares – CNE
Sylvia Figueiredo Gouvêa – CNE
SIMPÓSIO 15 223
ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Telma Weisz – PROFA/MEC
Ana Teberosky – Espanha
José Rivero – Unesco/Peru
SIMPÓSIO 16 247
PROJETO PEDAGÓGICO: POR QUÊ, QUANDO E COMO
Márcia Cristina da Silva – Fundação Vale do Rio Doce/Cedac
SIMPÓSIO 17 255
LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO
Isabel Cristina Alves da Silva Frade – Ceale/UFMG
Priscila Monteiro – Fundação Abrinq/SP
SIMPÓSIO 18 267
LETRAMENTO
Vera Masagão Ribeiro – Ação Educativa/SP
Rosaura Soligo – PROFA/MEC
SIMPÓSIO 19 281
ESCOLHA E USO DO LIVRO DIDÁTICO – IMPLICAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO PROFESSOR
Lucília Helena do Carmo Garcéz – UnB/DF
Marildes Marinho – UFMG/MG
Lívia Suassuna – UFPE/PE
SIMPÓSIO 20 299
POR UMA PROPOSTA CURRICULAR PARA O 2ª SEGMENTO NA EJA
Célia Maria Carolino Pires – PUC/SP
Maria Cecília Condeixa – Especialista em Ciências Naturais
Maria José M. de Nóbrega – Especialista em Língua Portuguesa
Paulo Eduardo Dias de Mello – Especialista em História e Geografia
SIMPÓSIO 21 307
A EJA COMO DIREITO: DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS E PROPOSTA POLÍTICO-PEDAGÓGICA
Carlos Roberto Jamil Cury – CNE/PUC/MG
Guilherme Costa – Seduc/MT
Leda Maria Seffrin – SEF/MEC
SIMPÓSIO 22 317
ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Ângela B. Kleiman – Unicamp/SP
Maurilane de Souza Biccas e Cláudia Lemos Vóvio – Ação Educativa/SP
SIMPÓSIO 23 327
CONCEPÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS: MODELO ATUAL E NOVAS PERSPECTIVAS
Jorge Megid Neto – Unicamp/SP
Luiz Percival Leme Brito – Unicamp/SP
Luiz Roberto Dante – Unesp/SP
SIMPÓSIO 24 341
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Álvaro Marchesi – Espanha
Carlos Roberto Jamil Cury – PUC/MG – CNE
Soraia Napoleão Freitas – UFSM/RS
SIMPÓSIO 25 355
ORGANIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE ENSINO E FORMAÇÃO DOCENTE
João Barroso – Portugal
Jean Hebrard – França
Miriam Schlickmann – SEE/Consed/SC
SIMPÓSIO 26 379
FORMAÇÃO DE PROFESSORES E INCLUSÃO DIGITAL
Cláudio Francisco de Souza Salles – Seed/MEC
Luis Huerta – Chile
APRESENTAÇÃO
Álvaro Marchesi
7
A Nova Ortodoxia
○
○
○
da Mudança Educacional
○
○
○
○
○
Andy Hargreaves
○
○
International Centre for Educational Change/Canadá
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
○
O presente documento descreve o que chamo finida com excesso de detalhes, a nova ortodoxia
○
de Nova Ortodoxia da Mudança Educacional, com pode tornar a aprendizagem demasiadamente ace-
○
○
sua ênfase sobre padrões elevados de aprendiza- lerada, enfatizar apenas seus aspectos mais clíni-
○
gem, currículo centralizado, avaliações alinhadas
○
cos e destruir o discernimento profissional dos pro-
○
e obrigatoriedade de punições e recompensas. fessores, que são responsáveis por sua implemen-
○
○
Em todo o mundo, o efeito dessa nova ortodo- tação. Entretanto, quando definida de forma mais
○
vo desse efeito depende de como ela é integrada e 7ª e 8ª séries que se destacaram entre os demais
○
○
implementada. Em seus piores aspectos, quando mostram que ela lhes pode aprimorar o senso de
○
(Schlechty, 1990).
○
Mudança Educacional
○
Uma nova ortodoxia oficial da reforma edu- ção caótica apresentada pelas diferentes
○
mente verdadeiro em países anglo-saxões, mas consistente, bem como a abrangência ne-
○
seguintes:
○
○
que todos os alunos (exceto aqueles com as bilitem aos professores, e a outros, verificar
○
○
mais agudas disfunções mentais) teriam de com clareza quando os padrões foram ou
○
com ênfase na compreensão conceitual, na to, aos padrões de aprendizagem e aos indi-
○
conhecimentos que serão essenciais para nham em mira o objetivo de alcançar pa-
○
○
uma participação exitosa na nova econo- drões elevados de aprendizagem para todos.
○
8
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
○
que ameaçam solapar seus objetivos educacio-
○
o desempenho global da escola, no que se nais mais positivos.
○
○
refira à elevação dos padrões, esteja estrei-
○
tamente conectado com os processos de
○
Questionando a ortodoxia
○
credenciamento, de inspeção e de vincula-
○
ção do financiamento aos níveis de suces- É difícil questionar o movimento concerta-
○
○
so (e fracasso). do em prol de padrões mais elevados. Quem
○
○
Essa nova ortodoxia consiste em certas poderia ser contrário a uma reforma baseada 9
○
nos padrões? Posicionar-se contra os padrões
○
mudanças fundamentais e louváveis em rela-
○
parece equivaler a ser a favor do pecado!
○
ção a detalhes mais específicos da aprendiza-
○
gem em sala de aula e à características mais Porém existem diferenças entre apoiar o
○
○
gerais de configuração da administração edu- princípio de padrões educacionais elevados e
○
inclusivos e os programas particulares de refor-
○
cacional. Ela valoriza altos padrões para quase
○
ma nos quais esses princípios se encontram
○
todos os alunos e não apenas para uns poucos
○
e conduz os professores e suas escolas a com- freqüentemente incorporados. Vejamos alguns
○
○
binar excelência com eqüidade no decorrer de dos problemas.
○
○
seu trabalho com alunos dos mais variados
backgrounds. No currículo, desloca a priorida- ○
○
○ O currículo apressado
de da conveniência e das convenções acerca Nos seus escritos acerca da família pós-mo-
○
○
daquilo que os professores ensinam para a qua- derna, David Elkind (1989; 1997) descreve
○
○
lidade e o caráter daquilo que se espera que os como, na sociedade contemporânea, as crian-
○
alunos aprendam. Veicula os tipos de aprendi- ças estão sendo crescentemente empurradas a
○
○
zagem aplicada e endereçada para a resolução fazer mais coisas, mais cedo e mais rapidamen-
○
○
de problemas, que são mais apropriados para te – como namorar mais cedo, despertar para o
○
que para uma sociedade mecânica e industrial. aderir a mais e mais clubes, equipes e ativida-
○
○
Ao tornar muitas avaliações baseadas mais no des mais organizados e, em geral, experimen-
○
○
desempenho do que no lápis-e-papel, tal orto- tar uma infância mais apressada, mais acelera-
○
da como a cauda que irá “balançar o cachorro”, Antecipar conteúdos curriculares para séries
○
○
sendo que o cachorro seria, no caso, o novo cada vez mais iniciais, ele argumenta, é parte
○
○
currículo. Por último, mas não menos impor- desse processo e dissocia os jovens de aspectos
○
tadual tenta assegurar que, independentemen- forma inocente, brincar sozinhos e com outros
○
○
sores ou de sua direção, todos os alunos serão aprendizagens levados por seus próprios inte-
○
na reforma educacional, no que diz respeito à sado”, no qual a abrangência vem a ser mais im-
○
○
melhoria da qualidade e dos padrões de apren- portante do que a aprendizagem. Esse currícu-
○
○
dizagem e de oportunidades para todos os ti- lo, ela salienta, leva os professores a empurrar as
○
educativa falha em relação a algumas dimen- compreendam e reduz o período vital do “tem-
○
○
no: dentro do seu pacote de reformas, acarreta às crianças antes que estas respondam às per-
○
○
○
voz do aluno no processo de aprendizagem as escolas secundárias que foi desenhado em
○
○
(Rudduck, Day e Wallace, 1997) e inibe o desen- 1907, quando a intenção, para a política educa-
○
○
volvimento de habilidades duradouras de apren- cional, tinha sido a de definir um currículo que
○
dizagem que, justamente, essa reforma baseada qualificasse para a universidade e que excluís-
○
○
em padrões elevados pretende promover. se disciplinas técnicas, mais apropriadas e re-
○
○
levantes para estudantes da classe operária
○
(Goodson, 1988).
○
O currículo convencional
○
Nos Estados Unidos, a especificação dos
○
e clínico
○
novos padrões de aprendizagem tem sido fei-
○
O currículo mais comum baseado em pa-
○
ta em grande medida sob a alçada das asso-
○
drões é, freqüentemente, na prática, um currí- ciações nacionais das disciplinas – revivendo
○
○
culo clínico e convencional. Trata-se de um cur- e perpetuando a sua influência sobre o currí-
○
rículo no qual se concede a maior importância
○
culo escolar e sobre aquilo que conta como
à alfabetização, aos rudimentos numéricos e à ○
○
○
conhecimento dentro dele. Conteúdos abar-
ciência. Com efeito, em trabalhos-chaves sobre rotados e um ritmo acelerado de movimento
○
○
esse assunto, Tucker e Codding (1998, 1999) sa- por entre os diversos padrões deixam pouco
○
As artes e as ciências sociais, argumentam, de- teresses dos alunos (Rudduck, 1997), para
○
○
veriam ser as áreas nas quais os aprendizados contextualizá-la e torná-la relevante em rela-
○
Isso, obviamente, designa de forma arbitrária Yamauchi, 1994), ou para criar programas de
○
○
e aquelas das artes como sendo “aplicadas”, sen- tornem possível essa profunda contextualiza-
○
e Crévola (1999) também concedem primazia à Mais ainda, a imensa maior ia dos focos
○
(tais como artes) sejam removidas ou reduzi- as preocupações com a aprendizagem emo-
○
○
das no currículo, para abrir espaço para a tal cional e com o desenvolvimento pessoal para
○
alfabetização.
○
Na Inglaterra e no País de Gales, essas redu- em sala de aula. Mas são justamente esses ti-
○
○
abriram espaço para o regime padronizado das zagem de alunos oriundos de minorias e de
○
○
Educação Pessoal e Social e, ultimamente, Ar- suas famílias, culturas e comunidades defini-
○
○
tes –, eram de natureza emotiva, social ou críti- tivamente não são padronizadas na sua natu-
○
○
ca, o verdadeiro âmago da educação escolar reza (Cummins, 1998; Nieto, 1998). O grande
○
expressivas (Hargreaves, Earl e Ryan, 1996). Pe- currículo de ciências, para crianças de agri-
○
○
10
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
tura, por exemplo, não encontra nenhum es- operária, após mais de uma década de um sis-
○
○
paço dentro de um currículo demasiadamen- tema excessivamente padronizado.
○
○
te padronizado (Stoddart, 1999). Currículos
○
○
excessivamente padronizados não se inserem Eles nos dizem para ir e para nos ocuparmos
○
bem em sociedades culturalmente diversifi- ali, portanto nós todos vamos fervilhando ali e
○
○
cadas. Eles não admitem que, especialmente nos ocupamos. Depois eles mudam de opinião
○
○
nesses contextos, a aprendizagem é uma prá- e dizem: “Não, é para lá!”. Assim vamos todos
○
tica social e não apenas uma prática intelec- fervilhando para lá e nos mantemos ocupados 11
○
○
de outra maneira. E aí, é “por aqui” e, depois,
tual (Lave e Wenger, 1991).
○
em algum outro lugar. E nós todos nos mante-
○
Em geral, abordagens muito densas en-
○
mos fervilhando, enquanto eles apontam para
○
fatizam em demasia aquilo que Sergiovanni
○
novas direções. De tempos em tempos, eles
(2000), citando Habermas (1975), chama de
○
vêm observar se nós estamos fervilhando cor-
○
“mundo-sistêmico” de conhecimento, cogni-
○
retamente.
○
ção, habilidades técnicas e sistemas. Sob um
○
○
ponto de vista comparativo, não se concede
Na Inglaterra e no País de Gales, mais de
○
muita importância ao “mundo-vital” da mo-
○
uma década de minuciosa prescrição cur-
○
ral, dos valores, da aprendizagem emocional
○
○
ricular tem feito muitos professores se senti-
e da experiência social. Na sociedade infor-
rem desqualificados profissionalmente (Nias,
○
○
turais!
○
Por mais bem fundamentados que os no- Algumas crises semelhantes afligem tam-
○
○
possam ser, os professores desanimam e per- as urbanas (Darling Hammond, 1997). Uma
○
dem eficácia se pressentirem que já não pos- imagem comum entre o grande público (e, tam-
○
○
bem como se esses padrões forem prescritos como uma atividade altamente estressante,
○
○
de forma tão hermética que não dêem espaço sobrecarregada e sujeita a crescente regulamen-
○
ao exercício de seu discernimento sobre como tação e controle externo, o que pouco ajuda. Ao
○
○
devem ser implementados e interpretados escrever acerca dos padrões, uma professora da
○
○
dentro de suas próprias salas de aula. Até ago- cidade de Los Angeles, Myranda Marsh (1999:
○
○
ra, contudo, uma evidência crescente aponta 192), faz um alerta incisivo aos seus pares aca-
○
para a existência de um profundo abismo en- dêmicos e aos formuladores de políticas ao res-
○
○
tre a confiança e, inclusive, a grandiosidade saltar que “se reformas de quaisquer índoles
○
○
com que os encarregados da política educacio- precisam ter sucesso, os professores precisam
○
○
nal prescrevem seus planos-mestres baseados acreditar que serão significativamente ouvidos
○
em padrões, por um lado, e a confusão e desi- nas decisões e que não se transformarão em
○
○
lusão dos professores encarregados de imple- bodes expiatórios por qualquer lacuna em se
○
○
trou a percepção de uma professora sobre si tem-se de ser tachados de “opositores” sim-
○
○
mesma como nada mais do que uma abelha plesmente porque adotam atitudes realistica-
○
○
mente cautelosas acerca das reformas. “Opo- sobre a sociedade de redes, Castells (1998) for-
○
○
sição aos padrões”, ela diz, “não está funda- neceu dados para mostrar que o Estado da
○
○
mentada num desejo de evitar um espírito de Califórnia gasta mais com o sistema penitenci-
○
○
prestação de contas, mas sim num receio de ário do que com escolas. As escolas públicas,
○
ficar de fora da discussão acerca do que cons- em algumas áreas urbanas, como aquelas de Los
○
○
titui, de fato, o sucesso” (Marsh, 1999: 194). Angeles, foram quase totalmente abandonadas
○
○
Como complemento aos padrões, Marsh e pela população branca. Quando um de nós che-
○
gou a trabalhar recentemente com um grupo
○
outros (McLaughlin e Lieberman, 2000) pro-
○
põem um enfoque nos processos de consulta grande de diretores de escolas da área urbana
○
○
aos professores (especialmente em torno do de Los Angeles, dois terços deles disseram, com
○
○
significado de dados sobre o desempenho) base na sua experiência em super-regulamen-
○
bem como a construção de comunidades de tação e apoio escasso, que, se pudessem esco-
○
○
prática profissional nas quais os professores lher, em nova oportunidade não voltariam a ser
○
○
experimentariam, em termos de tempo, mo- diretores.
○
○
mente. Isso pareceria ter maior atrativo. To- prática, aqueles de recursos e apoio decrescen-
○
○
davia, para que seja possível ligar os padrões tes para a educação pública, paralelamente ao
○
○
no, os próprios padrões de aprendizagem pre- matriculados, por recursos, ou por ambos
○
○
cisam oferecer liberdade de ação suficiente ( Whitty et al., 1997). Na Nova Zelândia, por
○
ciar níveis suficientes de apoio e de financia- minuição nas diferenças de aprendizagem en-
○
○
mento para que a consulta dos professores e tre alunos de setores privilegiados e aqueles
○
e programas-piloto que combinam reformas trabalharem com famílias e alunos que apresen-
○
que níveis de apoio que sejam, ao mesmo direcionadas à melhoria da alfabetização, como
○
○
Contextos contraditórios
○
As reformas baseadas em padrões não têm central, redirecionadas por imperativos de com-
○
○
sido nem estão sendo implementadas em con- petição resultantes da aplicação de testes pa-
○
textos que sejam neutros. Assim, os níveis de dronizados e asfixiadas por surtos de controle
○
○
ciais em geral e em outros setores públicos, in- do Times relata regularmente taxas crescentes
○
○
felizmente, permanecem baixos em muitos pa- de exclusão e de interrupção dos estudos es-
○
○
íses (Hargreaves, 2000). Na sua brilhante trilogia colares (desproporcionalmente altas entre alu-
○
12
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
○
○
norias culturais), enquanto as escolas mantêm
○
Como seria possível conciliar os anseios por
○
a luta para aumentar seus níveis de desempe-
○
reformas baseadas em padrões sem ficar preso
○
nho. Mais ainda, registra-se um aumento da
○
“alienação” entre os adolescentes, nos primei- aos seus freqüentes problemas práticos de ex-
○
cessiva padronização, escassos recursos, des-
○
ros anos de um sistema de ensino secundário
○
profissionalização e estreiteza curricular? Como
○
orientado por um currículo de densos conteú-
○
dos, fenômeno que se observa nos sistemas é que podemos ir além das dificuldades e re- 13
○
○
parcialmente sujeitos às regras de mercado dos trocessos dos programas que estabelecem pa-
○
drões e efetivar as virtudes dos melhores prin-
○
países anglo-saxões (Cumming, 1996). Nos
○
cípios da padronização?
○
nossos atuais projetos, estamos observando o
○
surgimento de evidências dessa natureza no Para responder a essas questões e ir além
○
dos padrões tal como eles estão sendo interpre-
○
contexto das reformas que estão impondo pa-
○
tados na atualidade, poderíamos aprender mui-
○
drões em Ontário, Canadá, junto com recur-
○
to ao analisar os esforços por reformas que em
○
sos reduzidos, pouco apoio para o desenvolvi-
○
mento profissional e menos tempo para que muitos lugares precederam imediatamente a
○
“debandada” em prol de padrões (Sergiovanni,
○
os professores trabalhem com os seus colegas
○
períodos de aula.
○
Conclusão
○
As questões que devem ser formuladas a cluem e valorizam um espectro mais amplo do
○
○
admiráveis – focalizar um ensino que beneficie professores exerçam seus julgamentos e orien-
○
○
todos os alunos e ligar isso a indicadores claros tações profissionais. Retornar a este momento –
○
cia, devem referir-se ao número e ao alcance prolífico e impostos com maior força – significa
○
○
desses padrões: o quão voltados são, ou não, recapitular os princípios dos padrões de uma
○
tipos de aprendizagem sobre outros; e se, como capazes de se comprometer, entender e efetivar
○
○
resultado dessas influências, os padrões favo- esses padrões, bem como de aproveitá-los. Exa-
○
○
com os pobres, em particular com alunos de lo pelo que valia a pena lutar na educação, antes
○
○
setores pobres, desfavorecidos e pertencentes dos padrões específicos por matéria, mas, tam-
○
○
às minorias. As reformas baseadas em padrões bém, acerca daquilo pelo que ainda vale a pena
○
tão associadas a menos recursos e níveis de O tempo e o lugar que usamos para nossa pes-
○
○
apoio para a educação pública, aos sistemas de quisa é Ontário, Canadá, em meados dos anos
○
renças na aprendizagem e aos processos de des- cional de amplo alcance da 7ª à 9ª série coloca-
○
○
professores.
○
maior integração curricular, implementando ficando indicadores para alcançar os resul-
○
○
obrigatoriamente iniciativas tendentes a reverter tados planejados, desenvolvendo modifica-
○
○
processos de separação dos alunos de uma mes- ções adequadas para as necessidades indi-
○
viduais dos alunos, avaliando tanto o pro-
○
ma série em turmas mais homogêneas, de me-
○
lhor a pior, em função de seu nível de capacida- cesso quanto o produto da aprendizagem,
○
incentivando a auto-avaliação e o uso de
○
de, e desenvolvendo um conjunto de avaliações
○
avaliações freqüentes e variadas. Além dis-
○
baseadas no desempenho. Todas essas medidas
○
so, os professores eram responsáveis pela
buscavam criar um sistema educacional de alta
○
comunicação das mudanças na avaliação
○
qualidade, inclusivo, que permitisse reter e
○
aos pais de seus alunos.
○
engajar jovens adolescentes dos mais variados
○
Na época do estudo, as escolas em Ontário
○
backgrounds no processo educativo.
○
A nova política curricular incluía quatro vinham experimentando, historicamente, um
○
○
componentes estreitamente inter-relacionados: status elevado, já que havia tradicionalmente um
○
forte compromisso com a educação pública por
○
Resultados: a política curricular especifica-
○
va dez “resultados essenciais” muito am- ○
○
parte dos governos, dos contribuintes e dos pais
plos, organizados em quatro áreas progra- dos alunos. Durante anos, os professores tinham
○
○
máticas também amplas: Artes, Linguagem, sido bem educados e bem pagos. O grande pú-
○
Sociedade. Dentro de cada uma dessas áre- os seus filhos recebiam (Livingstone, 1999). A
○
○
as, especificavam-se resultados, tais como política curricular foi concebida de forma cen-
○
res que se esperava que os alunos tivessem ampla participação de educadores da província.
○
paralelos entre as matérias, conexões de mas avaliações amostrais realizadas para a revi-
○
Avaliação: o papel dos professores na ava- grandes distritos escolares (mais de 50 mil alu-
○
○
liação foi reforçado no currículo. Esperava- nos cada um) com a participação do The
○
○
tados, o que seria alcançado desenvolven- gem) – uma parceria para o desenvolvimento
○
○
do o currículo, planejando rubricas, identi- dos professores estabelecida entre The Ontario
○
○
14
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
Institute for Studies in Education (Instituto de Obviamente, a nossa amostragem não é re-
○
○
Ontário para Estudos em Educação), a Univer- presentativa dos professores que lecionam na
○
○
sidade de Toronto e os quatro distritos. Todos 7ª e na 8ª séries. Os professores do estudo fo-
○
○
esses distritos eram urbanos e dois deles apre- ram identificados justamente porque eles de-
○
sentavam populações estudantis extremamen- monstravam ter um compromisso sério e per-
○
○
te multiculturais. O propósito do estudo foi exa- manente em implementar as mudanças nos
○
○
minar a compreensão que os professores desen- Transition Years (Anos de Transição). Assim sen-
○
volveram sobre as mudanças inseridas na nova do, o estudo oferece noções significativas sobre 15
○
○
política curricular; determinar como e até que as experiências de professores altamente com-
○
○
ponto foram capazes de integrar as mudanças prometidos. Entretanto, se a mudança cria di-
○
○
em suas práticas; identificar que condições, ficuldades para esses professores, ou para as
○
apoio e processos eram necessários para efeti- relações intrínsecas ao seu trabalho, é provável
○
○
var tal integração; e entender suas experiências que essas dificuldades sejam ainda maiores no
○
○
acerca das mudanças envolvidas. caso daqueles professores menos receptivos, ou
○
○
Os professores da nossa amostra tinham menos entusiasmados, com as mudanças aqui
○
sido identificados por administradores, nos descritas, ou até mesmo com a mudança edu-
○
○
seus distritos, como sendo aqueles que partici- cacional em geral.
○
○
as mudanças curriculares em suas práticas. So- como os professores orientados para a mudan-
○
licitou-se que, em cada uma das escolas de cada ça compreendem as requeridas e complexas
○
○
um dos distritos, dois professores permitissem mudanças educacionais, como é que as efeti-
○
○
que visitássemos suas salas de aula e os entre- vam ou realizam em suas turmas, o que os aju-
○
zes curriculares. À exceção de três, todos con- Tipicamente, enquanto os formuladores das
○
○
Os professores foram entrevistados, duran- sunto simples para os professores – uma ques-
○
○
te uma a duas horas, sobre suas interpretações tão de ingerir e cumprir como solicitado –, as
○
○
pessoais das políticas de integração curricular situações de mudança que os professores en-
○
○
gem e a reforma da avaliação; onde é que ti- fessores que estudamos não estavam apenas
○
○
nham adquirido tal interpretação; como é que tentando implementar inovações isoladas, uma
○
○
integravam essas mudanças nas suas práticas; de cada vez: estavam enfrentando mudanças
○
○
quais eram essas práticas; que êxitos e dificul- múltiplas e multifacetadas nas suas práticas de
○
dades encontraram durante o processo de im- integração curricular, nos resultados comuns da
○
○
to nos seus esforços por introduzir as mudan- ainda, esse conjunto de mudanças não poderia
○
ças. De forma mais geral, perguntamos aos pro- ser implementado de forma isolada em relação
○
○
fessores a respeito de seus registros de mais lon- a todos os demais aspectos do trabalho dos pro-
○
○
go prazo sobre mudanças e da relação entre fessores nas suas escolas. Algumas das escolas
○
○
nos a observá-los nas suas aulas e participaram acostumar com o uso de computadores e com
○
○
de várias entrevistas adicionais para nos forne- outras novas tecnologias. Uma prioridade pa-
○
cer uma visão mais aprofundada sobre os seus ralela era a construção de relações com os pais
○
○
○
○
tavam prestes a fazê-lo – o que acarretava mu- integrada, nos processos de aprendizagem e de
○
○
danças no estilo de liderança e na focalização avaliação.
○
○
das mudanças nessas escolas. Numa crise cada Mostramos como, com apoio adequado e
○
vez mais profunda de retração econômica, os uma suficiente capacidade de discernimento, os
○
○
recursos tornavam-se crescentemente escassos professores podem alcançar grandes progres-
○
○
(e continuam a sê-lo no momento em que es- sos, fazendo que a Nova Ortodoxia da Mudança
○
crevo este trabalho). Havia rumores e, às vezes, Educacional funcione com os seus alunos, de
○
○
mais do que rumores de aumento no tamanho modo que a aprendizagem em sala de aula se
○
○
das turmas, de cursos que seriam eliminados, torne animada para eles. Também mostramos
○
○
de professores que seriam transferidos ou que onde definições mais claras de resultados, do
○
perderiam os seus empregos. O apoio de con- tipo incorporado em esforços subseqüentes por
○
○
sultores distritais para assessorar os professo- implantar padrões, são requeridas com urgên-
○
○
res durante o processo de mudança estava de- cia, onde os números de resultados (como os
○
○
saparecendo e os dias dedicados ao desenvol- ○
atuais números de padrões) podem proliferar
vimento profissional estavam sendo reduzidos. até se tornarem excessivos, onde o apoio pode-
○
○
Através dos olhos e da experiência dos pro- ria ser inadequado e onde o ritmo de mudança
○
○
fessores queremos criar e recriar uma imagem poderia ser rápido demais, mesmo para os me-
○
○
res entendem – e freqüentemente lutam contra Nesse sentido, nosso trabalho nos ajuda a
○
○
empreender conjuntos complexos de reformas cacional nos dias de hoje, tal como os professo-
○
educacionais como as que descrevemos. Que- res a experimentam dentro da nova ortodoxia
○
○
remos retratar o que a ortodoxia emergente de educacional. Ele nos levará para dentro, para
○
○
mudança educacional – baseada no que se deve antes e para além dos padrões. Reconhecer o que
○
○
aprender, não no que deve ser ensinado – pare- uma complexa reforma educacional significa
○
ce ser, vista no contexto mais nítido das suas para os professores e o que realmente requer
○
○
salas de aula. Partimos das experiências desses deles não é uma tentativa nem cínica, nem
○
○
professores para alcançar, acompanhar e ultra- elogiosa. Os nossos achados estão longe de cons-
○
○
apóia os professores em vez de ser simplesmen- boas intenções que não deram certo. Tampouco
○
○
te imposta a eles. Mostramos, ainda, como os eles descrevem nossos professores como exces-
○
○
professores lutam para conectar reformas cur- sivamente otimistas – que avançam imper-
○
riculares e de avaliação aos diversos estilos de turbáveis por problemas ou contratempos que
○
○
vida dos seus alunos, como desenvolvem pro- surgem no seu caminho. Nossas descobertas,
○
○
gramas integrados de qualidade que se inter- sim, abrem uma janela para as realidades e não
○
○
relacionam com as vidas e a aprendizagem de apenas para a retórica da Nova Ortodoxia da Mu-
○
todos os seus alunos e como procuram manei- dança Educacional do começo do século.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
16
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
○
○
○
○
○
Álvaro Marchesi
○
○
Universidade Complutense de Madri/Espanha
○
○
○
○
○
O ex-presidente Sanguinetti (Uruguai) pro- cia e para maior coesão social. Além disso, as 17
○
○
feriu há pouco tempo uma frase carregada de expectativas que a sociedade deposita na edu-
○
significado: “O futuro já não é como era antes”. cação são cada vez maiores. Tem-se a esperan-
○
○
No passado talvez fosse possível prever o que ça de que a escola possa resolver praticamente
○
○
aconteceria a seguir. Atualmente, o ritmo das todos os problemas que suscitam alguma pre-
○
○
mudanças é tão acelerado que poucos ousam ocupação: se houver violência, a escola deve
○
fazer prognósticos. Todavia, é necessário anali- combatê-la e reduzi-la; se aparecerem novas
○
○
sar as características mais relevantes da socie- doenças, a escola deve preparar seus alunos
○
○
dade e da educação, definir as diferentes alter- para evitá-las; se houver desigualdades, xeno-
○
nativas colocadas aos sistemas educativos, op- fobia, acidentes de trânsito, desrespeito ao meio
○
○
tar por aquela considerada mais vantajosa e co- ○
○
ambiente etc., a escola torna-se responsável
locar em prática as mudanças que podem torná- pela diminuição dessas atitudes e comporta-
○
○
la possível. Esses são os temas que serão trata- mentos. Não obstante, além disso, os alunos
○
dos nesta palestra. Em primeiro lugar, descre- devem ser bons cidadãos, humanistas, leitores
○
○
veremos os principais traços da situação atual, interessados, falar diversas línguas, demonstrar
○
○
bem como seus riscos e possibilidades. Em se- habilidade no manuseio de novas tecnologias,
○
○
gundo lugar, apresentaremos três possíveis ce- além de ser dotados de senso crítico.
○
crático e o comunitário. Finalmente, ressaltare- poderes públicos não estejam conscientes das
○
○
mos as mudanças mais importantes que devem enormes dificuldades que a busca desses obje-
○
○
ser implementadas para que as escolas venham tivos acarreta, nem das novas condições que de-
○
a constituir comunidades de aprendizagem. veriam ser criadas para atingi-los. O que acon-
○
○
atual sociedade talvez seja sua ambivalência, efetivo empenho pela mudança.
○
○
isto é, sua capacidade tanto para aprofundar as O segundo traço diz respeito à crescente in-
○
O quadro abaixo retrata os traços mais mia, esta regida pelas leis da oferta e da procu-
○
○
o desenvolvimento econômico de um
○
○
○
mínio das regras do mercado, a educação tem vação em sala de aula é evidente. Contudo, a
○
○
sido pressionada a reger-se de acordo com nor- escassa formação e a falta de tempo dedicado à
○
○
mas semelhantes. As escolas lutam por matri- reflexão podem vir a impedir essa dinâmica e
○
cular alunos e por conseguir bons resultados. manter os professores utilizando modelos de
○
○
Caso contrário, poderiam vir a ser suprimidas ensino que sejam ao mesmo tempo tradicionais
○
○
ou desprezadas. e repetitivos.
○
O risco desse enfoque é o aumento das de-
○
Finalmente, existe uma exigência de melho-
○
sigualdades. A liberdade de escolha que os pais ria da qualidade do ensino público, onde uma
○
○
têm à sua frente transforma-se em liberdade das grande parte dos alunos de um país aprende,
○
○
escolas para escolher seus alunos, o que leva al- especialmente aqueles que se encontram em
○
gumas delas a poder selecionar os melhores de- condições sociais mais desfavorecidas. Quan-
○
○
les, enquanto outras não têm saída senão ma- do as horas diárias durante as quais os alunos
○
○
tricular alunos com os maiores problemas, o se encontram em escolas públicas são inferio-
○
○
que só faz aumentar o hiato existente entre ○
de de que essa pressão pelo sucesso venha a se de alunos por turma excessivo e não se faz qua-
○
○
traduzir num maior empenho para que a edu- se nada para resolver tal situação, existe o risco
○
○
cação de melhor qualidade chegue a todos os de que a escola pública rume para a margina-
○
alunos.
○
O terceiro traço aponta para a demanda das recursos optem por escolas privadas para seus
○
○
famílias. Os pais também estão conscientes de filhos. Todavia, a exigência por escolas de qua-
○
rem para estes bons resultados escolares. No pela educação se empenhem na melhoria das
○
○
Diferentes cenários
○
de (falta de) tempo como de pouco preparo para Em que direção irão orientar-se os sistemas
○
num poderoso instrumento para uma maior nidades positivas existentes? Não é possível
○
○
cooperação entre as famílias e a escola. sabê-lo. Enquanto nos anos 1980 grande parte
○
balho dos professores. Os sinais nessa direção ta uma possível mudança de orientação. Seja
○
○
são contínuos. Porém, na maioria das vezes, qual for o futuro, existem três possíveis cená-
○
O cenário liberal
○
mente aquelas que resultam da influência dos educação. Os principais objetivos seriam me-
○
○
sistemas de comunicação e de informação, exi- lhorar o rendimento escolar dos alunos e am-
○
○
gem dos docentes novas formas de ensinar. A pliar as opções de escolas para os pais. Para
○
18
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
alcançá-los, seria necessário reforçar os siste- munidades de aprendizagem não pode efetivar-
○
○
mas de avaliação baseados nos resultados es- se com exclusividade a partir das escolas, mas
○
○
colares dos alunos, comparar o que foi obtido exige a ativa participação de outras instituições.
○
○
em cada escola e torná-los públicos, para que a Esse seria o cenário mais desejável, aquele que
○
sociedade pudesse conhecer e controlar o fun- melhor garante o equilíbrio entre a qualidade e
○
○
cionamento dos estabelecimentos. a eqüidade na educação, porém o que exige mu-
○
○
danças mais profundas e de mais longo alcan-
○
O cenário burocrático ce. Essas mudanças serão descritas de forma su- 19
○
○
cinta nas páginas que seguem.
○
As suas principais características são a ma-
○
nutenção da atual situação e a incapacidade de
○
○
empreender reformas profundas. De um lado, As condições da mudança
○
○
existe receio em avançar com o modelo liberal,
○
A mudança para a configuração mais
○
seja pela pressão da sociedade ou dos sindica-
○
abrangente de comunidades de aprendizagem
tos dos professores, seja pela convicção de suas
○
não é algo que se produz em si. É necessário
○
conseqüências negativas no âmbito da eqüida-
○
um projeto global, no qual se integrem dife-
○
de. De outro, tampouco existe vontade política
○
rentes estratégias que confluam para o objeti-
em modificar os ajustes existentes: situação ○
○
atenção à diversidade.
os professores continuam agindo como sempre,
○
○
de aprendizagem
○
Esse cenário implica acreditar que a apren- nos, quando se responsabilizam exclusivamen-
○
○
dizagem dos alunos, de todos eles, exige um te as escolas pelos problemas existentes e quan-
○
dam, mas que toda a comunidade educativa – Ao contrário, a mudança das escolas no sen-
○
○
lidade pelo ensino e pela aprendizagem não re- Os objetivos das escolas vão além da transmis-
○
○
cai com exclusividade na escola, mas conside- são de conhecimentos e estendem-se em três
○
○
do, o que, por sua vez, exige mudanças na sua Nesse processo, é preciso que o conjunto da
○
○
organização, nas suas relações com o mundo comunidade educativa esteja comprometido.
○
forma de ensinar e na sua maneira de avaliar. professores, a organização das escolas e sua
○
○
O avanço em direção a escolas que sejam co- conexão com o entorno, os sistemas de avalia-
○
○
ção, a assessoria e o apoio que as escolas rece- em colaborar com ele. Mas, para alcançar o ex-
○
○
bem, bem como as relações com a administra- posto, é preciso uma maior estabilidade e de-
○
○
ção educativa. dicação dos professores a sua escola e um tem-
○
○
po disponível para elaborar e colocar em práti-
○
O compromisso com as escolas ca os projetos educacionais. Quando os profes-
○
○
sores devem ministrar a docência em várias es-
○
A ampliação da escolarização dos alunos, a
○
colas, é muito difícil assegurar essa forma de
○
melhoria da qualidade do ensino ou a redução
colaboração.
○
do fracasso escolar não são tarefas que as esco-
○
○
las e os professores possam realizar de forma
○
A redução do abandono escolar
○
isolada. Ao contrário, exigem o apoio decidido
○
○
das administrações educativas e dos poderes Altas taxas de abandono escolar são incom-
○
públicos. Esse compromisso pode se concreti- patíveis com uma educação de qualidade, mas
○
○
zar, prioritariamente, em duas direções. Em o abandono escolar não é responsabilidade ex-
○
○
primeiro lugar, deve propiciar o aumento dos ○
○
clusiva do sistema educativo, nem das escolas.
orçamentos educacionais de forma sustentada, Uma alta porcentagem de fracasso escolar tem
○
possibilitando, assim, o alcance dos objetivos sua origem diretamente ligada às carências eco-
○
○
previstos. Esse incremento do investimento nômicas, sociais e culturais de que sofrem de-
○
○
uma progressiva e eficiente distribuição, de for- que analisam a influência social no acesso à
○
ma que aqueles que possuem menos possam educação têm demonstrado que alunos que vi-
○
○
receber mais. De toda maneira, o incremento vem em piores condições sociais apresentam
○
○
dos recursos deveria se destinar a ampliar a maior probabilidade de estudar menos anos e
○
Educação Infantil nos setores mais desfavo- de estar situados em grupos de alunos cuja
○
○
recidos, a fortalecer a Educação Básica, a au- valoração acadêmica é mais baixa: turmas cujos
○
○
mentar a oferta da Educação Secundária, a ele- alunos têm nível acadêmico inferior, grupos
○
○
var o nível de formação das mulheres jovens, especiais ou sem qualificação final reconheci-
○
especialmente aquelas com menor nível de es- da. O informe do Banco Interamericano do De-
○
○
colaridade, e a reforçar os recursos e o funcio- senvolvimento (BID, 1998: 30) assinala que os
○
○
namento das escolas públicas. 10% da população mais pobre, com mais de 25
○
○
Em segundo lugar, esse compromisso deve- anos, no Brasil, estudaram em média apenas
○
ria supor uma nova forma de relação com as es- durante 1,98 ano, enquanto os 10% mais ricos
○
○
colas. A administração educacional deve ser ca- estudaram durante 10,53 anos.
○
○
paz de negociar e estabelecer, por acordo, um Esses dados não significam que as famílias,
○
○
programa específico com cada escola, de ma- o sistema educacional, as escolas, os profes-
○
neira que elas possam desenvolvê-lo no perío- sores e os próprios alunos não tenham nada a
○
○
do de tempo compactuado – procedimento este fazer diante de tal realidade sociocultural des-
○
○
que supõe uma aposta decidida em favor da au- favorável. O abandono escolar prematuro deve
○
○
tonomia das escolas e de sua maior responsa- ser entendido numa perspectiva multidimen-
○
contrapartida deve ser uma avaliação rigorosa ciais, a atitude da família, a organização do sis-
○
○
nhecer e melhorar, e não de comparar e selecio- las, a prática docente em sala de aula e a dis-
○
nar. Portanto, é preciso que as escolas públicas posição do aluno para a aprendizagem ocupam
○
○
deixem de ser um número – entre muitos – que papel relevante. Cada um desses fatores não
○
○
depende da administração educacional para ter pode ser considerado de forma isolada, mas
○
○
interlocução e um projeto estável que permita disposição do aluno é um bom exemplo desse
○
○
20
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
○
○
te responsabilidade de sua história individual,
○
Nos tempos atuais de mudança e de exigên-
○
mas é também a expressão do contexto social, cia, será difícil que uma escola isolada possa atin-
○
○
cultural e familiar em que vive, bem como do gir os objetivos propostos. Por isso, é importan-
○
funcionamento do sistema educacional, da
○
te que as escolas deixem de se isolar e que se re-
○
escola em que estuda e do trabalho de seus
○
lacionem entre si para melhor alcançar alguns
○
professores. objetivos específicos. As redes de escolas podem
○
21
○
ter objetivos muito variados quanto a informa-
○
A formação e o tempo dos professores
○
ção, inovação, intercâmbio de experiências e
○
○
As maiores exigências para a educação re- avaliação. São redes que se baseiam na partici-
○
pação do conjunto da escola, de alguns profes-
○
caem sobre os professores, que são os que po-
○
dem colocá-las em prática. Na atualidade o en- sores ou de algum grupo de alunos. A evolução
○
○
sino requer diálogo e participação dos alunos, dos sistemas de comunicação e da informática
○
está abrindo enormes possibilidades nessa área.
○
orientação e tutoria, relação com os pais, cola-
○
A organização e o fortalecimento das redes
○
boração na gestão da escola, contato com ati-
○
vidades formativas que se desenvolvem fora da de escolas exigem tempo, empenho e dedica-
○
○
escola, trabalho em equipe com companheiros ○
ção permanente. Elas não surgem espontanea-
mente nem perduram de forma permanente. Ao
○
A participação
○
da comunidade educativa
○
refletir em comum acerca de suas práticas de O capital cultural de uma família tem gran-
○
ensino, para elaborar projetos educativos e para de influência na formação dos filhos. A comu-
○
○
como para transformar suas estratégias de en- linguagem, o acompanhamento nos estudos, as
○
○
sino. A distribuição do tempo dos professores, atividades culturais às quais assistem, os livros
○
seu vínculo com apenas uma escola, a garantia lidos ou o intercâmbio de informação são fato-
○
○
de condições econômicas razoáveis e a implan- res que exercem uma influência muito impor-
○
○
tação de sistemas de promoção profissional tante na educação dos alunos. Embora o impor-
○
○
constituem alguns dos grandes desafios dos sis- tante não seja o capital cultural possuído, mas
○
temas educativos modernos e uma tarefa que como ele é transmitido, é preciso reconhecer
○
○
ainda não teve início nas escolas públicas da que as famílias com menor capital cultural e
○
○
maioria dos países de América Latina. social têm, no início, mais dificuldades para
○
contribuir com o progresso educativo dos seus acordo com o salientado até aqui, a tarefa edu-
○
○
filhos. Por isso, melhorar a formação dos pais e cativa está fortemente afetada pelo contexto
○
○
envolvê-los no processo educativo dos filhos é socioeconômico das escolas e dos alunos, pe-
○
○
uma condição necessária para melhorar seu los recursos disponíveis, pelas condições de tra-
○
aprendizado e reduzir o abandono escolar. Esse balho dos professores, pelos aspectos da orga-
○
○
é um objetivo cuja responsabilidade cabe não nização e pela maneira de ensinar dos profes-
○
○
só aos poderes públicos, mas também às esco- sores. Os resultados obtidos pelos alunos são,
○
sem dúvida, uma dimensão fundamental do
○
las. As escolas devem incluir, entre suas tarefas
○
prioritárias, a participação dos pais, sua coope- processo de ensino, porém devem ser necessa-
○
○
ração em múltiplas atividades, de acordo com riamente interpretados a partir da busca do
○
○
suas habilidades, e a organização de reuniões conhecimento do conjunto de variáveis que os
○
de formação e de intercâmbio de experiências. condicionam.
○
○
Junto com a participação dos pais, é preci- Todavia, as opções implementadas por mui-
○
○
so deixar que os próprios alunos falem. Estes tos países não se coadunam com esse modelo e
○
○
ditar na construção ativa do conhecimento por mento escolar dos alunos. Além disso, em al-
○
○
parte dos alunos implica estender essa visão ao guns casos, esses países tornam públicos os re-
○
○
conjunto das atividades educativas. Os alunos sultados obtidos por cada escola. Trata-se de
○
devem se sentir participantes de um projeto em uma abordagem mais simples do que outras e,
○
○
que suas opiniões são consideradas para orga- portanto, mais fácil de ser colocada em prática
○
○
nizar as atividades, para estabelecer os regula- – porém claramente desapropriada. Sem dúvi-
○
Não são poucas as vezes em que se ouve dos dos resultados obtidos por cada escola consti-
○
○
alunos com menor motivação escolar seu habi- tuem grande ajuda para cada comunidade edu-
○
participação para que vislumbrem maior sen- nômico em meio ao qual se desenvolvem as es-
○
○
cativo. Em primeiro lugar, os pais e os alunos. esse processo não apenas empurra as escolas a
○
○
Mas, depois, todos aqueles que desejem con- melhorar seus métodos para conseguir que seus
○
rios e de profissionais constitui grande ajuda nar aqueles alunos com maiores probabilida-
○
○
para realizar atividades complementares das des de êxito, o que aprofunda ainda mais as de-
○
escritórios e instituições pode ser útil para a delos de avaliação que proporcionem às esco-
○
○
educação de alguns grupos de alunos. las uma informação contextualizada, isto é, que
○
tivo reflete a concepção que se possui acerca das ponderada e completada pelas próprias esco-
○
○
funções prioritárias do ensino, bem como das las; uma informação ampla e convergente, re-
○
○
variáveis que exercem influência sobre ele. De lativa aos resultados acadêmicos dos alunos e
○
22
SIMPÓSIO 1
Educação para a mudança
também a suas atitudes e estratégias de apren- a realidade que estão vivenciando. O ensino não
○
○
dizagem, processos educativos da escola e da pode estar desvinculado das suas experiências,
○
○
sala de aula e às ponderações de pais, professo- nem alheio a suas preocupações. Porém esse ob-
○
○
res e alunos. Uma avaliação que tenha por ob- jetivo desejável complica-se quando se constata
○
jetivo principal colaborar com as escolas para a existência de uma grande heterogeneidade de
○
○
que se conheçam melhor e possam elaborar alunos nas salas de aula. Ademais, essa diversi-
○
○
estratégias de mudança. Uma avaliação que não dade dos alunos tende a aumentar, na medida
○
seja feita apenas num momento pontual, mas em que a educação obrigatória de dez anos de 23
○
○
que prossiga ao longo dos anos. A organização escolaridade se transforme em realidade.
○
○
de redes de avaliação de que participem dife- A criação de comunidades de aprendizagem
○
○
rentes escolas é uma das possíveis estratégias que buscam um ensino de qualidade para to-
○
para colocar em prática esse modelo de múlti- dos os alunos enfrenta seu principal desafio
○
○
plos níveis de avaliação. quando as escolas exercem sua função em con-
○
○
textos sociais e familiares desfavorecidos. Nes-
○
○
A atenção à diversidade tes casos, torna-se ainda mais urgente e
○
prioritário o trabalho conjunto de todas as ins-
○
em sala de aula
○
tituições, tanto para apoiar e fortalecer o tra-
○
○
As mudanças apresentadas até agora fica- balho dos professores quanto para melhorar as
○
fessor terá de ser capaz de assistir os alunos para de saúde, de proteção social e de educação em
○
○
que encontrem o significado das suas múltiplas favor dos grupos de pessoas com maiores ca-
○
e dispersas experiências. Por esse motivo, o seu rências irá colaborar de maneira insubstituível
○
○
ensinamento deve estar conectado com os co- com o esforço levado a cabo pelo estabeleci-
○
○
José Tavares
25
Uma escola reflexiva
○
○
○
e desigualdade educacional
○
○
○
○
○
Juan Casassus
○
○
Unesco/Orealc/Chile
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Nos últimos tempos, tenho concentrado É relativo à nossa cultura e, portanto, tem
○
meu trabalho na análise e no desenvolvimen- um significado particular, um significado
○
○
to conceituais. Por esse motivo, quando rece- que não está presente em outra cultura.
○
○
bi o convite para participar deste Congresso Não é algo que tem um tipo de existência
○
tema da escola reflexiva, tive que me pergun- vore. Qualidade não existe “lá fora” de uma
○
do de escola reflexiva.
○
Assim, esta apresentação se insere no contex- ca a algo, como, por exemplo, a um auto-
○
cação e o movimento da prática reflexiva. cação. No entanto, sua forma de ser não
○
○
Nesse marco, gostaria em primeiro lugar está na coisa em si (objetiva), nem no ob-
○
gostaria de formular alguns conceitos que nos vador e o observado ocorre no plano da lin-
○
permitam construir a idéia de uma escola re- guagem. Ela é, particularmente, espe-
○
○
A qualidade
○
significa que ela se desenvolve no plano da • Em terceiro lugar, os juízos têm a capaci-
○
ender que tipo de entidade seria um con- lingüísticos poderosos e, por essa razão,
○
ceito cultural. Quando falamos de quali- precisamos entender que não são “objeti-
○
○
dade na educação, estamos nos referindo vos”. Eles são construídos e apresentam
○
○
26
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
○
○
tar seu juízo é como afirmar que a fundamen-
○
Podemos afirmar que o juízo sobre a quali-
○
tação confere maior valor a esse juízo. Isso é
○
dade da educação tem as seis características
○
importante porque é a validade de um juízo que
○
descritas a seguir. conduz à realização de ações.
○
○
○
É sempre um sujeito que formula
○
O juízo da qualidade depende
○
o juízo da qualidade 27
○
de critérios e padrões
○
○
Considerando que uma pergunta como “até A formulação de um juízo sobre qualidade
○
○
que ponto a qualidade da educação é boa em...?” é sempre feita com base em algum critério. Os
○
só pode ser respondida por um sujeito que formu-
○
critérios designam o campo de ação no qual se
○
le um juízo, a determinação de quem é o sujeito
○
formula o juízo. Por exemplo, um critério pode
○
chamado a formular o juízo é muito importante. A se referir ao campo do trabalho, outro ao cam-
○
diferença na resposta não reside apenas no fato de
○
po cognitivo e outro ao campo dos valores. No
○
que todos os indivíduos são diferentes, mas tam-
○
entanto, para se formular um juízo não basta
○
bém no fato de que eles têm visões e interesses delimitar o campo ao qual ele se refere. É preci-
○
○
estruturalmente diferentes. É muito diferente o ○
so, também, contar com algum padrão.
juízo formulado pelo diretor de uma escola (que é
○
processo, a partir de dentro da escola), pelo pai de ção que os usuários estabelecem e que lhes
○
○
um aluno (que é o sujeito que denota um servem de referência para formular o juízo.
○
por um agente do Estado (que é um sujeito cuja cia. Eles podem ser usados para determinar
○
○
função é controlar a partir do interior do sistema, desempenhos que somente alguns serão ca-
○
Será necessário, então, distinguir duas situa- para estabelecer o que deve ser alcançado por
○
○
ções: uma que consiste em identificarmos e ava- todos (padrões básicos). Podem estar basea-
○
○
liarmos o sujeito que é chamado a emitir o juízo dos no estado da arte das disciplinas ou nos
○
qualidade ou não, e outra que consiste no pro- distribuições empíricas (referenciados em cri-
○
○
derosa. Quem estiver em condições de decidir juízos e, assim como ocorre com estes, essa de-
○
○
sobre ambas as situações utilizará algum crité- terminação depende igualmente do sujeito
○
○
rio para orientar sua decisão. Na maioria das que os formula. Nesse sentido (e de modo se-
○
vezes, esse critério será de natureza política. melhante ao que ocorre com a pergunta sobre
○
○
Para obter um juízo válido sobre a qualida- qualidade), os padrões, uma vez formulados,
○
○
de da educação em uma escola, qualquer que para que sejam válidos – ou seja, aceitos pelos
○
em primeiro lugar, o juízo deve estar bem fun- juízos sobre a educação –, devem também ser
○
○
damentado e, em segundo, deve ser formulado percebidos como procedentes de uma fonte
○
○
por um sujeito investido de algum tipo de au- autorizada. Somente nesse contexto sua apli-
○
1
○
Para uma discussão mais detalhada sobre o tema ver Casassus e Arancibia, 1997. Ver também Casassus, Lenguaje, poder y calidad de la
○
educación. Boletin del Proyecto Principal de Educación , 50, Santiago de Chile: Unesco, 1999.
○
O exposto anteriormente constitui uma mar que os que tinham educação podiam ter
○
○
condição importante pois, definitivamente, é o acesso a determinados empregos e meios soci-
○
○
grupo social que determina a validade ou a ais. Além disso, como “antigamente” a educa-
○
○
pertinência de um padrão. Se um país adota ção era predominantemente elitista e limitada
○
padrões, por mais bem formulados que sejam, em sua oferta e por seus conteúdos, as elites
○
○
eles não se tornarão uma referência aceita se eram privilegiadas.
○
○
não forem percebidos como válidos e úteis pe- Afirmar que a educação de hoje não é tão
○
los usuários. Nesse sentido, é interessante ob-
○
boa é, além do mais, emitir um juízo baseado
○
servar as tensões que ocorrem, por exemplo, em critérios e padrões do passado, desconhe-
○
○
nos Estados Unidos, onde, de um lado, existe cendo o que aconteceu em decorrência da
○
○
um movimento que tenta estabelecer padrões massificação e da democratização da educação.
○
nacionais e, de outro, há resistência de docen- Uma afirmação dessa natureza seria, portanto,
○
○
tes para validá-los e permitir que sejam usados um juízo mal fundamentado.
○
○
como referência. O juízo é formulado com base em um pa-
○
○
○
os juízos sobre a qualidade isso significa, por um lado, que ela não é algo
○
○
pelo grupo mais imediato de seus usuários. Ao afirmar que a qualidade é absoluta, cabe per-
○
nível social.
○
de hoje não é tão boa quanto a de antigamen- diferentes, bem como suas necessidades, sua
○
○
passado é aludir a um certo tipo de educação e Além disso, não é necessário considerar pes-
○
outro período histórico. juízos sobre a qualidade. Cada pessoa tem concep-
○
○
No que se refere ao emprego, por exemplo, ções diferentes da qualidade, segundo o campo
○
○
dizer que a educação de antes era melhor é afir- considerado e o propósito do juízo nesse campo.
○
28
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
Alguns pais poderão considerar que uma escola boa é uma vantagem e uma escola defi-
○
○
escola com disciplina autoritária é boa para seu ciente é uma desvantagem.
○
○
filho mais velho, mas podem também pensar Em outro sentido, as maneiras de se chegar
○
○
que essa mesma disciplina é um fator negativo a essa qualidade não precisam ser as mesmas
○
em se tratando do segundo filho mais velho. para todos. Qualidade para todos, num contex-
○
○
Além do mais, embora a escola possa ser consi- to de diversidade, é como chegar à qualidade
○
○
derada boa para o mais velho, pela sua capaci- definida para todos mas adaptada ao sujeito
○
dade de “disciplinar”, pode muito bem ser con- individual ou coletivo que dela necessita. No 29
○
○
siderada de má qualidade em outros aspectos, contexto da diversidade, a qualidade exigida
○
○
como, por exemplo, se o jovem estiver interes- por grupos interessados em questões de gêne-
○
○
sado em aprender informática e a escola não ro implica considerações da problemática do
○
possuir os equipamentos necessários para sa- gênero; por grupos religiosos, do tema de sua
○
○
tisfazer a esse interesse. religião; por pessoas superdotadas, de um cur-
○
○
rículo que garanta seu pleno desenvolvimento.
○
○
Qualidade e eqüidade
○
A desigualdade e a qualidade
○
○
O tema da qualidade na educação também
está ligado ao tema da eqüidade. Todas as pes- ○
○
○
da educação
soas têm direito a uma educação de qualidade.
○
Além disso, na prática, é muito difícil distinguir pode ser considerado o maior problema da qua-
○
○
a qualidade da educação da igualdade de opor- lidade na educação. Esse problema não é tanto
○
tunidades.
○
em qualidade, não se está fazendo referência o sistema como um todo: o problema da desi-
○
○
apenas a esquemas tutoriais, a uma relação per- gualdade na geração ou no acesso à qualidade.
○
tido, convém observar que, embora a qualida- relatórios dos sistemas de avaliação, a primeira e
○
○
de deva ser entendida como algo ligado à eqüi- mais constante informação é a da desigualdade
○
separado da qualidade. Em estudos internacio- Vemos, assim, que estamos diante de um proble-
○
○
nais, podemos observar países que apresentam ma sério, porque as oportunidades de acesso a
○
○
um rendimento baixo (baixa qualidade) e pou- essa qualidade não são iguais para todos.
○
(alta eqüidade). No outro extremo, há países de produção da qualidade que o sistema ofere-
○
○
com poucas diferenças entre as escolas (índi- ce. Alguns têm acesso a boas escolas, enquanto
○
○
ces de alta eqüidade) que apresentam, ao mes- outros só têm acesso a escolas deficientes. Essa
○
○
mo tempo, altos rendimentos (índices elevados situação é muito delicada, pois os setores ca-
○
de qualidade). Este é um objetivo de política rentes, os que mais precisam das melhores es-
○
○
A massificação, por sua vez, suscita proble- de, produzindo-se, assim, um “duplo risco” de
○
○
mas pedagógicos completamente diferentes. fracasso (Willms, 1992). Os que mais precisam
○
Um deles é a busca de qualidade para os estu- são os que menos recebem. As crianças caren-
○
○
dantes como um todo. O público assume o tema tes não estão apenas expostas a um risco de fra-
○
○
objeto de política pública; além disso, procura co duplo de fracasso escolar e de gerar desigual-
○
qualidade educacional com distribuição eqüi- dade educacional. Portanto, as ações para pre-
○
○
tativa na sociedade. Isso ocorre porque as es- venir esse quadro devem levar em considera-
○
○
colas fazem diferença na vida das crianças: uma ção essa situação específica.
○
Ocorreram mudanças em nossa forma de ber, a educação como uma atividade destinada
○
○
compreender o fracasso escolar. Numa primei- a desenvolver, no indivíduo, as capacidades e
○
○
ra etapa, as políticas promoveram a busca da as atitudes dele exigidas pela sociedade políti-
○
○
“igualdade de oportunidades”. A questão da ca e pelo meio ao qual ele está destinado. Tam-
○
qualidade – a primeira qualidade – era a do bém se parece com a visão de Parsons, de acor-
○
○
acesso à escola. A desigualdade era vista como do com a qual a educação é meio de socializa-
○
○
desigualdade no acesso à educação. A resposta ção e de diferenciação seletiva. Segundo essas
○
foi a ampliação do sistema, de modo que ele visões, a igualdade de oportunidades é esta-
○
○
pudesse oferecer acesso à escola a todos que belecida inicialmente e a diferenciação de re-
○
○
desejassem. Em alguma medida, a desigualda- sultados surge, no final, como uma conseqüên-
○
○
de no contexto do acesso persiste, se conside- cia da desigualdade de status. Nessa perspecti-
○
rarmos como se dá o acesso dos alunos ao En- va, a avaliação “objetiva” das provas padroni-
○
○
sino Médio. Essa diferença é ainda maior no zadas apenas consagra e mantém, na prática, o
○
○
acesso ao ensino superior. princípio da desigualdade.
○
○
Posteriormente, até o fim da década de ○
Este último comentário merece explicação
1980, estimou-se que a oferta era suficiente para mais detalhada. Quando as chamadas provas de
○
○
todos os alunos que quisessem ter acesso ao sis- avaliação “objetivas” foram desenvolvidas, a
○
○
qualidade foi desvinculado da questão do aces- todos os alunos passarem numa mesma prova
○
so e vinculado à necessidade de se oferecer qua- que contivesse os mesmos itens. Assim, evita-
○
○
lidade no interior do sistema. No entanto, para va-se que a avaliação caísse naquilo que no iní-
○
○
que isso acontecesse, seria necessário, em pri- cio da revolução behaviorista chamou-se de
○
meiro lugar, tornar visível algo que corres- “tergiversações subjetivas”. As provas “objeti-
○
○
pondesse a alguma idéia de qualidade “quali- vas” foram, assim, concebidas numa perspecti-
○
○
terior. Com essa idéia em mente, foram então aplicação de uma mesma prova, e a discrimi-
○
estabelecidos os sistemas de avaliação da qua- nação que se lograva com esse esquema devia-
○
○
ça em nossa forma de ver o problema da desi- em suas respostas à prova. No entanto, os alu-
○
○
A mudança consistiu na introdução da idéia ocorre com o conceito do “duplo risco”, também
○
○
de que a qualidade devia ser mensurada. Para se produz um “duplo privilégio”. É importante
○
○
que os sistemas de avaliação funcionassem, foi observar que um sujeito situado no topo desse
○
○
então necessário gerar alguma idéia de quali- “duplo privilégio”, apenas por esse fato e inde-
○
dade que se pudesse medir. Assim, o que fosse pendentemente de qualquer outra considera-
○
○
medido seria considerado produto ou resulta- ção, está numa situação qualitativamente qua-
○
○
do do processo educacional. Então, a desigual- tro vezes melhor que outro situado na base do
○
○
dade foi desvinculada do acesso à educação e duplo risco. Essa desigualdade é patente nos
○
passou a ser vista como uma “desigualdade sistemas de avaliação, uma vez que eles geram
○
○
como parece ser o critério predominante hoje, A explicação para as desigualdades também
○
é uma educação centrada na idéia da hierar- está sofrendo mudanças. Desde a década de
○
○
quização das pessoas e da educação como um 1960, diversos estudos realizados em nível
○
○
processo de seleção, preparatório para a distri- macro oferecem explicações para as diferenças
○
○
Essa visão contemporânea está muito ligada à (Casassus, 2001) estima-se que essas estruturas
○
○
noção que Durkheim tinha da educação, a sa- expliquem cerca de 30% da variação observada
○
30
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
nos resultados. Essa estimativa empírica é con- referência a algo que existe, que tem edifica-
○
○
sideravelmente menor que a que se tem usado. ções, um lugar onde aulas são dadas, onde gru-
○
○
É importante observarmos que o tipo de refle- pos de pessoas de diferentes gerações intera-
○
○
xão que tem sido feita nesse âmbito tende a afir- gem. No entanto, o que caracteriza uma escola
○
mar algo como: as crianças de determinadas não são essas coisas, que freqüentemente ve-
○
○
comunidades apresentam resultados baixos mos em desenhos de escolas. A existência da
○
○
porque vêm de comunidades carentes. Desse escola reside no fluxo de interações entre pes-
○
modo, muitas pessoas estimam que os baixos soas. Devemos observar que o aspecto funda- 31
○
○
resultados podem ser atribuídos à comunida- mental dessa noção de escola é a idéia de que
○
○
de de origem do aluno. O problema é geralmen- nos elementos que a constituem são as pessoas
○
○
te formulado da seguinte maneira: “a escola de que interagem. Na verdade, a interação de duas
○
baixos resultados é uma escola cuja comunida- pessoas, a interação de dois sujeitos. A interação
○
○
de não alcança os padrões ou níveis estabeleci- entre dois (ou mais) sujeitos é chamada de
○
○
dos para essa escola”. Assim, a dificuldade é atri- intersubjetividade.
○
○
buída à comunidade e a suas limitações para Quando consideramos a interação que carac-
○
alcançar o nível estipulado. No entanto, pode- teriza o tipo de entidade que uma escola é, impli-
○
○
ríamos também pensar exatamente ao contrá- ca que estamos considerando qualquer fluxo de
○
○
rio: podemos pensar que os padrões e os pro- interações de maneira genérica. Trata-se de um
○
○
cedimentos é que não são adequados para as tipo de fluxo particular, modelado por um conjun-
○
O mesmo estudo mostra também que, em rência. A escola constitui-se, em primeiro lugar,
○
○
nível micro, ou seja, no nível da escola, os pro- como entidade que se apresenta como uma
○
cessos que nela ocorrem explicam cerca de 60% interação intersubjetiva (entre sujeitos), desenvol-
○
○
das variações observadas nos resultados. Essa vida num padrão que regula o fluxo de interações
○
○
constatação implica que, sem descontarmos o e lhe confere identidade – unidade – como escola.
○
○
impacto da macroanálise, é na microanálise que Efetivamente, podemos dizer que uma escola tem
○
podemos encontrar diversas pistas para ações edificações, normas e coisas assim. No entanto, sua
○
○
que podem reduzir as desigualdades. unidade, o que permite a uma pessoa afirmar que
○
○
Consideremos agora o tema da escola re- modo de existir da escola é definido por um pa-
○
○
flexiva e de como esta pode nos ajudar nesse drão de interações entre sujeitos. Uma escola as-
○
contexto.
○
tar se não seria tolice afirmar que uma escola (Varela, 2000). Outros nomes dados a esse modo
○
○
pode refletir. Não seria um abuso de linguagem? de existência seriam “auto-organização”, no cam-
○
não é tolice, tampouco abuso de linguagem. Para sofia, ou “rede comunicacional”, na teoria das or-
○
○
mente esclarecer o que se entende por escola, É importante observar que, nesse sentido,
○
tamos o que seria a “qualidade na educação”. pelo tipo de interações próprio do sentido da
○
○
Assim como, quando falamos em qualida- interação. É próprio do “porquê” e do “para que”
○
○
de, não nos estamos referindo a uma coisa que da interação. O “porquê” e o “para que” são de-
○
perguntar sobre de que tipo de entidade exemplo, uma interação entre professores para
○
○
estamos falando quando nos referimos a “uma ir jantar num restaurante não é – em princípio
○
○
escola”. Ao fazer esta locução, em geral fazemos – regida pelo padrão do fluxo de interações,
○
como seria uma reunião de professores para uma prática e das conseqüências que ela gera.
○
○
discutir o projeto do estabelecimento. No nível A perspectiva reflexiva não constitui um con-
○
○
da escola, interagem as pessoas que formam a junto de procedimentos específicos. Trata-se,
○
○
comunidade educacional. A interação constitui como indica Schön, de uma epistemologia da
○
a escola, confere a ela identidade como prática, uma epistemologia diferente, que se
○
○
interação regida pelas preocupações dessa co- caracteriza por ser um estado mental, uma for-
○
○
munidade educacional. Portanto, quando dize- ma de enfrentar e responder a problemas. A
○
mos “uma escola”, estamos denotando um pa- ação reflexiva constitui um processo mais am-
○
○
drão específico de interações entre sujeitos e plo que o da solução lógica e racional dos pro-
○
○
não entre edifícios, livros e coisas desse tipo. blemas. A reflexão implica intuição, sentimen-
○
○
Observemos esse fato no nível da sala de aula. to, paixão. Nesse sentido, não é algo que se pos-
○
Nesse nível, um sujeito, como professor, interage sa delimitar precisamente e ensinar, como um
○
○
com outros sujeitos como alunos. Eles fazem com conjunto de técnicas a serem usadas por pro-
○
○
que a “aula” exista: literalmente criam a aula na fessores; ao contrário, trata-se de uma posição
○
○
medida em que sua interação esteja regida pelo ○
de consciência.
padrão que orienta o processo de ensino-apren- A ação reflexiva é, acima de tudo, uma posi-
○
○
dizagem. Observemos que, independentemente ção mental que coloca o professor em estado
○
○
do nível de análise, o que sempre a constitui são de consciência em relação ao que ele está fa-
○
○
os sujeitos interagindo segundo um padrão de zendo e a como está fazendo. Não uma consci-
○
No entanto, esses sujeitos podem interagir ram para fazer ou a estar usando a técnica ade-
○
○
de forma reflexiva ou não-reflexiva. A escola quada, mas uma consciência do que está fazen-
○
reflexiva tem lugar quando os sujeitos que for- do em relação à aprendizagem de seus alunos.
○
○
mam a comunidade educacional entram em Isso é o que Schön descreve como reflexão na
○
○
reflexivo?
○
O processo reflexivo refere-se ao processo faz enquanto se está fazendo, o que produz uma
○
senvolvida. J. Dewey distingue a ação reflexiva situação singular, num momento singular, num
○
○
da ação rotineira. A ação rotineira é dirigida pela momento incerto, aberto à criação pessoal. Essa
○
○
reação reflexa, pela convenção, pela tradição e sensação tem a particularidade de produzir uma
○
docentes de uma escola têm diferentes postu- ternativas. Por um lado, pode fazer brotar o me-
○
○
ras em relação aos problemas de aprendizagem lhor do ser docente no professor, pois nessa ten-
○
○
com os quais se defrontam. Dentre essas pos- são prevalecem a criação e a relevância da solu-
○
se “aqui fazemos as coisas desta maneira”, que a confiança em si mesmo, a tensão pode fazê-lo
○
○
passa a constituir a cultura oficial dessa escola. cair na tentação de se apoiar exclusivamente em
○
○
Essa cultura é, freqüentemente, percebida técnicas aprendidas, que não estão formuladas
○
são que se adota como regra geral numa deter- mas para situações gerais que, concretamente,
○
○
fundamentos que dão base a uma crença sobre pressupõe que o professor é um instrumento na
○
32
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
aplicação da técnica, e não um profissional cri- contrário, a idéia fica mais clara: uma escola
○
○
ativo. Ao nos refugiarmos na técnica, corremos não-reflexiva caracteriza-se pela aceitação de
○
○
o risco de perder as virtudes do conhecimento um estado de coisas na realidade cotidiana.
○
○
profissional adquirido na prática, perdemos a Uma escola não-reflexiva não questiona as cau-
○
oportunidade da criação, da relevância, e a ação sas da desigualdade educacional e do fracasso
○
○
passa a ser orientada no sentido de produzir escolar. Uma escola não-reflexiva atua nos sin-
○
○
soluções preconcebidas. tomas de um estado de coisas, sem indagar as
○
Quero deixar claro que não estou dizendo causas desses sintomas. Uma escola não-refle- 33
○
○
que não devemos usar técnicas. Ao contrário, é xiva é a que funciona no espaço das interações
○
○
importante dominar o uso de técnicas, pois elas rotineiras.
○
○
facilitam o desenvolvimento dos recursos pes- Na perspectiva do pensamento reflexivo, o
○
soais do docente. O que estou dizendo é que o padrão que rege o fluxo das interações pode ser
○
○
pensamento reflexivo é caracterizado por uma modificado pela reflexão. O padrão pode ser alte-
○
○
atitude, por um estado mental consciente. O uso rado pela ruptura entre interações rotineiras para
○
○
de técnicas é secundário. Usá-las não-reflexiva- que se estabeleçam interações reflexivas. Quan-
○
mente é desconhecer uma outra capacidade de do o padrão de interações gera desigualdade, é
○
○
análise que a realidade permite. Se traçarmos um necessário entrar num processo reflexivo.
○
○
paralelo com outras atividades profissionais, O padrão que rege a desigualdade, o proces-
○
○
tar que os profissionais de sucesso sempre atu- dianamente na prática da sala de aula. Ele se
○
○
am com base na interpretação profissional dos dá quando o professor não percebe que um alu-
○
○
ação reflexiva sustenta-se, nutre-se de atitu- dade ocorre quando o professor, ao ouvir a per-
○
○
des. Dewey identifica três delas: abertura in- gunta de um aluno, identifica onde está a dúvi-
○
○
Abertura intelectual: desejo ativo de consi- aluno é como uma compreensão intuitiva, e a
○
○
derar mais de um ponto de vista, visualizar solução dessa dúvida resulta de um processo
○
○
faz e – o que talvez seja mais importante – novas estratégias para esclarecer a confusão. O
○
○
consideração das conseqüências produzidas riamente se origine nela, é ali que ela se produz
○
e reproduz.
○
Sinceridade: ser honesto consigo mesmo co duplo faz os alunos chegarem com carências
○
○
em relação ao que se está fazendo. Essa ati- à escola e à sala de aula. Esse assunto é matéria
○
da responsabilidade.
○
Uma escola reflexiva diante nas escolas e nas salas de aula podem reverter
○
○
ensejar respostas para os principais problemas te, um clima emocional positivo são algumas
○
○
da desigualdade. Formulando a afirmação ao das áreas que permitem identificar o que pode
○
ser feito para alterar a produção e a reprodução flexiva se estabeleça nas escolas, pois só ela
○
○
da desigualdade educacional. As dificuldades pode produzir conhecimentos relevantes para
○
○
dos alunos e suas carências são experiências a situação concreta dos alunos.
○
○
particulares (e não gerais). Elas ocorrem em Só podemos aprender a refletir sobre a ação
○
uma situação concreta. O diagnóstico adequa- fazendo. Ninguém pode fazê-lo por outra pessoa.
○
○
do das experiências particulares (não- gerais), Cada pessoa precisa fazê-lo por si mesma. No
○
○
a forma como um problema é situado e formu- entanto, poderá receber apoio, e o apoio de que
○
lado não é, por si só, uma questão técnica. É um precisa é do tipo oferecido por um treinador
○
○
problema de reflexão que combina aspectos (coach). Aprendemos fazendo e também refletin-
○
○
políticos, administrativos e pedagógicos e que do sobre o que fizemos. É importante observar
○
○
exige atitudes de abertura, responsabilidade e que estou propondo uma mudança na forma de
○
sinceridade. Esse é um pensamento sistêmico, apoiar o trabalho da comunidade educacional.
○
○
porque a realidade é complexa. Mas não pode Não se trata de ensinar dizendo o que se deve fa-
○
○
acontecer se a escola não reflete sobre si mes- zer; trata-se de conversar de modo que os que
○
○
ma, se não aprende consigo mesma. Essa é uma ○
precisam fazer descubram, por eles mesmos, as
postura semelhante à proposta nos planos de possibilidades de que dispõem para detectar, for-
○
○
gestão das organizações que aprendem (ver, por mular e resolver os problemas de sua escola. Tal-
○
○
exemplo, Senge, 1996). É na reflexão sobre si vez seja uma proposta um pouco utópica, porque
○
○
mesmo que se abre o espaço da aprendizagem. pressupõe professores muito competentes para
○
Se a desigualdade se apresenta concreta- aprender por conta própria, mas a utopia come-
○
○
mente na prática de uma escola como lugar de ça pela mudança emocional e pela atitude de
○
○
risco duplo é só nela que se pode tentar rever- abertura, responsabilidade e sinceridade.
○
em seus profissionais e em suas competências. CASASSUS, Juan; ARANCIBIA, Violeta. Claves para una
○
Gostaria de terminar com este pensamen- educación de calidad. Buenos Aires: Kapelusz, 1996.
○
○
to: para que a reflexão seja uma forma de ser DEWEY, John. Cómo pensamos. Cognición y desarrollo
○
○
PUF, 1992.
atravessando um período paradoxal, caracteri-
○
nham em sentidos aparentemente opostos. Por SCHÖN, Donald. A. Educating the reflective practitioner. San
○
○
nal procuram aperfeiçoar práticas de descen- SENGE, Peter. La quinta discipina. Madrid: Granica, 1996.
○
○
lhores práticas” e nas “escolas bem-sucedidas” for educators. Washington, DC: Falmer, 1992.
○
poderá ser superada à medida que a prática re- vo. Cuadernos de Pedagogía, n. 220, Madrid, dez. 1993.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
34
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
Escola reflexiva,
○
○
○
resiliência e sentimento de si
○
○
○
Um objetivo que os profissionais
○
○
○
da educação não poderão perder de vista
○
○
○
35
○
José Tavares
○
○
Universidade de Aveiro/Portugal
○
○
○
○
○
Introdução
○
○
○
A escola reflexiva, como extensão da pes- trais e transversais, as quais, segundo Isabel
○
○
soa humana – ser essencialmente consciente, Alarcão, atravessam-na em todas as suas di-
○
○
responsável e livre – faz apelo também, como mensões:
○
uma condição sine qua non, à consciência de ○
○
si, da sua realidade de escola, como coletivi- A centralidade da pessoa na sua globalidade e na
○
○
pode ser uma pura abstração, mas, ao contrá- mos como interdisciplinaridade, interdepar-
○
como escola consciente, cordial, flexível, E, para terminar, Isabel Alarcão acrescenta
○
○
diversa, não são possíveis sem estar ligadas mundividência” (2001: 13-14). Ou seja, sem pro-
○
○
vontade dos sujeitos que a habitam e, sobre- cativos reflexivos, interativos, interconectados
○
A esta luz, não é viável uma escola reflexi- escola reflexiva, livre, justa, em que a qualida-
○
○
por conseqüência, conscientes, responsáveis, de todos, dentro das reais possibilidades e com-
○
Carneiro, antigo ministro da Educação em Por- Na verdade, não parece ser possível con-
○
○
tugal, em 1997, “nesse mundo denso de infor- tinuar a pensar a escola à imagem da estra-
○
○
mação, numa humanidade globalizada, num tégia sistêmica que é um produto refinado de
○
vida”, que vêm assentar algumas noções cen- favorecer o desenvolvimento de pequenos
○
nichos de excelência, deixando fora a maio- A construção
○
○
ria da humanidade, que não dispõe sequer
○
do sentimento de si
○
do mínimo indispensável para poder sobre-
○
○
viver. Uma escola reflexiva que seja capaz de Como é do conhecimento de todos, ainda
○
se pensar e de sentir a si própria não pode
○
que, por vezes, de forma tácita ou implícita, no
○
aceitar essa cultura que, na realidade, assen- ser humano tudo evolui, ergue-se e constrói-
○
○
ta na idéia da exploração do homem pelo se no sentido da emergência da consciência,
○
homem, não muito longe do homo homini
○
e, designadamente, seguindo uma trajetória,
○
lupus de Thomas Hobbes, da exclusão social hoje, bem conhecida a partir das investigações
○
○
que é uma das maiores formas de violência de António Damásio, que procura estudar essa
○
○
que afligem a humanidade e constitui um realidade de uma maneira objetiva, científica,
○
atentado direto e escandaloso contra a dig-
○
que parte da protoconsciência, passa pela
○
nidade humana. consciência nuclear e vai até a consciência
○
○
Por isso uma escola reflexiva, como a de- alargada ou autobiográfica onde vêm ancorar-
○
○
fine Isabel Alarcão, na linha de Senge, terá ○
na sua missão social e na sua organização, e trói dentro dessa dinâmica fundacional sujei-
○
○
se confronta com o desenrolar da sua ativi- to-objeto em que acontece a maravilha do co-
○
amente avaliativo e formativo” (2001: 25). Ou po) e a mente (o espírito), o minded brain, o
○
○
seja, exige atores reflexivos, inteligentes, cor- cérebro espiritualizado e pela cultura ou
○
multicultura.
○
na sua interação com os outros de uma for- bioquímica levanta-se a complexa e diversa
○
○
ma assumida, sentida e reflexiva, coletiva e construção dos padrões neurais que, por sua
○
cesso heurístico que deverá ser constante- e mentais e as suas interseções e interconexões
○
○
mente prosseguido e avaliado para poder ser socioculturais, com as quais o sujeito represen-
○
○
sita para a construção de uma nova ordem cida. Ou, como escreve Vitor da Fonseca:
○
○
mundial.
○
○
Uma tal concepção abre-nos, com certe- Tal interação está na origem de uma estrutura
○
gura altamente desafiadora e rica para nos extremamente organizado, o mais organizado do
○
○
servir de guia na reflexão que tentaremos par- organismo, ou seja, o cérebro, o órgão da
○
○
tilhar com vocês nesta palestra. É o que ire- cognição, que simultaneamente se transformou
○
mos fazer, utilizando as três grandes idéias ou também no órgão da civilização. O cérebro, que
○
○
prio tema, pela ordem inversa, a saber: o sen- aprendizagem individualizada, é fruto da me-
○
○
timento de si, a resiliência e a reflexibilidade. diatização dos e com os outros seres humanos.
○
bre as suas implicações na formação dos fu- aprendizagem humana, mas a aprendizagem
○
○
tamente, de ser reflexivos numa escola que se determina inexoravelmente a sua plasticidade
○
quer também ela própria mais reflexiva, funcional. Em síntese, a cognição humana
○
○
36
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
Parece ser nessa grande aventura, que vem cognitiva: abordagem neuropsicológica da
○
○
do fundo da realidade e dos tempos, porventura aprendizagem humana; Avaliação psicope-
○
○
milenares, que hoje são ciberespaços e ciber- dagógica dinâmica e Pedagogia mediatizada,
○
○
tempos, que emerge o conhecimento em que que aconselho vivamente.
○
assenta o sentimento de si que atravessa e go- Não irei deter-me diretamente sobre essas
○
○
verna toda a atividade do ser humano, e, por problemáticas, embora elas se encontrem
○
○
conseguinte, as suas capacidades de conhecer subjacentes a qualquer tentativa de aborda-
○
e as suas aprendizagens, em que a mediação gem de uma escola reflexiva, mas simplesmen- 37
○
○
bioneural, psicossocial e cultural assume te reproduzirei o parágrafo final em que o au-
○
○
primacial importância. tor resume, de certa forma, as idéias centrais
○
○
Pelo menos metaforicamente, poderíamos de uma pedagogia mediatizada que, em nossa
○
considerar também, em relação à construção de opinião, é fundamental para desenvolver uma
○
○
uma escola reflexiva como uma organização escola verdadeiramente reflexiva. A esse res-
○
○
aprendente, esses três níveis de conscien- peito escreve:
○
○
cialização que possibilitariam um proto-si, um
○
si nuclear e um si autobiográfico na evolução [...] a pedagogia mediatizada aplicada no con-
○
○
reflexiva da própria escola. Para ser consisten- texto familiar e escolar pode evitar muitas per-
○
○
te, uma escola reflexiva terá, em nossa opinião, turbações emocionais e comportamentais,
○
quer que ela assuma o seu verdadeiro sentido. numa adolescência atípica, ao mesmo tempo
○
○
da aprendizagem e que constitui uma das tra- também na escola os professores, por meio da
○
é mais sintético, denso, explícito e atual e que, aos desafios complexos da sociedade futura.
○
○
de certa forma, condensa as idéias maiores da Em síntese, se queremos uma sociedade mais
○
alinha na sua abertura são bem esclarecedoras: por meio de um processo de questionamento
○
○
Abordar a cognição e a aprendizagem com uma (bridging) entre os diversos conteúdos, con-
○
teórica com bases filogenéticas e neuropsi- sições assumidas ou das respostas dadas, da
○
○
cológicas e que integre duas componentes prá- descoberta de regras e da enfatização da or-
○
○
ção pedagógica – não é tarefa fácil, num momen- para outras situações semelhantes e do uso
○
○
to de grandes incertezas e de grandes desafios das estratégias, exprime bem o modo de tra-
○
○
educacionais (2001: 7). balhar dos professores e dos alunos numa es-
○
cola reflexiva.
○
○
É efetivamente sobre esses pressupostos Mas uma escola reflexiva é também uma
○
○
que Vitor da Fonseca organiza os três capítulos escola mais resiliente, flexível, inteligente e
○
○
○
gente, não poderá estar ausente de uma esco- organizacional e material que o desenvolvi-
○
○
la que se quer reflexiva. mento filosófico e científico confirma por meio
○
○
das investigações mais avançadas, sobretudo
○
Os sentidos e os significados nos domínios da ciência cognitiva e das
○
○
neurociências. A própria evolução da ciência
de resiliência
○
○
física, química e biológica e a sua interseção
○
Os sentidos e os significados de resiliência caminham nesse sentido.
○
○
decorrem também diretamente da ascensão da No mundo humano, efetivamente, o desen-
○
○
emergência da consciência e do sentimento de volvimento desse novo conhecimento que im-
○
○
si que lhe permite tornar-se e otimizar-se plica novas formas de aprender e desaprender,
○
como pessoa. Resiliência é apenas uma con- de ser, de estar e de comunicar assenta na
○
○
seqüência e uma das expressões mais fortes consciência do sentimento de si. Daí que o
○
○
dessa realidade vista sob um outro olhar e, sentido e a pertinência de aprofundarmos o
○
quiçá, em um nível distinto. Quanto mais a ○
○
conceito de resiliência e suas implicações na
pessoa se desenvolve, mais flexível, reflexiva e educação – e, por conseguinte, numa escola
○
○
dade. As mais diversas instituições e as suas o que queremos, o que temos, o que podemos
○
○
respectivas formas organizacionais como ex- e o que somos, de onde vimos, onde nos en-
○
○
tensões da pessoa serão igualmente tanto mais contramos e para onde vamos são os ingredi-
○
reflexivas, flexíveis e resilientes quanto mais entes existenciais básicos em que assenta o
○
○
crevem-se dentro da mesma dinâmica. É esse deiro equilíbrio humano, social e comunitário.
○
como flexibilidade, como capacidade de refle- do e sentido em níveis, em certa medida, incons-
○
○
xão, nos seres conscientes e livres que a sua cientes, subconscientes e conscientes mais ou
○
○
própria etimologia tão bem elucida. menos alargados, ou do proto si, do si nuclear e
○
Vejamos, pois, antes de tudo, o sentido ou autobiográfico damasianos, tem lugar não ape-
○
○
os sentidos que ainda vivem na etimologia da nas no tempo da adolescência, mas ao longo de
○
○
palavra resiliência. Resiliência é um substan- toda a vida. Hoje, porém, refletir sobre a busca
○
○
tivo derivado do prefixo re e do verbo salio, de si, da sua própria identidade, não nos evoca
○
resilio “voltar para trás”, “voltar ao ponto de apenas pensadores como Sólon, na sua célebre
○
○
partida”, “saltitar”, remetendo-nos para algo máxima “Conhece-te a ti mesmo” como princí-
○
○
mais fundo, original e autêntico de uma reali- pio da sabedoria, em que assenta a pedagogia
○
abertura, disponibilidade, acolhimento, es- dias, reporta-nos a um autor que, de certa for-
○
○
pontaneidade, quer em relação aos objetos, ma, está a contribuir determinantemente para
○
quer em relação aos próprios acontecimentos gir um novo reordenamento da ciência, na socie-
○
○
e a toda a trama de relações que se entretecem. dade contemporânea: António Damásio, por
○
○
Essa flexibilidade, por sua vez, não poderá des- meio, sobretudo, de duas obras bem conhecidas,
○
sistência, endurance física, biológica, psicoló- condensa boa parte da sua prática investigativa,
○
○
gica, social, cultural, ética. Resiliência tem, a do seu pensamento e da sua reflexão.
○
○
nosso ver, relação com a percepção da própria Nesse sentido, o conceito de resiliência nos
○
38
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
○
○
to de si em que assentam os diversos níveis de consciência alargada.
○
○
realização da personalidade dos sujeitos, os A protoconsciência é a consciência mais
○
○
quais efetivamente possibilitam toda e qual- antiga ou mesmo a ausência de consciência,
○
quer organização que se quer reflexiva e, por que decorre diretamente do si neural, o proto-
○
○
conseguinte, também a escola reflexiva que si, que Damásio descreve como “um conjunto
○
○
aqui se procura fundamentar e compreender. coerente de padrões neurais que cartografa, a
○
cada instante, o estado da estrutura física do 39
○
○
organismo nas suas numerosas dimensões”
○
Escola reflexiva
○
(2000: 184).
○
e a nova racionalidade
○
A consciência nuclear, segundo o mesmo
○
autor, “surge quando os dispositivos de repre-
○
que lhe está subjacente
○
sentação do cérebro geram um relato
○
○
Não entrarei na complexa arquitetura imagético e não-verbal de como o estado do
○
○
neurocerebral que serve de suporte e possibi- organismo é afetado pelo processamento do
○
lidade ao psiquismo humano e às marcas e objeto e quando esse processo resulta no real-
○
○
configurações que ele imprime em todas as çar da imagem do objeto causativo, colocan-
○
○
suas realizações. Não é esse o nosso objetivo, do-a, de forma saliente, num contexto espa-
○
investigações, reflexões e conclusões disponí- alargada “é a faculdade que nos dá a saber uma
○
○
veis sobre esse domínio, dentre os quais des- larga gama de entidades e acontecimentos, isto
○
○
dos e a vasta obra de Vitor da Fonseca, sobre- tiva individual, bem como um sentido de per-
○
○
tudo um dos seus últimos livros, Cognição e tença e capacidade de ação individuais relati-
○
○
aprendizagem, que, como referi, constitui uma vamente a uma extensão de conhecimento
○
○
excelente síntese das idéias maiores que o au- muito maior do que aquela que é examinada
○
tor tem desenvolvido ao longo de mais de vin- na consciência nuclear” (Damásio, 2000: 230).
○
○
vista contribuições tão relevantes, especial- vida da pessoa e a sua capacidade de raciocínio
○
mente quando nos debruçamos sobre temas são determinantes. É com essa consciência
○
○
resiliência, que nos remetem para níveis mais evocamos todo o nosso passado experiencial,
○
○
etimologia de resiliência prende-se diretamen- Por trás desses diferentes níveis de cons-
○
te às idéias de reflexibilidade e flexibilidade, que ciência e do sentimento de si está toda uma com-
○
○
são atributos próprios da pessoalidade. Por sua plexa arquitetura neural cujas correspondências
○
○
vez, a pessoa humana, como sabemos, é incom- não são lineares e constituem o objeto maior das
○
○
dimensões psicológicas que lhe são próprias, como refere, por exemplo, nas páginas 210 e 211
○
○
tais como a consciência, a afetividade e a capa- do seu livro Sentimento de si, estão longe de ser
○
○
cidade volitiva ou de tomada de decisão. É o óbvias e conclusivas, mas abrem a grande possi-
○
○
que, de certa forma, Damásio traduz por senti- bilidade de discutir científica e rigorosamente os
○
e do autobiographical self, que pressupõem a Não tenho grandes dúvidas de que a escola
○
○
○
○
vemos terá de partir desses pressupostos nem nos entendem e por isso não sabem o que pen-
○
○
neuropsicológicos e filogenéticos que possibi- samos, sentimos e somos, verdadeiramente. Preci-
○
○
litam uma nova racionalidade, a qual, por sua samos marcar o nosso lugar no mundo sem com-
○
vez, procura explicar e compreender a realida- plexos nem subserviências.
○
○
de à luz de uma outra epistemologia, menos li-
○
○
near e mais espiralada, menos metonímica,
Implicações para os
○
denotativa, digital, lógica e mais metafórica,
○
○
conotativa, analógica e cibernética, por meio de profissionais da educação, os
○
○
novos paradigmas. Essa é uma idéia forte que
professores e os educadores
○
○
ultimamente nos habita, em que trabalhamos
○
e sobre a qual temos falado e escrito (Tavares, Na perspectiva que acabamos de apresentar,
○
○
2000; 2001), mas é também algo que faz já par- as implicações da escola reflexiva para os profis-
○
○
te de um patrimônio coletivo pertencente a sionais da educação são óbvias quer no nível da
○
○
outros autores e estudiosos que se debruçam ○
sua formação, quer no nível do seu desempenho
sobre essa problemática, entre os quais desta- profissional. Ou seja, hoje, como ontem, não é
○
○
caria, se me é permitido alinhar aqui apenas al- possível formar um cidadão para as sociedades
○
○
guns nomes brasileiros que, neste momento, dos nossos dias sem atender a que essa forma-
○
Freire, Moacir Gadotti, Ivani Fazenda, Selma va, resiliente, comprometida, social, solidária.
○
○
Garrido, Vera Placco, Emília Engers, Bernadette Aliás, é esse o sentido profundo do próprio de-
○
○
Gatti, Iria Brzezinski, Dermeval Saviani, Luís senvolvimento humano que vem das fundamen-
○
Carlos Menezes, Eunice Ribeiro Durhan, Elsa tações neurobiológicas do proto-si e vai até a sua
○
○
Penso que é tempo de reconhecer a nossa enor- autobiográfico, passando pelo si nuclear que se
○
○
língua portuguesa, e não ficarmos constantemente gressivamente por meio de narrativas neurais,
○
○
a referir e a parafrasear autores anglo-saxônicos que, imagéticas e mentais em níveis mais ou menos
○
○
de fato, não nos ensinam nada de novo. Só há uma abstratos, como se pretende explicitar no esque-
○
○
Formação reticulada
○
Lobo parietal
○
autobiográfica Si autobiográfico
○
culículos
○
Hipotálamo
○
○
○
○
○
○
Tálamo
○
○
Culículos superiores
○
Proto Hipotálamo e
○
consciência Proto si
○
prosencéfalo basal
○
○
Ínsula
○
○
○
○
40
SIMPÓSIO 2
Uma escola reflexiva
○
○
Parece ser essa a enigmática e maravilhosa ou seja, construção coletiva de visões para
○
○
dialética da ascensão humana, aliás coerente o futuro e de princípios e linhas orien-
○
com outras muitas abordagens e representações tadoras da sua implementação, enquadra-
○
○
em que a capacidade de reflexão pessoal e co- doras do empenhamento de cada um dos
○
membros;
○
letiva é proporcional ao desenvolvimento da
○
○
consciencialização, possibilitando, nessa mes- • a da aprendizagem em grupo, capacidade
○
ma medida, comunidades verdadeiramente de pensar em conjunto, de “rendibilizar” as 41
○
○
humanas e, por conseguinte, escolas mais re- situações de diálogo e de pensamento cole-
○
tivo em que a competência desenvolvida no
○
flexivas em que os seus principais atores este-
○
jam mais interconectados, conscientes, motiva- grupo é superior à soma dos talentos indi-
○
○
dos, livres. viduais;
○
○
Educar, formar profissionais da educação • a do pensamento sistêmico (systems
○
thinking), capacidade de ter a visão de
○
para a reflexão não apenas pessoal, mas tam-
○
bém social e comunitária, implica com certeza conjunto e de compreender as inter-rela-
○
○
fazê-lo de um modo mais reflexivo, flexível, ções das partes entre si e delas no conjun-
○
to do todo.
○
consciente, responsável e livre. É um caminho
○
○
que parece reabrir-se a essa sociedade e a essa Nessa concepção destacam-se, claramente,
○
escola, para o qual os seus principais atores, os os componentes de pensamento, reflexão, re-
○
○
professores e os educadores, não poderão ficar lacionamento social e cultural e diálogo, que são
○
○
insensíveis. Daí que seja urgente pensar a sua também os ingredientes postos em relevo por
○
○
formação sob uma outra luz que lhes permita Isabel Alarcão na sua definição de escola refle-
○
preparar-se de modo diferente para responder xiva que transcrevemos e comentamos acima.
○
○
Que formação? É a questão que se coloca de cepção consiste em mudar a nossa maneira de
○
○
imediato, e penso que é também a essa ques- pensar, de sentir, de agir e de interagir. Essa é,
○
tão que este Congresso Brasileiro de Qualidade com certeza, a condição sine qua non para mu-
○
○
cola, da sua organização e atuação de uma for- reflexiva e desburocratizada, um lugar de ver-
○
○
do que Senge chama de organização cimento e de preparação para a vida ativa numa
○
“organization that is continually expanding its Realizar essa mudança, que constitui uma
○
○
capacity to create the future” (1994: 14). A esco- verdadeira transmutação, porventura genética,
○
○
la aprendente de Senge integra várias compo- psicológica, social, cultural, no dia-a-dia das
○
nentes (disciplines):
○
• a do domínio pessoal, isto é, capacidade de nossas vidas é o grande desafio que se nos co-
○
○
“saber o que se quer”, de criar condições que loca de modo premente e urgente, designa-
○
na inovação;
○
membros;
○
○
○
penho da sua profissão ainda acarreta nas es-
○
ALARCÃO, I. (Org.). Escola reflexiva e nova racionalidade .
○
colas onde trabalham.
○
Porto Alegre: Artmed, 2001.
○
A esta luz, desenvolver estratégias de forma- . (Org.). Escola reflexiva e supervisão: uma
○
ção mais reflexivas e resilientes por meio de um
○
escola em desenvolvimento e aprendizagem. Porto:
○
maior desenvolvimento do sentimento de si, Porto Editora, 2001.
○
○
pessoal e coletivo, nos diferentes níveis ou sé- BRZEZINSKI, I. (Org.). Formação de professores: um de-
○
ries do sistema educativo e avaliar os resulta- safio. Goiânia: Editora UCG, 1996.
○
○
. Pedagogia, pedagogos e formação de pro-
dos obtidos é, sem dúvida, um dos caminhos a
○
fessores: busca e movimento. 3. ed. Campinas: Papirus,
○
seguir. Os instrumentos para avaliar esse tipo
○
2000.
○
de experiência ainda não são muito fiáveis. Exis- CARNEIRO, R. Sociedade e informação . Lisboa: Texto, 1997.
○
tem, no entanto, já alguns trabalhos, entre os
○
CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma
○
quais os de Grotberg, Cobassa, Tavares e teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.
○
○
Albuquerque, em que se tem procurado elabo- DAMÁSIO, A. O sentimento de si: o corpo, a emoção e a
○
○ neurobiologia da consciência. Mira-Sintra: Publicações
rar instrumentos de avaliação em torno do con- ○
Europa-América, 2000.
ceito de auto-estima dos sujeitos em relação ao
○
velado sensíveis para compreender essa dimen- . Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar,
○
○
para configurar a escola reflexiva que defende- FONSECA, V. Cognição e aprendizagem . Lisboa: Âncora,
○
○
também as diversas formas que deverão confi- relações interpessoais. Porto: Porto Editora, 1996.
○
○
gurar a formação e a educação do novo cidadão . (Org.). Resiliência e educação . São Paulo:
○
mar-se continuadamente, ao longo da vida, para mação. Aveiro: Universidade de Aveiro, 1999.
○
○
42
SIMPÓSIO 3
DESENVOLVIMENTO DA
COMPETÊNCIA LEITORA E
ESCRITORA DOS PROFESSORES
Ângela B. Kleiman
Beatriz Cardoso
43
A competência leitora:
○
○
○
desafios para o professor
○
○
○
○
○
Ângela B. Kleiman
○
○
Universidade Estadual de Campinas/SP
○
○
○
○
○
○
Dada a importância da leitura para o desen- são cultural e, mais tarde, uma perspectiva so-
○
○
volvimento pleno do aluno, para a cidadania cial crítica, própria dos estudos do letramento,
○
○
crítica e para a participação nas práticas soci- visando ao fortalecimento do professor.
○
ais das instituições que usam a escrita, a pro-
○
○
cura de soluções para a chamada “crise de lei-
tura” das três últimas décadas compete a todo ○
○
○
O leitor
professor, no seu domínio específico de ação, e Nas décadas de 1970 e 1980, o ensino foi for-
○
○
ao professor de português, no seu domínio re- temente influenciado pelos resultados de pes-
○
○
discursivos da modalidade escrita da língua. lingüística, ciências que forneceram, nessa épo-
○
Pode-se pensar no ensino de leitura na esco- ca, as principais vertentes teóricas em relação ao
○
○
la como tendo dois objetivos básicos: um deles estudo da leitura. Tanto na Psicolingüística como
○
○
leitura e o outro, o desenvolvimento da capaci- lugar preeminente e central, daí o interesse pelo
○
dade de compreensão do texto escrito. Para atin- seu funcionamento cognitivo durante a compre-
○
○
gir o primeiro objetivo, precisamos de pessoas, ensão e pelas relações entre linguagem e pensa-
○
○
atividades e infra-estrutura que permitam o con- mento durante a leitura. Essas abordagens pres-
○
○
tato prazeroso com o livro, a experimentação, o supunham um leitor inteligente, que reagia não
○
manuseio de muitos e variados suportes e reper- apenas aos estímulos externos – as letras no pa-
○
○
tórios de textos: professores que contagiem com pel –, fazendo todas as permutações e combina-
○
○
seu entusiasmo pela leitura, contadores de his- ções possíveis já aprendidas, mas que se anteci-
○
bem-aparelhadas, atividades lúdicas que envol- vas e imprevisíveis combinações, todo o seu co-
○
○
vam a leitura, são todos eles essenciais. Para atin- nhecimento e experiência acumulados. O impac-
○
○
gir o segundo objetivo, precisamos de tudo o que to dessa pesquisa no ensino foi considerável para
○
sor bem-formado que seja, além de leitor, for- exemplo, em vez de se exigir apenas a oralização
○
○
mador de novos leitores, orientando os muitos certa da leitura, passaram a ser desenvolvidas
○
○
caminhos que se pode tomar para chegar à cons- abordagens para o ensino de estratégias para tra-
○
balhar o texto.
○
trução de um sentido.
○
Esta apresentação visa a discutir três aspec- Aliás, se um programa de leitura estiver fun-
○
○
tos da leitura relevantes para o seu ensino na damentado nos estudos cognitivos, um de seus
○
○
mo, os elementos sociais a serem levados em tos de diversos gêneros sem a mediação de um
○
○
conta no desenvolvimento de atividades didáti- adulto, professor ou leitor mais experiente, por
○
○
cas com o objetivo de formar leitores. Discutire- meio de programas que propiciem atividades para
○
tos sociocognitivos da leitura, aos quais foi sen- de compreensão de língua escrita envolvendo o
○
○
do progressivamente incrementada uma dimen- uso, monitorado ou não, de sua memória, de sua
○
44
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
capacidade de inferência, de sua atenção. Visan- dos grupos sociais nas diversas práticas cultu-
○
○
do àquele momento de independência, um pro- rais. A prática cultural passa a ter lugar central
○
○
grama de leitura nessas linhas deverá incluir ati- na investigação e, portanto, as áreas que se ocu-
○
○
vidades de leitura mediadas pelo professor, por pam das práticas discursivas, do impacto social
○
meio das quais ele cria e modela estratégias de e cultural da escrita e da história da escrita e
○
○
leitura cada vez mais complexas e que exigem dos leitores são as que passam a fornecer as
○
○
cada vez mais independência do aluno. vertentes teórico-metodológicas mais impor-
○
tantes para a investigação dos usos da escrita, 45
○
○
em geral, e da leitura, em particular.
O texto
○
○
As questões tornam-se mais amplas, porque
○
No fim da década de 1980 e início dos anos
○
as áreas que subsidiam as pesquisas fazem
○
1990, foram sendo realizadas novas pesquisas questionamentos mais abrangentes, não ape-
○
○
sobre as formas naturais de se testar leitores, nas sobre a compreensão da leitura, mas tam-
○
envolvendo situações reais de leitura de textos
○
bém sobre o papel e o impacto da escrita na vida
○
autênticos, e o tipo de texto lido passou a ocu-
○
social. Parte-se do pressuposto de que não se
○
par um lugar mais importante. As característi- pode estudar o leitor sem história nem identi-
○
○
cas do texto, a sua legibilidade, os diversos me- dade: são investigadas, então, as práticas leito-
○
gêneros tornam-se relevantes na pesquisa. A área gênero em voga numa determinada época. Aos
○
sas questões é a Lingüística Textual. o texto, agrega-se agora o contexto, seja ele o
○
○
Uma contribuição importante nesse sentido mais imediato da atividade de leitura, seja o
○
○
Vigner (1988), a intertextualidade é a condição Kleiman e Moraes (1999: 57), são os que seguem.
○
○
do texto que diz respeito às suas relações com • As práticas de leitura e de produção de tex-
○
primeiro, porque o texto funciona segundo leis, Numa sociedade complexa, a “tecnologia”
○
○
do, porque o texto traz em si fragmentos de sen- • A relação entre oralidade e escrita não é de
○
○
tidos de outras fontes – reescrituras de outros opostos, mas de um contínuo. Portanto não
○
○
textos – cuja percepção e interpretação facilitam há oposições totais entre textos orais e es-
○
aproximariam gradativamente.
○
○
pacidade de compreender, de inferir e de de- plica a aprendizagem das normas das insti-
○
○
duzir numa situação individual de leitura ce- tuições que legitimam essas práticas.
○
○
dem lugar para perguntas sobre a construção Não há, do ponto de vista do ensino, incom-
○
ções em que os textos escritos tipicamente cir- plementam. Um programa de ensino da leitura
○
○
culam. Em decorrência desse interesse, surgem que vise introduzir o aluno nas práticas sociais
○
○
pesquisas sobre os usos da escrita pelos varia- valorizadas na sociedade é perfeitamente con-
○
sistente com a focalização, em algum momento como uma restituição para os sujeitos pesqui-
○
○
do programa, de algum aspecto da capacidade in- sados (Portelli, 1997), então, ao não-leitor deve-
○
○
dividual do leitor, como, por exemplo, os aspec- ríamos estar devolvendo o direito ao prazer da
○
○
tos cognitivos envolvidos na compreensão, a fim leitura; ao cidadão comum, o direito a continuar
○
de desenvolver estratégias cognitivas eficientes no aprendendo ao longo da vida através da leitura;
○
○
processo de compreensão do texto escrito. ao professor, o direito a sentir-se capaz e seguro
○
○
Há vinte anos, a pesquisa sobre a leitura na sua profissão de formador de leitores.
○
○
apontava exclusivamente os problemas, mos-
○
trando, por exemplo, aquilo que os leitores não
○
○
conseguiam compreender e/ou aquilo que os
Bibliografia
○
○
professores não conseguiam ensinar. Há, nesse
○
tipo de pesquisa, o risco de os sujeitos partici- KLEIMAN, A. B. A formação do leitor: uma abordagem
○
○
psicossocial. Prepes Virtual / Ensino do Português : a
pantes das pesquisas – os alunos e seus profes-
○
formação do professor leitor, autor e analista de textos.
○
sores – emergirem fragilizados; contudo os pos-
○
PUC/MG, 2001.
○
menos poderosos, dos menos escolarizados, dos PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. Algumas
○
Desenvolvimento da
○
○
○
dos professores
○
○
○
○
Beatriz Cardoso
○
○
Cedac
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
○
Hoje há um consenso de que o professor pre- des e limites de inserção desse profissional no
○
tora. É preciso identificar com maior precisão as O processo de formação implica necessaria-
○
○
formas de que dispomos nos processos de mente uma interlocução do sujeito com as suas re-
○
capacitação, para poder ajudá-lo a se aprimorar presentações, à luz das dos outros. Dentro dessa
○
○
nesse campo. Apoiada na reflexão sobre experiên- perspectiva, a escrita pode e deve ser incorporada,
○
curarei discutir as características do texto escrito privilegiado. A questão é justamente refletir sobre
○
○
que a profissão docente requisita e as possibilida- como e quando essa tarefa pode ser produtiva.
○
○
46
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
Desenvolvimento da
○
○
○
competência leitora e escritora
○
○
○
○
○
Euzi Rodrigues Moraes
○
○
Rede Interdisciplinar de Educação (Ried)/ES
○
○
47
○
○
○
○
Quem escreve, assim como quem lê, o faz Procurei sugerir a Bianca alguns livros que
○
eu julgava mais interessantes para a idade dela.
○
basicamente movido por um incontrolável de-
○
Não surtiu efeito. O próximo livro que ela esco-
○
sejo de se comunicar. Escritores e leitores nun-
○
ca estão sozinhos, por mais solitários que pare- lheu foi Linguagem total, de Francisco Gutierrez,
○
○
çam ser esses momentos interativos de criação e o seguinte, Educar para quê?, de Reinaldo
○
Matias Fleuri.
○
de significados. Ler e escrever são procedimen-
○
tos indissociáveis e de alta significação social. E o tempo foi passando, enquanto Bianca
○
○
Não podem tampouco se desvincular da comu- devorava os livros, até que um dia ela me disse,
○
nicativa.
○
fundamentais da escola, se não o mais funda- estava orgulhosa do seu feito. A letra era boa e a
○
○
mental. Não se pode, portanto, pensar a forma- escrita caprichada. “Dá pra você escrever algu-
○
pois, em três focos: os alunos, os professores e escrita. Era a transcrição de um poema inti-
○
○
Como lêem e escrevem os alunos de nossas poema. Fiz alguns comentários pouco relevan-
○
escolas? Que desempenho têm na sociedade, tes, e insisti: “Por que você não escreve uma
○
○
como leitores e escritores? Exemplos é que não coisa da sua cabeça?”. “Eu não sei” – ela disse.
○
○
faltam. Estou pensando agora em Bianca – 16 Como formar leitores e escritores? Sabemos
○
○
anos, 6ª série, aluna da escola pública. que temos pela frente um sério desafio.
○
Bianca veio trabalhar e morar na minha casa Em 1988, a 33ª Convenção Anual da Associa-
○
○
há dois meses. Chegou e, por iniciativa própria, ção Internacional de Leitura aprovou uma Re-
○
○
mergulhou nas estantes de livros. E passou a solução que levava o título Sobre o apoio dos
○
era a impressão que se tinha, pois ela se posta- ança. Ao conclamar as famílias a uma parceria
○
○
va em algum canto da casa, virando páginas, com a escola, diz a Resolução que “as crianças
○
○
enquanto deslizava os olhos sobre o texto es- aprendem mais durante os seus primeiros cin-
○
livro é este que você está lendo?” Era um exem- sua vida, por isso são os pais seus primeiros e
○
○
plar da revista Trabalhos em Lingüística Apli- mais importantes professores”. O papel dos pais
○
○
cada, da Unicamp. “Está dando pra entender?” foi definido, no documento, como “provedores
○
○
○
tou a ela esse ambiente alfabetizador, rico em tação, colagem, colcha de retalhos são todos ró-
○
○
linguagem. Segundo o que apurei, ela não tem tulos para a produção escrita não-independen-
○
○
e nunca teve uma família estruturada, nunca te, amarrada às palavras do autor sintetizado:
○
viveu em ambiente letrado nem manteve jamais produto de leitura de palavras, não de idéias. O
○
○
qualquer contato com materiais escritos. texto chamado alienado e o lamento são válvu-
○
○
Bianca não é um caso isolado. Ela represen- las de escape para um discurso político que in-
○
ta um grande contingente de alunos da escola felizmente já virou clichê sem produzir resulta-
○
○
pública brasileira. dos: as reivindicações por melhores salários ou
○
○
A vida na creche é outra situação típica da condições de trabalho. As idéias do texto a sin-
○
○
rotina de numerosas crianças em nosso país, a tetizar? Nem menção a elas. A “síntese” da “lei-
○
maioria delas filhas e filhos do analfabetismo. tura” feita mostra que não aconteceu o diálogo
○
○
É confortador saber que já não se pensam mais escritor/leitor, não houve comunicação.
○
○
as creches somente como lugar onde as crian- Não foi mencionada no estudo uma forma
○
○
ças são cuidadas enquanto os pais trabalham, ○
de composição escrita que resolvemos chamar
mas também como espaço de educação, de de texto-fala, em virtude da semelhança com a
○
○
aprendizagem. Creche é hoje sinônimo de Edu- língua que se fala. É um texto autônomo, tem a
○
○
cação Infantil. Vamos torcer para que elas se marca de seu autor, mas não é elaborado como
○
○
tornem, no lugar dos pais, as provedoras desse os textos construídos na linguagem com que se
○
Os professores
○
de um grupo de professores: estudo de caso”, so de “tradução” para a escrita padrão? Não se-
○
publicado na Revista Brasileira de Estudos Pe- ria esse o caminho para libertar os professores
○
○
dagógicos, n. 195, encontramos uma tipologia de sua arraigada formação na cópia (na cópia
○
○
do, durante um período de dez meses, por meio Em seus escritos, Paulo Freire sempre insistiu: é
○
○
da análise das sínteses que eles produziam após preciso ter voz, é preciso ler o mundo.
○
○
leitura e discussão de textos programados para Refletindo sobre o trabalho dos professores
○
A tipologia apresenta oito categorias de tex- guinte pergunta: “Para que vale a leitura?” Fa-
○
○
to: texto-cópia, texto-imitação, texto alienado, zendo eco, nós perguntamos: “Para que vale a
○
○
E eles prosseguem:
○
cede da cópia e segue até atingir o texto com Quando nos damos conta de que a segunda
○
○
autoria. Isso quer dizer que, no início dos estu- maior causa de morte entre adolescentes nos
○
fessores faziam eram montagens de trechos lite- soas são hospitalizadas para tratamento de
○
○
ralmente copiados do texto original, enquanto doenças mentais do que devido a todas as ou-
○
○
no final do ano já escreviam “de sua própria ca- tras doenças juntas, ou que um em cada 22
○
48
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
○
○
próprio pai ou mãe, ou que mais da metade dos
○
Como são nossas escolas? Queremos que
○
alunos do ensino médio já experimentou drogas,
○
ou que no final do ano haverá mais de um mi- as práticas escolares sejam semelhantes às
○
○
lhão de alunos evadidos de nossas escolas, pode- práticas sociais. E podemos afirmar, hoje, que
○
está em curso um processo de renovação pe-
○
se desconfiar da ação formativa da escola.
○
dagógica em todo o mundo e, evidentemen-
○
○
Interpretando: pode-se desconfiar da ação te, em nosso país e que, em muitas escolas, 49
○
○
formativa dos programas de leitura da escola e esse nosso desejo está virando realidade. Pro-
○
da pertinência dos textos para a vida dos alu- gramas inovadores estão sendo implemen-
○
○
nos. O que ler? Esta é uma pergunta igualmen- tados, provocando e subsidiando essa reno-
○
○
te importante. vação – e não sem razão. Mas temos um ca-
○
Ler e escrever não são procedimentos neu- minho longo a trilhar.
○
○
tros, como mostra o texto acima. Esse livro foi Uma pesquisa realizada no Programa de
○
○
publicado pela primeira vez em 1978 e retrata a Mestrado em Educação da Universidade Fede-
○
○
vida em uma outra sociedade, a norte-ameri- ral do Espírito Santo faz algumas revelações
○
cana. Mas acho que a pergunta que originou o sobre um contrato didático ainda em vigor na
○
○
alerta que acabo de compartilhar com os cole- ○
○
maioria das escolas brasileiras.
gas continua oportuna: “Para que vale a leitu- Como estamos discutindo processos co-
○
○
ra? Para que ensinar a ler e escrever?” Para de- municativos, podemos (e acho que devemos)
○
alunos e professores, precisamos ensinar-lhes vinte em seus vários níveis, que é o que nos
○
○
nar suas leituras, a fazer recortes adequados na tentativa de retratar graficamente o percur-
○
realidade que eles querem retratar em sua es- so do alfabetizando desde a sua chegada à
○
○
crita, a ser leitores críticos. Em síntese, leitor e classe até a sua saída, a autora elaborou a
○
○
ALFABETIZ
○
DE
○
SSE O DIALETO AÇ
○
○
○
CLA
ÃO
○
D
○
TEX
O
MÉT
TO
○
○
CARTILHA
TO
CULTU
RA DISCURSO DIALE
○
SI M
A
TUR
CULTURA LE
○
ART IT
BO
IS M O IAL
RA DISCURSO DIALET
UL
➙ ➙
C
○
L
S IC I
CRIANÇA O PR
ESSUP O ST O
UR CIAL
ARTI XT
○
TE
FI
A
F
○
?
➙
LINGUAGEM
○
POLISSEMIA
○
○
FIC ET O
ESPONTANEIDADE ALIAÇÃO ES
AUT
IAL
CO N
E AV O
EIT - DIA I
○
TE
L
FANTASIA AD
C
A RT
○
O?
RIÓ
ID
CULTU
AUTOR
TIPOS
○
PROFESSOR
○
O
○
FO R
ITA
AÇ
CR
M
ES
○
ÃO
D IA L E T O
○
○
○
○
○
○
○
○
○
O que nos mostra a figura da página ante-
○
P: Como é que se faz, certo mesmo?
○
rior? Ela desenha três perfis: o perfil da criança A: [ d i ]
○
○
ao entrar na escola, o perfil da classe e o perfil P: É, mas acontece que nós não somos
○
paulistas. O certo é [ d i ]. Mas nós não faze-
○
da criança feita aluno, no fim do ano. Charles
○
Hockett (1959) diz que a criança é lingüis- mos esse som carregado assim, [ d i ]. O [ d i ]
○
○
para nós é [ dZi ], mas o certo, o som mesmo
ticamente adulta na faixa dos 4 aos 6 anos. Atu-
○
seria [ d i ].
○
alizando essa afirmação e aplicando-a à escola,
○
Instala-se então a oposição certo/errado, já
poderíamos dizer que a criança é comuni-
○
○
com conotações sociais.
cativamente adulta quando chega à escola. É
○
○
assim que a vemos no primeiro círculo.
○
Exemplos:
○
E que relação tem isso com o desenvolvi-
○
1. P: Hoje faltou quem?
mento da competência leitora e escritora na
○
A: Ineis.
○
escola? O que é que esse quadro nos diz? Ele nos
○
P: Inês.
○
diz que não são apenas conteúdos conceituais
○
○
os que os professores ensinam. Seus gestos, seus ○
A: Iscada.
○
ensinam, assim como o contexto da sala de aula P: Iscada não. Iscada não existe. Iscada é uma
○
○
Zabala, 1998.)
○
A seta que atravessa os três círculos represen- Uma das causas desse problema é uma con-
○
○
ta a passagem da criança pela escola. Essa passa- cepção equivocada do funcionamento da lin-
○
○
categorizados como traços do dialeto, do dis- O discurso em classe é regido por um acor-
○
curso e da cultura na comunidade da sala de do tácito entre professora e alunos, válido so-
○
○
aula. Que dados são esses, invocados para fun- mente dentro das fronteiras da sala de aula: o
○
○
O dialeto
○
P: (Silêncio).
○
P: (Silêncio).
○
50
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
A cultura
○
4. A: Tia, tá quase na hora do recreio?
○
P: Não.
○
O dialeto e o discurso da classe de alfabeti-
○
A: (Silêncio).
○
zação geram uma cultura da incomunicação, na
○
○
5. P: Camilo podia ter usado o cordão grande? qual o autoritarismo, o dogmatismo, o
○
artificialismo e o silêncio ensinam – e muito
○
Classe (em coro): Não!
○
P: Por quê? bem – a criança a copiar ou a produzir escritos
○
○
Classe (em coro): Podia! que não comunicam nada. A escola tem estra- 51
○
○
tégias poderosas de ensino. Esse poder e essa
○
Observamos que, na interação nº 5, a per- força poderiam muito bem ser utilizados na cri-
○
○
gunta “Por quê?” não é uma pergunta verda- ação de um ambiente escolar propício ao de-
○
○
deira, problematizadora. Ela não pede uma ex- senvolvimento da competência comunicativa
○
dos alunos na fala, na leitura, na escrita.
○
plicação para a resposta dada. E os alunos en-
○
tendem muito bem isso. Eles sabem que, na
○
○
cultura da sala de aula, o “Por quê?” da profes-
A prática da comunicação
○
○
sora significa rejeição à sua resposta. E, como
○
a escolha era binária, eles não perderam tem- verbal na escola
○
○
po. Recorreram à única possibilidade que res- ○
○
Estudiosos dos usos da linguagem têm cola, e não só na escola básica. Essa foi uma
○
ser explicada assim: cada pessoa tem sua vez, técnica, cujo relatório foi divulgado na revista
○
○
o seu turno. Se uma delas não sabe ouvir e es- Transactions on Education, de agosto de 1988,
○
da conversa fica comprometido. Uma sempre A escrita e a fala como meios de descobrir e
○
○
espera da outra que cumpra o seu turno, que clarificar idéias são elementos essenciais ao pro-
○
dando uma sugestão, concordando, discordan- do a ênfase na escrita como método de melhorar
○
○
do... ou simplesmente manifestando, de algu- a aprendizagem. A abordagem tem três eixos: pri-
○
ma forma, seu interesse no assunto. O silêncio meiro, expandir a parte escrita dos relatórios de
○
○
não é sem sentido. É constrangedor. Pode sig- pesquisa experimental; segundo, incluir exercí-
○
○
nificar negação ou rejeição do diálogo. cios de escrita livre nas aulas teóricas; e terceiro,
○
que as práticas escolares, em geral, têm pouca Como resultado desses esforços, os alunos es-
○
○
educação para a vida. Os resultados estão di- mais, eles se tornam mais confiantes e fazem me-
○
○
então, questionar sua legitimidade nos dias capazes de participar na nova era da tecnologia.
○
○
○
○
nal de Leitura amplia seu espectro em uma ou- relance, vimos também que a intensificação da
○
○
tra Resolução cuja introdução leva o título So- prática de leitura e escrita pode melhorar o de-
○
○
bre leitura e escrita no currículo. sempenho dos alunos até de uma escola técnica.
○
Diz o documento: Além disso, procuramos considerar a
○
○
conotação política da formação do leitor e do
○
○
Sabemos que os processos de leitura e escrita escritor: “O que ler? O que escrever? Para que
○
são, em si mesmos, uma maneira de aprender e ler? Para que escrever?”
○
○
que os alunos necessitam de muitas oportuni- Finalmente, concentramos-nos no lugar do
○
○
dades de ler e escrever para se tornarem leito- texto, no currículo e no papel dos professores di-
○
res bem-sucedidos e escritores hábeis e eficien-
○
ante do desafio de formar alunos competentes
○
tes... Se todos os professores ensinassem leitura
para ler e escrever, ou seja, para pensar, para se
○
e escrita em cada uma de suas disciplinas, os
○
comunicar. Dessa reflexão acredito ser possível
○
alunos aprenderiam os conteúdos em profundi-
○
concluir quais são os pressupostos de um projeto
○
dade e, ao mesmo tempo, se tornariam leitores ○
político-pedagógico desencadeador da compe-
e escritores mais eficientes.
○
se diga, esse trabalho com texto deve ir muito áveis que, combinadas, vão determinar a invari-
○
falando?
○
○
de formação de professores
○
comunicadores competentes:
○
professores
○
e na escola, da Educação Infantil até os cursos (a plasticidade), até a sua prática nas modalida-
○
○
universitários de formação de professores. des oral e escrita. A escola opera como se exis-
○
lembrando que a educação tem avançado em recaia sobre a chamada norma culta). No entan-
○
○
qualidade, mas que, infelizmente, ainda se apli- to, essa concepção escolar de linguagem tem
○
Por meio do olhar de pesquisadores compro- professores e alunos não encontram a porta de
○
○
metidos com a educação, penetramos numa sala acesso a esse objeto. Em geral, a prática rotinei-
○
52
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
ra da fala, nas interações sociais, ajuda os seus petência escritora dos professores que os ana-
○
○
usuários a avançar como comunicadores na lisam. Professores que já investem na sua prá-
○
○
modalidade oral. A interação via escrita, no en- tica, hoje, os conhecimentos teóricos construí-
○
○
tanto, fica paralisada. dos com base nos novos paradigmas têm esti-
○
Desde os seus primeiros anos escolares, os mulado os alunos a produzir muitos textos. Mas
○
○
alunos aprendem a confundir fala e escrita. Ao não sabem o que fazer com esses textos para
○
○
assumir o papel de ensinar a escrita, a escola ajudar os alunos a avançar.
○
expulsou de seus domínios a língua oral. E, as- São legítimas as perguntas: “O que pensam 53
○
○
sim, a escrita passou a ditar regras para a fala: as crianças sobre a comunicação entre as pes-
○
○
deve-se falar como se escreve. Mas sem sucesso. soas? E sobre a textualidade? Que hipóteses for-
○
○
Os sons da fala, antes tão claramente per- mulam nas suas primeiras interações com o
○
ceptíveis aos ouvidos dos alunos, perdem suas objeto texto? Que hipóteses ortográficas, que
○
○
características. Os alunos ficam surdos: não hipóteses textuais? O que pensam as crianças
○
○
descobrem na fala as onze vogais do Português sobre o que é escrever, o que é compor um tex-
○
○
porque são apenas cinco as letras que as repre- to, o que é comunicar-se por escrito, o que é
○
sentam. Professores e alunos se descobrem sem fazer um resumo, o que é fazer anotações, o que
○
○
chão quando percebem que uma coisa é o som, é um parágrafo, qual a diferença entre escrever
○
○
outra coisa é a letra... uma coisa é o som da le- e copiar, para que serve a pontuação...?”
○
○
primeiro slogan que a reação à cartilha produziu, para desenvolver a competência comunicativa
○
○
que logo seria reformulado para: “Aprende-se a es- dos alunos ou para condená-los ao silêncio. Sua
○
da língua escrita, em outra formulação e referindo- prática de ler, escrever e falar, seu envolvimento
○
○
se a leitores em seus primeiros contatos com a lín- com os alunos, sua história de falas e leituras,
○
medida que sua parceira mais experiente, a profes- de aprendizagem tão significativas quanto aque-
○
○
sora, o faz pensar sobre o que está lendo, levantan- las em que tradicionalmente se pretendeu ensi-
○
dos alunos
○
petente dos textos das crianças pode ser a me- pensando na natureza desse objeto que a gra-
○
○
○
○
em mente aqueles conteúdos que levam esse guagem, sempre sensível à necessidade de
○
○
nome na escola e que tanto a descaracterizam, adequação da fala ao seu contexto (não é só
○
a roupa que usamos que deve estar de acor-
○
nem a didática escolar usada no ensino da gra-
○
mática. Reporto-me ao modo de ser da lingua- do com o ambiente em que estamos; a lin-
○
guagem também);
○
gem: varia no tempo, no espaço (geográfico, so-
○
○
cial, psicológico...), varia no formato dos textos, • como falante de um dialeto natural, que seja
○
opera ambigüidades, redundâncias, sutilezas, a marca de sua identidade sociolingüística
○
○
usa metáforas, comunica mais por meio do que e cultural;
○
○
não diz do que daquilo que diz – explicitamen- • como escritor sensível à diversidade de mo-
○
○
te, é um sistema de contrastes. dos de usar a língua e às relações entre o pen-
○
E cada movimento, cada gesto comunicati- samento e as variadas formas de expressá-lo
○
○
vo na direção do outro, é um movimento ou um por escrito;
○
○
gesto inteiramente novo, nunca acontecido an- • como pessoa que descobriu a alegria de ler
○
○
tes e fadado a não acontecer outra vez (Chomsky, ○
e de escrever.
1967). E cada texto que se constrói é uma obra
○
Bibliografia
○
ser social e cultural, um comunicador. CHOMSKY, N. Aspects of the theory of syntax . Cambridge:
○
expormos a portadores de textos os leitores e os meios de comunicação. São Paulo: Summus, 1978.
○
língua escrita. Um pensador anônimo expressa, KATZ, P. S.; WARNES, Thomas E. Writing as a tool for learning.
○
1988.
○
Me envolve, e eu aprenderei.
○
1999.
○
O leitor e escritor competente é uma pes- MORAES, E. R. et al. Problemas da educação lingüística na
○
○
pesquisa.
○
• como construtor de sentidos: de textos ver- ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto
○
54
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
PALESTRA
○
○
○
Mediando a leitura:
○
○
○
rumo à autonomia do leitor
○
○
○
○
Tânia Mariza K. Rösing*
○
○
55
○
○
○
nuseio da informação, ou do processo de seleção
A escola brasileira
○
○
dos textos literários, entre outros, a serem lidos.
○
e a biblioteca
○
Não havendo a efetiva instalação de biblio-
○
tecas nas escolas, não há, conseqüentemente,
○
Sempre que se fala em leitura na escola bra-
○
preocupação com a formação de profissionais
○
sileira, não se pode considerar que a situação
○
capacitados para animar o acervo disponível, ou
○
seja igual nas diferentes regiões. É visível o es-
○
mesmo para viabilizar a sua ampliação em nú-
forço desenvolvido pelas autoridades educacio-
○
mero de livros e de outros suportes de nature-
○
nais no sentido de desenvolver ações que resul-
○
○
za diversificada, importantes no processo de
tem na melhoria da qualidade do ensino, am-
○
segmentos da sociedade.
○
pedagogia da pressuposição.
○
vros, às vezes de qualidade discutível, que vei- Para a atuação de profissionais como agen-
○
culam muitos textos de natureza didática. tes de leitura na biblioteca, o sistema educacio-
○
○
Os profissionais que são designados para nal da França apresenta uma solução diferen-
○
○
atuar nesse espaço, considerado uma sofrível ciada. Reconhecidos por sua cultura de leitura,
○
○
biblioteca, não apresentam, em sua maioria, profissionais egressos do Ensino Superior, de-
○
acervo existente, reduzido em número de títulos tecas, precisam passar por um processo de for-
○
○
e pobre em qualidade, nem ao menos a capaci- mação específica. Após concluírem um curso de
○
○
dade de estimular o gosto dos usuários pelo pra- graduação em instituições de Ensino Superior,
○
de informações que vêm de uma cultura de leitu- diferentes acervos das bibliotecas precisam re-
○
○
ra, ou mesmo de uma preparação específica para alizar um curso de dois anos, a fim de se capa-
○
○
atender às necessidades dos alunos acerca do ma- citarem como “professores documentalistas”.
○
○
○
○
○
* Doutora em Letras pela PUC/RS, professora de Literatura Brasileira da Universidade de Passo Fundo/RS.
○
Essa denominação “professor documenta- rado pelas autoridades educacionais brasileiras
○
○
lista” é bastante ampla: a formação dos profissio- no que diz respeito ao processo de implanta-
○
○
nais interessados não se restringe ao conhecimen- ção de uma política de leitura no Brasil, parale-
○
○
to específico para a realização do arquivamento lamente à formação dos agentes de leitura, no
○
de documentos ou catalogação de materiais di- contexto das diversidades territorial e cultural
○
○
versificados. Tal processo abrange, também, téc- brasileiras e, em especial, das condições dos
○
○
nicas de dinamização dos materiais existentes no professores que atuam nas escolas e nas biblio-
○
espaço da biblioteca, por meio de vivências de tecas existentes nesse contexto plural.
○
○
leitura multi e interdisciplinares, e a realização de
○
○
práticas de leitura integradoras dos conteúdos de
O compromisso dos
○
○
diferentes disciplinas de um mesmo nível de es-
○
colaridade, a partir de um tema central, só para mediadores com a seleção
○
○
citar um exemplo significativo.
de textos
○
○
Para que essa dinamização aconteça, é im-
○
○
prescindível, em primeiro lugar, que o professor ○
Tanto no espaço da sala de aula quanto na
documentalista seja, efetivamente, um leitor. sala de leitura ou numa biblioteca, os acervos
○
○
Quem é contagiado pelo prazer de ler desde a disponíveis precisam ser dinamizados por um
○
○
primeira infância circula entre livros, revistas e profissional leitor. Essa constatação apresenta
○
seus conteúdos com muita curiosidade, buscan- ser portador de uma erudição que vem de uma
○
○
do sempre outros materiais que possam enrique- cultura livresca. Ser leitor implica ter uma vi-
○
○
cer o conhecimento acerca de determinado as- são de mundo ampla, que prioriza o ser huma-
○
sunto. Em segundo lugar, adota uma perspecti- no com todo o seu potencial, identificando o
○
○
vestigações, pois não deve se apropriar do co- mudanças na sociedade, a fim de transformá-
○
○
nhecimento a partir da sua fragmentação. Deve la para melhor, garantindo um convívio de uni-
○
toras multi, inter e transdisciplinares, a partir do Que tipo de mediação é necessária? Enten-
○
○
as, ao lado de profissionais emergentes dos mais mediador, seja ele professor ou bibliotecário, é
○
Toda essa competência profissional, aufe- sobre o mundo em toda a sua complexidade,
○
rida durante a formação específica, é dirigida sobre os demais seres humanos, sobre si mes-
○
○
ao desenvolvimento do potencial natural da mo. Para tanto, é necessário conhecer o que está
○
○
criança, que precisa ser alimentado e desenvol- disponível não apenas nos acervos existentes na
○
○
vido. É importante, nesse caso, lembrar que tal escola, mas também no mercado editorial em
○
apenas, mas é construído a partir da vivência to científico, passando pelos textos de nature-
○
○
da criança entre seus pares, em grupos os mais za explicativa, argumentativa, entre tantos ou-
○
○
faixas etárias, são respeitados e se configuram to prévio adquirido ao longo de toda a sua for-
○
○
como resultados de ações de leitura que pro- mação profissional e pessoal, além de chamar
○
○
movem o ser humano sem o desconhecimento a atenção sobre o que conhece, mas que não
○
O caso francês é um modelo a ser conside- O importante é identificar, no texto escrito, nas
○
56
SIMPÓSIO 3
Desenvolvimento da competência leitora e escritora dos professores
○
○
nos recursos possíveis oferecidos pelo hipertexto,
○
emancipatórios?
○
as marcas das quais emergem nuanças com que o
○
○
leitor constrói a intencionalidade sugerida pelo Textos emancipatórios são os que oferecem,
○
autor, as quais poderão tomar rumos imprevisíveis
○
por meio dos signos gráficos, uma perspectiva
○
se forem utilizados, no ato de ler, os recursos ideológica na qual se constata uma visão de
○
○
hipertextuais referidos, existentes em programas mundo sem preconceitos de cor, raça, religião,
○
específicos para uso em computadores. 57
○
sexo, situação econômico-financeira, política e
○
Nesse processo, há que se selecionar autores cultural. Tais textos apresentam os seres huma-
○
○
cujos textos, ao serem reconstruídos pelo leitor nos respeitados e valorizados a partir de seu po-
○
○
durante a leitura, possam sensibilizá-lo a apro- tencial natural e adquirido socialmente, de seus
○
priar-se de idéias transformadoras que sejam
○
referenciais físicos, sociais e culturais específi-
○
eficazes na promoção de mudanças substanci- cos. Revelam o ser humano no âmbito de suas
○
○
ais na sociedade, a partir do meio em que atua. relações, a partir de adaptações às necessidades,
○
○
preferências e desejos atuais, enfocando o mun-
○
do atual e suas implicações, destacando o po-
○
Textos emancipatórios, ○
○
○
tencial de liderança, de criatividade, de sensibi-
provocadores da autonomia lidade existente em cada indivíduo e nos grupos
○
○
teiro Lobato ao escrever livros para o público dos com finalidade estética, provocando um
○
○
tempo específico, a partir dos anos 1970, em mia do leitor para que possa conduzir as suas
○
○
diferentes lugares do território brasileiro, sen- práticas individuais e sociais, o seu estar-no-
○
○
tiram o desejo de criar livros e de publicar li- mundo de tal modo que seja útil e reconhecido
○
cial de liderança, por sua curiosidade, por sua humano, em que prevaleçam os interesses do
○
○
dade de dialogar com a turma que passou a es- tos emancipatórios garante mudanças para
○
○
crever textos emancipatórios: Ana Maria Ma- melhor não apenas no indivíduo, mas na socie-
○
○
chado, Ziraldo, Ruth Rocha, Lygia Bojunga dade como um todo. Essa constatação provoca
○
Nunes, Ângela Lago, Maurício de Souza, Joel uma indagação preocupante: qual é a turma
○
○
Rufino dos Santos, Sérgio Capparelli, Liliana responsável pela autoria dos livros e dos demais
○
○
Iaccoca, Ricardo Azevedo, Elias José, Moacyr suportes com os quais crianças, pré-adolescen-
○
○
Scliar, Marcos Rey, entre tantos outros neste tes, pais, professores e bibliotecários estão se
○
METODOLOGIA DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES ENFOCANDO
O TRABALHO DE GRUPO
Abílio Amiguinho
59
Por que uma formação centrada
○
○
○
nos coletivos de formação?
○
○
○
○
○
Abílio Amiguinho
○
○
Escola Superior de Educação de Portalegre/Portugal
○
○
○
○
○
○
○
Um olhar crítico sobre
○
Esta intervenção é composta por duas par-
○
tes. Numa primeira parte são inicialmente
○
as práticas de formação
○
identificados os aspectos suscetíveis de análi-
○
○
se crítica no que se refere aos desenvolvimen- Ao sintetizar o diagnóstico crítico sobre o
○
tos recentes das práticas de formação contínua. ○
○
estado da questão da formação e do desenvol-
Sublinha-se como, apesar da proliferação de vimento profissional dos professores, António
○
○
um discurso científico e de uma retórica polí- Nóvoa (2000) utilizava a expressão “excesso de
○
○
tica que fazem uso de concepções inovadoras discursos, pobreza de práticas”. Dessa forma
○
trabalho concreto individualmente dirigidos e nio das concepções nessa matéria, não se veri-
○
○
dispositivos de formação alternativos que po- essa evolução conceitual, fruto de um trabalho
○
○
dem vir a contribuir para contrariar esse esta- considerável em nível de investigação, o que
○
do da questão.
○
Numa segunda parte, recorre-se a três rativas sobre a necessidade da mudança nesse
○
○
mação, vivenciados pelo autor em diferentes com freqüência produzidos e veiculados num
○
contextos, marcados por uma perspectiva de quadro típico de divisão técnica do trabalho de
○
○
inflexão das práticas, fazendo uso do traba- formação entre academia e escolas, ou entre
○
○
lho em grupo ou em equipe, de modo a aliar peritos e práticos, foram também apropriados
○
○
trabalho e formação. No primeiro caso, em- pelo campo político, sendo comum encontrá-
○
reavivar a memória profissional pela media- Basta que nos lembremos da forma como
○
foi ou não formativo e por que razões ou mação baseada na prática profissional” “inves-
○
○
motivos. Nos outros dois casos, o projeto de tigação-ação”, “projetos”, “auto-reflexão de co-
○
que mutuamente se suportam, foram aqui ção curricular” se converteu em menina dos
○
○
60
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
○
○
julga-se que algumas das suas potencialidades, to da longa duração e da continuidade, em
○
○
para além da flexibilização curricular, serão, que o programa de formação se sobrepõe ao
○
○
com toda a certeza, essa diversificação e essa dispositivo de formação.
○
transversalidade que pretendem, na gestão e no Continuam a não se potencializar forma-
○
○
desenvolvimento do currículo escolar, arrastar tivamente modos e modalidades de planifica-
○
○
consigo o trabalho cooperativo dos professores ção (e de intervenção) na escola como momen-
○
e a ruptura com a cultura do isolamento e do tos e oportunidades de formação. Em suma, 61
○
○
individualismo profissional. são ainda muito raros os projetos de formação.
○
○
Mais ou menos a par, nos últimos dois a três Provavelmente, o que é ainda pior, trata-se do
○
○
anos, as designadas modalidades inovadoras de reiterar de uma crítica que reconhece o redu-
○
formação foram promovidas à condição de zido impacto das formações. Tudo isso num
○
○
prioritárias em termos de elegibilidade finan- tempo sem precedentes no que se refere aos
○
○
ceira na gestão dos fundos da União Européia avultados investimentos de toda ordem, mas
○
○
investidos nesse campo. Curiosamente, as es- principalmente financeiros, no domínio da
○
tatísticas sobre as ações acreditadas e financia- formação.
○
○
das remeteram para registros insignificantes os Assim, a literatura da especialidade con-
○
○
cursos, os módulos de formação e até mesmo tinua a caracterizar a formação que se prati-
○
○
ção, os círculos de estudo e os projetos, por na- exterioridade em relação aos contextos de tra-
○
○
tureza modos de formação dirigidos a coletivos, balho e aos coletivos de intervenção, pensa-
○
○
tomam uma larga dianteira, ofuscando clara- da e organizada para ser desenvolvida sepa-
○
operação cosmética disfarça muito mal o pre- Uma feliz expressão de Mulford, produzi-
○
○
intervenção, em mais uma tecnologia for- puzzle que se retira do seu sítio para a trans-
○
○
mativa reflete-se, agora, na subversão dos mo- formar, para tentar, depois, que ela encaixas-
○
dos de trabalho de formação que a poderiam se de novo, sem ter transformado também as
○
○
concretizar. A sua banalização e vulgarização, demais peças” (García Alvarez, 1992: 133).
○
○
veiculam são do mais fino recorte informati- forma como o ambiente – da escola, mas tam-
○
vo, expositivo e transmissivo, podem contri- bém da própria sala de aula – freqüentemente
○
○
buir para desencantar quem neles participa e anula quaisquer intentos inovadores, induzi-
○
○
desacreditar ainda mais formas promissoras e dos pela formação do professor isoladamen-
○
○
Na verdade, são ainda irrelevantes os pro- ram identificados pela investigação. Entre
○
○
las ou de territórios educativos. É débil (ou “balcanizada”, o refúgio nos saberes discipli-
○
○
cessos conjuntos de formação. Visa-se mais à que na profissão equivalha a trabalho social,
○
tos que em Portugal se tornaram indispensá- em face da subestimação dos saberes da prá-
○
○
veis para a progressão na carreira). Prevalece tica, o agravamento da culpa profissional etc.
○
Suportes teóricos de rativa/reflexiva estarem mais bem colocadas
○
○
para ajudar “a reorganização das defesas e dos
○
formações mobilizadoras
○
sentidos e a reorganização dos prazeres”.
○
de coletivos em contextos
○
São evidências que corroboram outras
○
conclusões provenientes de outros contextos.
○
de trabalho
○
É por isso que a própria Lise Demailly (1997)
○
○
Contudo, também investigações recentes considera que as redes profissionais coope-
○
continuam a enfatizar o impacto positivo de rativas de intervenção constituem o melhor
○
○
determinados dispositivos de formação, ape- antídoto, em se tratando de ambiente de tra-
○
○
sar da sua raridade, na perspectiva dos que se balho e de formação, para um exercício pro-
○
○
formam. Num trabalho sugestivamente inti- fissional em que o prescritivo e o normativo,
○
tulado Será útil a formação contínua de pro- bem como o controle hierárquico e burocrá-
○
○
fessores?, Lise Demailly e seus companheiros tico, têm avolumado o sentimento de culpa-
○
○
de pesquisa (Demailly et al., 2000) confronta- bilidade nos professores. Julga, por isso, que
○
○
ram, em diferentes momentos do percurso ○
essas redes de trabalho podem contribuir para
profissional e de formação dos professores, a travar a espiral de efeitos perversos desen-
○
○
influência, sobre estes, dos modos e modali- cadeada pela solitude subie/volue (Demailly,
○
○
Com base na técnica da entrevista, em três como estratégia de refúgio), com origem no
○
(IUFM) e os processos de formação nas esco- A “regulação local” permitida pelo trabalho
○
las, supervisionados pela academia e por com- em rede pode favorecer a “emergência de uma
○
○
tos, com incidência, nas diferentes etapas de dogmatismo, o espírito de corpo, a incapaci-
○
presidiu as seqüências formativas das moda- tivas individuais ou em pequenos grupos. Su-
○
○
lidades de trabalho a partir das escolas. Des- blinha, além disso, a hipótese de construção
○
○
nérico de decisão negociada das áreas, das trabalho em rede, pela formalização de sabe-
○
interação que daí decorrem, quer com os de comunicar e de colocar sob forma escrita
○
○
Esse acompanhamento foi valorizado na sua não é mais de tradição ou de rotina: é feito de
○
○
da gestão, por facilitadores externos, das re- Demailly (1997) conclui assim por um triplo
○
lações interpessoais. Referiram, além disso, efeito do trabalho em equipe ou dos “coleti-
○
○
um maior reconhecimento dos efeitos sobre vos”: a criação de identidades abertas, a qua-
○
○
isso, mais eficientes. Os autores concluem Kherroubi, por seu turno, sobre aquilo que
○
○
ainda pelo fato de práticas de formação que considera uma real aposta profissional, escreve:
○
○
podem ser interpretadas à luz da forma inte- “[...] é manifesto que a dinâmica coletiva inter-
○
62
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
vém sobre os elementos estruturantes da profis- são crítica das noções em voga sobre forma-
○
○
são propriamente dita e sobre a motivação de ção, bem como das práticas a que dão origem.
○
○
exercer: relação positiva com os alunos, sentimen- A tabela de freqüências dos aspectos comuns
○
○
to de eficácia e sentimento de desenvolvimento colocou na dianteira a construção de respos-
○
profissional” (1997: 157). Sublinha ainda que par- tas para problemas da prática, ou mesmo a
○
○
ticipar como escola e nos seus projetos, embora possibilidade de equacionar problemas, como
○
○
com níveis de implicação diversos, significa a pre- as situações de maior potencial formativo. O
○
sença do “nível da escola” no “núcleo duro da pro- trabalho com os pares e com outros parceiros 63
○
○
fissão”. A título de conclusão, remata: enfrentar do processo educativo foi identificado como
○
○
problemas cria desestabilização, mas “confere fonte de conhecimento e de produção de com-
○
○
todo o sentido à profissão” (Kherroubi, 1997: 157). petências profissionais em contraste com a
○
irrelevância, para esse efeito, dos cursos ma-
○
○
gistrais, cuja persistência denunciam, a par da
Três experiências
○
○
de outras modalidades de formação, ser de ine-
○
de formação
○
ficácia igualmente reconhecida. Ou seja, o gru-
○
po reconheceu o impacto da dimensão coleti-
○
As experiências a seguir relatadas são de di-
○
va da formação.
○
mensão variável, constituindo, nos dois pri- ○
meiros casos, situações pontuais de um curso A partir desse ponto foi possível entrar na
○
○
formal de formação inerente à construção de nós fizéssemos, ou, de forma mais clara, que
○
Com base num pressuposto genérico de formação, entre professores e entre alunos das
○
rou ter provocado uma situação de pesquisa ganizaram-se em grupos – em número de três
○
○
formadora e em que diverge de outra conside- cionamento, para onde se deslocaram profes-
○
○
○
Sabíamos da existência de diferentes estágios
○
fessor de uma pequena escola teve consigo, de relação com a máquina e disso fizemos um ele-
○
○
durante um dia inteiro, mais quatro a cinco co- mento de gestão do trabalho de formação, de modo
○
que os “mais” experientes pudessem auxiliar os
○
legas que com que ele partilharam, sob a su-
○
pervisão de um formador, conhecimentos e ex- menos experientes ou sem qualquer experiência.
○
○
periências sobre correio eletrônico. Quatro
○
A mobilização dos professores do agrupa-
○
momentos foram considerados para o desen-
○
volvimento da formação: a) familiarização com mento superou as expectativas mais otimistas,
○
○
procedimentos técnicos específicos; b) peque- inclusive da T. Até mesmo a professora L, que
○
apresentou o senão do teste dos complemen-
○
na navegação na net; c) envio “livre” e recep-
○
tos de formação, acabou por estar presente, as-
○
ção de mensagens entre grupos nas escolas
○
hospedeiras; d) envio de mensagens com pro- sim como a professora Z.
○
○
duções de alunos e de professores. Efetivamente, apesar das dificuldades de
○
natureza técnica – arcaísmo das linhas telefô-
○
Em suma, o trabalho de formação consistiu
○
na implementação de uma estratégia simples, ○
○
nicas – a dezena de mensagens que uma esco-
isto é, a de aprender a trabalhar o correio ele- la enviou num só dia e as três dezenas, aproxi-
○
○
trônico enviando mensagens – aprender fazen- madamente, que cada uma recebeu, foram um
○
do, portanto.
○
muns ou semelhantes.
○
dos professores utilizam com os seus alunos. Era Construir e desenvolver um projeto de
○
○
pectativa de que daí se evoluísse para um uso mais ce do que os anteriores, teve origem na solici-
○
○
freqüente dessas tecnologias, uma vez superados tação à escola de formação em que trabalho –
○
○
o dia de formação iniciando com a navegação larmente no que diz respeito a sua intenção de
○
○
na net para nos concentrarmos no uso do cor- apoiar as inovações nas escolas e o desenvol-
○
vimento educativo.
○
mensagens recebidas, enviar mensagens, ane- Assim, num primeiro momento, a interven-
○
○
xar textos ou outros materiais etc. Tínhamos ção da Esep centrou-se na situação-problema
○
de partida, nomeadamente:
○
explicitação;
○
64
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
• integração no grupo que elaborou o projeto; • autonomização progressiva (da equipe do CRE);
○
○
○
• auxílio na redação e na revisão final do do- • incremento de processos de colaboração/
○
cumento do projeto. cooperação;
○
○
Posteriormente foi constituída uma equipe • formação com os pares e com os outros;
○
○
da Esep destinada a apoiar o desenvolvimento • articulação da intervenção escolar e extra-
○
○
futuro do projeto, ou seja, garantir o acompa- escolar num território;
○
○
nhamento formativo/metodológico, que teve, 65
• inserção do/da desenvolvimento/autono-
○
por meio da implementação de um Círculo de
○
mia das escolas num processo de desenvol-
○
Estudos, como principais finalidades: vimento local;
○
○
• promover a discussão/apropriação do pro-
○
• ambiente para novos projetos.
jeto global;
○
○
• diagnosticar situações conducentes à sua Grande parte da contribuição da Esep para
○
○
operacionalização; essa dinâmica formativa está relacionada, no
○
fundo, com o fato de o papel de assessoria da
○
• conceber e redigir os subprojetos;
○
instituição formadora assentar num compro-
○
• desenvolver formação técnica;
○
misso institucional em relação à mudança, as-
○
• constituir equipes de subprojetos; ○
○
sumindo-se como reguladora da intervenção
formativa e do trabalho dos formadores/
○
• planificar atividades;
○
“interventores”.
○
nam e dinamizam diferentes subprojetos, trans- ZANTEN, A. (Coord.). La scolarisation dans les milieux
○
○
mitiu incrementar uma dinâmica de formação de la reforma. Madrid: Editorial Escuela Española, 1992.
○
○
• trabalho do habitus profissional – a dimen- scolarisation dans les milieux “difficiles”. Politiques, processus
○
○
○
○
da formação de formadores
○
○
○
○
○
Maria Eliana Matos de F. Lima*
○
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
Introdução
○
○
• O contexto profissional e a formação de competên- • A co-responsabilidade dos membros do grupo ten-
○
○
cias: a análise das situações mostra a banalização do em vista os desafios que surgem no horizonte do
do trabalho em equipe na escola e em outros espa- ○
○
○
trabalho em equipe.
ços profissionais. • O papel da regulação no desenvolvimento dos níveis
○
○
em grupo que se geram razões para focalizarmos e • O projeto de trabalho realizado em cooperação e o
○
○
nos preocuparmos com o trabalho em grupo nos projeto de cooperação como projeto de trabalho.
○
○
Desenvolvimento
○
Introdução
○
○
○
prática de formação de professores. Este item Sei, contudo, que há uma cultura escolar de
○
de minha prática, contudo, muitas vezes tem- organização fragmentada da tarefa realizada
○
○
me deixado em alerta. E sabe por quê? pelos participantes do grupo, quando os itens
○
○
Ando meio preocupada com a banalidade do do trabalho são, mais ou menos, divididos en-
○
○
trabalho em equipe na escola e desejando saber tre os membros do grupo, assim: uns digitam
○
o que bem fazer para torná-lo de qualidade. ou passam a limpo o trabalho, outros realizam
○
○
minha mente. Vejo-me, por exemplo, diante de Por conta dessa vulgarização do trabalho em
○
○
uma situação de avaliação bastante descon- equipe, de uns tempos para cá resolvi que o
○
fortável, em que leio, com incerteza, os traba- exercício de avaliação seria individual: assim
○
○
lhos realizados por meus alunos “em grupo”. Não pelo menos eu saberia o que um aluno tinha
○
○
sei se todos ganharam, igualmente, com as aprendido e poderia ajudá-lo a melhorar a sua
○
○
○
○
○
* Maria Eliana Matos de Figueiredo Lima é professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco e membro da Equipe de Forma-
○
○
66
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
○
○
quieta porque sabia que a aprendizagem se faz
○
Pensando bem, nós, professores, podería-
○
em processos de interação. mos reinventar nossas práticas a partir de nos-
○
○
sas decisões em equipe acerca das aprendiza-
○
O aprendizado humano pressupõe uma nature-
○
gens realizadas por nossos alunos, do início ao
○
za social específica e um processo através do
fim de sua escolaridade.
○
○
qual as crianças penetram na vida intelectual
○
daqueles que as cercam (Vygotsky, 1935: 99). 67
○
Uma das mudanças que suscita mais resistên-
○
○
cia nesse ofício individualista é não ser mais o
○
Convivendo com essa problemática, parti
○
único responsável por um grupo de alunos,
para reorganizar a minha ação docente num só
○
como é o caso na divisão tradicional de tarefas
○
momento didático, no qual ensino, aprendiza-
○
e de responsabilidades nos estabelecimentos
○
gem e avaliação estavam presentes e articula-
escolares (Thurler, 2001: 17-21).
○
dos no mesmo tempo e no mesmo espaço
○
○
interativo da sala de aula.
○
• Constatamos cada vez mais, entre os pro-
○
○
fessores, o sentimento e a presença de me-
○
Ao invés de dar uma tarefa às crianças e medir
○
canismos a favor da continuidade do proje-
quão bem elas fazem ou quão mal elas se saem, ○
bem pensada.
○
anual, no meu estado. Esse cenário deman- Aprender a viver juntos, aprender a viver com
○
problema, que pode ser considerado como senta, hoje em dia, um dos maiores desafios da
○
○
uma violência simbólica praticada pela es- educação (Delors, 1998: 96-98).
○
Como desenvolver a pode funcionar como um verdadeiro cole-
○
○
tivo, em proveito do qual cada membro re-
○
competência de trabalhar
○
nuncia – aliena, voluntariamente, uma par-
○
em grupo? te de sua liberdade profissional. O tempo de
○
○
vida dessa equipe pode vir a ser curto!
○
Há vários níveis de interdependência da
○
• Um outro nível de situação de trabalho em
○
competência de trabalho em equipe, alguns do
○
grupo é revelado num contexto em que a pro-
○
quais citamos. posição pedagógica exige, por todo um ano
○
• Um deles pode ser o seguinte: um grupo
○
escolar, uma divisão flexível do trabalho, ne-
○
pode se juntar para decidir como vai repar- gociação e acordo, por exemplo, sobre os
○
○
tir ou dividir, por exemplo, um material es- programas das disciplinas, as atividades es-
○
colar ou organizar a gravação de um con-
○
colares e a avaliação adotada. Aqui, a co-res-
○
junto de fitas. Em que base o material vai ponsabilidade dos professores pelos mesmos
○
ser dividido ou organizado? Essa pergunta
○
alunos exige um nível mais complexo da
○
sugere várias outras perguntas:
○
○
competência de trabalho em equipe.
a. de acordo com as necessidades dos mem-
○
○
bros da equipe?
○
Comentando a
○
me, que garanta certa justiça ao seu trabalho. competência do trabalho em equipe, é preciso
○
○
• Um outro nível de competência de traba- que cada membro encontre seu espaço nas re-
○
○
lho em equipe pode se limitar às trocas e lações interativas, proteja sua parcela de fanta-
○
discussões de idéias e às práticas no interi- sia e até mesmo as suas neuroses... enfim, ga-
○
○
or de um grupo, sem que haja o exercício ranta a construção de sua autonomia e, por con-
○
○
da decisão. Essa prática, contudo, possibi- seguinte, a sua identidade pessoal e profissio-
○
municativa. Podemos observar as trocas esses diferentes níveis nas mais surpreenden-
○
É preciso, pois, por uma parte, verificar se minoritários acabam por aderir às decisões des-
○
○
são sempre os mesmos participantes que tes. Além disso, podem também estar sendo
○
um problema ao grupo etc. e se, por outra membros sintam estar aderindo à “lei do gru-
○
○
ticam e não pensam em nada para encami- Nesses e em outros casos, é preciso sempre
○
nhar, porque dizem que não sabem... ficar atento, vigilante mesmo, para que funcio-
○
○
Nesse nível, uma troca verbal pode pre- ne a regulação das interações entre os membros
○
sua autonomia. Mas, na verdade, se todos se líbrio melhor entre si. Do contrário, a equipe
○
68
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
Trabalhar em equipe é uma questão de compe- uma cultura de projeto em que todos desejam
○
○
tência e pressupõe a convicção de que a coope- e sabem elaborá-lo de forma coletiva e negocia-
○
○
ração é um projeto profissional a ser desenvolvi- da. Todavia, o segundo tipo de projeto requer o
○
do nas situações vividas nas interações internas
○
desenvolvimento da cooperação em um nível
○
das equipes que atuam na escola e nas interações mais complexo.
○
○
internas das diversas equipes de alunos organi-
○
zadas em sala de aula (Thurler, 2001: 17-21).
○
Articular representações
○
69
○
dos membros do grupo
○
Adotando a cooperação como
○
○
○
Saber que a cooperação é o que os partici-
projeto de vida e de trabalho
○
pantes de um grupo querem fazer juntos é con-
○
○
A adesão ao princípio do trabalho em equi- dição importante para iniciar o desenvolvimen-
○
○
pe permite-nos descobrir que nem sempre con- to dessa competência. Articular as idéias e as
○
seguimos atuar de modo cooperativo ou que, representações acerca da vida de seus membros
○
○
vez por outra, agimos cooperativamente nas si- é o grande desafio do grupo. Para isso, é neces-
○
○
tuações que vivenciamos. Em outras palavras, sário ouvir as propostas de todos, descobrir os
○
○
descobrimos que trabalhar em equipe é tam- ○
desejos menos confessos dos parceiros e bus-
bém, paradoxalmente, não trabalhar em equi- car acordos mútuos.
○
○
pe quando não valer a pena. E quando será que Essa competência, como se pode ver, ultra-
○
○
Pode-se definir uma equipe como um gru- membros do grupo. Ela supõe uma certa com-
○
cuja realização passa por diversas formas de grupo e das diversas fases do ciclo de vida de
○
○
Os projetos são tão diversos quanto as situa- vezes é cheio de incertezas. Enfim, para iniciar
○
horizonte, podemos distinguir dois tipos de equipe, é preciso haver no grupo uma relação
○
○
ou num grupo de formadores. Exemplo: a Falar, vez por outra, do medo da perda da auto-
○
ção. Nesse tipo de projeto, a cooperação é, assumir poderes ou de se submeter aos poderes
○
○
então, o meio para realizar o evento, pois dos outros é uma condição importante para tra-
○
concluído.
○
sional interativa” ( Thurler, 1996, apud grupo sejam coletivamente responsáveis pelo
○
grupo. Neste caso, a cooperação é mais um ça, pessoalmente, uma parte do comando e de
○
○
modo de vida e de trabalho do que uma sua condução. Isso supõe, então, que todos os
○
○
○
○
se magoam;
○
• sigam o planejamento da próxima reunião;
○
• as reuniões terminam sem que se decida a
○
• realizem a avaliação do trabalho;
○
data e/ou o conteúdo da próxima reunião.
○
• promovam a regulação das interações do
○
grupo.
○
○
Concluindo
○
○
○
A condução do grupo É na equipe que o desconforto das intera-
○
○
ções e da condução do grupo é superado. É o
○
Essa tarefa vai supor, ao mesmo tempo:
grupo que vai enfrentar o desafio de ajudar a
○
• uma certa preocupação com o funciona-
○
regulação de suas competências e descobrir
○
mento do grupo – para isso será necessário
○
como se faz isso (Coll et al., 1999).
○
fazer intervenções que facilitem a comuni-
○
cação e a tomada de decisões eficazes e Vê-se, pois, que a competência de trabalhar
○
em equipe passa longe de uma habilidade, ela
○
igualitárias; ○
tarefas a realizar.
○
a condução seja assim alcançada, não se pode dos nas situações reais e simuladas ( Vergnaud).
○
Bibliografia
○
• todo mundo fala ao mesmo tempo, sem de aula. Porto Alegre: Artmed, 1997.
○
○
• há muitas conversas paralelas; cação para o Século XXI. São Paulo: Cortez, 1998.
○
decisão, outros permanecem calados, sem ciclos de aprendizagens plurianuais? Revista Pátio, n.
○
○
Revista Geempa.
○
• muitos desconhecem o início e o fim das VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente . São Paulo:
○
reuniões;
○
70
SIMPÓSIO 4
Metodologia de formação de professores enfocando o trabalho de grupo
Metodologia de formação
○
○
○
de professores enfocando
○
○
○
trabalho de grupo
○
○
○
○
○
Ana Claudia Rocha
○
Centro de Estudos da Escola da Vila/SP 71
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
A atividade a ser relatada neste simpósio O trabalho de grupo é momento de cons-
○
○
pela palestrante pretende enfocar as ações de trução de significados compartilhados para
○
○
capacitação do Programa Praticar – Programa de qualquer comunidade que deseja constituir
○
Formação e Atualização Profissional Permanen- uma ação parceira entre seus membros. Po-
○
○
te –, realizadas pelo Centro de Estudos da Esco- rém, nesses casos que o Programa Praticar
○
○
tematizando as suas estratégias em favor do tra- produção do professor diante de sua própria
○
○
balho coletivo: a socialização da visita à escola, realidade, por vezes pouco favorável, e de
○
○
as reuniões de grupo, o registro individual que comunicar que a intervenção docente inten-
○
é veiculado coletivamente, a exposição de resul- cional e refletida pode ser, de fato, cons-
○
○
tados de sucesso da própria rede na situação de truída pelos professores do sistema público
○
simpósio interno.
○
de ensino.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 5
TRANSVERSALIDADE
E INTERDISCIPLINARIDADE:
DIFICULDADES, AVANÇOS
E POSSIBILIDADES
Ralph Levinson
73
Transversalidade e
○
○
○
interdisciplinaridade: organizando
○
○
○
formas de conhecimento para o aluno
○
○
○
○
○
Ralph Levinson
○
Instituto de Educação – Universidade de Londres/Inglaterra
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
treinamento. O emprego de conhecimentos e
○
○
Os conceitos de transversalidade e de inter- de habilidades em um ambiente acadêmico
○
○
disciplinaridade são discutidos identificando-se não envolve a resposta às necessidades do cli-
○
profissional afins.
○
Transferência ou cognição
○
em Química Analítica não conseguiam realizar rência de habilidades e de conceitos está asso-
○
○
análises simples exigidas pela empresa. Esses ciada à teoria dos estágios de Piaget. Piaget des-
○
○
74
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades
○
○
dindo a algumas crianças que operacio- essas mesmas pessoas não conseguiam solucio-
○
○
nalizassem tarefas do tipo conservação, por ele nar problemas semelhantes em um cenário
○
○
consideradas como habilidades abstratas e mais formal (Lave, 1988). Ao fornecer explica-
○
generalizáveis. Sem abalar a base teórica do tra- ções, em diferentes contextos, para fenômenos
○
○
balho de Piaget, outros teóricos posteriormen- baseados em princípios científicos semelhan-
○
○
te demonstraram que, modificando-se o con- tes, crianças na faixa etária de 12 a 16 anos não
○
texto da tarefa por meio do emprego, por exem- conseguiram apresentar explicações consisten- 75
○
○
plo, de figuras mais conhecidas ou da não-uti- tes (Clough e Driver, 1986). Alunos de 12 e 13
○
○
lização de um adulto para fazer as perguntas, anos não foram capazes de aplicar os conceitos
○
○
um número bem maior de crianças tinha con- e as habilidades aprendidos em Ciências a um
○
dições de realizar essas tarefas abstratas com projeto afim na área de Tecnologia, exceto da
○
○
mais sucesso do que se pensava anteriormen- forma mais rotineira e algorítmica (Levinson,
○
○
te. As tarefas começaram a fazer “sentido hu- Murphy et al., 1997). Os alunos com um bom
○
○
mano”, em vez de ser vistas como remotas ou conhecimento e entendimento dos conceitos
○
difíceis (Donaldson, 1978). Donaldson encara- científicos ficaram confusos ao empregar os
○
○
va os crescentes progressos intelectuais que conceitos em Tecnologia. Alunos nessa faixa
○
○
acompanham o desenvolvimento das crianças etária aprendem, por exemplo, que a água não
○
○
cias lógicas latentes. Em outras palavras, as cri- um sensor de umidade, os alunos aprendem
○
○
anças aprimoram seu pensamento abstrato. que a água fornece uma ponte de condutividade
○
○
Os construtivistas sociais foram ainda mais entre os fios na base do sensor. Assim, para eles,
○
to abstrato”, sugerindo que as habilidades inte- logia eram aparentemente contraditórios entre
○
○
lectuais não são descontextualizadas mas, sim, si. Ao descrever a relação entre o conhecimen-
○
○
zadas” (Walkerdine, 1988; Solomon, 1989). As- tica, Layton utilizou um modelo que “envolve a
○
○
em uma máquina fotocopiadora (22 cópias se- mento científico adquirido, a fim de que se al-
○
○
rão produzidas), ou apertando o botão “2” se- cance sua articulação com a ação prática em
○
tural constituem fator crucial na competência de princípios lógicos, por exemplo, é tida como
○
de tarefas, conforme indicam pesquisas no necessária, embora não ofereça condições su-
○
○
clássicos de Carraher et al. (1991) sobre crian- 2001). O projeto Aceleração Cognitiva por meio
○
○
ças de rua no Recife demonstraram que essas de Educação Científica (Cognitive Acceleration
○
crianças eram bem mais competentes para so- through Science Education – CASE) vem de-
○
○
lucionar problemas matemáticos em situações monstrando que, para alunos na faixa etária de
○
○
formais com lápis e papel. Entretanto, esses es- lógico nas aulas de Ciências produziram um
○
tudos mostram que a aritmética praticada na aumento das notas de crianças em grupos de
○
○
escola é mais eficiente na forma pela qual os controle, quando estas fizeram seus exames
○
○
cálculos são efetuados. Concluem dizendo que nacionais dois anos após a intervenção. Como
○
○
as escolas devem introduzir sistemas formais de o aumento das notas ocorreu não apenas em
○
humano”. Um estudo sobre adultos solucionan- Inglês, considera-se que as habilidades adqui-
○
○
do problemas de coeficiente isomórfico em si- ridas parecem ser transferíveis (Shayer, 1996).
○
Nem os educadores responsáveis pela introdu- outras? Na Inglaterra, por exemplo, a Física é
○
○
ção do CASE nem outros educadores apresen- vista como a ciência que corrobora todas as
○
○
taram, até o momento, uma estrutura teórica demais áreas científicas. A área de Ciências ge-
○
○
capaz de explicar essas constatações. Entretan- ralmente é ensinada separadamente no currí-
○
to, a teoria da motivação, ela própria associada culo, enquanto entre as matérias de Humani-
○
○
ao contexto, tem sido empregada para explicar dades há um certo grau de fusão. A autoridade
○
○
as diferenças, em termos de sucesso, entre em Ciências, emanada de órgãos de prestígio
○
aqueles alunos que apresentaram melhor de- tais como a Sociedade Real, tem um status so-
○
○
sempenho como resultado do CASE e aqueles cial pelo qual ela é gradualmente difundida para
○
○
para os quais o projeto não fez nenhuma dife- as escolas, mas não deve ser contaminada por
○
○
rença (Leo e Galloway, 1996). Outros sugerem outras matérias. Quanto mais passíveis de ser
○
que a associação estratégica entre o conheci- atravessadas forem as fronteiras de uma maté-
○
○
mento do processo científico e o conhecimen- ria, menor será seu prestígio.
○
○
to conceitual produzirá resultados semelhantes A despeito do status da Ciência como ma-
○
○
àqueles alcançados pelo CASE ( Jones e Gott, ○
téria de prestígio e de seu isolamento em rela-
1998). Os dois postulados teóricos – transferên- ção a outras áreas do currículo, há uma neces-
○
○
quisa educacional sobre esse fenômeno. necessidade de que futuros cidadãos tenham
○
○
alguma distinção entre a gama de conceitos e ma de controle genético, por exemplo, e a pos-
○
○
habilidades incluídos em cada disciplina e uma sibilidade de ser portador de uma condição ge-
○
“divisão fundamental de categorias” (Hirst e nética hereditária é algo que diz respeito não
○
○
Peters, 1970). Estes autores identificam sete áre- apenas ao indivíduo, mas também à sua famí-
○
○
Ciências Físicas e Estética. Embora essas formas moralidade privada dos indivíduos envolvidos,
○
○
dentes entre si, isso impede que haja inter-re- seus relacionamentos pessoais e sociais e sua
○
exemplo, podem ser utilizados para justificar clonagem humana e alimentos geneticamente
○
○
um princípio moral. Isso não significa que a modificados indicam que as decisões políticas
○
○
melhor maneira de organizar um currículo seja para sua aprovação são sensíveis à opinião pú-
○
mente, exatamente porque há inter-relações tes de testes genéticos traz importantes impli-
○
○
Uma crítica a essa abordagem feita pela mulação de políticas públicas e a criação de
○
mental sobre a distinção entre áreas de conhe- tica dessas questões pressupõem cidadãos que
○
○
cimento. A pergunta, tratada a partir de uma tenham algum controle sobre a ciência a elas
○
○
por que motivo algumas matérias curriculares que abraçam profissões nas áreas médica, do
○
○
têm mais valor e prestígio que outras e por quais serviço social e do ensino precisarão de uma
○
○
mecanismos algumas matérias se isolam de bagagem apropriada que lhes permita lidar com
○
76
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades
as muitas questões éticas, sociais e legais que gentes e não abordavam nenhum entendi-
○
○
devem surgir. Se os alunos, como futuros cida- mento substantivo da Ciência associado à
○
○
dãos, precisam lidar com essas questões con- questão, ou apenas abordavam os fatos e
○
não os valores a eles associados.
○
temporâneas, como e onde elas devem ser en-
○
sinadas pelas escolas?
○
○
As citações a seguir exemplificam as diferen-
○
○
Descobertas empíricas tes abordagens adotadas por professores de Ci-
○
77
○
ências e de Inglês.
○
Um projeto de pesquisa recente (Levinson
○
○
e Turner, 2001) estudou as formas pelas quais Quando falamos da ética de qualquer coisa,
○
assuntos que são alvo de controvérsia científi-
○
damos uma opinião em vez de apresentar algo
○
ca foram ensinados no currículo. Após um le- baseado em fatos. Quando você emite uma opi-
○
○
vantamento quantitativo em larga escala nas nião, expressa discordância. Então, toda a maté-
○
○
escolas da Inglaterra e do País de Gales, entre- ria será tratada da mesma forma que sua opi-
○
vistas direcionadas sobre o ensino de questões nião, sobre a qual há discordâncias pessoais.
○
○
científicas polêmicas foram realizadas com pro- Assim, o que você apresenta com base em fatos
○
acaba sendo tratado da mesma forma (professor
○
fessores individualmente e com grupos de pro-
○
estratégias ao fazê-lo.
res de Inglês e de Ciências: os professores de
○
○
ocupados com o fato de que a abordagem de lidam com a controvérsia todo o tempo, e avan-
○
○
cussões.
aluno a assimilar informações incorretas.
○
• Apenas uma das vinte escolas visitadas abor- nidades poderão possuir conhecimento e habi-
○
• Não havia técnicas de avaliação satisfatórias dimento mais completo do potencial e das pos-
○
○
○
○
texto social e de valores. Mas essas conexões a avaliação é uma questão crucial: tanto pro-
○
○
raramente acontecem, como explicou uma fessores quanto alunos levarão uma matéria
○
○
vice-diretora: mais a sério se esta for formalmente avaliada e
○
se tiver um status elevado no currículo. A apren-
○
○
Em uma escola como a nossa, com departa- dizagem do Dia do Colapso, portanto, é avalia-
○
○
mentos rígidos, departamentos independentes, da por meio de uma dessas matérias de prestí-
○
com suas próprias matérias, às vezes é difícil gio elevado. Na escola que adotou esse esque-
○
○
encontrar lugar para coisas que não constam do ma, a avaliação foi feita por meio da Educação
○
○
currículo... e muitas dessas questões prestam- Religiosa, embora não haja razão para que ava-
○
se a abordagens curriculares cruzadas, não é
○
liação não possa ser feita por meio de Ciências,
○
verdade? (vice-diretora, Escola E).
Inglês ou de qualquer outra matéria. Finalmen-
○
○
te, professores de diferentes matérias devem ser
○
Desse modo, um importante obstáculo à
○
parceiros iguais ao decidir o que deve ser ensi-
○
integração é a compartimentalização, em razão ○
○
nado no curso e como o ensino deve ocorrer.
da forma como o currículo está organizado na
Isso pode ser mais difícil do que se espera – a
○
integração ocorra.
liações seriam feitas por meio da matéria que
○
lecionam.
○
ticas:
○
curricular;
○
cisões.
○
Esses pontos dispensam maiores explica- bém oferece oportunidade para que conheci-
○
○
geralmente um dia – a fim de que professores como ensinar os aspectos sociais e éticos da
○
○
de diferentes matérias possam ensinar seus gru- Ciência em áreas aparentemente distintas. A
○
○
pos de alunos em conjunto. Para tanto, os pro- Ciência é vista como a tentativa de descrever e
○
○
78
SIMPÓSIO 5
Transversalidade e interdisciplinaridade: dificuldades, avanços e possibilidades
tos éticos operam com base em regras que aju- cal ou globalmente, pessoal ou publicamente,
○
○
dam a distinguir aquilo que deve ser daquilo em assuntos como tecnologia genética, preser-
○
○
que não deve ser. Entretanto, embora a evidên- vação de florestas tropicais, mudanças climáti-
○
○
cia empírica da Ciência possa nos ajudar a to- cas e saúde mundial. Um grupo de cidadãos em
○
mar decisões éticas, conforme dito anterior- desenvolvimento deve entender a natureza do
○
○
mente, há procedimentos comuns de pensa- argumento nos diferentes contextos, seja cien-
○
○
mento tanto no ensino da Ciência quanto no tífico, seja ético. No argumento científico, isso
○
ensino da Ética e da Moral. Os argumentos ci- significa a justificativa de uma demanda decor- 79
○
○
entíficos dominam o cenário político, quer lo- rente dos dados (Osborne, Erduran et al., 2001).
○
○
○
○
○
○
Antecedentes Asserção
○
○
Existem muitas variedades de bicos A diversidade de espécies
○
de aves marinhas encontradas nas Informação é um produto aleatório
○
Cada adaptação dá a cada espécie
○
ilhas Galápagos. da variação e da seleção
○
uma vantagem competitiva.
○
pelo meio ambiente.
○
○
○
○
Evidência Conclusão
○
○
filhos.
○
○
○
○
Evidência
○
○
to lógico tem uma conclusão corroborada por validade das conclusões e na identificação
○
quadro acima, duas evidências – uma científi- deveriam ser capazes de ensaiar esses ar-
○
○
ca e outra sociológica – são empregadas, em- gumentos para si próprios. Se por um lado
○
○
lização das estruturas de argumentos científi- mentos são abordados seriam exclusivas do
○
○
cos e éticos, mas também em outras áreas tais contexto de cada argumento.
○
○
O papel do professor é explicitar os elos en- ver de que forma um professor de Ciências
○
○
tipos de argumentos indutivos, estão abertos apoiar uma discussão ética no que se refe-
○
○
tégias didáticas adequadas, geram uma abor- bos os professores teriam experiência nos
○
○
senvolvimento profissional podem apoiar os Idealmente, essa aula deveria envolver vá-
○
○
rios professores na sala de aula com os alu- Journal, v. 31, n. 2, p. 57-60, 1999.
○
n o s, m a s, c o m u m p l a n e j a m e n t o i n t e r- HIRST, P.; PETERS, R. The logic of education. London:
○
○
Routledge & Kegan Paul, 1970.
disciplinar suficiente, não há motivos para
○
IKUENOBE, P. Teaching and assessing critical thinking
○
que ela não possa funcionar com professores
○
abilities as outcomes in an informal logic course.
com a mesma turma em aulas diferentes. Os
○
Teaching in Higher Education, v. 6, n. 1, p. 19-32, 2001.
○
alunos adquirirão experiência para julgar
○
JONES, M.; GOTT, R. Cognitive acceleration through science
○
questões polêmicas porque estarão exploran- education: alternative perspectives. International Journal
○
○
do o mesmo argumento em diferentes con- of Science Education, v. 20, n. 7, p. 755-68, 1998.
○
textos, assim aprendendo os limites da gene- LAVE, J. Cognition in practice: mind, Mathematics and
○
○
ralização da tomada de decisão. Novas pes- culture in everyday life . Cambridge/RU: Cambridge
○
University Press, 1988.
○
quisas empíricas devem ser realizadas sobre
○
LAYTON, D. Technology’s challenge to science education .
essa estrutura interdisciplinar e seu impacto
○
Buckingham: Open University Press, 1993.
○
na capacidade racional dos alunos para tomar
○
LEO, E.; GALLOWAY, D. Conceptual links between cognitive
○
decisões. acceleration through science education and motivational
○
○
○
style: a critique of Adey and Shayer. International Journal
of Science Education,v. 18, n. 1, p. 35-49, 1996.
○
○
BEARDSLEY, M. Thinking straight. New Jersey: Prentice- Research in Science and Technological Education., v. 15,
○
○
streets and in schools. In: LIGHT, P.; SHELDON, S.; of argument in school science. School Science Review,
○
use of students’ conceptual frameworks across different Centre for the Advancement of Thinking, 1996.
○
DONALDSON, M. Children’s minds. London: Fontana, 1978. WALKERDINE, V. The master y of reason : cognitive
○
FLOWERS, N.; MERTENS, S. et al. The impact of teaming: development and the production of rationality. London:
○
○
five research-based outcomes of teaming. Middle School Routledge & Kegan Paul, 1988.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
80
SIMPÓSIO 6
O LIVRO DIDÁTICO E A
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Ângela Paiva Dionísio
Kazumi Munakata
81
Livros didáticos de Português
○
○
○
formam professores?
○
○
○
○
Ângela Paiva Dionísio
○
○
Universidade Federal de Pernambuco
○
○
○
○
○
Introdução
○
○
○
A parceria livro didático–professor atraves- quase sempre detinham, dedicavam-se também
○
○
sa um momento de encontros e desencontros, ao ensino [...]. O professor da disciplina Portu-
○
uma vez que ambos estão em fase de transição, guês era aquele que conhecia bem a gramática e
○
○
buscando uma identidade que revele as trans- a literatura da língua, a retórica e a poética, aque-
○
○
formações teóricas e políticas ocorridas no pa- le a quem bastava, por isso, que o manual didáti-
○
análise meramente estrutural cede espaço para sentava conhecimentos gramaticais, textos para
○
○
a análise da língua em contextos de usos natu- leitura, exercícios. Afirma Soares (2001a: 153):
○
refletem as teorias lingüísticas mais recentes. Assim já não se remete ao professor, como anterior-
○
○
nal atual. Os artigos de Magda Soares “Que pro- formação do professor de Ensino Fundamental e
○
○
fessores de Português queremos formar?” (2001a) Médio nos cursos de Letras está longe de ter en-
○
Até a década de 1940, o ensino de Língua da autora questiona se “os alunos sabem, mini-
○
Soares (2001a: 151-52) lembra que as instâncias güística e Língua Portuguesa se evidencia dentro
○
○
de formação de professor só surgiram na déca- dos próprios cursos de Letras. Recai, pois, sobre
○
[...] eram estudiosos autodidatas da língua e de camente sobre o curso de Letras a responsabili-
○
dicos, advogados, engenheiros e outros profissio- cionar e como orientar os conteúdos de lingua-
○
○
nais liberais) e do exercício de cargos públicos que gem para o Ensino Fundamental e Médio.
○
82
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores
Esta é uma necessidade cada vez mais urgen- campo das possibilidades concretas de realiza-
○
○
te na formação do professor, pois os Parâmetros ção de um percurso pedagógico real no contex-
○
○
Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa to sociopolítico brasileiro.
○
○
simbolizam a aplicação direta das teorias lingüís- Responder que sim, que o livro didático
○
ticas no ensino de língua materna. Também tem também a função de formar professor, se-
○
○
Marcuschi (2000: 10) alerta para a importância ria reconhecer que ainda estamos com os pés
○
○
de o professor saber o que deverá fazer com as na década de 1950, uma vez que caberiam ao
○
orientações dadas pelos PCN em suas aulas: autor do livro didático a seleção e a prepara- 83
○
○
ção dos conteúdos a serem ministrados. Porém
○
○
Tudo dependerá, no entanto, de como serão tais não posso deixar de reconhecer que os manu-
○
○
orientações tratadas pelos usuários em suas sa- ais didáticos exercem funções de formação de
○
las de aula; seria nefasto se as indicações ali fei- professor. Gérard e Roegiers (1998: 89, apud E.
○
○
tas fossem tomadas como normas ou pílulas de Marcuschi, 2001: 141) asseguram que os ma-
○
○
uso e efeito indiscutíveis. Pior ainda, se com isso nuais escolares têm o objetivo “de contribuí-
○
○
se pretendesse identificar conteúdos unificados rem com instrumentos que permitam aos pro-
○
para todo o território nacional, ignorando a he- fessores um melhor desempenho do seu papel
○
○
terogeneidade lingüística e a variação social. profissional no processo de ensino-aprendiza-
○
○
tos de Neves (2000: 4) para ilustrar um tópico para a formação dos professores, destaco:
○
○
Indicação de referências
○
compasso consiste na não-aplicação (ou na pre- A partir da apresentação dos diversos tipos de
○
entanto, necessário ressaltar que, por serem de “leitura-prazer” na sala de aula. [...]
○
○
de professor –, pergunto-me: é também função Livro de histórias infantis eletrônico, com ilus-
○
mação de professores preparar seus alunos, fu- Revista de literatura infanto-juvenil. Apresen-
○
to, sei que essa resposta não se encontra ainda (acessado em setembro de 2002)
○
○
○
identifiquem mais vivamente o processo de va-
○
professores riação da língua ao longo de um tempo de que
○
○
têm uma compreensão mais fácil (o tempo dos
(3) Soares, v. 1-4, p. 29:
○
pais, tios, avós); por isso, são palavras ainda não
○
○
inteiramente desconhecidas, mas em processo
○
REVISTAS PARA O ALUNO
○
de desuso; o professor pode enriquecer o exer-
Ciência Hoje das Crianças. Revista de divulgação
○
cício mencionando palavras já em inteiro desu-
○
científica para crianças. Rio de Janeiro: Socieda-
○
so, como janota, cinematógrafo, escarradeira,
de Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
○
botica, etc.
○
Galileu. Rio de Janeiro. Globo. [...]
○
○
PARA O PROFESSOR
○
(6) Miranda et. al., v. 3, p. 261:
Amae Educando. Belo Horizonte: Fundação
○
○
Amae para Educação e Cultura.
○
Professor, há várias outras possibilidades de
○
Nova Escola. São Paulo: Abril Cultural. [...]
○
passagem da linguagem informal para a formal
○
○ no texto. Se quiser, explore-as com os alunos.
Indicação de livros, vídeos, músicas
○
○
estudo:
○
Para você saber mais sobre a década de 1930 e gem) e o conhecimento de ensino e de pesquisa
○
○
sileiro, sugerimos:
○
VÍDEOS
○
LIVROS
Federal de Pernambuco, encontrei uma clien-
○
brasileira da época, como Noel Rosa, Ari Bar- que já ensina ou já ensinou e que tem o li-
○
○
roso, Ataulfo Alves, Leonel Azevedo, Heitor vro didático como instrumento único de
○
destinos, como Luís Gonzaga, Luís Vieira, râneas durante o curso de Letras, não sabe
○
Eleomar, Dominguinhos, além do poeta po- o que fazer com elas no dia-a-dia de suas
○
○
pular Patativa do Assaré. aulas (ou pior, não acredita que possam –
○
○
6) grau de informatividade:
○
84
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores
como se portar como professor de língua. res do Ensino Fundamental e Médio num perí-
○
○
No geral, também não percebe as possíveis odo de seis horas. Dentre os resultados, inte-
○
○
relações entre as pesquisas que desenvol- ressa-me apenas registrar um deles, nesse
○
ve e o ensino de língua. Para este, o livro
○
momento: a constatação, por parte dos alunos,
○
didático tem a função de instrumentalizar de que, na relação com o livro didático, o pro-
○
o professor.
○
fessor deverá sempre ser superior a ele em co-
○
○
Aluno-aluno, ou seja, aquele graduando que nhecimento e em desempenho metodológico.
○
não tem experiência de ensino nem de pesqui- Como afirma Rose Marie Muraro, em Memórias 85
○
○
sa. Espera pela disciplina de Prática de Ensino de uma mulher impossível, “a prática é sobera-
○
como a grande inspiradora para a sua forma-
○
na na medida em que o conhecimento se cons-
○
ção como professor. Não percebe também a
○
trói no exercício da prática”.
○
relação entre os estudos feitos nos semestres
○
antecedentes como responsáveis pela sua for-
○
Os múltiplos olhares sobre
○
mação. O livro didático apenas representa um
○
○
recurso metodológico para o ensino.
a encruzilhada diabólica dos
○
○
O maior desafio consistia em fazer esses alu-
livros didáticos
○
○
nos perceberem o papel do professor como me-
○
diador. Como cerca de 50% da turma se enqua- ○
○
então, solicitar aos alunos a construção de duas quer seja nos cursos de Magistério quer seja nos
○
○
organizações didáticas especiais, apontadas cursos universitários. Deve ser, pois, com base
○
pelos PCN – projeto de pesquisa e módulos di- nas orientações recebidas nessas instituições
○
○
dáticos –, na tentativa de atrelar o conhecimen- que o professor poderá saber o que fazer com o
○
○
to teórico e o conhecimento sobre ensino de lín- livro ou com os livros didáticos em suas aulas.
○
○
gua, bem como inserir aqueles alunos que não O professor deveria saber o porquê dos conteú-
○
tinham tal experiência no campo da pesquisa, dos selecionados e as implicações das estraté-
○
○
porque esses futuros professores necessitarão gias utilizadas nos livros didáticos. Os autores
○
○
Um traço comum existia entre as três cate- as correntes teóricas em que fundam suas
○
○
gorias de alunos: como ensinar meus alunos a obras, mas nem sempre há uma correlação en-
○
○
pesquisarem? Foram montados seis grupos tre tais teorias e as atividades propostas no li-
○
está falando no texto?; Era uma vez... As fábu- estratégia de marketing e não uma orientação
○
○
las e os contos de fada na sala de aula; As histó- teórico-metodológica. Listar referências biblio-
○
○
rias em quadrinhos na sala de aula; Entre a pa- gráficas atuais recheadas de autores de renome
○
alunos das três categorias. Em cada grupo fo- carimbar a capa do livro com expressões como
○
○
ram desenvolvidas as seguintes etapas: revisão “Aprovado pelo PNLD” ou “De acordo com os
○
da bibliografia sobre os temas (momento que PCN” não asseguram a tal obra coerência entre
○
○
contou muito com a colaboração dos alunos- pressupostos teóricos e práticas metodológicas.
○
○
verificar o tratamento dado por estes aos tópi- Neves (2000), a “encruzilhada diabólica” que se
○
tema no Ensino Fundamental e Médio, monta- livros didáticos, por um lado, precisam atender
○
○
gem de um módulo didático que foi ministrado às exigências do PNLD e dos PCN, os quais, por
○
para alunos de Letras e Pedagogia e professo- seu turno, requerem a aplicação de programas
○
○
de ensino respaldados nas contribuições das
○
○
correntes lingüísticas mais recentes. (7) Cereja e Magalhães, v. 5, p. 34:
○
○
Para ilustrar tal encruzilhada, relatarei, bre-
○
○
vemente, uma pesquisa realizada por um gru- 1. O texto abaixo é parte da carta de uma lei-
○
po de professores e pesquisadores da Universi- tora que elogia a matéria publicada sobre gí-
○
○
dade Federal e Pernambuco e da Universidade rias numa revista. Leia o texto e, em seguida,
○
○
Federal da Paraíba (campus Campina Grande). reescreva-o, substituindo as gírias por pala-
○
Tomando por base 25 coleções destinadas ao vras e expressões da norma culta.
○
○
Ensino Fundamental, publicadas ou
○
É massa!
○
reformuladas entre 1996 e 1999, o grupo deci-
○
Dessa vez a Atrevida “arrepiou”. Foi “da hora”
○
diu investigar quais eram as tendências teóri-
○
a matéria NA PONTA DA LÍNGUA, com as gí-
cas e metodológicas para a abordagem dos se-
○
rias “maneiras” de todos os lugares É por isso
○
guintes temas:
○
que me “amarro” cada vez mais nesta revista:
○
○
descolada, divertida, diferente e “trilegal”.
○
Tema Por
○
○
○
1. Tratamento da oralidade Luiz Antônio Marcuschi Uma postura ainda pouco freqüente consis-
○
3. Compreensão de textos Luiz Antônio Marcuschi mática das relações entre fala e escrita como
○
○
4. Abordagem do poema José Helder Pinheiro duas modalidades de uso da língua com fun-
○
6. Produção de textos Maria Augusta Reinaldo sendo ambas responsáveis pela formação cul-
○
(8) Soares, v. 3, p. 65
○
○
mais usadas:
investigações estão compilados em O livro didá-
○
pela Editora Lucerna, em abril deste ano. Tomarei vras: vitrola, patinete, caneta-tinteiro,
○
○
apenas os tópicos “língua falada” e “variedades lin- aeroplano, galocha, pó-de-arroz, cristaleira,
○
bibelô, ruge.
○
ram “de maneira tão incisiva a fala como o lu- Só as palavras deixaram de ser usadas ou
○
gar do erro. Há, no entanto, que suspeitar do as coisas que elas nomeiam também deixa-
○
○
mérito dessa postura, pois ela se deve muito ram de ser usadas? Ou essas coisas ainda
○
○
mais ao silêncio dessas obras sobre a fala do são usadas, apenas mudaram de nome?
○
○
uso” (Marcuschi, 2001: 24), pois o espaço des- Quanto à apresentação das variedades lin-
○
○
tinado à língua falada raramente supera 2% do güísticas (VL), basicamente, são duas as possi-
○
uma questão lexical restrita ao uso de gírias e por perguntas de compreensão; e b) utilização
○
○
de expressões coloquiais, como no exemplo a de texto com VL, seguido por perguntas de com-
○
seguir.
○
86
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores
reescritura de VL. Nem sempre, na abordagem gêneros textuais, quando da elaboração de ati-
○
○
do texto, respeita-se a relação entre VL e carac- vidades. Afirmar que “não houve comunicação
○
○
terísticas textuais. Tal fato decorre, a meu ver, entre os dois porque, embora falem a mesma
○
○
de análises equivocadas que resultam em erros língua, pertencem a grupos sociais diferentes”
○
conceituais e em inadequações metodológicas, e que “E aí governador, firme?” é linguagem
○
○
como se verifica, infelizmente, no exemplo 9. culta compromete, seriamente, a formação do
○
○
professor e do aluno.
○
Fazendo um contraponto, apresento, a se- 87
○
(9) Azevedo, v. 5, p. 34-35:
○
guir, um exercício em que se encontram atrela-
○
○
1. Leia a piada abaixo e responda às pergun- dos respeito ao gênero textual, fidelidade à lin-
○
tas:
○
guagem dos personagens e atividades de refle-
○
Aquele homem humilde, simples, sotaque cai- xão sobre o uso da VL. A partir da letra da músi-
○
○
pira, foi eleito governador. Um dia, um desses ca Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, o li-
○
políticos de palácio chega bem perto e surpre-
○
vro didático propõe o seguinte:
○
ende o governador vendo televisão. Faz sua
○
○
média:
(10) Carvalho et. al., v. 3, p. 71:
○
– E aí governador, firme?
– Firme, não. Novela! ○
○
○
vernador?
○
lada.
○
de diferente nela.
○
as palavras:
○
pular.
○
○
○
Há, é lógico, o uso de VL nessa piada, tema senhor – senhô contar – contá gritar – gritá
○
textos que envolvem temas socialmente contro- norma culta passam a ter.
○
○
identifique dois sentidos para o termo “firme”: 9, neste caso o Manual do professor (p. XXXV )
○
○
“filme”. E é justamente essa confusão de senti- ra coerente, informando que o uso da letra da
○
do que causa o humor. Não quero negar com música de Adoniran Barbosa abre “espaço para
○
○
isso a caracterização do governador como cai- a discussão sobre questões atuais no país e di-
○
○
pira nem negar o preconceito existente, pois ferentes normas da língua”. Alerta ainda que
○
mar a atenção para a necessidade de atrelar com o certo e o errado é fundamental, para não
○
○
adequadamente os domínios de linguagem aos trair, entre outras coisas, o espírito da música”.
○
○
Dizem, ainda, as autoras sobre o fato de que a
○
LAJOLO, Marisa. Livro didático: um (quase) manual de usu-
○
música está escrita na norma não-padrão: ário. Em Aberto, n. 69, p. 2-9, 1996.
○
○
MARCUSCHI, Luiz A. O papel da Lingüística no ensino de
“Acreditamos que muitos aspectos possam ser
○
línguas. Anais do I Encontro de Estudos Lingüístico-
○
observados pelas crianças: está escrita como se
Culturais da UFPE, 2000.
○
fala; não aparecem o “r” e o “l” final de muitas
○
. Oralidade e ensino de língua: uma questão
○
palavras; algumas palavras são escritas diferen- pouco ‘falada’. In: DIONÍSIO, Ângela P.; BEZERRA,
○
○
temente de como costumam aparecer nos li- Maria A. (Orgs.). O livro didático de português: múlti-
○
vros, como tauba em vez de tábua; [...].” Traz, plos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001, p. 19-32.
○
○
portanto, este Manual do professor algumas in- MARCUSCHI, Elizabeth. Os destinos da avaliação no ma-
○
nual do professor. In: DIONÍSIO, Ângela P.; BEZERRA,
○
formações que contribuem para a formação do
○
Maria A. (Orgs.). O livro didático de português: múlti-
○
professor. Recorro, nesse momento, às palavras plos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001, p. 139-50.
○
de Lajolo (1996: 5) sobre o Manual do profes-
○
POSSENTI, Sirio. Os humores da língua. São Paulo: Mer-
○
sor: “Precisa ser mais do que um exemplar que cado de Letras, 1998.
○
○
se distingue dos outros por conter a resolução REINALDO, Maria Augusta. Teoria e prática na formação
○
○ do professor. Anais do II Congresso Internacional da
dos exercícios propostos”, já que o professor é ○
chega às mãos dos alunos”. dem suas lições na formação dos professores. Anais
○
○
tatou-se que, mesmo com avanços relativos à SOARES, Magda. Que professores de português queremos
○
○
presença de teorias mais recentes de língua, os formar? Revista Movimento , n. 3, p. 149-55, 2001.
○
Bibliografia
○
1999. v. 3.
○
didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janei- MIRANDA, Cláudia et al. Vivência e construção: Língua
○
GÉRARD, François-Marie; ROEGIERS, X. Conceber e ava- SOARES, Magda. Por tuguês: uma proposta para o
○
88
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores
○
○
○
do professor são incompatíveis?
○
○
○
○
○
Kazumi Munakata
○
○
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
○
○
89
○
○
Aos companheiros professores e funcionários das Universidades
○
○
Federais que, no momento em que este trabalho foi apresentado no
○
Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação, encontravam-se em
○
○
greve pela dignidade no exercício de suas atividades profissionais e,
○
conseqüentemente, pela qualidade na educação.
○
○
○
○
○
○
○
“Costumo esclarecer que à perda crescen-
○
A ditadura, ao mesmo tempo que introdu-
○
te da dignidade do professor brasileiro con- ○
○
zia a “pedagogia tecnicista”, impôs, mediante
trapõe-se o lucro indiscutível e estrondoso compressão salarial, “o solapamento contínuo
○
○
das editoras de livros didáticos” – o esclare- e crescente da dignidade profissional dos pro-
○
Silva (1998: 58), num artigo originariamente aulas, sem muito tempo para atualizar-se e, por
○
○
publicado na revista Em Aberto (n. 69), de isso mesmo, lançando mão dos livros e manu-
○
○
1996, data em que ele era titular da Secreta- ais que lhes chegavam prontamente” (idem: 45)
○
ria da Educação da Prefeitura Municipal de – o que teria contribuído para a elevação dos
○
○
Campinas (São Paulo), na gestão do prefeito lucros das editoras. Para esses professores as-
○
○
Magalhães Teixeira, do PSDB. O fato de ele ter sim desqualificados, “coxos por formação e/ou
○
○
sido, então, diretamente responsável pela mutilados pelo ingrato dia-a-dia do magistério”
○
dignidade da parcela campineira do profes- (idem: 57), o livro didático tornou-se “bengala,
○
○
sorado brasileiro parece não importar muito muleta, lente para miopia ou escora que não
○
○
quando se trata de prosseguir sua obstinada deixa a casa cair” (p. 43). Silva (1998) remata:
○
ocupa considerável espaço da sua produção fessor apresenta-o com um livro nas mãos, dan-
○
○
Para ele, o livro didático associa-se direta- mento são elementos inseparáveis” (idem: 58).
○
Ainda que as cartilhas, os manuais de ensino do livro é um desqualificado, “coxo por forma-
○
na escola brasileira desde o início do século vros ou ele considere indigno da sua sabedoria
○
○
19, é na segunda metade da década de 1960, recorrer a livros para adquirir novos conheci-
○
um mercado rendoso, lucrativo e certo (Sil- seu interesse (o período da ditadura militar no
○
○
○
fessor são antípodas.1 servação do fazer e pelo treino do próprio
○
○
Segundo Guy Vincent, Bernard Lahire e fazer, em seus respectivos ambientes (o
○
aprendizado de um ofício artesanal fazia-se
○
Daniel Thin (1994), a instituição que hoje co-
○
nhecemos como “escola” apareceu na Europa numa oficina; o de um cavaleiro, na casa de
○
um nobre etc.). Na escola, ao contrário, en-
○
no decorrer dos séculos 16 e 17. Eles advertem
○
sina-se a todos um conjunto de saberes e
○
que o fato de certas palavras do vocabulário
○
valores independentemente da especializa-
educacional terem existido desde a Antiguida-
○
ção a que cada aluno se destina ou almeja,
○
de não significa que elas indicassem sempre as
○
e esse conteúdo genérico a ser ministrado,
○
mesmas coisas. A “escola”, por exemplo: essa
○
sem referência a nenhum ofício em parti-
○
palavra deriva do grego skholê, que significava cular, inviabiliza o aprendizado centrado no
○
“lazer”, “entretenimento”, num sentido muito
○
fazer.
○
próximo ao do latim otium, que daria origem à
○
• “Escrituralização-codificação dos saberes e
○
palavra portuguesa “ócio”. Esses termos indica-
○
○
das práticas” (Vincent et al., 1994: 31). Exa-
vam a condição privilegiada dos “homens li-
tamente na medida em que o fazer e o ensi-
○
se dar ao luxo de dedicar-se ao cultivo das ar- ma de registro que é a escrita. “Uma peda-
○
○
A escola que se idealizou e foi se constituin- física, da atividade militar, da dança etc. não
○
○
do nos séculos 16-17 opôs-se de certo modo a se faz sem uma escrita do desenho, uma es-
○
○
esse elitismo dos “bem-nascidos”. Numa época crita musical, uma escrita esportiva, uma
○
marcada pelos movimentos de Reforma e de escrita militar, uma escrita da dança. Escri-
○
○
Contra-Reforma, o protestante Comenius (1592- tas que implicam quase sempre gramáticas,
○
○
1670) imaginou uma “arte de ensinar tudo a to- teorias das práticas. O modo de socializa-
○
lado católico, os Irmãos das Escolas Cristãs, de Por isso mesmo, a escola é antes de tudo
○
○
uma escola gratuita para todos, cujo ensino re- Afirmam Vincent et al. (1994: 36):
○
○
de outras práticas sociais” (Vincent et al., se pode denominar uma relação escritural-esco-
○
próprias, num âmbito que não se confunde Num lugar assim instituído, o livro neces-
○
• A separação entre o fazer e o ensinar. Até mental. Em Ratio studiorum, uma espécie de
○
○
então, o aprendizado (de saberes, valores, manual de ensino dos colégios jesuítas, redigi-
○
○
○
○
○
○
1
O seu recorte histórico, que só conhece o período da ditadura militar, obscurece, por isso, o fato notório de que o grande boom dos livros
○
○
didáticos (e, portanto, da lucratividade das editoras) aconteceu com a redemocratização, com a instituição, em 1985, do Programa Nacional
○
do Livro Didático (PNLD), por meio do qual o governo federal chegou a adquirir, em 1999, quase 110 milhões de exemplares.
○
90
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores
do entre 1548 e 1599, grande parte foi dedicada tou a passagem do termo “text book para text-
○
○
aos livros a ser adotados. Mais do que isso, ha- book, depois textbook, evolução que reflete [...] a
○
○
via uma série de recomendações sobre o modo emergência de uma categoria e de um produto
○
○
como eles seriam lidos, com a indicação de tre- específicos” (Stray, 1993: 74, nota 2). Na França,
○
chos que deveriam ser omitidos por conter in- de acordo com Chervel e Compère (1997), vários
○
○
conveniências (principalmente em relação à autores, hoje tornados “clássicos”, dedicaram-se
○
○
doutrina cristã). Também Comenius, em Didá- a produzir obras especialmente destinadas a fins
○
tica magna, discutiu os prejuízos causados pela didáticos: Ester e Atália, de Racine, ou Aventuras 91
○
○
leitura de livros pagãos e recomendou que se de Télémaque, de Fénelon, e Discurso sobre a his-
○
○
produzissem livros especialmente adequados tória universal, de Bossuet, são exemplos.
○
○
ao ensino. Por sinal, ele mesmo foi o autor de Essas considerações, longe de pretenderem
○
um livro que julgou adequado aos propósitos esgotar uma possível história do livro didático,
○
○
didáticos: a obra intitulada Orbis sensualium servem apenas para indicar que este faz parte
○
○
pictus (O mundo sensível em imagens), de 1658. da vida escolar desde que a escola é escola. Nes-
○
○
Segundo Narodowski, esse livro, em que cada se sentido, ao contrário do que imagina o se-
○
capítulo refere-se a um assunto a ser ensinado cretário Silva, de fato “o ensino, o livro e o co-
○
○
e contém ilustração correspondente, nhecimento são elementos inseparáveis” na for-
○
○
[...] é a matriz mediante a qual se reproduzirão é imagem estereotipada da sua deficiência a ser
○
os livros de textos didáticos que deverão formar compensada com muleta, mas a afirmação da
○
○
Do ponto de vista de seu conteúdo, o livro di- ções na sua forma e no modo de sua produção
○
○
texto didático não possui um valor literário ou sa a constituição, a partir do final do século 19,
○
para o processo de produção de conhecimentos do ele não existia, cada aluno devia trazer de
○
escolares. Mais ainda, o texto possui um estilo sua casa algo escrito – manuscrito ou impresso
○
○
literário e uma retórica singular [...]. O livro de – que pudesse servir de material de ensino, e
○
○
texto didático constrói uma estética que lhe é este era necessariamente individualizado. A
○
Nos Estados Unidos, como mostra Stray, a o ensino simultâneo, pelo qual muitos passa-
○
○
constituição e o desenvolvimento desse gênero ram a estudar uma mesma matéria ao mesmo
○
ção da própria terminologia que o designa: con- Como suporte da organização das práticas
○
○
sultando o catálogo da Biblioteca de Nova York escolares, o livro didático destina-se tanto ao
○
○
referente ao período de 1880 a 1920, ele consta- aluno como ao professor. 2 Os usos que um e
○
○
○
○
○
2
Segundo Gérard e Roegiers (1998), no Vietnã, os livros didáticos “são especialmente concebidos para os pais a fim de os ajudarem a
○
assegurar as aprendizagens escolares dos filhos” (p. 30). Pode-se também suspeitar que, no Brasil, desde que o Programa Nacional do Livro
○
Didático (PNLD) passou, a partir de 1995/1996, a avaliar os livros didáticos, os avaliadores tornaram-se os destinatários prioritários.
○
outro fazem do livro didático são diversos, múl- colha, pelos professores, dos livros recomenda-
○
○
tiplos: nem sempre se lêem esses livros porque dos pela avaliação do PNLD:
○
○
se desconhece o seu conteúdo. Dito de modo
○
○
mais claro: se um professor usa um livro didá- Tendo em vista o PNLD/97, cerca de 72% das
○
tico, isso não significa necessariamente que ele escolhas docentes recaíram sobre os livros não-
○
○
seja malformado, ignorante, como fazem supor recomendados e apenas cerca de 28% sobre os
○
○
as metáforas de “muleta”, “escora” etc. Não há recomendados. No PNLD/98, embora a soma
○
apenas uma maneira de ler um livro – ainda dos livros recomendados (com distinção,
○
○
mais em se tratando de livros didáticos, para o 21,88%; com ressalvas, 22,15%; ou simplesmen-
○
te recomendados, 14,64%) tenha constituído o
○
que é mais conveniente falar em “uso” do que
○
grupo mais escolhido pelos docentes, a catego-
○
em “leitura” (Lajolo, 1996). Esses livros são car-
○
ria que, isoladamente, mostrou-se a mais repre-
regados de um lado para outro; são rabiscados
○
sentada continuou a ser a dos não-recomenda-
○
(embora o governo não goste disso...); raramen-
○
dos (41,33%). No PNLD/99, por fim, as escolhas
○
te são lidos de ponta a ponta ou na seqüência
○
dos docentes, com a eliminação da categoria dos
○
em que seus conteúdos estão ordenados.
não-recomendados, recaíram, predominante-
○
algumas informações ainda díspares são surpre- ção representando apenas 8,40% das escolhas
○
○
co de História em algumas escolas estaduais de O que ressalta nesses dados é, mais do que
○
○
Ensino Fundamental na cidade de São Paulo. um “descompasso”, uma inversão completa en-
○
liza livro didático apenas como fonte de ilus- da avaliação do PNLD. O que isso significa? A
○
○
trações. Outro relata que o emprega para fazer incompetência dos professores, incapazes de
○
○
exercícios de leitura – habilidade que, segundo optar pelo melhor? O documento do MEC
○
Esses exemplos revelam não a suposta defi- vro didático assim como alguns dados relativos
○
tas; ao contrário, mostram a extrema criatividade para a formação docente como um dos fatores
○
○
no manuseio desse material, por cuja escolha relevantes para a compreensão do referido
○
○
esses professores nem sempre foram responsá- descompasso (MEC, 2001: 33.).
○
desenvolver uma excelente aula. Essas questões, indicadores que apontam para a precariedade
○
○
avaliação dos livros didáticos. Sintomático nes- Embora essa hipótese não possa ser descar-
○
○
vas do PNLD e as dos docentes”, reconhecido por possibilidade de equívocos nas avaliações rea-
○
○
um documento do próprio Ministério da Edu- lizadas pelo PNLD. Não é possível que os pró-
○
cação (MEC, 2001), isto é, o baixo índice de es- prios avaliadores tenham uma formação inade-
○
○
○
○
○
○
3
Araújo (2001) descreve uma situação muito comum em que, em razão da intensa rotatividade dos docentes em relação às unidades de
○
ensino, os professores têm de adotar livros que não escolheram. Além disso, essa pesquisa constatou que nem sempre há livros suficientes
○
○
para todos os alunos, o que faz com que os professores retenham os exemplares na escola, distribuindo-os e recolhendo-os a cada aula.
○
Convém esclarecer que a escolha e a distribuição dos livros didáticos no Estado de São Paulo são realizadas de modo autônomo, cabendo
○
92
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores
quada? Como o avaliador é avaliado? Como é ao ensino dos conteúdos de uma disciplina, mas
○
○
recrutado? A esse respeito, o Guia de livros di- é também ocasião de desenvolvimento de cer-
○
○
dáticos, em várias edições, é extremamente tas habilidades – por exemplo, de leitura. Antes
○
○
lacônico. Na edição referente ao PNLD 2000/ mesmo de os Parâmetros Curriculares Nacionais
○
2001 afirma-se que os avaliadores são preconizarem atitudes, transversalidades e toda
○
○
a sua parafernália neotecnicista, os professores
○
○
[...] especialistas que atuam tanto no Ensino já desenvolviam essas práticas, sem o que mi-
○
nistrar sua própria disciplina específica ficava 93
○
Fundamental como na universidade e é basea-
○
da não só na experiência docente e no conheci- muitas vezes inviabilizado.
○
○
mento especializado das equipes, mas, princi- Não que a formação esteja às mil maravilhas;
○
○
palmente, naquele conjunto de princípios e cri- ao contrário: é com muita apreensão que se as-
○
siste hoje ao incentivo à proliferação desenfrea-
○
térios já referidos (Introdução Geral).
○
da de cursos improvisados de formação docente,
○
○
Na edição do Guia do PNLD/2002, não há muitos de curta duração, apenas para fazer cum-
○
○
menção à figura do avaliador, mas há um escla- prir estatisticamente o preceito da nova Lei de
○
recimento de que “o Ministério adotou uma Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que exi-
○
○
nova sistemática para o processo de avaliação”, ge formação superior de todos os docentes em
○
○
buscando, “por meio de parcerias com univer- todos os níveis de ensino. Não é assim que os pro-
○
pesquisa universitária sobre o tema, bem como bilidades de uso – e, portanto, de escolha – dos
○
○
experiência acumulados” (p. 11). Que pesqui- doutrinação dos professores, pelas quais se pro-
○
sas são essas e como isso se manifesta na esco- curará “ensinar” como eles não sabem escolher
○
○
lha dos avaliadores não é dado a conhecer. livros e que por isso devem seguir as orientações
○
○
Em todo caso, é possível aqui reiterar que dos avaliadores do PNLD. Nesse sentido, o referi-
○
○
não há no momento, com toda a certeza, ne- do documento do MEC (2001: 36) recomenda
○
nhuma pesquisa em andamento que examine “programas de capacitação para a escolha e o uso
○
○
sistematicamente os usos efetivos dos livros do livro didático, destinados aos docentes e téc-
○
○
didáticos pelos professores. Isso significa que nicos dos sistemas educacionais”, subentenden-
○
○
na melhor das hipóteses os avaliadores conti- do-se que docentes e técnicos são “incapazes”.
○
nuam examinando os livros com base apenas Sugerem-se também “alterações no Guia de livros
○
○
te é denominado “achômetro”. É também pos- as obras que dele constam e utilizando-se uma
○
○
sível que alguns avaliadores simplesmente não linguagem mais adequada ao professor e a suas
○
levem em conta o caráter escolar e didático des- expectativas” (p. 36), pois, os professores, supõe-
○
○
ses livros, lendo-os como se fossem obras cien- se, são incompetentes para entender a linguagem
○
○
tíficas, que devem conter os resultados das mais tão elevada dos avaliadores.
○
○
Do lado da formação dos professores, é pre- vas do PNLD e as dos docentes” for entendido
○
○
ciso fazer distinção entre formação inadequada como descompasso de mão única, isto é, como
○
○
e atitudes por vezes inesperadas que eles tomam incapacidade do professor em relação à sapiência
○
○
perante necessidades do dia-a-dia. Podemos não do PNLD, não haverá propostas de formação do-
○
concordar com o uso de um livro didático como cente que consigam levar em conta as poten-
○
○
suporte de exercícios de leitura, mas isso não sig- cialidades, a criatividade e a autonomia dos pro-
○
○
nifica que esse professor tenha tido necessaria- fessores. Estes continuarão, como sempre, sendo
○
○
mente uma formação inadequada. Não se pode vistos como um “mal necessário”, “coxos por for-
○
esquecer de que a aula no Ensino Fundamental mação”, eternamente deficientes a requerer mule-
○
○
(e freqüentemente até mesmo no Ensino Supe- tas, ao mesmo tempo que constituem item indis-
○
○
rior e na Pós-Graduação) não se presta somente pensável para ornar estatísticas eleitoreiras.
○
Bibliografia
○
HÉBRARD, Jean. Três figuras de jovens leitores: alfabetiza-
○
ção e escolarização do ponto de vista da história cultu-
○
ARAÚJO, Luciana Telles. O uso do livro didático no ensino
○
ral. In: ABREU, Márcia (Org.). Leitura, história e história
○
de história: depoimentos de professores de escolas da leitura. Campinas: Mercado de Letras/ALB/Fapesp,
○
estaduais de Ensino Fundamental situadas em São
○
2000.
○
Paulo/SP. São Paulo. Dissertação (Mestrado em Edu- LAJOLO, Marisa. Livro didático: um (quase) manual de usu-
○
cação). Programa de Pós-Graduação em Educação:
○
ário. Em Aberto , n. 69, ano 16, jan./mar. 1996.
○
História, Política, Sociedade, da Pontifícia Universida- MEC/SEF. Recomendações para uma política pública de li-
○
de Católica de São Paulo, 2001.
○
vros didáticos. Brasília, 2001.
○
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: refle- NARODOWSKI, Mariano. Infância e poder: conformação da
○
xões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação ,
○
pedagogia moderna. Bragança Paulista: Universidade de
○
n. 2, 1990. São Francisco, 2001.
○
CHERVEL, André; COMPÈRE, Marie-Madeleine. Les
○
SILVA, Ezequiel Theodoro da . Criticidade e leitura: ensaios.
○
humanités dans l’histoire de l’enseignement français. Campinas: Mercado de Letras/Associação de Leitura do
○
Histoire de l’Éducation, n. 74, maio 1997.
○
Brasil, 1998.
○
COMENIUS, João Amós. Didática magna. Tratado da arte STRAY, Chris. “Quia nominor leo”: vers une sociologie
○
universal de ensinar tudo a todos. Lisboa: Fundação ○
○ historique du manuel. Histoire de l’Éducation, n. 58, maio
Calouste Gulbenkian, 1985. 1993.
○
“Ratio Studiorum”: introdução e tradução. Rio de Janei- scolaire. In: VINCENT, Guy (Dir.). L’éducation prisionnière
○
GÉRARD, François-Marie; ROEGIERS, Xavier. Conceber e les sociétés industrielles. Lyon: Presses Universitaires
○
de Lyon, 1994.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
A contextualização das práticas escolares tárias, ganhando cada vez mais status de obje-
○
○
além de nos lembrar o fato, às vezes incômo- recente história das disciplinas escolares. Hoje,
○
do, de que nossas práticas escolares também o estudo e a constituição da história do livro
○
○
estão condicionadas à nossa época, pode for- didático, assim como a preservação de acervos,
○
○
necer uma visão crítica e reflexiva sobre práti- tem reunido pesquisadores em torno de núcle-
○
cas atuais.
○
Nesse sentido, o livro didático torna-se ma- Educação, de Letras e de Comunicação, sendo
○
○
terial de pesquisa privilegiado, quer seja como que alguns grupos de universidades diferentes
○
○
Nos últimos vinte anos, influenciado pela Estado da Educação, como atestam a inaugu-
○
○
sociologia e pela história da leitura, o livro di- ração do Museu da Escola de Minas Gerais, em
○
94
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores
○
rência do Professor, em Belo Horizonte, e a ex-
○
posição histórica, da qual participo como con- invisíveis, convido-os a visitar essa escola do
○
○
sultora, intitulada “A escola e o saber: trajetória passado como quem “observa uns velhos car-
○
○
de uma relação”, que procura mostrar momen- tões-postais ilustrados que mostram como esta
○
tos marcantes do ensino público em São Paulo havia sido” ou, ainda, a se perguntar como es-
○
○
por meio de fotos, móveis, objetos e livros di- colas tão diferentes habitaram o mesmo lugar
○
○
dáticos, inaugurada no final de outubro de 2001, (Calvino, 1990: 30).
○
De fato, impulsionada pela economia 95
○
juntamente com o Centro de Referência do Pro-
○
fessor Paulista. Interessante notar que ambas as cafeeira e pelos ideais republicanos, a expan-
○
○
iniciativas ocorrem em espaços destinados à são da escola pública primária no Estado de
○
○
formação continuada do professor, voltados São Paulo, traduzida na invenção dos grupos
○
portanto para o presente e para o futuro, mas escolares, marcaria as três primeiras décadas
○
○
que vêem o passado como um ângulo privile- da República, fazendo surgir na paisagem ur-
○
○
giado de pesquisa e de formação. bana “templos de saber” (Souza, 1998), cujas
○
○
Para afinar a discussão, escolhi dois mo- imagens seriam difundidas em cartões-pos-
○
mentos constitutivos da escola pública: a orga- tais.
○
○
nização do ensino primário em São Paulo, logo A tabela a seguir, além de fornecer dados
○
○
zação do ensino secundário a partir do Colégio em São Paulo, mostra a grande ampliação de
○
Estado de São Paulo – Resumo estatístico dos Grupos Escolares de 1898 a 1910
○
○
○
○
* Foram dissolvidos os Grupos Escolares de São José dos Campos, Bananal e Ubatuba [Nota de rodapé original do Anuário , que acompanha esta tabela]
○
○
○
○
cola pública como conseqüência, a progressão seriada dos
○
○
conteúdos.
○
○
[...] é uma escola para a difusão dos valores re- Quanto ao processo de aprendizagem, pro-
○
publicanos e comprometida com a construção cura-se difundir com entusiasmo o “método in-
○
○
e a consolidação do novo regime; é a escola da tuitivo”, ancorado nas idéias de Pestalozzi e as-
○
○
República para a República. [...] era preciso fun- sim chamado porque dava muita importância
○
dar uma escola identificada com os avanços do à intuição, à
○
○
século, uma escola renovada nos métodos, nos [...] observação das coisas, dos objetos, da na-
○
○
processos de ensino, nos programas, na organi- tureza, dos fenômenos e para a necessidade da
○
zação didático-pedagógica; enfim, uma escola educação dos sentidos como momentos funda-
○
○
moderna em substituição à arcaica e precária mentais do processo de instrução escolar.
○
○
escola de primeiras letras existente no Império Essa etapa da observação minuciosa e orga-
○
[...] (Souza, 1998: 29). nizada é condição para a progressiva passagem,
○
○
○
○
pelos alunos, de um conhecimento sensível
Para coordenar as mudanças, em 1894, foi para uma elaboração mental superior, reflexi-
○
dio da Escola Normal Caetano de Campos, na las “lições de coisas”, momento em que o pro-
○
○
ros professores primários, a Escola Normal cursões à circunvizinhança da escola, ou, ain-
○
○
mantinha uma escola primária anexa, chama- da, possibilitando aos alunos o acesso a gravu-
○
últimos anos faziam estágio, e um Jardim da prios livros, de “lições de coisas” ou de outros
○
○
Infância, primeira escola pública infantil, inau- conteúdos, ou em cartazes especialmente pro-
○
○
cola pública infantil é que a Educação Infantil A expansão da escola pública no Estado de
○
foi incluída como primeira etapa da Educação São Paulo procurava, portanto, articular o pro-
○
○
Básica, na Lei de Diretrizes e Bases da Educa- grama ideológico da República com as inova-
○
○
ção Nacional (Lei nº 9.394) de 1996. ções pedagógicas em voga na Europa, dando à
○
○
A centralização do ensino primário a partir escola primária uma finalidade cívica e moral,
○
da Escola Normal Caetano de Campos colocou reorganizando o espaço e o tempo escolar e di-
○
○
públicos da administração escolar. Muitos de- Tal ponto de inflexão da escola primária
○
les se tornariam também autores didáticos de exigia não só móveis específicos, mas também
○
○
sucesso, como foi o caso de Arnaldo Barreto e o uso de novos materiais didático-pedagógi-
○
○
dos edifícios aponta a separação entre a seção República os móveis e alguns suportes de en-
○
○
feminina e a seção masculina, generalizaram sino eram importados da Europa e dos Esta-
○
○
a aceitação do método simultâneo como for- dos Unidos, os livros tinham de ser traduzidos
○
tindo “a ação do professor sobre vários alunos qüência imediata dessa expansão foi o desen-
○
○
96
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores
○
○
nalização do escritor didático. 2. Ela já sabe ler, escrever e contar.
○
○
Prosperaram bastante nesse período edito- 3. Hoje ela teve uma lição de geografia.
○
4. Sabem vocês como foi a lição?
○
ras já tradicionais no segmento dos livros didá-
○
ticos, como a Livraria Francisco Alves, fundada 5. Primeiro, a professora lhe mostrou o globo
○
○
geográfico.
em 1854 no Rio de Janeiro, cuja filial em São
○
6. Mostrou-lhe no globo os mares e os continen-
○
Paulo foi aberta em 1893. Se até 1889 a Livraria
○
tes. 97
Francisco Alves havia publicado apenas 67 tí-
○
7. Depois mostrou no globo a América do Sul e o
○
tulos (sendo 59 de ensino), nas três décadas se-
○
Brasil.
○
guintes ela acompanhou a expansão escolar,
○
8. Ofélia está agora com um globinho na mão.
○
publicando 538 títulos, 295 dos quais eram di- 9. Ela mostra ao Hipólito onde fica o Brasil.
○
dáticos.
○
10. Hipólito ficou muito alegre e lhe disse:
○
Outras empresas, como a editora Melhora-
○
11. Vamos ao gabinete, onde está o quadro-negro.
○
mentos (1915) e a editora de Monteiro Lobato 12. Vou fazer no quadro-negro a carta do Brasil.
○
○
(1918) aparecem em São Paulo nessa época, fa- 13. Como o Brasil é belo e grande!
○
zendo do livro didático um importante ramo de 14. Viva a nossa Pátria! Viva o Brasil!
○
○
seus negócios.
○
○
mente, são as principais atividades dos alunos também tiveram papel importante na conso-
○
foi eleito o método americano, chamado de ca- com que várias gerações lessem, escrevessem,
○
○
ligrafia vertical, cujos cadernos graduados per- decorassem e recitassem não só velhos ensi-
○
cal de Francisco Viana, publicados de 1909 até Marquês de Maricá, mas também textos que
○
○
1999 pela editora Melhoramentos, segundo a construíam a idéia de pátria moderna e civi-
○
qual essa série teve mais de 110 milhões de lizada, ou seja, livros que veiculavam conteú-
○
○
tas de ABC (bê-a-bá), conhecida por método tudo o ensino de Língua Materna, de Geografia
○
○
sintético, substituindo-o pelo método analí- e de História) e, para isso, foi imprescindível a
○
○
Estado de São Paulo (Mortatti, 2000), cujos e coletiva, possível graças à nova organização
○
expoentes são: a Cartilha das mães e a Car- do espaço e do tempo escolar com o ensino si-
○
○
tilha analítica, de Arnaldo Barreto, a Cartilha multâneo, tinha lugar de destaque, pois por
○
○
ensino rápido da leitura e a Cartilha analíti- meio dela eram transmitidos e reforçados os
○
○
ligados à Escola Normal Caetano de Campos. pelo novo regime, não se restringiu aos livros
○
○
Destas, a cartilha que parece ter alcançado de “lições de coisas”; verifica-se sua influên-
○
maior sucesso foi a Cartilha ensino rápido da cia nas várias publicações do período, atingin-
○
○
leitura, de Mariano de Oliveira, que, publi- do desde cartilhas de alfabetização até livros
○
○
cada em 1917, permaneceu no mercado até de leitura de várias áreas e destinados a vários
○
○
mais de 6 milhões de exemplares. Nas pági- Assim, além do objetivo ideológico, presen-
○
○
nas 43 e 44 dessa cartilha encontra-se a se- te, por exemplo, logo na abertura das Primeiras
○
○
○
organizada requerida pelo método intuitivo, o
○
Pátrio pendão sacrossanto que explica a grande atenção dada à descrição.
○
○
Da família Brasileira! Nesse livro, uma rápida consulta ao índice
○
Nossa adorada bandeira!
○
pode ilustrar a apreensão sensível de objetos,
○
[...]
pessoas e cenas que estão presentes na escola,
○
○
no lar e na sociedade:
○
há nos livros didáticos uma preocupação
○
Enumerações: material escolar, sala de
○
maior com a materialidade, tanto na escolha aula, corpo humano, peças do vestuário
○
○
do papel, da capa cartonada, do acabamen- masculino, quarto de dormir, cozinha etc.
○
to esmerado, quanto na importância das ilus-
○
Exposições: trabalhos escolares, conduta na
○
trações e fotografias (tecnologia de ponta, na
○
rua, trajeto da escola, serão em família, as-
○
época, que deu emprego a muitos ilustrado-
seio etc.
○
res), tudo para tornar os livros mais atraen-
○
○
Descrições: caneta, livro de leitura, mesa de
tes e em sintonia com as novas exigências
○
jantar; praça pública, sala de aula; descri-
○
educacionais. ○
amigo etc.
○
e instrução etc.
○
Bilac, Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manuel A tendência desses livros didáticos se con-
○
○
Bonfim, Pequenas leituras, de Ramon Roca servaria vigorosa até a década de 1930, sendo
○
○
Dordal, Livro dos principiantes, de Nestor que vários deles, transformados pelo uso em
○
○
Martins de Araújo, Nossa Pátria, de Rocha Pom- best-sellers didáticos (como os da Francisco
○
bo, e os difundidos livros de leitura de João Alves e da Melhoramentos aqui citados), sobre-
○
○
Kopke, Tomás Galhardo, Hilário Ribeiro, viveriam pelo menos até os anos 1970.
○
○
Interessante salientar que mesmo quando tado diz respeito à progressiva rarefação das
○
há poucas ilustrações, como é o caso do Livro matrículas à medida que o curso primário
○
○
de composição, de Olavo Bilac e Manuel Bonfim, avançava, o que causava inchaço nas classes
○
○
Masc. Fem. Geral Masc. Fem. Geral Masc. Fem. Geral Masc. Fem. Geral
○
Matrícula inicial
1º ano 47.341 41.557 88.898 9.806 8.500 18.306 37.506 30.976 68.482 94.653 81.033 175.686
○
○
2º ano 35.937 33.113 69.050 5.579 4.860 10.439 11.466 9.527 20.993 52.982 47.500 100.482
○
○
3º ano 26.304 24.962 51.266 3.529 3.038 6.567 4.331 3.672 8.003 34.164 31.672 65.836
○
○
4º ano 16.733 16.622 33.355 1.792 1.582 3.374 384 406 790 18.909 18.610 37.519
○
○
Total 126.315 116.254 242.569 20.706 17.980 38.686 53.687 44.581 98.268 200.708 178.815 379.523
○
○
98
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores
Essa situação, perpetuada durante décadas, rículo de Retórica e Poética, disciplina exigida
○
○
acabava se refletindo na tiragem dos livros de nos “preparatórios” das Faculdades de Direito
○
○
leitura que, sem dúvida, ía diminuindo à medi- até 1890, exigência que, entre nós, parece ter
○
○
da que o livro era direcionado para as classes sido responsável pelo estreitamento de laços
○
mais adiantadas. Em 1946, por exemplo, a Li- entre a preparação retórico-literária e os cur-
○
○
vraria Francisco Alves reeditou os Livros de lei- sos jurídicos.
○
○
tura, de Felisberto de Carvalho, amplamente O ensino da língua e da literatura nacionais
○
adotados nas escolas primárias, sendo que o (portuguesa e brasileira) sempre se pautou pelo 99
○
○
primeiro volume, indicado para o 1º ano, esta- ensino das línguas clássicas, sobretudo o Latim.
○
○
va na 130ª edição, o segundo volume (para o 2º A “gramática nacional” era estudada a partir das
○
○
ano) na 107ª edição, o terceiro volume (para o categorias gramaticais da língua latina e
○
3º ano) na 75ª edição e o quarto volume (para o explicada como uma transformação desta, en-
○
○
4º ano) na 42ª edição. quanto a literatura nacional era apresentada se-
○
○
A longevidade de cartilhas e livros de leitu- gundo os critérios fixos da Retórica e da Poética
○
○
ra para o curso primário, concebidos ou impul- clássicas, dividida por gêneros. A leitura literá-
○
sionados a partir da República (e alguns, como ria, base do ensino de Latim e Grego e base do
○
○
vimos, sobreviveram bravamente até a década ensino de Retórica e Poética, também se trans-
○
○
de 1990), vem nos alertar para a permanência formou em base do ensino da língua e da litera-
○
○
desses modelos na escola. A principal razão tura nacionais, erigindo os “clássicos nacionais”.
○
fato de que tais modelos puderam ser légio Pedro II, restritas ao primeiro ano, dedi-
○
○
tes ideologias, métodos e organização escolar. gramaticais, especialmente dos verbos. Aos
○
○
Deixando de lado a escola primária, passe- poucos, foram absorvendo práticas de ensino e
○
○
mos agora para o segundo tópico da discussão, conteúdos das aulas de Retórica e Poética. Pri-
○
○
que focalizará algumas questões de leitura no meiro, em 1855, vieram a leitura literária e a
○
ensino secundário, a partir do Colégio Pedro II, recitação para auxiliar o ensino da língua. De-
○
○
ciplina curricular institucional, é recente e con- gio Pedro II por causa de sua inclusão nos “exa-
○
1837, escola secundária padrão da elite brasi- Português a redação e a composição. Em 1890,
○
○
leira. A duração do curso secundário era equi- quando a Retórica e a Poética foram substituí-
○
○
valente ao período que hoje compreende as das pela História da Literatura Nacional, a gra-
○
quatro últimas séries do Ensino Fundamental mática histórica também foi transferida para o
○
○
O estudo dos programas de ensino do Colé- A leitura literária, desde sua introdução em
○
○
gio Pedro II aponta que até 1869 as aulas de 1855, reinou absoluta nas aulas de Português,
○
qual predominavam as disciplinas clássicas, fessores portugueses e, mais tarde, por profes-
○
○
principalmente o Latim. A partir de 1870, logo sores brasileiros. As seletas mais antigas se-
○
○
os “preparatórios” – exames que davam acesso excertos divididos por gêneros, como é o caso
○
○
aos cursos superiores no Brasil (Direito, Medi- da Seleta nacional, de Caldas Aulete, e as mais
○
○
○
○
no Brasil foi a Antologia nacional, de Fausto 1950, houve a fusão entre textos e gramática
○
○
Barreto e Carlos de Laet. Sua permanência no num só compêndio, mas ainda divididos em
○
○
ensino secundário por mais de setenta anos (1ª duas partes (Soares, 1996). A década seguinte
○
edição, 1895; última edição, 1969) é testemu- (1960) trouxe uma nova organização aos livros
○
○
nho da longa estabilidade do modelo de ensino didáticos, muito próxima da que conhecemos
○
○
que privilegiava a leitura “intensiva” (Chartier hoje, dividindo o ensino de Português por uni-
○
e Hébrard, 1995) dos clássicos da literatura na- dades, com leitura de texto literário, atividades
○
○
cional do século XVI ao século XIX. de interpretação e estudo de tópico gramatical,
○
○
A leitura da Antologia nacional, porém, não dando continuidade ao privilégio da língua cul-
○
○
era complemento do manual de História da Li- ta (Soares, 1996).
○
teratura Nacional e sim ponto de partida, nas Apenas na década de 1970 é que a leitura
○
○
aulas de Português, para a aquisição e para o dos clássicos começou a ser substituída pela
○
○
treinamento da norma culta vigente, em exer- “leitura extensiva” (Chartier e Hébrard, 1995),
○
○
cícios como leitura e recitação, ditado, estudo ○
sintonizada com os meios de comunicação de
do vocabulário, da gramática normativa, da gra- massa e com as inovações tecnológicas.
○
○
mática histórica, exercícios ortográficos, análi- O novo modelo implantado no Brasil a par-
○
○
ses sintáticas e morfológicas, redação e compo- tir de 1971, com a Lei nº 5.692, que redirecionou
○
○
vernáculos (e morais) para a “boa” aquisição outras matérias”, o que multiplicava as opções
○
da língua, além, é claro, de oferecer a seus lei- de textos para leitura em classe, tornando a lei-
○
○
tores uma certa formação literária, mas sem tura literária mais uma dessas opções.
○
○
é que a História da Literatura Nacional tornou- passou a ser denominada Comunicação e Ex-
○
○
se a principal atividade das aulas de Português pressão, deveria preocupar-se, daí em dian-
○
○
das três últimas séries do curso secundário (atual te, com a “expressão da Cultura Brasileira”, li-
○
○
Ensino Médio) e passou a ser exigida nos exa- bertando, portanto, do domínio clássico por-
○
assinalando com isso a sua ascensão na escola. nossas escolas, facilitando e incentivando a
○
○
origem institucional nas reformas de ensino do Dessa maneira, o ensino de Português pas-
○
○
Estado Novo. Porém o critério literário nacio- sou a admitir, cada vez mais, um número mai-
○
○
nalista, que norteava as aulas do curso secun- or e mais variado de textos para leitura, desde
○
○
tradicional de ensino da língua, engessada pela mente ampliados com a literatura contempo-
○
○
leitura dos clássicos e defendida em nome da rânea pós-1922, até todo tipo de manifestação
○
○
autores do modernismo entrassem nos livros do currículo, textos de jornais, revistas, quadri-
○
O ensino da gramática era supervalorizado tanto, que o chamado boom da literatura infan-
○
○
e intenso, fazendo com que os já memorizados til tenha ocorrido nessa época, pois ela viria a
○
○
textos e poemas fossem retalhados e divididos entrar na sala de aula como mais uma das op-
○
Até o final dos anos 1940, era comum nas É ainda nos anos 1970 que aparecem técni-
○
○
aulas de Português o uso de uma antologia e de cas e engrenagens que parecem substituir o pro-
○
100
SIMPÓSIO 6
O livro didático e a formação de professores
○
e de gêneros, escamoteia um componente eco-
○
gido, instrução programada, exemplar do pro- nômico importante na definição dos custos do
○
○
fessor com exercícios resolvidos e respostas livro didático: os gastos com o pagamento de
○
○
impressas em caracteres vermelhos. Essa nova direitos autorais dos textos. Sem dúvida, os di-
○
concepção de livro didático reflete a má forma- reitos autorais de textos de jornal são muito
○
○
ção dos professores, decorrente da democrati- mais baratos do que, por exemplo, os direitos
○
○
zação do ensino e da multiplicação de agências autorais de um texto literário.
○
formadoras sem compromisso com a qualida- Quanto à leitura literária, sobretudo a lite- 101
○
○
de (Soares, 2001). ratura adulta (em oposição à literatura produ-
○
○
Quanto à leitura, literária ou não, nota-se o zida para o público infantil e juvenil),
○
○
aparecimento de uma “ficha de leitura”, que acantonada no currículo do Ensino Médio des-
○
passa a acompanhar os textos, propondo ativi- de a Reforma Capanema (1943), vem manten-
○
○
dades de leitura e de interpretação. do seu cunho elitista, uma vez que uma parcela
○
○
Nos anos 1990, verificam-se duas tendências: significativamente menor da população tem
○
○
uma de abandono do livro didático, devido às acesso a esse nível de ensino. Suas diretrizes e
○
concepções baseadas na “construção” de conhe- seu currículo, ao que tudo indica, permanece-
○
○
cimentos por alunos e professores; outra de con- rão dependentes do exame vestibular. As listas
○
○
trole e avaliação dos vários níveis de ensino pe- de obras literárias destinadas a questões do ves-
○
○
los órgãos oficiais, incluindo a avaliação dos li- tibular, publicadas pelas universidades, acabam
○
(PCN), instituídos em 1996, indicam que o en- te em curso nos centros urbanos, obrigar-nos-á
○
se com os “textos que caracterizam os usos pú- ensino de Português capazes de transmitir e
○
○
blicos da linguagem”, orais e escritos. Baseados compartilhar com públicos de diferentes clas-
○
○
nas teorias de Bakhtin, os PCN para o 3º e 4º ses sociais e de diferentes faixas etárias diferen-
○
ros para a leitura em sala de aula: cordel, nizada, pois é no espaço da escola que a demo-
○
○
“causos”, texto dramático, canção, conto, nove- cratização pode e deve começar, uma vez que:
○
○
la, romance, crônica, poema, entrevista, deba- “A leitura não é prática neutra. Ela é campo de
○
muita confusão, uma vez que a definição de gê- ABREU, Márcia (Org.). Leitura, história e história da leitura.
○
○
nero é historicamente variável, quer porque es- Campinas/São Paulo: Mercado de Letras/ALB/Fapesp,
○
1999.
○
texto mais de um gênero. bre a leitura: 1880-1980. São Paulo: Ática, 1995.
○
○
Outro incômodo desse tipo de divisão é o CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: refle-
○
privilégio que alguns gêneros acabam tendo xões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação ,
○
○
n. 2, p. 177-229, 1990.
sobre outros, como parece ser o caso dos gêne-
○
sentes na escola e nos livros didáticos. O uso lar paulista: 1890/1920. São Paulo: Fundação para o
○
que deveria basear-se na diversidade de textos FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Instrução elementar no
○
○
século 19. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FI- tura (1838-1971). 2000. Tese (Doutorado). Instituto de
○
LHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cynthia Greive. 500 Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Cam-
○
○
anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Au- pinas.
○
têntica, 2000. SOARES, Magda. Português na escola: história de uma dis-
○
ciplina curricular. Revista de Educação da AEC, n. 101,
○
FERREIRA, Avany De Francisco; CORRÊA, Maria Elizabeth
○
Peirão; MELLO, Mirela Geiger de. Arquitetura escolar p. 9-26, out./dez. 1996.
○
paulista: restauro. São Paulo: Fundação para o Desen- . O livro didático como fonte para a história
○
○
volvimento da Educação, 1998. da leitura e da formação do professor-leitor. In: MARI-
○
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da lei- NHO, Marildes (Org.). Ler e navegar: espaços e percur-
○
○
tura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996. sos da leitura. Campinas: Mercado de Letras/ALB, 2001,
○
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfa- p. 31-76.
○
○
betização. São Paulo: Editora da Unesp/Conped, 2000. SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implan-
○
RAZZINI, Márcia de Paula Gregório. O espelho da nação: a tação da escola primária graduada no Estado de São
○
○
antologia nacional e o ensino de português e de litera- Paulo (1890-1910). São Paulo: Editora da Unesp, 1998.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 7
O DESENVOLVIMENTO DA EJA E
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
NA AMÉRICA LATINA
José Rivero
Graciela Messina
103
Formação de professores para
○
○
○
a Educação de Jovens e Adultos
○
○
○
○
José Rivero*
○
○
Unesco/Peru
○
○
○
○
○
No início da última década, foram apresen- também os sindicatos e as associações de clas-
○
tados os resultados da única pesquisa regional se, que tendem a tratar seus associados como
○
○
latino-americana realizada na área de Educa- sujeitos de classe. Mesmo nas associações do-
○
○
ção Básica de Adultos (EBA).1 centes, as áreas de Educação de Jovens e Adul-
○
Os professores entrevistados durante essa tos (EJA) não são, normalmente, levadas em
○
○
pesquisa indicavam como principais motiva- conta para fins da própria organização sindical.
○
○
ções e aspirações: a) a necessidade de um em- ○
○
Quais as características mais marcantes dos
prego estável; b) uma maior participação na professores que trabalham com educação de
○
necessidade de dispor de mais tempo livre para O educador de adultos na América Latina
○
○
realizar outras atividades. Uma maioria signi- apresenta heterogeneidade de formação, de ní-
○
○
ficativa dos entrevistados também declarou veis, de funções e de práticas docentes, assim
○
que seu interesse em trabalhar com jovens e como divergência de pontos de partida, concep-
○
○
adultos havia influenciado sua decisão de tra- ções, enfoques, experiências educativas e metas.
○
○
balhar com a EBA, especialmente em vista do Se houvesse traços comuns que o identificassem
○
○
seus exíguos salários. Coerentemente com o ção como professores de jovens e adultos bem
○
○
interesse em trabalhar com jovens e adultos, como a tradição de utilizar a transmissão de co-
○
○
as respostas à pergunta “Com que grupo você nhecimento como procedimento pedagógico
○
○
se sente mais capacitado para desempenhar único para desenvolver a capacidade do educan-
○
suas tarefas?” incluíram tanto jovens e adultos do em reproduzir o que lhe foi transmitido.
○
○
Médio. Por sua vez, as fontes de maior insatis- acrescentar, no caso da educação básica ou fun-
○
condições ruins de trabalho (associadas a pro- em que se encontra o professor, em uma mo-
○
○
plano, a dispersão e a falta de interesse dos que à busca de profissionais que reúnam requi-
○
○
Pode-se afirmar que existe um desconheci- anos na docência é determinante para que o
○
mento grave a respeito dos professores como professor obtenha uma colocação na área de
○
○
profissionais e que são raros os países que pos- EJA. Em outros casos, deve-se a gestões pesso-
○
○
suem dados sobre as condições sociodemo- ais dos professores para obter uma colocação
○
○
magistério e da composição das equipes docen- ções educacionais infantis ou juvenis em horá-
○
○
tes das escolas. Esse desconhecimento afeta rios diurnos ou, ainda, a critérios arbitrários
○
○
○
○
○
1
Essa pesquisa foi desenvolvida pela Unesco como marco do Projeto Principal de Educação na América Latina e no Caribe e contou com a
○
104
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
pessoais e político-partidários por parte das bido especialização para o trabalho com jovens
○
○
autoridades da área educacional. e adultos com as características dos participan-
○
○
Apesar dos excelentes casos de identifica- tes. Em alguns casos, impera a habilitação in-
○
○
ção com seu trabalho, especialmente no que se formal ou extracurricular de docentes não-
○
refere a docentes de instituições de ensino re- especializados na EJA (não nos esqueçamos de
○
○
gulares, a situação dos professores dessa mo- que a média de professores sem formação na
○
○
dalidade de ensino não escapa à grave situação América Latina é de 21,3% e que essa situação
○
do conjunto de docentes. As condições salari- está associada ao fato de esses professores atu- 105
○
○
ais sumamente deterioradas, um alto grau de arem em áreas carentes ou marginalizadas).
○
○
instabilidade funcional em vários dos países Ademais, existe uma profunda heterogeneida-
○
○
estudados, a jornada de trabalho dupla com de na formação pedagógica dos professores, que
○
grupos absolutamente heterogêneos de crian- resulta em uma nítida diferença entre os que
○
○
ças e jovens, durante o período da manhã, e de possuem formação e os que não a possuem. Os
○
○
jovens e adultos com pouca ou nenhuma esco- primeiros estariam mais próximos de conhecer
○
○
laridade nas instituições vespertinas ou notur- e de motivar-se com outros conteúdos mais crí-
○
nas, a deterioração das condições materiais de ticos e com técnicas mais participativas de en-
○
○
trabalho – geralmente em instituições de ensi- sino. Entretanto, em ambos os casos, pesa mui-
○
○
no que “sofrem” durante o dia com a freqüên- to o uso cotidiano da instrução tradicional.
○
○
cia de diferentes tipos de alunos de outras tan- Um problema que afeta a imagem e o rendi-
○
dívida regional para com esses professores. atual educação de adultos como uma modalida-
○
○
A atual formação
○
do professor de jovens
○
instituições superiores de formação de profes- não logrou obter credibilidade social e tampouco
○
não habilita os professores para atender aos re- A organização escolarizada tradicional, por meio
○
○
quisitos especiais que caracterizam um ensino de aulas ministradas por professores sem forma-
○
○
Os docentes com título pedagógico foram aprendizagem entre grupos populacionais que
○
○
formados para educar crianças – com as sérias demandam atenção prioritária e uma educação
○
○
de jovens e adultos
○
associados à teoria e à prática da escolaridade, Uma premissa básica nesse caso é que a EJA
○
do educando o principal objetivo da formação. aprendizagem, os quais, por sua própria natu-
○
○
Observa-se, entretanto, uma débil e deficiente reza, demandam dedicação, disciplina e espe-
○
○
formação inicial do docente, agravada nesse cialização profissional, além de tempo suficien-
○
caso pela circunstância de ele não haver rece- te. Essa afirmação é particularmente importan-
○
○
te, sobretudo se considerarmos a tendência de propor-se um trabalho de formação em um
○
○
outorgar-se à educação capacidade para resol- plano duplo e segundo a realidade institu-
○
○
ver mais problemas do que esta pode efetiva- cional da EJA em cada país. Esses planos po-
○
dem ser seqüenciais ou programas que se de-
○
mente suportar. Assim, o crescente desempre-
○
go e subemprego de seus usuários – reais ou senvolvem de forma paralela. De imediato,
○
○
potenciais – pode influenciar para que se exi- e como forma de iniciar a EJA vinculada a ne-
○
cessidades básicas circunstanciais, o objeti-
○
jam da EJA soluções ou contribuições específi-
○
vo é formar esses jovens e adultos como ato-
cas para a solução desse problema estrutural,
○
res com valores, atitudes, conhecimentos e
○
ou de outros graves problemas sociais, o que
○
competências que os habilitem a enfrentar
○
extrapola, em muito, suas possibilidades.
○
suas necessidades de aprimoramento profis-
○
Outras premissas a serem consideradas in-
sional, de uma maior participação no exer-
○
cluem:
○
cício da cidadania e de um intercâmbio cul-
○
• A crescente universalização do acesso à
○
tural que, em última análise, lhes permitam
○
educação básica e secundária – bem como participar da transformação de suas ativida-
as características dos jovens e adultos que ○
○
Esses alunos, além de pertencerem às cama- motivação para participar e a real utilida-
○
e utilizar novas formas de ensino e aprendi- educação básica quanto da educação se-
○
○
zagem que lhes permitam lidar com a diver- cundária de jovens e adultos. A concepção
○
tências dos alunos e com as distintas situa- tos, com horários e currículos fixos que de-
○
○
ções de vida que estes enfrentarão ao con- mandam a assistência diária e em períodos
○
participantes.
○
adulto constituem um todo inter-relaciona- ser levados em conta nas propostas de for-
○
do. A resposta que satisfaz uma necessidade mação de professores. Uma das conseqüên-
○
○
mente, ser satisfeitas. Esse processo estrutu- ministrativa. Essa nova autonomia dá a dire-
○
○
ral e interdependente do processo de forma- tores e a professores mais espaço para a to-
○
ção de adultos permite visualizar a ação edu- mada de decisões, para a organização de pro-
○
○
cacional como um processo que transcende jetos educativos capazes de gerar e atrair re-
○
○
econômica e política que desafia, contradi- ajustes curriculares. Não restam dúvidas,
○
○
106
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
○
○
tência para planejar, administrar e imple- participantes trazem consigo são factíveis
○
○
mentar decisões, sem a tradicional depen- de ser intercambiados, fortalecidos e
○
dência dos níveis centrais. E será também redefinidos e que isso somente será possí-
○
○
necessário modificarem-se os critérios de vel na medida em que esses participantes
○
seleção e nomeação de diretores, professo- forem capazes de analisar esses elementos
○
○
res e supervisores envolvidos no próprio pro- de forma crítica e de buscar novas infor-
○
○
cesso de aperfeiçoamento de docentes. mações, novos conhecimentos, novas ha- 107
○
bilidades, novos valores e novas atitudes
○
• Esses processos de descentralização pode-
○
rão estar associados a crescentes esforços que satisfaçam suas necessidades de
○
○
para priorizar políticas sociais, em um am- aprendizagem.
○
○
biente regional com visíveis resultados de 3. Partindo do pressuposto de que o aporte
○
frustração em relação a políticas neoliberais. pedagógico central dos educadores da EJA
○
○
Serão também necessárias harmonizações é gerar mecanismos de formação que per-
○
○
e alianças mais efetivas e eficazes com as mitam ao participante:
○
experiências de outros setores públicos e de
○
• criticar os elementos que constituem
○
associações da sociedade civil com vasta suas experiências de vida;
○
○
experiência em trabalhos participativos no ○
por ambos os tipos de instituição é a intro- aqueles que possui, os quais foram anali-
○
dos educandos, tanto jovens quanto adultos. lizar uma educação entre adultos, com os
○
○
cadores de EJA.
○
de sua experiência de vida – e com baga- da formação específica desse educador bem
○
○
gens significativas de sua história pessoal como das novas conceituações políticas, estra-
○
○
○
○
à modernização econômica e sociopolítica de “educadores polivalentes”, capazes de traba-
○
○
nossos países. lhar com crianças, jovens e adultos, capa-
○
zes de organizar projetos educativos e de
○
Essa perspectiva deveria ir além das propostas
○
de re-profissionalização regular e/ou capacitação trabalhar com suas próprias comunidades,
○
○
para o exercício da profissão, geralmente ofereci- capazes de estimular a participação ativa
○
dos pais e a educação de seus filhos.
○
das pelos centros de formação gerados nos siste-
○
mas educacionais. Será necessário superarem-se • Na política pública destinada à formação de
○
○
tanto a insistência da visão “escolarizante” quanto educadores de jovens e adultos, não se pode
○
○
os mecanismos pedagógicos que continuam a ig- continuar a privilegiar objetivos ligados ex-
○
clusivamente à recuperação de uma esco-
○
norar a especificidade da demanda por parte de
○
participantes jovens e adultos. laridade compensatória. A confluência da
○
○
O desenvolvimento de novos projetos de satisfação das necessidades de formação
○
dos jovens e adultos exige que o participan-
○
“formação para o exercício da profissão” para
○
educadores que assumirem essas tarefas deve- ○
○
te seja considerado na multiplicidade de
funções “protagonísticas” que lhes cabe de-
riam levar em conta – teórica e operacional-
○
• Finalmente, formular as perguntas que de- nais entre adultos; c) os modelos de avalia-
○
cos que inspirem as políticas e as práticas nal que propiciem a maior participação dos
○
novos educadores de EJA não deveriam referir- • Refletir sobre os modelos de formação, no
○
tentar modificar radicalmente esse tipo tradi- possam responder a perguntas como:
○
○
mentalmente eficientes?
○
108
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
○
○
dão prioridade às relações teoria/prática participação de jovens e adultos,
○
○
de formação social, à heterogeneidade de enfatizando-se a formação em valores de-
○
saberes e à integração de conhecimentos, mocráticos e o efetivo exercício das res-
○
○
à dimensão de modalidades de formação ponsabilidades e dos direitos humanos.
○
não-presenciais, com especial ênfase sobre
○
d. A EJA voltada para populações rurais e in-
○
a produção de material educativo auto-ins-
○
dígenas, com o objetivo de revigorar o tra-
○
trucional e sobre a coordenação com ou- balho produtivo e organizacional em áre- 109
○
tros atores sociais e econômicos que os cor-
○
as rurais e de ratificar e solidificar culturas
○
roborem. e identidades indígenas.
○
○
○
e. A afirmação dos jovens como público
Novos requisitos de
○
prioritário da modalidade educativa EJA,
○
○
aprendizagem na Educação assumindo suas próprias particularidades,
○
necessidades, diversidades e realidades,
○
de Jovens e Adultos
○
com ênfase especial sobre sua vinculação
○
○
com o trabalho produtivo, sua maior inser-
O impacto das novas condições sociais, eco-
○
ção como cidadãos e a conclusão de sua
○
nômicas e políticas dos países latino-america-
○
○
educação básica e secundária.
nos, nas políticas e nos programas educativos
○
de responsabilidades.
○
vens e Adultos.
○
manente, ou educação que persistirá por toda capacidades em permanente diálogo com
○
○
Considerações finais
○
à cultura escrita, à educação básica e à in- Adultos e também que sociedades, governos
○
formação.
○
lidades da EJA nos locais de produção e recidos às camadas mais carentes das zonas
○
seu potencial para a melhoria da quali- rurais e urbanas, aos núcleos indígenas e,
○
○
○
○
latino-americano apresentado no Fórum Mun-
○
Da mesma forma, segundo o Pronunciamen-
○
dial de Dakar (2000) estabelece seis objetivos a to Latino-Americano feito por um numeroso
○
○
serem alcançados na primeira década do sécu- grupo de educadores e intelectuais latino-ame-
○
lo que inicia. Dois desses seis objetivos estão
○
ricanos, “enquanto não se oferecer uma educa-
○
diretamente relacionados com a EJA: ção de melhor qualidade aos menos favorecidos
○
○
e não se assegurar uma educação igualitária a
○
• Proporcionar um acesso eqüitativo aos pro-
○
homens e mulheres, dificilmente poderemos
○
gramas de educação básica e permanente
○
avançar na meta de lograr eqüidade educacio-
○
para adultos e, no transcorrer do presente nal e, sem eqüidade educacional, dificilmente
○
○
decênio, reduzir pelo menos à metade as avançaremos na conquista da justiça social”.
○
atuais disparidades entre os gêneros.
○
A existência de professores mais qualificados,
○
○
• Zelar para que as necessidades de aprendi- para que jovens e adultos possam receber uma
○
zagem de todos os jovens sejam satisfeitas, educação de melhor qualidade, está diretamen-
○
○
e formação de professores
○
○
○
○
○
Unesco/Brasil
○
○
○
○
○
○
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) deve cação, o que teve como conseqüência um cres-
○
○
ser vista não apenas como uma atividade suple- cimento da participação individual e coletiva,
○
tiva, mas como uma educação permanente in- num leque cada vez maior de atividades de
○
○
dos em atividades concretas. Essa é uma das fessores estava colocado com muito mais
○
○
conclusões de um estudo conduzido pela acuidade e complexidade que nunca. Nos paí-
○
○
Unesco em sete países da América Latina, inclu- ses que participaram na avaliação dos indica-
○
A década de 1990 foi testemunha de um cres- Unesco – Professores para as escolas de amanhã
○
○
* Dezoito países: Argentina, Brasil, Chile, China, Egito, Índia, Indonésia, Jordânia, Malásia, Paraguai, Peru, Filipinas, Rússia, Sri Lanka,
○
○
110
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
○
res é professor; além disso, os professores são
○
em geral os trabalhadores mais qualificados: pessoal, insere-se em normas coletivas que lhe
○
○
mais de metade dos trabalhadores com ensino dão identidade profissional e num grupo que
○
○
superior trabalha em educação. desenvolve estratégias de promoção, de valori-
○
No entanto, a grande questão não está ape- zação e de legitimação.
○
○
nas na formação de professores, mas em como Para a função docente o processo é igual. Ou
○
○
criar condições para retê-los no sistema. deveria ser igual. Isto é, teoricamente, o pro-
○
fessor é um profissional quando a atuação dele 111
○
Na realidade, as expectativas em relação ao
○
papel do professor continuam altas apesar, ou por obedece aos critérios de racionalização dos sa-
○
○
causa, de todo o desenvolvimento tecnológico. Do beres e de legitimação social, sumariamente
○
○
professor se exige que, além de ser competente, descritos acima, que definem uma profissão.
○
atualize seus conhecimentos em alta velocidade A formação tem, assim, uma importância
○
○
e que, para além de suas capacidades técnicas e crítica na profissionalização do professor. Ela é
○
○
pedagógicas, saiba lidar individualmente com um dos suportes da trilogia ação/formação/
○
○
alunos como pessoas, com seus valores e cultu- pesquisa e da articulação entre suas respecti-
○
ras próprias. Essas expectativas da sociedade em vas lógicas na busca de uma mudança qualita-
○
○
geral têm atingido níveis que se confrontam com tiva que envolva a reflexão sobre valores, nor-
○
○
Analisemos rapidamente este termo relativa- A profissionalidade é tudo o que está para
○
mente novo – profissionalidade. A partir de que além da profissionalização, é o que está na base
○
○
momento um ofício passa a ser uma profissão? da mudança, na consciência de si e dos outros,
○
○
que seguem determinados objetivos dentro de atrair e reter professores qualificados na pro-
○
bastante genérico, há pelo menos três níveis de de captar os melhores estudantes para se tor-
○
○
ra diferença no tipo de ocupação (manual e in- Vejamos um pouco essa questão da reten-
○
telectual ou artística); uma segunda diferença ção de professores, que afeta de maneira mui-
○
○
na natureza do saber, misterioso para o ofício e tas vezes dramática a educação e a alfabetiza-
○
○
profissão; e uma terceira ligada à legitimação Por força do direito de todos à educação, os
○
social, que depende da utilidade para o ofício e sistemas educativos expandiram-se mundial-
○
○
do prestígio para a profissão. Exemplos flagran- mente, o que exacerbou a necessidade de pro-
○
○
tes de profissões que seguem esses critérios são, fessores qualificados para atender o nível pri-
○
○
transformar um ofício numa profissão, um ar- O equilíbrio entre o que se espera dos profes-
○
○
tesão num profissional; mais propriamente, sores e o que lhes é oferecido em troca tem gran-
○
○
zação dos saberes. Um profissional é uma pes- qualidade desse trabalho. Alguns países do Nor-
○
○
soa que adquiriu competências específicas, te desenvolvido estão mesmo encarando a pos-
○
○
O profissional responde, adapta-se à de- para esse trabalho! A constatação é que 30% do
○
○
manda, ao contexto, a problemas complexos e total do corpo docente deixam a profissão an-
○
tes de completar cinco anos (nos centros urba- professores pretender – condições de trabalho,
○
○
nos essa porcentagem sobe para 50%!). direitos, estatuto – na sociedade? E a grande per-
○
○
Apesar de o papel dos professores ser reco- gunta: quem pode ser um bom professor e como
○
○
nhecido na sociedade, ainda há dificuldade em encontrar essa pessoa, formá-la, preservar a sua
○
assumir que a qualidade tem um preço. Nem motivação e a qualidade do seu ensino?
○
○
todos podem exercer a função docente, e nenhu- Teve lugar, de 5 a 8 de setembro de 2001, em
○
○
ma associação profissional aceitaria entre seus Genebra, no Bureau Internacional da Educação
○
pares candidatos despreparados para a função. da Unesco, a 46ª Conferência Internacional de
○
○
Falando de desenvolvimento da EJA, essa Educação, dedicada ao tema “Educação para
○
○
questão do recrutamento e da retenção de pro- todos para aprender a viver juntos”. As conclu-
○
○
fessores qualificados torna-se ainda mais críti- sões dos debates, das sessões plenárias e das
○
ca, já que nem sempre os recursos financeiros oficinas que se realizaram durante a Conferên-
○
○
disponíveis num determinado país permitem a cia, preparadas para os organismos governa-
○
○
implementação de uma educação verdadeira- mentais e não-governamentais, para os profes-
○
○
mente para todos, crianças, jovens e adultos. No ○
sores e suas organizações, para a mídia e todos
entanto, à medida que cresce o papel da edu- os parceiros da sociedade civil interessados na
○
○
ela, a educação, ocupa cada vez mais lugar, na seu potencial para levar indivíduos e socieda-
○
○
vida dos indivíduos, ao longo de toda a vida. des a aprenderem a viver juntos, foram de gran-
○
de ou lugar, para aprendermos, para nos quali- tudo se pensarmos nos acontecimentos ocorri-
○
○
evolutiva, exigindo um grau elevado de adap- cada vez maior de pormos de pé o conceito de
○
○
tabilidade. É o que se chama comumente o “aprender a viver juntos”, um dos pilares da edu-
○
○
continuum educativo. A EJA constitui, assim, cação, tal como definidos pelo Relatório Inter-
○
○
uma excelente ocasião para abordar questões nacional da Unesco, publicado sob o título Edu-
○
ção em matéria de população, à educação para Não há dúvida de que o direito de todos à
○
○
nação depende em larga medida do nível de es- tem hoje de que a educação é o caminho para
○
○
colaridade anterior, que produz um efeito cu- combater a pobreza e promover a participação
○
○
mulativo reconhecido por todos: quanto mais de todos nos níveis político, social e cultural.
○
○
escolarizado o indivíduo, mais vontade ele tem No entanto, o objetivo da educação para todos
○
de aprender. Por isso os progressos na escolari- vai além da universalização pura e simples. Em
○
○
zação de jovens, os progressos na alfabetização cada país a luta pela coesão social e contra a
○
○
de adultos e qualquer impulsão à educação bá- desigualdade, o respeito pela diversidade cul-
○
○
sica estimulam e são estimulados pelo cresci- tural e o acesso a uma sociedade do conheci-
○
mento da demanda de educação de adultos, nas mento, que pode ser facilitada pelas tecnologias
○
○
sociedades de hoje e de amanhã. Daí que o anal- de informação e comunicação, estão direta-
○
○
fabetismo nos países em via de desenvolvimen- mente relacionadas com a qualidade da educa-
○
○
to, o iletrismo nos países desenvolvidos e os li- ção. A própria diversidade lingüística e o fosso
○
Nesse processo, o que é que, racionalmente, Nesse contexto, as reformas são mais pro-
○
a sociedade pode esperar dos seus professores? cesso que produto. O importante, paralelamen-
○
○
Que nível de exigência é preciso colocar no tra- te à definição dos conteúdos, continua sendo o
○
○
112
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
○
professores, as comunidades, as famílias, o se-
○
fazer um levantamento das práticas de ensino tor econômico, a mídia, as ONGs e as autorida-
○
○
e aprendizagem na linha do aprender a viver des intelectuais e espirituais devem trabalhar
○
○
juntos, visando seu estudo e divulgação mes- juntos, cada um na sua área de competência,
○
mo em nível nacional, os processos de reforma visando a um mesmo objetivo – a construção de
○
○
devem necessariamente facilitar e promover o sociedades diversas mas solidárias, em paz con-
○
○
envolvimento de professores, ao mesmo tem- sigo mesmas e com os outros.
○
po que a área da formação deve desenvolver O que pensam os professores a propósito de 113
○
○
com os professores os comportamentos, as ati- tudo isso? Seria interessante e extremamente
○
○
tudes e os valores que se quer ver praticados elucidativo perguntar aos professores como eles
○
○
pelos alunos, no âmbito do respeito à diversi- se vêem na sociedade e no sistema educativo e
○
dade. O uso das tecnologias de informação e como vêem a profissão docente, suas demandas
○
○
comunicação na formação e na sala de aula con- e incentivos, como se vêem na sala de aula. A
○
○
tribuirão também para a mudança necessária Unesco estaria interessada em participar de um
○
○
da relação aluno/professor, acompanhando a esforço como esse, pela importância que ele
○
evolução da sociedade nos últimos tempos. poderia ter na definição da identidade profissio-
○
○
Não nos esqueçamos de que a educação não nal do professor e, portanto, na compreensão
○
○
pode estar sozinha nesse processo de aprendi- ainda mais aprofundada de seu papel e de sua
○
○
A formação de educadores:
○
○
○
um caminho para a
○
○
○
transformação da educação de
○
○
○
Graciela Messina
○
○
Unesco/Orealc/Chile
○
○
○
○
○
A tese principal:
○
a mudança na Educação de
○
A educação de pessoas jovens e adultas tem rica Latina para gerar uma transformação posi-
○
○
enfrentado uma crise estrutural nos últimos tiva na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
○
○
vinte anos: em repetidas ocasiões, discutiu-se Essa transformação deve começar nos pró-
○
o sentido dessa modalidade e em diversas ou- prios educadores. Ela deve ser gerada por pro-
○
○
○
○
na profissão docentes como na EJA. esquema e as práticas mais habituais de ino-
○
○
A mudança educacional tem habitualmen- vação e renovação nessa área têm consistido
○
○
te ocorrido a partir da concepção e da imple- na definição de novos perfis para os educado-
○
mentação de novos planos de estudo, da ela- res, em mudanças nos planos de estudo, no es-
○
○
boração de materiais ou da implementação de tabelecimento de conteúdos mínimos para a
○
○
programas de formação educacional. O currí- formação, na elaboração de materiais, em con-
○
culo, os modelos de gestão e os materiais di- cursos de projetos para instituições de forma-
○
○
dáticos têm sido usados como estratégias para ção, no credenciamento institucional ou na
○
○
melhorar a qualidade da educação, a qualida- promoção de pesquisas educacionais como
○
○
de dos sistemas educacionais, suas estruturas requisito ou norma estabelecida a partir do
○
e suas funções. Os sujeitos têm sido relegados nível central dos ministérios de educação. Em
○
○
a um segundo plano e tem prevalecido o pon- todas essas estratégias, os educadores têm sido
○
○
to de vista do “sistema” e de sua eficiência e relegados a um segundo plano. A formação dos
○
○
eficácia. A formação dos professores tem sido ○
formadores e o desenvolvimento de espaços de
abordada da mesma maneira, vista como uma reflexão nos próprios locais de trabalho ainda
○
○
temas educacionais, mas não como um espa- Nesse contexto, no qual a formação tem-
○
○
ço para o educador e seu trabalho educacio- se tornado cada vez mais importante como es-
○
uma missão salvadora para educadores ca- de educadores de jovens e adultos não foi abor-
○
○
semiprofissionais do que a um espaço para os xidade, insere-se a tese que vamos analisar.
○
○
ais necessários que são, necessários para a so- tema, que anula os sujeitos e os encerra em
○
○
mação tampouco tem sido vista como parte le- não-formal ou informal, educação inicial, bá-
○
gítima do trabalho docente e integrada a ele sica, primária, secundária, superior, intercul-
○
○
como elemento da tarefa institucional e da ta- tural, para adultos, e outros. A inovação edu-
○
○
refa coletiva dos profissionais da área. Além cacional está ameaçada por sua própria som-
○
○
disso, os educadores têm sido vistos principal- bra e, em muitos casos, corre o risco de se tor-
○
mente como um insumo ou fator do processo nar apenas cópia ou réplica de algo já produ-
○
○
educacional, ou seja, apenas como recursos zido em outro lugar, ou seja, a inovação pode
○
○
humanos e não como sujeitos e protagonistas tornar-se repetição e, como qualquer repeti-
○
○
mação reside nesse enfoque “de fora para den- multidimensionais e abertos. O exposto aci-
○
○
tro”, que privilegia mais a formação que o tra- ma insere-se num campo educacional que,
○
○
balho docente e que considera a formação em nível teórico, é “fraco”, já que reproduz
○
como um meio destinado a preparar os educa- conceitos das Ciências Naturais e segue mo-
○
○
dores para os programas de reformas educa- delos explicativos mecânicos próprios do es-
○
○
professores de acordo com os requisitos das re- ção de teorias no campo da educação, a par-
○
formas e, assim, a formação tem sido definida tir da prática e do diálogo interdisciplinar, é
○
○
“de cima para baixo”, seguindo a mesma ori- a grande tarefa pendente sobre a qual se as-
○
○
114
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
Para transformar a educação de adultos, do-se finalmente livre e legítima para criar sua
○
○
precisamos questionar as categorias habituais própria configuração.
○
○
que nos permitem organizar nossa prática edu- A educação de adultos tem sido caracteri-
○
○
cacional e hierarquizá-la de acordo com os es- zada pelo princípio da “compensação” e usa-
○
quemas conhecidos e aceitos como naturais. da como um ato de “reparação” social princi-
○
○
Atribuímos às normas contingentes a condi- palmente pela escolaridade não alcançada por
○
○
ção de leis da natureza. “Desnaturalizar” as parte da população adulta. Desde sua origem,
○
noções e os nomes que constituem o campo a educação de adultos tem estado vinculada 115
○
○
da educação seria o primeiro passo para qual- aos setores sociais mais excluídos. Educação
○
○
quer mudança. de adultos é um nome que oculta o que todos
○
○
A transformação da EJA produzirá mudan- sabemos: que seus únicos destinatários têm
○
ças na educação como um todo, em sua tarefa sido adultos em situação de pobreza e que, na
○
○
social e em suas relações com a vida cotidiana maioria dos casos, tem consistido em esforços
○
○
e o trabalho. Para transformar a educação de orientados pela perspectiva compensatória
○
○
adultos, precisamos, em primeiro lugar, ques- (“uma educação pobre para pobres”).
○
tionar suas fronteiras, articular suas diversas Os sistemas educacionais foram organiza-
○
○
expressões e reintegrá-la ao conjunto de pro- dos para formar as novas gerações por meio de
○
○
cessos educacionais dos quais ela está se- uma instituição especializada, a escola, que
○
○
gregada ou separada. Essa é uma tarefa coleti- distribui a educação de acordo com a classe
○
va a ser levada a cabo por todos os profissio- social e com outras formas de classificação-
○
○
nais da área pensando juntos, por educadores discriminação. Nesse marco, a educação de
○
○
que estão investigando o que devem fazer. adultos tem sido a educação dos que estão
○
Embora a tese aqui apresentada se baseie “fora”, uma tarefa definida como “supletiva” ou
○
○
na noção de que a transformação da EJA deve “compensatória”, concebida para reparar a fal-
○
○
ocorrer a partir dos educadores e com sua par- ta de oportunidades dos grupos que não tive-
○
○
ticipação, a tarefa situa-se num espaço de con- ram acesso à escola ou não puderam continu-
○
vergência entre dois campos: a chamada “edu- ar seus estudos numa instituição escolar. Em
○
○
cação de adultos” e a formação docente, am- sua aplicação, uma parte da educação de adul-
○
○
bos em processo de revisão e debate. tos cumpriu seu mandato social como “educa-
○
○
A educação de adultos
○
A educação de adultos tem sido, desde deste século faz parte dessa educação de adul-
○
manentemente redefinidas, um espaço con- gia da libertação, promulgada por Paulo Freire,
○
○
traditório, tenso, propício tanto para a pro- e a educação popular, construída a partir da
○
○
brecimento dessas práticas. Há dez anos, uma Desde a década de 1960, observamos a convi-
○
seu título, a educação básica de adultos de “a tos: uma compensatória e outra vinculada aos
○
○
outra educação” (Messina, 1993). Esse nome setores excluídos e a suas organizações.
○
○
nada às novas gerações; a “outra”, para abran- heterogêneo, fragmentado e sensível a mudan-
○
○
ger também a possibilidade da saída, de ser ças políticas e sociais; retrai-se em tempos de
○
○
○
○
pular. Ao mesmo tempo, tem constituído um ção de adultos tem desempenhado papel mar-
○
○
foco de atenção educacional e de atrito social ginal no conjunto das ações dos países da re-
○
○
para os setores mais vulneráveis. gião e nas reformas implementadas na década
○
No entanto, a educação de adultos apresen- de 1990. Desempenhou um papel marginal,
○
○
ta-se com uma configuração tão diversificada também, em projetos regionais ou internacio-
○
○
quanto a enfoques, instituições e programas nais de longo prazo implementados na Améri-
○
que não seria válido, na América Latina, abordá- ca Latina, como o Projeto Principal de Educa-
○
○
la como uma “educação de adultos em geral”. ção para a América Latina e o Caribe – PPE
○
○
Devemos considerá-la fazendo referência a eta- (1980-2000) e a proposta da Educação para To-
○
○
pas, países, grupos de países, modalidades, dos (1990-2000).
○
ações do Estado ou da sociedade civil. Nesse O PPE, definido na reunião de ministros de
○
○
contexto, a primeira diferença significativa Educação realizada no México em 1979, resul-
○
○
pode ser identificada entre duas produções que tou de um grande desejo dos governos da re-
○
○
coexistem e se contrapõem na década de 1980 ○
gião de trabalhar em conjunto. Esse projeto
e começam a se complementar na década de contemplava uma proposta de “educação para
○
○
Na maioria dos países, a educação de adul- te. Desde suas origens, o PPE propôs-se a dar
○
tos oferecida pelo Estado tem sido não apenas uma resposta ao analfabetismo e a melhorar a
○
○
compensatória, mas também seletiva. Sua ofer- oferta da educação de adultos. Sua proposta
○
○
ta concentrou-se nos centros urbanos e os gru- original compromete-se com os setores mais
○
pos mais excluídos (“os pobres dos pobres”) não excluídos e assume a perspectiva de “eliminar”
○
○
tiveram acesso a ela. Por sua vez, as pesquisas o analfabetismo e “ampliar os serviços” da edu-
○
○
indicam que as mulheres preferem participar de cação de adultos. Esse enfoque reduz o analfa-
○
○
capacitação para ofícios domésticos, enquanto a uma oferta que deve ser ampliada, com base
○
○
os homens predominam na educação básica e na mesma lógica que imperou para o sistema
○
○
ção profissionalizante de grande porte (Pieck, Além disso, o discurso e a prática do PPE con-
○
1996). Na educação básica formal de adultos, centraram-se progressivamente, nas duas últi-
○
○
participam em maior número pessoas que já mas décadas, no sistema educacional formal, na
○
○
têm alguma escolaridade ou que foram expul- escola e nos processos de ensino e aprendiza-
○
○
dária ou de segundo grau de adultos conta com Essa posição secundária desenvolveu-se de
○
○
um número maior de estudantes que a educa- tal forma que, em alguns países, a educação de
○
○
lho para os setores mais excluídos continuou entanto, foram mantidas estruturas fortes e
○
○
sendo terra de ninguém na década de 1990 centralizadas, com uma gestão progressiva-
○
○
(Pieck, 2000), da mesma maneira que a educa- mente descentralizada (Inea, México; Conafe;
○
Nesse marco, a educação de adultos apresenta- muito diferente na região. Nos países em que
○
○
se como uma modalidade na qual predominam continua funcionando como um espaço “regu-
○
adultos mais velhos têm pouca ou nenhuma te”. Em alguns países a segregação é tão acen-
○
○
116
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
○
○
cial, a educação artística e a educação para po- do trabalho e dos sistemas de poder (Infante,
○
○
pulações indígenas. 2000; Kalman, 2000).
○
○
Marginal, compensatória, seletiva e segre- A educação de adultos caracteriza-se pela
○
gada: esses atributos se conjugam e definem um heterogeneidade e fragmentação, desde as cam-
○
○
espaço para a educação de adultos. A con- panhas maciças de alfabetização até os progra-
○
○
trapartida social é um alto contingente de jo- mas de continuação de estudos primários ou
○
vens e adultos que são analfabetos ou não che- básicos e secundários e os programas de edu- 117
○
○
garam a concluir o primeiro grau. Segundo es- cação profissionalizante. Embora os países se
○
○
timativas da Unesco, essa população totalizava tenham proposto a criar sistemas integrados de
○
○
150 milhões no início da década de 1990 e se educação de adultos, suas diferentes modalida-
○
manteve nos mesmos níveis até o final dessa des continuam, na prática, desvinculadas.
○
○
década. Ainda de acordo com essas mesmas Essa desarticulação se soma à exclusão en-
○
○
estimativas, a maioria desses jovens e adultos frentada pela maioria dos países. Além disso, a
○
○
vive no Brasil e no México. Essa demanda silen- falta de ações intersetoriais parece caracterizar
○
ciosa – que não demanda – deve ser alvo da ta- a educação de adultos: enquanto os Ministérios
○
○
refa que precisamos levar a cabo. É a partir des- da Educação ou instituições semelhantes se
○
○
ção dos educadores de adultos é o fato de o cha- Ministérios da Mulher ou da Juventude assu-
○
ções que desconhecem a escrita da língua ofi- profissionalizante, em convênio com Ministé-
○
○
ciente para possibilitar sua inclusão na socie- ou da Mulher nessa área tenha sido registrada
○
○
dade (os chamados analfabetos funcionais, cujo como uma novidade na década de 1990, ainda
○
○
indicador é a escolaridade básica incompleta, não existe uma agenda intersetorial efetiva.
○
○
assumindo-se a conclusão de sete séries como Some-se a esse fato a sobreposição de uma
○
grupos é sempre um “problema” social, um sin- rica Latina, temos um verdadeiro emaranha-
○
○
ral que não pode ser reduzido a habilidades de a situação é semelhante (Pieck, 1996). Ao mes-
○
○
mesmo sentido, a alfabetização não se resume à educação de adultos, por políticas de “omis-
○
○
possibilidade de ter acesso a um código e de são” (não fazer nada e direcionar recursos para
○
administrá-lo: ela implica a capacidade de pen- outras áreas), de eliminação (dissolução de es-
○
○
poder contar com espaços de trabalho e famili- cia (programas maciços de curto prazo cen-
○
○
ares nos quais a língua escrita faça parte da vida trados em resultados rápidos e não em proces-
○
contextualizar o analfabetismo e a alfabetização. lizante são exemplos de ações desse tipo. O ob-
○
○
É importante, também, que concebamos a alfa- jetivo das campanhas é que as pessoas mudem
○
necessária para participar da produção e da cir- nalizantes do estilo acima mencionado obje-
○
tivam também uma mudança na classificação é uma categoria criada a partir de uma perspec-
○
○
das pessoas: de desempregadas a “inseridas no tiva da educação como uma soma de progra-
○
○
mercado de trabalho”. mas, muitos dos quais não se identificam com
○
○
Já afirmamos anteriormente que a educa- esse espaço (Unesco, Marco Regional de Ação,
○
ção de adultos tem estado sujeita a um proces- 2000). Os educadores e os instrutores de cursos
○
○
so de permanente redefinição de suas frontei- profissionalizantes identificam-se como educa-
○
○
ras. Na década de 1990, o termo “educação de dores de adultos, o que não acontece com os
○
adultos” foi alterado para “educação de jovens educadores dos Ministérios da Saúde, da Mu-
○
○
e adultos”, em decorrência da presença majori- lher, da Juventude e outros. Podemos pensar a
○
○
tária de jovens nessa modalidade, fato confir- educação de adultos como algo diferente de
○
○
mado por pesquisas educacionais (estudo re- uma soma de alfabetização, educação básica e
○
gional da Unesco em 13 países, sobre a educa- cursos profissionalizantes, como programas
○
○
ção básica de adultos; cf. Messina, 1993). sobrepostos.
○
○
Durante o processo de acompanhamento A necessidade de articulação é tão pertinen-
○
○
regional da Conferência Mundial sobre a Educa- ○
te quanto manter o compromisso com os seto-
ção de Adultos (Confintea V, Hamburgo, 1997), res excluídos e, ao mesmo tempo, evitar qual-
○
○
que gerou um foro permanente entre 1998-2000, quer segregação: as propostas de uma “educa-
○
○
coordenado e impulsionado pela Unesco/Crefal/ ção para a vida” precisam incluir essas reflexões.
○
○
Ceaal/Inea, surge um novo nome: “educação de A tarefa é proporcionar a pessoas que estão fora
○
pessoas jovens e adultas”, para levar em consi- dos sistemas educacionais a oportunidade de
○
○
campo da EJA. Argumentou-se que: a) a EJA tor- orçamento maior ou sua inclusão nos proces-
○
○
nou-se uma referência abstrata, já que jovens e sos de reforma: ele pressupõe a redefinição dos
○
○
adultos estão em todos os espaços; b) a EJA rei- sistemas educacionais e da tarefa educacional
○
○
vindica espaços nos quais instituições setoriais como um todo; pressupõe uma perspectiva de
○
já estão atuando; c) é necessário pensar na EJA educação permanente e inclusiva que conside-
○
○
como algo que vai além da alfabetização, da re os setores mais excluídos como o centro de
○
○
educação básica ou dos cursos profissio- suas ações sem que isso signifique oferecer uma
○
○
complexas articulações entre seus distintos pro- considerar a formação dos educadores de adul-
○
○
algo novo e inédito; f ) essas transformações que os educadores têm sido eternamente rele-
○
misso com os setores mais excluídos. Esses de- escalão mais baixo é a educação de adultos.
○
○
bates, que continuam em andamento, foram Eles têm sido desfavorecidos não apenas
○
○
Com base nessas reflexões, precisamos nos demandas colocadas aos educadores e as con-
○
○
perguntar até que ponto a educação de adultos dições a eles proporcionadas pelo Estado. O
○
118
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
○
○
cional, tão forte no século XIX, hoje já não exis- ampliação dos anos de escolaridade dos pro-
○
○
te. Os sistemas educacionais contribuíram gramas. Ao mesmo tempo, a profissão docen-
○
○
para a criação e a consolidação dos estados te continuou sendo categorizada como uma
○
nacionais e os professores, por sua vez, foram profissão de segunda ordem no conjunto das
○
○
“a mão” dos sistemas educacionais, uma con- profissões.
○
○
gregação leiga disposta a executar um manda- Em todos os países da região, foram desen-
○
to e uma doutrina. Os sistemas educacionais volvidos programas de renovação da formação 119
○
○
parecem ter-se esquecido de que precisarão de docente (inicial e continuada) na década de
○
○
seus professores. Pode-se conjeturar que não 1990; no entanto, a separação entre a forma-
○
○
se trata de uma confusão, e sim de uma opção ção inicial e a formação em serviço foi man-
○
sistemática por uma outra coisa: os meios de tida, bem como a separação entre a escola e as
○
○
comunicação e os sistemas virtuais. Nem mes- instituições de formação e entre as carreiras
○
○
mo os sindicatos de professores, ainda pode- que formam para os diferentes níveis e moda-
○
○
rosos em alguns países, conseguiram mudar lidades do sistema educacional. A formação
○
essa situação. docente reproduz a estrutura fragmentada do
○
○
Salários baixos, condições de trabalho que sistema educacional.
○
○
obrigam o professor a ter mais de um empre- Por último, as inovações na formação do-
○
○
go, falta de uma formação sistemática e o fato cente inicial não incorporaram a problemáti-
○
de a formação não fazer parte do trabalho do- ca da educação de pessoas jovens e adultas
○
○
para satisfazer às novas exigências do currícu- nuou segregada ou passou a fazer parte da for-
○
○
tem sido visto como um processo de fora para ção docente em quase todos os países da região.
○
○
não é profissional. O que se propõe, com base nos próprios espaços de trabalho, workshops
○
○
em outros marcos de referência, é a promoção nas escolas que, em alguns casos, geraram es-
○
percorrido a partir dos próprios educadores des. Essas experiências foram organizadas em
○
○
por duas vias: a epistemológica, que implica a torno da reflexão da prática pedagógica. Em que
○
○
sistematização a partir da reflexão da prática pesem essas “boas notícias”, no entanto, a prin-
○
docente nos espaços de grupos docentes, e a cipal limitação dos processos de formação é o
○
○
política, ou da organização e participação dos enfoque de fora para dentro, que privilegia mais
○
○
educadores nas políticas públicas por meio dos a formação que o trabalho e considera a forma-
○
○
sindicatos de professores (Hargreaves; Pérez ção como um meio para preparar os educado-
○
Gómez, outros). Embora prevejam a participa- res para programas de reformas. Por essas ra-
○
○
âmbito da escola e não permitem que os pro- críticas por terem sido definidos “de cima para
○
○
grandes políticas educacionais e que desem- insere-se nesse contexto, no qual a formação
○
○
penhem o papel que lhes cabe na educação adquiriu relevância e, ao mesmo tempo, os edu-
○
○
uma hierarquização formal nos últimos vinte de pessoas jovens e adultas não foi abordada em
○
○
○
○
matização de experiências tanto no nível
○
pessoas jovens e adultas
○
dos países como da região (América Lati-
○
na), com a participação de profissionais
○
Não temos uma situação comum em todos
○
das diferentes instituições que atuam no
○
os países da região. Apenas alguns países estão
campo da educação de adultos (Ministé-
○
debatendo o tema neste momento. Além disso,
○
rios de Educação e outros, ONGs, univer-
○
o debate se diferencia de acordo com a situa-
○
sidades), educadores e sindicatos de pro-
○
ção dos docentes e do papel que desempenham.
fessores.
○
Enquanto em alguns países, como a Argentina,
○
3. A tarefa de formação é específica e, ao
○
os educadores são formados e atuam como pro-
○
mesmo tempo, concebida para diferentes
○
fessores da educação formal de adultos, em
○
tipos de educadores. Um de seus propósi-
○
outros, como México, os educadores de adul-
tos é criar um espaço de intercâmbio, for-
○
tos (os assessores do Inea) são, em sua maioria,
○
mação e produção de conhecimentos en-
○
“voluntários”, pessoas da comunidade, sem di-
○
○
volvendo educadores de adultos de dife-
ploma e com salários baixíssimos. ○
res de adultos (em que tipo de instituição, que dores da formação profissional, outros). A
○
○
da experiência.
○
adultos? No caso dos educadores diplomados, ciclo comum e menções, uma das quais
○
nas escolas normais e nos institutos de forma- mum, não apenas se recuperaria a tradi-
○
○
ção, que não oferecem formação específica ini- ção da educação popular e a sistematiza-
○
propõe é o seguinte:
○
para a educação de adultos. Essa tarefa tir dos educadores e com eles. Estamos fazen-
○
○
educadores de adultos.
○
120
SIMPÓSIO 7
O desenvolvimento da EJA e a formação de professores na América Latina
○
PIECK, Enrique. Función social y significado de la
○
dores como a criação de uma proposta de edu- e d u c a c i ó n c o mu n i t a r i a . U n a s o c i o l o g í a d e l a
○
○
e d u c a c i ó n n o fo r m a l . M é x i c o : U n i c e f / C o l e g i o
cação de adultos que parta dos interesses e dos
○
Mexiquense, 1996.
○
conhecimentos das pessoas e que esteja orien-
○
. Educación de adultos y formación para el
tada para os setores mais excluídos. Esse pro-
○
trabajo en América Latina: incidencia y posibilidades en
○
cesso é o inverso da definição de perfis docen- los sectores de pobreza. In: JACINTO, Claudia;
○
○
tes ou da predeterminação de conteúdos míni- GALLART, María Antonia. Por una segunda oportunidad:
○
mos para a formação. Trata-se de uma forma- la formación para el trabajo de los jóvenes vulnerables. 121
○
○
ção docente para educadores de adultos como Montevideo: Cinterfor/OIT/Rede Latino-Americana de
○
Educação e Trabalho, 1998.
○
sujeitos de direitos, cidadãos plenos e inter-
○
PIECK, Enrique. Educación de jóvenes y adultos vinculada
○
locutores do Estado na definição de políticas al trabajo. In: Unesco/Ceaal/Crefal/Inea. La educación
○
educacionais, ou seja, o oposto de uma forma-
○
de personas jóvenes y adultas en América Latina y el
○
ção de educadores como executores de progra- Caribe. Prioridades en el siglo XXI. Santiago de Chile,
○
○
mas num espaço “sala de aula”, em lugares 2000.
○
RIVERO, José. Educación de adultos en América Latina.
○
escolarizados, ainda que não inseridos fisica-
○
Desafíos de la equidad y la modernización. Madrid: Oei,
mente na escola. Essas propostas precisarão
○
1993.
○
estar articuladas com uma formação geral e
○
○ . Educación y exclusión en América Latina.
comum de todos os educadores e profissionais
○
ção de pessoas jovens e adultas implica. rica Latina. Pátzcuaro, México: Unesco/Orealc/Crefal,
○
○
1988.
○
va. Estado del arte sobre las innovaciones educativas . Necesidades básicas de aprendizaje de los
○
○
en América Latina. Bogotá, Colômbia: CAB/Unesco, adultos en América Latina. In: UNESCO/UNICEF. La
○
Hacia una pedagogía de género. Experiencias y TORRES, Rosa María. La formación de los maestros. Qué
○
○
conceptos innovativos. Bonn/Colômbia: DSE/Unesco- se dice, qué se hace. Dissertação (seminário regional
○
GALLART, María Antonia. La formación para el trabajo en mandas da formação inicial do professor”). Santiago de
○
go, ago. 2000). Buenos Aires: Cenep, 2000. la política educativa. Dissertação (reunião prospectiva
○
íses de América Latina. Santiago, Chile: Unesco/Orealc, Intergovernamental do PPE, Santiago, ago. 2000).
○
2000.
○
LETELIER, María Eugenia. Analfabetismo femenino en Chile UNESCO/OREALC. Nuevas formas de aprender y nuevas
○
MESSINA, Graciela. La educación básica de adultos: la otra docente. Santiago de Chile: Unesco/Orealc/Cide, 1996.
○
Chile, 1990.
○
Latina. Boletín del PPE, n. 43, Unesco/Orealc, ago. 1997. dades en el siglo XXI. Santiago de Chile, 2000.
○
○
MESSINA, Graciela (Org.). Estrategia regional de UNESCO/Ministério da Educação do Chile. Marco regional
○
seguimiento de Confintea V. Santiago, Chile: Unesco/ de acción para la educación de personas jóvenes y adul-
○
○
O FUNDEF E A VALORIZAÇÃO
DO MAGISTÉRIO
Ulysses Cidade Semeghini
123
O Fundef e a valorização
○
○
○
do Magistério
○
○
○
○
○
Ulysses Cidade Semeghini
○
○
Fundef/MEC
○
○
○
○
○
○
○
○
O Fundef foi criado para garantir uma Educação. O valor referente ao Fundef é credi-
○
subvinculação dos recursos da educação para tado em conta específica, sempre que houver
○
○
o Ensino Fundamental, assim como para asse- arrecadação e repasse de recursos das fontes
○
○
gurar uma melhor distribuição desses recursos. que alimentam o Fundo. Ou seja, o crédito da
○
Com esse fundo de natureza contábil, cada es- ○
○
parcela do Fundef originária do FPM acontece
tado e cada município recebem o equivalente na mesma data do repasse do FPM, o mesmo
○
○
ao número de alunos matriculados na sua rede ocorrendo com relação às outras fontes.
○
○
nacional por aluno/ano. O Fundef foi criado • Sessenta por cento, no mínimo, para remu-
○
○
em janeiro de 1998 em todo o país. parcela também pode ser utilizada para ha-
○
e Serviços (ICMS).
○
• Ressarcimento pela desoneração de ex- 2001, a utilização de parte da parcela dos 60%
○
Em cada estado, os recursos do Fundef são como leigos, para efeito de atuação no Ensino
○
vernos municipais, de acordo com o número de • tenham apenas o Ensino Fundamental, com-
○
○
dido em cada rede de ensino (estadual ou mu- • lecionem para turmas de 1ª a 4ª séries e não
○
○
nicipal), conforme os dados constantes do Cen- possuam o Ensino Médio, modalidade Nor-
○
zado a cada ano pelo Instituto Nacional de Es- • lecionem para turmas de 5ª a 8ª séries sem
○
○
tudos e Pesquisas Educacionais (Inep) do MEC, que tenham concluído o Ensino Superior, em
○
○
124
SIMPÓSIO 8
O Fundef e a valorização do Magistério
○
○
habilitação de professores leigos não mais será tência de vínculo definido em contrato próprio,
○
○
possível com a parcela dos 60% do Fundef. En- celebrado de acordo com a legislação que dis-
○
○
tretanto todos os investimentos voltados à for- ciplina a matéria e pela atuação, de fato, do pro-
○
mação inicial dos profissionais do Magistério fissional do Magistério no Ensino Fundamen-
○
○
poderão continuar sendo financiados com a tal. Os afastamentos temporários previstos na
○
○
parcela dos 40% dos recursos do Fundo. legislação, tais como férias, licença-gestante ou
○
A atualização e o aprofundamento dos co- paternidade, licença para tratamento de saúde, 125
○
○
nhecimentos profissionais deverão ser promo- não caracterizam ausência ao efetivo exercício.
○
○
vidos a partir de programas de aperfeiçoamen- A legislação do Fundef não estabelece valor
○
○
to profissional continuado, assegurados nos mínimo (piso) ou valor máximo (teto) de salá-
○
planos de carreira do Magistério público. Po- rio para o Magistério. As escalas salariais deve-
○
○
dem ser usados os recursos da parcela dos 40% rão integrar o Plano de Carreira e Remunera-
○
○
do Fundef, inclusive para o desenvolvimento da ção do Magistério que cada governo (estadual
○
○
formação, em Nível Superior, dos professores na e municipal) deve implantar. Assim, os salários
○
docência de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamen- serão definidos de acordo com a realidade de
○
○
tal, obedecendo nesse caso às exigências legais cada um desses governos, ou seja, de acordo
○
○
Em relação a esses cursos (que não tenham receita, a jornada de trabalho, entre outras va-
○
MEC não realiza o credenciamento de institui- O MEC, por intermédio do Fundescola, de-
○
○
ções que ofereçam cursos de capacitação; no senvolveu um software para auxiliar os gover-
○
entanto, torna-se necessária a verificação sobre nos que precisem criar um novo Plano de Car-
○
○
mento dessas instituições nos Conselhos Esta- ma permite a realização de criterioso estudo da
○
○
A LDB (art. 62) estabelece que os docentes lação de alternativas de planos, tomando como
○
○
da Educação Básica deverão ser formados em base as diretrizes e dispositivos legais vigentes.
○
○
Nível Superior (Licenciatura Plena), mas admi- A Lei nº 9.424/96 estabelece a obriga-
○
○
modalidade Normal, para a docência nas qua- Carreira e Remuneração para o Magistério em
○
○
Dessa forma, os professores deverão, no futu- o governador ainda não tomaram essa providên-
○
○
em curso Normal Superior, pois a melhoria da escolar, deverá mobilizar-se, envolvendo o Po-
○
○
qualidade do ensino constitui um compromis- der Legislativo local, no sentido de buscar o cum-
○
○
so que passa também pela valorização do Ma- primento desse mandamento legal.
○
○
gistério. Portanto não há prazo para os sistemas A maior parte dos recursos do Fundef (par-
○
de ensino deixarem de aceitar a formação em cela anual mínima de 60%) deve ser utilizada
○
○
Nível Médio, modalidade Normal, para quem na remuneração dos profissionais do Magisté-
○
○
faz parte do quadro do Magistério, com atua- rio do Ensino Fundamental, ou seja, na cober-
○
○
ção nas quatro primeiras séries do Ensino Fun- tura da folha de pagamento desses profissio-
○
que exercem atividades de docência e aqueles ção deverão incorporar os eventuais ganhos fi-
○
○
que oferecem suporte pedagógico a tais ativi- nanceiros alcançados em razão do Fundef. Des-
○
○
○
sempre sob o princípio da transparência e com conjunto das redes públicas do país, em junho
○
○
o respaldo legal exigido (lei municipal no caso de 2000 essa proporção já estava reduzida a
○
○
de rede municipal de ensino). 3,1%.
○
Com o objetivo de analisar as principais Ainda que se reitere que uma das metas
○
○
mudanças e os avanços ocorridos em favor do mais ambicionadas pelo Fundef seja a de pro-
○
○
Ensino Fundamental no período compreendi- mover a erradicação, como vem de fato ocor-
○
do entre a implantação do Fundef, em janeiro rendo, da categoria de docentes não-qualifica-
○
○
de 1998, e junho de 2000, o MEC contratou pes- dos, os maiores percentuais de aumento aca-
○
○
quisa amostral nos estados e municípios. Uma baram por beneficiar os professores cuja esco-
○
○
das idéias centrais na concepção do Fundo é a laridade máxima era o Ensino Fundamental
○
valorização do Magistério, tema que orientou a completo. Isso se explica com facilidade, uma
○
○
maior parte do esforço da pesquisa. A seguir, vez que grande parcela desses profissionais re-
○
○
sintetizam-se seus principais resultados, no que cebia remunerações inferiores aos requisitos
○
○
se refere a salários, capacitação e aumento do ○
mínimos, não raro muito menores que o salá-
número de docentes. rio mínimo. O percentual nacional médio de
○
○
número de professores do Ensino Fundamen- 50 e 60%, com grande destaque para a Região
○
○
de 2000, indicam um crescimento global nes- Há várias formas para se obterem informa-
○
○
docentes, sem contar auxiliares, profissionais trole Social do Fundef (estaduais e munici-
○
○
Normal) e professores com Nível Superior (Li- licitar o extrato da conta do Fundef direta-
○
○
mental e tiveram índices de crescimento qua- nais de Contas e o Ministério Público tam-
○
○
se idênticos, cerca de 11,5% (acima da média, bém podem obter informações do Banco do
○
bro de 1997.
○
souro Nacional.
nota-se que, se antes de 1998 apenas 23% das
○
○
redes de ensino desenvolviam atividades vol- • Nas cidades com menos de 100 mil habi-
○
faziam. Assim, uma das prioridades vinculadas zes fixados nas agências dos Correios.
○
○
goria de professores leigos, com a conseqüente Orientação, elaborada pelo MEC e distribuída
○
sendo rapidamente atingida em todo o país. nicípios, são oferecidas orientações gerais. En-
○
○
Verifica-se que, se, em dezembro de 1997, pro- tretanto, se necessário, pode-se procurar o De-
○
○
126
SIMPÓSIO 8
O Fundef e a valorização do Magistério
○
representantes do Poder Legislativo local,
○
(61) 410-9283, por e-mail <fundef@mec.gov.br> para que estes, pela via da negociação ou
○
○
ou, ainda, pelo Fala Brasil (0800-616161). pela adoção de providências formais, pos-
○
○
Em caso de descumprimento dos dispositi- sam buscar a solução junto ao governante
○
vos legais sobre o Fundef, recomenda-se: responsável;
○
○
• procurar, primeiramente, os membros do • ainda, se necessário, recorrer ao Ministério
○
○
Conselho de Acompanhamento e Controle Público (Promotor de Justiça), diretamente ou
○
Social do Fundef, para que este solicite ao 127
○
com a ajuda e intermediação do Conselho do
○
responsável, se necessário, a correção das
○
Fundef, formalizando suas denúncias, enca-
○
irregularidades praticadas; minhando-as, também, ao respectivo Tribunal
○
○
• na seqüência, se necessário, procurar os de Contas (do estado ou dos municípios).
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
DEBATE
○
○
○
O Fundef e a valorização
○
○
○
do Magistério
○
○
○
○
○
ça, no interior da sala de aula, que não seja por primeiro, que socializássemos parte da renda
○
○
meio do professor, e não há nenhum profes- nacional, uma vez que criou uma bolsa, um
○
sor capaz de promover mudanças, dentro de fundo que leva as pessoas a participar de ma-
○
○
sua sala de aula, a não ser por meio da neira direta de nossa sociedade de consumo.
○
○
capacitação permanente, bem como da forma- Outra mudança importante, além da dis-
○
○
ção de um novo quadro do Magistério, adequa- tribuição de renda, é que ele provocou o re-
○
do às exigências do novo século, do novo mi- torno de professores que estavam afastados
○
○
Essa capacitação tem custo, não é feita gra- no Nordeste quanto nos estados do Sul e do
○
○
tuitamente. O sistema de ensino não pode co- Sudeste, pois os salários melhoraram e as pes-
○
brar de seus professores qualquer coisa, ne- soas passaram a integrar o mercado consumi-
○
○
nhum centavo, em relação à formação e à dor, a ser cidadãs. O Fundef resgata a cidada-
○
○
capacitação – isto é inadmissível. É preciso que nia, especialmente dos trabalhadores em edu-
○
○
deral de ensino, respondam de maneira soli- Além disso, o Fundef coloca em cena o En-
○
○
dária à formação e à capacitação desses pro- sino Fundamental, que é, fazendo aqui um tro-
○
○
Qual é o papel do Fundef em relação a isso? portante. Não há quem caminhe no sentido
○
cia por parte de muita gente, estranhamente alocados recursos para a melhoria da qualida-
○
de de ensino. Mesmo antes do Fundef, o go- cação, aqueles que são usuários dos diversos sis-
○
○
verno Fernando Henrique Cardoso cuidava da temas de ensino, especialmente dos sistemas
○
○
universalização do ensino, mas o grande dra- municipais.
○
○
ma está colocado em duas pontas: uma delas O Fundef, ao sinalizar para um piso míni-
○
é a da permanência, como evitar a evasão; ou- mo (piso pode não ser o termo mais conveni-
○
○
tra é a permanência com qualidade. Não basta ente, mas refere-se ao mínimo em termos de
○
○
garantir a permanência e evitar a evasão. É pre- salário), fez com que houvesse uma correção
○
ciso fazer isso com qualidade. Essa é uma ques- rápida nos salários dos trabalhadores em edu-
○
○
tão central e está relacionada, efetivamente, cação, estabelecendo, à época, um valor-refe-
○
○
com a formação do profissional, porque o alu- rência em torno de R$ 320,00.
○
○
no não está na escola só para aprender a ler e Outra questão que o Fundef também colo-
○
a escrever, tem de aprender a viver, a somatizar ca é que, ao se estabelecer que o governo fe-
○
○
conhecimentos e isso passa pela qualidade do deral teria recursos complementares para a co-
○
○
professor. bertura de Fundos Estaduais, isso gerou segu-
○
○
O aluno não vai aprender sozinho; o profes- ○
rança nos agentes educacionais dessas áreas.
sor é uma figura imprescindível na vida do es- Ao colocar em cinco ou seis estados brasi-
○
○
tudante. Ele precisa estar ali para monitorar o leiros recursos para a educação, o governo fe-
○
○
conhecimento das crianças, da apropriação cul- deral permite que, a médio e longo prazos, te-
○
○
tural, do saber, da leitura, da Matemática, da nhamos uma sociedade mais educada, cujos
○
Literatura, dos conceitos de boa qualidade de resultados poderão não ser vistos rapidamen-
○
○
vida. O Fundef, colocando no cerne da questão te, mas serão no dia-a-dia das comunidades. No
○
○
o Ensino Fundamental, vai permitir a médio e desempenho das crianças e dos jovens é que
○
longo prazos que a educação tenha outro per- vamos poder observar qual a importância real
○
○
fil, porque com professores melhores qualifica- da distribuição de renda por meio da educação.
○
○
dos, mais bem informados teremos uma socie- Vale lembrar que o Fundef é transitório,
○
○
to. Esse é um papel importante que o Fundef de Educação das Prefeituras do PSDB de São
○
○
mente, no que tange à educação. Jundiaí, foi extraída uma carta, propondo que
○
○
O governo federal acertou, como balizador se dê prioridade ao Fundef, para que se torne
○
dia a educação. Também por conta disso houve Educação, consagrado na Constituição Federal,
○
○
um estímulo muito grande para a municipa- e sugerindo, ainda, no caso de São Paulo, que
○
○
lização do ensino. Embora sem embutir em seu fizéssemos o mesmo em relação à Constituição
○
contexto de legislação, o Fundef criou facilida- Estadual. Nesse mesmo Fórum, deliberou-se
○
○
des para que os municípios, principalmente do que o deputado federal por Jundiaí, Dr. André
○
○
educação, coloca os agentes fazedores da edu- Acredito que isso tem de ser feito dessa for-
○
○
cação próximos dos consumidores de educação ma, a fim de que não fiquemos ao sabor dos
○
○
e as duas pontas se juntam: a ponta dos fazedores governantes, daqueles que são contra ou a fa-
○
○
DESEMPENHO DO PROFESSOR
E SUCESSO ESCOLAR DO ALUNO
Charles Hadji
129
Desempenho do professor
○
○
○
e sucesso escolar dos alunos
○
○
○
○
Charles Hadji
○
○
Universidade Pierre Mendès/Grenoble/França
○
○
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
Partiremos de dois fatos que, na atualidade, cos dados indiscutíveis se encontram realmente
○
constituem consenso na comunidade de pesqui- disponíveis “sobre os professores e seu papel no
○
○
sadores. De um lado, “certos professores conse- ○
sucesso ou fracasso dos alunos” (idem: 35). Isso nos
guem fazer com que seus alunos progridam mais
○
to, existem diferenças significativas de um profes- • Como foram construídos os saberes atual-
○
Do outro, não podemos senão constatar “a dificul- • O que sabemos hoje, exatamente, sobre a in-
○
○
dade de se estabelecerem resultados reais, fluência dos professores no sucesso dos alunos?
○
eficácia dos professores” (idem: 28). E, de fato, pou- melhor a respeito dessa questão?
○
○
○
○
○
○
○
A primeira questão levantada pela pesquisa estava orientada para a identificação de va-
○
○
sucesso escolar dos alunos é aquela do marco sencial, pelas características individuais
○
○
paradigmático adequado. Será que esse marco (por exemplo, o professor cordial). Todavia,
○
○
Se uma indagação sobre a condição de tes de tais trabalhos, que eram muito
○
○
produção dos saberes no campo que nos pre- freqüentemente baseados na opinião, igno-
○
○
ocupa aqui se mostra, de partida, necessária, rando o trabalho concreto dos professores
○
em aula.
○
demos nos contentar com duas questões sim- dir a eficácia a partir da eficiência dos mé-
○
○
ples, para as quais Clermont Gauthier (1997) todos. A pedagogia experimental acreditou
○
130
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
○
○
não era possível considerar um “método de talmente satisfatória, bem como nenhuma de-
○
○
ensino” como variável causal independen- monstrou-se capaz de fornecer uma resposta
○
te (Bru, 1990).
○
totalmente fundamentada e definitiva para a
○
• Durante os anos 1960, diversos estudos dedi- questão da eficácia do ensino e dos professores.
○
○
caram-se à observação do ensino em sala de
○
○
aula. Nessa época, 79 sistemas de observação
Quais foram, e são, os principais
○
diferentes foram elaborados e implementados 131
○
paradigmas da pesquisa?
○
(Gauthier, 1997: 33). Entretanto, se o esforço
○
tinha o mérito de centrar-se na “caixa preta” Os autores não se colocam de acordo sobre a
○
○
do trabalho em aula, os trabalhos ignoraram natureza e o número dos grandes paradigmas de
○
○
a questão dos efeitos produzidos pelo ensi- pesquisa no campo da eficácia. Isso levaria a
○
no, pois as práticas descritas não foram com-
○
mostrar que nenhum deles se impõe de manei-
○
paradas com o sucesso escolar. ra indiscutível!
○
○
• Nos anos 1970, a questão central tornou-se, Para Bressoux (1994), pode-se detectar, com
○
○
então, saber se eram os professores os que respeito aos trabalhos sobre os efeitos-professor,
○
realmente faziam a diferença, dentro de uma
○
quatro grandes paradigmas.
○
perspectiva processos–produto. Tentou-se, ○
○
O paradigma do critério de eficácia, caracte-
assim, identificar comportamentos estáveis rizado pela pesquisa de uma variável que seria a
○
dos alunos (produto). Quais são as variáveis paradigma dominante quando da primeira fase
○
acima descrita.
○
meta-análises que permitiram chegar a re- daquilo que se interpõe entre os estímulos pe-
○
to, objeto de múltiplas críticas sobre as quais aprendizagem dos alunos (por exemplo: envol-
○
○
• Uma crítica importante foi no sentido de que (1996: 15), esse paradigma corresponde apenas
○
‘processo-produto’”.
○
de uma quinta abordagem ilustrada pelos Por último, o paradigma ecológico, de inspi-
○
○
trabalhos de Schön (1983; 1987) e centrada ração etnográfica, que se dedica à interação de-
○
sos de pensamento mobilizados pelos pro- referindo-se aos contextos suscetíveis de outor-
○
○
beres objetivos e, de outro, aquele das variá- cogitação, Durand (1996) vê, essencialmente, um
○
○
Esse rápido histórico permite constatar que so-produto”, as quais, se “continuam”, revelam-se
○
○
nenhuma das abordagens que se sucederam na doravante menos criativas (1996: 17); uma abor-
○
○
○
○
○
1
NT Interação Aptidões–Tratamentos (I.A.T.). Vários grupos de sujeitos equivalentes ou, ao contrário, diferenciados do ponto de vista das
○
características pessoais consideradas são expostos a condições pedagógicas diferentes para assimilar um conteúdo de aprendizagem idên-
○
○
tico. A seguir, avaliam-se os desempenhos de cada sujeito para poder identificar os tratamentos pedagógicos que melhor convêm às carac-
○
○
○
e no funcionamento cognitivo dos professores, ten- marco teórico interpretativo. Acrescente-se a
○
○
do sempre a preocupação de identificar os elemen- isso o que Durand (1996) vem finalmente res-
○
saltar sobre o fato de se ignorarem as ativida-
○
tos de eficácia. Entretanto, esse autor salienta o
○
surgimento de uma terceira atitude, de perspecti- des desenvolvidas quando da interação com
○
os alunos (por exemplo: atividades de plane-
○
va etnográfica (idem: 32), caracterizada pelos tra-
○
jamento).
○
balhos de Schön. Os defensores dessa terceira ati-
○
tude estariam menos interessados nos problemas b. É por isso que podemos clamar, junto com
○
○
de eficácia e de avaliação. Gauthier, por uma complementaridade das
○
abordagens e, até mesmo, dos esforços por
○
Eis por que poderemos ficar finalmente de
○
progredir no sentido de “um modelo
○
acordo com Gauthier (1997), que distingue três
○
eclético” (1997: 125).
grandes abordagens nas pesquisas sobre Peda-
○
○
gogia: c. Isso nos parece: um comprometimento mai-
○
or do que a construção de um modelo descri-
○
• A abordagem processo–produto, centrada na
○ tivo exaustivo (do processo ensino-aprendi-
pesquisa de correlações entre comportamen- ○
○
de suas representações e, de forma mais pre- satisfatórias à questão da eficácia. É isso que
○
Alguns resultados
○
interessantes produzidos
○
os efeitos-professor
○
sempenhos cognitivos medidos com a aplica- Felouzis (1997) e Gauthier (2001) têm apresen-
○
○
ção de testes padronizados); nenhuma expli- tado sínteses a respeito, ao mesmo tempo, dos
○
duz seus efeitos; subestima da influência dos tos-professor” e dos resultados obtidos.
○
○
alguns resultados
○
res do ensino primário; desdém com a histó- Uma coisa é certa: “os efeitos-professor fo-
○
○
ria. Bressoux (1994) acrescenta outras três: ram provados e ficou demonstrado que o seu
○
○
confusão (possível) entre causa e correlação; impacto é mais poderoso do que aquele das es-
○
132
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
colas” (Bressoux, 1994: 127). Na explicação esta- cia dos exemplos; tempo concedido aos alunos
○
○
tística da variância do aproveitamento escolar para responderem; organização do curso; modali-
○
○
em turmas de seconde,2 o ganho da variância dades de estabelecimento e de manutenção da
○
○
explicada pelo estabelecimento é só de 5%, en- matéria; clima da turma; modalidade de decisões;
○
quanto é de cerca de 15% para a turma (e, por- taxa de comportamentos entusiastas.
○
○
tanto, para o professor) (Felouzis, 1997: 57). A O que podemos deduzir? Os alunos terão
○
○
última estimativa confirmada por Duru-Bellat e melhor desempenho escolar (de uma maneira
○
Mingat para o C.P.3 : a inclusão da pertença a uma geral) se o seu professor: 133
○
○
turma aumenta em 19% o poder explicativo de • Efetivamente ensinou os conteúdos avalia-
○
○
um modelo estatístico. Numa pesquisa que in- dos: os alunos têm mais chances de apren-
○
der e, portanto, de ter sucesso, quando o pro-
○
cluiu 102 turmas do ensino primário, constatou-
○
se, “para um aluno de desempenho exatamente fessor “executa” o currículo.
○
○
médio num teste inicial, um desvio de 30 pon- • Concedeu tempo suficiente para sua disci-
○
○
tos no teste final, dependendo de o aluno ter sido plina (sendo que esse tempo varia de forma
○
○
escolarizado com o professor mais, ou com o considerável de um para outro professor).
○
menos, eficaz” (Bressoux, 1994: 135).
○
• Levou seus alunos a concederem o máximo
○
Mas quais são, de um lado, os fatores
○
○
de tempo na tarefa (esse tempo pode variar
explicativos dessas diferenças e, de outro e de 50 a 90% para um ensino de Matemática).
○
○
evitar qualquer contra-senso, que a eficácia pe- com respeito aos seus alunos. Esse ponto foi
○
mente dependente de variáveis de identificação Felouzis (1997) que, tendo distinguido dois
○
○
pessoal, tais como o sexo, o meio social de ori- grupos de professores do ensino secundário
○
que “a eficácia dos professores se constrói na pedagógicas centradas nos alunos e tenden-
○
○
contam. O mestre, não como indivíduo, mas como petência esperado, mas impondo-se sem
○
○
infinidade de pontos de vista (Durand, 1996: 12). to negativas sobre os alunos, seu fraco nível
○
○
Inúmeras têm sido as variáveis de processo estu- de competências e sua incapacidade para
○
das retroações; nível de dificuldade das tarefas; taxa • Soube apresentar suas exposições de forma
○
○
2
NT Antepenúltima série do ensino secundário francês, equivalente ao 2º ano do Ensino Médio brasileiro.
○
○
3
NT C.P.: Cours Préparatoire. Última série da escola maternal francesa, antes do ensino primário, equivalente ao penúltimo ano da pré-escola
○
brasileira.
○
• Fez elogios ajustados, não muito freqüentes, cácia nunca poderá estar garantida. Em rigor:
○
○
que acompanharam os efetivos sucessos dos • As situações de ensino em sala de aula são
○
○
alunos. tais que essa atividade constitui uma tarefa
○
complexa, de múltiplas dimensões. Durand
○
• Propôs retroinformações (feedbacks) corretivas,
○
de um modo afetivamente neutro e deixando (1996) ressalta algumas: um número elevado
○
○
ao aluno tempo suficiente para corrigir-se. de elementos interagindo; o caráter pluridi-
○
mensional de cada situação, a que se acres-
○
• Estruturou as atividades: propondo exercí-
○
centa o caráter heterogêneo dos alunos; a si-
○
cios de entrada nas seqüências; procedendo
multaneidade dos acontecimentos; a fra-
○
por etapas curtas, mas com ritmo permanen-
○
ca previsibilidade da situação; uma forte pres-
○
te e sem digressão, sempre sem temer a re-
○
são temporal. Essa complexidade é tal que
○
dundância; com um tempo importante de
somente uma e mesma forma de agir nem
○
prática dirigida coletiva, seguida de exercí-
○
sempre pode produzir os mesmos efeitos.
○
cios individuais, mas cuidando de manter os
○
alunos envolvidos na tarefa; por último, ter- • Há, no ensino, uma “primazia do operativo”
○
○
minando com sínteses. ○
(Durand, 1996: 69). A ação é guiada por crité-
rios pragmáticos, e não lógicos ou formais. Ela
○
Clermont Gauthier (2001) faz uma apresen- • Justamente, os efeitos dos diversos fatores
○
segundo duas grandes funções (gestão da maté- dentre outros fatores, do nível da série ou ano
○
○
ria; gestão da turma), sendo que cada uma é de escolaridade considerado e das caracte-
○
mento, interação e avaliação. Nesse conjunto, sinar constitui uma profissão que acontece
○
○
Bressoux (1994) vê dois fatores que surgem de num contexto demasiado complexo para que
○
• o tempo de envolvimento na tarefa; cias” (Gauthier, 2001: 214). Não se pode iso-
○
○
cesso). Sem dúvida, há também muitas outras onde se deduz a existência de “efeitos de
○
○
coisas a serem feitas para se ter sucesso; e a efi- composição” (Duru-Bellat e Mingat, 1994:
○
134
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
143), pode-se confirmar que toda pesquisa mente operando, isto é, as vias e os mecanismos
○
○
geral do “bom professor” será em vão. pelos quais, e graças aos quais, existe um “efei-
○
○
• Finalmente, é por isso que seria convenien- to”. O que implica sabermos mais, de fato, “so-
○
○
te, aqui e sempre, fazer, segundo a expressão bre os fatores que influem no aproveitamento
○
de Clément Gauthier, um “uso prudente” escolar dos alunos” (Bressoux, 1994: 128).
○
○
(1997: 217) dos resultados da pesquisa. O que Duas grandes questões são, então, apresentadas:
○
○
isso quer dizer? Não se deve sucumbir nem 1. Quais são os fatores que incidem na apren-
○
à “mística” da todo-poderosa ciência, nem à dizagem dos alunos? E qual seria a impor- 135
○
○
mística simétrica do professor condenado à tância relativa da qualidade do desempe-
○
impotência e à hesitação pela complexidade
○
nho do professor no sucesso escolar dos
○
da sua profissão; mas, sim, utilizar os resul- alunos?
○
○
tados dos trabalhos de pesquisa como ferra- 2. Quais seriam as vias e os mecanismos den-
○
mentas intelectuais ou como grades de
○
tro da importância relativa da eficácia even-
○
inteligibilidade para estar informado e tam-
○
tual dos professores?
○
bém para refletir sobre a sua própria prática,
○
tendo em vista, eventualmente, reajustar as
○
○
práticas e os meios implementados refe- No que se refere à questão dos fatores
○
○
renciando-os às finalidades perseguidas. ○
que incidem no desempenho escolar
“Trata-se de tentar incorporar na sua práti-
○
dos alunos
○
ticas profissionais, alguns saberes, savoir- Temos de considerar, junto com Jean
○
○
faire ou formas de ser, a fim de aumentar seu Cardinet, que um desempenho (do aluno) obser-
○
○
‘efeito-professor’ ” (Gauthier, 2001: 214). vado “é uma função com muitas variáveis” (1991:
○
Para progredir na questão que lhe é colocado etc. Em todos os casos, torna-
○
○
Temos rigorosamente que reconhecer, citan- sempenho do professor vem a ser apenas um fa-
○
○
do Bressoux, que se os efeitos-professor foram tor dentre vários outros, e que não podemos
○
○
já provados e se, assim, nossos conhecimentos supervalorizá-lo (se é que não devemos, não
○
○
apresentaram progressos, “temos ainda muito obstante, subestimá-lo). O professor não é o úni-
○
pouco conhecimento a respeito dos fatores que co responsável. E ele é só em parte responsável.
○
○
favorecem os desempenhos dos alunos” (1994: Dentre todos esses fatores que interagem, po-
○
○
108). Por meio de que processos mediatários os deríamos distinguir dois subconjuntos: os fatores
○
○
fatores identificados (e isolados) pelas pesqui- relativos ao educando e aqueles relativos aos con-
○
sas sobre os efeitos-professor chegam a produ- textos dos aprendizados. Pelo lado do educando,
○
○
zir, justamente, seus efeitos? Seria preciso não poderíamos evocar: a bagagem hereditária (com
○
○
apenas, como salientam Duru-Bellat e Mingat, todas as discussões que ela suscita); a personalida-
○
○
descrever de forma sistemática e precisa “a efe- de; as aptidões; a história, em particular a escolar;
○
tiva variedade das práticas”, mas também “de- as atitudes, e a relação com a “coisa escolar”; os pro-
○
○
terminar [...] as práticas eficazes, ou seja, aque- jetos; a vontade; o nível de comprometimento. Pelo
○
○
las que se revelarem efetivamente ligadas à qua- lado dos contextos, podemos identificar três gran-
○
○
lidade do ensino” (1994: 139). É preciso, ainda, des séries de fatores: o contexto de vida (o meio so-
○
ir além dessa pesquisa de correlações (que en- cial e cultural); o contexto da aprendizagem (escola,
○
○
cerra no paradigma processo–produto) para ten- currículo, professor e “método”); o contexto da ava-
○
○
tar identificar as causalidades que estão efetiva- liação. O professor, em rigor, só viria a ser mais um
○
fator de contexto entre muitos outros, o que torna dem mais ser estudadas de forma simplesmente
○
○
redutora a pesquisa febril das correlações entre o apriorística e no abstrato (“competências social-
○
○
desempenho do professor e o aproveitamento es- mente definidas”, Felouzis, 1997: 19). É preciso
○
○
colar dos alunos. Essa pesquisa deve situar-se num descrever e analisar os comportamentos realmen-
○
plano mais amplo, que tenha em conta, pelo me- te praticados quando se ensina a alunos concre-
○
○
nos, algumas dimensões principais dos processos tos: reencontramos a necessidade de descrever de
○
○
intervenientes. Só então é que, talvez, possamos maneira sistemática a efetiva variedade das prá-
○
responder mais facilmente à segunda pergunta. ticas. Porém não é fácil descrever o professor es-
○
○
pecialista: qual seria a importância relativa dos
○
○
conhecimentos, das competências, da experiên-
○
No que se refere à questão das vias
○
cia, das rotinas (Durand, 1996: 27-32)?
○
reais da eficácia pedagógica: Por último, como medir a eficácia (de um
○
○
três grandes áreas de pesquisa ensino de qualidade)? Além de essa questão abrir
○
○
Seria necessário permitir-se uma visão de con- a segunda área de pesquisa (o que significa ter
○
○
proposto tais modelos. Bru (1991) propõe um ensino é problemática (Durand, 1996: 9). Assim
○
○
no âmbito de uma abordagem sistêmica, conce- métodos da pesquisa. Duru-Bellat e Mingat pro-
○
aprendizagem; e contexto. Gauthier (1997) pro- da preeminência dos desempenhos finais mé-
○
○
põe um modelo “eclético”, fazendo da classe o dios obtidos por alunos com características in-
○
zado, privilegiando duas funções de base do en- dade de igualar os resultados para alunos com
○
○
sino: a gestão da matéria e a gestão da classe. características diferentes (1994: 134-35). Por sua
○
complexidade da profissão de professor (Gauthier, média dos exames comuns em finais de ano,
○
○
1997: 17), preferimos ressaltar que um melhor co- todo o resto permanecendo igual (sexo, idade,
○
teiros de obras”, suscetíveis de nos esclarecer so- a resultados interessantes. Mas a área de pesqui-
○
○
desempenho de um professor
○
pende dos fins e dos objetivos a que nos propo- Gauthier, 1997: 131
○
○
objetivos. Mas será que a qualidade se resume em Em primeiro lugar, o que significa ter suces-
○
○
eficácia? É nisso que consiste a totalidade do pro- so? Não deveríamos falar em fracasso tão cedo
○
○
blema das competências do professor, e do pro- nem tão rapidamente, para não sermos vítimas
○
○
fessor especialista. Essas competências não po- de imagens e de hierarquias sociais polêmicas.
○
136
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
Toda noção de sucesso ou de fracasso é relativa. tão escolher para explicar as diferenças na eficá-
○
○
Podemos vislumbrar uma trajetória, um lugar cia? Eis todo o problema das variáveis de coman-
○
○
ocupado, um poder adquirido, algumas compe- do e das modalidades de regulagem da ativida-
○
○
tências adquiridas: tudo isso vem a ser assunto de pedagógica. A área é extensa. Durand distin-
○
de apreciação. Não devemos nos deixar sucum- gue cinco níveis de regulagem (ordem; partici-
○
○
bir ao mito da trajetória ideal. Isso porque só pação; trabalho; aprendizagem; desenvolvimen-
○
○
existe sucesso ou fracasso em relação a projetos. to). Teremos de nos indagar acerca da perti-
○
Por último, o fracasso escolar não é uma doen- nência da escolha dos meios e dos objetivos in- 137
○
○
ça, é preciso fazer uma leitura “em positivo” termediários (Durand, 1996: 134).
○
○
(Charlot, 1997) das experiências escolares. Portanto, não é fácil identificar “os mecanis-
○
○
Podemos então tomar como único indica- mos pedagógicos que atuam na eficácia dos pro-
○
dor de sucesso os desempenhos escolares dos fessores” (Felouzis, 1997: 30). Porém surge já um
○
○
alunos? Não seria necessário considerar pelo resultado essencial: essa eficácia se constrói na
○
○
menos três espaços de investigação: a ativida- interação escolar. É esse espaço de interações
○
○
de ou os comportamentos; as aprendizagens; o que deve tornar-se objeto privilegiado de pes-
○
desenvolvimento (Durand, 1996: 83)? Bressoux quisas, mesmo quando essas interações são
○
○
salienta que nós, com freqüência, nos conten- muito difíceis de ser identificadas.
○
○
única de testes padronizados centrados em pro- (Felouzis, 1997: 30), podemos considerar
○
cessos intelectuais (1997: 105). Pois, tal como como comprovada a existência de efeitos-pro-
○
○
escreve Cardinet, não deveríamos nos conten- fessor. Entretanto, isso não significa que pos-
○
○
tar com “desempenhos escolares brutos, exces- samos colocar à disposição dos professores
○
○
cada disciplina e à mercê de seu estudo em aula” ras de agir não são obrigatoriamente eficazes
○
○
(1991: 210). E, em último caso, seria melhor ra- com todos e em todos os contextos. É difícil
○
○
ciocinar em termos de “progresso dos alunos” generalizar. Se, de um lado, é necessário, nes-
○
Área 3: as pesquisas sobre a “causalidade” po dos efeitos das ações que visam ao apren-
○
○
Finalmente, tudo conduz a esta área, pois a pela distância que sempre existirá entre ensi-
○
○
mento escolar de alunos (área 2) exaustivos para organizar essas ações” (a au-
○
○
Seria preciso poder mostrar como, em rigor, sência de um modelo científico de ação), não
○
○
os professores fazem as diferenças; como o en- se pode, justamente, dar a acreditar que os re-
○
sino produz seus efeitos (Gauthier, 1997: 39 e sultados dos trabalhos atuais sobre a eficácia
○
○
105). Ora, os resultados escolares obedecem, nós do ensino são suficientes para fundar práti-
○
○
xo (Durand, 1996: 5). Isso porque, nós já ressal- confiáveis. Se a pesquisa tem produzido re-
○
tamos, não são os comportamentos pedagógi- sultados notáveis (o nosso ponto 2), ainda res-
○
○
cos isolados, mas sim alguns patterns, ou mistu- ta muito para ser compreendido (o nosso pon-
○
○
ras de práticas, que podem produzir seus efeitos to 3) no marco de paradigmas de pesquisa a
○
○
communication. Cousset, Fribourg: Del Val/IRDP, 1991. p.
○
competência, na base de saberes positivos veri- 199-213.
○
○
CHARLOT, B. Du rapport au savoir. Eléments pour une théorie.
ficados, constitui um objetivo legítimo e desejá-
○
Paris: Anthropos, 1997.
○
vel” (Gauthier, 1997: 248).
○
DURAND, M. L’enseignement en milieu scolaire. Paris: PUF,
○
1996.
○
○
DURU-BELLAT, M.; MINGAT, A. La variété du fonctionnement
○
Bibliografia de l’école: identification et analyse des ‘effets-maîtres’. In:
○
○
CRAHAY, M. (Ed.). Evaluation et analyse des
○
AVANZINI, G. L’école, d’hier à demain. Toulouse: Éditions Eres, établissements de formation . Bruxelles: De Boeck
○
○
1991. Université, 1994. p. 131-45.
○
BRESSOUX, P. Les recherches sur les effets-écoles et les FELOUZIS, G. L’efficacité des enseignants. Paris: PUF, 1997.
○
○
effets-maîtres. Revue Française de Pédagogie, n. 108, p. GAUTHIER, Clermont. L’effet enseignant. In: RUANO-
○
91-137, 1994. BORBALAN, J. C. (Ed.). Éduquer et former. Auxerre:
○
○
BRU, M. Une nouvelle approche des conduites d’enseignement: Éditions Sciences Humaines, 2001. p. 201-14.
○
les recherches sur la gestion des apprentissages. In: GAUTHIER, Clermont (Ed.). Pour une théorie de la pédagogie.
○
○ Bruxelles: De Boeck Université, 1997.
A.F.I.R.S.E., Les nouvelles formes de la recherche en ○
éducation. Matrice-Andsha, 1990. p. 253-60. HADJI, Charles. Penser et agir l’éducation. Paris: ESF Éditeur,
○
○
des conditions d’apprentissage. Toulouse: Éditions SCHÖN, D. A. The reflective practitioner. New York: Jossey
○
○
CARDINET, J. L’apport socio-cognitif à la régulation interactive. . Educating the reflective practitioner. San Fran-
○
○
As funções docentes
○
○
○
e sua formação
○
○
○
○
○
Inep/MEC
○
○
○
○
O esforço empreendido na direção da cação para Todos, que previa elevar a, no míni-
○
○
universalização do ensino básico para a popula- mo, 94% a cobertura da população em idade es-
○
○
tados no final da década. De 1991 a 1999, a taxa Garantida a entrada na escola, o problema
○
de escolarização líquida, que fornece a propor- passa a ser de assegurar as condições de perma-
○
○
ção real de crianças, nessa faixa etária, estudan- nência no sistema, bem como o sucesso esco-
○
○
do no Ensino Fundamental, saltou de 84% para lar. Houve uma evolução bastante positiva nos
○
○
95%. Foi um crescimento extraordinário, dado o indicadores de fluxo, principalmente nas primei-
○
atraso que tivemos na década anterior, com a es- ras séries do Ensino Fundamental. A promoção
○
○
colarização variando apenas de 80% a 84%. Em passou de 60% para 74%, na média do Ensino
○
○
1998, o Brasil conseguiu antecipar e superar a Fundamental, entre os anos de 1991 a 1999. Na
○
○
meta estabelecida pelo Plano Decenal de Edu- 1ª série, a repetência diminuiu de 48% para 39%,
○
○
○
○
○
○
*Presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e Secretária de Ensino Superior do MEC.
○
138
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
no mesmo período, enquanto na 5ª série caiu de zonas, Maranhão, Ceará e Alagoas, que em
○
○
38% para 23%. A taxa de distorção idade/série 1998 tinham menos de 90% de crianças de 7 a
○
○
caiu de 64,1%, em 1991, para 46,6%, em 1998, e 14 anos no Ensino Fundamental, conseguiram
○
superar esse patamar em 1999. Se examinar-
○
41,7% em 2000. A redução continua acentuada
○
nas séries iniciais, tendência que certamente mos as taxas de escolarização de 1994, verifi-
○
○
está associada à iniciativa de muitos sistemas de camos que o Nordeste superou em muito o
○
○
ensino de implantar o sistema de ciclos, elimi- patamar em que se encontrava, que era de 77%
○
nando dessa forma o problema da reprovação. de escolarização líquida. 139
○
○
O melhor fluxo, como a menor pressão Contudo, a universalização do ensino
○
○
demográfica, vem influenciando uma nova precisa avançar verticalmente, na direção do
○
Ensino Médio. Na faixa etária dos 15 aos 17
○
tendência de diminuição das matrículas nas
○
séries de 1ª a 4ª (gráfico 1). Nas séries de 5ª a anos, os jovens que estão matriculados na
○
○
8ª, delineia-se uma fase de estabilidade, evi- escola representam 84,5% do total (taxa de
○
○
denciada pela menor pressão das séries ini- atendimento escolar de 1999). Entretanto, a
○
grande maioria não está efetivamente cur-
○
ciais.
○
sando o Ensino Médio: eles ainda estão ten-
○
○
Gráfico 1 tando completar o Ensino Fundamental.
○
○
Matrículas no Ensino Fundamental Apenas 32,6% dos jovens podem ser compu-
○
21.333 20.939
últimos dados é que os alunos em atraso escolar
○
20.212
○
1998 1999 2000 2001 nível médio cresceu 15%. A Educação de Jovens
○
○
Fonte: Inep/MEC
○
tidos. No plano regional, o Norte e o Nordeste dio regular cresceu apenas 2,7%.
○
○
do país permanecem com taxas inferiores à meta A maior demanda deve voltar-se, assim, para
○
de crianças fora da escola. Segundo os últimos pela universidade. Mesmo assim, as universida-
○
○
cálculos de escolarização, cruzados com as esti- des públicas preenchem todas as suas vagas, no
○
1999,1 os estados de Rondônia, Acre, Maranhão curso, por causa da evasão. As universidades pri-
○
○
e Piauí eram os que ainda mantinham a escola- vadas, por sua vez, sequer conseguem preencher
○
○
rização abaixo dos 92%. todas as suas vagas nas matrículas iniciais, e fi-
○
tarefa da universalização do ensino, os estados Para cada 100 estudantes que ingressaram na
○
○
do Norte e do Nordeste vêm melhorando, ano universidade em 1994, 70 concluíram seus cur-
○
○
a ano, suas posições. Estados como Acre, Ama- sos no ano de 1999. Nas instituições federais, essa
○
○
○
○
○
○
1
As taxas de escolarização e de atendimento para o ano 2000 serão conhecidas apenas quando o IBGE disponibilizar os dados da
○
○
○
va 78%, enquanto nas instituições privadas fi-
○
a educação básica
○
cava em 70%.
○
○
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
○
Gráfico 2
○
cação (LDB – Lei nº 9.394/96), artigo 62, e o De-
○
Concluintes no Ensino Médio – Vagas no creto nº 3.276, de 6 de dezembro de 1999, a for-
○
Ensino Superior – Brasil – 1991-2000
○
mação de docentes para atuar na Educação Bási-
○
○
Concluintes do Ensino Médio 1787 ca será feita em nível superior, em curso de Li-
1536
○
no ano anterior (em mil) cenciatura, de graduação plena, em universida-
○
1330
1164
○
960 des e instituições superiores de educação. A úni-
○
○
749 ca exceção admitida pela LDB para que se formem
639
○
905
○
776
professores que não em Licenciaturas Plenas para
○
634 699
574 o exercício de Magistério na educação básica, é a
○
517
○
Vagas no Ensino Superior (em mil) que se faz em nível médio, na modalidade Nor-
○
○
Fonte: Inep/MEC
○
com a qualidade do ensino. É preciso diminuir a pela Lei nº 5.692/71, artigo 30, como formação
○
evasão e melhorar o desempenho escolar. Com mínima para o exercício do Magistério no ensi-
○
○
relação aos docentes, os desafios são principal- no de 1º grau, da 1ª à 8ª séries – foi extinta em
○
○
mento profissional, tanto em termos das condi- A Licenciatura Plena – a ser ministrada pelos
○
○
nesse sentido tem sido o Fundo de Manutenção setembro de 1999 – pode ser de dois tipos: o cur-
○
○
gastos em atividades de capacitação docente, ção de docentes dos anos finais do Ensino Fun-
○
○
liação na educação básica (Sistema Nacional de verão ter duração mínima de 3.200 horas, com-
○
○
Avaliação da Educação Básica – Saeb; Exame Na- putadas as partes teórica e prática.
○
ficar as principais deficiências na aprendizagem CNE nº 2/97, poderão ser desenvolvidos pro-
○
○
dos alunos. O nível de escolaridade do professor gramas especiais de formação pedagógica (es-
○
○
exerce, aqui, grande influência. O ganho no ren- quemas I e II), destinados aos portadores de
○
medida que se elevar a escolaridade do professor nar nas séries finais do Ensino Fundamental
○
○
2
Ver Pareceres CNE/CES nº 630/97 e CNE/CES nº 431/98, com recomendação para se tornar plena por meio da Resolução CNE/CES nº 2,
○
de 19/5/1999.
○
140
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
○
Carência de formação
○
A Lei nº 9.424, de 1996, que regulamentou o
○
○
Fundef, estipulou um prazo de cinco anos para Até o ano 2000, o número de professores sem
○
○
que os professores leigos obtivessem a habilita- habilitação ainda se encontrava na casa do um mi-
○
ção necessária ao exercício das atividades docen- lhão. Desses, cerca de 250 mil necessitavam comple-
○
○
tes. Para isso, incentivou a aplicação de recursos tar ao menos a formação mínima do Normal Médio,
○
○
do Fundo para a capacitação mínima dos pro- para se habilitarem ao exercício das funções docen-
○
fessores “leigos”, isto é, sem Magistério ou sem 141
○
tes na escola infantil ou no fundamental de 1ª a 4ª
○
Licenciatura, para atuar nos níveis de ensino série. Entretanto, se observamos os níveis escolares
○
○
apropriados. A LDB foi mais longe ao prever que de 5ª a 8ª série e de Ensino Médio, as necessidades
○
○
até o fim da Década da Educação – dezembro de de capacitação aumentam para, pelo menos, 350 mil
○
2006 – somente serão admitidos professores ha- docentes, que precisarão obter Licenciatura para se
○
○
bilitados em nível superior ou formados por trei- habilitar ao exercício das funções docentes nas esco-
○
○
namento em serviço. las em que já atuam.
○
○
○
Tabela 1
○
○
Funções docentes sem formação mínima (leigos) Brasil – 1996-2000
○
○
○
Nível de formação
○
○
Nível de ensino
○
Fundamental de 1ª a 4 ª série
○
Ensino Médio 46.546 14,2 53.787 12,5 84.072 25,7 104.115 24,2
○
○
○
com pelo menos o Magistério são o Norte e o Oeste são os que apresentam maior carência de
○
○
apresentam mais de 30% de docentes sem Ma- Roraima, Tocantins, Maranhão, Piauí, Bahia e
○
○
gistério, atuando no ensino de 1ª a 4ª série. Os Goiás, em cada dez funções docentes, cinco não
○
○
estados de Tocantins, Pará, Rondônia, Amazo- têm Licenciatura, embora pelo menos dois te-
○
○
nas, Piauí e Ceará estão com pelo menos 20% nham algum curso superior. Outros estados,
○
dos docentes de 1ª a 4ª série sem Magistério. como Amazonas, Rio Grande do Norte, Sergipe
○
○
No ensino de 5ª a 8ª série, também o Norte e o e Mato Grosso, apresentam, em cada dez fun-
○
○
Nordeste são carentes de professores com formação ções docentes, quatro sem Licenciatura, com
○
○
superior em Licenciatura. Os estados do Tocantins e pelo menos dois tendo algum curso superior.
○
A formação de professores
○
Norte e do Nordeste ainda apresentam pelo menos ção caiu de 30% para 17%, no conjunto dos cursos
○
○
No Ensino Médio, a situação não é diferen- novas demandas do mercado de trabalho, enquan-
○
to, na área da Educação, a demanda está sendo
○
Superior, destinados à formação de docentes para
○
direcionada para a formação de nível superior. Es- a Educação Infantil e para as primeiras séries do
○
○
tão sendo criados cursos na modalidade Normal Ensino Fundamental.
○
○
○
Tabela 2
○
○
Número de escolas e matrículas no Ensino Médio e na habilitação Magistério
○
○
Brasil – 1998-2000
○
○
Ano Nº de escolas Matrículas
○
○
○
Ensino Médio Magistério % Ensino Médio Magistério %
○
○
1998 17.602 5.261 30 6.968.531 741.625 11
○
○
○
1999 18.603 4.085 22 7.769.199 615.411 8
○
○
2000 19.456 3.228 17 8.192.948 518.775 6
○
○
○
Plena correspondem a 41% dos cursos de co mais de 20%). É bom lembrar que do to-
○
○
graduação do país, segundo dados do Cen- tal de professores que ainda não possuem
○
○
regiões Sul e Centro-Oeste, nesta última Médio, cerca de 40% estão na Região Nor-
○
○
principalmente por influência do Distrito deste, enquanto outros 30% ainda podem
○
○
Federal. Mas o Sudeste continua concen- ser encontrados no Sudeste. A oferta ainda
○
Tabela 3
○
○
Brasil – 1994-1999
○
○
Taxa de Concluintes
○
crescimento 1998
○
○
Os cursos de Pedagogia, por sua vez, apre- concentra grande parte dos estudantes. O
○
○
sentaram, em 1999, 167 mil alunos matricu- Nordeste cresceu 48%, porém manteve a mes-
○
○
lados, sendo 74 mil no Sudeste e 30 mil no ma participação de 18% nas matrículas. Pelo
○
Nordeste. A Região Sudeste cresceu 37%, des- lado dos concluintes, estes foram 29 mil no
○
○
de 1994, abaixo da média do país, mas ainda ano de 1998. O Sudeste formou 15 mil e o Nor-
○
○
142
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
○
crescimento de docentes com nível superior.
○
lou cerca de 44% do total de estudantes em Na Educação Especial, com um número bem
○
○
Pedagogia, no ano de 1999, enquanto forma- menor de alunos e professores, a proporção
○
va 52%, no ano anterior. O Nordeste, por sua
○
destes com formação superior é bem maior,
○
vez, matriculou 18% dos estudantes, enquan-
○
chegando a 60% nas escolas públicas; as es-
○
to formava 14%. colas particulares fizeram um ajuste, com
○
○
crescimento de 75% dos professores com
○
143
Perfil atual das funções
○
grau superior, atingindo agora uma propor-
○
○
ção de 40%.
docentes segundo a
○
A partir da LDB, iniciou-se a integração
○
formação
○
das creches no sistema educacional brasilei-
○
○
ro. Os censos escolares passaram a incluir to-
○
Os dados preliminares do Censo Escolar
○
de 2001 indicam um total de 2,6 milhões de dos os dados referentes a creches. Os anos de
○
○
funções docentes no país, 3 com um cresci- 1998 e 1999 foram de regularização do cadas-
○
tro de estabelecimentos, docentes e matrícu-
○
mento de 4,2% em relação ao ano anterior e
○
de 21,6% acumulados desde 1996. O ensino las. A partir de 1999, os registros de matrícu-
○
○ las se regularizaram, alcançando em 2001 mais
de jovens e adultos cresceu muito nos últimos ○
○
mento registrado pelas funções docentes, en- ções docentes cresceram 30,5% nas creches e
○
tre todos os níveis de ensino. Desde 1996, as 16% nas pré-escolas, de 1999 a 2001. 4
○
○
matrículas da EJA
○
quanto os docentes Número de funções docentes por nível de ensino e proporção no setor público
○
crescimento de do-
○
Proporção
○
maior qualidade no
○
próprios professores,
○
las 4 e 5).
○
Tanto na Educa-
○
Educação Especial, os Fonte: Inep/MEC, Censos Escolares. Notas: * Dados preliminares. ** O crescimento nas creches só pode ser mensurado
○
○
dados apontam tam- em relação ao ano de 1999. Obs: As funções docentes contabilizam professores que atuam em mais de uma modalidade
○
○
3
O conceito de função docente é utilizado para contabilizar todas as situações de docentes que atuam em mais de uma área de conhecimen-
○
4
Dados preliminares do Censo Escolar de 2001.
○
O crescimento foi Tabela 5
○
○
bem maior entre os pro-
○
Funções docentes com formação superior por nível de ensino
○
fessores com nível supe-
Brasil – 1996-2001
○
rior. O crescimento foi de
○
Funções docentes com formação superior*
○
73% nas creches e de 29%
○
Crescimento
○
nas pré-escolas. Porém os Proporção (%)
Nível de ensino 1996-2001
○
docentes com nível supe-
○
Público Privado Público Privado
○
rior representam peque-
○
1996 2001 1996 2001
○
na proporção no quadro
○
Total 40,0 37,2 45,0 52,2 54,5 59,6
○
de professores que aten-
○
Creche** 65,2 81,8 8,3 11,3 11,6 14,6
dem nas creches. Nos es-
○
Pré-Escola 38,4 93,3 19,2 24,5 16,2 25,0
○
tabelecimentos públicos,
○
Classes de alfabetização - 64,8 112,8 5,0 4,4 10,4 18,5
○
esses professores repre-
○
sentavam 8% em 1996 e Fundamental de 1ª a 4ª série 32,9 71,8 19,5 25,1 26,2 40,8
passaram a 11% em 2001. Fundamental de 5ª a 8ª série ○
○
○
○ 29,1 19,2 72,4 72,6 79,3 84,0
Nos estabelecimentos Ensino Médio 47,2 25,6 86,4 88,5 86,3 89,9
○
○
privados, os docentes Educação Especial 28,0 74,6 48,5 57,3 37,0 41,0
○
Fonte: Inep/MEC, Censos Escolares. Notas: *Dados preliminares. **O crescimento nas creches só pode ser mensurado em relação
○
fessores. ao ano de 1999. Obs.: As funções docentes contabilizam professores que atuam em mais de uma modalidade de ensino e em
○
Tabela 6
○
cas chegam a 40%. No Sul e no Cen- Número de funções docentes com e sem curso específico
○
○
tro-Oeste esse índice está acima dos em Pré-Escola, por dependência administrativa e grau de formação
○
Entretanto, creches e pré-escolas são Sul 22.564 32,1 64,3 11.028 36,9 58,4
○
○
compostas em sua maioria por profes- Centro-Oeste 7.833 32,8 61,2 6.089 26,7 69,3
○
○
completo. Representam mais de 60% do Fonte: Inep/MEC – Seec, Censo Escolar 2001 (resultados preliminares)
○
○
Os docentes no Ensino
○
com o curso Normal Médio. Nas pré-escolas, esse O Ensino Fundamental, de acordo com os
○
○
percentual cai pela metade – cerca de 15% pos- dados preliminares do Censo Escolar de
○
○
suem o nível médio, mas sem Magistério, ou 2001, ocupa 1,6 milhões de funções docen-
○
apresentam apenas o nível fundamental. tes. Nas séries de 1ª a 4ª, cerca de 25% pos-
○
○
144
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
suem formação em nível superior, enquanto ficação dos docentes é necessária, as escolas
○
○
nas séries de 5ª a 8ª, os docentes com forma- particulares alteraram a proporção de 79%
○
○
ção superior representam 74%. O número de para 84%, no mesmo período, enquanto nas es-
○
funções docentes cresceu 14%, no período de
○
colas públicas o percentual manteve-se próxi-
○
1996 a 2001, enquanto o crescimento dos mo dos 73% (tabela 5).
○
○
professores de nível superior, no mesmo pe- Dentro do que recomenda a lei vigente,
○
○
ríodo, foi de 30%. as funções docentes em exercício nas séries
○
As escolas particulares possuem menor nú- de 1ª a 4ª precisam ter, no mínimo, Magisté- 145
○
○
mero de professores do que as escolas públi- rio completo. Atualmente, quase 90% das
○
○
cas, porém o ajuste foi maior no sentido do au- funções docentes estão enquadradas nesse
○
mento do grau de formação. Nas séries de 1ª a
○
requisito. Se formos considerar apenas os
○
4ª, em que a proporção das funções docentes docentes com formação superior, com Ma-
○
○
com formação superior não é alta, as particu- gistério ou Licenciatura, esse percentual cai-
○
○
lares registraram alteração de 26% para 41%, ria para 24%. Em uma perspectiva mais fle-
○
no período de 1996 a 2001. Nas escolas públi-
○
xível, restam pelo menos 11% de professores
○
cas, a proporção ainda não superou os 25%. que precisam agregar o curso Normal aos
○
○
Nas séries de 5ª a 8ª, em que uma maior quali- seus currículos (tabela 7).
○
○
○
Tabela 7
○
○
○
Brasil 1996-2000
○
○
○
Ensino Fundamental
○
○
Total de docentes 219.517 228.335 776.537 815.079 611.710 749.255 326.827 430.467
○
○
No máximo Fundamental completo 16,1 9,3 15,3 8,1 1,0 0,6 0,3 0,1
○
○
Médio sem Magistério 4,3 4,4 3,3 3,3 6,6 6,1 6,4 6,1
○
○
– Sem Magistério e sem licenciatura 0,3 0,5 0,3 0,4 2,2 2,2 7,5 6,2
○
○
– Com Magistério e sem licenciatura 1,7 3,5 1,5 2,9 3,5 4,7 4,6 6,4
○
○
– Com licenciatura 16,3 19,1 18,5 21,3 68,0 67,2 74,3 75,8
○
○
○
○
Fonte: Inep/MEC – Seec. Obs.: As funções docentes contabilizam professores que atuam em mais de uma modalidade de ensino
○
Nas séries de 5ª a 8ª, em que a determina- dade, mas esse movimento ainda não conse-
○
○
ção legal vai no sentido de que todos os profes- guiu causar impacto na proporção dos docen-
○
○
sores tenham formação superior com Licenci- tes que já possuem Licenciatura completa. Des-
○
atura completa, o percentual de cobertura da se modo, cerca de 25% dos docentes, com for-
○
○
legislação está ainda em 67%. No período 1996- mação média, com ou sem Magistério, preci-
○
○
2000, houve uma tendência para o crescimen- sarão se adequar à legislação, formando-se no
○
○
to dos docentes com Magistério, com ou sem nível superior. Outros 7% precisarão se adequar
○
curso superior. Parece estar havendo um ingres- à legislação apenas acrescentando o curso de
○
○
○
completa. Atualmente, cerca de 76% das
○
○
funções docentes estão enquadradas nesse
O Ensino Médio incorporou 3,5 milhões
○
requisito. Restam pelo menos 12% de pro-
○
de novas matrículas, desde 1994. Em sete
○
fessores que precisam agregar à sua forma-
○
anos, cresceu o equivalente ao registrado nos
○
ção o curso de Licenciatura. Outros 11% de
○
14 anos anteriores, ou seja, 70% de cresci-
○
docentes ainda não possuem graduação su-
mento. Também o número de estudantes que
○
perior e, portanto, precisarão se adequar à
○
concluem esse nível de ensino cresceu. De
○
legislação (tabela 7). Professores com Ma-
○
1991 a 1994, o número de concluintes havia
○
gistério estão ingressando na universidade
aumentado 40%, passando de 660 mil para
○
e adquirindo formação superior. A propor-
○
917 mil concluintes. A partir de 1994, o siste-
○
ção dos docentes com nível médio e Magis-
○
ma promoveu um melhor fluxo escolar, al-
○
tério vem decrescendo, enquanto aumenta
○
cançando em 2000 um número duas vezes
○
aqueles com Magistério e formação superi-
maior de concluintes (1.850 mil).
○
or. Entretanto, ainda lhes falta o curso de Li-
○
O Ensino Médio apresenta perto de 450 ○
cenciatura.
○
res de nível superior (41%). No ano de 2000, que se acentuou nos últimos cinco anos, vem
○
○
de cada 100 novas funções docentes, 95 fo- provocando um aumento na demanda por va-
○
○
ram preenchidas com professores de nível gas no Ensino Superior. Em 1990, havia cerca
○
superior, sendo que 81 com Licenciatura. de 640 mil alunos concluintes no nível médio e
○
○
Enquanto isso, outros 5% continuaram sen- aproximadamente 520 mil vagas no Ensino Su-
○
○
do de docentes com formação média, sem perior, o que estabelecia uma relação de prati-
○
○
Magistério. As escolas ainda estão absorven- camente 1,2 alunos por vaga. Em 1999, mais de
○
do professores com nível médio, principal- 1,7 milhão de estudantes concluiu o Ensino Mé-
○
○
mente em estados do Nordeste e do Centro- dio para cerca de 900 mil vagas oferecidas para
○
○
Federação
○
enquanto nas escolas públi- BRASIL 49.176 11,4 13% 380.679 88,4 35%
○
○
cas o percentual passou de Norte 3.722 16,2 10% 19.268 83,8 45%
○
○
superior com Licenciatura Fonte: Inep/MEC – Seec. Censo Escolar 2001 (resultados preliminares)
○
○
146
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
○
Nesse universo, a proporção dos profes-
○
Ensino Superior incorporou um milhão de sores com pós-graduação, em cursos de
○
○
estudantes nos cursos de graduação. De 1997 Mestrado ou Doutorado, cresceu substanci-
○
○
a 2000 – o período de maior crescimento – a almente. Em 1999, 50% das funções docen-
○
taxa média de expansão foi de 11,5% ao ano.
○
tes já eram ocupadas por professores com
○
Esse percentual é praticamente o mesmo grau de mestre ou de doutor, sendo que os
○
○
atingido pelo sistema em toda a década de professores com título de doutor represen-
○
1980 (11,8%). 147
○
tavam 20% do total (tabela 9). Nas institui-
○
A rápida expansão da matrícula repercu- ções públicas federais e estaduais, a propor-
○
○
te, obviamente, no aumento do número de ção de professores titulados é bem mais alta.
○
○
professores no Ensino Superior, que também De cada dez funções docentes, pelo menos
○
vem se dando de forma acelerada. Em 1994,
○
seis são de mestres ou doutores e, entre es-
○
contavam-se 141 mil professores em exercí- tes, pelo menos três são doutores. Nas insti-
○
○
cio em todas as instituições. Em 1999, esse tuições privadas, de cada dez funções docen-
○
○
número passou para 174 mil. O crescimento tes, pelo menos quatro são de mestres ou
○
médio no período 1994-1999 foi de 4,2% ao
○
doutores, entre os quais pelo menos um
○
ano, sendo que de 1998 a 1999 o crescimen- apresenta titulação no Doutorado.
○
○
Tabela 9
○
○
○
○
Brasil – 1994-1999
○
○
○
Fonte: Inep/MEC
○
○
○
○
duação apresentou uma grande queda, de lização mostrou uma pequena elevação, de
○
Esses professores mantêm o mesmo percen- tendo-se nessa proporção em 1999. Nas insti-
○
○
tual de 15% tanto nas instituições públicas tuições públicas, os docentes com especiali-
○
○
A categoria dos professores com especia- culares somam 45%. A proporção de profes-
○
○
docente, referenciados em padrões de
○
sores com mestrado cresceu de 21% para 29%
○
e a de professores com doutorado, de 13% qualidade.
○
○
para 20% (gráfico 3). • Novas tecnologias de informação nas es-
○
○
colas e como suporte a programas de edu-
○
cação a distância, inclusive voltados para
○
Gráfico 3
○
a formação continuada e para a capacita-
○
Docentes no Ensino Superior – Proporção ção de professores.
○
○
segundo o grau de formação – Brasil 1990-1999
○
• Elaboração e disseminação de diretrizes
○
e parâmetros curr iculares nacionais,
○
40,0
○
abrangendo desde a Educação Infantil até
○
35,0
o Ensino Médio, passando pelo Ensino
○
○
30,0 Fundamental, pela Educação Indígena,
○
○
25,0 pela Educação de Jovens e Adultos e pela
○
20,0 formação de professores.
○
○
15,0 ○
○
• Implantação de sistemas nacionais de ava-
10,0 liação na educação básica: o Saeb e o Enem.
○
Mestrado Doutorado
○
A qualidade do ensino
○
○
○
agenda das políticas de educação básica. A A lei que instituiu o Fundef (Lei nº 9.424,
○
○
correção do fluxo escolar foi uma das medi- de 24/12/1996) assegura a utilização de, pelo
○
público.
○
estudantes em atraso escolar, que era de 60% Inep analisaram dados sobre os níveis salariais
○
○
em 1994, baixou para 42% no ano de 2000. dos docentes e chegaram a conclusões anima-
○
sional.
○
5
Semeghini, Ulysses. Fundef : uma revolução silenciosa. Departamento de Acompanhamento do Fundef/MEC.
○
148
SIMPÓSIO 9
Desempenho do professor e sucesso escolar do aluno
○
Os reajustes foram maiores nas redes munici-
○
pais em todas as regiões, o que é ainda mais sig- ção média total na região, que correspondia
○
○
nificativo, levando-se em conta que foi nessas a 49% da média nacional em 1997, ascende-
○
redes que aumentou substancialmente o núme-
○
ra a 61% em 2000.
○
ro de docentes. Entretanto, mesmo as
○
○
redes estaduais reajustaram seus sa-
lários em níveis superiores ao da in- Tabela 10
○
○
○
flação no período. Os maiores índices Remuneração média, em reais, dos professores com licenciatu- 149
○
ra do Ensino Fundamental – 40h semanais 1997/2000
○
foram concedidos aos profissionais
○
dos municípios e regiões mais pobres, Taxa de
○
Dez./1997 Jun./2000
○
com o que reduziu-se a distância en- crescimento
○
tre seus vencimentos e a média das
○
Municipal 1.079 1.299 20%
○
demais regiões. No Norte e no Nor-
○
BRASIL Estadual 965 1.266 31%
○
deste, em que pese transferirem re-
○
cursos aos municípios, os estados Total 1.005 1.278 27%
○
○
concederam aumentos médios em Municipal 821 985 20%
○
○
suas redes bem maiores do que os es-
Norte Estadual 780 968 24%
○
tabelecidos no Sul, no Sudeste e no
○
Centro-Oeste.
Total
○
○
778 973 25%
Municipal 626 824 32%
○
○
ção média dos professores das redes Total 560 763 36%
○
○
sores com nível médio completo na Fonte: DAF/MEC, Pesquisa Fipe/USP, 2000
○
○
com Licenciatura Plena passaram de R$1.005,00 des estaduais e municipais, verificou-se que, no
○
○
para R$1.278,00, no mesmo período e para idên- período, houve aumento médio de 33,3% nas
○
Quando se analisaram os dados referen- foi um dos reflexos diretos da redistribuição dos
○
○
tes às várias regiões do país, constatou-se recursos que beneficiou intensamente os muni-
○
que o maior percentual de aumento da remu- cípios, justamente os que dispunham de meno-
○
○
neração ocorreu no Nordeste, onde a eleva- res possibilidades para arcar com essas eleva-
○
○
ção média foi de 59,7%, sendo de cerca de ções, antes da criação do Fundef.6
○
○
54% para os professores com modalidade No tocante aos professores com Licenciatu-
○
Normal e de 36% para os docentes com Li- ra Plena, as redes sediadas na Região Sudeste
○
○
○
○
○
○
6
Segundo informa o estudo, a inflação no mesmo período, medida pelo INPC/IBGE, foi da ordem de 12%.
○
○
concederam, no período de dezembro de 1997 maior da eqüidade nos salários dos professores
○
a junho de 2000, uma elevação salarial média no país, que é um dos objetivos declaradamente
○
○
de cerca de 33%. No Nordeste, os docentes com almejados na criação do Fundo.
○
○
essa mesma formação pertencentes às
○
redes estaduais foram os que obtiveram Tabela 11
○
○
os maiores aumentos, alcançando 38% Salário médio, em reais, dos professores
○
○
em média. Já dentre as redes munici- do Ensino Fundamental, em escolas públicas – 40h semanais
○
Brasil –1996-1999
○
pais, as maiores elevações salariais nes-
○
sa categoria aconteceram na Região Taxa de crescimento
○
1996 1997 1998 1999
○
Centro-Oeste, atingindo 34%, e no Nor- 1996-1999
○
○
deste, 32%. BRASIL 557 585 626 670 20%
○
Outro estudo 7 analisou dados
○
Norte 510 482 516 593 16%
○
extraídos das Pesquisas Nacionais por
○
Nordeste 345 354 423 451 31%
○
Amostra de Domicílio (PNAD), realiza-
○
Centro-Oeste 559 551
○
628 672 20%
das pelo Instituto Brasileiro de Geogra- ○
fia e Estatística (IBGE). Chegou a con- Sudeste 709 778 845 893 26%
○
○
clusões que indicam melhorias salari- Sul 604 665 656 749 24%
○
○
Fonte: Estimativas Inep/MEC–Seec a partir de dados IBGE/PNAD 1996, 1997, 1998 e 1999.
○
○
mento dos salários médios dos professores no Fundef teve impacto positivo sobre a forma-
○
○
país com a implantação do Fundef e a diminui- ção dos professores. Entre 1996 e 2000, o nú-
○
rogênea.[...]
○
1ª a 4ª série.
○
rio na Região Nordeste (19,5%), bem como au- séries iniciais do Ensino Fundamental, entre
○
○
mentos variáveis nas demais regiões, com exce- 1996 e 2000, foi de apenas 5%, acompanhando a
○
○
ção do Sul. Nos dois anos anteriores ao Fundef, redução da demanda nessas séries. Assim, foi
○
a relação entre o menor e o maior salário médio possível que o investimento na melhoria da for-
○
○
– havia aumentado (chegando a 2,2 vezes em to mais evidente nas estatísticas. Já nas séries
○
○
1997), ocorrendo o inverso nos anos posteriores finais, as funções docentes precisaram crescer
○
(caindo a relação para 1,98 em 1999). 22%, o que certamente exigiu a incorporação de
○
○
Nos anos de 1998 e 1999, observa-se a ocor- professores sem a formação mínima recomen-
○
○
rência de ganhos positivos em todas as regiões, dada, uma vez que a oferta de profissionais com
○
(27% no Nordeste; 23% no Norte; 22% no Cen- demanda, principalmente nas regiões e cidades
○
○
7
Coelho, Ricardo. O Fundef e a nova orientação das políticas educacionais nos anos 90: princípios e resultados. Inep/Gabinete
○
○
da Presidência.
○
SIMPÓSIO 10
ARTICULAÇÃO ENTRE AS
FORMAÇÕES INICIAL E
CONTINUADA DE PROFESSORES
Rui Canário
Charles Hadji
151
O papel da prática
○
○
○
profissional na formação
○
○
○
inicial e contínua de
○
○
○
professores
○
○
○
○
Rui Canário
○
○
Universidade de Lisboa, Portugal
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
formação dos professores, entendendo esta como da exploração das potencialidades formativas do
○
○
um processo permanente que integra, de modo exercício profissional. O modo como é concebida
○
nua. Encarando a formação como um processo de nal na formação de futuros professores pode con-
○
○
socialização profissional, defende-se a tese de que figurar-se como um elemento estruturante de po-
○
as escolas constituem os lugares onde os professo- líticas integradas de formação inicial e contínua,
○
○
res aprendem a sua profissão. Essa perspectiva de investigação e de intervenção nas escolas.
○
○
○
○
○
○
○
flexão sobre as práticas formativas tem contri- Na base da minha argumentação estarão
○
○
buído para colocar no centro da problemática subjacentes duas teses: a primeira é a de que os
○
○
Assim, nesta intervenção, procurarei, por um consiste em aprender a aprender com a experi-
○
○
professores e quais os modos da sua tradução Portugal, as décadas de 1980 e 1990, situaram-
○
○
curricular, no âmbito da formação inicial. Por se nos antípodas dessas duas teses.
○
professores como a primeira etapa de um em- entre a formação inicial e a formação contínua,
○
○
verei argumentação no sentido de defender a processo formativo em que este é encarado como
○
“prática pedagógica”) constitui o ponto seqüencial e linear. Essa visão da formação, como
○
○
nevrálgico da organização curricular dos cursos uma sucessão hierarquizada de etapas cuja ordem
○
abordar essa questão pode ser estruturante, quer lidades formativas, nega a continuidade da for-
○
○
de uma política de investigação, quer de uma mação como algo que é inerente a todo o ciclo de
○
○
política de formação contínua e intervenção jun- vida profissional e baseia-se em duas idéias es-
○
152
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
senciais: a primeira é a de afirmar a predominân- dor corporativo tem vindo a empobrecer, quer
○
○
cia estratégica da formação inicial que precede e em termos estratégicos, quer em termos meto-
○
○
determina as posteriores situações formativas; a dológicos, o debate sobre a formação profissio-
○
○
segunda é a de pensar a formação inicial a partir nal dos professores.
○
de um paradigma de racionalidade técnica, em No quadro de um paradigma de educação
○
○
que se procede a uma justaposição hierarquizada permanente, a formação profissional, nomea-
○
○
de saberes científicos, mais saberes pedagógicos, damente de professores, não pode ser entendi-
○
mais momentos de prática (entendida como uma da como circunscrevendo-se a uma primeira e 153
○
○
“aplicação”). curta etapa, prévia ao exercício do trabalho,
○
○
Da primeira idéia decorre o caráter supleti- mas, pelo contrário, como um processo que é
○
○
vo da formação contínua à qual se atribui uma inerente à globalidade do percurso profissional.
○
função corretiva quer das inevitáveis “lacunas” Tendem, portanto, a esbater-se as fronteiras que
○
○
da formação inicial, quer da, igualmente inevi- tradicionalmente separam a formação inicial da
○
○
tável, obsolescência dos conhecimentos adqui- formação contínua o que conduz à conclusão
○
○
ridos. Da segunda idéia decorrem modalidades lógica de que ambas as vertentes deverão ser
○
de ação que limitam a eficácia da formação na asseguradas, de modo integrado, por uma mes-
○
○
medida em que, reduzindo tendencialmente o ma instituição. Cada vez mais a tendência será
○
○
papel do professor ao de um técnico, ignoram a para que nos públicos do Ensino Superior haja
○
○
sua intervenção, em situações reais marcadas soas adultas que têm ou tiveram uma experi-
○
○
pela complexidade, pela incerteza e pela singu- ência profissional e que, ao longo da sua vida,
○
○
laridade. Pérez Gomez sintetiza bem os limites recorrerão às escolas do Ensino Superior como
○
Os problemas da prática social não podem ser ção permanente (nas quais a formação
○
○
tais, em que a tarefa profissional se resume a gico fundamental) e não como escolas de for-
○
○
uma acertada escolha e aplicação de meios e mação profissional inicial que, de forma subsi-
○
e pela teoria existentes. Por essa razão, o profis- te conseqüências importantes relativamente à
○
○
sional prático não pode tratar essas situações concepção das funções das instituições, das
○
como se fossem meros problemas instrumen- suas políticas, do perfil e formação do seu pes-
○
○
tais, suscetíveis de resolução através de regras soal docente, do desenho curricular dos seus
○
○
armazenadas no seu próprio conhecimento ci- cursos, da construção da sua oferta formativa.
○
Formação e mundo do
○
○
à incerteza
○
ga medida, por critérios de defesa de interesses Em termos de evolução recente, a mais im-
○
está em causa a criação de condições que lhes mação profissional é a da passagem de uma re-
○
○
mos de produção dos saberes legítimos, do trabalho, para um outro tipo de relação mar-
○
estruturantes da profissão docente. Esse pen- cado pela incerteza. Com efeito, o “fim das cer-
○
○
tezas” (Prigogine, 1996) é algo que afeta não ape- continuar a conceber o trabalho humano como
○
○
nas o modo como percebemos hoje o mundo da algo suscetível de ser objeto de uma descrição
○
○
natureza, mas também toda a vida social. Essa fina, a priori, para, em seguida, traduzir essa
○
○
nova relação de incerteza vem pôr em causa os descrição em termos de estratégias pedagógicas,
○
dois elementos que foram os pilares de uma re- de objetivos pedagógicos, de conteúdos a ensi-
○
○
lação outrora tida como harmoniosa. O primei- nar, de gestos a adquirir, de tal modo que os
○
○
ro elemento corresponde a conceber a relação formandos venham a poder encaixar-se nos per-
○
entre os sistemas de formação e o sistema mer- fis profissionais previamente definidos. Essa
○
○
cado de trabalho de acordo com um modelo de perspectiva de descrição a priori não só não se
○
○
adequação. O segundo elemento corresponde a coaduna como é contraditória com processos de
○
○
ler a articulação entre a formação e o desempe- exercício do trabalho que mudam de forma ace-
○
nho profissional de acordo com um modelo de lerada, adquirindo contornos e configurações
○
○
adaptação funcional. Ambas as perspectivas es- que não é possível prever de modo preciso. A
○
○
tão, hoje, postas em causa em face das evoluções emergência da incerteza na relação formação–
○
○
que se registraram quer no mundo do trabalho, ○
trabalho é alimentada por três grandes fenôme-
quer no mundo da formação profissional. nos: são eles a intensificação da mobilidade pro-
○
○
A primeira perspectiva supõe uma atitude oti- fissional, a rápida obsolescência da informação
○
○
cessidades” do mercado de trabalho, o que impli- forma muito rápida nas três últimas décadas.
○
○
caria que este fosse relativamente estável ou que, Hoje, em vez de se afirmar que as pessoas
○
○
em alternativa, se apresentasse com uma evolu- aprendem uma profissão, será cada vez mais
○
ção previsível. A segunda perspectiva implica pres- pertinente pensar na diversidade de atividades
○
○
supor a possibilidade de proceder à transferência que cada pessoa desenvolve no quadro da sua
○
○
quase automática das aquisições realizadas duran- trajetória profissional. Quer isso dizer que a ati-
○
○
te a formação, para o “posto de trabalho” (onde vidade profissional de cada um só faz sentido
○
seriam aplicadas), fazendo abstração das condi- se for encarada numa perspectiva diacrônica
○
○
ções sociais (organizacionais) em que se exerce o que abrange todo o período de vida profissio-
○
○
trabalho, bem como do caráter indeterminado e nal ativa. Ao longo desse ciclo as pessoas mu-
○
○
“construído” dessas condições. Desse ponto de vis- dam as suas qualificações, constroem (em con-
○
ta, a formação é encarada como um processo cu- texto) uma combinatória diversa de competên-
○
○
mulativo e linear que mantém com o desempenho cias, mudam de ambiente de trabalho, realizam
○
○
profissional uma relação meramente adaptativa, processos de reconversão e alteram as suas fun-
○
○
instrumental e funcional. É essa perspectiva que ções de natureza profissional. Em muitos casos,
○
está presente no desígnio ingênuo, por parte de acabam por fazer coisas que pouco têm a ver
○
○
responsáveis por cursos de formação inicial de pro- com a sua formação profissional inicial.
○
○
vamente exato e prévio do que se faz em contexto fissional, que é concomitante com a emergên-
○
de trabalho, pretender organizar os cursos de ma- cia do conceito de percurso de formação de cada
○
○
neira que eles se ajustem funcionalmente às “exi- indivíduo, permite romper com uma visão es-
○
○
prir esse desígnio que apela à construção de uma lho. As abordagens que têm como referência as
○
○
relação estratégica entre a formação e o trabalho, histórias de vida têm vindo fundamentar e re-
○
○
em que o essencial consiste na capacidade de de- forçar a importância de pensar a atividade pro-
○
○
nente que permita aprender a identificar o que pectiva, por um lado, integrada (as duas verten-
○
○
é necessário saber e a aprender a aprender com tes não são hoje dissociáveis) e, por outro lado,
○
○
a experiência. Quer isso dizer que não é possível numa perspectiva diacrônica, isto é, inseridas
○
154
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
na flecha do tempo, como fenômenos únicos e las em sistemas auto-regulados em que deixa de
○
○
dotados de irreversibilidade. Essa maneira de haver um centro único, funcionando com base
○
○
ver conduz a deixar de encarar a formação como numa cadeia de comando vertical. A passagem da
○
○
um somatório de momentos formais não-arti- lógica de “castelo” a uma lógica de “rede” (Butera,
○
culados (as chamadas “ações” de formação). No 1991) supõe que o exercício do trabalho deixe de
○
○
quadro de um percurso de formação, em que ser segmentado e atomizado, passando-se a va-
○
○
esta é entendida como um processo, cada pes- lorizar a polivalência e o trabalho em equipe. O
○
soa e cada profissional torna-se o sujeito da sua trabalho coletivo faz apelo a que cada um dos 155
○
○
própria formação e é esse ponto de vista que membros da organização possa construir uma
○
○
nos permite deslocar o centro das atenções, em intelegibilidade global do processo de trabalho,
○
○
termos formativos, das atividades de ensino que não ocorria, nem era desejável que ocorres-
○
para as atividades de aprendizagem. se, no sistema da linha de montagem. Neste, cada
○
○
Reside aqui o fundamento para que possa- pessoa realiza um trabalho parcelar e só conhece
○
○
mos distinguir um processo de educação per- o âmbito restrito daquilo que faz no seu “posto
○
○
manente daquilo que é a sua caricatura, ou seja, de trabalho”.
○
a extensão dos processos escolares ao conjunto Estamos, assim, em presença de uma evolu-
○
○
da vida (profissional). Essa escolarização ção tendencial de uma cultura de dependência e
○
○
meu ver, um fenômeno negativo que se tem ma- resolução de problemas, o que apela a capacida-
○
caso da formação profissional contínua de pro- equacionar problemas imprevisíveis e não ape-
○
○
fessores (Barroso e Canário, 1999). nas capacidades que permitam mobilizar as res-
○
Um segundo fenômeno diz respeito ao cres- postas “certas”, aprendidas na formação, para dar
○
○
disponível, o que traz como conseqüência uma lução, por um lado, torna obsoleta a concepção
○
○
rápida obsolescência dessa mesma informação. de formação para o “posto de trabalho”, por ou-
○
Coloca-se, então, como questão central, saber tro lado, obriga a que a formação deixe de ser pen-
○
○
como transformar sistemas formativos que fun- sada exclusivamente em termos de capacitação
○
○
cionam tradicionalmente segundo uma lógica individual. Na medida em que se passa a consi-
○
○
formativos orientados para a produção de sabe- balho, a formação orienta-se, também, para a for-
○
○
te por causa da sua rápida desvalorização. saberes, normalmente obtidos por via escolar,
○
○
Um terceiro fenômeno consiste num proces- a competência, como escreveu Lise Demailly
○
da produção em massa, por meio de processos atualiza numa situação de trabalho”. Nessa
○
○
se orientam no sentido de substituir as relações ser cumulativo (as qualificações podem ser pos-
○
○
rior das organizações, o que tende a transformá- competências só podem ser produzidas em
○
contexto, a partir da experiência de trabalho. A compreensão do caráter emergente das com-
○
○
Quando se afirma que a escola é o lugar onde petências profissionais, relativamente aos contex-
○
○
os professores aprendem é, precisamente, esse tos de trabalho, pode ser reforçada a partir do con-
○
○
processo de produção de competências profissio- ceito de zelo no trabalho, evocado por Christophe
○
nais que está a ser referido. É no contexto de tra- Dejours (1998). Esse conceito fundamenta-se na
○
○
balho, e não na escola de formação inicial, que existência de uma distância, empiricamente ob-
○
○
se decide o essencial da aprendizagem profissio- servada pelos sociólogos do trabalho, entre traba-
○
nal (que é coincidente com um processo de so- lho real e trabalho prescrito, que conduz a que a
○
○
cialização profissional). Como todos sabemos, a execução estrita dos procedimentos recomenda-
○
○
sabedoria não garante a competência. Muitas dos pelas instâncias de enquadramento produza a
○
○
pessoas qualificadas não se revelam competen- paralisação dos processos de trabalho, conforme
○
tes, e o inverso também se verifica. Além disso, pode ser constatado nas situações em que os tra-
○
○
a experiência também nos ensina que nenhum balhadores utilizam como recurso a designada
○
○
professor é definitivamente competente ou in- “greve de zelo”. Segundo Dejours, o processo de tra-
○
○
competente, independentemente dos tempos e ○
balho só funciona se os trabalhadores fizerem a or-
dos lugares. Com efeito, as qualificações obtidas ganização de trabalho beneficiar-se com a sua in-
○
○
competências escolares que não são suscetíveis Esse exercício da inteligência no trabalho só
○
○
de uma transferência linear e direta para o exer- é possível não apenas à margem do cumprimen-
○
cício profissional, na medida em que dizem res- to estrito dos procedimentos prescritos, mas a
○
○
peito ao campo pedagógico, que goza de relati- partir de uma atitude de infração às normas
○
○
va autonomia. Como afirma Berthelot, a defini- estabelecidas. O conceito de zelo no trabalho de-
○
certificação de competências são feitos pela es- é possível distinguir, por um lado, características
○
○
cola independentemente da sua “efetividade cognitivas, como “fazer face ao imprevisto, ao iné-
○
○
prática exterior”. Por isso “a idéia de uma corres- dito, àquilo que não é ainda conhecido, nem in-
○
pondência e de um isomorfismo naturais e racio- tegrado na rotina”, e, por outro lado, característi-
○
○
nais entre as competências escolares e as com- cas afetivas, como “ousar transgredir ou infringir,
○
○
petências socioprofissionais é um postulado que agir de forma inteligente mas clandestina ou, pelo
○
○
duas lógicas radicalmente diferentes, em presen- constatação de que a prática profissional se ali-
○
○
ça nos dois sistemas” (Berthelot, 1994: 200). menta de um conjunto de “saberes tácitos” e de
○
○
É justamente por também considerar que as que há um “saber escondido no agir profissional”
○
○
competências são da ordem do “saber mobili- (Schon, 1996) que confere fundamento à estraté-
○
zar” (é possível armazenar informação, mas não gia de otimizar o potencial formativo dos contex-
○
○
competências) que Guy Le Boterf (1994) lhes tos de trabalho. Essa estratégia torna-se, então, o
○
○
tos. Segundo esse autor, a competência não à formação inicial, prévia ao exercício profissio-
○
○
corresponde a um estado, nem a um saber que nal. Como escreveu Berthelot (1994: 201),
○
○
Apenas é compreensível, e suscetível de ser pro- Já não se trata, para a escola, de jogar puzzle,
○
finalizado, contextual e contingente. Essa ma- [...], mas sim de jogar xadrez, quer dizer, de pro-
○
○
neira de ver contraria a idéia de que as compe- duzir peças dotadas de regras genéricas de fun-
○
○
tências são algo de prévio ao exercício profissio- cionamento, suscetíveis de serem atualizadas de
○
nal. Elas aparecem, pelo contrário, como algo modo diverso, consoante a configuração do jogo
○
○
156
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
As situações profissionais vividas pelos pro- sional inicial de professores, ganhará em ser en-
○
○
fessores ocorrem no quadro de sistemas coleti- tendida como uma tripla e interativa situação de
○
○
vos de ação (organizações escolares), cujas re- formação que envolve, de forma simultânea, os
○
○
gras são, ao mesmo tempo, produzidas e apren- alunos (futuros professores), os profissionais da
○
didas pelos atores sociais em presença. Estamos, área (professores “cooperantes”) e os professores
○
○
portanto, em presença de um “jogo coletivo”, da escola de formação.
○
○
suscetível de múltiplas e contigentes configura-
○
ções, em função da singularidade dos contextos. 157
○
Currículo e revalorização
○
É à medida que a produção de práticas profissio-
○
○
nais, realizada em contexto, é atravessada não
da experiência profissional
○
○
apenas por fatores individuais (dimensão biográ-
○
fica), mas também por fatores organizacionais Assistimos, no quadro da concepção e da ges-
○
○
(dimensão contextual), que se permite pensar o tão das situações educativas, a uma revalorização
○
○
funcionamento da organização de trabalho (nes- epistemológica da experiência cuja concretização
○
em termos operacionais tem como referência
○
te caso, as escolas) como um processo de apren-
○
dizagem coletiva do qual emergem competên- principal o conceito de alternância. A afirmação
○
○
cias individuais (configurações de saberes) e desse conceito está ligada, na sua origem, ao cam-
○
○
“estruturado como uma linguagem [...] emerge existência de um movimento pendular de vai-e-
○
○
das articulações e das trocas fundadas nas com- vem entre dois espaços fisicamente distintos: por
○
○
petências individuais” (Le Boterf, 1994: 249). Se, um lado, a escola profissional; por outro lado, o
○
como defende Claude Dubar (1991; 1997), acei- contexto de exercício profissional. Essa dimensão
○
○
ção profissional, então, a formação consiste ba- sem dúvida, essencial. Porém, sem negar esse fato,
○
sicamente em reinventar formas novas de socia- deve reconhecer-se que essa concepção de
○
○
lização profissional, o que apela a instituir e a alternância é simplificadora e redutora, não ex-
○
○
desenvolver nos contextos de trabalho uma di- primindo toda a riqueza potencial do conceito.
○
○
trução identitária que torne possível essa tre dois lugares físicos, a alternância não supera
○
○
reinvenção. Ela não pode fazer-se senão na ação, a exterioridade da formação relativamente ao
○
○
de onde resulta, no caso dos professores, que a contexto de trabalho. Ela deve ser encarada,
○
○
formação passa a ser “centrada na escola” e que numa acepção muito mais ampla, como um vai-
○
os processos formativos passam a ser conside- e-vem entre idéias e experiências, ou seja, entre
○
○
rados como processos de intervenção nas orga- teoria e prática, tornando possível o ciclo
○
○
A articulação e mesmo coincidência entre si- dizagem experiencial de que nos fala Gérard
○
tuações de trabalho e situações de formação, ou Malglaive (1990) e que deve ocorrer também no
○
○
lho em situações de formação passa a ser uma pre- maneira de encarar o conceito de alternância
○
○
ocupação comum quer à formação inicial, quer à que é suscetível de lhe conferir uma maior uni-
○
fissional tende a deixar de ser encarada como um orientação profissionalizante). Ela permite, si-
○
○
momento de aplicação, para ser considerada, multaneamente, utilizar esse conceito como eixo
○
uma dinâmica formativa tributária de uma con- cretizar o currículo dos cursos de formação ini-
○
○
○
○
ma indeterminado, que admite uma grande di- bém, necessariamente, uma ruptura com a de-
○
○
versidade de soluções, que é, portanto, refratá- signada “pedagogia do modelo”. Os contextos
○
○
rio a receitas. Permito-me apenas, e de forma de trabalho onde os futuros professores são cha-
○
muito sintética, enunciar três grandes orienta- mados e a observar e a intervir não têm de ser
○
○
ções que podem servir de referência para a tra- “exemplares”, na medida em que na realidade
○
○
dução da revalorização da experiência em ter- também não há escolas “exemplares”. Todas as
○
mos curriculares e que se situam numa perspec- situações (desde que a regra seja a de lidar com
○
○
tiva de superação da forma escolar. a diversidade a partir de um olhar crítico) pro-
○
○
A primeira orientação diz respeito à necessi- piciam aprendizagens e a formação deliberada
○
○
dade de construir uma outra inserção espacial das de profissionais, como sublinham Lesne e
○
atividades de formação, encarada numa vertente Mynvielle (1990), ganha em ser pensada a par-
○
○
dupla: por um lado, trata-se de fazer evoluir os tir da reconstrução de situações de socialização
○
○
espaços escolares tradicionais para espaços edu- profissional, o que é o contrário de uma forma-
○
○
cativos; por outro lado, está em causa a constru- ○
ção “em laboratório”.
ção de uma relação interativa entre a escola e os Uma segunda orientação consiste em orga-
○
○
restantes espaços sociais. A primeira vertente con- nizar o currículo com a preocupação de, siste-
○
○
vida a encarar a escola de formação inicial como maticamente, multiplicar as ocasiões de dar a
○
○
um meio de vida que articula diferentes graus de palavra aos alunos e à expressão de suas
○
culação entre modalidades de auto, eco e Como referiu Berger (1991), “a experiência
○
○
heteroformação e remete para uma concepção de usar da palavra, da leitura de textos, da retó-
○
ampla de currículo, que engloba tudo o que “acon- rica pela qual convencemos o outro da nossa
○
○
A esse alargamento do conceito de currícu- des mais significativas, para os alunos, do que
○
○
nas”, a que se acrescenta a “prática pedagógi- repetição e no treino. A forma mais pertinente
○
○
ca”) associa-se a segunda vertente, atrás referi- de analisar o currículo não consiste em averi-
○
○
da, que consiste num movimento de aproxima- guar o que fazem os professores, mas sim em
○
○
ção entre os espaços da escola de formação e inquirir o que fazem os alunos e em que medi-
○
os contextos “reais” de exercício profissional. da e de que forma lhes é “dada a palavra”. Dar a
○
○
Um novo tipo de relacionamento entre situa- palavra aos alunos tem como atitude comple-
○
○
ções e momentos “escolares” e situações de tra- mentar, lógica e necessária, uma atitude de es-
○
○
balho implica, no caso da formação profissio- cuta, por parte dos professores da formação ini-
○
nal de professores, que as escolas sejam vistas cial, quer em relação aos alunos, quer em rela-
○
○
como os lugares fundamentais de aprendiza- ção aos profissionais da área. A tendencial su-
○
○
gem profissional e não como meros lugares de peração da forma escolar apela à instituição da
○
○
plica que os contatos estreitos com os contex- papéis entre quem ensina e quem aprende. Só
○
○
tos de trabalho sejam o mais precoces possível uma atitude de escuta permite ao formador ter
○
○
e estejam presentes ao longo de todo o percur- em conta os saberes “tácitos” dos formandos,
○
○
a uma etapa final. Só dessa forma é possível fa- na, que, como referia Donald Schon, se tradu-
○
○
vorecer um percurso iterativo entre formação e zem na situação-tipo do aluno que “sabe fazer
○
○
trabalho que permite o movimento duplo de trocos, mas não sabe somar números”.
○
○
mobilização, para a ação, de saberes teóricos, Uma terceira orientação consiste em tentar
○
saberes adquiridos por via experiencial. terativa entre situações de informação, situações
○
○
158
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
ticulação que poderá permitir fazer o sistema atividades de formação, as atividades de investi-
○
○
de formação evoluir de uma lógica de repeti- gação e as atividades de intervenção educativa. A
○
○
ção de informações para uma lógica de produ- organização da prática profissional dos futuros
○
○
ção de saberes. Só no quadro dessa transforma- professores pode constituir um elemento de res-
○
ção é que o formando (no caso, o futuro profes- posta para essas dificuldades precisamente devi-
○
○
sor) deixa de ser tratado (para utilizar a termi- do à sua vocação para associar aquilo que, quase
○
○
nologia de Lesne) como objeto de formação sempre, aparece dissociado.
○
para adquirir o estatuto de sujeito e de agente Assim, a prática profissional é, sempre (de 159
○
○
de formação. Nesta última perspectiva, o futu- forma deliberada e consciente ou não), um pro-
○
○
ro professor interage com as escolas na dupla cesso de formação inicial e contínua que envol-
○
○
condição de “aprendiz” e de agente socializador ve, obviamente, os alunos da formação inicial,
○
dos profissionais que atuam naquela área. Ao mas também os profissionais que os recebem,
○
○
interrogar criticamente a sua prática, confron- bem como os professores da escola de forma-
○
○
tando-a com outras maneiras de pensar e de ção, para quem esta é, freqüentemente, o prin-
○
○
agir, o jovem formando contribui para mudar cipal elo de ligação à realidade naquela área.
○
representações e comportamentos dos profis- Torna-se, portanto, possível e desejável que a
○
○
sionais já “veteranos”. Essa capacidade de ques- organização da prática profissional possa fun-
○
○
tionar criticamente as práticas de profissionais cionar como a base para construir uma política
○
○
elas, só é possível se, dentro da escola de for- em articulação com a formação inicial.
○
○
mação inicial, os alunos forem tratados como Em segundo lugar, a prática profissional
○
○
elemento estruturante da
○
vidualmente considerados.
○
estruturantes não apenas do currículo dos cur- nal numa perspectiva de ruptura com a pedago-
○
○
sos de formação inicial, mas da própria escola gia do modelo de valorização dos saberes
○
esta atividade contemplar, potencialmente, to- de um eixo metodológico de pesquisa que tenha
○
○
das as dimensões da missão cometida a essas como referencial as situações de trabalho e en-
○
○
pera das escolas do ensino básico e secundário). va de Barbier: “O ato de trabalho transforma-se
○
○
Às escolas de formação de professores são em ato de formação desde que seja acompanha-
○
vistos. E esta dificuldade decorre da dissociação profissional dos professores não pode ser con-
○
○
entre a formação inicial e a formação contínua, fundida com a defesa da aprendizagem como
○
○
In: VINCENT, G. (Org.). L’éducation prisonnière de la
○
nifica, sobretudo, aprender a aprender com a forme scolaire? Scolarisation et socialisation dans les
○
○
sociétés industrielles. Lyon: PUF, 1994.
experiência, o que, freqüentemente, só é possí-
○
BUTERA, F. La métamor phose de l’organisation. Du
○
vel a partir da crítica e da ruptura com essa ex-
○
château au réseau. Paris: Les Éditions d’Organisation,
periência. Aprender com a experiência não
○
1991.
○
pode, então, ser sinônimo de imitação, mas sim CANÁRIO, R. Ensino superior e formação contínua de pro-
○
○
de uma ação em que o prático se torna um in- fessores. Aprender , n. 15, p. 11-18, 1993.
○
vestigador no contexto da prática. . A escola, o lugar onde os professores
○
○
A segunda observação destina-se a esclare- aprendem. Psicologia da Educação, n. 6, p. 9-28, São
○
Paulo, 1998.
○
cer que a valorização da experiência no proces-
○
. Educação de adultos: um campo e uma pro-
○
so de formação profissional dos professores não blemática. Lisboa: Educa, 1999.
○
significa qualquer subestimação da teoria. O pro-
○
CANÁRIO, R. (Org.). Formação e situações de trabalho .
○
fessor, como profissional, encaro-o como um Porto: Porto Editora, 1997.
○
○
analista simbólico a quem compete equacionar DEJOURS, C. Souffrance en France: la banalisation de
○
○ l’injustice sociale. Paris: Seuil, 1998.
e “construir” problemas, no terreno da prática, ○
D E M A I L LY, L . L a q u a l i f i c a t i o n o u l a c o m p é t e n c e
marcado pela incerteza e pela complexidade, e
○
n. 1, p. 59-69, 1997.
○
ganizado o processo de prática profissional onais. In: CANÁRIO, R. (Org.). Formação e situações
○
○
será, talvez, o mais pertinente analisador dos de trabalho . Porto: Porto Editora, 1997.
○
BARBIER, J.-M. La recherche de nouvelles formes de formação do professor como profissional reflexivo. In:
○
formation par et dans les situations de travail. Éducation NÓVOA, A. (org.). Os professores e a sua formação .
○
○
BARBIER, J.-M. (Dir.). Savoirs théoriques et savoirs PRIGOGINE, I. La fin des certitudes . Paris: Odile Jacob,
○
○
BARROSO, J.; CANÁRIO, R. Centros de Formação das REINBOLD, M. F.; BREILLOT, J.-M. Gérer la compétence
○
○
Associações de Escolas. das expectativas às realida- dans l’entreprise. Paris: L’Harmattan, 1993.
○
des. Lisboa: IIE, 1999. SCHON, D. Formar professores como profissionais refle-
○
○
BERGER, G. A experiência pessoal e profissional na xivos. In: NÓVOA, A. (Org.). Os professores e a sua
○
uma sociedade global. In: Conferência Nacional No- . A la recherche d’une nouvelle épistémologie
○
vos Rumos para o Ensino Tecnológico e Profissional . de la pratique et de ce qu’elle implique pour l’éducation
○
○
Porto: ME/Getap, 1991. des adultes. In: BARBIER, J.-M. (Dir.). Savo i r s
○
BERTHELOT, J. P. Société post industrielle et scolarisation. théoriques et savoirs d’action . Paris: PUF, 1996.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
160
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
○
○
○
de professores – uma síntese
○
○
○
das diretrizes e dos desafios a
○
○
○
serem enfrentados
○
○
○
161
○
○
Célia Maria Carolino Pires
○
○
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
Esse documento tomou como base documentação já
○
As mudanças propostas para a educação bási-
○
ca no Brasil trazem enormes desafios à formação existente no MEC: textos elaborados por colaborado-
○
○
de professores. No processo de discussão dos Parâ- res individuais, comissões de especialistas e grupos
○
metros Curriculares Nacionais, um ponto foi ○
○
de trabalho, no âmbito das diferentes Secretarias da
consensual: se não houver um grande incentivo à estrutura do MEC, e estudos desenvolvidos pelo Inep.
○
○
significativo na formação de professores, dificilmen- uma sintonia entre a formação inicial de professo-
○
○
te ocorrerão as transformações que se deseja na res, os princípios prescritos pela Lei de Diretrizes e
○
○
No segundo semestre do ano 2000, o Conselho tituídas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
○
○
Nacional de Educação (CNE) elaborou as Diretrizes Educação Infantil, para o Ensino Fundamental e para
○
○
Curriculares para a Formação Inicial de Professores o Ensino Médio, bem como as recomendações cons-
○
da Educação básica. Um dos subsídios para esse tra- tantes dos Parâmetros e dos Referenciais Curricula-
○
○
balho do CNE foi o documento enviado pelo MEC. res para a educação básica, elaborados pelo MEC.
○
○
○
○
○
○
Licenciatura: um curso em
○
superação de problemas
○
seguintes:
○
a ênfase está contida na formação nos conteúdos te à organização institucional, que impos-
○
o diploma de licenciado. Refere-se aqui a “diplo- • As escolas de formação em geral são mui-
○
○
ma” e não a “formação”, pois se trata muito mais to isoladas, especialmente em relação às
○
○
de uma certificação formal após o cumprimento escolas das redes pública e privada, além
○
de serem isoladas entre si. A concepção de competência
○
○
é nuclear na orientação do curso
○
• O distanciamento entre os cursos de forma-
○
ção e o exercício da profissão de professor no de formação inicial de professores
○
○
Ensino Fundamental e Médio.
○
As competências tratam sempre de alguma
○
• O distanciamento entre os cursos de forma- forma de atuação, só existem “em situação” e,
○
○
ção de professores e as instâncias de gestão portanto, não podem ser aprendidas apenas pela
○
dos sistemas de ensino da educação básica
○
comunicação de idéias. Para construí-las, as
○
(MEC, Secretarias de Educação, Diretorias
○
ações mentais não são suficientes – ainda que
Regionais de Ensino etc.).
○
sejam essenciais. Não basta a um profissional ter
○
○
• O repertório de conhecimentos dos profes- conhecimentos sobre seu trabalho; é fundamen-
○
sores em formação, tendo em vista que, em
○
tal que saiba fazê-lo.
○
geral, há sérios problemas decorrentes de uma
○
formação bastante deficiente que tiveram no
○
○
Ensino Médio e no Ensino Fundamental.
○
○
É imprescindível que haja coerência
• O tratamento inadequado dos conteúdos, com entre a formação oferecida e a prática
○
○
professor.
papel que exercerá futuramente como docente.
○
○
• A ausência de conteúdos relativos ao uso dos A compreensão desse fato, que caracteriza a
○
• A desconsideração das especificidades próprias por alguns autores como homologia de proces-
○
dos níveis e/ou modalidades de ensino em que sos, evidencia a necessidade de que o futuro pro-
○
○
são atendidos os alunos da educação básica. fessor experiencie, como aluno, durante todo o
○
○
prias das áreas do conhecimento que com- didáticos, as capacidades e os modos de organi-
○
põem o quadro curricular na educação básica. zação que se pretende que venham a ser desem-
○
○
Princípios orientadores
○
dos cursos de formação de professores. São eles: em preparação para trabalhar na educação bá-
○
162
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
sica demonstre que desenvolveu ou tenha opor- dos, de seus significados em diferentes con-
○
○
tunidade de desenvolver, de modo sólido e ple- textos e de sua articulação interdisciplinar;
○
○
no, as competências previstas para os egressos • domínio do conhecimento pedagógico;
○
○
da educação básica, tais como estabelecidas nos
• conhecimento de processos de investigação
○
artigos 27, 32, 35 e 36 da LDBEN, nas diretrizes,
○
que possibilitem o aperfeiçoamento da prá-
○
nos parâmetros e nos referenciais curriculares
○
tica pedagógica;
○
nacionais da educação básica. Isso é condição
○
• gerenciamento do próprio desenvolvimen- 163
mínima indispensável para qualificá-lo como
○
to profissional.
○
capaz de lecionar na Educação Infantil, no Ensi-
○
○
no Fundamental ou no Ensino Médio. Outra diretriz importante é a afirmação de
○
que a escola de formação de professores para a
○
○
educação básica deve, sempre que necessário,
A pesquisa é elemento essencial na
○
○
responsabilizar-se por oferecer aos futuros pro-
formação profissional de professor
○
fessores condições de aprendizagem dos conhe-
○
○
A pesquisa na formação de professores deve, cimentos da escolaridade básica, de acordo com
○
○
portanto, ser contemplada de modo a garantir: a LDBEN e as Diretrizes Curriculares Nacionais.
○
• a aprendizagem dos procedimentos neces-
○
O desenvolvimento das competências pro-
○
sários para acompanhar o processo de de- ○
○
gico;
○
de conhecimento nas ciências: naquelas com do sistema educacional brasileiro é marcada por
○
profissional de professor, que se referem a dife- nas escolas, pelos profissionais que nelas atuam;
○
• comprometimento com os valores estéticos, própria de cada futuro professor. Assim, na for-
○
○
políticos e éticos inspiradores da sociedade mação de prfessores para a educação básica de-
○
democrática;
○
○
○
tos; em outras. Porém é possível afirmar que em to-
○
○
• conhecimento sobre a dimensão cultural, so- das elas há investigações em andamento.
○
○
cial, política e econômica da educação; Essas pesquisas ajudam a criar didáticas es-
○
pecíficas para os diferentes objetos de ensino da
○
• conteúdos das áreas de ensino;
○
educação básica e para seus conteúdos. Assim,
○
• conhecimento pedagógico;
○
por exemplo, estudos sobre a psicogênese da lín-
○
• conhecimento experiencial (conhecimento gua escrita trouxeram dados para a didática na
○
○
construído “na” experiência, que não pode ser área de Língua Portuguesa, especialmente no que
○
construído de outra forma e de modo algum
○
se refere à alfabetização. Do mesmo modo, na área
○
pode ser substituído pelo conhecimento “so-
○
de Matemática, tem havido progressos na produ-
○
bre” a realidade).
ção de conhecimento sobre aprendizagem de
○
○
Outro aspecto apontado refere-se à seleção dos números, operações etc. que fundamentam uma
○
○
conteúdos das áreas de ensino que compõem a didática própria para o ensino desses conteúdos.
○
Educação básica e que, na formação de professo- ○
○
Os professores em formação precisam conhe-
res, devem ir além daquilo que os professores irão cer tanto os conteúdos definidos nos currículos da
○
○
ensinar nas diferentes etapas da escolaridade. educação básica, pelo desenvolvimento dos quais
○
○
Polivalente ou especialista, aquilo que o pro- serão responsáveis, quanto as didáticas específi-
○
te ao que seu aluno vai aprender: são conheci- palavras, a melhor estratégia é tratá-los de modo
○
○
mentos mais amplos do que os que se constroem articulado, o que significa que o estudo dos con-
○
○
até o Ensino Médio, tanto no que se refere ao ní- teúdos da Educação básica que irão ensinar deve-
○
vel de profundidade quanto ao tipo de saber. Por- rá ser feito a partir da perspectiva de sua didática.
○
○
tanto, sua formação deve ir além dos conteúdos Com relação à avaliação, num curso de for-
○
○
definidos para as diferentes etapas da escolarida- mação de professores, o documento destaca que
○
○
de nas quais o futuro professor atuará, incluindo ela deve ter como finalidades a orientação do tra-
○
conhecimentos necessariamente a eles articula- balho dos formadores, a autonomia dos futuros
○
○
dos, que compõem um campo de ampliação e professores em relação ao seu processo de apren-
○
○
cesso de aprendizagem dos conteúdos pelos alu- Tomando como princípio o desenvolvimento
○
○
adequada dependem do domínio desses conhe- car o foco da avaliação na capacidade de acionar
○
tuações didáticas que problematizem os conhe- atuação profissional, e não na quantidade de co-
○
○
cimentos prévios com os quais, a cada momento, nhecimento adquirido ao longo do curso.
○
○
zagens que vão constituindo saberes cada vez cessário transformar formas convencionais e cri-
○
○
básica devem ser tratados de modo articulado truídos e dos recursos disponíveis para resolver
○
○
com suas didáticas específicas. Nas últimas dé- situações-problema – reais ou simuladas – relacio-
○
○
cadas, cresceram os estudos e as pesquisas que nadas de alguma forma com o exercício da pro-
○
das diferentes áreas de conhecimento como ob- por indicadores oferecidos pela participação dos
○
○
164
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
des especialmente preparadas por solicitação dos bastante generalizada de que algumas áreas pou-
○
○
formadores, pela produção de diferentes tipos de ca relação têm com as demais áreas de conheci-
○
○
documentação, pela capacidade de atuar em si- mento ou com o tratamento de questões sociais
○
○
tuações-problema. urgentes.
○
A avaliação deve ser realizada mediante cri- O documento destaca que o tempo destina-
○
○
térios explícitos e compartilhados com os futu- do pela legislação à parte prática (800 horas) deve
○
○
ros professores, uma vez que o que é objeto de permear todo o curso de formação, de modo que
○
avaliação representa uma referência importante promova o conhecimento experiencial do profes- 165
○
○
para quem é avaliado, tanto para orientação dos sor. A finalidade desse tempo de prática é possi-
○
○
estudos como para identificação dos aspectos bilitar aos alunos da formação a construção da-
○
○
considerados mais relevantes para a formação em queles conhecimentos experienciais conforme
○
cada momento do curso. Isso permite que cada definidos anteriormente, essenciais a sua atuação
○
○
futuro professor vá investindo no seu processo de como professores.
○
○
aprendizagem, construindo um percurso pessoal Os cursos de formação de professores não
○
○
de formação. podem mais propor um espaço isolado para a ex-
○
Assim, é necessário, também, prever instru- periência prática, que faz com que, por exemplo,
○
○
mentos de auto-avaliação do processo de forma- o estágio se configure como algo com finalidade
○
○
ção pelos futuros professores, o que favorece a em si mesmo e se realize de modo desarticulado
○
○
tomada de consciência do percurso de aprendi- com o restante do curso. Também não é possível
○
investimento no desenvolvimento profissional, o transpor seu “saber” para o “saber fazer”, sem ter
○
○
nomia em relação à própria formação. Por seu letiva e sistemática sobre esse processo.
○
○
turno, o sistema de avaliação da formação inicial Nessa perspectiva, o planejamento dos cursos
○
○
deve estar articulado a um programa de acompa- de formação deve prever situações didáticas em
○
○
nhamento e orientação do futuro professor para que os professores coloquem em uso os conheci-
○
a superação das eventuais dificuldades. mentos que aprendem, ao mesmo tempo que pos-
○
○
cação básica;
○
A construção de competência profissional re- seu projeto curricular, a equipe de formadores tem
○
○
quer da formação a utilização da estratégia didá- como primeira ação necessária a de buscar novas
○
○
disciplinares. Sobretudo os cursos de formação de sos de disciplinas, a partir das quais se definem
○
○
professores especialistas devem promover ações conteúdos que nem sempre são significativos para
○
○
deira postura interdisciplinar, pois há uma idéia Isso não significa renunciar a todo ensino
○
○
estruturado, nem relevar a importância das dis- O documento defende ainda que a organi-
○
○
ciplinas na formação, mas considerá-las como zação dos currículos de formação deve incluir
○
○
recursos que ganham sentido em relação aos uma dimensão comum a todos os professores de
○
○
domínios profissionais visados. Os cursos com educação básica.
○
tempos e programas predefinidos para alcançar Um dos grandes desafios da formação de
○
○
seus objetivos são fundamentais para a apropria- professores é atender às especificidades do tra-
○
○
ção e a organização de conhecimentos. Têm, as- balho educativo com as diferentes etapas de vida
○
sim, papel fundamental na atualização e no dos alunos, sem nela reproduzir uma visão seg-
○
○
aprofundamento dos conhecimentos relaciona- mentada do desenvolvimento e da aprendiza-
○
○
dos com o trabalho de professor, que são chaves gem humanas. Muitos conhecimentos são igual-
○
○
de leitura necessárias à atuação contextualizada mente necessários, muitas das temáticas são
○
e condição para a prática reflexiva do professor. igualmente pertinentes, assim como são comuns
○
○
O desafio principal da elaboração de um pla- os pressupostos para a formação do professor.
○
○
no de formação profissional não é dar lugar a Só é possível pensar na formação de profes-
○
○
todos os tipos de disciplinas, mas conceber um ○
sores da educação básica porque existe algo de
desenho curricular que permita construir, colo- comum a todo professor, atue ele na Educação
○
○
Para contemplar a complexidade dessa for- que todos eles precisam desenvolver.
○
mação, é preciso renunciar à idéia de repartir o Ao mesmo tempo, é preciso considerar que
○
○
tempo disponível entre as disciplinas. Ao con- há desafios próprios dos professores de atuação
○
○
trário, é preciso instituir tempos e espaços cur- multidisciplinar e outros dos especialistas, tanto
○
riculares diferenciados, como oficinas, seminá- em função da etapa da escolaridade em que atu-
○
○
de estudo, tutorias e eventos, entre outros capa- Finalmente, há competências ligadas à espe-
○
○
zes de promover e ao mesmo tempo exigir dos cificidade da docência em cada etapa da escola-
○
futuros professores atuações diferenciadas, per- ridade. Contemplá-las de modo integrado exige
○
○
cursos de aprendizagens variados, diferentes manter o princípio de que a formação deve ter
○
○
rem desenvolvidas. As oficinas, por exemplo, ofe- dimensão da docência. É aí que as especificidades
○
○
recem ótimas possibilidades de colocar em uso se concretizam e, portanto, é ela (a docência) que
○
○
tipos de conhecimento, construindo instrumen- deverá ser tratada no curso de modo específico.
○
○
tos e materiais didáticos, vivenciando procedi- Isso pede uma organização curricular que possi-
○
O currículo de formação deve ainda prever relação aos segmentos da escolaridade e uma for-
○
○
atividades autônomas dos alunos ou a sua par- mação comum a todos os professores.
○
○
“longitudinais” e interdisciplinares sobre temas ção de conteúdos, uma vez que é por meio da
○
○
de atividades culturais são exemplos possíveis. pedagógicos dos cursos de formação de profes-
○
○
Convém ainda destacar a importância de ati- sores não podem, portanto, deixar de definir e
○
○
ração de sua história de aluno, projetos de in- modo que garantam sua qualidade.
○
○
vestigação sobre temas específicos e até mesmo Para que os futuros professores tenham uma
○
○
monografias de conclusão de curso. visão ampla e não fragmentada da vida e dos pro-
○
166
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
cessos de aprendizagem dos seus alunos e do tra- analogamente, nos cursos para atuação es-
○
○
balho escolar que realizam, os cursos deverão pecializada por áreas ou disciplinas, deverá
○
○
contemplar essas diferentes dimensões da for- haver uma formação comum a todos os pro-
○
fessores especialistas;
○
mação, de modo articulado e complementar.
○
Em decorrência, a organização curricular dos • assentada na base comum, os cursos deve-
○
○
cursos deve incluir sempre: rão oferecer formação específica de Licencia-
○
○
• espaços e tempos em que se garanta uma tura de professores para Educação Infantil,
○
formação comum aos professores de todas anos iniciais e anos finais do Ensino Funda- 167
○
○
as etapas da educação básica; mental e Ensino Médio, esta, por sua vez,
○
especializada por áreas de conhecimento ou
○
• nos cursos para atuação multidisciplinar, por
○
disciplinas;
○
sua vez, uma formação comum a esse tipo
○
de atuação, seja da Educação Infantil, seja • cursos optativos, a critério da instituição,
○
○
das séries iniciais do Ensino Fundamental; para atuação em áreas específicas.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Charles Hadji
○
○
Resumo
○
○
○
○
Com o aparecimento de novos públicos esco- de uma dicotomia entre uma formação inicial, mi-
○
○
lares e o desenvolvimento das novas tecnologias nistrada a iniciantes ou a novatos, para armá-los
○
○
ensino desdobram-se hoje em condições transfor- continuada oferecida alguns anos depois para per-
○
○
madas, que convidam a uma reflexão sobre as mo- mitir a “reciclagem” dos professores cujas compe-
○
dalidades de formação de professores que sejam tências teriam se desgastado com o tempo? Defen-
○
○
as mais apropriadas a esse novo contexto. A dupla deremos uma melhor repartição do esforço de for-
○
○
necessidade de uma maior profissionalização e de mação no tempo (da vida dos profissionais). Pois
○
levar em conta as novas tecnologias, por exemplo, ingressamos na era da “formação acompanhante”,
○
○
não parece ser absolutamente contestada. Mas ou seja, de uma formação concebida como um fa-
○
○
como a formação poderia, concretamente, levar tor contínuo de desenvolvimento profissional. Isso
○
em conta essas duas necessidades? Em particular, exigirá que nos situemos numa problemática de
○
○
qual poderia ser a estruturação adequada das ati- formação continuada e, portanto, de repensar a
○
○
vidades de formação na sua organização tempo- formação inicial situando-a num marco temporal
○
ral? Será que devemos aceitar sempre o esquema muito mais amplo.
○
○
○
Repensar a atividade de mais um simples aprendente.
○
○
○
• Dinâmica no sentido de uma série de ações
formação na sua relação
○
que se inscrevem na duração de uma vida
○
orgânica com o campo
○
profissional (formação permanente): o pro-
○
blema não reside em simplesmente prepa-
○
profissional
○
rar para o exercício profissional, mas em
○
○
manter e inclusive desenvolver o nível de
○
qualificação profissional ao longo de todo o
○
A formação: uma atividade dinâmica
○
período da vida ativa.
○
O que significa formar? Às vezes define-se a
○
○
formação como um conjunto de conhecimen-
○
A formação: uma objetivação
○
tos e de competências que um ensino permite
○
adquirir com anterioridade ao ingresso na vida profissional
○
○
ativa. Uma definição como essa é triplamente
○
O que especifica essa atividade dinâmica
○
problemática: ○
○ é a sua objetivação. A formação só existe em
• Primeiramente, a formação não é do gêne- referência a um campo profissional. Formar
○
• Essas atividades podem assumir a forma de domínio das competências necessárias para
○
nem a única, nem necessariamente a mais área. Significa, portanto, em primeiro lugar,
○
○
ção continuada).
○
tal forma que este último não vem a ser, (Hétu et al., 1999). Os ofícios (que se originam
○
diz (versus o profissional experiente); ja- plexidade do seu exercício exige o recurso a
○
168
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
○
sionais tendo em conta essa dimensão dinâmi-
○
lizados, que será a prerrogativa de um grupo ca da formação e essa relação orgânica com o
○
○
de profissionais, com uma identidade reco- campo profissional do ensino.
○
nhecida pelo corpo social. Assim, podemos
○
○
entender por:
○
Superar os riscos
○
Profissão: uma prática social complexa, ori-
○
entada na direção de fins precisos, e que de contradição devidos
○
○
exige o domínio de um conjunto (em evo- 169
○
à presença de lógicas
○
lução) de saberes específicos e de savoir-
○
faire especializados, de alto nível (daí a ne- em tensão
○
○
cessidade der uma formação institucional-
○
Para atingir o objetivo que acabamos de
○
mente organizada).
○
identificar, será preciso, em primeiro lugar, re-
○
Profissionalidade: o conjunto de atributos
○
solver três dilemas. Todo processo de formação
do profissional, que lhe permite exercer
○
é, de fato, atravessado por tensões resultantes
○
essa atividade douta de maneira autônoma,
○
da presença de lógicas antagônicas. Isso nos
○
eficaz e respeitando um certo número de
○
regras de tipo deontológico. leva ao inevitável confronto com aquilo que
○
○
Ferry (1983) denomina como “dilemas
Profissionalismo: o resultado do processo ○
Profissionalização:
○
co de aquisição de competências (sabe- saberes são, antes de mais nada, de ordem prá-
○
normas, regras e padrões de trato social tar atenta a duas séries de evoluções:
○
de certos problemas;
○
alto nível.
○
○
Toda a questão reside em saber, concreta- Certamente, essas práticas estão relaciona-
○
○
○
Uma mesma prática depende de vários saberes. necessidade de relegar temporariamente ao
○
○
Um mesmo saber pode estar implicado em di- segundo plano as exigências da produção a
○
fim de dar aos novatos o tempo necessário
○
versas práticas. As evoluções de uns e de outros
○
não estão sincronizadas. E, sem dúvida, temos para a construção de si mesmo (o que im-
○
plica um direito ao erro, proibido ao profis-
○
de distinguir entre saberes de ação e saberes
○
sional em exercício). Huberman (1986) pro-
○
teóricos (Barbier, 1996).
○
pôs, nesse sentido, um modelo original que
Isso implica, para a formação, a dupla ne-
○
articula de maneira feliz um centro, conce-
○
cessidade de:
○
bido como “sistema com recursos”, ao tra-
○
• ter um cuidado pela profissionalização, en-
○
balho de campo, concebido como “sistema
tendida como atenção ao surgimento de
○
do usuário”.
○
“saberes doutos” úteis para a profissão;
○
○
• ter um cuidado pela operatividade (Durand,
○
A tensão entre a dimensão
○
1996), objetivando a construção das “ima-
○
gens operativas” e dos savoir-faire concre- ○
○
profissional (aprender um ofício)
tamente úteis para os profissionais. e a dimensão pessoal (desenvolver
○
○
(de exercício da profissão) ter um objetivo, num certo sentido privado, por
○
○
• Sendo “profissional” e visando ao domínio derão ser superados tornando mais transpa-
○
○
de uma atividade complexa no terreno pro- rentes os objetivos da formação e, talvez, dis-
○
contato com o trabalho de campo; e b) fa- de um lado, educação (com fins indetermi-
○
○
lho de campo, o que redundará num duplo mação de adultos (visando melhorar direta-
○
○
empenho: do centro, para levar em consi- mente a qualificação) e ações de formação per-
○
que está a serviço do trabalho de campo. E qualificação pelo expediente de uma evolução
○
○
170
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
○
○
entre objetivo social e objetivo pessoal deve- lidade – do esforço de formação é feito an-
○
○
rá, portanto, ser sempre claramente colocado. tes da entrada na vida escolar. O que é ad-
○
quirido então é considerado como definiti-
○
○
vamente adquirido e não será jamais ques-
Inscrever-se decididamente
○
tionado. Trata-se da estratégia histórica na
○
○
numa dinâmica de projetos França, de uma formação inicial que se se-
○
○
gue imediatamente à aprovação num con- 171
○
Essa necessidade pode ser analisada sob o curso de emprego.
○
○
duplo ponto de vista da dinâmica do processo
Estratégia 2: A formação torna-se continu-
○
○
de formação e da dinâmica do processo de evo- ada, como continuação de uma formação
○
lução individual dos formados.
○
inicial anterior à qual reconhece-se um pa-
○
pel privilegiado, sendo que oportunidades
○
○
Do ponto de vista da dinâmica do de formação são oferecidas ao longo de uma
○
○
processo de formação carreira, eventualmente sob a forma de “cré-
○
dito formação”.
○
Junto com Lesne (1984), podemos conside-
○
Estratégia 3: A formação é contínua, após
○
rar quatro grandes momentos correspondentes
○
○
um início, que é uma primeira fase, mas não
a quatro subconjuntos de atividades.
○
questões:
○
a) os valores que dão sentido ao projeto e soleta e ultrapassada. Portanto, temos hoje a es-
○
○
que justificam as finalidades escolhidas. colha entre uma formação continuada e uma
○
qual se desejaria que os formados se orien- e a irrupção de novos públicos que transformam
○
c) as modalidades eficazes de ação pedagó- formação continuada. Elas traduzem uma con-
○
É aqui que se coloca de maneira intensa o pação não seria possível, preferimos, por nossa
○
○
problema do tipo de formação privilegiado, se- vez, uma estratégia do tipo formação continua-
○
mação inicial. Poderíamos considerar três gran- mente necessário para o exercício da ocupação;
○
○
○
○
mação continuada que se seguirão; e c) convi- do processo. Evidentemente, trata-se do proble-
○
○
da a construir os momentos seguintes em coe- ma da condução conjunta das operações de for-
○
○
rência com aqueles que os antecederam. mação que deveria ser colocado. O processo
○
pedagógico é regulado com referência ao pla-
○
○
no. Mas este, não sendo imóvel, é, ele mesmo,
O momento do planejamento
○
○
regulado com referência às evoluções das reali-
○
A escolha de uma estratégia de formação con- dades (ferramentas e tecnologias disponíveis;
○
○
tinuada conduz a uma concepção necessariamen- novos públicos; condições de exercício) e às re-
○
te dinâmica do planejamento. De fato, será pre-
○
presentações (fins e valores de referência). Não
○
ciso considerar pelo menos duas séries de objeti-
○
se trata de regular um sistema fechado, mas um
○
vos: no curto prazo (constituição do “viático”) e a sistema verdadeiramente aberto.
○
médio ou longo prazos (garantia da “forma-
○
○
bilidade” e da “evolutividade” profissional e pes-
○
soal: o profissional deve estar, em certo sentido, ○
○
Do ponto de vista da dinâmica dos
adultos em formação
○
modalidade incluirá o conjunto dos momentos ção, de um lado, é uma atividade instituída que
○
○
de formação. Além disso, em suma, toda modali- se exerce sobre um ator com vista a sua profis-
○
○
dade deverá ser concebida como suscetível de sionalização, do outro, ela também é uma ati-
○
outro lado, poderíamos imaginar, além das ati- • um suficiente embasamento na experiên-
○
curso do qual nos exercitaríamos; por último, num trabalho de construção da identidade
○
○
atividades de análise que priorizem “a capacida- (isso implica levar em conta a biografia es-
○
forma precisa, não como um momento à parte para a experiência dos formados, partindo das
○
○
e isolável, mas operando continuamente para suas próprias indagações, no âmbito de suas
○
172
SIMPÓSIO 10
Articulação entre as formações inicial e continuada de professores
○
○
para um adulto, significa construir um sentido, ciais e, finalmente, sem interesse, se a lógi-
○
○
num ato criativo que se inscreve numa dinâmi- ca do ensino vier se impor e se não houver a
○
mínima relação com os problemas e com as
○
ca de (trans)formação pessoal. Isso significa:
○
• que a formação só pode ser contínua, no práticas de campo, sem as quais não pode-
○
ríamos nos preparar para a tarefa.
○
sentido de que é preciso dar um tempo para
○
○
que os formados façam sua experiência, sem Toda a dificuldade, e toda a arte, reside em
○
a qual se permanece no artificial; pensar, organizar, gerir esse duplo afastamen- 173
○
○
• que, já, o tempo de formação inicial deve to espacial (centro versus trabalho de campo) e
○
○
tornar possível o desenvolvimento dessa temporal (tempo da paciente construção das
○
○
experiência, em comparação com um tra- competências versus a urgência das tarefas de
○
balho de campo (no âmbito da articulação produção profissional). É preciso de tempo para
○
○
orgânica centro / trabalho em campo); fazer – e continuar a fazer – um bom profissio-
○
○
• que, a todo momento, deve-se dar priori- nal, nas atividades de formação ligadas ao tra-
○
balho de campo.
○
dade aos problemas encontrados pelos pro-
○
fessores no campo, sem o que se permane- Saber encontrar a boa distância nos parece
○
○
ce no abstrato; ser o maior desafio para a formação de docen-
○
○
• que, a todo momento, deve-se dar um lu- tes no século XXI. Isso resulta, dentre outras, em
○
esses problemas, para vivê-los. Uma forma- conexão feliz entre os tempos de formação ini-
○
○
Gerir inteligentemente o
○
preservando o essencial
○
“suporte em falso”
○
○
te defasada com respeito ao trabalho de cam- contexto profissional e da evolução dos saberes;
○
○
po, sem o qual ela se reduziria a uma formação de outro, devem ser “econômicos”, no sentido de
○
reito ao erro pressuposto pela aprendizagem: o construída), nem prover de know-how pronto e
○
○
que quer dizer que é impossível, em última ins- acabado, nem colocar à disposição todas as téc-
○
nhada, em situação de desequilíbrio) em rela- cingiria na rigidez algumas técnicas que, pela
○
○
ção a tal trabalho de campo. Durante a forma- força das circunstâncias, tornar-se-iam rotinas.
○
•o risco de se perder e de perder seu tempo veis novas competências (Perrenoud, 1999).
○
○
A área da invenção de modalidades em ação (e sem sacrificar, em nada, cada um dos
○
○
adequadas de trabalho pedagógico fatores dinâmicos em causa); inserindo-se numa
○
○
verdadeira dinâmica de projeto; concedendo à
○
As atividades a ser implementadas em fase
○
temporalidade das evoluções todo o espaço ne-
de “processo pedagógico” devem responder a
○
cessário; propiciando os meios de gerir de ma-
○
uma dupla condição:
○
neira inteligente o “suporte em falso” formação/
○
• não se limitar a atividades de ensino;
○
exercício profissional.
○
• estar em relação de analogia estrutural com
○
○
as práticas profissionais que se deseja de-
○
senvolver, segundo um princípio de isomor-
Bibliografia
○
○
fismo (Ferry, 1983).
○
AVANZINI, G. L’école d’hier à demain. Toulouse: Éditions
○
Isso equivale a solicitar aos formadores uma
○
Eres, 1991.
○
intervenção, aplicando os princípios suscetíveis de . L’éducation des adultes . Paris: Anthropos,
○
tornar eficaz o trabalho do professor. Portanto, isso
○
1996.
○
exige progressos nas pesquisas sobre a eficácia do ○
○
BARBIER, J.-M. (Dir.). Savoirs théoriques et savoirs d’action.
ensino e um grande esforço de ativa apropriação Paris: PUF, 1996.
○
Trata-se (e podemos pensar aqui no “novo DURAND, M. L’enseignement em milieu scolaire. Paris: PUF,
○
1996.
○
formação (imaginado como “centro de desenvol- GAUTHIER, Cl. (Ed.) Pour une théorie de la pédagogie.
○
○
o trabalho de campo (pensado como espaço de HADJI, Ch. Penser et agir l’éducation. 2. ed. Paris: ESF
○
○
AQPC, 1997.
que não seja de aplicação (da teoria em direção
○
ir-e-vir entre teoria e prática), mas, sim, de HUBERMAN, M. Un nouveau modèle pour le développement
○
○
regulagem (uma conduta constante da prática à professionnel des enseignants. Revue Française de
○
Edilig, 1984.
○
derivadas das lógicas antagônicas que estiverem enseigner. Paris: ESF Éditeur, 1999.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 11
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM,
CURRÍCULO E FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
Andy Hargreaves
Iza Locatelli
175
A avaliação em sala de aula:
○
○
○
o que está em jogo?
○
○
○
○
○
Andy Hargreaves
○
○
International Centre for Educational Change – Toronto/Canadá
○
○
○
○
○
A reforma liderada pela avaliação dos alu- (feedback) no processo de ensino, que decidam
○
○
nos é atualmente uma das estratégias mais como satisfazer às diversas necessidades de
○
○
favorecidas para promover padrões de ensino e aprendizagem dos alunos ( Tunstall e Gipps,
○
aprendizagem mais elevados, um aprendizado 1996) e que aprendam como compartilhar o pro-
○
○
mais consistente e formas mais confiáveis de cesso da tomada de decisões sobre o ensino e a
○
○
prestação de contas para o público em geral ○
○
aprendizagem com os colegas, pais e alunos
(Murphy e Broadfoot, 1995; Gipps, 1994; Black, (Stiggins, 1996; Gipps, 1994). Tais métodos alter-
○
1998). Embora avaliações prescritas pela legis- nativos também implicam repensar para que
○
○
lação e feitas em grande escala recebam uma servem a avaliação e o ensino: de que maneira
○
○
maior atenção, as avaliações em sala de aula são ambos podem vir em apoio a uma melhor apren-
○
○
as que mais importam nesse caso. São estas que dizagem e que tipos de objetivos, cobertura e
○
implementada em sala de aula quanto a apren- dem contribuir para melhor cumpri-los (Wiggins
○
○
de novas abordagens de avaliação em sala de aula colocam grandes desafios para os profes-
○
○
aula, para além das tradicionais técnicas de lá- sores. Eles são os únicos a terem contato per-
○
○
pis e papel, incluindo estratégias como a avalia- manente e conhecimento íntimo com seus alu-
○
ção de desempenho e a avaliação baseada em nos e com o currículo, ambos requisitos para a
○
○
Stiggins, 1995). Tais avaliações alternativas têm, gem de cada um no decorrer do tempo (Earl e
○
○
nos a assumir maior responsabilidade pela sua res estão ficando menos confortáveis com a sua
○
○
como parte integrante da experiência de apren- meio de métodos de testar tradicionais. Testes
○
○
dizagem e de inseri-la em atividades autênticas universais e neutros são difíceis de ser desenha-
○
que valorizarão e estimularão as habilidades dos dos e manuseados quando as turmas de alunos
○
○
alunos em criar e aplicar uma ampla gama de são diversificadas. O que está sendo testado
○
○
habilidades básicas (Earl e Cousins, 1995; formação, além de se lembrar dela. As aparen-
○
○
As mudanças na avaliação em sala de aula como devia ser avaliado estão desmoronando,
○
○
paradigma da forma de pensar em relação à certeza daquilo que devem fazer enquanto lu-
○
○
aprendizagem, às escolas e ao ensino. Avaliações tam para atender bem a todos os seus alunos.
○
○
alternativas em sala de aula requerem que os pro- As atuais mudanças que ocorrem na avalia-
○
○
fessores usem o seu julgamento no que se refere ção em sala de aula apresentam oportunida-
○
ao nível de conhecimento das crianças, que com- des fascinantes para os professores, pois os
○
○
176
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
e exigem intensamente o uso de sua energia habilidades necessárias para integrar, na sua
○
○
intelectual e emocional. Este capítulo analisa prática, novas técnicas de avaliação, tais como
○
○
como os professores do nosso estudo lidaram as avaliações baseadas no desempenho, com
○
○
com a reforma na avaliação, às vezes introdu- portfólio, a auto-avaliação, os videojornais e as
○
zindo-a, eles mesmos, em suas turmas, e exa- exibições. Stiggins escreve a respeito do “anal-
○
○
mina as condições que vieram ou não em apoio fabetismo na avaliação”, que permeia as esco-
○
○
aos seus esforços. las, e sugere que:
○
A avaliação em sala de aula é um fenômeno 177
○
○
multifacetado. Muitas questões entram em jogo [...] sem uma visão muito clara do significado do
○
○
ao reformá-la, o que pode ser visto examinan- sucesso na escola e sem a capacidade de tradu-
○
zir essa visão em avaliações de alta qualidade,
○
do-se a reforma dessa avaliação à luz de dife-
○
rentes óticas. Baseando-nos no tratamento clás- permaneceremos incapazes de ajudar eficaz-
○
○
sico da inovação educacional feita por House mente os alunos a atingirem níveis mais eleva-
○
dos de aproveitamento escolar e a serem capa-
○
(1981) e na discussão de Habermas (1984) a res-
○
zes de integrar tais avaliações em suas práticas
○
peito das diferentes dimensões da ação huma-
○
(Stiggins, 1995: 238).
na, queremos chamar a atenção para três pers-
○
○
pectivas em inovação educacional – a técnica,
○
○ As avaliações alternativas apresentam um
a cultural e a política – às quais acrescentamos
○
A perspectiva técnica
○
tilham um interesse comum pelo avanço da ino- A avaliação alternativa em sala de aula cons-
○
○
vação e de que os objetivos desta estão ou já titui um mundo novo para os professores, sen-
○
○
fixados, ou além de qualquer questionamento. do que a maioria deles possui pouco (se é que
○
Tudo o que resta a fazer é determinar a melhor possui algum) treinamento em avaliação. Fal-
○
○
pectiva técnica se concentra em questões de or- sentem-se pouco confortáveis com a qualida-
○
desenvolver novas técnicas. Aqui, a avaliação fessores estão sendo compelidos a se tornarem
○
○
alternativa é uma tecnologia complexa, que exi- mais sofisticados quanto à implementação de
○
○
ge perícia sofisticada em, por exemplo, dese- novas estratégias de avaliação (Cunningham,
○
nhar medições válidas e confiáveis para avalia- 1998). Além de seu empenho em dominarem as
○
○
ções baseadas no desempenho em sala de aula, habilidades necessárias para se tornarem ava-
○
○
as quais irão captar as complexidades do de- liadores competentes, muitas restrições insti-
○
○
sempenho do aluno (Torrance, 1995). O desa- tucionais criam problemas técnicos que tornam
○
fio é criar tecnologias defensáveis que sejam difícil a implementação de tais avaliações. Al-
○
○
significativas e justas, e também ajudar os pro- guns dos problemas seriam a falta de tempo, a
○
○
○
○
tornarem profissionais mais eficazes com as tem sido descrito como “autêntico”. Wiggins de-
○
○
novas estratégias de avaliação (Stiggins, 1996). fine a avaliação autêntica como:
○
○
Em suma, a perspectiva técnica requer
○
atenção para as dificuldades em elaborar e [...] o trabalho dos alunos que imita / estimula
○
○
aprimorar formas válidas de medição; para os tarefas / critérios / contextos básicos realizados
○
○
desafios que os professores enfrentam quan- por aqueles que desempenham atividades na-
○
do adquirem uma variedade maior de habili- quelas áreas do conhecimento. Assim sendo,
○
○
dades e estratégias de avaliação; para a neces- encontrar um problema de pesquisa, desenhar
○
○
sidade de harmonizar as expectativas da ava- o experimento, eliminar os defeitos do desenho,
○
publicar os resultados, defendê-los contra evi-
○
liação entre o lar e a escola, bem como entre
○
dências e argumentos contrários constitui o ato
os níveis escolares; e para a questão do tempo
○
○
de “fazer” Ciência autenticamente (ao contrário
e dos recursos que contribuem ou restringem
○
de laboratórios que fazem Ciência como se fos-
○
a implementação de novas práticas de avalia-
○
○
sem livros de receita, transformados realmente
ção nas rotinas da escola. ○
A perspectiva cultural
○
escolas. Essa perspectiva está basicamente pre- definem. Para mim, esse é um erro bastante
○
preensão e de relações humanas. House (1981) finindo não pensa como um avaliador preocu-
○
○
sugere que o processo de inovação é realmente pado com a validez e a previsibilidade (em vez
○
○
uma interação de culturas, na qual a mudança de pensar como um professor que torne o ver-
○
mistura novas idéias com o histórico cultural da dadeiro trabalho acessível e interessante em
○
○
escola. Sob a perspectiva cultural, o desafio re- aula). (Wiggins, 1999, comunicação pessoal).
○
○
avaliação – entre e no meio de alunos, profes- grande medida dos julgamentos dos professo-
○
○
acontece no final da aprendizagem de uma clas- professores) que controla a agenda e faz uso
○
○
se, de uma unidade, de um semestre ou ano leti- positivo das oportunidades para propiciar uma
○
○
vo. Ela é parte integrante de ou uma janela que retroinformação, ou feedback (Torrance e Pryor,
○
dá para a própria aprendizagem durante o pro- 1998). Os critérios de avaliação não estão ocul-
○
○
cesso (Earl e LeMahieu, 1997; Wiggins e McTighe, tos nem são misteriosos. Os professores se en-
○
○
1998; Broadfoot, 1996). Ela se preocupa menos contram motivados a ensinar para o teste já que
○
○
conhecimento do que em desenvolver uma com- que precisam dominar para obter sucesso
○
○
preensão comum entre pessoas sobre quando e (Cunningham, 1998). Essa abordagem envolve
○
○
como ocorre a aprendizagem. Tal avaliação deve o diálogo com e entre os alunos e inclui uma
○
○
ser suficientemente sensível para detectar as re- reavaliação constante, uma permanente auto-
○
presentações mentais que os alunos formam so- avaliação e uma avaliação mútua entre colegas
○
○
bre idéias importantes. Ela terá de ser capaz de de turma. Neste caso, os alunos contribuem de
○
○
discernir até que ponto os alunos aplicam bem maneira ativa, engajada e desafiadora para a sua
○
○
178
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
○
○
ção em sala de aula enfatiza a interação entre laboração deles, para que assim possa haver
○
○
pontos de vista, valores e crenças. A tarefa de uma melhor compreensão e o poder na sala de
○
○
desenvolver avaliações alternativas vai muito aula possa ser redistribuído; que os julgamen-
○
além de questões técnicas de medição, habili- tos da avaliação sejam atos de negociação ex-
○
○
dade, coordenação e das relações existentes ao plícita entre todos os envolvidos; e que os pro-
○
○
se estabelecer uma comunicação e construir um cessos de avaliação se movam em múltiplas
○
entendimento entre todos aqueles que estão direções, por exemplo, de aluno para aluno, de 179
○
○
envolvidos no exercício da avaliação. aluno para professor e entre pais de alunos e
○
○
professores, bem como de professor para alu-
○
○
no. Essa é uma mudança fundamental na polí-
A perspectiva política
○
tica de avaliação à qual se recorreu durante
○
○
Toda avaliação acarreta atos de julgamen- décadas de prática, quando os professores se
○
○
to. O que, por sua vez, envolve o exercício e a utilizavam de seu poder para julgar e classifi-
○
negociação de poder, autoridade e interesses
○
car os alunos com base em critérios e proces-
○
competitivos entre diferentes grupos. Isso nos sos que eram misteriosos, secretos e freqüen-
○
○
leva ao cerne da perspectiva política sobre a temente arbitrários.
○
○
avaliação alternativa. Essa perspectiva vai além Em segundo lugar, se, de um lado, a avalia-
○
nicação humana para abranger as lutas de po- relações micropolíticas mais positivas entre
○
○
der entre grupos ideológicos e de interesses nas professores, alunos e pais, do outro, a política
○
○
escolas e sociedades. Ela também trata a avalia- também pode minar a implementação dessas
○
ção alternativa em sala de aula como uma es- novas estratégias. Por exemplo, as escolas de
○
○
vez de outorgar poderes às pessoas, pode se Ensino Fundamental para usarem formas mais
○
○
da perspectiva política são importantes para o nação das expectativas de avaliação entre co-
○
○
Pryor, 1988), coloca ênfase na compreensão do Muitas dessas contradições que surgem
○
○
aluno mais do que na agenda do avaliador. Ela com os nossos dados estão embutidas na pró-
○
sabe, compreende e pode fazer. Os alunos têm diferentes pontos de vista acerca da avaliação
○
○
aprendizagem, e os professores estão encarre- pontos de vista tanto dos formuladores de po-
○
ra. A avaliação é parte essencial do processo imaginário aos quais eles atendem, do outro.
○
○
da aprendizagem, que permite que os profes- Essas forças contraditórias têm tornado a re-
○
○
sores, os alunos e os pais identifiquem em que forma da avaliação uma atividade esquizo-
○
tabeleçam os rumos para o próximo estágio Mayorowetz e Fairman, 1998). Será difícil ter a
○
○
(Earl e LeMahieu, 1997; Gipps, 1994; Stiggins, esperança de que os professores possam har-
○
○
1995). Nessa abordagem, será importante que monizar suas práticas avaliatórias, enquanto
○
disponíveis por igual para todos e publicamen- público em geral não o conseguem.
○
○
rios de avaliação sejam conhecidos pelos alu- te embutidas na política educacional (Nuttall,
○
1994; Darling-Hammond, 1992). Um grupo de sobre expectativas consistentes e eqüitativas
○
○
reformadores sustenta que a mudança educa- em termos de qualidade e criem circuitos com
○
○
cional e uma melhor aprendizagem por parte retroinformação (feedback), destinados a alte-
○
○
dos alunos são responsabilidades de algum in- rar a maneira como estão ensinando (a perspec-
○
divíduo ou grupo externo com a devida autori- tiva cultural).
○
○
dade, com o poder de julgar a qualidade, de O enigma prático e político para os profes-
○
○
exercer controle e de ordenar o seu cumprimen- sores é que os formuladores de políticas edu-
○
to. A avaliação seria então utilizada como um cacionais, com freqüência, evitam ter de esco-
○
○
mecanismo para proporcionar evidências para lher entre essas diferentes posições de valor
○
○
tais decisões. O que esses grupos de acerca da mudança educacional e os grupos de
○
○
reformadores desejam são dados de avaliações reformadores que as apóiam. Para manter o
○
sólidos, numéricos, padronizados e compará- apoio e evitar críticas, eles embaralham os as-
○
○
veis, colhidos a partir de testes ou de exames suntos e tentam agradar a ambos os lados
○
○
objetivos aplicados de forma consistente em (Hargreaves, Earl e Ryan, 1996; Firestone, 1998),
○
○
grandes populações. Essa visão baseia-se, ○
adotando padrões comuns e variação individu-
freqüentemente, na suposição de que os pro- al, comparabilidade numérica e sensibilidade
○
○
fessores têm tanto a capacidade quanto a habi- descritiva, melhorando a aprendizagem indivi-
○
○
lidade de agir de maneira diferente e mais pro- dual do aluno e apaziguando as exigências por
○
○
dutiva, mas que são dispersos, recalcitrantes, uma prestação de contas no âmbito do sistema
○
vio para melhorar a aprendizagem dos alunos é de arcar com as conseqüências – as quais, tal
○
○
o de exercer pressão e de emitir diretrizes de como veremos, mesmo nossos professores par-
○
Outros reformadores acreditam que a mu- Portanto, a resolução dessas contradições de-
○
○
dança educacional e uma melhor aprendizagem veria constituir um problema político a ser re-
○
○
dos alunos sejam, em grande medida, proces- solvido pelos formuladores de políticas educa-
○
sos internos que as pessoas que vivem e traba- cionais, e não simplesmente um problema prá-
○
○
lham em sala de aula devem empreender. O tico a ser descarregado sobre os educadores.
○
○
principal objetivo da avaliação, neste caso, se- A perspectiva política também realça os ris-
○
○
ria o de contribuir com os professores e alunos cos e os excessos das próprias práticas de avali-
○
aula. A avaliação seria uma oportunidade para ro na avaliação do afeto, situação em que alguns
○
○
aprender. A reforma na avaliação não estaria comportamental sobre tudo aquilo que os seus
○
conectada ao acatamento de ordens, mas alunos fazem, como uma forma interminável de
○
○
enraizada na visão construtivista de que a julgamento e da qual não parece haver saída
○
○
defensores desta postura pressupõem que mui- ção dos pares e a avaliação com portfólio po-
○
○
tos professores não possuem atualmente o co- dem transformar os alunos, considerados indi-
○
○
às mudanças nas teorias da aprendizagem ou dossiês, que podem ser consultados e citados
○
apoio para adquirir conhecimento e treinamen- excluí-los de alguma forma (Foucault, 1977).
○
○
to antes que possam mudar suas práticas. Se- Tais processos permitem que a seleção educa-
○
○
gundo essa visão, a reforma da avaliação provê cional seja autoconduzida e que o insucesso
○
uma oportunidade para que os professores escolar venha a ser revelado aos poucos, em
○
○
intercambiem idéias e discutam sobre seus pa- estágios, em doses homeopáticas, tal como os
○
○
drões de forma coletiva, cheguem a um acordo médicos são levados a fazer com seus pacien-
○
180
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
tes nos hospitais, em vez de revelações repen- e as experiências de avaliação que alguns des-
○
○
tinas e chocantes acerca de doenças terminais crevem como “autênticos” são, em diversos sen-
○
○
(Hopfl e Linstead, 1993). As avaliações alterna- tidos, problemáticos. Assim, muito pouco é
○
○
tivas poderiam encenar revelações graduais do inquestionável ou indiscutivelmente “verdadei-
○
insucesso escolar, assim como a medicina mo- ro” num mundo pós-moderno. Existem poucas
○
○
derna nos encena a revelação da morte. respostas “corretas” ou, inclusive, processos de
○
○
Em resumo, a perspectiva política desperta avaliação que possam ser considerados como
○
a atenção para os atos e para as relações de po- “os melhores”. A avaliação alternativa pode ser 181
○
○
der incorporadas nos processos de avaliação, diversificada, de largo alcance, negociada, in-
○
○
tomem eles a forma de delegação de poderes clusiva e multifacetada, mas é exatamente por
○
○
para práticas de avaliação compartilhada, aber- isso que ela não pode ser “autêntica” no senti-
○
ta e negociada e de produção de relatórios de do de revelar alguma verdade imperativa.
○
○
resultados, de jogos de poder entre grupos de Na era da educação eletrônica, quando os
○
○
interesses concorrentes e suas expectativas no alunos têm o poder de colher informação ins-
○
○
campo da avaliação ou de formas mais sutis e tantânea proveniente de diversas fontes
○
sinistras de poder que possam impregnar e clicando num mouse, ou de fazer um download
○
○
infectar as próprias práticas de avaliação alter- de fotografias e gráficos em formato de pizza,
○
○
disfarçadas e “terapêuticas”, as quais se tornam eles decidir o que é real e o que é falso, perce-
○
○
a antítese daquilo que a avaliação alternativa ber quando o trabalho dos alunos é efetivamen-
○
○
A perspectiva pós-moderna da avaliação al- moderno, é patente que as avaliações não po-
○
ternativa baseia-se na visão de que, no mundo dem ser “autênticas”, nesse sentido de ser sua
○
○
se pode conhecer integralmente os seres huma- Nesse sentido, enquanto um dos significa-
○
maneira como as crianças aprendem, pensam, Webster’s, é “em estreita conformidade com o
○
○
sentem e acreditam é reconhecida como sendo original: reproduz de forma precisa e satis-
○
○
complexa (Ryan, 1995). O que é importante ou fatória os traços essenciais”, como num retra-
○
“realidade virtual” – de CDs, MTV, walkmans, menos fotografias “realistas” ou retratos “fiéis”
○
○
Eles já não mais parecem ser conhecíveis ou Por último, ainda segundo o Webster’s, “au-
○
○
previsíveis. Muitos professores atualmente sen- têntico” também pode significar que possui
○
Nesse cenário complexo e mutável, nenhum simulação é aquele onde a ilusão é dissemina-
○
○
processo ou sistema de avaliação pode ser com- da e aceitável, onde calças jeans novas são des-
○
essência da aprendizagem ou do aproveitamen- onde a música digital soa melhor do que o con-
○
○
to escolar das crianças. De fato, os significados certo ao vivo e onde rochas falsas adornam os
○
saguões espetaculares de hotéis em Las Vegas, mas de representação seriam reduzidas ou eli-
○
○
porque parecem mais reais do que as próprias minadas, fazendo com que o aproveitamento de
○
○
reais (Retzer, 1998). Avaliações “autênticas” si- alunos vindos de culturas visualmente orienta-
○
○
mulam a realidade tanto quanto a criam, pro- das, por exemplo, não fosse minorado quando
○
duzindo, por exemplo, lindas falsificações de comparado com o aproveitamento de alunos
○
○
publicações de livros, representações teatrais cujo ponto forte reside nas áreas da escrita e da
○
○
ou portfólios artísticos. Em todas essas manei- aritmética. Essa abordagem permite que o tra-
○
ras, será importante tratar a avaliação “autênti- balho e o aproveitamento dos alunos sejam vis-
○
○
ca” não como um clichê, mas, sim, como uma tos através de múltiplas perspectivas, bem
○
○
questão de indagação crítica (Meier, 1998). como permite que a complexidade de suas ap-
○
○
A perspectiva pós-moderna aponta tanto tidões e identidades seja reconhecida com mais
○
para os riscos quanto para as oportunidades na facilidade.
○
○
reforma da avaliação. Pelo lado dos riscos, as Tal abordagem pós-moderna envolve, ain-
○
○
avaliações alternativas, especialmente aquelas da, a participação dos alunos no processo de
○
○
com portfólio, podem simular mais do que es- ○
avaliação e na determinação de como os pro-
timular o aproveitamento escolar. Os alunos e dutos da avaliação poderão ser compilados e
○
○
os professores podem ser induzidos a valorizar utilizados. Esse envolvimento dos alunos não é
○
○
a forma mais do que a essência, a imagem mais apenas um ato de cessão de poderes: ele é tam-
○
○
do que a realidade – com trabalhos em capas bém uma maneira de os professores admitirem
○
brilhantes, com fontes elegantes, entremeados que não podem começar a conhecer seus alu-
○
○
de gráficos e diagramas multicores, que pode- nos sem terem acesso ao auto-entendimento
○
○
guem a prestar serviços à comunidade ou a rea- Em vista das contradições e das complexi-
○
lizar atividades extracurriculares, não por cau- dades que vieram à tona com essas diferentes
○
○
sa de seu valor moral, mas porque querem ter o perspectivas, não é surpresa nenhuma que os
○
○
curriculum vitae ou o portfólio certo. Dessa for- professores, em nosso estudo, nos tenham dito
○
desempenho podem chegar a banalizar e mi- trabalho. A maioria das conversas que tivemos
○
○
1997), num mundo sem rigor, de melhorias que tórias; de estabelecer um canal de comunica-
○
○
apenas induzam a “sentir-se bem”, bem como a ção com os pais; de fazer com que os alunos
○
○
aquilo que Ritzer (1998) chama de cultura participem; de usar uma variedade de procedi-
○
Disneyesca da “leveza”.
○
Em termos mais positivos, as práticas pós- nar tanto suas próprias práticas de avaliação
○
○
modernas de avaliação podem oferecer múlti- quanto as dos outros. Os professores também
○
○
voz e visibilidade para suas diversas atividades ção dos alunos e à avaliação do próprio traba-
○
○
e realizações, através de meios de comunicação lho pedagógico e confessaram que essa ansie-
○
○
escritos, numéricos, orais, visuais, tecnológicos dade já existia muito antes dos episódios recen-
○
ra de estilos num portfólio diversificado quan- perto a maneira como essas complexidades e
○
○
182
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
○
○
○
de novas competências:
○
○
○
o diálogo entre as escolas
○
○
○
e os sistemas de avaliação
○
○
○
183
○
○
Iza Locatelli*
○
○
○
○
○
○
A avaliação dos sistemas de ensino é algo liação das escolas por si próprias. Neste caso,
○
recente no Brasil. Temos apenas uma década de
○
além das avaliações nacionais, estaduais e mu-
○
avaliações sistemáticas, entendendo-se estas nicipais e além de avaliar sistematicamente os
○
○
como um processo amplo de tomada de deci- alunos, cada escola deve se auto-avaliar em fun-
○
○
sões no âmbito do sistema federal e dos siste- ção de seus programas, projetos, materiais pe-
○
mas estaduais e também municipais. A partir da ○
○
dagógicos, recursos, professores, gestão, pesso-
constituição do Sistema Nacional de Avaliação al de apoio, alunos e infra-estrutura.
○
○
der o âmbito da avaliação para além da avalia- no fato de que, sendo o local onde as coisas acon-
○
tões que permitiram detectar fatores associados equipe, pais, alunos e autoridades gestoras do
○
○
ao seu desempenho. Hoje, mais do que conteú- sistema. Toda a comunidade da escola deve ser
○
○
dos, são analisadas competências e habilidades, preparada para poder combinar os produtos das
○
o próprio currículo, os hábitos de estudo dos avaliações externas (como a realizada pelo Saeb)
○
○
alunos, as estratégias de ensino dos professores, e de suas próprias avaliações internas. Só uma
○
○
o tipo de gestão dos diretores e os recursos a eles boa e séria avaliação interna permitirá às esco-
○
○
oferecidos para melhor realizarem seu trabalho. las a construção de um diálogo efetivo com a ava-
○
A coleta, a análise e a disseminação desses da- liação externa. Quando isso não ocorre, a avalia-
○
○
dos compõem, hoje, uma parte expressiva da ção externa pode gerar atitudes defensivas, não
○
○
Apesar desses avanços e embora se fale mui- exige tomada de consciência da importância da
○
○
dentro das escolas. Mudar a educação é mudar Cabe aos gestores de políticas públicas em
○
○
a escola. Se tivermos a intenção de usar a avalia- educação, agora que a avaliação já está sendo
○
○
ção para melhorar a educação, ela terá que ser institucionalizada, tomar iniciativas para que
○
○
trabalhada dentro das escolas, além do nível em grupos de escolas se reúnam, discutam seus
○
A avaliação, segundo Nevo (1995), deve pas- utilizem a linguagem da avaliação, descubram
○
○
* Diretora de Avaliação da Educação Básica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Daeb/Inep). Doutora em Educação
○
pela PUC/RJ.
○
Ninguém, na realidade, aprende a avaliar dis- refa buscar o equilíbrio e a harmonia entre o
○
○
cutindo conceitos de avaliação. É preciso experi- desenvolvimento humano sob a égide da res-
○
○
mentar, tentar, criar estratégias, envolver a equi- ponsabilidade com a vida em sociedade. Edu-
○
○
pe, tendo como horizonte melhorar a qualidade camos ou devemos educar para a vida coletiva.
○
da educação e diminuir índices negativos, sejam Devemos, portanto, avaliar, também, as com-
○
○
de desempenho, evasão ou repetência. Normal- petências sociais e não apenas os conhecimen-
○
○
mente, deve-se selecionar alguma questão e tos operacionais.
○
envidar esforços para praticar a avaliação interna Se educamos para a vida social, imensa é a
○
○
sobre essa questão. Não é difícil organizar uma tarefa de lidar, por exemplo, com a competência
○
○
base de dados por escola, base esta que deverá comunicativa que não se esgota no ensino das
○
○
conter os índices de matrícula, evasão, desempe- regras e normas da Língua Portuguesa. Para que
○
nho, repetência, projetos implementados, currí- os estudantes ascendam à cultura e obtenham
○
○
culo praticado e tudo que for julgado pela equipe sua própria autonomia, toda a educação deve
○
○
como insumo necessário à avaliação da escola. converter-se num processo comunicativo, pois
○
○
Envolver professores, pais e alunos na tare- ○
é com e através da linguagem que os estudantes
fa de avaliação intra-escolar não é fácil, mas não constroem e desenvolvem seus conhecimentos
○
○
é impossível. Quando se descobre onde estão num diálogo consigo próprios, com o “outro” e
○
○
os “nós”, é mais fácil desatá-los e criar laços. com o mundo, seja este “outro” o professor, a fa-
○
○
tuar suas próprias avaliações, haverá maior faci- É através da linguagem que os alunos dão
○
○
lidade em obter subsídios a partir das avaliações significado a sua própria experiência e dão sen-
○
○
externas, de tal forma que o processo avaliativo tido às experiências dos outros. A linguagem está
○
cumpra sua função: mudar o que precisa ser na base da formação do universo conceitual do
○
○
mudado, aperfeiçoar o que precisa ser aperfei- homem e dá suporte à função cognitiva, permi-
○
○
çoado, construir o que precisa ser construído. tindo ao sujeito abstrair o mundo, conceituar
○
○
A avaliação, portanto, deve servir de base para sobre ele, simbolizá-lo, transformá-lo e
○
o diálogo e não para dar origem a descrições comunicá-lo. A linguagem, entendida como
○
○
assertivas e unilaterais. Escolas habilitadas à ava- mediação necessária, não é instrumento apenas
○
○
cesso contínuo, coletivo e não uma atividade iso- ção, mas é ação que transforma, lugar de confli-
○
frontar com diferentes perspectivas e conclusões. va, isto é, na análise das possibilidades que tem
○
○
tarefa a que as escolas se dedicam com mais vi- organizar, negociar e produzir atos de signifi-
○
○
gor, é preciso levar em conta a mudança de cação, por meio de distintas formas de lingua-
○
○
enfoque nos processos avaliativos. Já não basta a gem, destacam-se a leitura e a escrita. A leitura
○
○
avaliação dos conteúdos aprendidos mas torna- e a produção de textos não se fazem apenas na
○
se cada vez mais necessário avaliar as competên- escola, mas não há dúvida de que este é um lo-
○
○
cias e habilidades desenvolvidas pelos alunos. cal privilegiado para que crianças, adolescen-
○
○
O objetivo primordial do processo de edu- tes e jovens se apropriem das ferramentas ne-
○
○
cação deve ser o de desenvolver nos alunos es- cessárias para serem sujeitos ativos na compre-
○
que fazer com a imensa quantidade de infor- O desenvolvimento desses processos, den-
○
○
nea. Já não cabe mais à escola ensinar ao aluno resultado de um processo histórico de sociali-
○
diferentes conteúdos, em geral desvinculados zação e depende das oportunidades que se ofe-
○
○
das práticas sociais, políticas, econômicas e reçam na escola, e fora dela, de ler/viver textos
○
○
culturais. O serviço educacional tem como ta- com compreensão e de produzir textos em fun-
○
184
SIMPÓSIO 11
Avaliação da aprendizagem, currículo e formação de professores
ção da construção de novos saberes que vão se o texto é apenas tinta sobre papel, num segundo
○
○
fazendo através da vida em si e da vida na esco- momento, aquele vazio é preenchido com uma
○
○
la. Se a função primeira da linguagem não é a troca entre o que é dito e o que se pensa sobre o
○
○
informação e se tomamos o texto como unida- que é dito. Não há homogeneidade entre o que
○
de significativa constituída pela interação, não diz o texto e o que o texto diz ao leitor. A partir
○
○
há por que considerar um sentido literal e seus do reconhecimento dessa heterogeneidade, o
○
○
efeitos: há múltiplos sentidos, há polissemia. leitor consegue interpretar o texto reconhecen-
○
Embora a escola não seja o único centro de do que quem fala através do texto é alguém di- 185
○
○
produção de saberes, é ela que dá ao estudante ferente de si próprio.
○
○
os instrumentos necessários que lhe irão per- As competências de leitura dos alunos expres-
○
○
mitir ser um sujeito ativo na construção de co- sam-se por meio do reconhecimento explícito das
○
nhecimentos. Esses instrumentos envolvem informações contidas no texto até o desvelamento
○
○
muito mais do que a memorização de regras de suas estratégias de sentido das condições prag-
○
○
descontextualizadas. O ensino e a avaliação em máticas que geraram sua produção.
○
○
Língua Portuguesa envolvem processos concre- Em relação às competências na área de Ma-
○
tos de comunicação que solicitam do sujeito o temática, já há alguns anos a escola vem mu-
○
○
exercício de determinadas habilidades. dando a postura antes adotada. Não mais a
○
○
cia do conhecimento sobre a língua mas é pre- séries intermináveis de exercícios para fixar
○
ciso que este não se faça sem uma consciência determinados conhecimentos, mas uma outra
○
○
sobre o texto. O leitor dialoga com palavras, por dois componentes inseparáveis: conceitos
○
○
ilustrações, gráficos etc. e constrói efeitos de e procedimentos, e deve ser construído a partir
○
sentido em que se mesclam os saberes do leitor de situações que permitam aos estudantes
○
○
algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade ras e teorias. Já o conhecimento dos procedi-
○
○
para outro alguém também de algum lugar da mentos caracteriza-se por habilidades, estraté-
○
○
sociedade e isso faz parte da significação” gias e métodos que permitem aos alunos ma-
○
○
são, o aluno precisará utilizar conhecimentos No que toca à avaliação, é importante tra-
○
○
prévios, representações sobre diferentes expe- balhar com as situações que dão sentido aos
○
○
truídos nas relações com outros sujeitos e com sentido não está nem nas situações nem nas
○
○
leitor irá construindo hipóteses de leitura so- sujeito com as situações e os significados. As-
○
○
bre o que estará dizendo o texto. sim, a avaliação em Matemática deve estar
○
to amplas. No entanto, vão se estreitando à me- Estas, por sua vez, devem exigir do estudan-
○
○
dida que o leitor avança com a leitura. Vão sen- te diversos níveis de raciocínio, tentando fazer
○
○
do descartadas certas hipóteses e outras vão sen- emergir diferentes competências. Em cada si-
○
do construídas. O leitor constrói o sentido do tuação- problema devem estar subjacentes dis-
○
○
texto num jogo de ensaios e erros, de generali- tintas estruturas matemáticas. Assim, pode-se
○
○
zações e abstrações. Se num primeiro momento avaliar os alunos em vários níveis referenciados
○
à Aritmética, à Estatística, à Geometria etc. Em bre este tema.
○
○
muitos momentos, pode-se levar o aluno a ape- Currículo, avaliação e formação de profes-
○
○
nas realizar operações; em outros, a identificar sores baseados em novas competências pode-
○
○
representações, a estabelecer equivalências e rão servir à transformação de nossas escolas.
○
relações matemáticas simples ou complexas, a Mudar a educação é mudar a escola e essa mu-
○
○
buscar estratégias que relacionam vários con- dança só ocorre com participação, compromis-
○
○
ceitos e fatos, operações. so e competência de todos os envolvidos no
○
A resolução de problemas está presente em processo educacional.
○
○
nossa vida o tempo todo: resolvemos problemas Somente assim, com a participação ativa
○
○
pessoais, problemas sociais, problemas cientí- das próprias escolas no processo avaliativo será
○
○
ficos, e só se aprende a resolver problemas, re- possível o diálogo com os dados coletados pe-
○
solvendo-os. Todo o ensino de Matemática deve los sistemas de avaliação, instituindo-se um
○
○
pois centrar-se na resolução de problemas. espaço promissor e comprometido com mu-
○
○
A avaliação escolar no contexto de utiliza- danças para uma educação de qualidade.
○
○
ção de novas competências deveria, portanto, ○
Bibliografia
○
1988.
○
logo entre ela e os sistemas de avaliação, po- PARDO, C. Estudo de qualificação por níveis de desempe-
○
mas sujeito destas, reconhecendo-se como úni- abordagem sistêmica de mudanças pedagógicas. In:
○
○
ca e singular. A avaliação assim entendida, sem ESTRELA; NÓVOA (Orgs.). Avaliação em educação:
○
feitos nos ajudem a tomar decisões em prol de RICOUER, P. O conflito das interpretações. Imago Editora,
○
○
1978.
uma escola de qualidade. Melhorar a avaliação
○
gentemente em seus currículos discussões so- SILVA, E. O ato de ler. São Paulo: Cortez, 1987.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 12
FORMAÇÃO CONTINUADA
DO PROFESSOR
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Silvia Pereira de Carvalho
187
Programa de formação
○
○
○
continuada na Educação Infantil
○
○
○
○
○
Silvia Pereira de Carvalho*
○
○
Instituto Avisa Lá/SP
○
○
○
○
○
○
Quero, antes de mais nada, agradecer ao instituições culturais e escolas particulares que
○
convite do MEC para participar deste im-
○
colaboram com a ampliação cultural e didáti-
○
portante evento. Para quem conhece e par- ca dos educadores.
○
○
ticipa da difícil trajetória da Educação In- O projeto inicial tinha como principais ob-
○
fantil rumo aos caminhos da educação, fa-
○
jetivos a criação de um espaço de reflexão dos
○
zer parte deste evento é motivo de regozi- ○
○
educadores com vista a mudanças paulatinas na
jo. Parece que a complexidade de educar
prática e o apoio para o desenvolvimento de um
○
rer brevemente sobre nossa experiência em crianças, a partir da qual foram delineadas di-
○
buir com os colegas que se interessam pelo envolvidos: educadores, gerentes e pessoal de
○
○
assunto e têm sob sua responsabilidade a apoio. O processo de formação foi presencial,
○
○
Breve histórico
○
O Crecheplan, hoje Instituto Avisa Lá, por no, aprendizagem, visão de criança e tantas
○
to Social, iniciou em janeiro de 1994 um pro- com extensão para os coordenadores pedagó-
○
○
jeto de formação continuada em entidades so- gicos no terceiro ano. A carga horária total de
○
– 144 educadores, 88 profissionais de apoio, horas para pessoal de apoio, 154 a 190 horas
○
○
tidades, preocupadas em melhorar o desem- Todo o trabalho foi documentado por meio
○
crianças. O projeto tornou-se um programa na ções das crianças e dos educadores. Parte do
○
○
nossa instituição. Tem sido, desde essa épo- material foi publicada no livro Por um triz e na
○
ciadoras, o Instituto Avisa Lá – que desenvol- mação. O projeto inicial gerou também três te-
○
○
ve a formação –, entidades que atendem dire- ses de mestrado. Com a experiência acumula-
○
○
188
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
culo com as competências nas diferentes áreas, quisas em educação é condição fundamental
○
○
que ainda é material de uso interno. Nossa equi- para que a ação pedagógica seja coerente e efe-
○
○
pe passou por grandes aprendizados, de um iní- tiva. Délia Lerner, em seu texto sobre capaci-
○
○
cio de trabalho seguindo uma linha mais tradi- tação de professores em língua escrita, discor-
○
cional, transmissiva, para uma atuação cada vez re com muita propriedade sobre a dificuldade
○
○
mais centrada na resolução de problemas de se considerar a educação como ciência, que
○
○
advindos da prática dos educadores. Buscamos tanto quanto outras áreas produz conhecimen-
○
cada vez mais a coerência entre o modelo de tos que deveriam entrar no cotidiano escolar. 189
○
○
ensino e aprendizagem preconizado para as cri-
○
○
anças e o modelo da formação. A partir dessa Parece essencial, então, criar consciência de que
○
○
primeira experiência fomos construindo uma a educação também é objeto da ciência de que
○
metodologia de formação continuada que tem se produzem cotidianamente conhecimentos
○
○
sido desenvolvida em diferentes instituições de que, se entrassem na escola, permitiriam melho-
○
rar substancialmente a situação educativa. É
○
Educação Infantil, em programas de ação com-
○
necessário, além disso, fazer conhecer, da ma-
○
plementar à escola e, mais recentemente, em
○
neira mais aceitável que seja possível, quais são
escolas de Ensino Fundamental.
○
as práticas escolares que deveriam mudar para
○
○
○ adequar-se aos conhecimentos que hoje temos
Concepção do programa
○
capacitação a partir de um projeto pedagógico mento, que poderiam contribuir para uma me-
○
claramente delineadas. 1 Assim, em vez de cação Infantil, onde não há consenso sobre a sua
○
○
dos a uma formação inicial, demos um enfoque dizer que hoje em dia projetos pedagógicos teo-
○
○
maior à construção de conhecimentos pela cri- ricamente bem fundamentados têm como base
○
traram como temas transversais ao longo de educação; apropriação dos saberes socialmente
○
○
foi outro fator decisivo para dar unidade e con- das práticas educacionais com as sociais; impor-
○
○
1
A proposta que adotamos para o trabalho com as crianças acabou referendada anos mais tarde pelo Referencial Curricular Nacional para a
○
○
○
questões sociais e culturais, locais e gerais; exer- para que as crianças avancem. Nesse sentido, é
○
○
cício da cidadania. fundamental o conhecimento das didáticas es-
○
○
pecíficas, além de um contato sistemático com
○
Reflexão “na” e “sobre” a ação produções culturais que possibilitem variedade
○
○
de conteúdos. Privilegia-se na formação o pro-
○
Compartilhamos das concepções que en-
○
fissional ativo, autor e transformador de sua pró-
○
tendem que a formação continuada depende pria prática. Com isso possibilita-se maior con-
○
○
substancialmente das questões que emergem fiança e o desenvolvimento de sua auto-estima
○
da atuação direta do educador com as crianças.
○
como profissional competente.
○
Os educadores estão em um real contexto de
○
○
aprendizagem onde “se aprende a fazer fazen-
Contexto de formação coletiva
○
○
do: errando acertando, tendo problemas a re-
○
solver, discutindo, construindo hipóteses, ob- A formação em serviço, mais do que a inicial,
○
○
servando, revendo, argumentado, tomando de- ○
○
depende de questões institucionais, de modifica-
cisões, pesquisando” (Crecheplan, 1998). ções estruturais que possibilitem a construção
○
rar compreendê-la e analisá-la em busca de aper- partilhado entre todos os profissionais da insti-
○
○
feiçoamento, esteve desde o início do nosso pro- tuição. Questões de gerenciamento, estruturação
○
○
grama atrelado ao trabalho desenvolvido junto às da rotina, possibilidade de horas para reuniões,
○
crianças. Partindo dos problemas reais enfrenta- suficiência de materiais necessários à formação
○
○
dos pelos educadores, foi possível, por um lado, constituem elementos importantes que podem
○
○
valorizar sua experiência e, por outro, garantir limitar o trabalho. Além dos educadores, pessoal
○
como base para novas aprendizagens. Os conhe- juntos pelo processo de formação.
○
○
cimentos teóricos eram trazidos pela formação É importante enfatizar que esse processo
○
○
com educadores mais experientes. tre os parceiros e hábito de ouvir e de fazer críti-
○
○
Estratégias formativas
○
não significa uma prática eficiente. É fundamen- Ao longo do processo de formação, foram
○
tal aliar os conteúdos ao saber fazer. É a capaci- desenvolvidas diferentes estratégias formativas.
○
○
dade de resolver problemas que surgem na ação Algumas delas estão presentes desde a primeira
○
○
que pode transformar a prática. Para desempe- capacitação, outras foram sendo reformuladas e
○
○
construírem significados a partir dos conteúdos Levantamento das práticas em curso. Por
○
○
precisa conhecer como elas pensam e constro- gens, fotos e análise das produções das cri-
○
190
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
anças é feito um levantamento das princi- lidade formativa é uma das mais interessan-
○
○
pais práticas em uso, seguido de análise da tes porque alia a atuação direta de um pro-
○
○
equipe formadora. A partir daí estruturam- fessor experiente com a prática reflexiva
○
se os projetos de trabalho com os conteú- conjunta de três profissionais. Durante oito
○
○
dos da formação. encontros, o chamado “professor de apoio”
○
(formador da nossa equipe) desenvolve um
○
Desenvolvimento de projetos de trabalho.
○
projeto de trabalho com as crianças de uma
○
Esta estratégia incorporada bem recentemen-
○
te vem comprovando sua eficácia principal- das salas (ao todo, passam por essa modali- 191
○
dade quatro grupos de crianças em dois
○
mente para que a formação mantenha o foco
○
e possa avaliar melhor as aprendizagens de anos). Esse projeto é elaborado com ajuda
○
○
todos os envolvidos, crianças e adultos. Tra- do educador da turma, que desenvolve ati-
○
vidades complementares quando o educa-
○
ta-se do desenvolvimento de pequenos pro-
○
jetos de trabalho que são elaborados por to- dor de apoio não está. A atuação direta com
○
as crianças é quinzenal, durante duas ho-
○
dos os envolvidos no processo: educadores,
○
ras. Após esse momento, há uma reunião de
○
coordenadores das entidades, profissionais de
○
apoio. Esses projetos têm duração de quatro uma hora com o educador da sala e com o
○
coordenador pedagógico da instituição.
○
a seis meses. Por exemplo, se os educadores
○
○
vão desenvolver projetos de linguagem oral ○
Produção de documentação de caráter
com as crianças, é a partir desses projetos que formativo. É incentivada a produção de
○
○
o formador estrutura o seu trabalho. O pró- materiais a partir da capacitação, tais como:
○
prio formador também escreve e desenvolve reflexões, registros, projetos com as crian-
○
○
seu projeto de formação. Assim, em dois anos, ças, sugestões de atividades, planos anuais,
○
○
temos projetos de diferentes áreas que possi- estudos específicos etc. A sistematização e
○
te ressaltar que, embora a ênfase dos projetos se reconheçam como produtores de conhe-
○
○
Análise teórica de situações práticas. Nes- museus, teatros, rodas de leitura, sessões de
○
se modelo de formação, a teoria tem lugar cinema, música, contato permanente com
○
○
para servir de confronto, afirmação e eluci- livros, jornais e demais publicações e aces-
○
○
sidiar a análise de diferentes pontos de vis- são necessárias mudanças na rotina das cri-
○
apropriação original e criativa por parte do riais pedagógicos, livros, brinquedos, TV,
○
educador.
○
aprendizagem que o educador propõe para toda a unidade, a equipe dirigente, os pro-
○
ção de conhecimentos.
○
○
○
projeto na instituição. Portanto, ao longo do ou mesmo à impossibilidade de o educador re-
○
○
projeto é dada ênfase na atuação da equipe ver sua prática, o que se constituiria em falta de
○
dirigente; no terceiro ano há um tempo de-
○
motivação interna, de um real desejo de trans-
○
dicado aos coordenadores pedagógicos. formação. Algumas representações sobre o pa-
○
○
Aplicação de avaliações. A partir do diagnós- pel da educação, a concepção de criança, o pa-
○
○
tico inicial, as avaliações devem garantir o pel do professor podem ser tão fortes e arraiga-
○
acompanhamento do trabalho do ponto de das que inviabilizam a transformação. Em outras
○
○
vista da produção das crianças, das compe- situações, a equipe dirigente não assume efeti-
○
tências desenvolvidas pelos profissionais, do
○
vamente os compromissos, tendo uma atuação
○
grau de coerência entre a prática e o projeto
○
frouxa que acaba desmotivado a equipe. Em
○
pedagógico, das mudanças nas relações en-
ambos os casos, nossos formadores têm apresen-
○
tre escola, pais e comunidade.
○
tado dificuldade para reverter a situação.
○
Relato de experiências. Saber explicar o que faz,
○
Sentimos também falta de maior apoio de pes-
como e por quê é para educadores um desafio ○
○
○
quisas nacionais sobre a formação continuada, já
de sistematização e explicitação de sua práti- que são poucos os estudos que se dedicam à cons-
○
Bibliografia
○
do uma qualidade efetiva no trabalho. A apren- Educação Infantil. Brasília, DF: SEF/MEC, 1998.
○
○
dizagem das crianças passa a ser o foco da ação . Referenciais para a Formação de Professo-
○
de toda a instituição. Os educadores têm sua res. Brasília, DF: SEF/MEC, 1999.
○
○
carreira na educação. A motivação para o tra- posta didática, encontro de especialistas . Bogotá:
○
CERLAL, 1993.
○
segue mesmo após o término do projeto. Con- PERRENOUD, Philippe. Dez novas competências para en-
○
○
tinuamos mantendo contato com a maioria, sinar. Porto Alegre: Artmed, 2000.
○
1998.
○
das equipes.
○
dos tão brilhantes. Talvez o limite mais cerceador boa: Educa, 1993.
○
○
○
○
192
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
○
○
○
Infantil: a pessoa no centro da ação
○
○
○
○
○
Ana Paula Soares da Silva
○
○
Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto
○
○
193
○
○
Resumo
○
○
○
○
○
Em decorrência da nova identidade que a Edu- 2. possibilite que o educador tome a sua prática
○
cação Infantil vem procurando construir, especial- como objeto de reflexão, tornando-a peça fun-
○
○
mente após alguns avanços legais, uma série de damental na construção do seu conhecimen-
○
exigências e desafios se impõem no que se refere à
○
to, do conhecimento das crianças e da propos-
○
formação, colocando os profissionais em uma po- ta pedagógica;
○
○
sição bastante diferenciada daquela ocupada até 3. produza condições para que o educador ori-
○
alguns anos atrás, ou ainda dominante em várias ente suas ações pelo princípio da promoção do
○
○
São Paulo (Cindeci/USP) em formação de educa- permitam ao educador criar e produzir, ligan-
○
○
formação se estabelece, principalmente, quando se de criativa e para sua inserção na cultura ci-
○
○
norteando nosso modo de pensar e de agir sobre 8. dê oportunidades para a construção de uma
○
○
1. busque fazer com que o educador construa promovendo o seu desenvolvimento como pes-
○
uma visão ética e política de sua prática; soa e como profissional engajado socialmente.
○
○
○
○
○
○
Profissional de Educação
○
A formação do profissional em Educação In- mação profissional. A formação bem como aspec-
○
○
fantil tem se tornado um dos temas atuais mais tos ligados à regulamentação, à identidade pro-
○
do e à educação de crianças pequenas em ambi- para o exercício do trabalho assumem novos con-
○
○
entes coletivos. De acordo com Fúlvia Rosemberg tornos na última década, ganhando destaque em
○
○
(1999), na Educação Infantil, a equalização de todos os fóruns e espaços de defesa de uma Edu-
○
torna-se possível apenas se contemplar a equa- está associada à formação de uma identidade
○
○
lização do padrão de qualidade de suas institui- institucional (Silva, 1999). Como não poderia
○
deixar de ser, o novo papel da Educação Infantil, cias que se apresentam na Educação Infantil, na
○
○
sistematizado nas normativas atuais, traz consi- América Latina como um todo, requerem um edu-
○
○
go não apenas uma nova visão de criança, mas cador capaz de criar modalidades curriculares e
○
○
também uma nova concepção de profissional. As promover o auto-estudo e a avaliação permanen-
○
expectativas atuais em relação a esse profissio- te dos avanços e das limitações de sua prática.
○
○
nal não são poucas. Zilma M. R. Oliveira, por A importância da formação profissional é
○
○
exemplo, argumenta que a sua formação deve reforçada quando se considera que, a partir de
○
incluir o conhecimento técnico e o desenvolvi- todas essas transformações legais, as institui-
○
○
mento de habilidades para realizar atividades ções deverão elaborar e efetuar sua própria pro-
○
○
variadas, particularmente expressivas, e para posta pedagógica. Para a efetivação de uma pro-
○
○
interagir com crianças pequenas (1994: 65). O posta que esteja realmente afinada com a nova
○
documento Subsídios para Credenciamento e função social da creche e da pré-escola e com
○
○
Funcionamento de Instituições de Educação In- as diretrizes estabelecidas na Política Nacional
○
○
fantil afirma que “as crianças precisam de edu- de Educação Infantil, um profissional qualifi-
○
○
cadores qualificados, articulados, capazes de ○
cado é claramente solicitado. E essa solicitação
explicitar a importância, o como e o porquê de se dá não apenas no que se refere ao momento
○
○
sua prática [...]” (SEF/MEC/Coedi, 1998: (I)18). de elaboração da proposta mas, principalmen-
○
○
Por sua vez, Maria Lúcia Machado (1999), a par- te, em sua gestão diária, posta em prática no
○
○
tir de uma postura interacionista, propõe que o dia-a-dia da instituição (MEC, 1996).
○
educador seja um mediador eficiente das Como se observa, trata-se de exigências que,
○
○
interações entre as crianças, capaz de organizar dependendo do modo como as encaramos, tor-
○
○
ambientes que promovam essas interações, além nam-se bastante pesadas. Mais do que isso, co-
○
to novo. A importância do educador é enfatizada diferenciada daquela ocupada até alguns anos
○
○
também por Moysés Kuhlmann Jr., alertando- atrás, ou ainda dominante em várias institui-
○
○
nos que, ao refletir sobre a formulação de pro- ções. Essas exigências constituem um reflexo de
○
postas pedagógicas que tomem como ponto de diversas conquistas de pesquisadores e militan-
○
○
partida a criança, “não é a criança que precisaria tes da área e, ao mesmo tempo, traduzem a ne-
○
○
Além das exigências advindas das novidades fil profissional de que dispomos.
○
○
exigências?
○
de de adequar-se às mais variadas situações. Nas nas ao aspecto da formação inicial, mas indicam
○
palavras de Pedro Demo, “o que está em jogo é fundamentalmente posturas que deveriam ori-
○
○
um tipo de formação que garanta a competência entar a formação continuada. No primeiro caso,
○
○
humana em questão. Pesquisa e elaboração pró- a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) tem provocado
○
○
pria constituem as pilastras desse trajeto e fun- modificações profundas, obrigando municípios
○
capacitação permanente, que deveria ser primo- em ritmo lento, vêm possibilitando a adequação
○
○
todo dia. Estudar sempre é condição essencial ências no país têm sido diversificadas, apontan-
○
○
profissional” (1996: 143). Para Maria Victoria Pe- do para uma rica pluralidade de concepções e
○
○
ralta (1996), especialista chilena, as novas exigên- projetos de formação. Algumas são explicitadas
○
194
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
○
○
conteúdo, tais como conhecimentos sobre edu- rico e cultural específico em que ele está inse-
○
○
cação e desenvolvimento infantil. Outras, não rido (Valsiner, 1987).
○
○
necessariamente exclusivas, priorizam treina- Não existe um profissional independente da
○
mentos para a atividade prática e para o desen- pessoa que exerce esse trabalho. A identidade
○
○
volvimento de habilidades específicas como profissional está, assim, associada à identida-
○
○
instrumentos da ação diária do educador. de pessoal. Dessa forma, crenças, valores, pro-
○
Essas e outras concepções, e até mesmo a jetos de vida são elementos importantes quan- 195
○
○
ausência total de uma política deliberada de do tratamos de formação, uma vez que se ex-
○
○
formação, têm sido constatadas há alguns anos primem na qualidade do trabalho desses pro-
○
○
pelos membros do Cindeci (FFCLRP/USP), em fissionais. No capítulo “A formação nossa de
○
seu trabalho junto às cidades da região de Ri- cada dia”, do livro Fazeres na Educação Infantil
○
○
beirão Preto (SP) e também a outros municípios (2000: 27), Rosa Virgínia Pantoni e colaborado-
○
○
e estados do país, seja na formação de educa- res estabelecem um conjunto de concepções no
○
○
dores, pessoal de apoio, coordenadores e equi- trabalho de formação, destacando-se a forma-
○
pe técnica ou mesmo na formação de estudan- ção como processo que: 1) busque fazer com
○
○
tes para atuarem na área. que o educador construa uma visão ética e po-
○
○
Esses longos anos de experiência nos foram lítica de sua prática; 2) possibilite que o educa-
○
○
possibilitando verificar que o processo de for- dor tome sua prática como objeto de reflexão,
○
um rol de reuniões ou estratégias cujo objetivo seu conhecimento, do conhecimento das crian-
○
○
vés de informações e treinamento. Não basta dições para que o educador oriente suas ações
○
○
bém, uma formação com qualidade. Acredita- to e do respeito à diversidade social e cultural.
○
○
ção dessa política se estabelece, principalmen- tos como mais democráticos, horizontalizados e
○
○
te, quando nos preocupamos com a formação abertos, formas estas enraizadas nas transforma-
○
○
de uma pessoa cidadã, e não apenas com a de ções sociais e numa concepção de pessoa humana
○
○
um profissional. É a concepção de pessoa, in- como sujeito de direitos, não permitem estratégias
○
trinsecamente articulada a nossa concepção de de formação não condizentes com essas novas for-
○
○
desenvolvimento, que vem norteando nosso mas. A formação deve caminhar, assim, para pro-
○
○
modo de pensar e de agir sobre formação. mover o professor como sujeito-cidadão. Maria
○
○
humano só se dá através da apropriação da cul- o jornal USP Ribeirão, ao defender o papel da es-
○
○
tura; a pessoa torna-se humana, portanto, a par- cola pública com qualidade, propõe que ao pro-
○
○
tir de sua imersão em um mundo simbólico e fessor dessa escola sejam possibilitados: 1) um es-
○
○
ressignificação do mundo, dos seus parceiros de instrumental e conhecimentos que lhe permitam
○
○
essencialmente histórica e cultural, de onde de- ções para a vivência da curiosidade criativa e para
○
○
corre que tanto os pensamentos como as atitu- sua inserção na cultura científica; 4) um caldo cul-
○
des e os sentimentos de uma pessoa têm uma tural que favoreça sua apropriação da cultura mun-
○
○
origem social. Assim, as questões relacionadas dial e do seu grupo social; 5) oportunidades para a
○
○
ao humano, à sua constituição, ao seu desen- construção de uma identidade e auto-conceito po-
○
○
volvimento e à sua profissionalização devem ser sitivos, promovendo o seu desenvolvimento como
○
seu momento de vida, dentro da realidade con- Como se observa, tanto no texto de Maria Clo-
○
○
creta da qual faz parte. Portanto, devem levar tilde Rossetti-Ferreira como no de Rosa Virgínia
○
Pantoni, são apresentados princípios que ultrapas- Cabe mencionar que as concepções apre-
○
○
sam qualquer ação com enfoque em atividades de sentadas não norteiam apenas o trabalho dire-
○
○
treinamento. Compartilhamos com Madalena to com o educador, mas estão atreladas aos di-
○
○
Freire a visão de que “só aprendemos a partir de ferentes níveis envolvidos no processo de for-
○
nossa experiência, do que nos faz sentido, do que mação. Esses princípios devem também estar
○
○
tem significado na nossa história” (1999: 1). Para dar presentes na formação da equipe técnica que
○
○
conta do conceito de formação que construímos, compõe a estrutura de formação, capacitação e
○
além de manter os princípios em cada atividade re- supervisão existente. Nossa experiência tem
○
○
alizada na instituição junto com os educadores, faz- mostrado que, quando as propostas ou progra-
○
○
se necessário que o programa formativo preocupe- mas são implementados sem a consideração da
○
○
se com a criação de espaços que possibilitem ao pessoa no centro da ação, ou seja, sem a pro-
○
educador a vivência da cidadania e o exercício do moção de posturas que façam a pessoa sentir-
○
○
seu papel enquanto educador-sujeito. Visita a mu- se sujeito da proposta, essas acabam por ser
○
○
seus, incentivo à participação nos Conselhos Mu- compreendidas como mais uma atividade a ser
○
○
nicipais de Educação e fóruns de discussão sobre ○
feita, uma obrigação burocrática que se sobre-
Educação Infantil, por exemplo, são ações concre- põe à pesada carga de trabalho diário, contri-
○
○
tas que propiciam ao educador a atualização na área, buindo muito pouco para uma modificação de
○
○
o encontro com múltiplas vozes que dialogam e atitudes que venha a promover a qualidade no
○
○
crianças pequenas e, principalmente, o seu reco- espaços que extrapolem uma visão de forma-
○
○
É evidente que esses princípios e concepções nia constituem ótimas estratégias quando nos-
○
○
não se realizam facilmente. As instituições nas so interesse reside exatamente num trabalho
○
○
quais trabalhamos são microcosmos da realidade que pretende tocar na concepção de sujeito das
○
○
das propostas e de sua efetivação, as dificuldades É na construção de uma política nacional para
○
○
do financiamento, a hierarquia das relações cultu- o tema na Educação Infantil que se situam os
○
ralmente estabelecidas, as condições salariais e de maiores desafios no momento atual. Como su-
○
○
de um plano de carreira, dentre diversas outras alcançar uma discussão ampla, na qual a for-
○
○
questões, são exemplos de alguns dos entraves que mação seja abordada como tema importante na
○
prática de formação dos professores e nos inter- sem restringi-la a aspectos legais que, embora
○
○
pelam a cada momento. Contudo, quando de fato necessários, merecem ser avançados? Como
○
○
processo de educação da criança pequena, a ex- zam na realidade de nossas instituições se, den-
○
○
periência tem maior sucesso, apesar de todos os tre eles, está a pouca escolaridade dos profissio-
○
○
entraves. Isso, justamente, têm-nos levado a rea- nais que lidam diretamente com as crianças,
○
○
firmar cada vez mais esses princípios. Agindo de fato apontado em várias pesquisas? Como pen-
○
modo diverso, somos com freqüência capturados sar princípios norteadores que considerem e
○
○
por um pessimismo que paralisa a ação por conta respeitem a diversidade social, econômica e
○
○
das questões macrocontextuais que afetam a ques- principalmente cultural de nossos educadores?
○
○
tão da formação, ou corremos o risco de atribuir Ter como princípio a escuta dos próprios agen-
○
as dificuldades enfrentadas apenas aos próprios tes da Educação Infantil parece ser um bom iní-
○
○
profissionais, tornando-os o “lobo mau” da Edu- cio para começarmos a esboçar algumas respos-
○
○
196
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
Bibliografia
○
PANTONI, Rosa Virgínia; TELES, Regina; MELLO, Ana Ma-
○
ria; ROSSETTI-FERREIRA, Maria Clotilde. A formação
○
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
○
nossa de cada dia. In: ROSSETI-FERREIRA, Maria Clo-
○
Fundamental. Subsídios para credenciamento e funcio- tilde (Org.). Os fazeres na Educação Infantil. São Pau-
○
namento de instituições de Educação Infantil. Brasília,
○
lo: Cortez, 2000. p. 26-31.
○
DF: SEF/MEC/Coedi, 1998. v. I e II. PERALTA, Maria Victoria. Las necesidades de América
○
DEMO, Pedro. Formação do profissional de educação in- Latina en el campo de la educación inicial y la
○
○
fantil. In: BRASIL. MEC. Anais do IV Simpósio Latino- for mación de los educadores. In: BRASIL. MEC.
○
Americano de Atenção à Criança de 0 a 6 anos . Anais do IV Simpósio Latino-Americano de Aten- 197
○
○
Brasília, DF: MEC, 1996. p. 139-43. ção à Criança de 0 a 6 anos . Brasília, DF, 1996. p.
○
FREIRE, Madalena. Memória: eterna idade. Espaço Peda- 143-46.
○
○
gógico - Diálogos Memoráveis , n. 5, p. 1-5, 1999. ROSEMBERG, Fúlvia. Expansão da Educação Infantil e
○
KUHLMANN Jr., Moysés. Educação Infantil e currículo. In: processo de exclusão. Cadernos de Pesquisa, n. 100,
○
○
FARIA, Ana Lúcia Goulart; PALHARES, Maria Silveira p. 7-40, 1999.
○
(Orgs.). Educação Infantil pós-LDB: rumos e desafios. ROSSETTI-FERREIRA, Maria Clotilde. Educação em Ri-
○
○
Campinas: Autores Associados, 1999. p. 51-66. beirão Preto: desafio para o novo milênio. Jornal USP
○
MACHADO, Maria Lúcia. Criança pequena, Educação In- Ribeirão , n. 720, p. 5, 25jun./2jul. 2001.
○
○
fantil e formação dos profissionais. Perspectiva , n. 17, SILVA, Isabel de Oliveira. Histórias de vida e produção de
○
p. 85-98, 1999. sentidos: trajetória profissional e escolarização de edu-
○
○
OLIVEIRA, Zilma M. R. A universidade na formação dos ○ c a d o ra s d e c r e c h e c o mu n i t á r i a . D i s s e r t a ç ã o
profissionais de Educação Infantil. In: BRASIL. MEC/
○
SEF/Coedi. Por uma política de formação do profissio- VALSINER, Jaan. Culture and the development of children’s
○
Educação Infantil:
○
○
○
continuada em serviço*
○
○
○
○
○
Pensando por onde iniciaria este texto, mos fortes, conseguiremos chegar à vitória. E
○
que a trilha da formação continuada em servi- O patinho feio da formação em serviço está
○
○
ço do professor de Educação Infantil tem sido trocando as penugens por belas penas! E sabem
○
Ufa, que bom!!! Tudo não passou de um sus- para construir espaços de fazeres educativos. Um
○
○
to do século passado. É possível identificar si- lugar ideal para um bom ninho, um cantinho
○
○
nais de construção de uma nova era na forma- protegido não do mundo, mas no qual a exclu-
○
* Para a elaboração deste texto muito me valeu a experiência vivida e os cadernos produzidos pelo Programa de Formação Continuada – PCN
○
* * Técnica da Coedi/SEF/MEC, formadora nacional do Programa PCN em Ação, da SEF/MEC, e mestranda da Universidade de Brasília.
○
Mas ainda nos deparamos com propostas de frágeis estes ficarão. Dessa forma, terão poucas
○
○
formação cerceadoras do vôo de nossas crianças- possibilidades de partilhar e compartilhar expe-
○
○
passarinhos. Procurar compreender melhor o riências e, conseqüentemente, terão práticas
○
○
universo de formação continuada faz-se neces- pedagógicas pouco enriquecidas.
○
sário, bem como repensar as propostas de forma- Possibilitar aos professores de Educação In-
○
○
ção. Escolhi esse recorte na intenção de expor al- fantil a organização da formação continuada de
○
○
gumas idéias, dúvidas, reflexões e ansiedades. maneira sistematizada, em seu próprio locus de
○
A caminhada dos professores quase sempre atuação profissional, com a perspectiva de valo-
○
○
é rica, variada e recheada de “causos” e, na maio- rizar os saberes que esses professores construí-
○
○
ria das vezes, eles procuram compreender os ram ao longo de sua docência, seria um bom
○
○
muitos desafios com os quais lidam no dia-a-dia começo.
○
da instituição. Assim, procuram as propostas de Mas, para tanto, a organização do trabalho
○
○
formação continuada na perspectiva de encon- pedagógico da formação continuada necessita de
○
○
trar respostas para muitas de suas questões. um pensar mais atualizado, pois, de alguma ma-
○
○
Em um breve olhar para as minhas primeiras ○
neira, a vivência dos professores nesses espaços
experiências docentes, vejo que não fugi à regra, reflete-se na forma como eles organizam os am-
○
○
pois comparo o início de minha prática pedagó- bientes educativos das instituições em que tra-
○
○
gica a um dicionário onde todas as palavrinhas balham. Se, por um lado, em sua docência, o pro-
○
○
estão sempre em fila. Após ouvir um número sig- fessor convive com rotinas que põe em ação de
○
nificativo de professoras de Educação Infantil, forma relativamente consciente, mas sem avaliar
○
○
constatei que não foi tão diferente o lidar delas a sua repercussão, logo, sem escolhê-las e
○
○
com o mundo das metodologias e das didáticas controlá-las verdadeiramente — pois esta é a par-
○
no início de suas carreiras. Será o legado da for- te de reprodução, de tradição coletiva —, por ou-
○
○
mação inicial em Magistério? Fica a questão. tro lado, em outros momentos da prática, são a
○
○
Imagino que em virtude dessas semelhanças expressão do hábito, o ato mecânico de repetidas
○
○
na formação, mesmo em épocas tão distintas, é rotinas realizadas constantemente sob o não-con-
○
possível perceber, a partir da década de 1980, no trole da consciência que se cristalizam. Nesse sen-
○
○
cenário educacional brasileiro, maior procura tido, repensar a organização do trabalho pedagó-
○
○
dos professores em relação a propostas de for- gico é uma tarefa para ser refletida e vivida nos
○
○
respostas para melhor lidar com sua prática pe- Tenho tido o privilégio de ouvir alguns pro-
○
○
dagógica. Porém, na mesma proporção, verifica- fessores da Educação Infantil que sinalizam a
○
○
se que, nem por isso, ao voltar para sua institui- ênfase no desenvolvimento de práticas pedagó-
○
○
ção, conseguem traduzir esperanças e sugestões gicas reflexivas como um dos caminhos que,
○
supor que alguns aspectos da formação conti- prática voltada para a técnica, para o instrumen-
○
nuada precisam ser revisitados, mesmo timida- tal, na qual os saberes dos professores eram pou-
○
○
uma reflexão preliminar sobre desses aspectos. E como ajudá-los? Retirando-os de seus es-
○
○
Iniciando a reflexão, chamo para nossa paços de atuação profissional para falar de suas
○
rodinha, como um primeiro aspecto, o locus de práticas? Com uma certa freqüência, esta tem sido
○
○
tas de formação continuada em serviço como um res de Educação Infantil, sem a intencionalidade
○
○
dos patinhos feios de nossa história. Será inten- do erro, vão subutilizando valiosos tempos edu-
○
cionalmente? Não creio. Temos tido pouca sen- cativos com a aplicação de exercícios que pouco
○
○
sibilidade para perceber que, quanto mais se fi- ou quase nada levam as crianças a pensar.
○
○
zer presente o isolamento dos professores, mais Mas temos muitos professores inquietos. É
○
198
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
como se soubessem que precisam mudar o rumo compreensão, a interpretação e a intervenção so-
○
○
dessa prosa na rodinha dos educadores de Edu- bre a realidade, como cita Imbernón (2000: 48). E,
○
○
cação Infantil. Cobram-se, sabem que precisam além disso, a formação continuada deve ocupar o
○
○
mudar. Dessa inquietude origina-se um segun- seu espaço na participação efetiva da construção
○
do aspecto da formação continuada: a necessi- da qualidade da educação, para o que faz-se ne-
○
○
dade de sensibizar os professores para que pos- cessário conceber, como afirma Alarcão (2001: 53),
○
○
sam, também, a partir do estudo de suas práti- que a desburocratização e a humanização das so-
○
cas no dia-a-dia, promover mudanças mais sig- ciedades emergentes pressupõem novos conheci- 199
○
○
nificativas. mentos e novas formas de conhecer, investigar,
○
○
Há que perguntar: como trabalhar na pers- aprender, ensinar e desaprender para empreender,
○
○
pectiva da sensibilização? Quem sabe – se os pro- construir e desenvolver.
○
fessores tivessem espaço para refletir uns com Uma parcela considerável desses novos conhe-
○
○
os outros, diante de cada atividade trabalhada, cimentos tranforma-se em desafios diários para os
○
○
diante da reação das crianças, da observação di- professores e os leva na direção da construção de
○
○
ária do movimento do currículo vivido na insti- planejamentos mais sensíveis às aprendizagens
○
tuição, do olhar duvidoso sobre seus fazeres – dos meninos e das meninas com quem trabalham.
○
○
analisando, questionando os erros e acertos. No entanto, as propostas de formação continuada
○
○
ção Infantil precisariam firmar, ainda mais, um teorização preexistente em cada professor.
○
namoro com a reflexão dos seus fazeres educa- Para que a formação continuada sensibilize
○
○
tivos. Assim, terão maiores possibilidades de os professores na lógica do olhar sobre suas prá-
○
○
avançar de um lugar individual de “pensar edu- ticas, ela deve reforçar a construção de atitudes
○
cação” para uma compreensão mais ampla das reflexivas também por meio da ênfase no desen-
○
○
interações das relações de contéudo, de contex- volvimento da leitura e da escrita desses profes-
○
○
Entendemos que a reflexão requer imersão um passo significativo para enfrentarmos com
○
consciente do homem no mundo da sua experi- êxito mais esse desafio, apresentado como o ter-
○
○
ência, mundo este impregnado de conotações, ceiro aspecto para o repensar da formação con-
○
○
cias afetivas, interesses sociais e cenários políti- 83), ao referir-se ao professor como um sujeito
○
cos. Mas faz-se necessário provocar nos profes- que se permite ser surpreendido pelos fazeres,
○
○
sores o desejo pelo desenvolvimento da obser- saberes e atitudes, que pensa sobre a complexi-
○
○
práticas, pelo estudo de suas situações didáticas. a razão por que foi surpreendido. Mas não satis-
○
cação Infantil em uma busca maior pelo conhe- suscitado pela situação na perspectiva de inves-
○
○
cimento na perspectiva de constituírem uma tigar sobre o modo de pensar do sujeito, seja ele
○
○
fio de não simplesmente estar professor, mas de Estamos diante do desafio de promover uma
○
○
ser professor e de admitir que carecem formar- formação continuada na qual os professores de
○
○
se diariamente, percebemos que falta a eles uma Educação Infantil desenhem, pintem, bordem,
○
○
maior compreensão na direção da complexida- escrevam um novo quadro de seus fazeres edu-
○
do saber como um espaço no qual também po- mimeografados, dos cadernos de planejamento
○
○
cação Infantil precisa de maior reflexão prático-te- mesmo angustiantes, irá cutucar os pensamen-
○
○
órica sobre a própria prática mediante a análise, a tos dos professores, deixando-os a matutar, e eles
○
buscarão profissionalmente um novo lugar da Faz-se necessário, para tanto, questionar as
○
○
praxis, da leitura e da escrita. Mesmo acanhada- propostas de formação nas quais os professores
○
○
mente, perceberão o sentido da ação coletiva, o ficam sujeitos a programações assistemáticas,
○
○
sentimento e a importância de pertencer a um pontuais e externas. Neste alinhavo apresenta-
○
grupo, a magia do registrar e o significado da par- se a necessidade de constituir o professor como
○
○
ticipação efetiva e consciente no processo de for- um sujeito reflexivo. Diante do exposto, acredi-
○
○
mação de sua identidade profissional, forjada e to ser este um quarto aspecto relevante para uma
○
lapidada no cotidiano educativo e na literatura. formação continuada sensível ao sujeito-profes-
○
○
Revisitando fragmentos de minha história sor que se organiza, se forma, se constrói e se
○
○
profissional como professora formadora em di- constitui, também, no espaço institucional, com
○
○
versos grupos de professores e de minha prática toda a complexidade multifacetada do humano.
○
pedagógica como docente de crianças e adoles- Preocupações vividas por mim freqüente-
○
○
centes, percebo, na criação e na negociação de- mente levaram-me a pensar: como se caracteri-
○
○
mocrática de ações que proporcionem a organi- za e se constitui um sujeito reflexivo? Na tentati-
○
○
zação intencional e sistematizada da formação ○
va de responder a esta questão, elaborei outros
em uma perspectiva prático-reflexiva, um tercei- questionamentos:
○
○
ro aspecto que possibilitaria o avanço da forma- • Seria um ator que se inquieta em buscar
○
○
(Schon, 2000: 227). Para tanto, reafirmo que o comportar as dúvidas e as reflexões de sua
○
Nessa intencionalidade, o agir e o pensar pre- • As dificuldades por parte dos professores em
○
tratégias problematizadoras?
○
gógico próprio?
○
tinuada, de acordo com Imbernón (2000: 49), Visitando a literatura com a intenção de am-
○
que valorize a descoberta, a organização dos pliar a compreensão, mesmo que ainda superfi-
○
○
visão e a construção de teorias, com a intencio- parágrafo anterior, lendo Imbernón (2000: 50) foi
○
○
nalidade de remover o sentido pedagógico co- possível perceber que um sujeito se constitui
○
mum, recompor o equilíbrio entre os esquemas como profissional reflexivo se for orientado para
○
○
que os sustentam, imprimimindo uma nova samento da informação, análise e reflexão críti-
○
○
matriz na qual o olhar e o registro reflexivo so- ca, diagnóstico, decisão racional, avaliação de
○
bre a prática ocupem lugar central, com vista à processos e reformulação de projetos. Também
○
○
tomada de decisões pedagógicas mais conscien- seria constituído na multiplicidade de suas fun-
○
○
tes, criativas e menos espontaneístas. ções e inquietudes, como define Freire (apud
○
200
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
Alarcão, 2001: 17), vivenciando um processo de encaminharia soluções, auxiliaria nas dificulda-
○
○
formação permeado pela dor, pelo prazer, por des de problemas individuais e coletivos e en-
○
○
sensações de vitórias, derrotas, dúvidas, alegrias volveria os sujeitos em um processo vivo de pro-
○
○
e também disciplina. dução e de reconstrução de conhecimento.
○
Nesse sentido, a constituição do professor Assumir uma prática reflexiva na formação
○
○
reflexivo passaria pela compreensão de que ele continuada, a meu ver, indica a necessidade de
○
○
é “um profissional da ação cuja atividade impli- reestruturação da organização do trabalho pe-
○
ca um conjunto de atos que envolvem seres hu- dagógico, organização que carece, como cita 201
○
○
manos. Como tal, a racionalidade que impregna Nóvoa (1997: 23-31), de saberes e de saber-fazer
○
○
a sua ação é uma racionalidade dialógica, inte- pedagógico. Precisa de saberes teóricos e tam-
○
○
rativa e reflexiva” (Alarcão, 2001: 23). bém de colocar em prática esses saberes para
○
Parece-me que neste viés precisaríamos cons- construir um “saber fazer” teorizado, o que, em
○
○
truir, coletivamente, durante a formação continua- linhas gerais, significaria um conjunto de sabe-
○
○
da, procedimentos de registros individuais e cole- res relacionados com a organização: do trabalho
○
○
tivos. Estes teriam a função de acompanhar e ava- individual e em grupo, da organização espaço-
○
liar o processo educativo dos professores e em es- temporal, do conhecimento, dos procedimentos,
○
○
pecial seriam referenciais dinâmicos para a dos instrumentos, das tecnologias, das metodo-
○
○
autoformação. A meu ver, estamos diante do quin- logias, da construção de novas estratégias, do
○
○
pedagógico, que deve possibilitar o exercício do para pensar e ampliar o seu processo educativo.
○
○
“pensar” para que o “vir a ser” se torne realidade Nesse sentido, percebe-se nas propostas de for-
○
○
no “hoje” da prática docente. Tal atitude não é mação continuada pouco espaço para o pensar,
○
tarefa fácil. Ao contrário, exige muitos rompi- pois este está relacionado ao perguntar, ao in-
○
○
mentos, a começar por desinstalar a certeza de quietar, ao buscar, à incerteza. Não há conheci-
○
○
que a formação se encerra ao término de um mento que não esteja, de alguma maneira, amea-
○
○
curso. Compreender que o conhecimento não çado pelo erro. O conhecimento, sob a forma de
○
está pronto requer criar lugar para a proviso- palavra, de idéia, de teoria, é fruto de uma re-
○
○
estaríamos organizando um novo espaço no qual É necessário refletir que, em tempos recentes,
○
○
os professores não apenas estivessem mas que ora se concebia a prática como uma aplicação da
○
○
pudessem vivê-lo de forma a movimentar-se re- teoria, como uma conseqüência, ora, ao contrá-
○
petidamente entre a reflexão-na-ação e a refle- rio, como inspiradora da teoria. Porém, como afir-
○
○
xão-sobre-a-ação (Schon, 2000: 227). ma Foucault (2000: 70), “nenhuma teoria pode se
○
○
Dessa forma, os outros aspectos até aqui desenvolver sem encontrar uma espécie de muro
○
○
apresentados neste texto se articulam a este e é preciso a prática para atravessar o muro.” Acres-
○
quinto aspecto. Concebo a organização do tra- cento: para tanto é preciso que a formação crie con-
○
○
balho pedagógico como uma estrutura na qual dições para transpor esse muro.
○
○
cotidianamente se exercite a reflexão dos faze- Ainda na mesma obra, o autor nos faz refletir
○
○
res educativos e se concretize essa reflexão no sobre a relação entre a teoria e uma caixa de fer-
○
registro escrito, supondo que este viabilizaria a ramentas: se esta não servir, não funcionar, de
○
○
análise do percurso formativo, ajudaria na iden- nada serve a teoria para sua utilização, assim
○
○
tificação de problemas, reafirmaria objetivos, como, se não há pessoas para fazer uso da teoria,
○
esta não tem nenhuma validade. Continuando, formativo pelos professores, na perspectiva de
○
○
Proust (apud Foucault, 2000: 71) acrescenta: “tra- retomadas reflexivas com vista ao avanço de sua
○
○
tem meus livros como óculos dirigidos para fora formação. É caminho para o exercício do pen-
○
○
e, se eles não lhes servirem, consigam outros, en- sar, da busca de soluções, de auto-avaliação, de
○
contrem vocês mesmos seu instrumento, que é elaboração de perguntas.
○
○
forçosamente um instrumento de combate.” O desafio em aceitar a formação continua-
○
○
Nesse olhar, o registro reflexivo, se utilizado da em serviço como uma proposta de aprendi-
○
para o acompanhamento e a avaliação do pro- zagens reflexivas que considere os aspectos
○
○
cesso formativo dos professores em espaços de abordados neste texto parece-me que exige
○
○
formação continuada em serviço, pode vir a ser abrir espaço político-pedagógico, assumindo
○
○
uma possibilidade de promover um processo que é um trabalho que leva tempo. Tempo para
○
dinâmico no qual, de fato, os professores pos- viver os choques iniciais de confusão e misté-
○
○
sam perceber o sentido da prática reflexiva nos rio, tempo para desaprender expectativas ini-
○
○
espaços formativos. ciais e começar a maestria de uma prática do
○
○
Formar professores reflexivos decerto não é ○
ensino prático, tempo para viver os ciclos de
tarefa rápida, de curto prazo, e provavelmente aprendizagem, tempo para aprender a ver o
○
○
vo dos professores existirão, mas insisto que seja formativo e autoformativo que requer mudan-
○
○
nos espaços de formação continuada, formas de Na tentativa de bordar um ponto não final,
○
○
organização das propostas metodológicas que para esse texto, mas de continuidade, diria que
○
○
Esse teria de ser um exercício contínuo, dia cação Infantil, que o provoquem a olhar com
○
○
após dia, encontro após encontro; teria de ser os olhos da diversidade, da reflexão, do belo,
○
○
concebido como uma construção; não pode- por ser multifacetada a realidade, será possí-
○
ria desmerecer o momento de formação de vel se garantirmos espaços para o pensar re-
○
○
cada professor; teria de promover o avanço flexivo, se não formatarmos os espaços de for-
○
○
para que o professor saísse da preocupação mação com um único referencial de criação,
○
○
centrada exclusivamente na simples anotação pois, assim, estaremos mutilando seres por
○
ção profissional.
○
○
Propor a experiência do registro reflexivo ANDRÉ, Marli (Org.). Pedagogia das diferenças na sala de
○
○
afirma: “a experiência da leitura, quando está Educação Infantil. Brasília, DF: SEF/MEC, 1998.
○
○
relação de cada um consigo mesmo e com os res. Brasília, DF: SEF/MEC, 1999.
○
○
de envolvimento com a beleza da aprendizagem FREITAS, Luiz Carlos de. Crítica da organização do trabalho
○
O exercício cotidiano do registro reflexivo FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. e trad. de
○
○
precisa ser construído como procedimento Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
○
202
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
○
IMBERNÓN, Francisco . Formação docente e profissio- estratégias? quais competências? 2. ed. Porto Alegre:
○
nal: formar-se para a mudança e a incerteza. São Artmed, 2001.
○
○
Paulo: Cor tez, 2000. (Coleção Questões da Nossa . Avaliação: da excelência à regulação das
○
Época, v. 77.) aprendizagens entre duas lógicas. Trad. de Patrícia
○
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e
○
Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artmed, 2001.
○
mascaradas. Trad. de Alfredo Veiga Neto. 4.ed. Belo Ho- . Construir as competências desde a escola.
○
rizonte: Autêntica, 2001. Porto Alegre: Artmed, 1999.
○
○
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do PIMENTEL, Maria da Glória. O professor em construção . 7.
○
futuro. Trad. de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne ed. Campinas: Papirus, 2001. 203
○
○
Sawaya; rev. téc. de Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. RESENDE, Lúcia Maria Gonçalves de. Relações de poder
○
São Paulo/Brasília: Cortez/Unesco, 2000. no cotidiano escolar. Campinas: Papirus, 1995.
○
○
NÓVOA, Antônio (Org.). Vida de professores. 2. ed. Lisboa: RESENDE, Lúcia Maria Gonçalves de; VEIGA, Ilma Passos
○
Porto Editora, 1995. Alencastro. Escola: espaço do projeto político-pedagógi-
○
○
. (Coord.). Os professores e sua formação . 3. co. 4. ed. Campinas: Papirus, 2001.
○
ed. Lisboa: Porto Editora, 1997. SCHON, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo
○
○
PERRENOUD, Philippe. Práticas pedagógicas, profissão design para o ensino e a aprendizagem. Trad. de Roberto
○
docente e formação: perspectivas sociológicas. Trad. de Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2000.
○
○
Helena Faria, Helena Tapada, Maria João Carvalho, Ma- VEIGA, Ilma Passos Alencastro (Org.). Caminhos da
○
ria Nóvoa. 2. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1997. profissionalização do magistério. Campinas: Papirus, 1998.
. Pedagogia diferenciada das intenções à ação. ○
○
○
○ VENTURELLI, Paulo. Introdução à arte de ser menino .
Porto Alegre: Artmed, 2000. Curitiba: Nova Didática, 2000. (Coleção Vivendo a Lite-
○
te a Escola Plural, programa de governo para a educando é considerado como sujeito so-
○
○
educação na rede municipal de ensino. cial em formação, que estabelece uma re-
○
○
como um tempo/espaço de formação das reflete sobre a prática pedagógica, que age e
○
○
○
tes eixos norteadores: proposta, coletando e analisando experiências
○
○
1º Uma intervenção coletiva mais radical. significativas presentes nas escolas e organizan-
○
○
2º Sensibilidade com a totalidade da forma- do grupos de professores que participaram efe-
○
ção humana. tivamente de sua elaboração.
○
○
3º A escola como tempo de vivência cul- Nesses dez anos, e em especial nos últi-
○
○
tural. mos seis anos, o Cape vem passando por cons-
○
tantes reestruturações no sentido de enfren-
○
4º A escola como experiência de produção
○
coletiva. tar os desafios de construção de uma nova
○
○
5º As virtualidades educativas da materiali- escola organizada conforme os princípios aci-
○
○
dade da escola. ma relacionados.
○
Uma característica interessante do Cape é a
○
6º A vivência de cada idade de formação sem
○
interrupção. sua composição: somos atualmente 33 profes-
○
○
7º Socialização adequada a cada idade-ci- sores da rede municipal selecionados para tra-
○
○
clo de formação.
○
balhar nas equipes por um período de quatro
anos, depois do qual se volta para a escola.
○
missões.
• Uma reorganização dos tempos escolares a
○
valorização da escola como espaço de socia- tra equipe composta por 24 professores, selecio-
○
○
na. Sugere, ainda, os projetos de trabalho fessores leigos que trabalham nas instituições
○
○
como uma concepção metodológica que conveniadas com a Prefeitura de Belo Horizon-
○
permite o rompimento com a lógica disci- te. Esse município instituiu em 1998 seu siste-
○
○
• Uma nova lógica de avaliação do aluno que O sistema municipal de ensino está assim
○
204
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
○
○
vemos tem na relação com as escolas munici- 1º A escola deve ser o local privilegiado para
○
○
pais e com as Instituições de Educação infan- as ações de formação docente. As ações de
○
formação desenvolvidas e propostas pelo
○
til (IEI) conveniadas com a Prefeitura de Belo
○
Horizonte sua estratégia privilegiada de imple- Cape/SMED devem privilegiar a realidade
○
○
mentação e formulação. das escolas - seus problemas, construções
○
e desafios - proporcionando debates e re-
○
○
flexões sobre ela. 205
○
Os princípios da política
○
2º Todas as ações de formação precisam con-
○
de formação
○
siderar o professor como sujeito do seu
○
próprio processo de formação. É preciso
○
Nesses dez anos de existência do Cape, fo-
○
levar em consideração o que o professor
○
ram construídos os princípios da formação que sabe, o que deseja saber, como constrói co-
○
○
praticamos: nhecimentos e, sobretudo, como constrói
○
• Reconhecimento da formação continuada
○
sua identidade profissional.
○
como direito e condição para construirmos
○
3º A formação é um direito do trabalhador.
○
uma escola pública democrática de quali-
○
Ela é um instrumento importante de valo-
dade e cada vez mais inclusiva. Uma for- ○
○
rização do trabalho docente, inerente ao
mação que provoque, sensibilize e nos faça
○
como profissionais.
○
lhadores em educação.
○
Os objetivos estratégicos
○
o conhecimento e a problematização da
○
da política de formação
○
criando assim novas perspectivas de refle- Desses princípios, decorrem sete objetivos
○
primordiais:
○
prática não se resume a falar sobre ela, • assegurar aos profissionais da educação o
○
direito à formação;
○
profissionais;
safiador que exige amadurecimento, sen-
○
○
ça por parte de todos que o vivenciam. A cionais que norteiam a política pedagógi-
○
○
no processo.
○
nuada e em serviço;
○
diano escolar;
○
○
○
truir estratégias que nos permitam atingir to- horário de serviço do professor. Atualmen-
○
○
das as escolas e IEI conveniadas e, para isso, te, temos seis turmas (duas turmas por tur-
○
no) com participação de representantes in-
○
faz-se necessária a articulação das várias
○
equipes pedagógicas da SMED (atualmente dicados pelas escolas.
○
○
existem nove equipes regionais com um Cen- Curso de libras e braille: destinado a pro-
○
○
tro de Educação Infantil (CEI) cada, bem fessores que trabalham com alunos cegos
○
como outras equipes político-pedagógicas e e surdos e a intérpretes da língua de si-
○
○
administrativas, no órgão central, que têm nais.
○
○
interlocução com as escolas), responsáveis
○
○
pelo apoio pedagógico e administrativo às
Os projetos que estão sendo
○
escolas e IEI. Para tanto, instituímos na SMED
○
construídos
○
um fórum interno de formação que organiza
○
○
e desenvolve, de forma articulada, a política
○
Estamos organizando, para responder às
○
de formação que praticamos.
demandas das escolas apontadas nos encon-
○
○
Encontro regionalizado mensal, com todas cola, relacionados às dificuldades dos alu-
○
zem parte dessas coordenações). Projeto Rede pela Paz, para equacionar
○
○
consumo de drogas.
○
las que trabalham com alunos portadores de através das Gerências de Educação e dos
○
○
to com o Cape.
○
de trocas de inclusão, objetivando estudos ção e o BH para Crianças, que têm como
○
○
206
SIMPÓSIO 12
Formação continuada do professor na Educação Infantil
○
○
cursos para bibliotecários e auxiliares de
○
desafiando hoje
○
biblioteca, objetivando a revitalização des-
○
se espaço.
○
A partir da avaliação feita pelo Grupo de
○
Gerência do Programa Bolsa-Escola. De-
○
Avaliação e Medidas Educacionais (Game), da
○
senvolve projetos de alfabetização com as Faculdade de Educação da Universidade Fe-
○
○
famílias dos alunos assistidos e projetos de deral de Minas Gerais e também da institui-
○
geração de emprego e renda. 207
○
ção do sistema municipal de ensino, alguns
○
Gerência de Funcionamento Escolar. De-
○
desafios novos estão se colocando para nós:
○
senvolve ações de formação com secre- 1º lugar da formação dos profissionais da
○
○
tários de escola e, em conjunto com o educação no processo de desenvolvimen-
○
Cape e outros setores, com diretores de to curricular da Escola Plural.
○
○
escola.
○
2º A relação do Cape com o sistema munici-
○
Gerência de Planejamento e Administra- pal de ensino.
○
○
ção. Desenvolve ações com diretores e
3º A descentralização da política de formação
○
membros da caixa escolar
○
tendo a escola como seu locus privilegiado.
○
Gerência de Coordenação de Política Pe- ○
○
4º O lugar e a estrutura institucional do Cape
dagógica. Organiza diversos fóruns e en-
○
209
Problemática e considerações
○
○
○
sobre programas educacionais
○
○
○
vinculados ao trabalho*
○
○
○
○
Enrique Pieck
○
○
Universidade Ibero-Americana – México
○
○
○
○
○
Introdução
○
senvolvimento de programas orientados para
○
a formação para o trabalho em setores de po-
○
Entre outros questionamentos freqüentes
○
breza.
○
da Educação de Jovens e Adultos (EJA) desta-
○
○
ca-se o que diz respeito à sua falta de eficácia ○
Problemática
○
de educação de adultos que não estejam vin- Um primeiro ponto de partida para abordar
○
○
enorme, à luz de inúmeras experiências fra- de que, nos setores em situação de pobreza, a
○
c a s s a d a s e d e u m a t ra j e t ó r i a q u e t e m
○
priorizado o aspecto educacional, em detri- balho – é uma prática quase inexistente. Essa
○
○
vinculação ao trabalho, deixando pouco espa- lares: por parte das instituições de educação de
○
à produção, à participação política e à supe- tema trabalho em seus programas, que não
○
○
ração da exclusão e da desigualdade social constitui uma área prioritária; no caso dos ins-
○
○
campo da educação de adultos, enquanto a al- dada a orientação predominante de seus pro-
○
○
fabetização e a Educação básica têm recebi- gramas para o mercado formal de trabalho, re-
○
Esta dissertação pretende abordar vários ços (Pieck, 1998). Embora em zonas rurais e ur-
○
○
aspectos fundamentais que configuram o banas excluídas exista, de um modo geral, uma
○
○
Trabalho (EDJAT). Além disso e com o objeti- não-formal não-vocacional –, esses programas
○
○
vo de trazer informação e elementos que apói- estão longe de oferecer uma efetiva capacitação
○
○
em o trabalho educacional realizado pelos do- para o trabalho em decorrência dos poucos re-
○
*
Apresentação feita no Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação – Formação de Professores, realizado em Brasília no período de 15
○
a 19 de outubro de 2001.
○
○
Os elementos para a elaboração desta apresentação baseiam-se no relatório final sobre a problemática regional da “educação de jovens e
○
adultos vinculada ao trabalho”, documento elaborado no marco do “Acompanhamento Latino-Americano da Confintea” (v. Pieck, 2000).
○
210
SIMPÓSIO 13
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao trabalho
○
○
entre ambas as estratégias educacionais – uma porcionaram um acesso sem precedentes à in-
○
○
terra de ninguém – que deixa sem atenção, no formação, exigindo novas competências e ge-
○
○
campo da capacitação para o trabalho, os gru- rando novos desafios nos espaços de trabalho.
○
pos populacionais que vivem em regiões de O limitado acesso de amplos setores da popu-
○
○
pobreza: a contraposição entre uma educação lação a essas novas possibilidades de acesso à
○
○
para os pobres e uma educação para o desen- informação e ao conhecimento gera situações
○
volvimento, entre uma lógica tradicionalmen- intoleráveis de exclusão – novos analfabetismos 211
○
○
te orientada para a sobrevivência e o e novos processos de exclusão. Esses atributos
○
○
assistencialismo e outra cuja natureza e razão certamente incidirão nas novas condições de
○
○
de ser é o trabalho. A oferta de uma EDJAT exi- empregabilidade e representarão um risco par-
○
ge articulação adequada entre ambas as ofer- ticularmente alto para populações em regiões
○
○
tas educacionais. De certa maneira, exige a de pobreza.
○
○
criação de uma lógica diferente, que envolva Esses elementos mexem nas estruturas do
○
○
duas racionalidades aparentemente opostas, sistema produtivo e do mercado de trabalho,
○
uma conjunção de estratégias que permita a bem como dos sistemas educacionais e de for-
○
○
combinação e a articulação de perspectivas e mação, gerando a premente necessidade de
○
○
potencial produtivo dos programas de educa- educação geral e a formação para o trabalho
○
ção de adultos e fortalecer o impacto e a pre- deixam de ser opostas e a formação do cida-
○
○
Os contextos da EDJAT
○
e suas implicações
○
side na dualidade de um contexto mundial carac- para a empregabilidade. Nessa ótica, a edu-
○
○
terizado pela coexistência do fenômeno da cação de adultos adquire uma nova dimensão,
○
○
(Unesco, 1997). Trata-se, na verdade, de duas di- potencial para permitir o acesso de amplos
○
○
e II) o marco de pobreza que caracteriza as socie- cenário mundial (Silveira, 1998).
○
com base nas quais se vislumbram novos desafi- endêmica suscitam tarefas fundamentais para
○
tecnologias e de novas pautas de produção, exi- contrar um emprego e, sim, de garantir o sus-
○
○
penhe um papel claro na formação de compe- A importância desse vínculo assumiu ma-
○
e adultos ao mercado de trabalho e facilitar sua a população que vive em condições de pobre-
○
○
mobilidade social. A “mundialização” dos inter- za é cada vez maior e mais pobre a cada dia
○
○
câmbios, a globalização das tecnologias e o ver- que passa. Nesses setores, o mundo do traba-
○
lho adquire uma especificidade própria, que var em consideração possibilidades disponí-
○
○
define as características que um programa con- veis em contextos de pobreza. Se o mercado
○
○
cebido para responder às necessidades de for- formal de trabalho apresenta restrições para a
○
○
mação que prevalecem nos diferentes espaços incorporação de novos trabalhadores, o setor
○
deve ter. Nesse sentido, o trabalho adquire um informal e as atividades produtivas próprias
○
○
significado particular nas áreas marginais, es- dos meios informais oferecem espaços em po-
○
○
pecialmente na área rural, por estar estreita- tencial que podem redinamizar capacidades
○
mente ligado às características do contexto e produtivas inibidas no contexto do mercado
○
○
ao desenvolvimento de estratégias de sobre- globalizador. Atualmente, a idéia de mercado
○
○
vivência. A incorporação produtiva transfor- tende a subestimar a riqueza desses espaços,
○
○
ma-se no grande desafio dessa dimensão es- a esquecer e a mascarar a sociedade, a diluí-la
○
pecífica, pois envolve amplos setores da popu- e a fazê-la perder sua especificidade. A varie-
○
○
lação, principalmente em áreas rurais e nas dade de produtos locais, atividades produtivas,
○
○
periferias urbanas, que exigem programas de competências informais ficam perdidas num
○
○
formação relevantes que lhes permitam satis- ○
conceito de mercado que não tem relação –
fazer suas necessidades específicas de inser- não define nem inclui – com as miríades de
○
○
educacional relevante e de qualidade; II) permi- Nos setores de pobreza, conceitos como o
○
○
tir o acesso da população desses setores às no- trabalho e a empregabilidade adquirem espe-
○
A EDJAT e a pobreza
○
tino-americanos, o tema da EDJAT passa, ne- dutivas das pessoas – suas estratégias de sobre-
○
○
aplicação prática de uma EDJAT. Por isso, é de uma “educação ao longo da vida” definem-
○
○
importante que as propostas estejam sintoni- se a partir da realidade de pobreza que caracte-
○
○
zadas com uma visão de desenvolvimento e se riza a grande maioria dos países latino-ameri-
○
212
SIMPÓSIO 13
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao trabalho
tências necessárias para a incorporação produ- mente a população em ofícios geralmente mar-
○
○
tiva, para a eliminação da exclusão social, para ginais e com perfis de conclusão igualmente
○
○
ajudar a melhorar as condições de vida e para baixos. Uma capacitação técnica desvinculada
○
○
permitir que os indivíduos ocupem seu lugar na da promoção humana e do melhoramento da
○
vida da sociedade. qualidade de vida se transforma numa oferta
○
○
Nesse sentido, precisamos oferecer progra- educacional assistencialista e de contenção so-
○
○
mas que resgatem as esferas do trabalho coti- cial; ao contrário, uma estratégia de formação
○
diano das pessoas e o vinculem a atividades associada à Educação básica e devidamente 213
○
○
econômicas estratégicas que possibilitem a enfocada constitui um elemento importante da
○
○
transcendência das modestas inserções eco- empregabilidade.
○
○
nômicas e sua inserção com outros tipos de Mais uma vez, a capacitação isolada certa-
○
apoios. Isso nos leva, necessariamente, a mente não cria empregos. São necessários me-
○
○
questionar e a redefinir os conceitos de traba- canismos laterais de apoio e articulações ins-
○
○
lho, emprego e empregabilidade nesses seto- titucionais para que melhores possibilidades
○
○
res. No cenário dos setores de pobreza, a no- sejam geradas para a incorporação produtiva
○
ção de emprego perde força e se sujeita ao con- da população de baixa renda. A capacitação
○
○
ceito de trabalho, entendido como as ativida- precisa, também, estar orientada para o forta-
○
○
des produtivas das pessoas na vastidão que as lecimento de atividades econômicas vincula-
○
○
caracteriza e sem limitá-las ao vínculo que elas das ao setor informal, às atividades tradicio-
○
tenham com o mercado formal de trabalho. É nais das pessoas, às características próprias de
○
○
na esfera do cotidiano que residem os conteú- áreas rurais. Sabemos que a capacitação não
○
○
dos relevantes para uma EDJAT. A empre- pode estar desligada dos processos, pois ela
○
gabilidade nos setores de pobreza acaba por está estreitamente vinculada a eles. É impos-
○
○
traduzir-se na possibilidade de acesso aos es- sível separar a capacitação dos espaços nos
○
○
paços do trabalho, na geração de condições quais ela pretende incidir. São eles que defi-
○
○
nizativos e financeiros etc.) que viabilizem o ses para se medir seu impacto.
○
○
vinculadas ao trabalho
○
não é suficiente
○
a capacitação técnica, por si só, não é suficien- soas, satisfazendo necessidades específicas de
○
○
te, não cria empregos, não garante melhores capacitação vinculadas aos problemas enfren-
○
○
condições de vida para a população e não gera tados pelos diversos microempreendimentos,
○
com uma população capacitada, mas desem- de amplos setores da população em regiões de
○
○
pregada, e nem de promover ações cuja finali- pobreza cuja atividade econômica desenvolve-
○
○
dade não vá além da esfera dos registros esta- se predominantemente no terreno da informa-
○
Pouca utilidade têm as ofertas de capaci- sejam começar a produzir laticínios; artesãos
○
○
tação de baixa qualidade, que capacitam fraca- que precisam de apoio técnico e de apoio na
○
○
comercialização de seus produtos; trabalhado- citação-consultoria que apóia projetos a par-
○
○
ras rurais que precisam de apoio financeiro para tir de um enfoque integral. Em outras pala-
○
○
desenvolver pequenos empreendimentos; orga- vras, não se trata de oferecer uma resposta
○
○
nizações sociais que precisam de assessoria téc- imediata a uma necessidade técnica ou eco-
○
nica na gestão de projetos de ecoturismo etc. O nômica de um projeto – uma necessidade
○
○
apoio dado a essas pequenas inserções econô- “sentida” –, que não constitui garantia de que
○
○
micas certamente não impedirá o desemprego, os recursos e apoios canalizados sejam utili-
○
mas poderá gerar espaços de participação so- zados eficazmente, mas de oferecer uma res-
○
○
cial e proporcionar às pessoas caminhos autên- posta com base numa análise-diagnóstico in-
○
○
ticos para o exercício de sua cidadania de uma tegral da atividade econômico-produtiva, que
○
○
forma diferente (Chourin, 1996). leve ao desenvolvimento de um plano de
○
Trata-se, particularmente, de criar estraté- melhorias desenhado para propor soluções
○
○
gias para o desenvolvimento de unidades eco- que desloquem qualquer atividade econômi-
○
○
nômicas a partir dos pequenos esforços que as ca na direção de um projeto de desenvolvi-
○
○
pessoas podem fazer, mas sem limitar-se a eles; ○
mento econômico. A perspectiva integral das
é fundamental transcendê-los. As estratégias de atividades da EDJAT revela claramente a in-
○
○
desenvolvimento. Isso pressupõe a articulação Essa premissa básica – a visão integral dos
○
da EDJAT com os circuitos da economia popu- projetos – tem constituído a grande ausência no
○
○
movimentos cooperativos, com vista ao forta- técnica em áreas de pobreza. Isso tem ocasio-
○
lecimento e à promoção de programas educa- nado uma oferta de programas cujo interesse
○
○
cionais que contemplem projetos produtivos restringe-se aos cursos em si e, em algumas oca-
○
○
(como programas de auto-emprego e de micro- siões, uma oferta até sem interesse na perti-
○
○
As articulações institucionais
○
econômicas
○
dos projetos (créditos, cursos específicos etc.) econômicas e promoverão melhorias nas con-
○
○
se não se parte de um diagnóstico que permi- dições de vida das pessoas. A coordenação com
○
frentados nos diferentes projetos da popula- de comercialização contribui para que os co-
○
○
ção. Nesse sentido, é importante considerar nhecimentos adquiridos pela capacitação le-
○
○
os projetos a partir de sua organização, pro- vem à incorporação produtiva e à geração e de-
○
tes empreendimentos. Em alguns casos, pro- permite que ela seja complementada com ati-
○
oferecer-se-á assessoria contábil a projetos sos são escassos e que a educação de jovens e
○
○
nica, uma EDJAT, torna-se, assim, uma capa- te envolver a participação tanto dos ministé-
○
○
214
SIMPÓSIO 13
Educação de Jovens e Adultos vinculada ao trabalho
○
○
ções da mulher e da juventude, de trabalha- pode ser logrado a partir da inclusão de
○
○
dores rurais e de sindicatos como de empre- temas como saúde, nutrição, estimulação
○
precoce, sexualidade etc., que comple-
○
sários e de instituições de crédito e comer-
○
cialização, visando desenvolver estratégias co- mentam a EDJAT e conferem o caráter edu-
○
cacional que essas intervenções devem ter.
○
ordenadas e extrair aprendizagens de diferen-
○
○
tes experiências.
○
A educação básica nas estratégias 215
○
○
A dimensão educacional das de EDJAT
○
○
estratégias de EDJAT
○
A educação técnica representa apenas um
○
complemento da educação geral. Ela não pode
○
A EDJAT deve ser concebida como uma es-
○
substituir a educação geral e esse não é o seu
○
tratégia de longo prazo que transcenda ativida-
○
des estritamente capacitadoras – inclusive a propósito. Qualquer programa educacional vin-
○
○
incorporação produtiva – e faça com que os pro- culado ao trabalho em setores de pobreza deve
○
incluir a educação geral ou básica como a que
○
gramas se tornem estratégias de formação com
○
permite a abertura de novos horizontes de sen-
○
laços importantes nos âmbitos da formação de
○ tido, que dá acesso a novas noções de alfabeti-
competências básicas, da formação da cidada- ○
○
culada ao Trabalho a dimensão educacional está tanto, deve estar ambientada nos novos cená-
○
○
dam sua natureza puramente técnica e tências pertinentes para os diferentes contex-
○
○
trabalho.
○
ção no âmbito dos direitos humanos, do que é necessário especificar as ações no interi-
○
○
de gênero.
○
processo produtivo, que nos leva a pensar tratégia de territorialidade que, entre outros
○
○
Essa participação é a que garante, de algu- assim, um processo-chave para que as experi-
○
○
to da população que vive em locais de po- alizem as capacidades. Isso gera a necessidade
○
○
c. Na incorporação ao currículo de outras di- EDJAT deve contar com uma gama de opções
○
○
○
○
de segundo grau e desejam capacitar-se num que permitam à população de baixa renda en-
○
○
ofício; desempregados com experiência de tra- frentar sua necessidade de incorporação produ-
○
○
balho que querem continuar sua formação ou tiva a partir de ofertas que correspondam às ne-
○
estão em busca de opções de auto-emprego; cessidades locais e às características do traba-
○
○
adultos desempregados interessados em atua- lho nas diferentes localidades.
○
○
lizar-se; mulheres responsáveis por suas famí-
○
lias que desejam capacitação e apoio para im-
○
Bibliografia
○
pulsionar e desenvolver atividades econômicas;
○
○
pessoas interessadas em certificar estudos para BENNEL, Paul. Learning to change: skills development
○
among the economically vulnerable and socially
○
entrar no mercado formal de trabalho; jovens
○
excluded in developing countries. Employment and
de baixa renda que precisam de opções de
○
Training Papers. Genebra: OIT, 1999.
○
capacitação rápidas que lhes possibilitem uma
○
CHOURIN, Michel. Education et formation. In: HAUTECOEUR,
○
rápida incorporação produtiva; pessoas interes- Jean-Paul (Ed.). Alpha 96: literacy and work. Quebec:
○
○
sadas em opções de ensino médio que ofere- ○
Unesco, 1996.
çam articulação com espaços de trabalho; etc. GARCÍA HUIDOBRO, Juan E. Los cambios en las
○
○
As situações são múltiplas e podem variar mui- concepciones actuales de la educación de adultos. In:
○
de conclusão, que sejam oferecidos com base Incidencia y posibilidades en sectores de pobreza en
○
○
em critérios de integralidade e que as popula- América Latina. In: JACINTO, Claúdia; GALLART, Maria
○
cação técnica.
○
diferentes ofertas de EDJAT de uma maneira Latina y el Caribe . Boletín n. 50. Santiago de Chile:
○
○
de incorporação ao mercado formal de trabalho, tos en América Latina ante el próximo siglo . Santiago
○
○
DIRETRIZES CURRICULARES
NACIONAIS PARA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
EM NÍVEL MÉDIO E SUPERIOR
Edla de Araújo Lira Soares
217
○
Formação de professores em
○
○
○
nível médio na modalidade
○
○
○
Normal: um novo paradigma?
○
○
○
○
Edla de Araújo Lira Soares*
○
○
○
○
○
○
A pretensão de elaborar um projeto de for- O artigo 13, inspirado no parágrafo único do
○
○
mação de docentes que implique a melhoria do artigo 1º da Carta Magna, define as incumbên-
○
cias dos professores, reconhecendo, a partir do
○
atendimento escolar, tem-se constituído, histo-
○
ricamente, uma das principais dimensões do inciso I, a importância da participação de to-
○
○
debate a respeito do processo de construção da ○
○
dos e o compromisso compartilhado, median-
qualidade social da educação brasileira. te um processo coletivo de elaboração da pro-
○
No caso, várias iniciativas, informadas cada posta pedagógica, com a aprendizagem do alu-
○
○
uma delas por um modo de entender a com- no e o atendimento das necessidades educacio-
○
○
a democratização da educação escolar, foram Essa compreensão, como se vê, retira do pro-
○
desencadeadas nos diversos sistemas de ensi- fessor a exclusividade das responsabilidades com
○
○
No âmbito desses esforços, aponta-se como temas de ensino, reconhecendo, desde o início,
○
○
de estudos e aperfeiçoamento que assegure, in- res, competências e conhecimentos a serem con-
○
○
dependente do patamar de ingresso desses pro- siderados pelas gerações que atualizam a traje-
○
fissionais na carreira, o diálogo permanente en- tória da humanidade. Há que registrar, neste
○
○
to e a fecunda reflexão sobre a sua prática. E, as- opções que possam vir a consolidar ou reorientar
○
○
sim sendo, a “postura de investigador”, que toma o projeto civilizatório em curso no país, exercen-
○
como objeto de estudo e reflexão a proposta pe- do sua condição cidadã de protagonista de um
○
○
dagógica da escola e a sala de aula, passa a inte- projeto social mais geral.
○
○
mente, nos artigos 13, 22, 26, 27, 29, 32, 35, 36,
○
lecimento de ensino;
39, 61, 62, 63, 67 e 87 da Lei de Diretrizes e Ba-
○
* Membro do Conselho Nacional de Educação, Presidente do Conselho Estadual de Educação de Pernambuco, Secretária de Educação de
○
○
218
SIMPÓSIO 14
Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores em nível médio e superior
mente dos períodos dedicados ao planeja- O artigo 62, por sua vez, elimina as Licencia-
○
○
mento, à avaliação e ao desenvolvimento turas curtas como possibilidade e nível de for-
○
○
profissional; mação aceitável pelos sistemas de ensino, pre-
○
VI – colaborar com as atividades de articula-
○
vendo que esta aconteça em nível superior, em
○
ção da escola com as famílias e a comunidade. cursos de Licenciatura Plena.
○
○
Contudo, ao admitir, no mesmo dispositivo,
○
É também do mesmo artigo, como se verifi-
○
sem estabelecer nenhuma excepcionalidade, que
○
ca nos demais incisos, a rigorosa vinculação que a modalidade Normal em nível médio é a forma- 219
○
○
a citada lei estabelece entre a liberdade de en- ção mínima exigida para o exercício da docência
○
sinar e o zelo pela aprendizagem do aluno. Ao
○
na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensi-
○
fazê-lo, exige, no nível do plano de trabalho, o
○
no Fundamental, contradiz, nas diposições per-
○
cumprimento dos acordos firmados coletiva- manentes do texto, segundo alguns estudiosos, o
○
○
mente na proposta pedagógica e a colaboração que está disposto no § 4º do artigo 87.
○
dos docentes nas atividades de articulação com
○
Assim, enquanto o artigo 62 da LDBEN dis-
○
a comunidade. Na verdade, o texto legal sinali-
○
põe que a formação de docentes para atuar na
○
za para a importância do entorno que dá signi- Educação básica far-se-á em “nível superior, em
○
○
ficado à autonomia escolar e determina as res- curso de Licenciatura, de graduação plena, em
○
ponsabilidades dos docentes, sem descuidar do ○
○
mação de professores, a concepção de educa- mal”, o mesmo texto, no § 4º do artigo 87, das dis-
○
○
ção declarada no artigo 1º da LDBEN. Seu pro- posições transitórias, determina que até o fim da
○
ção básica, bem como à faixa etária, aos pro- mados por treinamento em serviço”.
○
○
ferência dos programas de formação inicial e Magistério até então vigente por um respeitá-
○
○
continuada o disposto nos artigos 22, 26, 27, vel curso, mesmo que na trajetória de um pro-
○
disposições transitórias.
○
no e outras atividades.
○
Além disso, tal dispositivo reafirma a impor- portância dos níveis mais elevados de formação.
○
○
tância da relação entre teoria e prática e torna Assim, reafirmados os níveis e as perspecti-
○
aprendizagens vivenciadas ao longo da vida e da legislação vigente, cabe analisar quais são as
○
○
○
○
profissional dos docentes, seja no patamar de organização do ensino, mediante a divulgação
○
○
aprendizagem alcançado até então pelos estu- dos Parâmetros Curriculares Nacionais, e o
○
○
dantes, nos diversos sistemas de ensino. Na Conselho Nacional de Educação estabelece Di-
○
verdade, as taxas de reprovação, abandono e retrizes Curriculares Nacionais com caráter
○
○
distorção série/idade continuam preocupantes. mandatório para cada uma das etapas da Edu-
○
○
Acrescidas da manutenção das desigualdades cação básica, bem como para a formação de
○
regionais nos termos do atendimento escolar, professores, convém refletir sobre a organiza-
○
○
terminam por evidenciar, entre outros, os limi- ção curricular dos cursos de formação de do-
○
○
tes das análises e das políticas de valorização centes à luz desse novo paradigma.
○
○
dos profissionais da educação, fixadas apenas Se nos ativermos às Diretrizes para Forma-
○
na problemática da formação. ção de Professores seja em nível médio na mo-
○
○
No contexto desse debate, o artigo 67 da dalidade Normal, seja em nível superior, em
○
○
LDBEN extrapola os limites acima menciona- Licenciatura Plena, observa-se, nesse para-
○
○
dos e aborda a política de valorização dos do- ○
digma, que ambas trazem no seu bojo grandes
centes sob uma nova ótica, ampliando, com desafios. Sua inspiração nos valores que dão
○
○
certeza, o leque de possibilidades de que venha sustentação à convivência social nas socieda-
○
○
a provocar impactos nos sistemas de ensino. des democráticas é traduzida, em primeiro lu-
○
○
Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a va- dade assegurados no conjunto das ações que
○
○
rando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos Além disso, essas diretrizes estabelecem o
○
e dos planos de carreira do magistério público: foco nas competências básicas necessárias ao
○
○
desempenho;
○
nos termos das normas de cada sistema de educativo das instituições de ensino, eliminan-
○
○
Na verdade, o artigo acima mencionado alar- reinventando a sala de aula como espaço
○
uma política de valorização do magistério e, mais dos profissionais da educação. Isto é o que se
○
○
do que uma preocupação que se esgota em pro- pretende, por exemplo, com a definição das
○
○
postas de formação inicial e continuada, inclui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Forma-
○
220
SIMPÓSIO 14
Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores em nível médio e superior
Formação de professores –
○
○
○
o grande desafio
○
○
○
○
Sylvia Figueiredo Gouvêa
○
○
Conselho Nacional de Educação
○
○
○
221
○
○
○
Todas as crianças,
○
• garantiu o aproveitamento das experiên-
○
cias anteriores dos docentes;
○
jovens e adultos têm direito
○
○
• estabeleceu:
à educação escolar
○
○
– a continuidade entre as etapas da Educa-
○
Este é um direito garantido pela Constitui- ção Básica;
○
○
ção Brasileira de 1988, reconhecido pelo gover-
○
– a participação dos docentes na elabora-
○
no como seu dever e exigido pela sociedade
ção da proposta pedagógica da escola e no
○
como um todo. ○
○
seu plano de trabalho;
Num contexto marcado pela redemocra-
○
tas a respeito das formas de aprendizagem, nem – ampliação da atuação dos docentes em di-
○
○
em geral.
○
São novos os desafios dos professores para questões mais urgentes a ser enfrentadas na forma-
○
○
o milênio que inicia. Já não basta o conheci- ção dos docentes são as de romper a segmentação
○
executar projetos para desenvolver os conteú- ciplinar aos conteúdos de formação e ampliar o tra-
○
dos alunos, além de ser capaz de trabalhar em ciais dos alunos que são atendidos na Educação bá-
○
○
equipes multidisciplinares. Um novo perfil de sica. Urge que a formação também se preocupe com
○
Em dezembro de 1996, a nova Lei de Dire- cação, no uso de suas atribuições legais, insti-
○
novo paradigma de formação de professores: duação plena, baseado nos princípios orien-
○
○
○
me, para que a qualidade da relação ensino- ral e profissional, assim como sólidos conheci-
○
○
aprendizagem esteja à altura das expectativas mentos sobre crianças, jovens e adultos.
○
○
do nosso povo e de toda a nação, é preciso que Se esse é o professor de que o Brasil preci-
○
as instituições formadoras de professores cons- sa, urge preparar as novas gerações de docen-
○
○
truam projetos inovadores que garantam os tes e, ao mesmo tempo e com igual empenho,
○
○
conhecimentos da Educação básica, tratem os oferecer meios para aqueles que já estão lecio-
○
conteúdos articulados com suas didáticas es- nando refletirem sobre suas práticas e poderem
○
○
pecíficas e concebam a avaliação como orien- adequá-las às novas exigências do ensino.
○
○
tação de trabalho. Sua meta deve ser a de for- Esse é o nosso maior desafio dos próxi-
○
○
mar profissionais capazes de cuidar do seu pró- mos anos.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 15
ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Telma Weisz
Ana Teberosky
José Rivero
223
Alfabetização no contexto
○
○
○
das políticas públicas
○
○
○
○
○
Telma Weisz
○
○
PROFA/MEC
○
○
○
○
○
No Brasil, recém se descobriu que a repetência A LDB anterior, de 1971, quando eliminou
○
○
reiterada gera um fantástico desperdício de di- a separação entre primário e ginásio, acaban-
○
nheiro público. No entanto, desde que dispomos do com o exame de admissão e tornando obri-
○
○
de estatísticas1 temos a seguinte situação: gatório o ensino até a 8ª série, produziu uma
○
○
política de garantia de
○
acesso – o que foi essen-
Taxa de reprovação ao final da 1ª série do Ensino Fundamental 2 ○
○
1956 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 Ela garantiu a todas as cri-
○
○
56,6% 51% 52% 49% 48% 48% 48% 49% 46% 46% 41% anças a entrada na escola,
○
Esses dados estão e sempre estiveram dis- riam ao fim da escolaridade obrigatória de oito
○
○
poníveis. No entanto, só muito recentemente anos nem que aprenderiam o que precisavam
○
surdo neles expresso e a pensar concretamente O mecanismo pelo qual era possível dar aces-
○
○
em buscar caminhos para mudar essa situação. so sem garantir o sucesso era a crença na repro-
○
○
Considerando que nenhum país do mundo, vação como único dispositivo capaz de garantir
○
mesmo aqueles mais pobres que o Brasil, tem índi- a qualidade da educação. A idéia, muito popular
○
○
ces de fracasso escolar no 1ª ano de escolaridade ainda hoje, como se pode notar quando se lêem
○
○
como os nossos, as questões que se colocam são: os jornais dirigidos à classe média, é que a ame-
○
sivamente por quase cinqüenta anos? alunos a estudar. Que sem ela ninguém vai
○
○
2. Que explicações se construíram para o fe- aprender nada e a qualidade da educação vai fi-
○
○
3. O que se fez – do ponto de vista das políti- com a LDB anterior, dizia-se que, sem o exame
○
cas públicas – para mudar essa situação? de admissão, deixando qualquer um entrar em
○
○
cada vez, se é que isso é possível. Vemos hoje muita gente, inclusive jornalis-
○
○
Para refletir sobre a primeira: “Como foi tas que prestam serviços educacionais à classe
○
quase cinqüenta anos?”, torna-se necessário vilhosa escola pública dos tempos de antanho,
○
○
pensar o funcionamento do sistema escolar bra- esquecidos do fato de que para entrar em um
○
○
sileiro anterior à Lei de Diretrizes e Bases da ginásio público de boa qualidade como, por
○
1
As estatísticas do IBGE são anteriores a 1956, mas os dados parecem mais seguros a partir desse ano.
○
○
2
Não temos estudos que permitam afirmar com segurança, mas o ganho de 11 pontos percentuais que aparece entre 1988 e 1996 poderia ser
○
atribuído à introdução dos ciclos em vários estados. Por exemplo, no estado de São Paulo, a simples introdução do Ciclo Básico, em 1984,
○
○
diminuiu em 10% a retenção, que passou a acontecer apenas ao fim de dois anos.
○
224
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
○
○
candidatos por uma das 120 vagas disponíveis. (cognitivos, psicológicos, perceptivo-motores,
○
○
Da mesma forma que as outras 119 meninas lingüísticos...) e que as crianças que fracassavam
○
○
que, como eu, foram premiadas com uma vaga, o faziam por não dispor dessas habilidades pré-
○
precisei fazer curso de admissão, isto é, um cur- vias. O fato de o déficit se concentrar nas crian-
○
○
so preparatório para o exame, onde se estuda- ças das famílias mais pobres era explicado por
○
○
va durante um ano. Um curso vestibular parti- uma incapacidade das próprias famílias para es-
○
cular, inacessível aos alunos da escola pública. timular suas crianças, tanto cognitiva quanto 225
○
○
Os maravilhosos ginásios públicos de antiga- lingüisticamente. Baterias de exercícios de
○
○
mente, pagos com os impostos de todos, eram estimulação foram criados como remédio para
○
○
freqüentados principalmente pelos alunos de curar o fracasso, como se ele fosse uma doença.
○
maior poder aquisitivo, como eu, que vinham Esta abordagem, que já se anunciava no teste
○
○
das escolas privadas. Exatamente como acon- ABC de Lourenço Filho, teve muita penetração
○
○
tece hoje com as universidades públicas. no Brasil onde, nos anos 1970, foi largamente
○
○
Ainda tentando responder à nossa primeira difundida a idéia de que todas as crianças deve-
○
questão: “Como foi possível aceitar esses índi- riam passar, no início da escolaridade, por esses
○
○
ces passivamente por quase cinqüenta anos?”, exercícios aqui conhecidos como “prontidão (do
○
○
torna-se necessário considerar que os formado- inglês readiness) para a alfabetização”. Uma es-
○
○
res de opinião, que lêem jornais e têm poder de pécie de vacinação em massa. Mas a vacina, in-
○
veram uma visão elitista da educação. Uma vi- Uma outra explicação, esta especificamen-
○
○
Pois via-se como “natural” um ginásio (5ª a 8ª era a explicação nutricional. Segundo essa ex-
○
○
séries) de alto padrão de excelência para os pou- plicação, as crianças não aprendiam porque ti-
○
○
cos, pouquíssimos, capazes de competir por ele nham fome. Portanto era preciso alimentá-las.
○
○
e nenhum ginásio para os outros todos, a abso- No entanto, quando se perguntava diretamen-
○
É apenas dentro dessa falsa meritocracia que provados em massa, a explicação campeã é a
○
○
se pode entender o massacre intelectual de me- que fala em problemas afetivos e familiares e
○
○
tade dos alunos no fim do primeiro ano da esco- na falta de interesse da família pela vida esco-
○
laridade obrigatória. A escola era obrigatória mas lar dos filhos, que se expressaria nas faltas fre-
○
○
isso não significava que era para todos: apenas qüentes e no fato de as famílias não ajudarem
○
○
para os mais capazes. Que por acaso são os mais nas lições. Famílias com baixíssima ou nenhu-
○
○
Agora vamos tentar responder à segunda não ensinar os conteúdos escolares aos filhos.
○
○
questão: “Que explicações se construíram para Em resumo: a culpa seria da família que não
○
○
o fenômeno?” Sem querer esgotar a questão, estimula, não alimenta e não cuida adequadamen-
○
○
podemos classificar essas explicações em dois te dos filhos, nunca da escola. É interessante ob-
○
grupos: as científicas e as do senso comum. servar que no Brasil, em São Paulo pelo menos, as
○
○
muitos e diferentes países. Em especial nos EUA, dos, famílias chefiadas pelas mães) são igualmen-
○
○
onde a questão da igualdade de oportunidades te freqüentes nas classes altas e baixas. Quando se
○
costuma ser levada a sério. Nos anos 1960 essa conversa com orientadores educacionais das es-
○
○
preocupação se acentuou e muito dinheiro foi colas da elite, o que se ouve é uma enxurrada de
○
○
investido em pesquisa para tentar compreender queixas com relação às famílias e aos problemas
○
○
o que havia de errado com as crianças que não emocionais dos alunos. No entanto, os números
○
aprendiam. Buscava-se no aluno a razão de seu do fracasso se concentram nas classes baixas.
○
○
fracasso. Desse período são as teorias que hoje Vamos cuidar agora da nossa terceira ques-
○
○
chamamos “teorias do déficit”. Supunha-se que tão: “O que se fez – do ponto de vista das políti-
○
cas públicas – para mudar essa situação?”. à escola mas também favorecer a progressão den-
○
○
A crença de que o fracasso escolar era fruto tro dela. O esforço de desmontar a armadilha
○
○
da fome, que incapacitava os alunos para a apren- excludente da repetência aparece na LDB como
○
○
dizagem, levou os sucessivos governos a expan- possibilidade. É a progressão continuada dentro de
○
dir continuamente o Programa da Merenda Es- ciclos. É interessante notar que foram os estados
○
○
colar. Travestido de programa educacional, tor- mais desenvolvidos que optaram pela organização
○
○
nou-se um dos maiores programas sociais do país: da escola em ciclos.
○
é a maior cadeia de restaurantes do mundo. Como E com ela recomeça a gritaria sobre a perda
○
○
os pesquisadores da área médica cansaram de da qualidade da escola pública. Revistas e jor-
○
○
avisar, não fez nenhuma diferença nos números nais têm andado cheios de matérias sobre alu-
○
○
do fracasso escolar. Nada contra alimentar as cri- nos analfabetos na 6ª e na 7ª séries. Como é pos-
○
anças brasileiras, mas o fato é que a fome não era sível que alguém passe cinco ou seis anos na
○
○
responsável pelas dificuldades de aprendizagem, escola e não aprenda nem a ler?
○
○
nome que se dava então ao problema. Em recente experiência acompanhando
○
○
Políticas públicas voltadas para o fracasso es- projeto de formação em serviço em um muni-
○
colar e mais especificamente para o fracasso de cípio nordestino3 foi possível analisar um fenô-
○
○
50% dos alunos na alfabetização inicial estão meno de que tínhamos notícia, mas que nunca
○
○
agora dando os primeiros passos. Um dos fato- havia sido empiricamente verificado e, princi-
○
○
res que contribuiu para isso foi a mudança no palmente, nunca tinha sido quantificado: os
○
olhar da sociedade brasileira para a questão da professores têm dificuldade para reconhecer o
○
○
der o papel econômico da educação no desen- não em condições de serem aprovados para a
○
ser levada mais a sério. Também a crescente pre- O que vemos no quadro abaixo é o resulta-
○
○
ocupação com as questões da cidadania, da par- do de uma ação cujo objetivo era ao mesmo
○
○
que a exclusão de grandes contingentes da po- primeira era informar o olhar dos educadores
○
○
pulação volta-se contra essas próprias elites de em formação, utilizando um instrumento que
○
○
duas formas: em primeiro lugar, porque só um permitisse analisar as idéias dos alunos sobre
○
○
grande mercado consumidor permite a econo- o sistema de escrita – e, portanto, avaliar com
○
mia de escala sem a qual as empresas não são razoável precisão se todas as crianças do mu-
○
○
competitivas e, em segundo lugar, o medo. Por nicípio que estavam na escola estariam ou não
○
○
anças na escola. Alunos com escritas Alunos com Alunos com Alunos com
○
pesse o imobilismo e se 1ª série 586 (45%) 276 (22%) 189 (15%) 225 (18%) 1.276 (49%)
○
○
conseguisse, finalmente, 2ª série 30 (4%) 21 (3%) 103 (14%) 578 (79%) 732 (28%)
○
○
aprovar no Congresso
○
3
Projeto desenvolvido no município de Batalha, Alagoas. Alguma informação sobre esse projeto pode ser encontrada no número 129
○
○
226
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
○
É de situações como essa que estamos
○
dificuldade que têm os professores de verificar partindo ao buscar saídas para a cultura da
○
○
o que os alunos já sabem e o que eles não sa- repetência, com a ambição de criar uma edu-
○
○
bem. Se considerarmos os alunos que produ- cação menos exclusora. E nossa falta de cla-
○
zem escritas silábico-alfabéticas e alfabéticas na reza sobre a questão vem, também, de longa
○
○
1ª série, no início do ano – 414 alunos, 33% dos data. Darcy Ribeiro costumava dizer que atri-
○
○
alunos da 1ª série – e que poderiam perfeita- buir nossos extraordinários índices de fracas-
○
mente acompanhar uma 2ª série pois podem ler 227
○
so escolar a uma hipotética incompetência da
○
e escrever, ainda que com precariedade, verifi- escola era uma rematada tolice. Que a nossa
○
○
camos que esses alunos foram retidos porque escola era não só competente como eficiente
○
○
os professores não tiveram condições de avali- pois preparava 50% da população para acei-
○
ar adequadamente e acabaram utilizando indi- tar a exclusão social e atribuí-la à sua própria
○
○
cadores como “letra bonita” ou “caderno bem incapacidade.
○
○
feito” para decidir o destino escolar de seus alu- Na mesma época em que os dados acima
○
○
nos. Quando o professor trabalha com este tipo foram colhidos, começou a ser desenvolvido
○
de indicador, até avanços na aprendizagem aca- um programa do MEC chamado PCN em
○
○
bam prejudicando o aluno. Por exemplo, quan- Ação, que tinha dois objetivos:
○
○
do o aluno aprende a ler, é comum que ele co- 1. Oferecer – principalmente às Secretarias
○
letra por letra e começa a ler e a escrever gran- metodológica para a formação de profes-
○
○
sentido, o que faz com que cometa erros de or- 2. Ajudar a compreender os marcos teóricos
○
sor não tem clara a diferença entre copiar e es- – principalmente para os próprios professo-
○
tores (7%) na 2ª série. Estes alunos foram pro- programa específico de formação de profes-
○
○
movidos porque eram bons copistas e isso pa- sores alfabetizadores, com duração de um
○
Os números da última coluna da tabela aci- momento, sendo desenvolvido em 1.188 mu-
○
○
ma, que não são tão diferentes do que acontece nicípios de 22 estados, atingindo 75.436 pro-
○
28% estão na 2ª série, 17% na 3ª série e apenas fábrica de analfabetos. Um instrumento po-
○
○
○
○
○
de professores nas diferentes
○
○
○
etapas educacionais
○
○
○
○
○
Ana Teberosky
○
Universidade de Barcelona/Espanha
○
○
○
○
○
○
As últimas reformas educacionais propuse- plícito. Contudo, as maiores exigências profissio-
○
ram objetivos como o de lograr melhores resul- nais impostas aos docentes dizem respeito a este
○
○
tados escolares, acomodar as respostas instrucio- segundo tipo de conhecimento: o conhecimen-
○
○
nais à diversidade dos estudantes e fazer com que to prático e a habilidade necessária para desen-
○
os alunos aprendam criativa, produtiva e reflexi- ○
○
volver aprendizagens nos alunos, fazer uma ava-
vamente. Esses objetivos educacionais implicam liação razoável dessas aprendizagens e ser flexí-
○
○
enormes pressões e exigências tanto para os alu- vel para adaptar-se ao desenvolvimento de no-
○
○
nos como para os professores. Exigem professo- vas tecnologias da informação e da comunica-
○
res muito bem formados, com muitas capacida- ção, entre outros aspectos. Na oportunidade des-
○
○
des e habilidades, professores que entendam tan- te seminário, pretendo abordar algumas ques-
○
○
to de aprendizagem como de ensino, que este- tões relacionadas ao ensino da linguagem, levan-
○
○
jam familiarizados com perspectivas interdisci- do em consideração esses dois aspectos da for-
○
plinares e possam criar pontes entre as experiên- mação. Essas questões se referem:
○
○
(Darling-Hammond, 1994: 5). A área de ensino da tos teóricos para adequar a formação dos
○
uma área na qual ocorreram, nos últimos anos, exemplificam adaptações introduzidas no
○
○
Adaptações de conhecimentos
○
lizem e adquiram mais conhecimentos diversifi- necessários para adequar a formação dos pro-
○
○
cados; e a necessidade de desenvolver esse co- fessores à situação atual, vamos abordar o que
○
ca na sala de aula.
○
A formação do professor implica um aspec- dos alunos na aprendizagem e sobre seus pró-
○
○
professor continua isolado e sozinho com um Todos os locutores, como falantes de uma
○
○
batido publicamente e que muitas vezes é im- espontâneo da linguagem, que é diferente do
○
228
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
○
○
pecialista (Reichler-Béguelin, 1993). Um tipo de que podemos atribuir a heterogeneidade na re-
○
○
conhecimento é implícito, o outro, explícito. flexão sobre a linguagem, na representação so-
○
○
Entre um e outro não existe uma dicotomia to- bre as unidades da língua? Existe alguma rela-
○
tal, e sim um contínuo, uma gradação de situa- ção entre a capacidade de reflexão e as práticas
○
○
ções que tomam a linguagem como objeto sem letradas? Esse problema é diferente em grupos
○
○
chegar a uma representação reflexiva totalmen- humanos nos quais a escrita está reservada a
○
te analítica. No meio desse contínuo podemos uma pequena parcela da sociedade? Ele é dife- 229
○
○
situar a linguagem escrita, a linguagem poética rente em países que apresentam um baixo nível
○
○
e determinadas criações que subvertem o uso de alfabetização? (Blanche-Benveniste, 1998).
○
○
cotidiano (como a ironia, as piadas). Entre o conhecimento intuitivo e o reflexivo,
○
Onde situamos a aprendizagem do aluno entre o conhecimento do aluno e o conhecimen-
○
○
nessa gradação? As discussões sobre a aprendi- to do professor e entre os conhecimentos dos
○
○
zagem, por exemplo, da leitura ou do vocabulá- mesmos professores, considerados em suas di-
○
○
rio dividem os autores entre os que defendem ferenças individuais e sociais, está a escrita
○
uma aprendizagem intencional e reflexiva e os (Halliday, 1993; Blanche-Benveniste, 1998). A
○
○
que defendem uma aprendizagem incidental e aprendizagem e o uso da escrita marcam dife-
○
○
implícita. Os primeiros defenderiam o ensino renças claras entre os locutores; por exemplo,
○
○
fônico na leitura inicial e os segundos defende- não se pode estudar (refletir, analisar, ensinar) a
○
riam a linguagem integral. No entanto, muitos linguagem sem a ajuda da escrita. Não se pode
○
○
estudos demonstraram que pouco se aprende fazer uma análise das palavras, dos componen-
○
○
como resultado de uma instrução direta. tes de uma palavra ou de diferentes formas de
○
Onde podemos situar as exigências impos- consciência lingüística sem a ajuda de algum tipo
○
○
o professor seja um locutor intuitivo, com per- O reconhecimento do papel fundamental de-
○
○
cepções intuitivas ou ele deve ser um locutor sempenhado pela escrita na reflexão e análise da
○
reflexivo, analítico e consciente de sua língua? língua provoca uma segunda tensão no ensino da
○
○
Durante muito tempo, acreditou-se que o conhe- linguagem: o que os professores estão ensinando
○
○
cimento intuitivo seria suficiente e que a utili- em suas aulas de linguagem? Durante muito tem-
○
○
zação de um método introspectivo de consulta po, essa tensão foi deixada de lado pela orienta-
○
proporcionaria um acesso objetivo a esse saber ção prescritiva do ensino: ensinava-se o que a
○
○
diferenciar o correto do incorreto, o gramatical muitos autores atualmente acreditam que a re-
○
○
atuais questionam essa idéia: além de não ser su- interfere no seu ensino. Novamente, esses auto-
○
○
ficiente, a intuição do adulto freqüentemente res evidenciaram, por exemplo, que a represen-
○
○
interfere. Interfere na compreensão do processo tação normativa escrita impede que o professor
○
○
de aprendizagem dos alunos. Pesquisas “ouça” o verdadeiro discurso oral do aluno e afe-
○
sociolingüísticas, por sua vez, evidenciaram que ta sua capacidade de “ler” os textos escritos dos
○
○
nem todas as pessoas têm a mesma intuição so- iniciantes ou de “permitir” erros como constru-
○
○
bre a língua, por tratar-se de um conhecimento ções provisórias e o espontâneo como expressão
○
○
que não está homogeneamente distribuído en- do nível real de produção etc. Essa representação
○
tre a população: ele varia de acordo com diver- normativa escrita interfere porque exige que o
○
○
sos fatores contextuais, como a idade, a classe professor assuma uma atitude de correção das
○
○
social, o nível educacional, o gênero, a profissão, produções dos alunos, e não de interpretação
○
○
faz uma consulta ao saber intuitivo para se deci- mostraram que a norma lingüística não é neutra
○
○
dir se algo é correto, gramatical, adequado etc., do ponto de vista social e cultural: alguns gru-
○
pos estão mais próximos que outros da norma mal. De fato, já se reconhece, há muito tempo,
○
○
escolar porque receberam instrução de acordo que o conhecimento lingüístico do professor não
○
○
com essas convenções. reside somente na gramática ou na ortografia
○
○
Portanto, hoje sabemos que o conhecimen- normativa, mas também em suas habilidades
○
to necessário da linguagem para o ensino não pragmáticas de intercâmbio comunicativo, rela-
○
○
pode consistir na intuição do professor e tam- cionadas a sua função de promover a maior par-
○
○
pouco num saber inconsciente da diferença en- ticipação possível dos estudantes em situações
○
tre norma e dados lingüísticos. No entanto, in- de produção e intercâmbio de linguagem. Para
○
○
tuição, reflexão e norma intervêm no ensino alcançar esse objetivo, segundo Fillmore e Snow
○
○
como conhecimentos necessários, ainda que (2000), o professor precisa estruturar sua própria
○
○
distribuídos de outra maneira. Dissemos acima linguagem com clareza e, ao mesmo tempo, en-
○
que as necessidades de formação dos professo- tender o que os alunos dizem.
○
○
res consistiam num conhecimento formal e te- No entanto, sabemos atualmente que esse
○
○
órico e num conhecimento prático e contextual. princípio de intercâmbio comunicativo entre
○
○
No ato de ensinar, esses conhecimentos não são ○
professor e aluno não é suficiente para se alcan-
simples. Na verdade, são bem complexos. O co- çarem os objetivos de ensinar a linguagem. Os
○
○
nhecimento teórico implica um saber sobre um requisitos acadêmicos exigem que se vá além da
○
○
saber: um saber sobre o saber intuitivo e implí- situação comunicativa, porque nem todo regis-
○
○
cito do aluno como sujeito que aprende no pro- tro de linguagem serve para a aprendizagem aca-
○
cesso de apresentarmos a ele o saber da língua, dêmica. Somente o discurso formal e os textos
○
○
como objeto de ensino. No entanto, em seu de- escritos oferecem o vocabulário, as estruturas
○
○
simples processo de transmissão direta, e sim sociam ao registro acadêmico (Fillmore e Snow,
○
○
tanto do professor como do aluno, no qual o uma linguagem oral formal e uma linguagem es-
○
○
professor desempenha um papel de modelo e crita que são diferentes da linguagem cotidiana.
○
desigual no que diz respeito ao conhecimento professores está relacionada à função de avalia-
○
conteúdo (a linguagem oral e escrita) que lhes per- Por exemplo, a afirmação de um professor de
○
mentos que o professor deve possuir e funções que cacional. As decisões pedagógicas relacionadas
○
○
ele deve desempenhar para satisfazer as necessi- à avaliação, como a promoção ou a repetição, a
○
e função comunicativa
○
A mudança nas perspectivas de ensino da lín- capacidade de distinguir diferentes tipos de erros,
○
○
gua pode ser descrita como da normativa ao in- de diferenciar erros e desvios, de separar o conhe-
○
230
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
○
○
socialização A intenção nas relações triangulares pode ter
○
○
diversas formas de expressão. Por exemplo, ela
○
O objetivo do professor é a aprendizagem do
○
pode expressar-se por ações ou por ações e pa-
aluno. Poucas dessas aprendizagens podem ser
○
lavras. Essas formas de expressão têm significa-
○
adquiridas por meio de uma instrução direta; a
○
dos (Feldman, 1999). Ao ter significados, exigem
○
grande maioria ocorre em conseqüência de pro-
○
uma interpretação, porque, para compreender a
○
cessos de reorganização de conhecimentos an- 231
intenção, é preciso que se tenha uma interpre-
○
teriores. Esses processos são individuais, mas
○
tação de seus significados. Isso se aplica tanto à
○
também sociais.
○
intenção simples de uma ação individual como
○
Por exemplo, a aprendizagem inicial da lei-
○
a um complexo conjunto de intenções sociais.
tura e da escrita pode ser vista como uma ini-
○
A intencionalidade não pode estar desvin-
○
ciação num código por instrução direta ou
○
culada da interpretação (Feldman, 1999: 312),
○
pode ser orientada como a aprendizagem de
○
mas a aprendizagem da interpretação é um
○
comportamentos letrados, na qual não existe
○
exercício psicológico complexo, que implica a
uma delimitação clara entre pré-leitor e leitor,
○
capacidade de entender a vida interna de ou-
○
entre pré-escritor e escritor, e na qual também
○
tra pessoa, a partir da expressão verbal ou da
não há um início, um ponto zero. A separação ○
○
sua ocorrência.
○
namos anteriormente implica uma capacidade se conhecimentos quando lhe atribuímos erro
○
○
própria dos seres humanos: a capacidade de ou ignorância. Olson e Kamawar (1999: 157)
○
tríade de interação com outro ser humano, a a criança está numa posição intencional dife-
○
○
partir de um objeto. Davidson (1985, apud rente da do adulto, mas o adulto decide atuar
○
○
Olson e Kamawar, 1999: 160) chama essa capa- como se estivessem na mesma posição, como
○
de uma capacidade que exige duas perspecti- intenções. Por exemplo, a mãe que fala com
○
○
vas e um objeto, ou seja, duas criaturas que cri- seu bebê como se ele pudesse entender tudo
○
○
am um conhecimento comum sobre uma reali- que ela diz. No segundo caso, a criança já de-
○
de qualquer ação casual, uma ação com fins ções, embora possa equivocar-se no conteú-
○
○
pedagógicos entre duas pessoas, com duas pers- do. Quando percebe o erro, ela pode sofrer uma
○
decepção ou reconhecer seu erro; em ambos contextos escolares. Apoiados em ambos, os
○
○
os casos, ela é capaz de saber que sabe, ou seja, programas de intervenção com adaptação de
○
○
ela é capaz de uma metarrepresentação ou de objetivos e atividades aos diferentes níveis
○
○
uma representação sobre a representação (um evolutivos começaram a oferecer respostas e
○
conhecimento sobre o conhecimento). Por resultados alentadores (Snow, 1998). Mais que
○
○
exemplo, quando as crianças dizem “achei que dar suporte exclusivo a um processo singular,
○
○
se escrevia com ‘s’, mas depois vi que era com esses programas pretendem considerar o con-
○
‘c’”. É o “dar-se conta” de sua própria crença. junto dos processos de aprendizagem simulta-
○
○
O adulto aproveita essa capacidade para influ- neamente. Nesse sentido, as propostas de in-
○
○
enciar as crenças, sentimentos e conhecimen- tervenção (que procuram integrar diferentes as-
○
○
tos das crianças. Portanto, o ato de ensinar é pectos) constituem um bom ponto de partida
○
um ato psicológico. em relação às propostas instrucionais do pas-
○
○
A distinção entre o conhecimento intuitivo sado, que enfatizavam exclusivamente um com-
○
○
do usuário da linguagem, a intervenção do pro- ponente, como, por exemplo, o ensino da
○
○
fessor para ampliar os contextos de uso no sen- ○
decodificação de forma explícita e exclusiva.
tido de que inclua não só a linguagem cotidia- Esses projetos geralmente são experimentais e
○
○
na, mas também a linguagem oral formal e a lin- implicam a formação de professores(as) e a as-
○
○
tinção feita por M. Halliday (1982) entre três tânea de todos os componentes, podemos pen-
○
○
fases do desenvolvimento da linguagem e dos sar nas competências dos alunos e dos profes-
○
○
propósitos educacionais relacionados: aprender sores como usuários da linguagem: sua capaci-
○
a linguagem (conhecimento intuitivo), apren- dade de ouvir, falar, ler e escrever e os conteú-
○
○
der por meio da linguagem (linguagem oral for- dos sobre o que se ouve, fala, lê ou escreve. Uma
○
○
mal e escrita) e aprender sobre a linguagem das funções do professor é criar contextos nos
○
○
educacionais na prática
○
(Richmond, 1990).
○
○
da consideração simultânea.
cológicos, e não tanto no estudo de uma téc-
○
○
Na pré-escola
○
crita, bem como de experiências de ensino nos tervenção sejam díspares, muitos deles promo-
○
232
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
vem essa abordagem integral com atividades lido, juntamente com leituras e releituras
○
○
como: a) leituras em voz alta de narrativas e repetidas de forma independente por par-
○
○
comentários orais sobre essas leituras; b) es- te da criança;
○
○
crita de palavras de um vocabulário estabele- • escrita de palavras, pequenos enunciados
○
cido como vocabulário-chave extraído dessas e textos, após a leitura;
○
○
leituras; c) identificação dessas palavras e co-
○
• reconhecimento de palavras;
○
mentários sobre a relação letra/som em algu-
○
• jogos de palavras e reconhecimento de re- 233
mas palavras aprendidas. Alguns estudos in-
○
lações entre letras e sons.
○
cluem também: d) atividades de consciência
○
○
metalingüística de forma indireta, com tarefas
○
No primeiro grau
○
como a recitação oral de poemas, rimas e
○
aliteração e atividades diretas como o “canti-
○
Seguindo a linha da pré-escola, as propostas
○
nho da escrita”; e e) reescrita das narrações li- para o primeiro grau incluem leituras de livros
○
○
das. Outros estudos enfatizam aspectos soci- familiares e não-familiares, escrita de palavras e
○
○
ais, como, por exemplo, as relações com a fa- textos, instrução sobre a relação letra/som e re-
○
mília e o empréstimo de livros nos fins de se-
○
conhecimento de palavras. A seleção de livros e
○
mana, bem como a releitura desses livros na a utilização de diversos textos, e não de um úni-
○
○
nomes das letras, desenvolvimento da cons- nação das letras, o desenvolvimento de estra-
○
○
ta de palavras.
○
to de estratégias de compreensão.
○
No segundo grau
○
○
○
LER
○
L E R E E S C R E V E R S O B R E O FA L A D O
○
○
○
○
○
em oposição à pedagogia do texto único; e de pacidade de compreender e representar pro-
○
○
estabelecer uma maior relação entre alfabeti- blemas científicos em termos lingüísticos e de
○
○
zação, literatura e outras áreas do currículo, em recursos gráficos escritos na forma de textos,
○
oposição à pedagogia baseada no ensino direto tabelas ou diagramas.
○
○
de habilidades específicas. A inclusão de textos Como podemos alcançar esses objetivos da
○
○
literários nos currículos de leitura e escrita foi “alfabetização científica”? Para alcançá-los,
○
favorecida pela disponibilidade de literatura os(as) professores(as) precisam estar bem in-
○
○
infantil de qualidade, pela difusão de movimen- formados sobre o desenvolvimento dos conhe-
○
○
tos pedagógicos do tipo “linguagem integral” e cimentos científicos da criança e sobre sua re-
○
○
pela importância da resposta do leitor, propos- lação com a linguagem e a escrita.
○
ta pela teoria da leitura participativa (Morrow e Precisam saber, por exemplo, que entre os
○
○
Gambrell, 2000). Esse movimento aponta para cinco e seis anos de idade os meninos e as me-
○
○
resultados promissores, como observado em ninas estão em pleno processo de descobri-
○
○
diferentes pesquisas. Esses resultados indicam ○
mento e exploração do mundo. Os objetos e
que o interesse das crianças aumentou, que os espaços, o mundo dos seres vivos, os fenô-
○
○
suas atitudes mudaram e que elas apresenta- menos da natureza e os outros seres huma-
○
○
ram desenvolvimentos importantes em relação nos atraem sua atenção e interesse. Do ponto
○
○
Essa mudança exige uma melhor forma- menino ou a menina percebe, por exemplo,
○
○
ção dos(as) professores(as) em relação à li- que os seres vivos se diferenciam dos objetos
○
teratura infantil, à sua capacidade de selecio- inertes por sua capacidade de (auto) movi-
○
○
nar livros adequados (diferentemente do tex- mento, que as plantas têm capacidade de
○
○
to único previamente selecionado pelo Mi- crescimento e que os seres humanos se dife-
○
○
nistério da Educação e pelas editoras), ao renciam dos objetos inertes e das plantas pe-
○
tipo de materiais, ao ambiente na sala de las intenções que colocam em seus movimen-
○
○
aula e às relações sociais com as crianças e tos e ações ( Wellman e Gelman, 1998). As cri-
○
○
Propostas para a relação entre esses conceitos sobre explicações causais (por
○
○
relação entre a alfabetização e a Ciência. Além para entender o mundo, as crianças desenvol-
○
○
nios fechados e separados no contexto da ati- lizações do mundo num conhecimento que
○
○
crita são instrumentos básicos para a apren- ção de interação entre crianças, Josep, de cin-
○
○
nhecimento científico.
○
tífica” (por exemplo, o Project 2061) como um como conhecimento declarativo, porque indi-
○
○
meio de se alcançarem objetivos letrados na ca que Josep “sabe” o que o letreiro contém e
○
sua função.
○
234
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
○
○
demonstram conhecimento sobre como fazer sistiu em recomendar aos professores que
○
○
alguma coisa ao desenvolverem uma série de encarassem a Ciência como ela é vista no
○
○
ações relacionadas. Por exemplo, o mesmo me- contexto do próprio método científico. A re-
○
nino Josep abre um livro, gira-o de modo a comendação é que eles deveriam “fazer ci-
○
○
colocá-lo na posição correta para a leitura, co- ência” imitando o método científico, mais
○
○
meça a lê-lo pela página da esquerda e depois que ensinar ou aprender fatos, princípios ou
○
passa para a página da direita; em ambos os leis. Nessa segunda perspectiva, enfati - 235
○
○
casos, orienta seu olhar de cima para baixo e zavam-se os aspectos mais ativos da apren-
○
○
da esquerda para a direita. Essa série de ações dizagem, mas ainda assim a alfabetização
○
○
indica que o menino tem um conhecimento científica era difícil. Um exemplo consistia
○
procedimental, que ele “sabe como” se deve ler em encarar o contato com a Ciência como
○
○
um livro, que tem informação sobre a rotina um processo prático que oferecia ao menino
○
○
da leitura de livros. e à menina oportunidades para observar, ex-
○
○
Além disso, Josep tem objetivos comuni- perimentar e manipular as coisas do mundo,
○
cativos com seu colega. Por exemplo, ele o começando pelo ambiente mais próximo,
○
○
corrige quando está escrevendo um texto: sem afastar-se demasiadamente do saber in-
○
○
“Não é assim que se escreve B. Olha como se tuitivo e usando “as próprias palavras” dos
○
○
faz (pega o lápis e escreve B)”. Apresenta, tam- alunos (Halliday e Martin, 1993). Uma das
○
bém, comportamentos de controle sobre seu conseqüências dessa segunda perspectiva foi
○
○
afirma: “Droga! Errei. Queria colocar ‘elefan- que adiava qualquer contato com textos ci-
○
te’ e coloquei… Não sei, errei”. Comentários entíficos para um momento posterior do pro-
○
○
co, indicam saber sobre como algo deve ser ou Essas duas perspectivas passaram ao lar-
○
○
sobre como se deve fazer algo para se chegar go do que hoje é conhecido como “alfabeti-
○
a um fim. Como vimos anteriormente, trata- zação científica”, que faz referência ao fato
○
○
que revela consciência de objetivos e compre- A representação que se tinha da Ciência es-
○
○
ensão do que se deve fazer para alcançá-los. tava associada ao laboratório, ao uso de apa-
○
autocorreção, a correção de coisas que outros Muito raramente ela era associada à lingua-
○
○
estão fazendo, são expressões desse tipo de gem ou à escrita. No entanto, os instrumen-
○
○
Ciência, implicam esses três tipos de conhe- mos técnicos e os textos explicativos. Para
○
○
tos científicos.
○
○
○
o expositivo, com termos técnicos e um tipo to: “A haste do ramo foi cortada e colocada em
○
○
especial de gramática. Por exemplo, para água e depois inserida num tubo de cristal fe-
○
○
compreender termos técnicos, precisamos in- chado numa de suas extremidades. A outra ex-
○
troduzir sua definição. tremidade foi conectada a um outro tubo de
○
○
As definições implicam enunciados borracha flexível onde se colocou água”.
○
○
relacionais que geralmente condensam mui- A característica mais importante do rela-
○
tas informações. A função das definições é to de um experimento consiste no uso de ver-
○
○
trasladar o conhecimento de sentido comum bos na voz passiva, em vez do modo impera-
○
○
ao conhecimento científico por meio dessa tivo próprio da linguagem que acompanha ou
○
○
condensação. Por exemplo, em vez de expli- organiza a ação. Ao passar a ser um texto es-
○
carmos que “a fêmea do canguru não tem pla- crito, a atividade desenvolvida na realização
○
○
centa e sim uma bolsa externa no ventre onde do experimento, que exigia imperativos (cor-
○
○
ocorre o desenvolvimento embrionário de tar, colocar, inserir, fechar, conectar, colocar),
○
○
suas crias”; essa explicação é compactada na ○
passou a ser um relato do que se fez. Trata-se,
expressão “o canguru é um mamífero marsu- assim, de uma modificação que dá lugar a um
○
○
definições é ampla e complexa: usa-se um ter- Os alunos mais novos entram em contato
○
○
mo técnico para definir outro termo técnico. com domínios pouco familiares quando co-
○
Assim, para sabermos o que um “canguru” é, meçam a estudar a partir de textos. Inicial-
○
○
precisamos saber o significado das palavras mente, possuem pouco conhecimento sobre
○
○
Além de definições, os textos científicos texto; além disso, esse pouco conhecimento
○
○
utilizam diagramas, que servem para tornar é fragmentado e superficial. Em grande par-
○
○
uma classificação visível, como os diagramas te, seu esforço é canalizado no sentido de
○
○
da taxonomia dos seres vivos, que indicam re- construir uma base de conhecimento
○
de duas colunas, que tornam visível uma cor- seqüentemente, eles têm dificuldade para
○
○
Usam, também, desenhos para mostrar rela- informação irrelevante, ou o grau de impor-
○
ções entre partes e o todo. Esses diagramas, tância de diferentes conceitos. O pouco co-
○
○
tabelas ou desenhos são acompanhados por nhecimento que têm costuma também gerar
○
○
textos explicativos. Ser capaz de ir do diagra- pouco interesse pelo que lêem. Um terceiro
○
○
cos que abordam, suas características são dife- Os livros têm uma ordem racional (têm di-
○
○
renciadas. Ser capaz de ler e escrever diferen- visões) e sua apresentação varia de acordo
○
○
tes tipos de textos relacionados aos diferentes com seu tipo (ou gênero) para cada campo de
○
○
campos científicos é um aspecto fundamental conhecimento. Além disso, têm outros ele-
○
pesquisas, artigos científicos, relatos de expe- citações, que indicam registros textuais visi-
○
○
rimentos, cada um dos quais com suas particu- velmente distintos. A função desses elemen-
○
○
laridades “gramaticais”. De todos os tipos de tos gráficos é validar as informações que apre-
○
experimentos é o mais adequado para se traba- O problema dos leitores mais novos é que
○
○
lhar com crianças em idade escolar. eles têm pouco conhecimento do conteúdo e
○
236
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
○
FERREIRO, E.; PONTECORVO, C.; RIBEIRO MOREIRA,
○
neros e das referências; por essa razão, preci- N.; GARCÍA HIDALGO, I. Caperucita Roja aprende a
○
○
escribir . Barcelona: Gedisa, 1996.
sam de uma assistência maior (do professor e
○
FILLMORE, L. W.; SNOW, C. What teachers need to know
○
do texto) para poderem construir uma repre-
○
about language. In: <www.cal.org./ericcll/teachers.pdf>.
sentação das informações que leram.
○
HIEBERT, E. The national literacy strategy from an
○
international perspective”. Journal of Research in
○
○
Conclusão Reading , n. 23, p. 308-13, 2000.
○
HIEBERT, E.; TAYLOR, B. Beginning reading instruction: 237
○
○
Os requisitos culturais, educacionais e so- research on ear ly inter ventions. In: KAMIL, M.;
○
MOSENTAHL, P.; PEARSON, P.; BARR, R. Handbook
○
ciais impostos à escola são cada vez maiores,
○
of reading research. Mahwah, N.J.: Lawrence Erlbaum,
a população escolar apresenta uma diversida-
○
2000. v. 3.
○
de crescente e as autoridades educacionais
○
HALLIDAY, M. A. K. La lengua y el orden natural. In:
○
continuamente sugerem reformas que pres- CULLER, J.; DERRIDA, J.; FISCH, S.; JAMESON, F.
○
○
sionam os professores no sentido de dar uma (VVAA). A lingüística da escrita. Madrid: Visor, 1989.
○
instrução adequada aos alunos. Para que pos- p. 145-64. [Versão original em inglês, 1987].
○
○
sam oferecer essa instrução adequada, os pro- HALLIDAY, M. A. K.; MARTIN, J. R. Writings science.
○
Literacy and discursive power. Pittsburg: Pittsburg
○
fessores precisam ter uma formação sempre
○
○ University Press, 1993.
atualizada e constante. Nesta apresentação,
○
development schools: early lessons, chalenge, and RICHMOND, J. What do we mean by knowledge about
○
DURANTI, A. Antropología lingüística. Madrid: Cambridge llegir i a escriure. Barcelona: Vicens Vives, 2001.
○
○
University Press, 2000 [Versão original em inglês, 1997]. WELLMAN, H.; GELMAN, S. A. Knowledge acquisition in
○
FELDMAN, C. F. Intentionality and inter pretation. In: foundational domains. In: DAMON, W. (Ed. in Chief);
○
○
ZELAZO, P.; ASTINGTON, J.; OLSON, D. (Ed.). KUHN, D.; SIEGLER, R. S.(Volume Eds.). Child
○
Developing theories of intention. Mahwah, N. J.: Psychology: cognition, perception and language. New
○
○
Lawrence Erlbaum, 1999. p. 317-28. York: John Willey & Sons, 1998. p. 523-73.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
As diferentes faces
○
○
○
do analfabetismo
○
○
○
○
José Rivero*
○
○
Unesco/Peru
○
○
○
○
○
O analfabetismo é a expressão máxima da evasão. As concepções tradicionais e a aplica-
○
vulnerabilidade educacional. O problema do ção insuficiente de diversos métodos utiliza-
○
○
analfabetismo reside na desigualdade. A desi- dos na didática da leitura-escrita não possibi-
○
○
gualdade no acesso ao conhecimento está vin- litaram a muitos estudantes o desenvolvimen-
○
culada à desigualdade no acesso ao bem-es-
○
to de leitura e escrita adequadas.
○
tar. Observa-se, nos mapas, uma estreita coin- O fenômeno do analfabetismo “funcional”
○
○
cidência entre a localização das populações ○
○
é um dos principais resultados dessa situação
mais pobres e a das populações analfabetas e acumulada. É produto tanto de insuficiências
○
à realidade socioeconômica e ao grau de de- ção para adultos que, ao não contemplarem
○
○
cacionais e aos problemas étnico-culturais não que em algum momento aprenderam a ler,
○
○
A concepção tradicional que definia as po- tura, perderam a leitura e a escrita como ar-
○
○
pulações analfabetas em função da ausência da mas fundamentais para transformar suas con-
○
○
práticas orais na região. Essa oralidade, além O alfabetismo tem sido, por sua vez, fre-
○
ágrafas – com seus modos concretos de criar, no fundamental”, por constituir um bem ines-
○
○
tos –, também está presente em pessoas de co- como um todo. Um melhor nível de alfabeti-
○
munidades rurais e urbanas que permanece- zação representa um dos principais indicado-
○
○
ram vários anos no sistema educacional e apre- res do estado de desenvolvimento humano de
○
○
sentam sérias dificuldades para utilizar códi- um país. No entanto, para influir na melhora
○
○
No entanto, o analfabetismo também está tização precisa caminhar lado a lado com os
○
○
acesso à escola e sua problemática tem vin- Valorizando-se cada vez mais as expressões
○
○
culação com a baixa qualidade do ensino es- culturais orais e admitindo-se a existência de
○
colar e com os fenômenos da repetência e da novos códigos de comunicação que podem ser
○
○
○
○
○
1
Luis Oscar Londoño (1990) apresenta uma concepção atualizada do analfabetismo funcional: “O analfabetismo funcional deve ser entendido
○
○
a partir de duas perspectivas. Em primeiro lugar, a partir da modernização e ‘tecnologização’ da sociedade, que exigem o domínio mais
○
completo possível das habilidades, das atitudes, do gosto pela leitura, pela escrita e pela Matemática e, acima de tudo, o desenvolvimento de
○
processos de pensamento associados à sua aprendizagem: a lógica, a gramática, a argumentação, o diálogo, a crítica, o método. Em
○
segundo lugar, dado o caráter excludente e de discriminação do modelo vigente em quase todos os países da América Latina, precisamos
○
○
entender o analfabetismo funcional a partir de uma perspectiva de transformação, de busca de modelos alternativos de economia, de cultura,
○
de educação e de sociedade”.
○
238
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
mais amplamente usados por pessoas que não Duas situações merecem uma análise mais
○
○
possuem códigos escritos, os conceitos de “al- detalhada:
○
○
fabetização”, “alfabetismo” e “analfabetismo” • Esses dados foram extraídos de censos na-
○
cionais de países nos quais basta que uma
○
começam a ser relativizados. É mais adequado
○
falar em “alfabetismos” e “analfabetismos” para pessoa responda que sabe ler e escrever
○
○
expressar as diferentes formas de expressão e para ser registrada como alfabetizada.
○
Além disso, não se sabe que qualidade de
○
os distintos níveis que exigem, bem como a
○
multiplicidade de sentidos que podem adqui- alfabetização ou que nível da capacidade 239
○
○
de ler e escrever é registrado. Por isso, os
rir em diferentes culturas. Seguindo essa linha
○
níveis de analfabetismo podem ser mais
○
de raciocínio, todos somos, de alguma manei-
○
significativos e preocupantes que os indi-
○
ra, “analfabetos” em relação a alguns tipos de
cados nos dados estatísticos oficiais.
○
informação e de conhecimento. O desenvolvi-
○
○
mento tecnológico e a expansão ilimitada da • O problema do analfabetismo caracteriza-
○
do como “funcional” não é registrado ape-
○
informação disponível ou o uso generalizado de
○
nas em países com taxas mais altas de anal-
○
meios eletrônicos, como computadores, acres-
fabetismo absoluto, mas também nos que
○
centam novas matizes à idéia do alfabetismo.
○
registram taxas elevadas de escolarização
○
○
○
(na Argentina, no Chile, na Costa Rica e no
O analfabetismo em números Uruguai, a proporção de adultos com es-
○
○
faixa de 40%).
○
superar preconceitos
○
quinze anos; em 1980, esse número era de 44 Em que pesem os avanços registrados no
○
milhões de pessoas analfabetas (Unesco, 1995). reconhecimento e na análise desses fatores, são
○
○
Nicarágua ainda não chegam a ter uma taxa de não está centrado exclusivamente nas pessoas
○
○
70% de alfabetização. O Brasil, embora apre- adultas e exige políticas públicas concretas.
○
○
tos, situados, principalmente, em áreas caren- firo-me à clara tendência, observada em nú-
○
○
países como Bolívia, Equador, Peru, México e ções centrais do setor público educacional e
○
os seguintes países entrarão no século 21 com para ação. Essa atitude pode ser observada,
○
ca Dominicana (16%), Honduras (24,4%), El Sal- As razões apresentadas para sustentar es-
○
○
vador (25,9%), Nicarágua (32,8%), Guatemala sas decisões são a considerável ampliação da
○
○
○
tos absolutos corresponde a uma população em cia social e cidadã. O jovem e o adulto bem al-
○
○
faixa etária acima dos 35 anos, com idades que fabetizados terão, como indicado acima, maior
○
○
dificultam processos de aprendizagem, e o ar- possibilidade de optar por um posto de traba-
○
gumento de que o desenvolvimento dos países lho, de melhorar sua qualificação como produ-
○
○
deve estar assentado nos setores mais moder- tores, de participar ativamente na solução de
○
○
nos da sociedade. Sem declarar explicitamen- problemas sociais e de exercer seu direito à par-
○
te, estão aplicando a teoria do “custo-benefício” ticipação política.
○
○
exigida pelo mercado e sugerindo que esse pro- Por último, uma importante razão coloca-
○
○
blema pode ser resolvido pela simples amplia- da por Jacques Hallak: os especialistas e
○
○
ção da matrícula escolar. planejadores freqüentemente ignoram que
○
Os que assumem essa postura esquecem-se quanto maior a proporção de adultos alfabeti-
○
○
de vários elementos importantes. zados, mais fácil será ampliar a educação pri-
○
○
Em primeiro lugar, esquecem-se de que o mária, e vice-versa. “Em termos puramente
○
○
problema do analfabetismo tem raízes estrutu- ○
econômicos, é provavelmente menos dispen-
rais e históricas e envolve relações complexas – dioso, em termos de tempo e recursos, com-
○
○
pliação educacional, o volume total de analfa- Não se pode, portanto, reduzir o problema
○
○
betos se manteve, nos últimos 20 anos, no pa- do analfabetismo a índices, variáveis e proje-
○
tamar de cerca de 43 milhões de pessoas e de ções estatísticas ou abordá-lo com base em cri-
○
○
que – como efeito da crescente pobreza e misé- térios estritamente econômicos ou “de eficácia”.
○
○
ria na região – essa cifra tende a manter-se nos Precisamos reconhecer que ele constitui uma
○
○
mesmos níveis e até a crescer na ausência de parte importante da dívida social interna que
○
uma ação decidida e integral que abranja tam- nossas sociedades têm obrigação de conside-
○
○
que o analfabetismo de adultos repercute dire- também, definir claramente as idéias vigentes
○
tamente na baixa escolaridade, num menor ren- sobre o analfabetismo e a alfabetização e, fun-
○
○
anças em situação de pobreza exigem espaços e estratégia que têm caracterizado a abordagem
○
○
O alfabetismo funcional:
○
resultados de
○
tização e educação básica de jovens e adultos nos últimos anos. Várias recomendações de
○
○
mico e cívico, e não como um problema de es- Na Declaração Presidencial da Reunião de Cú-
○
○
cassez de recursos, pois, em que pese a moder- pula das Américas II, o problema do analfabe-
○
nização registrada nas sociedades latino-ame- tismo foi reduzido ao nível funcional. No en-
○
○
ricanas ou em grande parte delas, o domínio da tanto, além da plena vigência, assinalada na
○
○
leitura e da escrita continua sendo um fator in- declaração, do analfabetismo absoluto, que
○
240
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
contradiz o otimismo dos mandatários, a au- ciadas aos níveis de alfabetismo foram a esco-
○
○
sência de estudos sobre as características do laridade e o posicionamento no trabalho.
○
○
chamado analfabetismo “funcional” dificulta A escolaridade determina fortemente os ní-
○
○
sua abordagem. veis e afeta significativamente os resultados em
○
A Unesco desenvolveu uma primeira pes- todos os domínios. Nos sete países, os que ti-
○
○
quisa regional sobre alfabetismo funcional nham seis ou sete anos de escolaridade ainda
○
○
em sete países da região. 2 O objetivo da pes- se situam, numa proporção de 50% ou mais, no
○
quisa foi dimensionar e analisar esse fenô- primeiro e no segundo níveis. 241
○
○
meno por meio de abordagens quantitativas Isso significa que, para uma pessoa se situ-
○
○
e q u a l i t a t i vas, e s t a b e l e c e n d o, e m b a s e s ar no terceiro nível – com algum domínio do
○
○
empíricas, um perfil da população quanto a alfabetismo –, ela deveria ter cerca de oito anos
○
suas habilidades de leitura e relacionando de escolarização e mais anos ainda em alguns
○
○
essas habilidades com determinadas compe- países da amostra. Quanto ao quarto nível de
○
○
tências sociais e profissionais supostamente competência em todos os domínios, que
○
○
exigidas nos centros urbanos onde foi desen- corresponde a uma inserção alta no trabalho,
○
volvida. O estudo aplicou instrumentos que verificou-se que, na maioria dos países, as pes-
○
○
envolveram os campos da economia, da pro- soas precisavam ter onze, doze ou mais anos de
○
○
se alcançarem os domínios que possibilitem pesquisa foi a constatação efetiva de que po-
○
○
mente, avaliar níveis de desempenho nas habi- sa, dos documentos e da Matemática. Isso é
○
○
lidades relacionadas a diferentes domínios.3 projetado para toda a população adulta. Por
○
○
embora os itens do teste preliminar fossem con- ca entre pessoas alfabetizadas e analfabetas
○
○
percentual flutuante de 39% (no caso do Méxi- todos nós temos algum grau de alfabetismo,
○
○
co) a 72,3% (no caso da Argentina)4 da popula- segundo nosso grau de escolaridade, a qua-
○
ção pesquisada conseguiu apresentar respostas lidade de nossas aprendizagens e o uso que
○
○
2
A pesquisa foi coordenada pela pesquisadora Isabel Infante e abrangeu os seguintes sete países: Argentina, Brasil (Estado de São Paulo),
○
Colômbia, Chile, México, Paraguai e Venezuela. As amostras selecionadas, em número não inferior a mil pessoas, foram representativas da
○
população adulta de zonas urbanas na faixa etária de 15 a 54 anos (no Paraguai, a pesquisa limitou-se à faixa etária dos 15 aos 34 anos).
○
○
3
O instrumento de leitura/escrita procurou medir algumas das habilidades que as pessoas adultas devem ter para lidar com textos escritos em
○
diferentes formatos, com diferente organização e diferentes graus de complexidade lingüística. Eles consistiram em textos curtos sobre
○
○
sinais de um ataque de coração, notícias de jornais sobre indígenas e o meio ambiente e anúncios em jornais para diferentes empregos em
○
restaurantes. Na área da Matemática, a pesquisa incluiu operações de numeração, adição, subtração, multiplicação, proporções, adição e
○
divisão seqüenciada (cálculo de médias), quadro de distâncias aproximadas em quilômetros, leitura de textos esquemáticos, como tabelas
○
gráficas e níveis de habilidades na compreensão de textos com informações numéricas (depósitos bancários, ingredientes para receitas
○
○
culinárias).
○
○
4
No Brasil, 67% da amostra conseguiram apresentar respostas corretas para os itens exigidos. No Chile, 70%; na Colômbia, 55%; na Venezuela,
○
5
Em seu relatório preliminar sobre a pesquisa, Isabel Infante assinala as seguintes possíveis explicações para esses fracos resultados:
○
– os que responderam não tinham familiaridade com provas escritas ou fazia muito tempo que não se submetiam a uma prova;
○
– as pessoas deviam seguir instruções, e essa “talvez seja a primeira das habilidades exigidas”;
○
○
○
○
dida campanha nacional cubana mobilizou ou-
○
que incluam estratégias
○
tros intentos nacionais e não levou em consi-
○
integrais de alfabetização
○
deração a impossibilidade de “modelos”
○
replicáveis sem contextos originários seme-
○
A alfabetização dos mais pobres continuará
○
lhantes. Vários esforços de alfabetização con-
○
sendo uma tarefa prioritária. O analfabetismo
○
seguiram mobilizar vontades e criar condições
○
não constitui apenas expressão da pobreza, mas
para maior conscientização das desigualdades
○
também impedimento para a sua superação e
○
nacionais e a necessidade de maior integração
○
para o acompanhamento e estímulo da própria
○
nacional. A prioridade de alfabetização na re-
○
educação dos filhos. Além disso, apesar da alen-
○
gião está orientada para a necessidade de ações
○
tadora queda nos índices de analfabetismo ab-
localizadas no Nordeste do Brasil, em países
○
soluto, os efeitos da crescente pobreza na re-
○
como Haiti, Honduras, Guatemala, Nicarágua,
○
gião serão decisivos para o aumento desses ín-
○
República Dominicana e El Salvador e também
○
dices em determinadas áreas das populações ○
○
nas populações indígenas femininas da Bolívia,
nacionais.
do Equador, do Peru e do México.
○
to que possibilite a leitura e a escrita. Precisa- Nas sociedades onde coexistem a oralidade
○
seja vista como um processo mais longo e com- e uma “oralidade secundária” alentada pelo rá-
○
○
plexo, que envolve a aprendizagem de diferen- dio, pelo cinema, pela televisão, pelo vídeo e
○
○
tes níveis de domínio da linguagem escrita e pelo computador, não se pode limitar a alfa-
○
ções de “alfabetismo” e “alfabetização” não têm cultura alfabética continua sendo insubs-
○
○
idade. Por isso, quando se fala de analfabetos, tituível para que se tenha acesso aos códigos
○
○
não devemos pensar apenas em alguém sem da modernidade, incluindo a comunicação ele-
○
trônica.
○
trezas básicas para sua inserção social e no zação progrediu consideravelmente com as
○
○
mercado de trabalho e para assumir tarefas sig- idéias propostas por Paulo Freire desde as dé-
○
A alfabetização teve que enfrentar, como ciência de sua situação pessoal e aprendem a
○
meio de campanhas nacionais, que foram se da escrita está associada a etapas que dão aces-
○
○
6
A figura e a obra de Freire receberam homenagem póstuma mundial em ato especial realizado na Confitea V, na presença de representantes
○
○
de todos os continentes, que reconheceram o valor de suas ações e as repercussões de sua obra em seus países.
○
242
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
○
○
quisas e estudos sobre alfabetização inicial de dos acordos de Hamburgo, uma das sete áreas
○
○
crianças, com a mais importante solução para definidas como prioritárias na estratégia regio-
○
○
o problema da alfabetização paliativa de ado- nal acordada para a América Latina é a da “Alfa-
○
lescentes e adultos. Ela nos indica elementos betização: acesso à cultura escrita, à educação e
○
○
substantivos sobre a natureza do objeto de co- à informação”. Judith Kalman, como especialis-
○
○
nhecimento envolvido na aprendizagem ta encarregada da coordenação técnica dessa
○
alfabetizadora. A distinção que faz entre siste- área, assinala que a recente discussão em torno 243
○
○
ma de codificação e sistema de representação da alfabetização indica que devemos abandonar
○
○
pressupõe conseqüências na concepção e na a visão mecanicista da aprendizagem da leitura
○
○
ação alfabetizadora. Quando a escrita é conce- e da escrita, que presumia unicamente – num
○
bida como simples transcrição do sonoro para processo linear – a apropriação do código, o tra-
○
○
um código visual, a linguagem é reduzida a uma çado das letras e sua correspondência sonora e
○
○
série de sons e os programas de preparação para posteriormente, por meio da apropriação de ora-
○
○
a leitura e a escrita ficam centrados na discri- ções controladas, o uso da língua escrita.
○
minação das formas audiovisuais e auditivas A postura atual, sem negar as letras ou os
○
○
“sem jamais questionar sua natureza”. sons, aborda o problema da alfabetização como
○
○
tema de representação. “Em última análise, a rentes contextos sociais. Esse processo consi-
○
○
termos ainda mais dramáticos: se a escrita é tendimentos em relação às raízes da vida co-
○
○
concebida como um código de transcrição, sua municativa das pessoas. A aprendizagem da lei-
○
○
uma técnica; se a escrita é concebida como um seu uso constitui uma forma de participação no
○
ratória para a Confitea V, a alfabetização foi vin- um peso fundamental; significa ler e escrever
○
○
culada “ao acesso aos códigos da modernidade”. para relacionar-se com outros, para aprender,
○
○
A conferência propôs, também, que se deveria para conhecer e para expressar-se. Por isso, já
○
“revisar o conceito de ‘alfabetização’ como ação não se pode falar da alfabetização e da pós-al-
○
○
descontínua e limitada no tempo, bem como fabetização como um processo linear, pelo qual
○
○
seu conteúdo, no sentido de se promover uma primeiro se aprendem as letras e, depois, como
○
○
concepção mais ampla de ações inseridas nos usá-las. Atualmente, sabemos que a língua es-
○
como os conhecimentos e as capacidades bási- por políticas públicas e levar a cabo as ações
○
○
cos que todas as pessoas que vivem num mun- necessárias para promover uma melhor distri-
○
○
do em rápida evolução precisam ter […] e como buição da língua escrita, da educação e da in-
○
○
fundamento dos demais conhecimentos exigi- formação no sentido de garantir o direito à edu-
○
dos pela vida diária […] é, além disso, um cação mediante a criação de oportunidades edu-
○
○
catalisador da participação em atividades soci- cacionais viáveis para as pessoas jovens e adul-
○
○
ais, culturais, políticas e econômicas”. tas no contexto de suas vidas. (Kallman, 1998)
○
A necessidade to na alfabetização escolar de crianças po-
○
○
bres nos primeiros graus de instrução:
○
de respostas integrais
○
• Centralizando a ação da mudança edu-
○
○
Um problema de longa data é a crença de cacional nos três primeiros graus da edu-
○
cação primária e básica, no bom ensino e
○
que a alfabetização deve ser coordenada e as-
○
sumida exclusivamente por unidades adminis- na aprendizagem da leitura, da escrita e
○
○
trativas responsáveis pela educação de adultos, do cálculo básico.
○
○
sem recursos suficientes. Hoje em dia, o anal- • Fazendo com que a leitura não fique as-
○
fabetismo não é exclusivamente associado ao sociada apenas às atividades escolares e
○
○
mundo adulto e sua necessária vinculação com estimulando o prazer de ler e a seleção de
○
○
os baixos resultados dos sistemas educacionais leituras pelas próprias crianças.
○
○
é reconhecida. • Qualificando os docentes, em sua forma-
○
Os elementos mencionados anteriormente
○
ção inicial, em metodologias e práticas
○
exigem uma estratégia qualitativamente distin- pedagógicas que garantam bons resulta-
○
○
blema do analfabetismo presente e futuro – que crianças de idade mais avançada e sem
○
○
tem suas raízes numa educação básica defici- estímulos pedagógicos em suas famílias.
○
○
ente – unicamente pela via da educação de • Distribuindo materiais de leitura que es-
○
ção inicial das crianças em centros escolares e pela leitura e montando bibliotecas nas
○
○
fessores e igrejas.
○
alcançá-la.
veriam assumir o problema como uma políti-
○
○
nidas.
○
gentes de ação entre diferentes níveis e moda- • Organizando, com vista à coordenação e
○
○
ter o analfabetismo.
○
integral estariam vinculados aos seguintes âm- • Desenvolvendo convênios entre ministé-
○
○
244
SIMPÓSIO 15
Alfabetização no contexto das políticas públicas
○
○
ção superior e associações de professo- damente, uma aprendizagem por expe-
○
○
res, visando organizar estratégias e a pró- riência de vida.
○
pria execução da alfabetização para che-
○
• Desenvolvendo acordos com estações pri-
○
gar a acordos sobre os propósitos, os pro- vadas de televisão para desenvolver pro-
○
cedimentos e os métodos a serem
○
gramas educacionais contra o analfabetis-
○
adotados para a certificação.
○
mo funcional caracterizado em cada país.
○
• Criando mecanismos que possibilitem a 245
○
• Gerando ambientes favoráveis à leitura
○
participação dos educandos jovens e adul- e à educação básica com o apoio dos
○
tos em decisões que afetem tanto os pro-
○
meios de comunicação e de bibliotecas
○
gramas como os processos educacionais.
○
populares.
○
• Organizando registro de materiais utili-
○
4. Assumir as demandas de alfabetização as-
○
zados e sistematizando experiências e sociadas ao conhecimento e acesso à
○
intercâmbios desses materiais.
○
informática e aos meios de comunicação
○
○
• Priorizando programas especiais para a nos setores populares:
○
alfabetização feminina em populações
○
• Promovendo ações educacionais com se-
○
indígenas e rurais. tores populares tendentes à alfabetização
○
○
• Formulando uma estratégia nacional com novas gerações de crianças e jovens em si-
○
jovens e adultos em situação de margi- HALLAK, Jacques. Investir en el futuro. Definir las priorida-
○
mas educacionais de aprendizagem ace- UNESCO. Compendium of statistics on illiteracy. Paris, 1995.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 16
PROJETO PEDAGÓGICO:
POR QUÊ, QUANDO E COMO
Márcia Cristina da Silva
247
Como um programa de formação pode
○
○
○
auxiliar na reflexão sobre
○
○
○
o projeto pedagógico da escola
○
○
○
○
○
Márcia Cristina da Silva
○
PEQV/Fundação Vale do Rio Doce/Cedac
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
○
O Programa de Formação do Programa Esco- las e profissionais se encontrarem semanalmente
○
la que Vale (PEQV) – parceria entre a Fundação Vale para planejar suas ações, a inserção da comunidade
○
○
ciou seu trabalho em junho de 1999, em seis cida- dos à gestão escolar por parte dos diretores, a forma-
○
des brasileiras, com professores de escolas muni- ção de supervisores, a necessidade de estabelecer par-
○
○
eixo a realização de projetos didáticos em sala de supervisores, professores, outros funcionários da es-
○
○
aula, centrados na área de Língua Portuguesa. cola, alunos, pais e comunidade escolar em geral). A
○
○
Essa escolha deve-se ao fato de acreditarmos que implantação paulatina dessas ações fez com que
○
tal modalidade organizativa garante o sentido das muitas questões gerenciais, de concepção, de atitu-
○
○
aprendizagens dos alunos e, ao mesmo tempo, resga- des fossem revistas para que os projetos pudessem
○
○
Colocar em prática os projetos em sala de aula Esta palestra tem como objetivo central a apre-
○
○
fez com que o paradigma vigente nas escolas envol- sentação desse histórico do PEQV sob a ótica da
○
vidas fosse, pouco a pouco, sendo revisto. Esse pro- mudança de paradigma vigente e da formação de
○
○
cesso de revisão de algumas práticas já institucio- equipes reflexivas que se comprometam e se respon-
○
○
nalizadas partiu da análise e reflexão de ações sabilizem por essas transformações, necessárias
○
implementadas pelo PEQV: a necessidade de esco- para reinventar o papel do professor e da escola.
○
○
○
○
○
○
Introdução
○
de fazer uma reflexão sobre como um projeto sileiros e atende a 33 escolas, 300 professores,
○
gógico da escola. A partir dessa reflexão, tenta- de trabalhos intensos em cada município, contan-
○
○
rei contextualizar o Projeto Escola que Vale. do com mais meio ano de manutenção. O PEQV
○
diretrizes e funcionamento
○
O Programa de Formação de Educadores duração definido. Por essa razão, há uma preocu-
○
○
(professores, supervisores e diretores) foi ela- pação explícita em criar mecanismos para que as
○
○
248
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como
Contexto de formação: trabalho com Basta observar as aulas dadas ou olhar o que está
○
○
projetos didáticos de leitura e escrita exposto nas paredes, por exemplo, pois tudo isso
○
○
revela o que as professoras ensinam e o que as
○
O contexto da formação de professores cria-
○
crianças aprendem e, portanto, qual a concep-
do pelo programa consiste no trabalho com pro-
○
ção de criança e o que esta escola pensa e faz a
○
jetos didáticos de leitura e escrita e na supervi-
○
respeito da aprendizagem delas, ou seja, qual o
○
são permanente do desenvolvimento desses
○
seu projeto pedagógico.
○
projetos pelos professores. 249
Sabemos que até há pouco tempo, pouquís-
○
Projetos de leitura e escrita. Ao iniciar o tra-
○
simos profissionais de educação sabiam qual o
○
balho, os professores recebem um “cardápio”
○
com diversos projetos didáticos de leitura e projeto pedagógico da sua instituição que, quan-
○
○
escrita e escolhem um deles para ser desen- do o tinha, desempenhava função puramente
○
burocrática. O que víamos, então, era os profis-
○
volvido em classe. Todos obedecem a uma
○
estrutura básica, com sugestões didáticas que sionais trabalharem, sem saber explicar o que
○
○
devem ser detalhadas e transformadas em faziam, por que optaram por trabalhar daquela
○
○
seqüências de atividades específicas junto maneira e não de outra, e a única explicação
○
com cada grupo de professores. O que garan- possível para sustentar sua prática estaria pau-
○
○
te a transformação do “cardápio” inicial no tada na tradição: “Faço assim porque sempre fi-
○
○
visores. Nesse percurso, os professores apro- sou a exigir que as escolas apresentassem seus
○
jar, prever, dividir responsabilidades, adqui- tínua. O projeto pedagógico, então, passou a ser
○
tecnológicos, aprender a trabalhar em grupo, los membros da equipe, seja para recuperar seus
○
tudes esperados, organizar o tempo, dividir e as reflexões realizadas a partir das práticas e es-
○
○
vorece ao sujeito que se comprometa com sua têm contribuído para que a instituição escolar
○
○
própria aprendizagem, pois essa é muito mais pare, pense e reflita sobre seu projeto pedagógi-
○
Para que o projeto pedagógico ência do conhecimento didático e faz com que
○
○
se visível no próprio acontecer cotidiano da es- avaliar qual a concepção de ensino, de aprendi-
○
○
○
bre o seu próprio projeto pedagógico. com professores
○
○
O PEQV faz um recorte na formação: traba-
○
O trabalho com projetos. O que é projeto? A
○
lha somente com os conteúdos de Língua Por-
primeira questão apontada pelos professores
○
tuguesa. Essa opção está relacionada à impor-
○
dizia respeito ao próprio trabalho com proje-
○
tância social e política dessa área. Um outro pon-
○
tos, pois, afinal, até então desenvolviam pro-
○
to é que sabemos que, para trabalhar com uma jetos predeterminados pela supervisão, dire-
○
área de conhecimento com um grau relativo de
○
ção ou secretaria e eram realizados em prazo
○
aprofundamento, é necessário tempo. curto de tempo, sem produto final, com eta-
○
○
Ao optarmos em trabalhar com projetos di- pas fixas, sem a possibilidade de reavaliar o
○
○
dáticos de língua, é inevitável o confronto entre planejamento e também sem pensar na toma-
○
diferentes concepções, assim como o questiona- da de decisões por parte dos alunos. Assim, o
○
○
mento da gestão de sala de aula, da rotina da primeiro choque referia-se a essa maneira di-
○
ferente de trabalhar com a Língua Portugue-
○
escola, da relação entre família e escola, comu-
○
○ sa, onde há uma seqüência lógica que privile-
nidade e escola, além da concepção de criança. ○
institucionalizar essa reflexão dentro da escola, importar o sentido de por que fazer aquilo e
○
nos. Tudo isso passa pela reinvenção do papel A realização de projetos sugere problemas
○
○
ção que a escola estabelece com os pais e com a questões que emergem desse processo de
○
○
comunidade. Sabemos hoje que a reflexão per- implementação. O importante para os profes-
○
○
manente é fonte de conhecimento importante sores é compreender o que eles têm de ensi-
○
te nas mãos de especialistas, mas, sim, na for- do para os professores, torna-se necessário,
○
○
mação contínua desse profissional, que faz par- então, conciliar duas classes de propósitos: a
○
formação de uma equipe reflexiva e autora de avaliamos nestes quatro semestres de tra-
○
○
O projeto pedagógico
○
e o papel do professor,
○
do supervisor e do diretor
○
cada um deles, mas não descreverei o processo trabalhando com grupos da própria escola
○
○
desencadeadas pelo programa de formação – no duas escolas numa mesma reunião. Perce-
○
○
sentido da reflexão da prática educativa que te- bemos rapidamente que propiciar maior
○
○
nha relação com o projeto educativo da escola. interação entre escolas seria o melhor, por-
○
250
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como
que poderia haver troca de experiências, tiveram de discutir e decidir entre 13 propos-
○
○
além da observação de como se posicio- tas por apenas um projeto por série. Essa reu-
○
○
navam, como organizavam o material. Tudo nião foi bastante difícil, porque os professores
○
isso fez com que todos no grupo tentassem não estavam acostumados a negociar entre si
○
○
imitar uns aos outros, trocassem materiais, e nem a argumentar sobre suas escolhas. Fi-
○
endereços; enfim, começaram a ver que ha- cou evidente que não sabiam como exercer
○
○
via outras formas de se relacionar com o essas ações. Esta foi, então, a primeira questão
○
○
saber e a organização. Ou seja, o fato de ve- do semestre: o professor é o responsável tam- 251
○
rem outros colegas de outras escolas expli- bém pelo que desenvolve em sala de aula e tem
○
○
citava que cada instituição poderia ter a sua de ter poder de voz e decisão, pois estará à fren-
○
○
própria forma de organização e construção te das crianças cotidianamente. Tudo isso pode
○
de saberes, que muitas vezes é necessário parecer óbvio, mas, dependendo do projeto pe-
○
○
sair do próprio universo para ampliar expe- dagógico da escola, o poder de decisão nunca
○
riências e referenciais para, posteriormen- passa pelo educador.
○
○
te, poder voltar para a sua própria institui-
○
Tematização da prática. A análise de vídeo
○
ção e refletir sobre seus pressupostos. de sala de aula foi uma das estratégias utili-
○
○
Formação de uma equipe colaborativa. De zadas na formação. Pudemos observar que
○
○
forma geral, os professores tinham pouca ou ○
os professores já conseguem ver a si mesmos
nenhuma prática de trabalho reflexivo feito nos encaminhamentos que deram certo,
○
○
mos que planejassem em duplas e, depois, aos outros e saberem que isso não é pura gen-
○
jamentos procuravam antecipar quais difi- entre o que se planeja e o que se realiza em sala
○
○
fazer para atingir as aprendizagens dos alu- análise das produções das crianças não eram
○
adas na prática já vivenciada. para refletir sobre como se faz e por que se faz.
○
○
Neste semestre, a estratégia de colocar Um outro mito que veio abaixo é que não bas-
○
gir de maneira mais enfática a realização de este precisa estar vinculado a avaliações peri-
○
○
planejamentos por parte dos professores fez ódicas de como cada criança aprende. Ou seja,
○
sistências, porque até então estavam habi- a concepção de que a avaliação está centrada
○
○
locar-se como autor de sua prática foi uma mas também como esse planejamento ganha
○
○
grande novidade para todos e avaliar que sentido no cotidiano da sala de aula.
○
to, poderiam ou não favorecer a aprendiza- ção da análise de produção das crianças
○
O que se aprende quando se escolhe. A partir Essa supervisão constitui um dos grandes
○
○
do 2º semestre, os projetos escolhidos foram diferenciais que o PEQV oferece para que os
○
○
restritos a um por série. Para isso se efetivar, os problemas advindos da prática em sala de aula
○
○
○
tanto do ponto de vista da implementação da não valorizavam a formação. Isso se refletia
○
○
prática, quanto da compreensão da teoria que na representação que o supervisor tinha de
○
a sustenta. A configuração de um espaço de seu papel: aquele que deve fornecer o tra-
○
○
troca e de aprendizagem dessa natureza é mui- balho pronto para os professores, se possí-
○
to comum em diversas profissões e em muitas vel até com as matrizes de atividades já
○
○
escolas que oferecem ensino de qualidade. prontas; aquele que entende como obser-
○
○
Para quase todos os profissionais, o seu desen- vação de sala aquela passada rápida para
○
volvimento conta com a possibilidade de diá- verificar a lista de presença, se o professor
○
○
logo entre pares, pois isso estimula a troca de está sentado ou em pé, se o professor está
○
○
saberes. O fato de configurar uma arquitetura dando a aula correspondente à lista de con-
○
de funcionamento do programa apoiada na teúdos elaborados pelo supervisor, que sim-
○
○
idéia de que a possibilidade de troca, a refle- plesmente copiou o que a Secretaria indi-
○
xão compartilhada e o acesso à informação cou como um possível currículo.
○
○
devam ser pilares do processo tem feito com Atualmente, alguns supervisores ainda
○
○
que as respostas e o nível de compreensão dos ○
oscilam entre esse paradigma de escola e
professores envolvidos nessa experiência se- outro, em construção, que é aquele em que
○
○
também sobre como poderá multiplicar pela supervisores estão em plena reinvenção do
○
ses pontos, é importante que a clientela for- tão sendo cobrados sistematicamente pelos
○
ção entre Secretaria e PEQV, essa passagem se áreas alguns procedimentos vistos no desen-
○
vitavelmente refletirá na mudança de algumas língua; outros estão fazendo registros e co-
○
○
práticas vigentes dentro das secretarias: defi- locando questões para além das descrições
○
quer com relação ao ensino e à aprendizagem, professor, são, na realidade, de mais profes-
○
prios, saber que uma política municipal não promover uma reunião geral com os profes-
○
cimento da escola como “uma organização- sala de aula. Alguns supervisores estão en-
○
tão a maioria das escolas ignorava a neces- e professores de uma escola que está em fase
○
○
sidade da prática de planejamento e de re- de transição e não aceita mais alguns padrões
○
252
SIMPÓSIO 16
Projeto pedagógico: por quê, quando e como
○
○
de eles não fazerem remanejamento de alu- prioridade, e continuaram atuando nas
○
○
nos de 1º ciclo durante o ano (ainda há esco- emergências do cotidiano), saber escolher
○
las que transferem alunos até quatro vezes um projeto que tenha relação com a neces-
○
○
ao ano). Esses profissionais apresentaram sidade real da escola e fazê-lo por meio da
○
suas justificativas por meio da produção dos discussão com a equipe escolar. Deve fazer
○
○
alunos e do quanto a heterogeneidade é uma parte de qualquer projeto pedagógico de
○
○
condição importante para o processo de al- uma escola saber olhar a realidade para de- 253
○
fabetização. O diretor dessa escola concor- finir em quais prioridades investir, seja no
○
○
dou com os profissionais e argumentou com campo do ensino-aprendizagem seja em
○
○
o técnico da Secretaria sobre a não-partici- questões operacionais e administrativas.
○
pação da escola nessa tarefa. Nessa situação,
○
○
podemos ver uma escola utilizando-se de ex-
O papel do diretor
○
periências práticas dos professores e
○
○
supervisores, assim como dos conteúdos de Formação de uma equipe colaborativa. O
○
projeto de diretores proposto pelo PEQV
○
formação já incorporados e transferíveis para
○
outras situações. Por meio dessa atitude, a como estratégia freqüentemente utilizada
○
○
escola deixa de ser anônima e passa a cons- tem de ser o tempo todo compartilhado com
○
O trabalho com projetos e a eleição de prio- ter um horário para encontro com o grupo da
○
○
ridades. A partir de algumas avaliações, o escola ou, então, a descoberta de que os re-
○
PEQV elaborou também um cardápio de pro- sultados alcançados não foram os esperados,
○
○
jetos para diretores: Comunidade leitora, Re- porque as decisões tomadas foram unilaterais.
○
○
lação família e escola, Lazer e convívio e Co- Essa questão de formação de equipe
○
res de toda a rede foram convidados a parti- projeto de diretores, mas de todos os outros
○
○
cipar e a desenvolver o projeto que mais se segmentos do PEQV. Nesse caso, porém, al-
○
vimento dos projetos colocou, logo de início, o andamento do projeto com maior eficiên-
○
diversos problemas para os diretores: cia. Por exemplo, uma escola que não valori-
○
○
projetos pontuais – desfile, festa para pais, uma equipe reflexiva e colaborativa acaba cri-
○
tarias de Educação;
○
• escolher o projeto e executá-lo demandaria tanto, é ele que tem que fazer e não eu, como
○
decisões que o coloca em outro lugar, até sobre a comunidade escolar. Para eles, essa
○
então não vivenciado por muitos profissio- comunidade era composta pelos diretores,
○
○
nais: eleger uma prioridade e persegui-la supervisores, professores, pais e alunos, ex-
○
○
por um tempo mais longo (alguns diretores cluindo os profissionais de limpeza, cozi-
○
○
○
desenvolvidas, necessitavam dos saberes, colas. Alguns problemas iniciais enfrentados
○
○
da contribuição e da reflexão destes impor- pela formação estavam relacionados à con-
○
tantes profissionais, que também compõem cepção que se tem do papel de diretor dentro
○
○
a comunidade escolar, como ocorreu nos de uma escola: é aquele profissional respon-
○
sável pelos eventos, que executa as normas da
○
casos do projeto Família e escola e do em-
○
preendimento do Self-Service. Atualmente, Secretaria, que está ligado a questões buro-
○
○
alguns diretores estão fazendo roda de his- cráticas, como matrículas e transferências,
○
tórias com os setores operacionais. mas não registra nenhuma ação da escola;
○
○
Essa questão da formação de equipe, também está ligado ao bom andamento da
○
○
que surgiu na própria ação do projeto e evi- escola (entendendo por isso a presença de
○
denciou-se na reflexão, fez com que algu- todos os profissionais da escola no horário de
○
○
mas escolas, que estavam funcionando sob trabalho, o fornecimento da merenda, etc.).
○
Com o andamento do projeto de forma-
○
o paradigma que privilegia ações compar-
○
timentalizadas e isoladas, passassem a re- ção, o papel do diretor passou a ser refor-
○
○
fundamental para o desenvolvimento das jeto a longo prazo, registrando suas ações, re-
○
○
ações, como, por exemplo, o trabalho de re- fletindo sobre a prática realizada, elaborando
○
creio monitorado.
○
cisariam refazer o planejamento inicial, in- ção pretende criar uma metodologia de trabalho
○
○
cluindo nele um trabalho sistemático de lei- que discuta a formação de uma maneira mais pro-
○
gem foi bastante grande, porque a escola saiu gias, ações que auxiliem a escola no aprimora-
○
○
do lamento, procurou avaliar o próprio tra- mento sistemático de seu projeto pedagógico real
○
○
balho e, a partir disso, buscar novos encami- e que essas escolas passem a valorizar a reflexão
○
LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO
Isabel Cristina Alves da Silva Frade
Priscila Monteiro
255
Leitura na alfabetização –
○
○
○
velhos e novos problemas
○
○
○
○
○
Isabel Cristina Alves da Silva Frade*
○
○
Ceale/UFMG
○
○
○
○
○
Resumo
○
ler? Quais são os velhos/novos problemas que
○
○
surgem no contexto atual?
○
Mediante análise de alguns movimentos de
○
Assim, mediante análise de alguns movimen-
○
pesquisa e de inovações pedagógicas dos últimos
tos de pesquisa e de inovações pedagógicas dos
○
anos e sua materialização na sala de aula, preten-
○
últimos anos e sua materialização na sala de aula,
○
de-se analisar o que se lê na alfabetização do pon- ○
○
letramento e novos letramentos e numa conjun- tura e quais são os leitores. Num contexto teóri-
○
sino da leitura e outros que surgem pela introdu- de políticas, como a de ciclos, pretende-se solu-
○
○
ção de novas práticas culturais de leitura e que cionar alguns problemas que permanecem no
○
constituem desafios a serem enfrentados pelos ensino da leitura e outros que surgem pela in-
○
○
O que se lê na alfabetização?
○
anos, que já não tenha sido explorado ou de- Partindo do ponto de vista de que a escrita
○
○
batido? Na tentativa de encontrar alguns pon- e a leitura são práticas sociais, das quais fazem
○
tei por fazer uma breve análise de como os mo- ampliou, sobremaneira, a entrada de textos na
○
○
vimentos de inovação pedagógica na alfabeti- escola. Nos últimos anos, pode-se afirmar que
○
○
zação têm tratado a leitura, uma vez que par- a abertura para os textos que circulam na so-
○
bém tenho feito pesquisas sobre inovações. ta aos alunos sobre os textos que circulam em
○
○
Além disso, os trabalhos de extensão possibi- seu ambiente e solicita-se que sejam trazidos
○
○
litam tomar conhecimento de dilemas dos pro- alguns para a sala de aula, seja porque os pro-
○
aprendizagem da leitura. Como as escolas li- fazendo uso pedagógico deles. Assim, pode-se
○
○
dam com problemas de ensino da leitura? dizer que circulam na escola panfletos, folhe-
○
○
Como as práticas sociais de leitura vêm alte- tos publicitários, cartazes, folders de divulga-
○
* Doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do Ceale/FAE/UFMG.
○
256
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
Como conseqüência, percebe-se uma am- turais vividas no bairro ou no espaço domésti-
○
○
pliação dos tipos de suporte, como jornal, li- co. Essa constatação levou a professora a criar
○
○
vro, cartaz, folheto, revista, embalagens, e dos um projeto de estudo, envolvendo outros alu-
○
○
gêneros que são lidos: textos narrativos nos de outra escola, que passaram a enviar
○
jornalísticos e literár ios, publicitár ios, embalagens para troca.
○
○
epistolares, informativos, instrucionais, entre Em um curso de formação de professores,
○
○
vários outros. Nesse conjunto de novos supor- listamos alguns tipos de textos existentes na
○
tes, permanece o livro didático, hoje estrate- zona rural e conseguimos encontrar muito 257
○
○
gicamente denominado “livro de alfabetiza- mais textos do que se imaginava circular na-
○
○
ção”, em contraponto a uma idéia de cartilha, quele ambiente: a Bíblia, folhetos religiosos
○
○
que se pretende combater simbolicamente, já utilizados nas missas ou em outras celebra-
○
que o problema não é o nome, mas o conteú- ções, calendários da Folhinha Mariana, instru-
○
○
do existente no suporte “livro didático” ou ções sobre uso de produtos agrícolas, embala-
○
○
mesmo o uso que se faz dele. gens de alimentos e de produtos usados na-
○
○
quele contexto, contas de água e luz, informa-
○
tivos dos movimentos rurais e de sindicatos,
Onde e como se lê e quem lê?
○
○
cartas, entre outros. Também nesse caso, cres-
○
○
Esse ambiente comporta sala de aula, corre- do o trabalho com leitura mediante a visita a
○
dores, pátios escolares, bibliotecas, escritos do livrarias, bancas e a eventos como feiras de li-
○
○
bairro e da cidade, ou seja: onde quer que os vros, demonstrando que, para a compreensão
○
○
leitura. Parece óbvio dizer que os espaços de contribui o conhecimento sobre as instituições
○
na sociedade. Entretanto, não basta que exis- gação dos impressos e sobre determinadas so-
○
○
tam materiais escritos em diversos lugares, se ciabilidades criadas em torno dos livros, como
○
como objeto de interesse e façam sentido para autores e ilustradores, entre outros. Essa pers-
○
○
Nesse caso, faz diferença o trabalho do pro- do apresenta uma série de atividades de dis-
○
tarefa de criar um motivo para que os apren- escrita no espaço urbano, doméstico e esco-
○
○
dizes olhem com outros olhos coisas (supor- lar. Uma parte das propostas de intervenção
○
○
dade, da zona urbana e mesmo da zona rural? são do modo como os textos circulam, como
○
○
cimento do suporte “embalagem” por crianças que podem ser desenvolvidas paralelamente
○
elucidativo dessa tarefa: as crianças não ti- tos e da decodificação. Essas são práticas que
○
○
nham acesso a embalagens porque seu contex- trabalham não só a leitura em si, mas também
○
○
to era “pobre” em estímulos ou porque nunca o que a antecede e o que pode prolongá-la.
○
sa nos locais de moradia evidenciou que essas ção das situações pelas quais a leitura ganha
○
○
embalagens chegavam às casas dos alunos, significado na própria escola. Josette Jolibert,
○
○
mas não eram evidenciadas nas práticas cul- autora que enfrenta a dimensão didática do
○
trabalho com leitura e escrita de forma mais ficcional, no imaginário, no nonsense, no
○
○
explícita e é, por isso, muito utilizada por pro- humor. São os livros de literatura, os qua-
○
○
fessores, apresenta, em seu livro Formando cri- drinhos, que têm o potencial de trabalhar
○
com representações, com sentimentos e
○
anças leitoras (1994: 31), um tipo de classifi-
○
cação para esses usos escolares, tais como os com a dimensão estética.
○
○
de ler: Aspecto interdisciplinar: material que pos-
○
○
• para responder à necessidade de viver com os sibilita o trabalho com diversos aspectos da
○
outros na sala de aula e na escola; formação e não apenas com a leitura.
○
○
• para se comunicar com o exterior; Produção coletiva: materiais produzidos
○
○
• para descobrir informações das quais neces- por professores, por alunos e por turmas,
○
sita; que passam a ser lidos, socializados e con-
○
○
• para fazer (brincar, construir, levar a termo sultados por outras turmas.
○
um projeto ou empreendimento);
○
Por motivos pedagógicos, mais do que
○
• para alimentar e estimular o imaginário;
○
lingüísticos ou de alfabetização, verifica-se,
○
• para documentar-se no quadro de uma pes- ○
nos últimos anos, uma certa tendência de uti-
quisa em andamento.
○
leitura também é decorrente de outros tipos pode contribuir para uma ampliação dos usos,
○
○
de preocupação, que extrapolam seus aspec- mas pode também fazer com que certos tex-
○
a alguns desafios inerentes às inovações peda- espaço. O fato de serem também utilizados
○
○
sidade de contextualização das aprendizagens. tos importantes para os sentidos e para sua
○
apreciação estética.
○
pedagógicas gerais. Algumas dessas necessida- práticas de leitura realizadas a partir de dife-
○
e de instruções para trabalhos, de listas, re- suportes nem sempre o foco a ser privilegiado
○
○
ceitas, cartazes, obras de referência etc. é o conteúdo textual. Muitas vezes, o uso pe-
○
○
nais e revistas, que focalizem aspectos da ra, identificando sua materialidade, como ob-
○
tempo, informar e manter a escola e os alu- ferenças talvez para antecipar, assim, o seu
○
○
nos em ligações mais estreitas com deter- conteúdo. Essa pode ser considerada uma nova
○
de alfabetização.
○
material de leitura que possibilita a saída E a leitura dos textos, propriamente dita,
○
○
do real e do emergente, com foco no como vem se dando? Uma primeira mudança
○
258
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
nesse aspecto é a de que não se espera que as pidez e coordenação entre a recepção do texto
○
○
crianças saibam ler para que tenham acesso (às vezes fixo, às vezes em movimento) e da
○
○
aos conteúdos dos textos. Os professores as- imagem em movimento.
○
○
sumem, eles mesmos, o papel de leitores, me- Apesar da ampliação de usos e de supor-
○
diando o aspecto da decodificação para que os tes, novas linguagens devem suscitar, em pro-
○
○
alunos tenham acesso aos diferentes aspectos fessores e alunos, intervenções pedagógicas
○
○
da significação. Os textos também são lidos por específicas. É crescente, nos textos oferecidos
○
alunos que “já sabem ler” (da mesma turma ou à leitura, a introdução de apelos gráficos e vi- 259
○
○
de outras turmas, ou ciclos e séries), alteran- suais que alteram os movimentos dos olhos e
○
○
do papéis e posições de quem pode ler para o os sentidos do texto, assim como a presença
○
○
outro. de uma certa esquematização na apresentação
○
Verifica-se grande crescimento no uso da das informações. De forma especial, destaca-
○
○
modalidade oral e coletiva da leitura, em se um outro desafio que precisa tornar-se ob-
○
○
contrapartida a uma prática de leitura silencio- jeto de reflexões: a iconização e/ou a introdu-
○
○
sa e individual, priorizada em outras situações ção de imagens. Não se pode dizer, a partir
○
e momentos da história da escola, porque não dessa constatação, que a aprendizagem de ou-
○
○
se faz mais leitura oral para verificação de com- tros códigos não altere as formas de recepção.
○
○
petências, ou seja, para avaliar leitura, mas A imagem não possibilita apenas a entrada
○
○
como uma prática que visa a favorecer e de- plástica nos livros de leitura, sobretudo como
○
mocratizar o acesso a conteúdos e gêneros, um substitutivo para quem “ainda não sabe
○
○
logo nas primeiras oportunidades, sem que se ler”, mas constitui, junto com o texto, signifi-
○
○
estabeleça a velha lógica dos pré-requisitos – cados especiais para qualquer leitor.
○
de decodificação
○
Nos últimos anos, vêm-se alterando as prá- lenciosa de leitura na escola, entre outros as-
○
ticas culturais de leitura e modos de ler, sina- pectos ainda não explorados.
○
○
pouco enfrentados nas práticas de alfabetiza- que se aprende a ler lendo e se aprende a es-
○
letramento “estado ou condição de quem não que devemos ler “para valer” na escola e o re-
○
○
apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exer- forço da perspectiva de que os textos para ser
○
○
ce as práticas sociais que usam a escrita”. Se as lidos estão por todo lado, desde que saibamos
○
leitura são também vinculadas ao movimento para aprender a ler”. Estaríamos falando das
○
○
de transformação dos textos e das formas de mesmas coisas? Qual o sentido que os profes-
○
○
ler, novos desafios se colocam. Ler em telas de sores e as pesquisas vêm dando às necessida-
○
envolve outros movimentos de leitura. A lei- às necessidades de o leitor aceder a ela para se
○
○
tura de legendas de filmes, de games e de tornar cada vez mais autônomo em relação à
○
○
○
○
envolvidos no ato de ler têm ficado esqueci- didático teria sido um dos primeiros livros aos
○
○
dos, em função do trabalho com determinados quais os alunos teriam acesso e de que teriam
○
○
aspectos da compreensão e do letramento. As- posse, sendo fundamental a oportunidade de
○
sim, precisamos fazer diversas perguntas: Qual recebê-lo.
○
○
o significado da decodificação após certas No entanto, ao avaliar o livro a que sua tur-
○
○
apropriações construtivistas que se negaram a ma não tivera acesso, apareceram outros ques-
○
enfrentar aspectos metodológicos desse apren- tionamentos. Para essa professora de 1ª série,
○
○
dizado? Por que a necessidade de decodifi- o livro didático utilizado pela outra professo-
○
○
cação e de abordagem didática dessa faceta do ra – que “foi mais rápida e pegou os livros” – é
○
○
ato de ler não tem sido claramente tratada nas melhor que o do ano anterior porque é inte-
○
discussões teóricas e em pesquisas acadêmi- grado e interdisciplinar, mas não atende à cli-
○
○
cas, no momento atual? Talvez, se estivéssemos entela, pois se destina a crianças que já sabem
○
○
enfrentando esse tipo de demanda do proces- ler textos longos. É bom, mas não dá para se-
○
○
so de alfabetização e, conseqüentemente, dos ○
gui-lo. É usado para tirar algumas atividades e
professores, não estaríamos negando uma ne- mais para consulta. Segundo seu depoimento,
○
○
cessidade legítima e constitutiva do ato de en- “o livro didático não atende às necessidades
○
○
sinar e aprender a ler: a decodificação. Deve- dos alunos, apesar de ser bom. Para os alunos
○
○
ríamos, no momento atual, acrescentar mais daqui trabalharem nele, tem que ser para as
○
ticos e sintéticos presentes, no Brasil, desde o parlendas e de músicas para alfabetizar, por-
○
○
final do século 19, e não negar a relevância que avalia que o livro didático que sua escola
○
desses processos de ensino para a construção recebeu não traz essa abordagem relativa a
○
○
de uma história da alfabetização e das práti- músicas. Complementa suas aulas com ativi-
○
○
Deveríamos perguntar hoje: como garan- ra, jornal, revista, letras de macarrão, jogos,
○
tir o trabalho com a decodificação e com o sen- enfim, segundo ela, “todas as bugigangas que
○
○
tido, sem cair na ausência de sentido do tra- um professor tem que produzir”. Além disso,
○
○
balho escolar, respeitando os resultados de essa professora baseia suas atividades numa
○
○
novas pesquisas sobre o aprendizado da leitu- apostila elaborada de acordo com um método
○
ra? Ao analisar as práticas de muitos professo- musical para alfabetização, por uma professo-
○
○
res, mesmo daqueles bem informados sobre ra de Belo Horizonte, há mais de vinte anos.
○
○
mos necessidades mais perenes, que não po- questões a respeito desse episódio. A primeira
○
mas como forma de conhecimento pedagógi- mas qualidades do livro que viera para a outra
○
○
co que pode nos auxiliar na compreensão dos turma. Essa professora é uma profissional que
○
○
processos de ensino. Em recente pesquisa so- sabe avaliar a qualidade de um livro de leitura
○
escolas públicas, apareceram dados que de- trata de ensinar a ler/decodificar, precisa va-
○
○
Uma escola de periferia de uma capital não longos para crianças que ainda não domina-
○
○
tinha recebido livros de alfabetização para to- ram a decodificação. Triste também é consta-
○
○
das as turmas, em 2001. Constatou-se, então, tar que, apesar de uma séria política de livro
○
○
que nem mesmo o objeto livro didático fazia didático no Brasil, ainda existem alunos sem
○
minados alunos. O interessante é que a pro- Essa escola não adota postura muito alter-
○
○
fessora sentia-se indignada, porque sua turma nativa para a alfabetização e algumas profes-
○
260
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
soras chegaram a entender, mediante a análi- so diferenciado. Até 1987, já havia experimen-
○
○
se de alguns livros enviados por editoras, que tado diferentes formas de ensinar a leitura,
○
○
não havia mais cartilhas no PNLD, desmo- com diversos processos, entre eles o global, o
○
○
bilizando-se para a escolha, que ficou a cargo musical, o silábico e os ecléticos. Passou tam-
○
de alguém que, na falta de “cartilha”, escolheu bém por um processo de inovação com um
○
○
um livro de alfabetização para 2001. Antes al- rompimento da idéia de métodos rígidos para
○
○
gum livro do que nenhum. ensinar a leitura. As professoras mantêm de-
○
Seriam essas professoras conservadoras? O terminadas posições, quando destacam a im- 261
○
○
que procuram num livro de alfabetização para portância de respeitar o processo de constru-
○
○
seus alunos? ção do aluno e a necessidade de que as tare-
○
○
Uma segunda escola pesquisada, que já ha- fas escolares tenham significado. Não dizem
○
via vivenciado significativas inovações nos que seus alunos têm problemas de compre-
○
○
anos 1980, optando naquela época por banir a ensão dos textos, quando as professoras são
○
○
cartilha em favor de textos de uso social, en- as leitoras. Em contrapartida, deparam-se
○
○
contra-se, em 2001, em outro processo. Apa- com a necessidade de ensinar a decodificação
○
receu, no discurso das professoras, o mesmo para muitos alunos, o que significa questio-
○
○
argumento da necessidade de textos de leitu- nar a idéia de que “se aprende a ler lendo”. Ar-
○
○
dos de tais comentários, algumas professoras que os alunos criem coragem de ler, tenham
○
alegaram que, se é para o professor ler para os disponibilidade para ler e não se cansem com
○
○
literatura ou que os textos venham como ane- As alfabetizadoras precisam negociar pon-
○
xos no livro, para que os alunos não tenham tos de convergência entre o sentido e a
○
○
que enfrentá-los sozinhos, no começo. Uma decodificação. Poderíamos dizer, então, que se
○
○
delas mencionou que alguns de seus alunos lhe aprende a ler lendo, mas isso não é válido
○
○
disseram: “Adoro quando você lê, porque as- igualmente para todos?
○
de enfrentamento de um texto longo, que faz em seu livro, uma parte para atividades mais
○
○
torno do tamanho dos textos: “Os textos têm buscam destacar mais o sentido que a
○
○
que ser pequenos senão os alunos se cansam, decodificação. No entanto, não negam as
○
○
vão apenas até a metade”; “Os textos menores dificuldades que os aprendizes possam
○
funcionam melhor, todos lêem e dão conta”; apresentar no esforço de juntar decodificação
○
○
recem e queremos que os alunos iniciem len- compreensão, destacando que, enquanto os
○
○
do, porque é preciso que criem coragem de ler, aprendizes concentram-se na decodificação,
○
para que mantenham a disponibilidade de ler”. podem perder o sentido do conteúdo do texto
○
○
Foram destacados também os gêneros de ou mesmo esquecer o que leram antes. Leitura
○
○
parlendas e poesias, que agradam pelo ritmo, com maior rapidez e quando se podem
○
○
ensão. No texto maior, o aluno, em período ini- A partir dessa breve argumentação teóri-
○
cial, passa de uma frase para outra, sem per- ca, poderíamos entender a preocupação das
○
○
○
○
conservadorismo no ensino da leitura para conteúdos, mas de fazer da escola um espaço
○
○
principiantes? de sentido, onde se estuda para conhecer e não
○
○
Os professores estariam indo na contramão para “passar de ano”, em que a convivência
○
das discussões teóricas, quando fazem esse com grupos da mesma idade é um critério tão
○
○
tipo de demanda ou consideração, ou estari- importante como o da aquisição de determi-
○
○
am demonstrando um conhecimento pedagó- nadas habilidades.
○
gico que precisa ser mais bem compreendido Recentemente as escolas vêm buscando
○
○
por nós, formadores e pesquisadores? inovações em suas metodologias, num senti-
○
○
Cabe ainda perguntar: o que fizemos nes- do mais amplo. Se era para romper com a ló-
○
○
tes últimos vinte anos para dialogar com as ne- gica transmissiva e de pré-requisitos, os alu-
○
cessidades metodológicas dos professores nos agora iriam para a frente e aprenderiam
○
○
alfabetizadores, em relação ao ensino da lei- o que fosse possível, em todos os sentidos.
○
○
tura? Ao tentar garantir o trabalho com senti- Assim, alguns problemas de aprendizagem,
○
○
do e funcionalidade, jogamos fora o bebê e a ○
entre eles o da leitura, que antes ficavam re-
água do banho? presados no universo de alguns professores –
○
○
uma nova forma de organizar a alfabetização, constatação: “Só agora é que a escola vem
○
○
com a introdução dos ciclos básicos em vários tomando conhecimento de que a alfabetiza-
○
estados, como Rio Grande do Sul (especial- ção dos alunos de outros ciclos não aconte-
○
○
mente no município de Porto Alegre), Rio de cerá naturalmente e que vai ser necessário
○
○
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Essa deman- priorizar a alfabetização nessas salas”.
○
○
da vinha de professores inovadores, com seus Em recente curso de formação, uma pro-
○
questionamentos sobre os tempos de apren- fessora relatou-me que, trabalhando com o ci-
○
○
não foram implantados, de fato, em muitas anos de idade, teve uma idéia: usar com aque-
○
escolas. Quando levados a termo, com uma le grupo um pré-livro antigo, com pequenas
○
○
possibilidades dos ciclos para o ensino da lei- em seu trabalho, a decoração e o reconheci-
○
○
tura foi grande. Não basta criar estratégias par- mento do texto, assim como a garantia de
○
ticulares para resolução do problema de inclu- suspense para o “conto” a seguir. No momen-
○
○
são dos ciclos em cada classe ou estabeleci- to do relato, apareciam resultados inesperados,
○
○
mento, se também não se quebra a ossatura da com uma metodologia e conteúdos tão “anti-
○
○
década de 1990, a implantação de ciclos con- Outra professora relatou-me como vinha dan-
○
○
tínuos fez deslocar o problema da alfabetiza- do certo a abordagem com um método silábi-
○
○
ção para a questão do direito à permanência co, em situação individual, para alunos com
○
pedagógicas para outras esferas, sendo uma desenterrar “fantasmas” ou de ressuscitar uma
○
○
das mais importantes a da formação humana. discussão restrita quanto aos métodos de en-
○
262
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
sino da leitura, mas de começar a enfrentar Contudo, com o advento de tantas pesqui-
○
○
discussões negadas ou não priorizadas, nos sas sobre os processos de construção do senti-
○
○
últimos tempos. É preciso reconhecer que de- do na leitura, não é mais possível empregar
○
○
terminados aspectos técnicos do trabalho com apenas as estratégias de antes. Se alguns pro-
○
a aquisição do código podem ser reapro- fessores se reapropriam de estratégias ditas
○
○
priados no contexto de novos suportes, de no- tradicionais de forma menos sistemática e es-
○
○
vos conteúdos, temas e gêneros, enfim, num pontânea, mesmo negando-as, e obtêm suces-
○
contexto de novos modos de ler. so no ensino da leitura, é preciso que outros 263
○
○
as tomem sistematicamente, abordando ques-
○
○
tões do sistema sem se sentirem intimidados
Reflexões finais
○
○
e entendendo a especificidade de um conhe-
○
Alguns resultados de hoje nos obrigam a cimento pedagógico para ensinar leitura para
○
○
uma reflexão. Os alunos de muitas escolas ino- “iniciantes”, seja com crianças, com adolescen-
○
○
vadoras presenciam atos de leitura, têm aces- tes ou com adultos.
○
so a vários gêneros, com níveis de complexi-
○
Pode-se interpretar, mediante texto de
○
dade compatíveis com seus interesses e pro- Magda Soares (1990), que as propostas socio-
○
○
cessos cognitivos, mas falta ainda para muitos interacionistas não são incompatíveis com
○
○
sabem que não sabem ler, apesar de toda a porta o conceito de alfabetização, também
○
○
valorização em outros aspectos. Também os definido pela mesma autora (1998: 47) como
○
○
e por quem entende de alfabetização. Os ma- CHARTIER, Anne-Marie et al . Ler e escrever: entrando no
○
○
teriais e conteúdos temáticos podem ser apro- mundo da escrita. Porto Alegre: Artmed, 1996.
○
fabetização no Brasil, desde o final do século Tese (Mestrado). Faculdade de Educação, Universida-
○
○
19, demonstra-nos que a pretensão do novo/ de Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
○
ças nos campos teórico e prático e intenta eli- MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfa-
○
Comped, 2000.
○
percebe-se até hoje, no plano prático, a busca do? Educação em Revista, n. 12, p. 44-50, dez. 1990.
○
○
○
○
○
○
Priscila Monteiro
○
○
Programa Crer para Ver/Fundação Abrinq/São Paulo
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
Não podemos falar de leitura na alfabetização entre a leitura do mundo e a leitura da palavra. É
○
sem nos remetermos à importância da leitura de possibilitar que uma seja a continuidade da outra,
○
○
mundo que cada um de nós tem, que se encontra permitindo, assim, que a leitura da palavra seja a
○
○
encharcada do nosso contexto sociocultural, mar- leitura da “palavramundo”.
○
cando nosso corpo e revelando, assim, a forma Outro aspecto importante da leitura é o apren-
○
○
leitura da palavra que construo e reconstruo significa- go que se descobre a inter-relação existente entre
○
○
dos. É na gostosura das brincadeiras e dos encontros texto e contexto. Relação essa que, quando negada,
○
marcados entre esses dois tipos de “leituras” que me leva-nos a uma leitura não-crítica. Porém, quando
○
○
“experiencio” no aprendizado de ler a palavra escrita. reconhecida, possibilita o aprendizado de tecer per-
○
○
Isso porque: o que é ler, senão construir signi- guntas sobre o que se lê. É muito mais interessante
○
Se acreditamos que leitura é construção de sig- responder às perguntas do professor. Não é a habili-
○
○
nificados, o desafio que temos, então, em sala de tação à leitura que torna o aluno um leitor crítico; é
○
aula, é o de ensinar a ler sem realizar a dicotomia necessário o intercâmbio de idéias e de significados.
○
○
○
○
○
○
O protagonismo da comunidade
○
escolar
○
blicas em educação.
○
meio da leitura de relatórios, troca de e-mails lução para os problemas de cada escola vem da
○
○
ou telefonemas, visitas aos projetos, reuniões própria comunidade escolar. A comunidade es-
○
○
○
○
○
○
1
Números referentes a 18 de outubro de 2001, quando foi ministrada a palestra.
○
264
SIMPÓSIO 17
Leitura na alfabetização
colar precisa se organizar para pensar nas suas Ler não é decifrar. Ler é construir signifi-
○
○
necessidades e possíveis soluções para elas. cados. Não é a habilitação à leitura que trans-
○
○
Por isso, os projetos apoiados pelo Crer forma uma pessoa num leitor crítico. É neces-
○
○
para Ver, espalhados por todo o Brasil, dão um sário o intercâmbio de idéias e de significados.
○
panorama da escola pública brasileira. A leitura supõe um processo ativo de cons-
○
○
De acordo com essa característica, o Pro- trução de significados, um processo comple-
○
○
grama Crer para Ver tem como objetivos: ofe- xo de coordenação de informações de distin-
○
recer à sociedade oportunidades concretas de 265
○
tas naturezas, de reorganizações e ressig-
○
participação em ações que levem à sua pró- nificações de saberes em jogo, em que o tex-
○
○
pria transformação, contribuindo para uma to, o leitor e o contexto contribuem para a
○
○
escola de qualidade; apoiar a iniciativa e a compreensão.
○
criatividade da comunidade escolar, assim É por meio desse diálogo que se descobre
○
○
como sua capacidade de diagnosticar os pró- a inter-relação existente entre texto e contex-
○
○
prios problemas e apontar, ela mesma, as so- to. Relação esta, que, negada, nos leva a uma
○
○
luções; financiar e apoiar tecnicamente pro- leitura não-crítica. Porém, quando reconhe-
○
jetos que contribuam para melhorar as rela- cida, possibilita o aprendizado de tecer per-
○
○
ções de aprendizagem na Educação Infantil e guntas sobre o que se lê. É muito mais inte-
○
○
no Ensino Fundamental das escolas da rede ressante aprender a fazer perguntas sobre o
○
○
pública, que sejam referências positivas para texto lido do que responder às perguntas do
○
qualidade; sistematizar, avaliar e divulgar ex- car o que se lê – no que este texto me toca,
○
○
periências educacionais bem-sucedidas. por que eu gosto ou não gosto dele, ao que
○
ma Crer para Ver, mas discutida com cada não está no livro nem no leitor. Está justa-
○
○
prios sentidos.
○
○
gama de textos e de situações permanentes de Mas ler o quê? A maioria de nossas esco-
○
○
leitura para que as crianças tenham a opor- las só tem acesso a livros didáticos. O livro di-
○
tunidade de se transformar em leitores críti- dático pede respostas fechadas, exclui a inter-
○
○
Um dos grandes problemas de nosso país Porém tampouco basta prover as escolas
○
○
é garantir o letramento para todos os cida- de acervos de livros; é necessário que os pro-
○
dãos. Muitas crianças saem da escola alfabe- fessores saibam trabalhar com eles.
○
○
das. A impossibilidade de ler ou ler precaria- sensibilidade de cada um; portanto, para tra-
○
○
mente aprisiona e confina. Nega-se a essas balhar com leitura na escola, sem impor, mas
○
crianças a ampliação dos limites, a possibili- propondo, é necessário que o professor tam-
○
○
dade de conhecerem novas realidades, do in- bém se identifique com a leitura. Por ser um
○
○
○
○
○
Vou escrever sobre a história do mundo no
Selecionamos alguns projetos apoiados pelo
○
meu pensamento quando eu era menino.
○
Programa Crer para Ver para exemplificar o
○
O mundo que eu pensava era que nem tocaia.
○
tema em questão:
○
A Terra remendava com o céu.
• Lazer e Recreação Infantil: Círculo de Pais e
○
O Sol, eu pensava que eram muitos, passan-
○
Mestres da Escola Estadual de 1º e 2º Graus
○
do dias e dias. A noite, eu pensava que era que
○
Modelo, Ijuí/RS. A introdução na oficina de
○
nem fumaça, porque quando o Sol ia embora a
leitura e a recuperação da pracinha infantil
○
noite vinha cobrir o mundo. O céu eu pensava
○
da escola estimulam a descoberta e a apren-
○
que era que nem ferro. Que nunca acaba.
dizagem infantis.
○
A chuva eu pensava que era alguma pessoa
○
○
• Capacitação dos Professores Leigos para que mora no céu e derramava água.
○
Alfabetização do Projeto Seringueiro: Cen-
○
A água eu pensava que era alguns bichos
○
tro dos Trabalhadores da Amazônia, Rio mijando, em cima do rio. Bichos: queixada, vea-
○
Branco/AC. Na Amazônia, as lendas, casos
○
○
do, anta.
e histórias dos seringais viram livros a par-
○
• Aprender a Ler Lendo: Associação de Pais e O homem, eu pensava que só nós mesmos
○
to”, Pato Branco/PR. Biblioteca circulante A língua eu pensava que todo mundo só fa-
○
○
Compartilhando significados
○
Por fim, gostaria de compartilhar com vocês dando Geografia que entendemos sobre a Terra,
○
dos Índios do Acre – Comissão Pró-Índio do Acre): Norberto Sales Tene Kaxinawa
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
2
Para saber mais sobre os projetos apoiados, consulte o site do Programa – <www.fundabrinq.org.br/crerparaver>
○
SIMPÓSIO 18
LETRAMENTO
Vera Masagão Ribeiro
Rosaura Soligo
267
O conceito de letramento e
○
○
○
suas implicações pedagógicas
○
○
○
○
○
Vera Masagão Ribeiro
○
○
Ação Educativa/São Paulo
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
é a de Jack Goody, antropólogo americano, que
○
A exposição tem como objetivo geral discu- elaborou uma teoria segundo a qual a escrita
○
○
tir o conceito de letramento e suas implicações seria um elemento-chave para diferenciar as
○
○
pedagógicas. Para isso, discute-se, em primeiro sociedades ditas primitivas ou tradicionais das
lugar, o surgimento do conceito de letramento, ○
○
○
sociedades modernas ou históricas (Goody e
evidenciando a natureza interdisciplinar do cam- Watt, 1968). Argumentava esse autor que o re-
○
○
medida que favorece o cotejo entre práticas es- Um autor mais conhecido entre nós, brasi-
○
ferir maior relevância às aprendizagens escola- base em estudos realizados por Luria com
○
○
res. Defende-se, por último, a posição de que o camponeses analfabetos, esse autor postulou
○
conceito de letramento pode ser o eixo condutor que a aquisição da escrita promovia o desen-
○
○
ção Básica e que, portanto, as problemáticas nele cialmente no que se refere ao raciocínio lógi-
○
do num campo teórico para o qual contribuí- volução soviética, como fator de desenvolvi-
○
ram diversas disciplinas das ciências huma- mento cognitivo. Mesmo assim, não deixaram
○
○
rários. Mais recentemente, no Brasil, vem sen- sua teoria sobre o papel dos instrumentos sim-
○
gico, no qual ganha novas conotações, passan- na. No âmbito dos estudos da linguagem, não
○
○
do a ser referência principalmente para a re- faltaram também estudos que trataram de de-
○
○
A tese central que animou esse campo teó- gumentos para os que postulavam o poder do
○
○
rico na década de 1960 foi a de que a dissemi- registro escrito de moldar o pensamento e a
○
aquisição por parte dos indivíduos tinham um Esse tipo de otimismo em relação ao valor
○
○
psicológico. Uma posição clássica nessa linha alfabetização de adultos em todo o mundo e
○
268
SIMPÓSIO 18
Letramento
sempre esteve presente nos discursos em prol oralidade e escrita e um crescente interesse
○
○
da universalização da educação elementar. En- pelo tema dos gêneros textuais. O conceito de
○
○
tretanto, não tardaram a surgir questionamen- gênero aparece como mais apropriado para a
○
○
tos a essa posição, baseados em estudos his- análise das diferentes práticas sociais nas quais
○
tóricos, antropológicos, psicológicos e a linguagem escrita participa, implicando mo-
○
○
lingüísticos mais rigorosos. Demonstrou-se, dos específicos de se posicionar na situação
○
○
por exemplo, com base em análises históricas discursiva. Evidencia-se, por exemplo, que cer-
○
de dados estatísticos, que as relações entre ní- tos gêneros orais, tais como essa exposição que 269
○
○
veis de alfabetização e desenvolvimento eco- faço agora, têm muitos elementos em comum
○
○
nômico ou decréscimo de taxas de natalidade com o gênero ensaístico escrito, enquanto uma
○
○
ou criminalidade, para citar alguns exemplos carta pessoal guarda muitas das característi-
○
de indicadores sociais, não eram nada linea- cas de uma conversa entre amigos.
○
○
res e dependiam sempre de outros fatores so- David Olson (1997) sintetiza bastante bem
○
○
ciais (Graff, 1994). No campo da Psicologia, essa mudança de perspectiva verificada nos es-
○
○
Scribner e Cole (1981) demostraram que o tipo tudos sobre o letramento, expressando a posi-
○
de habilidade cognitiva que até então se atri- ção de que não importa tanto o que a escrita
○
○
buíra ao aprendizado da escrita era, de fato, faz com as pessoas, mas, sim, o que as pessoas
○
○
O inglês Brian Street (1993) elaborou uma das Mas que implicações esse desenvolvimen-
○
letramento, segundo a qual a escrita encerra- pode ter para as práticas pedagógicas? Antes
○
○
as sociedades. Ele denominou essa perspecti- gunta, vale a pena fazer uma retomada sinté-
○
○
va sobre o letramento de modelo autônomo e, tica das múltiplas dimensões que o conceito
○
○
em contraposição, propôs o modelo ideológi- abarca. Para isso, é útil adotarmos a análise
○
○
co, que compreende o letramento como fenô- proposta por Magda Soares (1998), que distin-
○
meno cultural complexo, cujos efeitos estão gue basicamente duas dimensões do
○
○
Desse modelo emerge o interesse pela di- de capacidades relacionadas à leitura e à es-
○
versidade das práticas culturais relacionadas crita, que incluem não só a habilidade de
○
○
à escrita: passa-se então a falar em “letra- decodificação de palavras, mas um amplo con-
○
○
que estudaram o letramento em sociedades pretação, como, por exemplo, estabelecer re-
○
tradicionais, Shirley Heath (1996) realizou pes- lações entre idéias, fazer inferências, reconhe-
○
○
dade americana, demonstrando que, ao lado textual com informação extratextual etc. Tais
○
○
das práticas escolares – normalmente tomadas habilidades podem ainda ser aplicadas a uma
○
como padrão único para a análise do fenôme- ampla gama de textos. A dimensão social do
○
○
no do letramento –, existiam outras modalida- letramento diz respeito às práticas sociais que
○
○
des de uso social da escrita, às quais estavam envolvem a escrita e a leitura em contextos
○
○
associadas outras habilidades cognitivas, ou- determinados. O que está em jogo, nesse âm-
○
tros modos de relação entre os participantes bito, são os objetivos práticos de quem utiliza
○
○
da interlocução e desses com o texto, outras a leitura e a escrita, as interações que se esta-
○
○
representações e atitudes por parte dos leito- belecem entre os participantes da situação
○
○
Outro resultado das críticas ao modelo au- ciais colocam, as representações e os valores
○
○
○
○
ou outra dessas dimensões e ainda, dentro de ambiente familiar para sua socialização na
○
○
uma delas, uma infinidade de aspectos espe- cultura da escrita.
○
○
cíficos. Quando se trata de estabelecer parâ- Ao evidenciarem que não é a aprendizagem
○
metros para a prática alfabetizadora, entre- da linguagem escrita em si que transforma as
○
○
tanto, é fundamental buscar as conexões en- pessoas, mas, sim, os usos que elas fazem des-
○
○
tre essas duas dimensões, pois o fazer peda- se instrumento, os estudos sobre o letramento
○
gógico consiste exatamente na orientação sis- abrem novas perspectivas para a reflexão crí-
○
○
temática do desenvolvimento de indivíduos tica sobre o papel da escola e também para o
○
○
no sentido de sua inserção num contexto desenvolvimento de práticas pedagógicas que
○
○
sociocultural específico. No caso da educação respondam com mais eficiência às demandas
○
escolar própria das sociedades letradas, esse sociais relativas ao letramento. Esses estudos
○
○
projeto consiste prioritariamente na capaci- convidam a escola a refletir sobre os gêneros
○
○
tação dos indivíduos para transitar, com al- textuais que circulam no meio social, sobre os
○
○
gum nível de autonomia, nesse contexto ca- ○
diversos usos sociais da leitura e da escrita e
racterizado pelo uso intenso e diversificado também sobre as habilidades cognitivas, ati-
○
○
Este é, sem dúvida, o aspecto crucial das ainda, a uma a análise das inter-relações entre
○
○
grau de autonomia que as práticas escolares A preocupação de que a escola trabalhe com
○
○
têm podido promover por meio da alfabetiza- maior diversidade de gêneros textuais já apare-
○
ção inicial e, posteriormente, por meio do en- ce plasmada nas orientações curriculares e nos
○
○
sino das disciplinas curriculares. Tradicional- critérios de avaliação dos livros didáticos que se
○
○
zação inicial, o foco eram os mecanismos de pouco letrados, que podem encontrar na escola
○
○
e palavras. O professor de Português seguia suportes de escrita, tais como, por exemplo, re-
○
com o treino da ortografia, fluência da leitura vistas, jornais, sites de internet, livros outros além
○
○
em voz alta e, finalmente, compreensão e in- dos didáticos, com toda a diversidade de gêne-
○
○
vos e literários. Os professores das demais dis- Com relação à diversidade de usos sociais
○
ciplinas, por sua vez, apesar de fazerem uso da escrita, às habilidades cognitivas e aos con-
○
○
intenso de textos didáticos para ensinar e ava- teúdos culturais a eles associados, há ainda um
○
○
Esse tipo de prática escolar não produziu sobre o letramento realizado com a população
○
○
leitura, não se tornavam leitores e escritores escrita no cotidiano de pessoas jovens e adul-
○
autônomos, não conseguiam utilizar, com efi- tas: a expressão da subjetividade, o planeja-
○
○
Essa crise do ensino da leitura ficou mais pa- livros religiosos ou de auto-ajuda, atividades
○
○
tente à medida que chegavam à escola alunos nas quais o que está em jogo é expressar a pró-
○
○
or iundos de famílias com baixo grau de pria experiência e evocar sentimentos ou fé.
○
270
SIMPÓSIO 18
Letramento
Trata-se de usos que mesmo pessoas com bai- e oralizar o texto com certa fluência, o aluno
○
○
xo grau de escolarização realizam em alguma está pronto para utilizar esse instrumento para
○
○
medida em seu cotidiano. Já a utilização da lin- aprender os conteúdos das ciências e encontrar
○
○
guagem escrita para planejar e controlar pro- informações em quaisquer tipos de texto. Ora,
○
cedimentos é a dominante no universo do tra- o estudo mencionado acima e outros que foca-
○
○
balho e das organizações sociais. Podem ser lizam a temática (Kleiman, 1989) mostram
○
○
tomados como exemplos desse domínio des- quantas habilidades cognitivas específicas e
○
de o ato de fazer uma lista de compras até es- disposições detêm aqueles que normalmente se 271
○
○
tratégias mais complexas de controle de pro- servem da escrita para aprender ou informar-
○
○
cessos coletivos, tais como a contabilidade de se, conservando o interesse por aprender e se
○
○
uma empresa, o plano de um curso etc. informar após o período da escolarização. É pre-
○
Esses são usos da escrita que muitas pes- ciso que todos os professores estejam consci-
○
○
soas fazem, lidando com textos de complexi- entes de que a capacidade de ler para buscar
○
○
dade variável, dependendo do grau de exigên- informação e aprender com autonomia é nor-
○
○
cia das atividades, da maior ou menor neces- malmente resultado de um investimento edu-
○
sidade de planejamento e possibilidade de cativo alongado, que pode durar toda a Educa-
○
○
controle das atividades pelo próprio indivíduo. ção Básica ou ainda a educação superior, quan-
○
○
imediata como para atualizar-se e formar opi- Uma proposta pedagógica que certamen-
○
○
nião sobre assuntos públicos, é prática restri- te abre um amplo leque de possibilidades de
○
○
ta a pessoas com níveis mais altos de escolari- aproximar as práticas escolares dos usos da
○
adquirir novos corpos de conhecimento. Pu- metodologia dos projetos. Envolvidos numa
○
○
demos observar que esses usos da linguagem proposta dessa natureza, alunos e professo-
○
○
escrita exigem atitude específica do leitor di- res são incitados a estabelecer um projeto de
○
pelo cotejo objetivo entre as idéias expressas naridade, de Angela Kleiman e Silvia Morais
○
Essa tipologia parece útil para analisarmos logia, focalizando especialmente a leitura de
○
○
até que ponto a escola oferece as oportunida- textos jornalísticos como base de exploração
○
○
des para as pessoas se desenvolverem em cada das relações entre as disciplinas, entre dife-
○
um desses domínios. Quais são as oportunida- rentes textos escolares e não-escolares que
○
○
mente, quais são as oportunidades dadas aos tônomo e criativo, com maiores possibilida-
○
○
estudantes de planejar e controlar algo nos es- des de utilizar suas aprendizagens para além
○
paços escolares? Certamente, serão muito limi- dos muros da escola. As autoras destacam a
○
○
tadas se a aprendizagem dos conteúdos é pra- presença, nas revistas e jornais, de diversos
○
○
repetitiva, controlada pelo livro didático ou pelo ção, que ampliam o universo de relações pos-
○
professor. Mesmo a leitura realizada para apren- síveis e dão lugar a experiências com muitos
○
○
do ponto de vista pedagógico, embora sejam Um último aspecto que os estudos sobre
○
○
essas duas funções da leitura as dominantes no o letramento destacam e que as práticas pe-
○
contexto escolar. Professores das diversas dis- dagógicas podem tratar de modo mais produ-
○
○
ciplinas quase sempre partem do princípio de tivo é o da relação entre a oralidade e a escri-
○
○
○
○
damental, destacam ganhos relativos à capa-
○
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secreta-
○
cidade de comunicação oral entre os princi-
○
ria de Educação Fundamental. Parâmetros Curricula-
○
pais benefícios que a escola lhes trouxe, por- res Nacionais. Brasília, DF, 1997. 10 v.
○
que, mesmo sem intervenção mais sistemáti-
○
GOODY, Jack; WATT, Ian. The consequences of literacy.
○
ca sobre o desenvolvimento da oralidade, a In: GOODY. Jack (Org). Literacy in tradicional societies .
○
○
escola promove ocasiões de fala em contex- Cambridge: Cambridge University, 1968.
○
tos públicos ou de trabalho coletivo, quase GRAFF, Harvey. Os labirintos da alfabetização: reflexões
○
○
sobre o passado e o presente da alfabetização. Porto
sempre permeados por referências a textos
○
Alegre: Artmed, 1994.
○
escritos, que certamente ampliam os recur-
○
HEATH, Shirley. Ways with words: language, life, and work
○
sos expressivos dos alunos. Esse desenvolvi- in communities and classrooms. Cambridge: Cambridge
○
mento da oralidade, por sua vez, apóia o
○
University, 1996.
○
aprendizado da leitura e da escrita, possibili- KLEIMAN, Ângela. Leitura: ensino e pesquisa . Campinas:
○
○
tando a partilha do trabalho de compreensão Pontes, 1989.
○
e interpretação da palavra escrita, principal- ○
○
KLEIMAN, Ângela; MORAES, Silvia. Leitura e interdisci-
plinaridade . Campinas: Mercado de Letras, 1999.
mente por meio do comentário oral.
○
tização ou do ensino de línguas, portanto, o OLSON, David. O mundo no papel . São Paulo: Ática, 1997.
○
○
ção da linguagem escrita como ferramenta de México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
○
○
pensamento e comunicação, pode ser tomado RIBEIRO, Vera. Alfabetismo e atitudes . São Paulo/Campi-
○
como base comum para o tratamento interdis- como medir. In: SOARES, Magda. Letramento: um tema
○
○
ciplinar dos temas, para o desenvolvimento de em três gêneros . Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
○
reçam a formação dos alunos não só como lei- Principal de Educación en América Latina y el Caribe,
○
○
272
SIMPÓSIO 18
Letramento
○
○
○
○
Rosaura Soligo
○
○
PROFA/MEC
○
○
○
○
○
Um pouco de história desuso a partir da difusão do método que, na
○
273
○
época, foi identificado como “misto” – nada
○
O modelo escolar de alfabetização1 nasceu
○
mais que nossa conhecida cartilha, baseada
○
há pouco mais de dois séculos, precisamente
○
em análise e síntese e estruturada a partir de
○
em 1789, na França, após a Revolução France- um silabário.
○
sa. A partir de então,
○
O segundo momento, cujo pico foi nos anos
○
○
1960, teve por centro geográfico os Estados
○
[...] crianças são transformadas em alunos,
Unidos. A discussão das idéias sobre alfabeti-
○
○
aprender a escrever se sobrepõe a aprender a
zação foi levada para dentro de um debate
○
ler, ler agora se aprende escrevendo – até esse
○
mais amplo, em torno da questão do fracasso
○
período, ler era uma aprendizagem distinta e
○
○
escolar. A luta contra a segregação dos negros,
anterior a escrever, compreendendo alguns
com a conseqüente batalha por sua integração
○
dade do tempo, onde a ruptura vai sendo atro- escolares dessas minorias. Muito dinheiro foi
○
na o fundamento da escola básica e a leitura/ der o que havia de errado com as crianças que
○
○
escrita, aprendizagem escolar. (Barbosa, s. d.) 2 não aprendiam. Buscava-se no aluno a razão
○
○
Analisando a evolução da investigação e do São desse período as teorias que hoje cha-
○
○
O primeiro período corresponde, aproxi- res, lingüísticos…) e que certas crianças fra-
○
○
madamente, à primeira metade do século, cassavam por não disporem dessas habilida-
○
○
terreno do ensino. Buscava-se o melhor “mé- se nas crianças das famílias mais pobres era
○
todo” para ensinar a ler, com base na suposi- explicado por uma suposta incapacidade de
○
○
defensores do método global e os do método ram criadas como “remédio” para o fracasso,
○
○
fonético. 3 No Brasil, essa discussão caiu em como se ele fosse uma doença. Essa aborda-
○
○
○
○
○
○
* Este texto é um fragmento do documento Apresentação do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, desenvolvido, em todo o
○
○
país, pelo Ministério da Educação, em parceria com Secretarias de Educação e Universidades, a partir de 2001.
○
1
○
Embora o termo “alfabetização” tenha diferentes sentidos, neste documento ele está usado com o significado de “processo de ensino e
○
aprendizagem do sistema alfabético de escrita”, ou seja, o processo de ensino e aprendizagem inicial de leitura e escrita.
○
○
2
A referência é apenas ao Ocidente: Europa e Américas do Norte e do Sul.
○
○
3
O método global ou analítico defendia que o melhor era oferecer ao aluno a totalidade, ou seja, palavras, frases ou pequenos textos, para que
○
ele fizesse uma análise e chegasse às partes, que são as sílabas e letras. O método fonético ou sintético, ao contrário, propunha que o aluno
○
aprendesse primeiro as letras ou sílabas e o som delas para depois chegar à palavra ou frase.
○
gem, que já se anunciava no teste ABC, de Lou- diferentes classes sociais. Portanto, já não se
○
○
renço Filho – um conjunto de atividades para pode mais ensinar como antes.
○
○
verificar e, principalmente, medir a “maturida-
○
○
de” que a ciência de então supunha necessária [...] as mudanças necessárias para enfrentar so-
○
à alfabetização bem sucedida –, teve muita in- bre bases novas a alfabetização inicial não se
○
○
fluência no Brasil. Nos anos 1970, foi largamen- resolvem com um novo método de ensino, nem
○
○
te difundida a idéia de que, no início da escola- com novos testes de prontidão, nem com novos
○
ridade, toda criança deveria passar pelos exer- materiais didáticos. É preciso mudar os pontos
○
○
por onde nós fazemos passar o eixo central das
cícios conhecidos como “prontidão” (do inglês,
○
nossas discussões. Temos uma imagem
○
readiness) para a alfabetização. Seria uma es-
○
empobrecida da língua escrita: é preciso
○
pécie de vacinação em massa. Mas a vacina, in-
○
reintroduzir, quando consideramos a alfabetiza-
felizmente, era inócua.
○
ção, a escrita como sistema de representação da
○
O terceiro período começa em meados dos
○
linguagem. Temos uma imagem empobrecida da
○
anos 1970, sendo marcado por uma mudança criança que aprende: a reduzimos a um par de
○
○
de paradigma. O desenvolvimento da investi- ○
enfoque, suas perguntas. Em lugar de procurar fonador que emite sons. Atrás disso há um su-
○
○
correlações que explicassem o déficit dos que jeito cognoscente, alguém que pensa, que cons-
○
○
não conseguiam aprender, começou-se a ten- trói interpretações, que age sobre o real para
○
tar compreender como aprendem os que con- fazê-lo seu. (Ferreiro e Teberosky, 1985)
○
○
e o fracasso escolar
○
deou intensas mudanças na maneira de os edu- Infelizmente, não é injusto afirmar que, ao
○
○
cadores brasileiros compreenderem a alfabeti- longo da história, a escola brasileira tem fracas-
○
necessário rever as concepções nas quais se momento, porque o acesso à escola não estava
○
○
apóia a alfabetização. Isso tem demandado uma assegurado a todos; depois, porque, mesmo
○
seja, na didática da alfabetização. Já não é mais tivamente todos os alunos a ler e escrever, es-
○
○
possível conceber a escrita exclusivamente como pecialmente quando provêm de grupos sociais
○
não letrados.
○
crianças constroem antes de aprender formal- disponíveis, é possível constatar que aproxima-
○
○
mente a ler, já não é mais possível fechar os olhos damente metade das crianças que entra na 1ª
○
1956 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997* 1998*
○
○
○
41,8% 47% 46% 49% 51% 51% 51% 50% 53% 53% 58% 65% 68,7%
○
○
Fonte: IBGE – Inep. * Nos anos de 1997 e 1998 algumas secretarias de Educação passaram a adotar o sistema de ciclos, previsto na Lei
○
274
SIMPÓSIO 18
Letramento
O fato é que, há muito tempo, os índices de sobre os alunos que fracassam, bem como na
○
○
fracasso escolar na alfabetização são inaceitá- sua relação com eles: freqüentemente, essas
○
○
veis e as medidas tomadas no âmbito dos siste- representações expressam-se em falta de con-
○
○
mas públicos não têm contribuído para trans- fiança nas reais potencialidades que eles têm
○
formar esse quadro de forma significativa. A para as aprendizagens de um modo geral. Se é
○
○
tabela anterior parece indicar que é completa- verdade que esses alunos chegam à escola sem
○
○
mente falsa a crença de que “antigamente to- muita intimidade com os usos sociais da escri-
○
dos aprendiam na escola”. Desde 1956, com es- ta e com os textos escritos, também é verdade 275
○
○
tatísticas mais precisas a respeito dos índices que eles trazem um repertório de saberes que
○
○
de promoção e retenção na escola pública bra- as crianças e jovens de classe média e alta não
○
○
sileira, constata-se que os alunos reprovados possuem, saberes que não são valorizados e
○
(ou “retidos”, como se preferiu chamar anos nem validados do ponto de vista pedagógico.
○
○
depois) já representavam mais da metade do Todo aluno tem direito a uma educação escolar
○
○
total – e isso sem contar o grande número de que, pautada no princípio da eqüidade, garan-
○
○
crianças brasileiras que nem freqüentava a es- ta o conhecimento necessário para que desen-
○
cola. volva suas diferentes capacidades – uma edu-
○
○
A falta de explicações para as causas do fra- cação que não acentue as diferenças provocadas
○
○
fez com que essa responsabilidade, direta ou culturais, que não as tome, sob nenhum pretex-
○
indiretamente, fosse a eles atribuída (à sua su- to, como diferenças relacionadas às suas possi-
○
○
posta incapacidade de aprender e e/ou às suas bilidades de aprendizagem. Não se pode espe-
○
○
perversas condições de vida). Apesar de todas rar que os alunos iniciem a escolaridade saben-
○
as razões sociais e políticas para não se deposi- do coisas que nunca tiveram a chance de apren-
○
○
tar a responsabilidade pelo fracasso apenas no der: quando eles não sabem o que se espera, é
○
○
Em oposição a uma concepção de escola A análise de quem são os alunos que a esco-
○
“conteudista”, ou seja, preocupada, acima de la não tem conseguido alfabetizar ao longo dos
○
○
tudo, com a transmissão de conteúdos escola- anos (em geral, 50%) indica que não se trata de
○
○
res, foi se configurando uma concepção – e vá- uma metade qualquer, aritmeticamente neutra:
○
○
rias experiências – de uma escola transforma- essa metade é formada, majoritariamente, pe-
○
dora, progressista. Mas, infelizmente, nem as- los mais pobres. E por que seria mais difícil al-
○
○
direito de desenvolver diferentes capacidades Como se sabe, até vinte anos atrás, profes-
○
Com isso, consolidou-se progressivamente errado com esses alunos, em descobrir por que
○
○
uma cultura escolar da repetência, da reprova- eles não aprendiam. A compreensão dos pro-
○
meno natural. O país foi se acostumando com possível somente a partir das últimas duas dé-
○
○
o fato de cerca de metade de suas crianças não cadas, foi fundamental para que se deixasse de
○
○
se alfabetizar ao término do primeiro ano de olhar para as crianças das classes populares
○
Essa cultura teve uma enorme influência no porque até então um dos raros consensos entre
○
○
foram construindo sobre o fracasso escolar e era: o que servia para ensinar as crianças de
○
classe média e alta não servia para as crianças Depois de uma longa trajetória de reflexão
○
○
pobres. Acreditava-se que os processos de a respeito dessas questões, finalmente é possí-
○
○
aprendizagem das diferentes classes sociais se- vel compreender a natureza da relação entre
○
○
riam decididamente diferentes, e isso explica- fala e escrita, desvendando o mistério que o
○
ria desempenhos tão díspares. funcionamento da escrita representa para to-
○
○
No entanto, a descrição psicogenética do dos os analfabetos, quando se alfabetizam, no
○
○
processo de alfabetização mostrou que o pro- sentido estrito da palavra.
○
cesso pelo qual se aprende a ler e escrever é o E por que, então, os alunos pobres custam
○
○
mesmo, em linhas gerais, para indivíduos de mais a conquistar a condição de alfabetizados,
○
○
diferentes classes sociais – inclusive, tanto para se nada deixam a desejar do ponto de vista da
○
○
crianças como para adultos. A aparente diferen- capacidade intelectual? O que têm a menos que
○
ça é conseqüência da diferença no repertório os demais? Em geral, esses alunos começam tar-
○
○
de conhecimentos prévios, que faz que os alu- diamente a pensar sobre a escrita e desenvol-
○
○
nos pobres cheguem à escola geralmente em vem procedimentos de análise desse objeto de
○
○
fase menos avançada do processo, o que lhes ○
conhecimento muito depois das crianças de
dificulta a assimilação de certas informações. classe média e alta.
○
○
para alfabetizar os alunos era o treino de deter- crita e o valor que se dá a essas práticas sociais
○
○
de lateralidade –, a recente pesquisa sobre a xão sobre como funcionam as coisas no mundo
○
○
que a alfabetização (como tantas outras apren- ções em que se escreve e se lê, a forma como os
○
○
ção de hipóteses; que esse não é um conteúdo da leitura em nossa língua (da esquerda para a
○
○
simples – ao contrário, é extremamente com- direita), como se escrevem os nomes das pes-
○
plexo – e demanda procedimentos de análise soas queridas, quantas e quais letras se colocam
○
○
também complexos por parte de quem apren- para escrever, por que há mais letras do que
○
○
de; que, por trás da mão que escreve e do olho parece necessário nos textos escritos, o que está
○
○
que vê, existe um ser humano que pensa e, por escrito aqui e ali, que letra é essa, como se lê
○
Hoje sabemos que, no processo de alfabeti- Enquanto as crianças de classe média e alta
○
○
mente da classe social a que pertencem e da desse tipo, em suas casas, com seus pais, tios e
○
hipóteses muito curiosas, mas também muito que seria impensável a uma criança pequena de
○
○
lógicas. Progridem de idéias bastante primiti- classe média e alta: cozinhar para os irmãos
○
○
vas pautadas no desconhecimento da relação menores, dar banho sem derrubá-los, acordar
○
entre fala e escrita para idéias surpreendentes de madrugada para ir trabalhar na roça ou na
○
○
sobre como seria essa relação: alguns preocu- rua, vender objetos nos semáforos. As primei-
○
○
pados com a quantidade de letras, outros com ras ocupam seu tempo desenvolvendo proce-
○
○
a qualidade das letras, outros em conflito com dimentos que as farão se alfabetizar muito cedo;
○
a coordenação entre quantas e quais letras se as últimas, por sua vez, estão desenvolvendo
○
○
4
Quando ainda não tinha sido possível conhecer as razões de os alunos terem essas idéias e escritas estranhas, dizia-se que eles eram
○
○
portadores de “dificuldade de aprendizagem”. Os índices desses “distúrbios” chegavam a 30%, segundo os especialistas. Depois que se pôde
○
compreender o que acontecia com os alunos ainda não alfabetizados e que revelavam as suas hipóteses, esses percentuais caíram muitíssimo,
○
oscilando de 1% a 3%, segundo os mesmos especialistas (Cadernos Idéias, n. 2 e 19, FDE-SEE/SP, 1989 e 1993, respectivamente).
○
276
SIMPÓSIO 18
Letramento
cia como crianças pobres que são. O repertório construção conceitual, por ser de simples assi-
○
○
de saberes é outro, é outra a bagagem de vida, milação, depende da memorização de informa-
○
○
como se dizia há algum tempo. ções: nomes em geral (das letras, por exemplo),
○
○
Em outras palavras, as crianças pobres não informações e instruções simples (como, “em
○
aprendem a ler e a escrever aos seis ou sete anos português, escrevemos da esquerda para a di-
○
○
pela mesma razão que as outras não aprendem reita”), respostas a adivinhações, números de
○
○
a cozinhar, lavar, passar, cuidar da casa, carpir telefone, endereços.
○
o roçado, desviar-se dos carros na rua, porque O grande equívoco, no qual a concepção tra- 277
○
○
a vida exige delas coisas muito diferentes e lhes dicional de ensino e aprendizagem se apoiou
○
○
oferece oportunidades de aprendizagem mui- nas últimas décadas, consiste em acreditar que
○
○
to diferentes. os conteúdos escolares de modo geral são
○
Quando a escola não valoriza os saberes que aprendidos por memorização. Não são, hoje
○
○
os alunos pobres trazem, fruto de sua experi- sabemos.
○
○
ência anterior, faz que eles se sintam entrando Para aprender a ser solidário, a trabalhar em
○
○
em novo mundo, estranho e hostil. Por não po- grupo, a respeitar o outro, a preservar o meio
○
derem corresponder ao que os professores es- ambiente, a gostar de ler e escrever é preciso
○
○
peram deles e percebendo que frustram as ex- vivenciar situações em que essas ações repre-
○
○
pectativas da escola, é de se esperar que aca- sentam valores. Não adianta memorizar infor-
○
○
bem se sentindo incapazes. Respeitar e, de fato, mações, como a de que é preciso ser solidário,
○
que os alunos possuem e criar um contexto es- à escrita. Isso pouco representa, pois a consci-
○
○
colar favorável à aprendizagem não são apenas ência de quais atitudes são necessárias e ade-
○
valores de natureza ética: são a base de um tra- quadas não garante que elas existam.
○
○
balho pedagógico comprometido com o suces- Para aprender a interpretar textos, redigir
○
○
so das aprendizagens de todos. textos e refletir sobre eles e sobre a escrita con-
○
○
Nas duas últimas décadas, a pesquisa a res- desenvoltura. Procedimentos – quaisquer pro-
○
peito dos processos de aprendizagem da leitu- cedimentos – são aprendidos com o uso.
○
○
ra e da escrita vem comprovando que a estraté- Para aprender conceitos e princípios com-
○
○
gia necessária para um indivíduo se alfabetizar plexos – como é o caso do sistema alfabético de
○
○
não é a memorização, mas a reflexão sobre a escrita –, ou seja, para se alfabetizar, não basta
○
escrita. Essa constatação pôs em xeque uma memorizar infinitas famílias silábicas. Propor
○
○
antiga crença, na qual a escola apoiava suas prá- que se aprenda a ler e escrever dessa forma sig-
○
○
ticas de ensino, e desencadeou uma revolução nifica tratar um conteúdo de alto nível de com-
○
mos agora passando por esse momento, com as ples, que supostamente poderia ser assimilada
○
○
rização, como funciona o aprendizado da lei- Quer dizer: para se alfabetizar, o indivíduo pre-
○
tura e da escrita?
○
Em primeiro lugar, é preciso considerar que cedimento complexo, que requer exercício),
○
○
alguns conteúdos escolares são, de fato, apren- além de compreender o funcionamento do sis-
○
○
didos por memorização. Tudo o que não requer tema alfabético da escrita (um conteúdo tam-
○
bém complexo, cujo aprendizado requer a cons- gua. Não basta ensinar aos alunos as caracte-
○
○
trução de interpretações sucessivas, que se su- rísticas e o funcionamento da escrita, pois, em-
○
○
peram umas às outras). bora fundamental, esse tipo de conhecimento,
○
○
Portanto, a afirmação de que se aprende a por si só, não os habilita para o uso da lingua-
○
ler e escrever lendo e escrevendo textos não gem em diferentes situações comunicativas. E
○
○
quer dizer que se trata de um processo simples, não basta colocá-los na condição de protago-
○
○
como o enunciado pode enganosamente suge- nistas das mais variadas situações de uso da lin-
○
rir. Aprender a ler e escrever lendo e escreven- guagem, pois o conhecimento sobre as carac-
○
○
do requer um conjunto de procedimentos de terísticas e o funcionamento da escrita não de-
○
○
análise e de reflexão sobre a escrita – um objeto corre naturalmente desse processo. Em outras
○
○
de conhecimento que, por suas características palavras, isso significa dizer que é preciso pla-
○
e seu funcionamento, exige alto nível de elabo- nejar o trabalho pedagógico de alfabetização,
○
○
ração intelectual por parte do aprendiz, seja ele articulando as atividades de uso significativo da
○
○
criança ou adulto. linguagem com as atividades de reflexão sobre
○
○
Para poder ler textos quando ainda não se ○
a escrita. Isso significa dizer que a alfabetiza-
sabe ler convencionalmente, é preciso utilizar ção – tomada como aprendizagem inicial da lei-
○
○
o conhecimento de que se dispõe sobre o valor tura e escrita – deve ocorrer em contextos de
○
○
sonoro convencional das letras e ter informa- letramento que potencializem o domínio da lin-
○
○
pode estar escrito. Em outras palavras, é preci- mesmo tempo, um processo de alfabetização
○
○
tura que implicam decodificação, seleção, an- ensino nas séries iniciais, instaurando uma
○
○
Para poder escrever textos, quando ainda aprender a ler e escrever, é indispensável que
○
○
não se sabe escrever, é preciso escolher quantas os professores tenham assegurado seu direito
○
○
e quais letras utilizar e, se a proposta for escre- de aprender a ensiná-los. Cabe às instituições
○
○
ver junto com um colega que faz outras opções formadoras a responsabilidade de preparar
○
de uso das letras, refletir a respeito de escolhas todo professor que alfabetiza crianças, jovens e
○
○
Para poder interpretar a própria escrita (ler • encarar os alunos como pessoas que preci-
○
para si mesmo e para os outros, com todas as rem uma imagem positiva de si mesmos,
○
letras, por que elas parecem estar fora de ordem, • desenvolver um trabalho de alfabetização
○
por que parece estar escrito errado conforme adequado às necessidades de aprendizagem
○
○
seu próprio critério etc. dos alunos, acreditando que todos são ca-
○
○
fabetizar lendo e escrevendo textos, como tam- • reconhecer-se como modelo de referência
○
bém nada há de fácil (aliás, é seguramente mui- para os alunos: como leitor, como usuário
○
○
tas didáticas de alfabetização a partir do que pende a alfabetização, para planejar as ati-
○
○
278
SIMPÓSIO 18
Letramento
○
○
te as atividades, bem como as suas ções institucionais necessárias para um tra-
○
○
interações nas situações de parceria, para balho educativo sério: consolidação de pro-
○
fazer intervenções pedagógicas adequadas; jetos educativos nas escolas, formas ágeis e
○
○
• planejar atividades de alfabetização desafia- flexíveis de organização e funcionamento da
○
rede, quadro estável de pessoal e formação
○
doras, considerando o nível de conhecimen-
○
adequada dos professores e técnicos;
○
to real dos alunos;
○
• à infra-estrutura material: adequação do 279
○
• formar agrupamentos produtivos de alunos,
○
considerando seus conhecimentos e suas espaço físico e das instalações, qualidade
○
dos recursos didáticos disponíveis, existên-
○
características pessoais;
○
cia de biblioteca e de acervo de materiais
○
• selecionar diferentes tipos de texto, que se-
○
diversificados de leitura e pesquisa, tempo
○
jam apropriados para o trabalho; adequado de permanência dos alunos na
○
○
• utilizar instrumentos funcionais de registro escola e proporção apropriada na relação
○
○
do desempenho e da evolução dos alunos, alunos–professor;
○
de planejamento e de documentação do tra-
○
• à carreira: valorização profissional real, sa-
○
balho pedagógico; lário justo e tempo previsto na jornada de
○
○
• responsabilizar-se pelos resultados obtidos ○
○
trabalho para o desenvolvimento profissio-
em relação às aprendizagens dos alunos. nal permanente, o planejamento, o estudo
○
e a produção coletiva.
○
profissionais é condição para que os professo- Sempre que se põe em foco a formação dos
○
nos a ler e a escrever. Não é possível ensinar a considerando o conjunto de variáveis que inter-
○
○
todos quando se sabe ensinar apenas àqueles ferem na qualidade das aprendizagens dos alu-
○
○
que iriam aprender de qualquer forma, por vi- nos. Do contrário, corre-se o risco de responsa-
○
verem em um contexto que provê condições e bilizar unicamente os educadores por resultados
○
○
A importância e a insuficiência
○
da formação de professores
○
É certo que a qualidade da formação dos ção inicial não habilitam adequadamente os
○
da educação escolar, mas é condição indispen- magistério? É essa distorção (cursos de habili-
○
○
sável a ela. As outras condições são: valoriza- tação que, de fato, não habilitam) que provoca,
○
○
ção profissional, adequadas condições de tra- em nosso país, uma outra distorção, com a qual
○
balho, contexto institucional favorável ao espí- temos nos debatido há vários anos: o papel
○
○
da autonomia. As transformações que a reali- maioria em várias regiões do país – já foram alu-
○
dade hoje exige só poderão ser conquistadas nos de uma escola pública que não lhes garantiu
○
○
com investimentos simultâneos em todos esses os conteúdos básicos a que todo cidadão brasi-
○
○
aspectos – já, há alguns anos, a prática vem leiro tem direito (conforme revelam os indica-
○
○
comprovando que são bem poucos os efeitos da dores de desempenho escolar das últimas dé-
○
Isso significa que as políticas públicas para a para o exercício profissional, roubou-lhes o di-
○
○
educação só terão eficácia real se tiverem como reito à formação de nível médio (ao ocupar o
○
meta melhorias relacionadas, ao mesmo tempo: espaço do Ensino Médio com as disciplinas di-
○
○
tas profissionalizantes); e não contam com um
○
prestarem serviço de qualidade à população, é
○
processo assistido de inserção na carreira, como preciso que as instituições formadoras cum-
○
○
professores iniciantes. Não é raro que essa in- pram a tarefa de habilitá-los adequadamente
○
serção ocorra por “tratamento de choque”: nas
○
para o exercício da profissão.
○
escolas mais distantes, nas classes mais difíceis,
○
○
sem apoio para o trabalho pedagógico.
○
Bibliografia
○
Nessas condições, manter-se professor é um
○
ato de valentia. Não seria justo que os sistemas
○
BARBOSA, José Juvêncio. A herança de um saber: a alfa-
○
de ensino e seus gestores assumissem uma po-
○
betização. In: Alfabetização – Catálogo de base de da-
○
sição de responsabilizar pessoalmente os edu- dos. São Paulo: FDE, s. d. v. 1.
○
cadores pelo fracasso do ensino. Se a sociedade
○
FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da lín-
○
demanda profissionais bem formados para gua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1985.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 19
Marildes Marinho
Lívia Suassuna
281
O livro didático e a construção
○
○
○
social da autoria na produção
○
○
○
de textos
○
○
○
○
○
Lucília Helena do Carmo Garcéz
○
Universidade de Brasília/DF
○
○
○
○
○
○
Em uma terceira série do Ensino Fundamental de uma pequena escola
○
○
pública da periferia, próxima a um hospital, uma jovem professora aplica
○
um exercício de redação do seu livro didático: redigir um texto a respeito
○
○
de projetos pessoais para o futuro a partir do poema “Verbo ser”,
○
○
○
de Carlos Drummond de Andrade, que começa assim:
“Que vai ser quando crescer? vivem perguntando em redor”.
○
○
A formação do professor, no que se refere gógicas para criar situações favoráveis ao cres-
○
○
ao trabalho com a língua portuguesa, com a ex- cimento e à reflexão sobre a linguagem, o co-
○
○
pressão, com a autoria, exige uma sólida base nhecimento e o mundo social.
○
Além disso, é essencial uma fundamentação se na interação social para então realizar-se,
○
○
pedagógica que lhe permita, com tranqüilida- consolidar-se no interior do indivíduo, ou seja,
○
de e segurança, tomar decisões adequadas, internalizar-se, não como cópia, mas como
○
○
originais, flexíveis e eficientes nas diversas si- reelaboração. É assim, nesse movimento do so-
○
○
tuações. Mais que isso, exige profissionalismo cial para o individual, pela mediação do ou-
○
condições para que o aluno possa desenvolver ções, o planejamento, as comparações, ou seja,
○
○
e ampliar continuamente seu universo existen- as funções superiores da mente, as que nos fa-
○
○
professor que catalisa o processo pelo qual os O trabalho pedagógico atual têm procura-
○
indivíduos se constituem como sujeitos, com do, cada vez mais, privilegiar o desenvolvimen-
○
○
282
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor
habilidades. Em decorrência dessa postura, vos conteúdos com conceitos, idéias e conhe-
○
○
são favorecidas as atividades interativas e cimentos que o aluno já adquiriu em experi-
○
○
interdisciplinares. ências anteriores. Leva o aluno a reformular
○
○
Esses procedimentos situam a aprendiza- idéias anteriores, substituindo-as por uma vi-
○
gem significativa como aquela em que concei- são nova e diferente, e assim a adquirir as ha-
○
○
tos mais inclusivos, ou seja, com maior poder bilidades necessárias à constituição das com-
○
○
de generalização e aplicação, funcionam como petências básicas, que serão gradativamente
○
base prévia à qual vêm se articular e agregar os consolidadas de acordo com o grau de matu- 283
○
○
conceitos novos, a partir de intensas operações ridade e que são essenciais para uma educa-
○
○
cognitivas do próprio aprendiz mediadas pelo ção integral de qualidade.
○
○
outro. Nesse processo há uma profunda Tendo como horizonte essa concepção de
○
interação entre os conhecimentos novos e os educação e de aprendizagem, para que o pro-
○
○
prévios, por meio de uma adesão total do su- fessor escolha com segurança o livro didático,
○
○
jeito à atividade de incorporação desses novos que poderá ser um auxiliar efetivo do seu tra-
○
○
conceitos, e é essa participação individual que balho, o ideal seria que ele desenvolvesse uma
○
torna a aprendizagem realmente significativa. ampla reflexão sobre o próprio objeto de aná-
○
○
Para que seja assim, o processo exige um en- lise, em consonância com suas concepções de
○
○
mento pedagógico, pois é nessa interação hu- questões que podem orientar essa reflexão, no
○
mana, nessa mediação qualificada e solidária, que se refere, por exemplo, ao livro de Língua
○
○
ais são revelados e pode ser determinado o ho- Uma ordem preliminar de indagações di-
○
com maior apoio e participação do professor, to: O livro didático (LD) é necessário? Poderia
○
○
ou seja, o que Vygotsky (1930) chama de zona ser dispensado? Por que, quando, em que cir-
○
○
Essa nova atitude pedagógica está em fran- sado? Como o LD tem sido escolhido na práti-
○
○
ca oposição aos procedimentos tradicionais, ca? Como o LD é usado na prática? Qual a sua
○
○
behavioristas, que privilegiam a memorização relação com os programas de ensino? Ele fun-
○
○
de itens isolados, arbitrários, pouco inclusivos, ciona como “o” programa de ensino propria-
○
com menor poder de generalização e baixa pos- mente? Qual a relação entre LD, em geral, e
○
○
anteriores. Tais práticas, que a reflexão atual Tais reflexões, evidentemente, exigem do
○
○
automatização e exigem do professor uma ati- petências, bem como das condições de traba-
○
○
de educador. Nesse universo, a interação fica- dagógica do LD, seria importante analisar: O
○
○
assimetria entre professor e aluno. Compreen- explicitado, organizado? Quais são as informa-
○
○
de-se hoje que tal método não assegura a du- ções de apoio ao professor? Elas contribuem
○
mentos, de forma que esses se tornam voláteis estratégias de trabalho por aula, por semana,
○
○
e desaparecem logo depois da “prova”, pois não por unidade ou por mês e semestre? São
○
○
ficativa acontece com a combinação dos no- posta pedagógica é crítica e flexível ou acrítica
○
e imobilizante? teórica? Há variedade de exercícios? Como é a
○
○
No que diz respeito à área de conhecimen- seleção e ordenação dos assuntos? Quais são
○
○
to específica – Língua Portuguesa –, há aspec- as capacidades cognitivas enfatizadas? Qual a
○
○
tos extremamente relevantes que devem ser relevância dos tópicos em relação às dificul-
○
observados no LD: Quais as concepções de lín- dades reais dos alunos? Como se dá a contex-
○
○
gua, de linguagem, de aprendizagem implíci- tualização quanto à função estilística dos ele-
○
○
tas no LD? O LD contempla as diversas verten- mentos enfocados? Há progressão e articula-
○
tes da língua: expressão oral, leitura informa- ção entre os exercícios e as explicações? Há
○
○
tiva, literária e história literária; a produção relação com a escrita real do aluno? O livro
○
○
escrita em todas as suas habilidades; a siste- propõe atividades complementares de enri-
○
○
matização gramatical? quecimento? Há coerência entre os objetivos
○
Expressão oral: Estão previstas atividades estabelecidos na proposta do autor e as ativi-
○
○
de expressão oral? O LD considera as diferen- dades realmente apresentadas no livro?
○
○
ças entre modalidade oral e escrita da língua? O professor deve levar em conta também a
○
○
As atividades estabelecidas prevêem o desen- ○
qualidade material do LD: A durabilidade de
volvimento do discurso oral de forma plena ou material do LD é satisfatória? A programação
○
○
apenas da leitura em voz alta e da declamação? visual é interessante, atraente e adequada aos
○
○
Leitura: Quais as concepções de leitura objetivos? O tipo de letra está de acordo com o
○
○
subjacentes à proposta do LD? Qual o tipo de nível de leitura do aluno? A ilustração tem qua-
○
tidade de textos versus gênero versus temas forma ideal com os textos? Pode ser utilizada
○
○
versus autores? Os textos são integrais? Qual é como uma introdução à linguagem visual? O
○
bilidades de leitura dos alunos e ao interesse? Essa listagem preliminar de questões de-
○
○
são os temas enfatizados? Eles configuram uma nhecimentos, valores, representações, concei-
○
ideologia predominante? Qual? A proposta de tos e atitudes do professor diante do seu obje-
○
○
cia nos princípios teóricos focalizados? Há va- entende por aprender. Ou seja, depende de sua
○
○
mecânica? Há oportunidade de reflexão e in- relação aos objetivos que estabelece para a sua
○
○
é vista como um processo? As várias etapas da tos. Durante muito tempo, a escola enfatizou,
○
○
Reflexão sobre a língua: Qual a relação da internalizados nas aulas e nas tarefas voltadas
○
○
gramática com o texto? Qual a concepção de para a leitura e para as noções gramaticais. A
○
língua e de aprendizagem subjacente aos exer- partir de um tema, geralmente escolhido pelo
○
○
cícios? Quais os conceitos enfatizados? A vari- professor, o aluno deveria demonstrar sua
○
○
284
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor
sem que, para o desenvolvimento dessa habi- da pela palavra, mas também com a experiên-
○
○
lidade, tivesse compartilhado uma reflexão cia de vida do indivíduo.
○
○
direcionada para os aspectos discursivos ou Escrever é um processo complexo inserido
○
○
recebido orientações mais específicas sobre o em práticas sociais que elegeram, no decorrer
○
ato de escrever. Esse texto, em sua primeira ou, da história coletiva, formas relativamente es-
○
○
no máximo, segunda versão, serviria natural- táveis de ação pela linguagem, a que chama-
○
○
mente para o processo de avaliação. mos gêneros. Por meio dos gêneros disponí-
○
O livro didático de Língua Portuguesa cris- veis na sociedade, o redator pode agir: expres- 285
○
○
talizou essa tradição, localizando a produção sar, imaginar, informar, expor, relatar, narrar,
○
○
de textos como simples adendo, exercício fi- persuadir, descrever, dialogar, dissertar, argu-
○
○
nal, encerramento da unidade de ensino. Caso mentar, contratar, atestar, declarar, convidar,
○
o professor acompanhasse rigorosamente as solicitar, registrar etc.
○
○
propostas do LD, todo o processo de desenvol- Empreender uma ação de escrita envolve:
○
○
vimento da escrita ficaria reduzido ao mínimo, motivação, interesse e necessidade; a configu-
○
○
e muitas das habilidades necessárias para a ração do destinatário e o estabelecimento dos
○
constituição da competência na produção de objetivos do texto; o uso intenso da memória;
○
○
textos seriam ignoradas. múltiplas e infinitas escolhas e decisões base-
○
○
O resultado disso foi que a pesquisa de de- adas no conhecimento acerca do tema, da lín-
○
○
sempenho na escrita, nas décadas de 1970 e gua e das estruturas textuais e discursivas pos-
○
me, teste, concurso. Compreendeu-se, com o tre seus objetivos iniciais e o resultado obtido.
○
○
avanço dos estudos dos resultados dos candi- O redator estabelece inicialmente um base
○
○
datos aos exames vestibulares, que aquela prá- de orientação: Qual é o assunto em linhas ge-
○
○
tica tradicional de ensino de redação estava rais? Qual o gênero mais adequado aos objeti-
○
sendo insuficiente e que a escrita exigia novas vos? Quem provavelmente vai ler? Que nível de
○
○
Hoje, a questão que se coloca retrocede às jetividade ou de impessoalidade deve ser atin-
○
○
procuram compreender como e por que ele Cada redator desenvolve, na sua história
○
○
chega a produzir um texto empírico com de- pessoal de consolidação da habilidade de es-
○
○
como seria possível transformar práticas esté- é diferente de pessoa para pessoa. Não há um
○
○
Nesse sentido, compreender a natureza da es- conhecer seus próprios procedimentos: fazer
○
○
Uma primeira aproximação revela que o lista de palavras-chaves; anotar tudo o que vem
○
○
aprendiz apresenta uma dificuldade básica de à mente, desordenadamente, para depois cor-
○
○
ação (Bronckart, 1999), em vista de o “texto para depois acrescentar detalhes, exemplos,
○
escolar” ter sido assimilado como um formu- idéias secundárias; construir um primeiro pa-
○
○
lário a ser preenchido, o que impedia o exercí- rágrafo para desbloquear e depois ir desenvol-
○
○
cio da autoria. O texto somente se constrói e vendo as idéias ali expostas; escrever a idéia
○
○
tem sentido inscrito em uma prática social, em principal e as secundárias em frases isoladas
○
vários níveis, pois lida com a capacidade sim- te uma espécie de sumário ou esquema geral
○
○
○
○
várias vezes. quanto:
○
○
Qualquer que seja o procedimento utiliza- ao leitor: Inseri-lo no texto ou tratá-lo de
○
forma neutra e distanciada. A opção esco-
○
do, ou o conjunto de procedimentos conjuga-
○
dos entre si, para que o autor fique satisfeito lhida foi mantida durante todo o texto? O
○
○
com o seu próprio texto, o trabalho de ajuste é leitor que se tem em mente é atendido du-
○
rante todo o texto?
○
imprescindível. Nesse momento, que é o mais
○
produtivo em termos de aprendizagem do fun- ao gênero de texto: Que plano de escrita
○
○
cionamento do texto, a colaboração de um lei- utilizar para a situação. O formato é ade-
○
○
tor próximo com o qual seja possível trocar quado à situação? As exigências referentes
○
ao gênero foram respeitadas ou há ambi-
○
idéias é fundamental (Garcez, 1998). As trans-
○
formações percebidas como necessárias pelo güidades e inconsistências?
○
○
autor ou sugeridas pelo leitor/colaborador às informações: O que informar e o que
○
○
podem levar a: enfatizar as idéias principais; considerar pressuposto. As informações
○
○ fornecidas são suficientes ou o texto ficou
reordenar as informações; substituir idéias ○
alcançar maior exatidão para as idéias; acres- introdução de informações novas é bem
○
corretas?
○
ses; eliminar palavras ou frases; substituir pa- gem está adequada à situação? A opção es-
○
consistente no texto?
transformações.
○
○
a interação entre situações novas de inter- tituído por expressão mais exata? Há
○
profissional?
○
des de idéias?
○
286
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor
○
. Aprender e ensinar com textos dos alunos.
○
seqüenciais, e múltiplos aspectos discursivos São Paulo: Cortez, 1997.
○
○
. L i n g u a g e m e e n s i n o - exe r c í c i o s d e
que precisariam ser considerados no processo
○
militância e divulgação. Campinas: Mercado de Letras/
○
pedagógico e na formação inicial e continua-
○
ALB, 1996.
da do professor (Nóvoa, 1999). Para que o re-
○
GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Pau-
○
dator aprendiz vivencie a constituição da au- lo: Martins Fontes, 1985.
○
○
toria pelas decisões e escolhas pessoais, é im- GÓES, M. C. R. de. A criança e a escrita: explorando a
○
prescindível a participação colaborativa do dimensão reflexiva do ato de escrever . In: SMOLKA. A. 287
○
○
professor e é essencial que esse professor tam- L. B. et al. (Orgs.). A linguagem e o outro no espaço
○
escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento .
○
bém tenha tido oportunidade de constituição
○
Campinas: Papirus, 1993. p. 101-20.
○
de sua própria autoria. ILARI, R. Uma nota sobre redação escolar. In: ILARI, R.
○
Tanto na formação inicial, como nas situa-
○
A Lingüística e o ensino da Língua Portuguesa. São
○
ções de qualificação contínua em serviço, quan- Paulo: Martins Fontes, 1985. p. 51-66.
○
○
do o professor vivencia a escrita de diversos gê- KATO, M. O aprendizado da leitura . São Paulo: Martins
○
Fontes, 1985.
○
neros, com diversos objetivos, aprofundando sua
○
. No mundo da escrita . São Paulo: Martins
própria experiência de produtor de texto, com-
○
Fontes, 1986.
○
preende melhor o objeto com o qual trabalha
○
○ . A concepção da escrita pela criança . Cam-
com o aluno e amplia suas condições de colabo-
○
do livro didático serão enriquecidos a partir de In: SÃO PAULO. Secretaria de Estado da Educação.
○
○
uma formação que considere o professor não Subsídios à proposta curricular, São Paulo: CENP, 1978.
○
Quixote, 1999.
como efetivo autor.
○
1977.
○
○
Fontes, 1983.
○
○
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem . São Pau- ROCCO, M. T. F. Crise na linguagem: a redação no vesti-
○
BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e dis- REUTER, Yves. Les interactions lecture -écriture. Berne:
○
CALKINS, L. M. A arte de ensinar a escrever . Porto Ale- SMOLKA, A. L. B. A dinâmica discursiva do ato de escre-
○
FRANCHI, Eglê. E as crianças eram difíceis... A redação et al. (Orgs.). A linguagem e o outro no espaço esco-
○
na escola . São Paulo: Martins Fontes, 1984. lar: Vygotsky e a construção do conhecimento. Campi-
○
○
. Técnica de redação. São Paulo: Martins São Paulo: Martins Fontes, 1991.
○
Fontes, 2001.
○
Fontes, 1991.
○
to, 1979.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Livro didático: uma possibilidade
○
○
○
de formação do professor?
○
○
○
○
Marildes Marinho
○
○
Universidade Federal de Minas Gerais/MG
○
○
○
○
○
Diante desse interesse, seria razoável supor
○
A temática desta mesa nos sugere abordar
○
as implicações decorrentes da escolha e do uso que os tempos mudaram, mas isso não é bem
○
○
do livro didático na formação do professor. Ao verdade, quando se observa que esse interesse
○
tem endereço bastante conhecido e forma bem
○
final do percurso que tracei para a reflexão so-
○
bre esse tema, percebi que ele foi de muitas direcionada, as políticas de melhoria das con-
○
○
perguntas e de poucas respostas; talvez uma dições de existência (seu conteúdo e seu uso
○
○
ção: Livro didático: uma possibilidade de for- o que fazer para aperfeiçoar um manual esco-
○
○
de “escritores”, objeto de interesse de “colecio- toma o livro didático, nesse momento pode-se
○
○
nadores” mas não de “bibliófilos”, manipulado observar uma tendência a não problematizar a
○
suposto parece ser o de que seu desprestígio, contrário, busca-se solução para os problemas
○
○
por contaminação, desprestigia também aque- da “vida cotidiana” desse objeto, como se ela
○
288
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor
riam por detrás desse movimento histórico em ações transformadoras do livro didático e da sua
○
○
que – diferentemente de um outro anterior – inserção na história das disciplinas escolares e
○
○
bastante se escreve e se fala, com convicção, da das políticas educacionais. Enquanto elas não
○
○
necessidade do livro didático, ou seja, de um existem, continuamos ousando algumas postu-
○
livro didático com características bem especí- ras e perspectivas, a exemplo das posições con-
○
○
ficas? tra ou a favor do uso do livro didático.
○
○
Quem não se lembra da “ousadia” daqueles
○
que imaginavam uma escola sem livro didáti- Contra ou a favor do livro 289
○
○
co, com um professor mais autônomo nas suas
didático. Por quê?
○
○
ações pedagógicas? Mesmo nesse momento,
○
○
parece que pouco se escreveu a favor do livro Posicionar-se contra o uso de um manual
○
didático e, provavelmente, nada se escreveu didático na escola foi e será por algum tempo
○
○
contra ele. Encontram-se, sim, análises sobre a uma ousadia. Uma das explicações – como já
○
○
ideologia e o preconceito do livro didático ou dito antes – para essa ousadia é o investimento
○
ainda tímido das pesquisas das universidades
○
sobre os conteúdos específicos a cada área de
○
ensino (Faria, 1991; Molina, 1987; Nosella, com o livro didático, a não ser para destinar a
○
○
1988). No entanto, foram significativas as expe- ele críticas severas. Se a pesquisa ainda é pou-
○
○
riências que ensaiaram essa “liberdade” e “au- co significativa, o que falar da própria produ-
○
essas experiências? Teríamos mesmo superado sor e para o aluno? A escrita acadêmica legíti-
○
○
essa polêmica ou existiriam razões ainda pou- ma, que rende tributos para o acadêmico, é a
○
○
co compreendidas para o seu esfriamento ou da pesquisa, aquela que ele produz para os seus
○
até mesmo “esquecimento”? Teria o professor pares, principalmente se for publicada no mer-
○
○
superado essa polêmica (para ele, dificuldade) cado editorial estrangeiro (Soares, 2000).
○
○
ou ele estaria lançando mão de novas estraté- Assim, temos que nos reportar a um antigo
○
○
gias de relação com esse objeto, deixando cada (e ainda muito importante) refrão para justifi-
○
vez mais de utilizá-lo, a exemplo do que aqui car por que é ousadia ser contra o livro didáti-
○
○
relatou o pesquisador Jean Hébrard sobre o li- co. Do ponto de vista do professor, as suas con-
○
○
vro didático na França? O que sabemos sobre dições de exercício da profissão: para sobrevi-
○
○
os usos do livro didático na sala de aula é mui- ver, ele se ocupa quase que estritamente da ta-
○
Enfim, a pergunta maior entre todas que nejar as suas aulas, escolher e produzir o seu
○
○
aqui vêm se apresentando poderia ser assim material. As escolas não disponibilizam, ade-
○
○
resumida: como transformar o livro didático em quadamente, materiais didáticos de que o pro-
○
objeto de estudo para melhor compreensão da fessor possa lançar mão, de forma ágil, dentro
○
○
história das práticas escolares, compreensão de uma condição de trabalho “sem planejamen-
○
○
esta que possa se reverter em ações para a to prévio”, “improvisado”. Não há livros, jornais,
○
crita por meio de um novo livro didático? não se encontram organizados de forma a per-
○
○
Para compreender as condições de existên- mitir o seu uso no cotidiano da sala de aula. O
○
○
cia desse objeto escolar, seria importante: a) livro didático torna-se, então, o material mais
○
ele se insere no conjunto dos objetos pedagó- do aluno, ou no armário/estante da sala de aula.
○
○
que diz respeito aos sujeitos a quem se destina disponibilização dos espaços e dos materiais
○
○
(professor e aluno). Essas e outras pesquisas indispensáveis para o trabalho na “sala de aula”?
○
○
poderiam, certamente, sustentar discussões e Do ponto de vista do aluno, como ousar di-
○
zer “não” ao livro didático, quando se reconhe- políticas de compra e distribuição de livros –
○
○
ce, por explicações sociológicas, políticas, an- didáticos ou não – sobre o processo de leitura,
○
○
tropológicas, o significado da posse de livros, sobre os usos que se fazem deles?
○
○
ainda que de um livro desprestigiado e doado? Ainda assim, neste momento, acredito que
○
(Ou também desprestigiado porque é doado?) as dificuldades de relação com o livro no Brasil
○
○
A grande maioria de alunos só conta com esse – particularmente quando se trata do poder
○
○
livro didático como material de leitura. Esse li- aquisitivo da grande maioria de professores e
○
vro, por sua vez, extrapola o seu espaço escolar alunos – não permitem ousar romper com uma
○
○
e ganha função específica nas práticas de leitu- lógica das políticas de leitura e de acesso ao li-
○
○
ra fora da escola, na família. vro, neste caso, de acesso a um livro didático.
○
○
A questão do valor do livro didático em es- Paradoxalmente, um livro que teria uma função
○
colas e em grupos sociais distintos – tanto para específica de organizar e sistematizar determi-
○
○
o professor quanto para o aluno – é muito im- nados conteúdos de uma disciplina escolar
○
○
portante para se pensar a política do livro di- pode se transformar em símbolo e instrumen-
○
○
dático no Brasil. Que efeitos tem uma política ○
to de outras práticas de leitura fora da escola.
governamental de doação de livros, e de quais Contudo, mesmo se essas apropriações ou
○
○
livros? Que relações os estudantes, as famílias reinvenções dos modos de ler livro didático sus-
○
○
dos estudantes e os professores mantêm com pendem, de certa forma, nossas descrenças em
○
○
os livros distribuídos gratuitamente pelo gover- relação a efeitos positivos, é necessário reco-
○
no? Seriam diferentes, se comprassem os livros? nhecer que os problemas que a sua história nos
○
○
blica, na biblioteca da escola? Como se compor- Levinson, ontem, apresentou-nos alguns deles.
○
tam as famílias e os estudantes que compram O mais evidente desses problemas se fez visível
○
○
os seus livros? Por que se atribui – se é que se no mercado editorial, que, apoiado pelas polí-
○
○
atribui – tanto valor à posse de livros? Seria re- ticas de produção e distribuição do livro didá-
○
○
sultado das políticas precárias de socialização tico, pelas precárias condições de formação do
○
do livro por meio das bibliotecas, dos emprés- professor e do exercício da profissão docente,
○
○
timos? O que significaria para os grupos tornou-se o responsável mais visível pelo perfil
○
○
pais e filhos desses grupos, entrarem em uma Nesse sentido, a avaliação do livro didático,
○
livraria para comprar o seu material escolar, os conforme o Programa Nacional do Livro Didá-
○
○
seus livros, assim como o fazem os outros gru- tico (PNLD), tem um papel fundamental ao atu-
○
○
pos? Ou também o contrário: seria possível re- ar diretamente na modificação do perfil desses
○
○
criar formas mais coletivas de uso de livros, de manuais. Penso que, neste momento, as conse-
○
leitura, também nesses grupos de elite econô- qüências dessa avaliação recaem preferencial-
○
○
mica e intelectual que fazem do livro um obje- mente sobre os editores, que tentam adequar
○
○
usos da escrita no cotidiano de camadas popu- lógicas indicadas por instituições de ensino e
○
lares, pude observar famílias queimando livros pesquisa. No entanto, a influência dessas avalia-
○
○
escolares ou porque, segundo elas, não tinham ções na escola, no processo de seleção dos li-
○
○
espaços para guardá-los, ou porque não tinham vros, ainda vai levar algum tempo, por questões
○
○
tido e não teriam mais utilidade, diante do “fra- de implementação de todo o processo de avalia-
○
buição do livro didático têm um efeito simbó- ção, na distribuição do manual de resenhas, na
○
○
lico e precisam ser mais bem analisadas, se qui- distribuição dos livros, na organização do tra-
○
sermos desfazer alguns nós historicamente ata- balho de seleção nas escolas etc.
○
○
dos em torno das práticas sociais de leitura e Imaginando, então, um momento em que o
○
○
escrita em nosso país. Que efeitos teriam essas processo de avaliação (do ponto de vista das
○
290
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor
ações das equipes avaliadoras: MEC e universi- 1. Um livro didático tende a selecionar uma
○
○
dades) esteja consolidado, o foco de atenção perspectiva teórico-metodológica, enquan-
○
○
passa a ser o professor e a escola onde se dá a to que a prática de sala de aula permite (ou
○
até mesmo exige) a diversidade; a prática de
○
escolha. O professor estaria preparado para ava-
○
liar um manual didático? É importante lembrar ensino na sala de aula envolve uma história
○
(sujeitos e ações, num determinado mo-
○
que os critérios e as estratégias de escolha dos
○
mento, com determinadas expectativas,
○
professores estarão marcados pela sua forma-
○
objetivos e conhecimentos), enquanto o li- 291
ção inicial e capacitação em serviço. Já existem
○
vro é um material previamente definido,
○
dados disponíveis de pesquisas sobre escolha e
○
endereçado a um perfil projetado de aluno
○
uso do livro didático que apontam a dificulda-
○
e de professor. Portanto, não pode ser o úni-
○
de de professores em adotar livros que exigem co material a ser “seguido”.
○
um conhecimento de que eles não dispõem.1
○
2. O livro didático não é o material e nem o
○
Disso se pode concluir que o conhecimen-
○
conteúdo de ensino-aprendizagem, nem os
○
to sobre livro o didático, a sua história, as suas
○
representa na sua amplitude: os livros, os
○
condições de produção, os seus conteúdos de-
jornais, as revistas, os filmes, os cd-roms que
○
veriam fazer parte da formação desse profes-
○
os alunos devem e podem ler, ver, ouvir não
○
sor. No entanto, sabemos (embora não tenha
○
○
podem estar dentro dos livros didáticos,
feito uma pesquisa e nem tenha levantado pes- assim como não estão as bibliotecas, as li-
○
○
quisas existentes sobre o assunto) que, mesmo vrarias, as ruas, as editoras etc. Os livros di-
○
nos cursos de Pedagogia, esses manuais têm dáticos podem representar apenas parte do
○
○
presença tímida. Nos cursos de licenciatura, a conteúdo e dos procedimentos que envol-
○
○
Assim, deixam-se para o final do curso os co pode operar, ainda existem restrições sig-
○
○
conteúdos de natureza pedagógica, que têm re- nificativas, pela própria diversidade de con-
○
lação com a escola, com o ensino-aprendizagem. cepções que o objeto de ensino em uma dis-
○
○
Assim também, mesmo que se queira abordar a ciplina pode apresentar, além dos proble-
○
○
questão do livro didático, ela só pode se apre- mas já cristalizados na história do livro di-
○
ses conteúdos. O mais provável é que o livro di- tações dadas pelos próprios editores e à
○
○
dático ganhe existência, de fato, no momento em competência ou ao perfil de autores que es-
○
velmente com esse objeto. Por isso, além dos Magda Soares (1996: 63) destaca o processo
○
ças nos cursos de licenciatura e nos processos ção do ensino que amplia “enormemente o
○
○
cepção do livro didático. Ao livro didático ain- o valor social e cultural atribuído aos livros di-
○
que exige cobrar dele conteúdos, procedimen- educacional, principalmente responsáveis por
○
1
O MEC/Ceale está finalizando uma pesquisa sobre o processo de escolha do livro didático em escolas brasileiras.
○
cos, quase sempre professores dos níveis em que Nesse sentido, o problema do conteúdo do
○
○
ensinam. livro didático não se encontra apenas no mer-
○
○
cado editorial, nos seus autores, mas também
○
Além das questões que envolvem a produ-
○
nas condições históricas do seu leitor. O pro-
○
ção do livro didático, outros fatores comprome- fessor, como leitor e usuário do livro didático,
○
○
tedores da sua qualidade e do seu uso na escola define, de certa forma, os conteúdos e as estra-
○
○
geram dúvidas, sim, sobre a sua utilidade pe- tégias editoriais de produção desse livro. É prin-
○
dagógica e cultural. Um desses fatores são as cipalmente por ele e para ele que os editores/
○
○
condições de formação do professor e de exer- autores formulam uma imagem de leitor, com-
○
○
cício da sua profissão. Ou seja, muitas vezes, patível com seus conhecimentos, expectativas
○
vemos um professor com uma competência
○
e condições de exercício da profissão.
○
maior do que a do próprio livro submetendo O que adiantariam, então, propostas inova-
○
○
seus alunos ao livro didático, porque é o recur- doras, materiais sofisticados nos livros didáti-
○
○
so mais rápido e eficiente que ele tem para que cos, se o professor (ou a escola) não apresentar
○
a sua aula aconteça. Ele só toma conhecimento ○
○
as disposições esperadas – entendendo-se dis-
do conteúdo e da atividade que propôs ao alu- posições como o conhecimento desejável para
○
○
formação do professor
○
instrumento para a formação do professor. Es- tante evidência o estado da educação e da pro-
○
○
ses impressos têm papel significativo nessa for- fissão docente no Brasil.
○
Bibliografia
○
sa formação.
○
Nesse sentido, mais do que os seus conteú- e livros didáticos. In: ABREU, M. (Org.). Leitura, história
○
○
dos, é importante pensar como esses materiais e história da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2000.
○
Cortez. 1991.
○
postas políticas têm se pautado preferencial- MOLINA, Olga. Quem engana quem: professor x livro didá-
○
○
mente pelos guias curriculares e pelo livro di- tico . Campinas: Papirus, 1987.
○
dático, ou seja, por uma definição mais clara dos NOSELLA, Maria de Lourdes. As mais belas mentiras: a
○
○
conteúdos e procedimentos didáticos que de- ideologia subjacente aos textos didáticos. São Paulo:
○
Moraes, s. d.
○
vistas como redutoras de todo o conjunto das Pedagógica, n. 12, p. 53-63, Belo Horizonte, nov./dez.
○
○
292
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor
○
○
○
implicações para a formação
○
○
○
do professor
○
○
○
○
○
Lívia Suassuna
○
Universidade Federal de Pernambuco/PE 293
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
Neste trabalho, pretendemos discutir o tema do
○
brasileira, dando especial ênfase ao conceito de au-
○
livro didático de Português – e, eventualmente, de toria. Nessa segunda parte, nosso objetivo é, de um
○
○
qualquer outra disciplina escolar, – a partir de pres- lado, ampliar o campo de análise do livro didático
○
supostos teóricos da análise do discurso. Em virtu- para além de sua dimensão propriamente didático-
○
○
de das muitas correntes de pensamento que se pedagógica e, de outro, relacionar alguns pressupos-
○
○
estruturaram em torno do rótulo “análise do discur- tos da análise do discurso com a prática pedagógica
○
so”, esclarecemos que será adotada aqui a linha fran- e o papel do professor como elaborador de aulas e,
○
○
cesa de estudo, caracterizada, grosso modo, pela ar- supostamente, responsável pela escolha e uso do li-
○
○
ticulação do discurso com a história e a ideologia. vro didático (daí a ênfase no conceito de autoria).
○
Inicialmente, faremos um rápido levantamen- Nas conclusões, tal como sugerido no título do
○
○
to de alguns estudos sobre livro didático para sali- trabalho, indicaremos algumas implicações do de-
○
○
entar que, seja qual for a especificidade de seus bate para a formação do professor. Nosso foco re-
○
subtemas – produção, circulação, avaliação, escolha, cairá sobre questões do tipo: o que significa, em
○
○
uso –, em grande parte deles é apontada ou persiste termos discursivos, adotar um livro didático? Como
○
o livro didático nas aulas de Língua Portuguesa. tico e por meio dele? O que há de singular na práti-
○
○
cos da análise do discurso, a partir dos quais é pos- que ele adote um livro didático? Há lugar para a
○
○
sível pensar o livro didático e sua inserção na escola autoria no livro didático?
○
○
○
○
○
○
○
alizados sob os mais diferentes enfoques teóri- Geraldi deu a Ezequiel Theodoro da Silva,
○
○
cos e metodológicos. Para além da paixão que o publicada no periódico Leitura – teoria e práti-
○
constitui, de fato, material instrucional impres- torno do LD. Entre elas, figuram as seguintes:
○
○
○
○
zir o processo de ensino: de adotado passa para o público infanto-juvenil.
○
○
a adotar o professor e os alunos” (idem); Dentro da linha de pesquisa sobre o conteú-
○
○
c. “O LD se organiza em função dos conteú- do ideológico do LD, citamos os trabalhos de
○
dos a serem ensinados, não em função do Bonazzi e Eco (1980), Nosella (1981) e Faria
○
○
movimento do processo de ensino-apren- (1986). Ressalvadas certas peculiaridades de
○
dizagem.” (p. 5);
○
cada estudo, os três apontam para a mistifica-
○
d. “[...] o LD é adotado [...] porque dá as aulas ção da realidade presente no LD, que funciona-
○
○
prontas, dispensando de criá-las segundo ria como veículo de transmissão da ideologia
○
○
as necessidades concretas do movimento dominante e, por extensão, da reprodução das
○
do ensino-aprendizagem.” (idem);
○
relações de produção da sociedade capitalista.
○
e. “[...] os professores de Língua Portuguesa e O estudo de Perez (1991) tem como objetivo
○
○
os professores de Linguagem das séries ini- identificar e compreender o projeto de ensino
○
ciais do 1º grau deveriam, a meu ver, trocar
○
de Língua Portuguesa e de Literatura Brasileira
o LD pelo livro (sem adjetivos)” (p. 7). ○
○
○
subjacente a alguns manuais, pela análise de
Outro trabalho importante é o de Britto suas fontes teóricas e das relações dessa produ-
○
○
(1997). Depois de fazer uma retrospectiva do ção com o contexto social, em geral, e com a in-
○
○
debate nacional em torno do LD, o autor salien- dústria cultural em particular. Segundo o autor,
○
materiais didáticos (tais como a incorporação de e o “novo” saber, isto é, verificar como os discur-
○
○
correto de temas sociais) não evidenciam a exis- foram incorporados ao LD, ou, como disse Joa-
○
tência de mudanças substanciais nos livros, nos quim Fontes, no prefácio da obra, como esses
○
○
manuais e nas cartilhas. Para Britto, a questão discursos foram deslocados das universidades e
○
○
central repousa na relação que se estabeleceu centros de pesquisa para o livro escolar.
○
○
entre o LD e a prática pedagógica, e essa relação Perez concluiu, em sua análise, que esses sa-
○
programas, nas práticas de ensino e na própria mentos sobre língua e literatura, agrupados em
○
○
O vínculo entre o LD e a prática escolar se fetiche cultural, ele afirma que mudar o LD im-
○
explica por três razões principais: 1) a plica uma nova concepção de cultura e a trans-
○
○
industrial de massa (que obriga a uma produ- propicie o enriquecimento cultural, a reflexão
○
○
ção em série e faz o LD se impor como necessi- sobre a sociedade e o acesso a formas efetivas
○
os agentes pedagógicos); 2) o papel ideal e ideo- O livro de Freitag, Costa e Motta (1997) cons-
○
○
logicamente atribuído à escola (que faz o LD to- titui um marco dos estudos acerca do LD. As au-
○
○
mar para si a tarefa de estabelecer uma ponte toras realizaram um “estado da arte” do LD no
○
entre as instâncias produtoras do conhecimen- Brasil, tomando para análise manuais e pesqui-
○
○
to e o processo pedagógico e funcionar como sas produzidos nos últimos quinze a vinte anos.
○
○
formulador do currículo); 3) a visão do aluno Nessa obra, defende-se que o estudo do LD não
○
○
como ser em formação (que dá origem a um pro- faz sentido se isolado dos demais componentes
○
cesso de simplificação e padronização da expo- do sistema educacional e que, por isso, a exposi-
○
○
sição do conteúdo, na forma de um “didatismo ção se organiza em torno dos seguintes eixos:
○
○
se estendem aos livros paradidáticos, incluindo ram indicar os trabalhos de maior projeção, as
○
294
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor
lacunas de cada um e as críticas que merecem, à gares específicos numa dada sociedade; ao con-
○
○
luz do debate internacional, do funcionamento trário, ambos são encarados como “executores
○
○
do sistema educacional brasileiro e do LD no de tarefas” preconcebidas e padronizadas.1
○
○
contexto da alfabetização e da leitura em geral. Para concluir esta parte, reafirmamos que
○
Por fim, as autoras apresentam as conclu- são múltiplos os enfoques a partir dos quais se
○
○
sões, salientando que a pesquisa sobre LD no vem estudando e pesquisando o LD. Mas, a des-
○
○
Brasil tem longa tradição e veio apresentar mai- peito dessa diversidade, de um modo ou de ou-
○
or importância nos últimos cinco a dez anos. Elas tro, os autores sempre colocam, para si e para 295
○
○
ainda ressaltam, ao lado da quantidade, a quali- seus leitores, questões relativas à adoção ou não
○
○
dade, a profundidade e a heterogeneidade dos do LD e ao que se poderia fazer diante de suas
○
○
trabalhos empreendidos, dos quais tentaram fa- limitações e problemas (Mudar ou melhorar o
○
zer uma síntese, agrupando conhecimentos LD? Aboli-lo? Preparar melhor o professor? Dar-
○
○
dispersos e buscando “inserir cada peça dessa lhe outras condições de vida e trabalho?).
○
○
produção no imenso painel que representa a No caso deste ensaio, por já termos feito um
○
○
questão do LD no Brasil, com vista à elaboração outro estudo em que discutimos a adoção ou não
○
de um quadro básico para a formação e infor- do LD e possíveis critérios de análise, avaliação
○
○
mação do leitor”. e escolha (Suassuna, 1994), vamos propor um
○
○
Mais recentemente, o LD passou a ser estuda- deslocamento no eixo do debate e nos interro-
○
○
do na perspectiva teórica da análise do discurso. gar sobre outros aspectos pertinentes ao tema.
○
do discurso – na medida em que veicula verda- como já mostramos no item 1, não seria demais
○
Outra autora que se refere, nesses termos, ao que diz respeito à investigação sobre o ensino-
○
○
discurso da competência, pois funciona como AD tem como objeto de estudo específico o dis-
○
○
espaço de um saber definido, pronto, acabado, curso como efeito de sentidos entre locutores. A
○
○
correto e, por isso, fonte última e, às vezes, úni- língua seria, na verdade, o lugar material em que
○
ca de referência.
○
Citamos, ainda, dessa mesma coletânea, o 1995). Assim, diante do texto, tomado como for-
○
○
artigo de Carmagnani (1999), que tematiza as mulação do discurso, o analista deve-se perguntar
○
trangeira. Diz Carmagnani que o professor e o É ainda em Gregolin (1995: 20) que podemos ler o
○
○
aluno não são vistos como sujeitos situados po- que significa empreender AD: “[significa] tentar
○
1
Silva e outros (1997) compartilham da mesma opinião e se referem à monofonização do discurso do aparelho escolar, cujo tom único é dado
○
○
○
tória e a sociedade que o produziu”. tre autoria e locutor (como falante responsável
○
○
A AD coloca-se diferentemente em relação à pelo que diz) e a singularidade (forma peculiar
○
○
Lingüística tradicional não apenas por articular pela qual o autor se faz presente no texto).
○
os campos da língua e da ideologia, mas tam- Possenti indaga em seu trabalho: Como co-
○
○
bém porque parte de uma outra concepção de locar a questão da autoria nas redações de ves-
○
○
sujeito (Possenti, 1995): não se trata mais do su- tibular?3 Se antes se considerava bom um texto
○
jeito idealizado, consciente, fonte dos sentidos, gramaticalmente correto, pois as categorias de
○
○
mas de um sujeito dividido, heterogêneo, cons- julgamento eram claramente estabelecidas nas
○
○
tituído pelo outro (e aqui se vê claramente a in- gramáticas normativas, agora se trata de ir adi-
○
○
fluência da psicanálise na AD). ante: um texto só pode ser avaliado em termos
○
A questão que nos interessa de perto neste discursivos, mais exatamente, “[...] a questão da
○
○
artigo é exatamente a do sujeito (da autoria, mais qualidade do texto passa necessariamente pela
○
○
precisamente), no seguinte sentido: consideran- questão da subjetividade e de sua inserção num
○
○
do que o processo de ensino-aprendizagem de ○
quadro histórico – ou seja, num discurso – que
Língua Portuguesa é um discurso, que lugar (po- lhe dê sentido” (Possenti, 2000: 3).
○
○
sição discursiva) cabe ao professor que escolhe/ Trata-se, pois, para Possenti, de singularida-
○
○
Para empreender a discussão, vamos tomar historicamente dadas, num aparelho discursivo
○
○
que Possenti (2000) coloca questão parecida ao uma posição histórico-ideológica, o sujeito, em-
○
tratar de textos de vestibulandos. bora heterogêneo, cindido, pode ser ele mesmo,
○
○
O autor inicia seu artigo afirmando que es- ou seja, diferente de outro que esteja numa mes-
○
○
crever (bem) é mais uma questão de como do ma posição discursiva. O que vai distingui-los,
○
○
que uma questão de o quê. Segundo ele, houve conforme Possenti, é exatamente o como.
○
conteúdo das redações, seja pela necessidade tenta mostrar como seria possível identificar a
○
○
de tornar o aluno sujeito de um discurso críti- presença do autor num texto, ou mesmo distin-
○
○
co, seja porque, a partir de um pressuposto bá- guir textos com e sem autoria. Para tanto, ele faz
○
não haveria texto. O autor defende, todavia, 1. Não basta que o texto satisfaça exigências
○
○
te captar o conteúdo de um texto e, sim, 2. Não basta que o texto satisfaça exigências
○
verificar a relação entre seu modo de ser 3. As verdadeiras marcas de autoria são da or-
○
○
construído e os efeitos de sentido que ele pro- dem do discurso, e não do texto ou da gra-
○
○
cursos; trabalhar sobre e a partir de outros tex- se dizer que alguém se torna autor quando as-
○
○
2
Souza (1999) também aborda essas questões, mas de um ângulo diferente. Ela mostra que a autoria do LD está associada, predominante-
○
○
mente, ao sujeito escritor, considerado autor desde que sua autoridade seja legitimada pela editora que o valida. Souza ainda situa o autor
○
como um “intérprete de conteúdos complexos”, responsável pela configuração do conhecimento a partir da seleção do conteúdo a ser
○
veiculado na escola.
○
○
3
Pensamos que a indagação é cabível também na discussão sobre os textos escolares em geral.
○
296
SIMPÓSIO 19
Escolha e uso do livro didático – Implicações para a formação do professor
○
○
texto. ensino de Português é um discurso. Acrescente-
○
○
Em termos da primeira atitude, o discurso do mos que a aula seria um espaço de construção
○
○
autor, na verdade, não lhe pertence; pertence a da autoria do professor. Argumentemos agora
○
em defesa desse não.
○
toda uma comunidade cultural; seu discurso é
○
atravessado pelo do outro. No entanto, nesse O professor não é autor da aula, primeiramen-
○
○
gesto de dar voz a outros enunciadores, há algo te porque o como não cabe a ele e, sim, ao autor
○
do LD, ou seja, este é quem articula discursos e 297
○
do autor: o jeito, o como. Quanto a manter dis-
○
os entrega ao professor, mero repassador do já-
○
tância, o locutor/enunciador constitui-se como
○
tal por marcar sua posição em relação ao que diz dito e já-articulado.
○
○
e também ao seu interlocutor. Essa marcação de Em segundo lugar, pensando o professor
○
como um leitor e tomando a concepção de leitu-
○
posição é uma exigência do próprio discurso,
○
decorrente do fato de que a língua não é um có- ra de Possenti (2000), verifica-se que o professor
○
○
digo transparente e sua relação com a posição/ não é o sujeito que desmonta os textos para ver
○
○
ideologia não é direta. como eles são construídos, verificando a relação
○
entre a sua construção e os efeitos de sentido que
○
Assim, o discurso e a intervenção no discur-
○
so se estruturam: produzem. Estão fora do controle do professor a
○
○
a) no sentido histórico, pois não se trata de escolha e a desmontagem dos textos, tendo em
○
○
invenção individual (há um já-dito posto na vista que suas aulas são como momentos de um
○
b) no sentido da singularidade, pois não se tra- te escolhidos por um outro leitor, devem fazer
○
○
com base em conceitos e fundamentos da análi- damentado e elaborado que possa ser, por mais
○
○
se do discurso. Especificamente, nossa questão que tenha coerência interna, está fora da ordem
○
○
dizia respeito à autoria e a questão teórica que do discurso instituída na aula e por ela. Sua ado-
○
A resposta, conforme nosso ponto de vista e Quanto às duas atitudes que fazem de alguém
○
○
o diálogo com o texto de Possenti (2000), é não. um autor – dar voz a outros enunciadores e man-
○
ter distância em relação ao próprio texto –, não é Bibliografia
○
○
do professor a “operação de caça” aos dizeres dos
○
BONAZZI, M.; ECO, U. Mentiras que parecem verdades. São
○
outros;4 eles já estão ali, no LD, escolhidos, recor-
○
Paulo: Summus, 1980.
○
tados, configurados; e, como a articulação desses BRITTO, L. P. L. A concepção de língua e gramática nas produ-
○
dizeres já está dada, não se pode dizer que o pro-
○
ções didáticas. Leitura – teoria e prática, n. 29, p. 3-15, ano
○
fessor mantenha distância em relação ao seu pró- 16, jun. 1997.
○
CARMAGNANI, A. M. G. A concepção de professor e de aluno
○
prio texto, já que este não existe como produto da
○
no livro didático e o ensino de redação em língua materna
reflexão e do trabalho docente (como manter dis-
○
e língua estrangeira. In: CORACINI, M. J.(Org.). Interpreta-
○
tância em relação ao meu dizer se eu não digo?).
○
ção, autoria e legitimação do livro didático: língua materna
○
Por último, e sem a pretensão de esgotar o e língua estrangeira. Campinas: Pontes, 1999. p. 127-33.
○
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
○
debate, retomemos a idéia de Possenti, de que
○
1994. v. 1: Artes de Fazer.
ser autor é agenciar os recursos da língua de
○
CORACINI, M. J. Apresentação. In: CORACINI, M. J. (Org.). Inter-
○
modo mais ou menos pessoal e de que esse
○
pretação, autoria e legitimação do livro didático: língua mater-
○
agenciamento só produz efeitos de autoria quan- na e língua estrangeira. Campinas: Pontes, 1999a. p. 11-14.
○
○ .A produção textual em sala de aula e a identi-
do se dá num contexto histórico definido. Há ○
ficos, crenças, ideologias, conteúdos, dados cul- FARIA, A. L. G. Ideologia no livro didático. 4. ed. São Paulo:
○
○
menos pessoal em contextos históricos defini- FREITAG, B. et al. O livro didático em questão. 3. ed. São Pau-
○
cabe, quando muito, escolher um LD a partir de contra? Entrevista a Ezequiel Theodoro da Silva. Leitura –
○
vel com o salário que ele ganha e com as condi- GREGOLIN, M. R. V. A análise do discurso: conceitos e aplica-
○
○
numa escola sem biblioteca (o que significa di- aos textos didáticos. 4. ed. São Paulo: Moraes, 1981.
○
crítico de seu próprio dizer. Isso só é exeqüível se mostrada. Alfa, n. 39, p. 45-55, 1995.
○
○
houver livros (sem adjetivo, como diria Geraldi), SILVA, A. C. et al. A leitura do texto didático e didatizado. In:
○
para a alteridade, para o estranhamento do outro; M. J. (Org.). Interpretação, autoria e legitimação do livro
○
4
A expressão “operação de caça” é de Michel de Certeau (1994), que a empregou para descrever o processo de leitura.
○
○
5
Cf. também Silva et al. (1997: 81): “Tal independência [a do professor em relação ao LD] só será conquistada pelo professor se este desenvol-
○
○
ver suas próprias habilidades de leitura. É preciso gostar de ler – seja pelo prazer pessoal ou pelo comprometimento com a sua opção de
○
trabalho – e criar um repertório significativo, que dê respaldo à necessidade prática do cotidiano escolar, incluindo obras literárias, os
○
chamados paradidáticos, ensaios críticos e outros subsídios que o façam refletir sobre o exercício de sua atividade”.
○
SIMPÓSIO 20
299
Por uma Proposta Curricular
○
○
○
para o 2º segmento de EJA
○
○
○
○
Célia Maria Carolino Pires – PUC/SP
○
○
○
Maria Cecília Condeixa – Especialista em Ciências Naturais
○
○
○
Maria José M. de Nóbrega – Especialista em Língua Portuguesa
○
○
○
Paulo Eduardo Dias de Mello – Especialista em História e Geografia
○
○
○
○
○
○
○
A Coordenação de Educação de Jovens e segmento tem a finalidade de apresentar ele-
○
Adultos (Coeja) da Secretaria de Educação ○
○
mentos para a construção de uma proposta
Fundamental do Ministério da Educação curricular local que subsidie a implementa-
○
○
mento (1ª a 4ª séries/1º e 2º ciclos) da Educa- adultos que cursam etapas equivalentes ao
○
○
ção de Jovens e Adultos (EJA). No que se refe- terceiro e quarto ciclos (5ª a 8ª séries).
○
○
Adultos é uma modalidade do Ensino Funda- adultos, voltada para a cidadania, não se re-
○
○
No entanto, a Coeja tem recebido inúme- mas, sim, oferecendo-se ensino de qualidade,
○
tações de adequação das propostas contidas porar ao seu trabalho os avanços das pesqui-
○
○
nesse documento às especificidades dos alu- sas nas diferentes áreas de conhecimento e de
○
○
nos – jovens e adultos – e também às limita- estar atentos às dinâmicas sociais e a suas
○
suplência, indicando critérios de seleção e or- necessário definir claramente o papel da Edu-
○
○
tamento didático compatíveis com um ensi- sileira e de que modo os objetivos propostos
○
no de qualidade.
○
as instituições que trabalham com a Educa- Como a Proposta Curricular para a Edu-
○
○
ção de Jovens e Adultos constitui necessida- cação de Jovens e Adultos é construída a par-
○
cem as pessoas que buscam a escola para re- lares Nacionais, é fundamental destacar que
○
○
na própria sociedade.
○
○
300
SIMPÓSIO 20
Por uma Proposta Curricular para o 2º segmento na EJA
○
○
nhecimento aprendido gere maior com- conhecimento socialmente produzido;
○
○
preensão, integração e inserção no mun- destacar a importância de que os docentes
○
do; a prática escolar comprometida com possam atuar com a diversidade existente
○
○
a interdependência escola–sociedade tem entre os alunos e com seus conhecimentos
○
como objetivo situar as pessoas como par- prévios como fonte de aprendizagem de
○
○
ticipantes da sociedade – cidadãos – des- convívio social e meio para a aprendizagem
○
○
de o primeiro dia de sua escolaridade; de conteúdos específicos. 301
○
○
• contrapor-se à idéia de que é preciso estu- A formação para o exercício da cidadania –
○
dar determinados assuntos porque um dia
○
eixo condutor dos Parâmetros Curriculares Na-
○
eles serão úteis; o sentido e o significado da cionais do Ensino Fundamental – é também a
○
○
aprendizagem precisam estar evidenciados linha mestra da Proposta Curricular para a
○
durante toda a escolaridade, de forma a es-
○
Educação de Jovens e Adultos apresentada.
○
timular nos alunos o compromisso e a res-
○
São essas definições que servem de norte
ponsabilidade com a própria aprendizagem;
○
para o trabalho das diferentes áreas curricu-
○
○
• explicitar a necessidade de que os jovens e lares que estruturam o trabalho escolar: Lín-
○
os adultos deste país desenvolvam suas di-
○
gua Portuguesa, Matemática, Ciências Natu-
ferentes capacidades, enfatizando que a ○
○
atingir as metas a que se propuseram; vens e Adultos devem oferecer a quem os pro-
○
○
• ampliar a visão de conteúdo para além dos cura a possibilidade de desenvolver as com-
○
tudes e valores como conhecimentos tão dos conteúdos escolares, bem como a possi-
○
○
mas sociais urgentes – chamados Temas cidadania. Para realizar esses objetivos, o es-
○
○
to de trabalhos que contemplem o uso das formaliza todo conhecimento produzido nas
○
○
ção, para que todos, alunos e professores, neira como o universo se organiza.
○
bem como criticá-las e/ou delas usufruir; trama tanto a ampliação da modalidade oral,
○
○
• valorizar os trabalhos dos docentes como por meio dos processos de escuta e de produ-
○
○
○
○
cesso de leitura e o de elaboração de textos. Língua Portuguesa, é estabelecer a cumplicida-
○
○
Além dessa dimensão mais voltada às práticas de entre ele e a palavra.
○
○
sociais do uso da linguagem, o estudo da lin-
○
guagem envolve, também, a reflexão acerca de
○
○
seu funcionamento, isto é, dos recursos estilís- A Matemática na Educação
○
○
ticos que mobiliza e dos efeitos de sentido que
de Jovens e Adultos
○
produz. Participamos de um mundo que fala,
○
○
escuta, lê, escreve e discute os usos desses atos As exigências do mundo moderno têm
○
○
de comunicação. Para compreendê-lo melhor, pressionado as sociedades a investir na ele-
○
○
é necessário ampliar competências e habilida- vação dos níveis de escolarização de toda a
○
des envolvidas no uso da palavra, isto é, do- população. Os esforços de inclusão de jovens
○
○
minar o discurso nas diversas situações comu- e adultos nos sistemas escolares aos quais eles
○
○
nicativas, para entender a lógica de organiza- não tiveram acesso quando crianças e adoles-
○
ção que rege a sociedade, bem como interpre- ○
○
centes respondem por essas exigências e são,
tar as sutilezas de seu funcionamento. A tarefa em grande parte, definidos por elas. A quase
○
○
de ensinar a ler e a escrever e tudo que envol- totalidade dos alunos desses programas são
○
○
competência. O trabalho com a oralidade e a vida. No entanto, esses programas não devem
○
○
contemplar a realidade, pois as palavras são cializada nem se render, a todo instante, às
○
○
dade do uso da linguagem se manifesta: da lei- e coloque o aluno ante desafios que lhe per-
○
○
tura do nome das placas à leitura de jornais, mitam desenvolver atitudes de responsabili-
○
○
textos científicos, poemas e romances; da ela- dade, compromisso, crítica, satisfação e reco-
○
○
importância de um curso que permita ao aluno nessa formação. Aprender Matemática é um di-
○
○
da EJA ter uma experiência ativa na elaboração reito básico de todas as pessoas e uma resposta
○
○
de textos, um curso que discuta o papel da lin- a necessidades individuais e sociais do homem.
○
guagem verbal, tanto no plano do conteúdo Nesse aspecto, a Matemática pode dar sua
○
○
como no plano da expressão. É importante que contribuição à formação dos jovens e adultos
○
○
o aluno perceba que a língua é um instrumento que buscam a escola, ao desenvolver metodo-
○
○
vivo, dinâmico, facilitador, com o qual é possí- logias que enfatizem a construção de estratégias,
○
da leitura de textos, bem como do freqüente própria capacidade para enfrentar desafios. Além
○
exercício de expressar idéias oralmente e por disso, para exercer a cidadania é necessário sa-
○
○
escrito, são grandes fontes de energia que im- ber calcular, medir, raciocinar, argumentar, tra-
○
○
antes de tudo, uma prática social que se dá na vezes contraditórias, que incluem dados es-
○
○
302
SIMPÓSIO 20
Por uma Proposta Curricular para o 2º segmento na EJA
questões políticas e sociais que dependem da aprendizagem dos alunos de EJA, sejam valo-
○
○
leitura crítica e interpretação de índices di- rizados os conceitos e categorias da Geografia
○
○
vulgados pelos meios de comunicação. já apropriados por eles, estabelecendo um elo
○
○
De modo geral, um currículo de Matemá- com as noções dos diferentes espaços conhe-
○
tica para jovens e adultos deve procurar con- cidos em seu cotidiano. A partir de sua reali-
○
○
tribuir para a valorização da pluralidade dade, gradativamente e dialogando sobre os
○
○
sociocultural e criar condições para que o alu- conhecimentos que obtiveram de modo infor-
○
no se torne ativo na transformação de seu am- mal com os saberes geográficos já adquiridos 303
○
○
biente, participando mais ativamente no na escola, que esses alunos possam estabele-
○
○
mundo do trabalho, da política e da cultura. cer ligações entre esse cotidiano e os diferen-
○
○
tes espaços geográficos – local, regional, nacio-
○
A Geografia na Educação de nal e internacional.
○
○
Esses conhecimentos geográficos que os
Jovens e Adultos
○
○
alunos da EJA já detêm irão contribuir para a
○
No ensino de Geografia para EJA, é impor-
○
sistematização e ampliação dos conceitos e
○
tante que o aluno observe, interprete e compre- noções necessários para ajudá-los a fazer a
○
○
enda as transformações socioespaciais ocorri- leitura e a análise do lugar em que vivem, a
○
○
das em diferentes lugares e épocas e estabeleça relacionar e a comparar o espaço local, o es-
○
município, do estado e do país onde mora. Segundo os PCN, a Geografia estuda as re-
○
○
Ele deve participar ativamente do procedi- lações entre o processo histórico que regula a
○
leitura e interpretação de gráficos e tabelas; da e dos grupos sociais são, portanto, elementos
○
○
recursos que possibilitem registrar seu pensa- ciedade, tendo em vista a construção de pro-
○
○
mento e seus conhecimentos geográficos. Não jetos individuais e coletivos que transformam
○
acordo como os PCN, deve ser conduzido a ritmos e a simultaneidade, o objetivo e o sub-
○
○
cussões sobre os temas escolhidos, as formas, O ensino de Ciências Naturais vem pas-
○
○
necessário que o professor estude e reflita co- timas décadas. Tradicionalmente priorizam-
○
que deve interessar os alunos da EJA e ampliar turas e fórmulas, muitas vezes sem se estabe-
○
○
○
○
apontam para um ensino mais atualizado e estabelecendo relações entre informações. As-
○
○
dinâmico, mais contextualizado, onde são sim, podem tornar-se indivíduos mais consci-
○
○
priorizados temas relevantes para o aluno, li- entes de suas opiniões, mais flexíveis para
○
gados ao meio ambiente, à saúde e à trans- alterá-las e mais tolerantes com opiniões di-
○
○
formação científico-tecnológica do mundo e ferentes das suas. Essas atitudes colaboram
○
○
à compreensão do que é Ciência e Tecnologia. para que o aluno cuide melhor de si e de seus
○
Busca-se a promoção da aprendizagem familiares, permanecendo atento à prevenção
○
○
significativa tal que ela se integre efetivamen- de doenças, às questões ambientais, e se utili-
○
○
te à estrutura de conhecimentos dos alunos e ze das tecnologias existentes na sociedade de
○
○
não aquela realizada exclusivamente por forma também mais consciente.
○
memorização, cuja função é ser útil na hora
○
○
da prova. A aprendizagem significativa é uma A História na Educação de
○
○
teoria da Psicologia desenvolvida com base
em diversos estudos teóricos e práticos. Ela ○
○
○
Jovens e Adultos
afirma que toda aprendizagem real tem por Geralmente os alunos da EJA de 5ª a 8ª
○
○
base conhecimentos anteriores, que são mo- séries, como também acontece com os ado-
○
○
dos são temas ou problemas relativos aos fe- Isso é fruto, entre outras razões, do fato
○
movidas pela ação humana na natureza. ainda se ensina essa disciplina de forma
○
○
no campo da EJA, com novas propostas, de visão de tempo linear, e também verbalista,
○
modo que a área de Ciências possa colaborar com base em aulas expositivas sobre temas
○
○
tudante e a ampliação da compreensão do real, nas quais o professor entende ser seu
○
○
mundo de que participa, profundamente mar- papel apenas fornecer conhecimentos aos
○
É preciso selecionar temas e problemas re- Outra idéia comum entre alunos da EJA e
○
○
levantes para o grupo de alunos, de modo que de outras faixas etárias é a de que obras e do-
○
○
eles sejam motivados a refletir sobre as suas cumentos histór icos são como verdades
○
próprias concepções. Essas concepções po- inquestionáveis. O educador deve estar aten-
○
○
dem ter diferentes origens: na cultura popu- to a isso e planejar momentos em que essas
○
○
lar, na religião ou no misticismo, nos meios concepções prévias sejam questionadas. Tam-
○
do indivíduo, sua profissão, sua família etc. to os diferentes tipos de fontes constituem ver-
○
○
São explicações muitas vezes arraigadas e sões da realidade. Dois exemplos de ativida-
○
○
preconceituosas, chegando a constituir obs- des, para ilustrar essas idéias: comparar tex-
○
professor devem ajudar os alunos a perceber e diversos jornais escritos que tratem de assun-
○
○
a modificar suas explicações. Portanto, é es- to atual de interesse dos estudantes e relacio-
○
senvolvam o hábito de refletir sobre o que ex- Como apontam os Parâmetros Curricula-
○
○
pressam oralmente ou por escrito. Sob a con- res Nacionais de História, o conhecimento
○
○
304
SIMPÓSIO 20
Por uma Proposta Curricular para o 2º segmento na EJA
ção de saber em permanente debate que está nísticos, principalmente entre aquelas pessoas
○
○
longe de apontar para um consenso”. Assu- que vivem nos grandes centros urbanos do Bra-
○
○
mir essa postura diante do conhecimento é sil e do mundo, regiões em que o consumismo,
○
○
também perceber que, no espaço escolar, “o o imediatismo e o “presentismo” têm marcado
○
conhecimento é uma reelaboração de mui- as relações sociais.
○
○
tos saberes, constituindo o que se chama de Como atualmente a maioria dos alunos da
○
○
saber histórico escolar”, elaborado no “diá- EJA têm mais idéias e percepções sobre o mun-
○
logo entre muitos interlocutores e muitas do atual, o professor deve aproveitar essa ca- 305
○
○
fontes”, sendo “permanentemente recons- racterística para aprofundar suas capacidades
○
○
truído a partir de objetivos sociais, didáticos de refletir sobre as mudanças e as permanên-
○
○
e pedagógicos”. cias nos temas e sociedades em estudo. Desen-
○
Além de questionar as visões tradicionais da volvendo essa capacidade de comparar e a ha-
○
○
História e do ensino dessa disciplina nas esco- bilidade de opinar sobre determinado tema his-
○
○
las, é fundamental que os professores da EJA tórico, estaremos contribuindo decisivamente
○
○
busquem entender a realidade do mundo atual para o incentivo à participação de alunos e pro-
○
juntamente com seus estudantes e também que fessores na vida política, social, cultural e eco-
○
○
os incentivem a se tornarem cidadãos ativos nas nômica de suas comunidades. Assim agindo, o
○
○
suas comunidades. Nesse processo, é importan- professor estará valorizando o estudo sobre a
○
○
tíssimo buscar o resgate dos valores huma- variedade das experiências humanas.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 21
Guilherme Costa
307
Por uma nova Educação
○
○
○
de Jovens e Adultos
○
○
○
○
Carlos Roberto Jamil Cury
○
○
CNE/PUC/MG
○
○
○
○
○
○
○
Muitos brasileiros, provavelmente, foram ele na idade própria. Trata-se do artigo 208 da
○
um dia à escola. A esperança de concluir um Constituição Federal. Se não oferecido pelo
○
○
curso os animava. Contudo, fatores adversos fi- poder público e não atendido o cidadão em sua
○
○
zeram com que não pudessem terminar a sua demanda, outra lei importante, a das Diretri-
○
zes e Bases da Educação Nacional (LDBEN),
○
escolarização. Para uns, foi a necessidade do
trabalho precoce, para outros foi a falta de con- ○
○
○ explicita o que já está contido na Constituição.
dições materiais e para muitos a própria escola O Ensino Fundamental é um direito público
○
○
não foi capaz de retê-los estudando. E muitos subjetivo. Como tal, exigido o direito pelo ci-
○
brasileiros sequer puderam entrar na escola. dadão, o poder público responsável tem de
○
○
Para atender a estes, agora há a alternativa da atender a essa demanda sob pena de se ver
○
○
Educação de Jovens e Adultos (EJA) como um acossado por ações civil e penal. Estamos, pois,
○
○
uma grande lacuna para o indivíduo e uma per- exigência deve ser atendida, porque essa etapa
○
○
da enorme para a cidadania. A Educação de Jo- do ensino é a coroação da Educação Básica que
○
vens e Adultos representa um novo começo sob todo brasileiro deve ter.
○
○
uma alternativa legal, que vem acompanhada A escola não chegou a todos os brasileiros.
○
○
de garantias legais. A lei buscou reparar esse Essa realidade possui uma longa história. Ela
○
○
vazio e cabe ao indivíduo exigir seu direito à começa com o desapreço que nossos coloniza-
○
A EJA não é um presente e nem um favor, escrita a ser dada aos habitantes deste país. Para
○
○
tal como antes a própria legislação ou a prática eles, não fazia sentido propiciar educação es-
○
○
das políticas educacionais viam-na. Desde a colar a um país agrário, enorme, com a qual
○
Constituição de 1988, ela se tornou um direito poderia pleitear a sua independência política.
○
○
de todos os que não tiveram acesso à escolari- Além disso, sendo um país escravocrata, nega-
○
○
dade e de todos os que tiveram esse acesso, mas va-se a quem não fosse branco o direito de sen-
○
○
Esse direito está inscrito em duas tábuas: na Essa realidade tem a ver com um país que,
○
○
tábua da dignidade de cada um e na tábua da desde o seu início, foi bastante injusto com os
○
○
lei. A primeira é a necessidade sentida em re- que, com seu trabalho, construíram as riquezas
○
○
parar ou completar essa lacuna. É a tábua da da nação e não viram distribuídas essas rique-
○
vivência dos que sabem da importância da lei- zas acumuladas, de modo que todos pudessem
○
○
tura e da escrita e sentem a falta desse direito ter acesso aos bens sociais e necessários a uma
○
○
que, muitas vezes, vêem efetivado nos outros. participação política consciente. Até hoje esse
○
tuição Federal. Lá está dito e escrito que o En- escolar. E a existência da Educação de Jovens e
○
○
sino Fundamental obrigatório e gratuito é um Adultos visa reparar essa situação, que é, em si
○
○
direito do cidadão e dever do Estado, valendo mesma, intolerável do ponto de vista da cida-
○
dania.
○
308
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica
Isso tem a ver também com um determi- é condição prévia a muitas outras coisas de nos-
○
○
nado tipo de escola, que nem sempre conse- sa sociedade: ler livros, entender cartazes, es-
○
○
guiu acolher e entender os diferentes perfis de crever cartas, sentar-se ao computador, nave-
○
○
alunos que a procuram. Somos todos iguais e gar na rede mundial de computadores, votar
○
diferentes ao mesmo tempo. Às vezes, a escola com consciência, assinar o nome em registros,
○
○
confundiu igualdade com uniformidade e di- ler um manual de instruções, participar mais
○
○
ferença com inferioridade (para muitos) e su- conscientemente de associações, partidos e
○
perioridade (para poucos). Por isso mesmo, desenvolver o poeta ou o músico ou o artista 309
○
○
houve leis que proibiram o acesso de negros e que reside em cada um. Estes últimos aspectos,
○
○
de índios à escola, que só incentivavam as es- uma vez reparada a falta social de que tantos
○
○
colas da cidade, deixando de lado as escolas foram vítimas, devem ser encarados como o
○
da roça. Não se pode deixar de dizer que hou- caminho mais qualificado para se falar em Edu-
○
○
ve muito preconceito com relação às mulhe- cação de Jovens e Adultos. Trata-se do desen-
○
○
res, que deveriam ficar em casa e, por isso, não volvimento das capacidades de cada um e do
○
○
necessitavam de leitura e de escrita. Durante usufruto prazeroso delas.
○
longos anos, quem não sabia escrever seu pró- Ao entrar em um curso de Educação de Jo-
○
○
prio nome não podia votar. vens e Adultos, o estudante não estará apenas
○
○
Hoje, todos sabem da importância da esco- sendo alfabetizado. Isso é muito pouco para o
○
○
la. Para uns, é a empresa que está exigindo es- conteúdo do direito à educação. Além da alfa-
○
colaridade cada vez mais elevada. Afinal, em um betização, etapa propedêutica, o aluno deve ter
○
○
mundo tornado próximo, não se pode deixar de acesso aos conhecimentos que todo o indivíduo
○
○
contar com as novas formas de comunicação e que freqüenta a escola na idade convencional
○
as habilidades que se exigem para a própria está recebendo. Conhecer o mundo em que vive,
○
○
manipulação de aparelhos complexos. para poder agir sobre ele com consciência, críti-
○
○
Para outros, trata-se de um sentimento in- ca e efetividade, sobretudo em nosso tempo, não
○
○
dividual, mas bastante agudo: se alguém não pode dispensar a escolaridade plena. Conteúdos
○
tiver completado estudos mais elevados estará importantes de Aritmética e de Matemática vão
○
○
correndo risco com o seu emprego. muito além das quatro operações. A Geografia,
○
○
não estar sujeito a poderes estranhos implicam e sem medo de cometer erros na fala ou na es-
○
○
a necessidade peremptória da educação esco- crita é outro fator significativo, inclusive para as
○
lar. Ela não só abre o caminho para ser votado, relações pessoais ou corporativas. O mesmo se
○
○
como também abre mais espaços para tomadas deve dizer de conhecimentos importantes pró-
○
○
de decisão coletivas e para a ampliação dos es- prios das Ciências Naturais e Exatas, que expli-
○
○
paços de participação. Além disso, ela é uma cam as coisas materiais, a fórmula de um remé-
○
fonte indispensável para que o cidadão possa dio, a composição de uma bebida e o som de uma
○
○
usufruir aspectos múltiplos da cultura, como a corda de viola. Além disso, ser cidadão do Brasil
○
○
De qualquer modo, é certo que há um “es- vos e de outras culturas. Nada melhor do que co-
○
pírito do tempo” que implica a consciência do meçar a aprender uma língua estrangeira. No fu-
○
○
acesso aos conhecimentos da escola como uma tebol, quem chuta com os dois pés pode fazer
○
○
chave importante para ler o mundo e a socie- mais e melhores jogadas e, em casa, quem bate
○
○
dade em que vivemos e neles atuar crítica e bolo com as mãos não se aperta, quando a ener-
○
Por isso a Educação de Jovens e Adultos é com quem fala o português e começa a apren-
○
○
um direito tão importante. Ela é tão valiosa que der outra língua.
○
Isso é tão importante que a Constituição adequada aos conteúdos estudados, poderão
○
○
brasileira e, depois, a Lei de Diretrizes e Bases atribuir créditos a ela, desde que submetida a
○
○
da Educação Nacional reconheceram que todos uma avaliação.
○
○
os brasileiros, de qualquer idade ou de qualquer Assim, não convém que adolescentes e
○
outra situação, são titulares desse direito. Por adultos convivam nas mesmas salas. É por isso
○
○
isso, não devem abrir mão dele. Por isso, o cur- que meninos ou meninas com menos de 14
○
○
so que será ministrado não pode ser uma “cai- anos completos não podem freqüentar a Edu-
○
xa-preta”. Antes do curso, todos devem saber cação de Jovens e Adultos, na etapa do Ensino
○
○
qual será a sua duração, quais conhecimentos Fundamental, e é também por isso que nenhum
○
○
lhes serão passados, quais os tipos de avaliação jovem com menos de 17 anos completos pode
○
○
a que se submeterão e que tipo de certificado estudar em salas de Educação de Jovens e Adul-
○
de conclusão obterão ao seu final. Isso signifi- tos, na etapa do Ensino Médio.
○
○
ca que o ensino da Educação de Jovens e Adul- No caso de um curso presencial e com ava-
○
○
tos deve ser de qualidade. E, para ser de quali- liação em processo ter sido autorizado e reco-
○
○
dade, é preciso também contar com a idonei- ○
nhecido pelo Conselho de Educação, ele po-
dade da instituição que oferece o curso. Essa derá avaliar os estudantes e, ao final do curso,
○
○
mo: a aprovação certa e determinada do Con- Médio ou do Ensino Fundamental. Mas quem
○
○
selho de Educação com os respectivos prazos estuda em curso presencial e é avaliado duran-
○
Durante muitos anos, a Educação de Jovens sa escola e ela mesma poderá certificá-lo. Mas,
○
○
e Adultos não se chamava assim. Ela já se cha- atenção! Essa escola tem de ser autorizada e
○
mou Madureza, Suplência, Supletivo, Alfabeti- reconhecida pelos poderes públicos, em espe-
○
○
zação, entre outros nomes. Por não representar cial pelos Conselhos e Secretarias de Educação.
○
○
um direito, esse ensino nem sempre foi assu- Esses cursos devem apresentar as datas de va-
○
○
mido por profissionais. Era muitas vezes aten- lidade dessa autorização e desse reconheci-
○
ou mesmo por docentes que aplicavam para É verdade que alguém pode preferir estudar
○
○
adultos os mesmos métodos com que ensina- em casa, sozinho ou com outros, tendo um cur-
○
○
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- como suporte. O autodidatismo não é proibi-
○
○
cional não quis deixar esse campo em aberto. do. Neste caso, se essa pessoa quiser obter um
○
○
Por ser a Educação de Jovens e de Adultos uma certificado de conclusão, ela deverá prestar os
○
○
modalidade da Educação Básica, por ser ela um chamados exames supletivos, “abatendo” ma-
○
direito, por poder emitir um certificado de con- téria por matéria. Não podemos fechar as pos-
○
○
clusão com validade nacional, é preciso que sibilidades e as alternativas de as pessoas estu-
○
○
seus professores sejam formados adequada- darem e prestarem exames oficiais, mas é pre-
○
○
mente e apresentem o diploma de licenciado e, ciso verificar se tais exames são mesmo ofici-
○
de preferência, um currículo adequado a essa ais, se estão autorizados, a fim de que certos
○
○
modalidade. O Parecer nº 11/2000 da Câmara grupos pouco éticos não usem essa possibili-
○
○
Educação, ao regulamentar a Educação de Jo- Tanto num caso como no outro, o que se
○
vens e de Adultos, insiste nesta tecla de acen- avalia são os componentes curriculares nacio-
○
○
tuar o perfil diferenciado desses alunos. Eles nais válidos para o Ensino Fundamental ou
○
○
devem ser tratados como tais e não como ex- Médio. O que muda para a EJA é o modo de en-
○
○
desses professores são até mais jovens do que Cabe aos Conselhos de Educação dizer o
○
○
seus alunos. Por isso, devem acolher a experi- tempo de duração dos cursos da EJA e a sua or-
○
○
ência vivida dos estudantes e, quando esta for ganização funcional, mas é importante obser-
○
310
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica
○
ar a ser praticada por meio de livros, filmes,
○
nº 11/2000 quanto da Resolução CEB/CNE nº
○
novas leituras, acesso à rede mundial de com-
○
1/2000. Ambos ajudam na compreensão e no putadores (Internet) e, por que não?, em novos
○
○
significado maior da EJA. cursos.
○
Os certificados são a expressão oficial de que
○
Esse desafio de reentrada na vida escolar é
○
o estudante conseguiu transformar um direito o reconhecimento de um direito desde sempre
○
○
num exercício de cidadania, que deve continu- havido, que, agora, poderá ser posto a serviço
○
ar a vigorar na família, no trabalho, na política 311
○
de um cidadão mais ativo, tendo em vista uma
○
e no lazer e deve significar que a Educação de
○
sociedade brasileira que venha a ser mais igual
○
Jovens e Adultos não pára. Ela poderá continu- e mais justa.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Sinopse do programa ○
○
○
de Mato Grosso
○
○
○
○
○
Guilherme Costa
○
○
Seduc/MT
○
○
○
○
○
cação de Jovens e Adultos (EJA) em 172 unida- do fluxo escolar, e conferir qualidade à EJA,
○
des escolares, onde atuam mais de 1.900 profes- superando a concepção que associa o su-
○
○
Médio.
○
O primeiro objetivo do
○
programa é assegurar o
○
safios:
direito de todos à educação
○
adultos, de modo a tornar a oferta compa- A cobertura escolar pública atual no Ensino
○
○
tível com os direitos educacionais dos cida- Fundamental e no Médio para jovens e adultos
○
LDB, e com as metas do Plano Nacional de essa modalidade educativa, motivo pelo qual é
○
○
2. Ajustar o atendimento da EJA das redes pú- metas do Plano Nacional de Educação.
○
○
blicas de ensino às novas exigências do Pa- A Lei nº 10.172/2001, que institui o PNE, es-
○
3. Resgatar a identidade própria da EJA, que • alfabetizar em cinco anos dois terços do con-
○
○
nos últimos anos acabou diluída nos pro- tingente total de analfabetos, de modo a
○
erradicar o analfabetismo em uma década; mas a maioria da população que necessita de
○
○
atendimento escolar vive nas zonas urbanas.
○
• assegurar, em cinco anos, a oferta de Educa-
○
ção de Jovens e Adultos equivalente às quatro Ainda segundo a PNAD, 258.962 pessoas com
○
○
séries iniciais do Ensino Fundamental para idade igual ou superior a 15 anos estavam estu-
○
50% da população de 15 anos ou mais que não dando no Ensino Básico em 1999, mas a maioria
○
○
tenha atingido esse nível de escolaridade; delas eram jovens que freqüentavam o Ensino
○
○
• assegurar, até o final da década, a oferta de Fundamental ou Médio regular na idade adequa-
○
da ou com alguma defasagem entre a idade e a
○
cursos equivalentes às quatro séries finais do
○
Ensino Fundamental para toda a população série ideal; apenas 25.859 pessoas freqüentavam
○
○
de 15 anos ou mais que concluiu as quatro alguma modalidade de Ensino Supletivo
○
○
séries iniciais; (presencial ou não) no nível de Ensino Funda-
○
mental; e outras 20.755 pessoas declararam es-
○
• dobrar em cinco anos e quadruplicar em dez
○
anos a capacidade de atendimento nos cur- tudar no Ensino Supletivo de nível médio, so-
○
○
sos de Educação de Jovens e Adultos de nível mando 46.614 pessoas.
○
○
médio. ○
Esses dados não são discrepantes das esta-
tísticas do Censo Escolar realizado pelo INEP,
○
sino Fundamental.
○
mo em uma década.
○
No grupo etário com 10 anos ou mais, 70% A princípio, o CNE julgou que a LDB era auto-
○
○
da população de Mato Grosso não havia conclu- aplicável e não seria necessário emanar diretri-
○
○
ído o Ensino Fundamental em 1999; 11,78% não zes para a EJA pois, sendo ela uma modalidade
○
○
receberam qualquer instrução ou possuíam me- da Educação Básica, deveria reger-se pelas mes-
○
nos de um ano de estudos. Quase um quinto da mas diretrizes curriculares do conjunto do Ensi-
○
○
população já havia freqüentado escolas, mas ti- no Fundamental e Médio. A freqüência com que
○
○
nha menos de quatro anos de estudos. Somados, o Conselho respondeu a consultas dos sistemas
○
○
esses dois subgrupos totalizavam cerca de 600 estaduais de ensino levou à elaboração do Pare-
○
mil pessoas, mais de 30% da população cer nº 11, que trata das Diretrizes Curriculares
○
○
matogrossense com mais de 10 anos de idade, Nacionais para a EJA. O longo parecer elaborado
○
○
que potencialmente demandariam por progra- pelo Professor Carlos Roberto Jamil Cury tem os
○
Ensino Fundamental de jovens e adultos. O con- • defende o direito público subjetivo dos jo-
○
○
tingente que tinha entre 4 e 7 anos de estudos e vens e adultos à Educação Básica gratuita;
○
○
Mato Grosso. Na zona rural, os níveis de escola- vo” em favor da expressão “Educação de Jo-
○
vens e Adultos”;
○
○
○
○
○
○
1
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
○
312
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica
○
piciar às escolas tempo adequado para conhecê-
○
constitutiva da Educação Básica e não mais lo, opinar sobre ele, adequar-se a ele e propiciar
○
○
um subsistema de ensino (como prescrevia à Seduc tempo para que possa disseminá-lo ade-
○
a legislação anterior);
○
quadamente e desencadear ações prévias de for-
○
• requer contextualização curricular e mação.
○
○
metodológica, bem como formação especí-
○
○
fica dos professores;
O terceiro objetivo é propiciar
○
313
○
• lista três funções para a EJA: reparadora,
aos jovens e adultos uma
○
equalizadora e qualificadora;
○
○
educação de qualidade
○
• determina que a EJA obedeça aos princípios
○
de eqüidade, diferença e proporção.
○
Com o objetivo de melhorar a qualidade do
○
Para adequar-se à nova norma federal, o
○
ensino, a Resolução nº 180 elevou substancialmen-
○
CEE/MT fez emanar a Resolução nº 180/2000, te a carga horária mínima dos cursos presenciais
○
○
que, entre outras medidas, obriga a Seduc a cri- com avaliação no processo para seis fases anuais
○
○
ar o programa de EJA. Para elaborar esse progra- de 800 horas cada, no Ensino Fundamental, e três
○
ma, a Seduc nomeou um grupo de trabalho
○
fases anuais de 800 horas cada, no Ensino Médio.
○
interinstitucional (Portaria nº 204/2000 Seduc/ ○
○
Professora Maria Clara Di Pierro, da Ação Edu- educandos a qualquer momento, deve propiciar
○
para 2002 pela Resolução nº 272, de modo a pro- menos aceleradas nesses cursos.
○
○
○
○
○
○
○
○
político-pedagógica
○
○
○
○
○
SEF/MEC
○
○
○
○
○
Nos últimos anos, a Educação de Jovens e integrada no conjunto das políticas da Educa-
○
○
Adultos passou a fazer parte das agendas edu- ção Básica, a qual deve contemplar tanto a ex-
○
○
cacionais. De forma crescente e significativa, os pansão do atendimento aos jovens e aos adul-
○
quase que exclusivamente dos estados, sobre- Um dos grandes instrumentos disponíveis
○
○
tudo nas Regiões Norte e Nordeste. Todos os aos sistemas, visando à construção de uma
○
nalização da EJA como política pública nos sis- lação de propostas político-pedagógicas – con-
○
○
temas de ensino, para que seja definitivamente templada nas Diretrizes Curriculares Nacionais
○
○
○
○
○
○
○
○
erente com as características desse segmento ca:
○
○
e assegurem o direito que os alunos têm a um a) princípios éticos: autonomia, respon-
○
○
ensino de qualidade. sabilidade, solidariedade; respeito ao
○
A EJA, como modalidade da educação bá- bem comum;
○
○
sica e por atender a um público jovem e adul-
○
b) princípios políticos: direitos e deveres
○
to, excluído do sistema de ensino na idade pró- da cidadania; criticidade; respeito à or-
○
pria, deve ter tratamento que atenda à sua es-
○
dem democrática;
○
pecificidade, que considere as vivências, os co-
○
c) princípios estéticos: sensibilidade,
○
nhecimentos e a cultura que esses alunos tra-
○
criatividade; diversidade de manifesta-
○
zem para a sala de aula. ções artísticas e culturais.
○
Uma das formas de agregar significado à
○
2. Ao definir a proposta político-pedagógi-
○
ação educativa nesse segmento é por meio da
○
ca, as escolas deverão explicitar o reco-
○
execução de propostas político-pedagógicas.
○
nhecimento da identidade pessoal dos
○
No entanto, no contexto das escolas brasilei-
alunos, dos professores e outros profissio-
○
minho a ser percorrido, pois a realidade mos- de escolar – e dos respectivos sistemas em
○
○
posto de que:
○
intersubjetivas e intra-subjetivas;
○
gica. Ela deve ser a expressão de um conjunto valores indispensáveis à vida cidadã.
○
○
que o sistema oferece em sua rede, definindo alunos a uma base nacional comum, de
○
○
o que quer alcançar, por que, como vai fazê- maneira que legitime a unidade e a quali-
○
○
lo, quando vai realizá-lo e com quem conta dade da ação pedagógica na diversidade
○
As Diretrizes Curriculares Nacionais para Tanto a base nacional comum como a par-
○
○
Nacionais para a Educação Fundamental. Nes- tros Curriculares Nacionais – que visa es-
○
○
1. As escolas deverão estabelecer como prin- • a vida dos alunos, por meio da circulação
○
314
SIMPÓSIO 21
A EJA como direito: Diretrizes Curriculares Nacionais e proposta político-pedagógica
○
ridades serão estabelecidos tendo por base
○
lidade, a família, o meio ambiente, o tra- esse levantamento, crucial para que a escola
○
○
balho, a ciência e a tecnologia, a cultura e possa cumprir seu papel social.
○
as linguagens;
○
Definidos os objetivos pela equipe escolar,
○
• as áreas de conhecimento de Língua Por-
○
os quais representarão onde a escola quer che-
○
tuguesa e Língua Materna (para a popu- gar, elabora-se o plano estratégico das ações,
○
○
lação indígena), Língua Estrangeira Mo- que irá desenvolver para alcançar os objetivos
○
derna, Matemática, Ciências, História, 315
○
propostos, no qual serão explicitados todos os
○
Geografia, Arte, Educação Física.
○
passos necessários, como: planejamento
○
5. As escolas utilizarão a parte diversificada curricular, disciplinas, carga horária, duração
○
○
de suas propostas curriculares para enri- e organização do curso, matrícula, freqüência,
○
quecer e complementar a base nacional
○
aproveitamento de estudos, estrutura e funcio-
○
comum, com a introdução de projetos e
○
namento do curso, composição do corpo do-
atividades de interesse de suas comuni-
○
cente, documentos comprobatórios de esco-
○
dades.
○
larização, entre outros.
○
Além desse conjunto de princípios, objeti-
○
O processo de avaliação deverá estar des-
○
vos e orientações legais, nos quais toda ação
○
○
crito tanto no que diz respeito à avaliação da
educativa deve estar embasada, apresentarei aprendizagem dos alunos e a forma de expres-
○
○
alguns elementos constitutivos de uma pro- são dos resultados, como à avaliação do desen-
○
fia que permeia o trabalho escolar, bem como No processo de construção da proposta po-
○
○
mação do cidadão.
○
sonância com as expectativas dos alunos. Para A vivência de uma proposta político-peda-
○
tico da escola e da realidade em que ela está seu conhecimento pedagógico, construindo-o
○
○
a função social da escola em relação àquela pares e com outros agentes da comunidade, in-
○
○
○
nº 1/2000.
○
○
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Lei de Diretri- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
○
zes e Bases da Educação Nacional – LDBEN. Lei nº Fundamental. Diretrizes Curriculares Nacionais para
○
○
9.394/95, de 20 de dezembro de 1996. Educação Fundamental. Brasília, 1998.
○
. Diretrizes Curriculares Nacionais para Edu- . Proposta Curricular para o 2º segmento de
○
○
cação de Jovens e Adultos . Parecer nº 11 e Resolução EJA. Brasília, 2001.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 22
ALFABETIZAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS
Ângela B. Kleiman
317
A leitura como prática social
○
○
○
na alfabetização de adultos*
○
○
○
○
○
Ângela B. Kleiman
○
○
Universidade Estadual de Campinas/SP
○
○
○
○
○
○
Na alfabetização de adultos, assim como em • conhece o funcionamento de diversos dis-
○
outros contextos de ensino, a leitura e a escrita cursos, como o do discurso didático, do dis-
○
○
são introduzidas como capacidades ou compe- curso de vulgarização, do discurso científi-
○
○
tências. Na escola, a leitura e a escrita são con- co, entre outros;
○
○
cebidas como um conjunto de habilidades de • conhece diversos gêneros e como eles fun-
uso (compreensão e produção) da língua escri- ○
○
○
cionam. Por exemplo, para atingir seu obje-
ta, progressivamente desenvolvidas até se che- tivo de aprender um assunto novo, ele sabe
○
○
gar a uma competência ideal, a do leitor ou es- como funcionam o livro didático, a enciclo-
○
tor para continuar sua própria aprendizagem, nal, o texto de divulgação, o texto intro-
○
ceber o ensino da língua escrita como uma prá- divulgação dos textos; ou seja, ele sabe se o
○
○
tica social, focalizando o ensino da leitura e de leitor previsto é o grande público, o iniciante
○
a ensinar essa única competência, ler para Sem dúvida, trata-se de um conjunto de
○
○
envolvidas é impressionante. Assim, o leitor portantes. Mas não é suficiente para formar lei-
○
○
tender o assunto que lhe interessa conhecer; Ainda, ela é redutora no contexto da escola, que
○
○
• é capaz de avaliar suas opções, descartan- fragmenta o saber e concebe sua aquisição por
○
○
do, mudando de rumo, acrescendo quando meio de acréscimos por etapas, tanto nos con-
○
○
liar seu nível de conhecimento, compará-lo tência consiste, na maioria das vezes, num pro-
○
○
ao nível exigido pelo texto e tomar decisões grama de atividades em que se lê para desen-
○
○
em relação ao seu projeto didático indivi- volver a competência leitora; lê-se para apren-
○
dual, baseado nessas avaliações e compa- der a ler. Não se aprende lendo.
○
○
• é capaz de se engajar cognitivamente, utili- aprende-se o alfabeto para um dia, no futuro, po-
○
○
zando estratégias complexas para atingir der compreender o texto e oraliza-se a leitura
○
*
Os resultados apresentados neste trabalho fazem parte do projeto Letramento do professor: implicações para a prática pedagógica, financi-
○
318
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
ta-se o texto para aprender a perceber o todo, é a função referencial. Os textos escritos que
○
○
um tema, uma idéia principal. Impõe-se um lhes são conhecidos servem para registrar fa-
○
○
mesmo texto ao grupo para desenvolver o gosto tos e eventos que acontecem, para fazer refe-
○
○
individual pela leitura, a relação estética e de rência ao mundo real. Os textos conhecidos são
○
prazer, íntima e privada. Procura-se fazer com os formulários e papéis que registram informa-
○
○
que o aluno responda somente ao que está pre- ções vitais (certidão de nascimento, por exem-
○
○
visto na leitura do professor ou do autor do livro plo), os bilhetes que a escola manda para casa
○
didático e exige-se um leitor crítico e partici- registrando fatos acontecidos ou por aconte- 319
○
○
pativo. Trata-se de uma pedagogia da contradi- cer; os anúncios de emprego nas bancas de jor-
○
○
ção, marcada por um conjunto de atividades de nal. A leitura não tem como função importan-
○
○
“fazer de conta”: o aluno escreve bilhetes que te a de capacitá-los para adquirir novos conhe-
○
ninguém lerá, textos de opinião sem ter forma- cimentos, nem a de legitimar esses conheci-
○
○
do uma opinião; responde às perguntas na se- mentos. Isto é, a concepção de texto e de es-
○
○
ção de “interpretação livre”, já cerceado, sem li- crita desse aluno não prevê algumas importan-
○
○
berdade e muitas vezes sem leitura. Ele “lê” sem tes funções da leitura, justamente aquelas que
○
entendimento, interpreta sem ter lido e realiza lhe permitiriam continuar aprendendo e, com
○
○
atividades sem nenhuma função na sua realida- isso, se desenvolver e ajudar o desenvolvimen-
○
○
Por isso, consideramos importante, para for- Ensinar a ler, nesse contexto, implica ajudar o
○
mar e desenvolver leitores, partir de uma con- aluno a transformar essa visão mais utilitária da
○
○
cepção de leitura como prática social, com leitura, enriquecendo-a de modo a incluir seu po-
○
○
múltiplas funções, relacionada aos contextos de tencial para a aprendizagem independente e con-
○
ação. Uma dessa funções pode ser a facilitação tinuada. Isso envolve partir das necessidades dos
○
○
da aprendizagem, não para um dia longe, no alunos, mesmo que estas sejam de caráter
○
○
futuro, se converter num leitor e aprendiz in- instrumentalizador e pragmático. É pela prática de
○
○
dependente, mas para aprender dia a dia, mes- leitura que se pode alcançar a paulatina transfor-
○
durante todo o processo, aquilo que vale a pena numa concepção com funções sociais ampliadas,
○
○
Na perspectiva da leitura como prática por meio da prática de leitura que podem ser cria-
○
vidade didática de leitura é aprender alguma Um caso específico que ilustra essa dife-
○
○
coisa nova. Não se justifica a atividade de ler rença deu-se numa aula de mulheres analfa-
○
○
para aprender a ler. O objeto da aprendizagem betas num ano de eleição, em uma das tur-
○
é configurado pelas necessidades e caracterís- mas acompanhadas num projeto a longo pra-
○
○
ticas do grupo. Embora as atividades possam ser zo desenvolvido em uma pequena cidade do
○
○
diferentes, a prática tem o mesmo objetivo, ou interior do Estado de São Paulo (ver Kleiman
○
○
seja, o de aprender a usar a língua escrita para e Signorini, 2000). Nessa turma, as alunas
○
fazer novos sentidos do mundo, para se desen- queriam votar mas, como não sabiam ler a cé-
○
○
volver a si mesmo e para contribuir com o de- dula, pediram à professora que lhes ensinas-
○
○
gem do aluno é a concepção da atividade como A leitura da cédula sem uma reflexão consciente
○
prática social.
○
As práticas de leitura no cotidiano dos escrita, uma paródia do ato de cidadania que o ato
○
○
adultos não-escolarizados sugerem que, para de votar representa. Essas alunas, no entanto, não
○
○
○
elas delimitado, ou seja, o de reconhecer o nome namos a leitura apenas para desenvolver a com-
○
○
dos candidatos. A alfabetizadora então levou as petência, o aluno deve, por si próprio, construir
○
cédulas e realizou uma série de atividades de
○
uma função para a atividade.
○
decodificação dos nomes e números que consta- Finalizando, gostaria de apontar que uma
○
○
vam na cédula, a fim de atender às necessidades
constante na alfabetização de jovens e adultos
○
de leitura que haviam sido delimitadas pelo gru-
○
é, a meu ver, o desejo e a necessidade do aluno
○
po. Porém, durante essa atividade, surgiu o inte-
de se apossar da escrita e daquilo que ela re-
○
resse, motivado pelas intervenções de professora
○
presenta na sociedade tecnológica (ver Street,
○
e alunas, de conhecer melhor as pessoas a quem
○
1994). Esse desejo fica evidente nos esforços
○
as palavras aprendidas nomeavam e, então, pe-
○
quenos artigos sobre os candidatos – biográficos que o adulto sem escrita realiza e na variedade
○
de estratégias que ele cria a fim de funcionar
○
e programáticos – foram lidos.
○
na sociedade letrada, às vezes escondendo sua
○
○
A moral dessa história seria, segundo a au- condição de não-escolarizado; fica evidente na
○
○
dessas mulheres, propondo primeiro a leitura convívio social. O incentivo para a leitura, por-
○
○
que permitisse conhecer os candidatos para tanto, precede a entrada do aluno na escola.
○
○
depois ler a cédula, provavelmente nem a pri- Perde-se pela circularidade de um método de
○
prática social, a leitura para a aprendizagem. A dução dos alunos nas práticas socioculturais da
○
○
vezes, na circularidade da atividade, que come- KLEIMAN, A. B.; SIGNORINI, I. (Orgs.). O ensino e a
○
○
encontradas pelos alunos membros de comu- MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação . São
○
alguma, evidente que seja necessário saber ler STREET, B. V. Literacy in theory and practice . Cambridge:
○
○
para funcionar no cotidiano desses alunos, nas Cambridge University Press, 1994.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
320
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
○
○
○
e Adultos: um olhar sobre a
○
○
○
formação dos educadores *
○
○
○
○
○
Maurilane de Souza Biccas e Cláudia Lemos Vóvio
○
Ação Educativa/SP 321
○
○
○
○
○
○
A proposta de formação de educadoras 1 gramas de alfabetização é o de que o tipo de
○
educação que se quer propiciar aos alunos
○
que vem norteando as atividades de assesso-
○
ria e formação desenvolvidas pelo Programa de deve ser o mesmo que se propicia às educado-
○
○
Educação de Jovens e Adultos de Ação Educa- ras. A formação da educadora deve pautar-se,
○
desse modo, pela prática do diálogo entre co-
○
tiva, junto com outros programas de alfabeti-
○
zação de jovens e adultos, tem como pressu- ordenadoras e pares, bem como pela reflexão
○
○
posto dois importantes aspectos. O primeiro sobre sua ação e os resultados obtidos, que
○
○
deles refere-se à sua finalidade: propiciar a devem ser coerentes com os objetivos educa-
○
dizagens que contribuam para ampliar a pos- formação das educadoras deve ter a perspec-
○
○
sibilidade de intervenção na sociedade da qual tiva de que elas consigam construir uma prá-
○
de suas vidas. O segundo aspecto refere-se à ras de sua própria ação educativa, historica-
○
○
diferentes áreas.
○
nos, de modo que os jovens e adultos possam de aprendizagens, a reflexão sobre a própria
○
○
refletir maneira crítica sobre suas próprias ex- ação e a busca de informações e conhecimen-
○
ambiente físico, cultural, social e político. Co- no fazer pedagógico partem de pontos comuns
○
○
erentemente com esses aspectos, para formu- ao processo de aprendizagem dirigido aos alu-
○
○
lar ou planejar qualquer ação que vise à for- nos do programa. Se acreditamos que a etapa
○
seguinte questão: com que tipo de educadora nificativas deve pautar-se pelo conhecimento
○
○
os programas devem contar e como pretendem da realidade dos educandos (suas condições de
○
○
formá-la durante o exercício de sua prática pe- vida, de trabalho, sua experiência escolar an-
○
dagógica?
○
Um primeiro princípio que deve reger qual- tos prévios, entre outros aspectos), o mesmo
○
○
quer ação de formação das educadoras de pro- princípio deve nortear a formação das educa-
○
○
○
○
○
○
○
○
*
Este texto foi originalmente elaborado no âmbito da assessoria junto ao Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – Conse-
○
lhos Comunitários de Educação, Cultura e Ação Social) e faz parte do documento: Alfabetização e escolarização de jovens e adultos:
○
○
1
○
O termo “educador” será utilizado no feminino já que a maior parte do corpo docente do programa é formado por mulheres; o mesmo critério
○
○
○
momentos para que se possa conhecê-las, ten-
○
das educadoras
○
do como eixo central a concepção educativa
○
○
que carregam e as representações de aluno que Quando a equipe de educadoras já estiver
○
possuem e que são formadas:
○
selecionada é importante que as coordenadoras
○
• pelos conhecimentos adquiridos em seu pedagógicas possam lançar mão de alguns ins-
○
○
processo de formação inicial (nos cursos de trumentos para coletar e organizar algumas in-
○
habilitação para o Magistério);
○
formações básicas sobre elas. Traçar um diagnós-
○
• pela experiência como educadora; tico do grupo com o qual irá trabalhar auxilia a
○
○
definição de estratégias e de temas importantes
○
• por sua trajetória e experiência como
○
aprendiz, em seu próprio processo de es- para as reuniões de formação.
○
○
colarização; A seguir, sugerimos uma lista de informações
○
que podem ser levantadas com as educadoras:
○
• por sua representação de como se dá o pro-
○
nome completo; data de nascimento; raça e/ou
○
cesso de aprendizagem de pessoas jovens
○
zagem;
○
Os momentos para levantar essas informa- te jornais, revistas, livros (especificar); se fre-
○
○
ções podem ser os mais variados, sendo al- qüentam regularmente livraria, cinema, teatro,
○
momento em que são selecionadas ou incor- de lazer, se participam de alguma atividade cul-
○
○
poradas ao programa, por meio de entrevis- tural de sua comunidade; quais são os materiais
○
zagem que se deseja promover no processo de como planejam e avaliam as atividades pedagó-
○
○
caso seja necessário, problematizá-las, bus- ais ou em pequenos grupos e registradas em re-
○
○
transformem.
○
Quanto mais as coordenadoras pedagógi- lhor quem são os profissionais com os quais es-
○
cas, pessoas responsáveis pelo acompanhamen- tarão trabalhando e também para que possam
○
○
to pedagógico, conhecerem as educadoras com elaborar uma proposta de trabalho a ser desen-
○
○
as quais trabalham, melhores serão suas con- volvida sistematicamente com as educadoras.
○
○
Reuniões pedagógicas:
○
reuniões pedagógicas e capacitações das quais Será principalmente nas reuniões pedagógi-
○
○
322
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
falar a respeito dos alunos, de seus interesses, da gógica. Aqui, necessariamente, a educadora
○
○
prática de sala de aula, do planejamento, da ava- precisa de um interlocutor, de alguém com
○
○
liação, de suas dúvidas e até de suas vidas. Além quem possa discutir e debater as razões que
○
a levam a agir desse ou daquele modo, ao
○
disso, é o momento no qual elas explicam o
○
modo como realizam atividades, analisam os realizar uma atividade em sala de aula. O
○
interlocutor, a coordenadora ou o colega de
○
resultados que obtiveram e apresentam a pro-
○
trabalho, fazem perguntas sobre a descrição
○
dução de seus alunos, trocam experiências e re-
○
oral ou escrita que a educadora elaborou. 323
fletem sobre elas, planejam novas atividades e
○
Para que a educadora responda com tranqüi-
○
estudam os temas e conhecimentos de que ne-
○
lidade a essas questões é preciso confiança e
○
cessitam para inovar e transformar sua ação.
○
clareza sobre o que se pretende. Não se trata
○
Para promover a reflexão sobre a ação da edu- de modo algum de uma investigação visan-
○
cadora é possível seguir algumas estratégias:
○
do à censura da ação que ocorreu em sala.
○
Esse momento, quando pensado para forma-
○
○
Descrição ou relato da experiência. Esta é ção e aprendizagem, ensina a educadora a
○
uma etapa na qual a educadora descreve
○
buscar em si mesma as justificativas para o
○
sua prática em sala de aula, relatando como que faz, articulando sua prática às teorias e
○
○
a atividade que planejou foi desenvolvida, às experiências que a informam, isto é, leva-
○
que resultados obteve, o que deu certo e o ○
○
po de educadoras.
alunos ante a atividade ou o desempenho
○
○
escrito: muitas educadoras descrevem sua momento de reorientar o fazer. Todas essas
○
○
da prática em sala de aula podem ser das conclusões a que se chegou coletiva-
○
○
dirigidas à própria educadora, que tem a mente. Nesse momento, elaboram-se mo-
○
○
var de um outro ponto de vista a ação que se metas que devem ser utilizadas coletiva-
○
○
desencadeou. Mas, com seu consentimen- mente, observadas e avaliadas pelo grupo.
○
○
O que se espera
○
da educadora?
○
leitor ou ouvinte precisa saber para com- Às educadoras cabe o papel de diagnosti-
○
cepções que se expressam na prática peda- mento de seus alunos. Esse processo dinâmi-
○
co de produção e de acesso ao conhecimen- Considerações finais
○
○
to, em que educadora e aluno são agentes e
○
A formação da educadora deve ter como
○
não meros espectadores, só será possível no
○
principal objetivo o de melhorar a qualidade
○
momento em que tiverem clareza quanto aos
○
objetivos a serem perseguidos, às opções da sua intervenção educativa e pedagógica.
○
Para que isso ocorra, é fundamental que se pri-
○
metodológicas e orientações didáticas que
○
vilegiem momentos e espaços específicos para
○
deverão seguir para mediar a apreensão do
○
conhecimento, organizando-o e viabilizando- uma formação contínua e sistemática: por
○
○
o por meio de atividades. meio de reuniões de estudo, de troca de expe-
○
riências; possibilitando a participação em se-
○
Nesse sentido, o papel das coordenadoras
○
minários e cursos; buscando materiais de pes-
○
pedagógicas junto das educadoras seria o de
○
garantir o acesso ao conhecimento científico quisa; adquirindo livros; acompanhando o tra-
○
balho com jovens e adultos, pelo planejamen-
○
e de relacioná-lo à prática cotidiana.
○
to, pelo registro e por visitas à sala de aula. Para
○
Deveríamos reconhecer a importância dos
○
elementos contidos nas suas práticas ○
○
muitas educadoras de jovens e adultos o regis-
educativas cotidianas, tentando perceber seus tro escrito pode vir a ser a primeira possibili-
○
ras construam sua própria prática. Para isso, é O processo e o resultado do trabalho de sis-
○
○
necessário definirmos outros objetivos para a tematização da prática devem ser discutidos e
○
• A consideração do aluno como sujeito ati- específico das educadoras, por meio de super-
○
vo da aprendizagem.
○
do seu fazer.
○
des e de culturas.
○
• A valorização da autonomia de seus alu- ximas das educadoras, avaliando o que não
○
○
nos.
está bom no relacionamento pessoal, no tra-
○
○
324
SIMPÓSIO 22
Alfabetização de jovens e adultos
As relações entre as educadoras, os alunos gógicos que de fato contribuem para o desen-
○
○
e outras pessoas envolvidas no trabalho devem volvimento de um trabalho de qualidade.
○
○
ser objeto de reflexão cotidianamente. Esse Por último, a formação das educadoras deve
○
○
momento de avaliação é importante para que articular a prática e a teoria a todo momento,
○
possam entender o que lhes é mais fácil, quais pois o que queremos alcançar é um maior co-
○
○
suas dificuldades e também para buscar co- nhecimento da realidade e de formas para in-
○
○
nhecer melhor seus alunos. É nesse momento tervir nesse contexto, melhorando a qualidade
○
que se pode organizar e pensar tudo o que já da prática das educadoras junto dos alunos. 325
○
○
sabem e vivenciam no dia-a-dia. Esse espaço
○
○
ajuda na organização de idéias e na elabora-
○
○
ção do planejamento.
Bibliografia
○
Nesse sentido, as educadoras devem estar
○
○
constantemente avaliando sua prática pedagó-
○
C O N T E R A S, J. C o n d i c i o n e s y c o n t ra r i e d a d e s d e l
○
gica, buscando aprofundar teoricamente as- profesional reflexivo al intelectual critico. La autonomía
○
○
pectos ligados à educação de jovens e adultos: del profesorado. Madrid: Morata, 1997. p. 98-142.
○
quem são eles; como pensam; como dimen- PIMENTA, S. G. Formação e docente: identidade e sabe-
○
○
res da docência. In: PIMENTA, S. G. (Org). Saberes
sionam seu tempo; quais seus interesses; como
○
○
pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez,
percebem o mundo a sua volta; quais suas ne-
○
1999. p. 15-34.
○
cessidades; como constroem conhecimento; RIBEIRO, Vera Maria Masagão (Coord.). Educação de Jo-
○
o que eles já sabem e quais são as nossas ques- segmento do Ensino Fundamental. São Paulo: Ação
○
○
cil pensar em objetivos e metodologias que SESC – DEPARTAMENTO NACIONAL. Projeto Sesc-Ler:
○
○
guimos explicitar nossas perguntas sobre a VÓVIO, C. L. (Coord.). Viver e aprender: guia do educa-
○
327
Representações e novas
○
○
○
perspectivas do livro didático
○
○
○
na área de Ciências:
○
○
○
o que nos dizem os professores,
○
○
○
as pesquisas acadêmicas e
○
○
○
os documentos oficiais
○
○
○
○
○
Jorge Megid Neto
○
○
Universidade Estadual de Campinas/SP
○
○
○
○
○
○
Esta exposição toma por base um conjunto apresento dados coletados por nosso grupo de
○
cias (Estudos e Pesquisas sobre Formação de recentemente, com aproximadamente 180 pro-
○
○
ca do Ensino Médio e professor da área de Di- abrangia o livro didático e seu papel no ensino
○
○
dática e Prática de Ensino de Ciências na uni- de Ciências. Quando perguntados sobre os usos
○
○
tos principais: a) o papel atribuído ao livro di- tas que podem ser aglutinadas em três grandes
○
○
dático e seu uso no contexto escolar; b) os cri- grupos. Os professores fazem uso simultâneo de
○
○
livros didáticos adotados por equipes de espe- res distintos, para elaborar o planejamento anu-
○
○
cialistas do MEC, por pesquisadores da univer- al de suas aulas e para a preparação delas ao lon-
○
○
sidade e por professores de Ciências da rede go do ano letivo. Também comentam que o li-
○
○
ideário de professores, pesquisadores e currí- aula, seja extra-escola, visando à leitura de tex-
○
○
Cabe destacar, ainda, que não se pode de- des e ainda como fonte de imagens (fotos, de-
○
bruçar sobre o tema do Simpósio, particulari- senhos, mapas, gráficos etc.) para os estudos es-
○
○
zando para os livros didáticos de Ciências no colares. Por fim, salientam que o livro didático
○
○
Ensino Fundamental, sem externar explícita ou é utilizado como fonte bibliográfica, tanto para
○
○
biente, de educação, de sociedade, das relações quanto para os alunos, em especial na realiza-
○
○
campo da educação em Ciências, as quais de- eram instigados a estabelecer critérios para ana-
○
terminam a própria concepção de livro didáti- lisar e avaliar coleções didáticas e, a partir dis-
○
○
Iniciando pelas concepções e práticas de livro didático. Em linhas gerais, eles indicam os
○
328
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas
○
○
tegração ou articulação dos conteúdos e assun- objetivos, sugestão de bibliografia, entre
○
○
tos abordados; b) trazer textos, ilustrações e ati- outros.
○
○
vidades diversificados, que mencionem ou tra- Posteriormente, em anos subseqüentes,
○
tem de situações do contexto de vida do aluno;
○
como 1997, 1998, 2000 e 2001, o MEC produziu
○
c) apresentar informações atualizadas e lingua- novos documentos, agora denominados Guias
○
○
gem adequada ao aluno; d) estimular a reflexão, do livro didático, envolvendo avaliação de co-
○
o questionamento, a criticidade; e) as ilustra- 329
○
leções ora de 1ª a 4ª séries, ora de 5ª a 8ª séries.
○
ções devem ter boa qualidade gráfica, ser visua- No caso da área de Ciências, uma nova equipe
○
○
lmente atraentes, compatíveis com a nossa cul- de especialistas foi constituída, a qual estabe-
○
○
tura, conter legendas e proporções espaciais leceu dois conjuntos principais de critérios para
○
corretas; f ) as atividades experimentais devem
○
avaliação das coleções. Os critérios eliminató-
○
ser de fácil realização e com material acessível, rios das coleções, segundo a equipe, consistem
○
○
além de não apresentar riscos físicos ao aluno; de: conceitos e informações básicas incorretos;
○
○
g) o livro deve ter isenção de preconceitos incorreção e inadequação metodológicas; pre-
○
socioculturais; h) a coleção deve manter estrei-
○
juízos à construção da cidadania; e riscos à in-
○
ta relação com as diretrizes e propostas curricu- tegridade física do aluno. Os critérios
○
○
ticas mencionados pelos professores compare- temas nos capítulos; valorização da experiên-
○
○
cem nos documentos de avaliação do livro di- cia de vida do aluno; aspectos visuais das ilus-
○
○
mos contado com esse trabalho de avaliação rante os referidos cursos de extensão, se os cri-
○
○
nacional de livros didáticos direcionados ao térios que estabelecem são específicos de livros
○
○
Definição de critérios para avaliação dos livros de outras disciplinas escolares, eles se assustam.
○
○
didáticos, em que eram analisados livros didá- Tomam consciência de que, à exceção da pre-
○
○
critérios estabelecidos pela equipe de Ciências um livro didático por eles indicada pode ser
○
○
quação e articulação dos conteúdos, presen- classificatórios dos Guias do MEC divulgados a
○
cotidiano.
passíveis de provocar danos à saúde do aluno.
○
○
Descritores das atividades como práticas Em suma, esses primeiros comentários in-
○
Descritores do Livro do Professor, envolven- lecer – como critérios para avaliação de livros
○
didáticos – aquilo que há de mais específico cia & Ensino (Amaral e Megid Neto, 1997), tive-
○
○
no ensino de Ciências, os fundamentos ou as mos oportunidade de comentar sobre essa
○
○
bases teórico-metodológicas que demarcam, questão. Com base em estudos avaliativos de
○
○
que distinguem o campo curricular das Ciên- coleções didáticas afirmamos, na época, que os
○
cias Naturais das demais disciplinas do currí- autores de livros didáticos até procuram incor-
○
○
culo escolar. Muito provavelmente os autores porar nas páginas iniciais das coleções, nas ex-
○
○
e editores de livros didáticos também não con- plicações e na introdução ao professor e ao alu-
○
seguem fazer essa distinção, razão pela qual as no, essas bases, esses avanços educacionais na
○
○
coleções de Ciências vêm sofrendo, nos últi- área de Ciências. Contudo, na implementação
○
○
mos anos, melhorias localizadas principal- dessas idéias ao conteúdo do livro (texto, ativi-
○
○
mente no aspecto gráfico e visual, na correção dades, orientações metodológicas etc.) comu-
○
conceitual, na eliminação de preconceitos e mente isso não se efetiva.
○
○
estereótipos de raça, de gênero ou de nature- Analisando várias coleções de Ciências de
○
○
za socioeconômica, na supressão de informa- 5ª a 8ª séries, notamos a presença de erros
○
○
ções ou ilustrações que podem propiciar ris- ○
conceituais ou de preconceitos sociais, cultu-
cos à integridade física do aluno. Muitas des- rais e raciais, conforme a imprensa fartamen-
○
○
sas melhorias foram certamente impulsiona- te divulgava naquele momento. Todavia, esses
○
○
das pelos Guias de avaliação do MEC. erros e preconceitos são pontuais, podem ser
○
○
não sofreram qualquer tipo de mudança subs- de, na ilustração e podem ser corrigidos com
○
○
tancial nos aspectos que determinam as pecu- alguma facilidade. De modo semelhante, as de-
○
○
estabelecidas nas atuais propostas curriculares também ser corrigidos por intermédio de nova
○
○
oficiais de vários estados e municípios do país editoração da coleção. Mas que dizer de con-
○
○
e também nos Parâmetros Curriculares Nacio- cepções errôneas, superadas, parciais, envie-
○
nais (de Ciências) derivam dessas bases. Que sadas, mitificadas sobre ciência, ambiente,
○
○
características são essas, que fundamentos são saúde, tecnologia, entre tantas outras? Como
○
○
esses, os quais são esquecidos por professores alterar um tratamento do conteúdo presente
○
○
de Ciências, pelos autores de livros didáticos e no livro, que configura o conhecimento cien-
○
também pelas equipes de especialistas de as- tífico como produto acabado de algumas men-
○
○
Ora, como disse, basta ler os PCN de Ciên- político-econômicos e ideológicos, que apre-
○
○
cias do Ensino Fundamental ou outros progra- senta o conhecimento sempre como verdade
○
mas curriculares oficiais para encontrar lá, de absoluta, sem contexto histórico e socio-
○
○
maneira bastante explícita, esses fundamentos cultural? Como modificar um enfoque ambien-
○
○
possa parecer, esses mesmos critérios encon- sem localização espaço-temporal? Ou ainda,
○
tram-se muito bem explicitados no citado do- como substituir um tratamento metodológico
○
○
cumento, Definição de critérios para avaliação que concebe o aluno como ser passivo, depo-
○
○
dos livros didáticos, de 1994, do próprio MEC. sitário de informações desconexas e des-
○
○
mação, de seres vivos, de corpo humano, de saú- rico-metodológicos do ensino de Ciências são
○
○
de, de ciência e tecnologia, ou ainda de ambi- extremamente difíceis de modificar nas cole-
○
○
ente e das relações de todos esses elementos ções hoje existentes no Brasil. Há necessida-
○
com a educação e com a sociedade em última de, em quase todos os casos, de se reescrever
○
○
Em breve artigo publicado no jornal Ciên- Fica-nos, assim, a indagação: por que esses
○
330
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas
critérios de cunho teórico-metodológico e bas- De nossa parte, tomando por base estudos
○
○
tante inerentes e peculiares ao ensino de Ciên- e pesquisas acadêmicas realizadas em diversas
○
○
cias, estabelecidos por especialistas do próprio universidades brasileiras de diferentes regiões
○
○
MEC em 1994 e, posteriormente, reafirmados geográficas, podemos dizer que as coleções di-
○
pelos PCN – Ciências, não continuaram a cons- dáticas de Ciências da década de 1970 lograram
○
○
tituir o eixo principal e norteador dos critérios relativo êxito na sua aproximação com as dire-
○
○
para avaliação de coleções didáticas de Ciên- trizes curriculares oficiais daquela época. Toda-
○
cias nos demais documentos do MEC? via, nos anos 1980, após os processos de 331
○
○
Se isso tivesse ocorrido desde o Guia de Ava- reformulação curricular em vários estados e
○
○
liação de 1997 e subseqüentes, talvez algumas municípios e, mais recentemente, com a edi-
○
○
coleções já tivessem sofrido mudanças não ape- ção dos PCN, essa aproximação não mais se
○
nas em aspectos periféricos, como projeto grá- evidencia. Nos últimos dez a quinze anos, as
○
○
fico e correções conceituais, mas também nos coleções didáticas de Ciências não conseguiram
○
○
elementos essenciais do ensino-aprendizagem acompanhar os novos princípios educacionais
○
○
de Ciências. Poderíamos ter, assim, mais ele- difundidos pelos estudos e pesquisas acadêmi-
○
mentos para avaliar a viabilidade de investir em cas e pelos currículos oficiais. Pode-se dizer,
○
○
um projeto de reformulação do modelo atual de então, que os atuais livros didáticos de Ciências
○
○
livro didático e de melhoria da sua qualidade, correspondem a uma versão “livre” das diretri-
○
○
em vez de vislumbrarmos tão-somente os ca- zes e dos programas curriculares oficiais em vi-
○
minhos que iremos apontar na última parte gência. Em linhas gerais, as atuais coleções ain-
○
○
epistemológicas do livro didático de Ciências, ções curriculares veiculadas nos anos 1960 e
○
○
pode-se dizer que os professores mantêm forte 1970. A pretensão de que as coleções colabo-
○
○
expectativa – ou crença – de que as coleções rem na difusão das atuais orientações e currí-
○
○
correspondem a uma expressão fiel das propos- culos oficiais, contribuindo para que o profes-
○
tas e das diretrizes curriculares e do conheci- sor consiga perceber como essas diretrizes po-
○
○
mento científico. Todavia, por julgar que isso é dem tomar forma na prática escolar, de modo
○
○
de difícil consecução, atenuam suas pretensões, algum é conseguida pelos livros didáticos hoje
○
○
acreditando que ao menos as coleções são ver- presentes no mercado, mesmo entre aqueles
○
sões adaptadas das propostas curriculares e do que são recomendados pelos Guias do MEC.
○
○
tico e editoras, por sua vez, difundem até como lado nos livros didáticos de Ciências, não se
○
○
estratégia mercadológica que os livros são fiéis nota qualquer mudança substancial nas duas ou
○
fico como das diretrizes curriculares oficiais. Do sempre o produto final da atividade científica,
○
○
autores indicam que o livro apresenta informa- desprovido de suas determinações históricas,
○
frem pequenas adaptações em vista de uma di- culturais. Realçam sempre um único processo
○
○
lares oficiais, autores e editoras reforçam que versidade de métodos e ocorrências na constru-
○
○
os respectivos livros atendem aos avanços da ção histórica do conhecimento científico, como
○
○
pam invariavelmente em suas capas expressões de pesquisas, entre outras formas. Pode-se di-
○
○
como “de acordo com os PCN”, ou “edição zer, então, que o conhecimento trazido pelos
○
○
reformulada para atender à avaliação do MEC”. livros didáticos de Ciências situa-se entre uma
○
versão “adaptada” do produto final da ativida- consultas bibliográficas; etc.). Contudo, consi-
○
○
de científica e uma versão “livre” dos métodos derando a baixa qualidade das coleções didáti-
○
○
de produção do conhecimento científico. cas da atualidade mesmo esse uso alternativo
○
○
Em suma, o livro didático não corresponde não pode ser estimulado.
○
a uma versão fiel das diretrizes e programas cur- Com a difusão de princípios educacionais
○
○
riculares oficiais, nem a uma versão fiel do co- como flexibilidade curricular, abordagem
○
○
nhecimento científico. Não é utilizado por pro- temática interdisciplinar, vínculo com o cotidi-
○
fessores e alunos na forma intentada pelos au- ano (real) do aluno e com seu entorno sócio-
○
○
tores e editoras, como guia ou manual relativa- histórico, atendimento à diversidade cultural de
○
○
mente rígido e padronizado das atividades de cada local ou região, atualidade de informações,
○
○
ensino-aprendizagem. Acaba por se configurar, estímulo à curiosidade, à criatividade, à reso-
○
na prática escolar, como um material de con- lução de problemas, entre outros, fica cada vez
○
○
sulta e apoio pedagógico à semelhança dos li- mais difícil conceber um livro didático adequa-
○
○
vros paradidáticos e de outros tantos materiais do a todos esses princípios.
○
○
de ensino. Introduz ou reforça equívocos, este- ○
Penso, assim, em pelo menos dois cami-
reótipos e mitificações com respeito às concep- nhos. A curto prazo, uma vez que as atuais co-
○
○
ções de ciência, ambiente, saúde, ser humano, leções permanecerão em circulação por algum
○
○
tecnologia, entre outras concepções de base tempo e pela dificuldade em se produzir novos
○
○
intrínsecas ao ensino de Ciências Naturais. materiais em questão de dois ou três anos, pro-
○
Ora, com tudo isso, podemos nos interro- põe-se manter esse uso alternativo do livro di-
○
○
gar: para quê livro didático com esse modelo e dático com seu modelo atual, investindo na
○
○
qualidade atuais? Indo mais a fundo, será que é ampla divulgação dos estudos de avaliação do
○
possível elaborar alguma coleção didática que livro didático e em cursos de formação de pro-
○
○
seja coerente com o conhecimento científico e fessores em exercício para discussão das defi-
○
○
seus métodos de produção e também com as ciências e limites das coleções didáticas atuais
○
○
modelo em vigência de livro didático ou, pelo A médio prazo, várias ações podem ser em-
○
○
públicos na sua aquisição e distribuição ampla tir na produção de livros paradidáticos, com
○
pelas escolas públicas brasileiras, e investir em abordagem temática única para cada volume
○
○
outros caminhos, em outros materiais e recur- de uma coleção ou série, com melhor qualida-
○
○
sos para apoiar o trabalho pedagógico de pro- de gráfica e maior diversidade de textos/lin-
○
○
Essas indagações e incertezas remetem-nos de cada tema focalizaria com maior particula-
○
○
à segunda parte do tema deste Simpósio, qual ridade conhecimentos do campo das Ciências
○
○
seja, refletir sobre as perspectivas futuras para Naturais, porém de maneira multidimensional,
○
○
De início deve-se reforçar que nas escolas áreas do conhecimento humano relacionadas
○
○
de utilização do livro didático. Cada vez mais o poderiam constituir livros didáticos “modula-
○
○
professor deixa de usar o livro como manual e res”, de maneira que o professor pudesse ir
○
passa a utilizá-lo como material bibliográfico de compondo seu compêndio didático ao longo
○
○
apoio a seu trabalho (leitura, preparação de do ano, a partir da sua realidade escolar, da sua
○
○
aulas etc.) ou material de apoio às atividades vivência profissional e das vivências de seus
○
○
dos alunos (confronto de definições e assuntos alunos, do contexto sociocultural deles e das
○
e atividades; textos para leitura complementar; gem ao longo do ano letivo nos últimos anos –
○
○
fonte de ilustrações e imagens; material para as quais nos fazem constantemente avaliar os
○
332
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas
○
○
implementar mudanças naquilo que foi previ- das tendo em vista implementar inovações e
○
○
amente planejado. melhorias no ensino à revelia do professor. Não
○
○
A par da multiplicação e da difusão desse lograram êxito, acabando por ser rejeitadas pe-
○
novo modelo de livro didático (modular), uma los próprios professores e convertendo-se em
○
○
segunda ação investiria na reedição de livros mais um fantasma que atemoriza os docentes
○
○
clássicos e de projetos curriculares de ensino, e inculca-lhes a pecha de incompetentes e in-
○
bem como de inúmeros projetos alternativos capazes. Ora, sem uma formação contínua e 333
○
○
produzidos em universidades e em escolas do permanente, sem melhorias substantivas nas
○
○
ensino básico ao longo das duas últimas déca- condições de trabalho e nas condições salariais
○
○
das, cujos materiais podem ser excelente fonte dos professores da Educação Básica, não se
○
de apoio ao trabalho pedagógico coletivo de pode conseguir melhoria da qualidade de ensi-
○
○
professores e alunos. Também seria incentiva- no escolar.
○
○
da a produção de outros recursos didáticos, Enquanto aceitarmos a perspectiva de que
○
○
como atlas, vídeos, CD-ROMs, cadernos de ati- um “bom” livro didático e programas curricu-
○
vidades para os alunos, textos e revistas de di- lares bem definidos e determinados podem su-
○
○
vulgação científica. Muitos desses recursos já prir possíveis deficiências de formação do pro-
○
○
estão presentes no mercado, porém deveriam fessor e também suprir suas inadequadas con-
○
○
ser multiplicados e chegar de fato às escolas da dições de trabalho e seu salário indigno, pouco
○
rede pública do Ensino Fundamental. Esses há a se fazer. Melhor ficar com a ordem edito-
○
○
materiais diversificados devem procurar aten- rial e mercadológica vigente dos livros didáti-
○
○
der às diretrizes e orientações curriculares ofi- cos convencionais e manter o modelo e o esta-
○
cionais, bem como o contexto histórico e a di- sinceramente que novas experiências e ações no
○
○
Lembro, neste ponto, da extinta Fename, didáticos impressos e de multimídia podem ser
○
○
que editava, até os anos 1960 e 1970, materiais realizadas articuladamente com a formação
○
○
didáticos de excelente qualidade e baixo custo, contínua dos professores e com as devidas
○
○
sendo a maioria textos alternativos de ensino e melhorias das suas condições de trabalho e de
○
tros pedagógicos das Secretarias de Educação AMARAL, I. A.; MEGID NETO, Jorge. Qualidade do livro
○
○
de ser utilizados para compra de livros didáti- tais presentes em coleções didáticas de Ciências de 5ª
○
○
cos com o modelo atualmente vigente, inves- a 8ª séries. Atas do II Encontro Nacional de Pesquisa-
○
tindo-se na distribuição, para todas as escolas dores em Educação em Ciências. Valinhos: Abrapec, set.
○
○
cas de salas-ambiente e bibliotecas escolares. BRASIL. Ministério da Educação. FAE. Definição de critéri-
○
esses novos documentos e ações não garantem temática, Estudos Sociais e Ciências – 1ª a 4 ª séries.
○
○
○
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais – 1º, torado). Faculdade de Educação/Unicamp, 1993.
○
○
2º, 3º e 4º ciclos. Brasília, 1997/1998. FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. As propostas curriculares
○
. Guia de livros didáticos – 1ª a 4ª séries – oficiais . São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1996.
○
○
PNLD 2000/2001. Brasília: SEF/MEC/FNDE/Ceale/ (Textos FCC, 10).
○
Cenpec, 2000. MEGID NETO, Jorge. Tendências da pesquisa acadêmi-
○
. Guia de livros didáticos – 5ª a 8ª séries –
○
ca sobre o ensino de Ciências no nível fundamental.
○
PNLD 2002. Brasília: SEF/FNDE/Cenpec, 2001. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação/Unicamp,
○
FRACALANZA, Hilário. O que sabemos sobre os livros di-
○
1999.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
sociedades industriais
○
vro didático, que é interessante explicitar: isto é, ter freqüentado a escola por uns tantos
○
didático tem um modelo e de que existiria a ros, bem como realizar determinadas tarefas em
○
○
tico em outro(s) modelo(s); mais que isso, condição de participação social com relativa in-
○
ração do atual, seriam mais interessantes e de usufruir (consumir) dos benefícios da pro-
○
○
apropriados a uma proposta pedagógica ino- dução industrial e de manter acesso aos varia-
○
para sua transformação – pela redefinição de para explicar os altos índices de analfabetismo,
○
○
mediatamente, de modo que seja desenvol- balhadores tivessem instrução, porque assim
○
○
vido a partir da compreensão de como funcio- seriam mais fáceis de controlar e de se subme-
○
trial. Isso porque o livro didático é parte da o trabalhador moderno deve ter autonomia,
○
○
antes de entrar propriamente no tema pro- sou a ser um das características mais significa-
○
○
posto, cabe estabelecer alguns pressupostos tivas das sociedades ocidentais industriais.
○
○
334
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas
como um processo de redução das desigualdades. a escola como paradigma do conhecimento. Nes-
○
○
A demanda por qualificação resulta das necessi- se sentido, fazem parte do capital cultural histo-
○
○
dades do modelo de sociedade. Do ponto de vis- ricamente estabelecido.
○
○
ta do sistema, a escolarização se faz necessária Além da função informativa, a escolarização
○
para que o indivíduo seja mais produtivo, para cumpre uma função que apenas tem sido objeto
○
○
que saiba seguir instruções e movimentar-se no de investigação, que é a função formativa, en-
○
○
espaço urbano-industrial, para que possa consu- tendida como o desenvolvimento de habilidades
○
mir produtos e respeitar ou assumir os valores cognitivas articuladas às formas do saber escri- 335
○
○
hegemônicos. Do ponto de vista do trabalhador, to (isto é, aquele que se constitui em função de
○
○
como indivíduo, a escolarização impõe-se como uma tradição de escrita, aí incluídas a Matemá-
○
○
condição de possibilidade de inserção no merca- tica, as Ciências, a Literatura, a Informática, a
○
do de trabalho e, em tendo emprego, de partici- imprensa, as leis).
○
○
pação – ainda que mínima – do mercado de con- Nesse sentido mais genérico, a escolarização
○
○
sumo. Se a escolarização não garante o emprego supõe o letramento do sujeito – entendido como
○
○
de ninguém, nenhuma ou pouca escolarização é o estado ou a condição de quem interage com
○
um impedimento ao trabalho. diferentes discursos, saberes e comportamentos
○
○
Em outras palavras: a instituição escolar na articulados em função da cultura escrita. Quan-
○
○
sociedade urbano-industrial tem a dupla função to maior o letramento, maior será, entre outras
○
○
estrutura social, contribuindo para a manuten- escritos variados, a de realização de leitura au-
○
○
ção de diferenças e de privilégios, e de inserir no tônoma (sem intervenção ou apoio de outra pes-
○
○
mercado de trabalho e de consumo os diferen- soa), a interação com discursos menos contex-
○
tes sujeitos, conforme sua condição de classe. tualizados ou mais auto-referidos, a convivên-
○
○
A educação regular cumpre, nesse quadro, cia com domínios de raciocínio abstrato, a pro-
○
○
Em primeiro lugar, está a função informati- planejamento, enfim, maior será a capacidade e
○
va, que supõe que todo indivíduo deve conhe- a oportunidade do sujeito de realizar tarefas que
○
○
cer o conjunto de informações que permite sua lhe exijam monitoração, inferências diversas e
○
○
essa perspectiva, a escola expressaria o “consen- Além das funções informativa e formativa,
○
saberes que, idealmente, devem ser de conheci- modo articulado a elas, uma função valorativa,
○
○
mento comum, como a noção moderna de uni- pela qual se estabelece e se reafirma o conjun-
○
○
verso, os conceitos de corpo e de vida, a repre- to de valores que informam o conceito hege-
○
sentação de mundo, os fatos históricos represen- mônico de sociedade, tais como o sentido de
○
○
drão, entre outros. Esses saberes se organizam rioridade, de propriedade. Essa função, apesar
○
○
nas disciplinas escolares – Português, Matemá- de menos explícita do que as anteriores, está
○
tica, História, Biologia, Geografia–, as quais têm fortemente imbricada na organização escolar e
○
○
relativa autonomia nos processos de produção na razão de ser da escola. É em função dela que
○
○
Apesar de os saberes escolares não terem, se relaciona com a comunidade e com as ins-
○
muitas vezes, aplicação prática para a maioria tâncias oficiais, que se estabelecem os critérios
○
○
bui para sustentar privilégios ou permitir ascen- Ao lado da função valorativa e intrinsecamen-
○
○
são social. Eles compõem o ideal social de pes- te ligada a ela, está a função normativa, à qual
○
soa culta e estão presentes em concursos e tes- compete implementar o processo de socialização
○
○
tes, além de serem constantemente reproduzi- das crianças, estabelecendo o lugar e o compor-
○
○
dos de diferentes maneiras pela mídia, que toma tamento de cada uma no meio imediato e na so-
○
ciedade como um todo. A dinâmica das aulas, a • a atribuição de uma natureza teleológica à
○
○
repartição do espaço físico escolar, os sistemas de produção discursiva, cujo fim é definido pela
○
○
avaliação e promoção, as categorias de punições cumulação de um volume de conhecimentos;
○
○
e censura, tudo isso concorre para a construção • sua acumulação progressiva por meio de for-
○
de um modelo disciplinar e de relação com o co- mas de desenvolvimento cumulativo;
○
○
nhecimento e de comportamentos esperados.
○
• a construção do tempo escolar como um es-
○
João Wanderley Geraldi observa que se pode com- paço de tempo útil, delimitado pela conse-
○
preender a escolarização como uma aplicação
○
cução de um objetivo e pela transmissão de
○
paradigmática das modernas técnicas de gover- uma determinada porção de conhecimento;
○
○
no, cujas estratégias, mais do que silenciar e cons-
○
• a redução da dispersão e da heterogeneida-
○
tranger, agem pela liberdade, sintonizando dese- de das formas de interlocução presentes na
○
jos e capacidades aos objetivos políticos da orga-
○
situação imediata de uso da linguagem em
○
nização e construindo o autogoverno como for- sala de aula, favorecendo a manutenção dos
○
○
ma de realização da liberdade. dois pólos de produção discursiva, realizada
○
○
Deve-se destacar que tanto os valores como ○
mediante a unificação do corpo de alunos;
os comportamentos esperados, diferentemen-
○
te do que ocorre com os saberes enciclopédi- alunos com os conhecimentos a serem acu-
○
○
ses saberes;
○
domínio na interlocução;
○
e como funciona o livro didático, é necessário vro didático é imediata. Ele supõe o princípio da
○
○
que tem na “aula” seu paradigma. Em trabalho (as unidades) em atividades bem definidas, a
○
Augusto Batista, em seu livro Aula de Português interlocução que o modelo do livro didático mais
○
○
(1996), identifica um conjunto de condições que se impõe: ele determina as falas e os comporta-
○
possa ser transmitido em sala de aula: norteadora de todas as ações; apresenta-se como
○
○
336
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas
○
○
sário; traz previamente estabelecidas as pergun- pedagógica. Ainda em razão desse debate, co-
○
○
tas e as respostas. nhecemos nesse período, diversas propostas de
○
○
O livro didático funcionaria, desse modo, livros com modelos diferentes e de outros mate-
○
como “antenas” da sociedade, estabelecendo riais didáticos, além de ações complementares
○
○
uma ponte entre as instâncias produtoras do (sempre circunstanciais, mas significativas do
○
○
conhecimento e o processo pedagógico, sistema- ponto de vista político-pedagógico), como a cri-
○
tizando e didatizando os saberes escolares. ação de bibliotecas, acervos de classe, salas de 337
○
○
Como o conteúdo e a organização escolar são criação, salas informatizadas. Devem-se regis-
○
○
fruto das disputas e dos compromissos sociais, trar, ainda, as propostas de abandono do livro
○
○
o livro didático tende a trazer a versão didático, seja em função de um modelo de aula
○
hegemônica, isto é, aquela que corresponde à incompatível com ele, seja pela produção pelo
○
○
visão de mundo das forças político-sociais do- docente de seu próprio material didático.
○
○
minantes. Entretanto, nenhuma das ações de condena-
○
○
Enfim, o livro didático é a expressão maior ção e substituição do livro didático foi, do ponto
○
da cultura escolar, manifestando uma concep- de vista da organização do sistema escolar, bem-
○
○
ção de ensino em que a exposição do conheci- sucedida. Os livros “diferentes” foram sempre
○
○
mento, distribuída em áreas específicas corres- bem avaliados e serviram, muitas vezes, de mo-
○
○
pondentes às disciplinas escolares, supõe uma delo para reajustes de aspectos periféricos de
○
numa estreita relação com o princípio de mas não tiveram sucesso de mercado. As biblio-
○
○
seriação escolar. Seu uso supõe um tipo deter- tecas de classe e outras ações semelhantes fo-
○
minado de aula padronizada, em que as ativida- ram muito bem recebidas e implementadas com
○
○
des propostas se enquadram em unidades diferentes graus de radicalidade, mas não trou-
○
○
temáticas tipificadas, com seções sistematica- xeram mudança para o modelo de aula, tornan-
○
○
mente repetidas, pautando o dia-a-dia da sala do-se uma espécie de complemento. A produ-
○
de aula. Ao apresentar-se como um curso pron- ção do material pelos docentes, quando possí-
○
○
to, o livro didático assume responsabilidades vel, costuma reproduzir o modelo didático e as
○
○
atribuídas aos professores, tais como o estabe- experiências diferenciadas de aula, centradas,
○
○
lecimento do programa, a organização dos con- por exemplo, na pesquisa, mantêm-se limitadas
○
O teor das críticas ao modelo atual de livro livro didático sobrevive e tem seu uso expandi-
○
○
didático sugere equivocadamente que a solução do, contando com enorme investimento estatal?
○
○
sua apresentação e a seleção acurada de textos dida como possibilidade de uma ação educativa
○
○
va é a que, mais freqüentemente, tem sido ado- processo pedagógico possam efetivamente to-
○
manifestado principalmente nos processos de abstrato nem decorre de decisão individual. Ela
○
○
○
○
modações físicas, o mobiliário escolar, os recur- pedagógicos.
○
○
sos de apoio (biblioteca, computador, televisão, A diferença qualitativa do ensino não esta-
○
○
vídeo, DVD, CD-ROM, retroprojetor, mapas), a rá, então, na melhor qualidade do livro didáti-
○
conectividade (telefone, Internet, sistema de co, mas nas condições em que se dá o proces-
○
○
tevê), o padrão salarial. so pedagógico. Crianças ou adolescentes que
○
○
O que ocorre é que faz parte do processo de tenham à disposição o mesmo livro didático
○
massificação do ensino a depreciação da função terão experiências escolares completamente
○
○
docente. O aumento da oferta de vagas signifi- distintas em função das condições de sua pró-
○
○
cou recrutamento mais amplo de professores, re- pria escola. Aliás, os resultados das avaliações
○
○
baixamento salarial, condições de trabalho pre- do sistema escolar sugerem exatamente essa
○
cárias e formação deficiente, obrigando os pro- mesma conclusão.
○
○
fessores a buscar formas de facilitação e de su- Não se deve, contudo, concluir desta expo-
○
○
porte de sua atividade docente, já que, no mais sição que as produções didáticas sejam todas do
○
○
das vezes, não existem condições objetivas de ○
mesmo nível ou que uma política de livro didá-
construção de processo pedagógico autônomo tico não seja importante. O que se postula é que
○
○
e criativo, nem ação coletiva do corpo docente. qualquer política de livro didático só terá efici-
○
○
O livro didático, muitas vezes a única fon- ência se houver uma profunda reorganização do
○
○
Há trinta anos, quando o uso do livro didá- lização, o “siga o modelo”, as centenas de exer-
○
○
tico começava a se intensificar, ele era consi- cícios similares de adestramento em que ape-
○
derado um dos maiores problemas da educa- nas os números eram trocados, o predomínio
○
○
ção. Responsável por simplificar o conhecimen- de alguns assuntos (números e álgebra) sobre
○
○
to, era visto por especialistas como uma espé- outros (geometria, grandezas e medida, estatís-
○
○
cie de muleta para os professores que se aco- tica, probabilidade e raciocínio combinatório)
○
modavam no exercício de sua profissão. Em eram motivos de severas críticas dos educado-
○
○
graves, reforçavam-se discriminações, precon- Nas duas últimas décadas, essa visão se
○
○
ceitos e visões ideológicas comprometidas. Na modificou, sobretudo pelo fato de o livro didá-
○
área de História, por exemplo, recorria-se às tico ter assumido papel crucial no processo de
○
○
páginas de um livro didático toda vez que al- ensino e aprendizagem e de a própria educa-
○
○
gum historiador precisava ilustrar o “atraso” do ção formal ter-se transformado, para muitos, no
○
338
SIMPÓSIO 23
Concepção dos livros didáticos: modelo atual e novas perspectivas
e novas perspectivas
A crescente importância dos livros didáti- zer; isso sem contar com a diversidade de abor-
○
○
cos aconteceu ainda pelo fato de este ser, para dagens existentes em cada disciplina do currí-
○
○
muitos brasileiros, a única fonte de leitura e culo escolar.
○
○
informação sobre assuntos específicos nas áre- Independentemente da metodologia, os li-
○
as de Matemática, Português, História, Ciências vros didáticos ganharam também em dinamis-
○
○
e Geografia. Graças ao seu alcance (representa mo, ao incorporarem recursos diversificados. Os
○
○
70% do que se publica no país e atinge um pú- livros de História, por exemplo, abandonaram
○
blico de 44 milhões de pessoas), tornou-se tam- a antiga concepção de documento histórico e 339
○
○
bém o principal instrumento de consolidação passaram a utilizar, como fonte do conhecimen-
○
○
dos currículos escolares. to, textos literários, objetos do uso cotidiano,
○
○
Nesse cenário, os olhares de especialistas letras de música, imagens, etc. Os de Matemá-
○
acabaram por se voltar para o livro didático, tica buscam apresentar os problemas
○
○
com a preocupação de produzir um livro de contextualizados, estimulam a investigação, o
○
○
melhor qualidade. Exemplo disso é a política fazer pensar, a compreensão dos conceitos e dos
○
○
estabelecida pelo atual governo. Enquanto os procedimentos, as aplicações, o desencadear
○
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) in- conceitos e procedimentos pela resolução de
○
○
centivam novas abordagens, a política de problemas, o uso da história e dos recursos
○
○
avaliação do livro didático obriga autores e edi- tecnológicos. Isso confere ao professor maiores
○
○
tores a publicarem livros sem erros conceituais, opções para o trabalho em sala de aula, e ao alu-
○
sem preconceitos, sem discriminações, sem no uma gama maior de conhecimento e estímu-
○
○
produção do livro didático. Antes escrito por um padronizadas foram sendo substituídas por ati-
○
○
único autor experiente, mas nem sempre espe- vidades reflexivas, redações de textos, sugestões
○
○
pequeno porte, o livro didático passou a ser fei- disciplinaridade e a contextualização passaram
○
○
to por equipes de especialistas da área e a ser a pautar todos os conteúdos. Agora, torna-se
○
○
As mudanças podem ser verificadas ao se realidade vivida pelos alunos e integrar as áre-
○
conteúdos dos livros didáticos de trinta anos De todas as mudanças verificadas nos últi-
○
○
atrás refletiam uma visão “oficial” da socieda- mos trinta anos a respeito do livro didático, esta
○
de. Pouco críticos, reproduziam um conheci- que se testemunha atualmente é, sem dúvida,
○
○
mento enciclopédico, que facilitava os métodos a de maior envergadura. Aliada à não menos
○
○
cada de 1980, os livros passaram a apresentar Básica, num futuro próximo, ela pode implicar
○
○
Nos anos 1990, a valorização desse material ção brasileira. O certo é que agora se pretende
○
○
didático por educadores e técnicos responsá- formar um sujeito capaz de agir com rapidez
○
veis pelas políticas educacionais foi crucial para num mundo em constante modificação e em
○
○
posição coleções em que se aplicam as mais Prever quais as mudanças para os próximos
○
○
variadas metodologias, algumas com aborda- anos é sempre tarefa ingrata. Entretanto, a im-
○
○
gens mais críticas e que privilegiam o saber fa- portância que o livro didático ganhou dentro do
○
ensino parece ser, durante os próximos anos, exemplo, foram responsáveis por enterrar de
○
○
irreversível. Ele deve continuar a ser no Brasil vez o questionário tradicional e as atividades
○
○
um dos principais recursos didáticos para pro- padronizadas, mas ainda não conseguiram
○
○
fessores e alunos, apesar da crescente entrada impor um modelo que se possa dizer aceito
○
de novas opções, como a Internet, o CD-ROM e por grande parte dos educadores. A própria
○
○
os livros paradidáticos. experimentação desse material em sala de
○
○
Quanto às mudanças verificadas na natu- aula pelos professores mantém em aberto es-
○
reza dos livros didáticos durante os últimos ses caminhos. Mas, independentemente dos
○
○
anos, essas ainda continuam em franco de- rumos que irão ser tomados, os próximos
○
○
senvolvimento. Os modelos iniciados nos anos devem testemunhar a consolidação des-
○
○
anos 1990 ainda não se consolidaram total- se livro didático diversificado e dinâmico que
○
mente. Os princípios construtivistas, por os anos 1990 viram surgir.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
SIMPÓSIO 24
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO
INCLUSIVA
Álvaro Marchesi
341
O necessário porém difícil avanço
○
○
○
em direção às escolas inclusivas
○
○
○
○
Álvaro Marchesi
○
○
Universidade Complutense de Madri/Espanha
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
O objetivo de estabelecer escolas inclusivas tor- Acreditamos e proclamamos que:
○
nou-se uma das principais aspirações de todos os que • todas as crianças de ambos os gêneros têm
○
○
defendem a eqüidade na educação. As escolas para um direito fundamental à educação e devem
○
○
todos, sem exclusões, nas quais convivem e apren- ter a oportunidade de alcançar e manter um
○
capacidades e interesses, desde os mais capazes até • cada criança tem características, interesses
○
○
ideal que motiva muitas pessoas comprometidas com • os sistemas educacionais devem ser conce-
○
○
las inclusivas não é uma tarefa simples. Precisamos diferentes características e necessidades;
○
○
estar conscientes de que existem resistências, con- • as pessoas com necessidades educacionais
○
tradições e dilemas importantes que dificultam ou especiais devem ter acesso a escolas regu-
○
○
mesmo impedem o desenvolvimento de políticas lares, que deverão integrá-las numa peda-
○
○
eficazes em prol da inclusão. No entanto, o fator mais gogia centrada na criança e capaz de satis-
○
todos, sem exclusões, é adotar uma atitude positiva • as escolas regulares que baseiam sua didática
○
○
em relação a esse tipo de ensino, que se fundamen- nessa orientação integradora representam o
○
Mundial sobre Necessidades Educacionais Es- uma educação para todos; além disso, elas ofe-
○
○
peciais realizada em Salamanca, Espanha, no recem uma educação eficaz à maioria das cri-
○
Ministério da Educação e Ciência, 1995). Essa última análise, melhoram a relação custo-bene-
○
○
Um de seus compromissos foi formulado nos mas e contradições enfrentados pelas escolas inclusi-
○
O conceito das necessidades educacionais es- nais da educação especial. No entanto, como
○
○
peciais, da integração e da inclusão tem sua ori- também se defende em reuniões desse tipo, o
○
342
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas
○
○
educacional global e envolver não apenas os res-
○
ou o dilema de que apenas
○
ponsáveis pela educação especial, mas principal-
○
algumas ou todas as escolas
○
mente os responsáveis pela educação básica.
○
A reforma da educação especial, que inicial-
○
sejam inclusivas
○
mente apontava para a transformação das escolas
○
○
no sentido de integrar alunos com necessidades O objetivo desejável não se restringe a ga-
○
educacionais especiais, envolve um objetivo mais rantir a disponibilidade de um número cres- 343
○
○
radical. Sua meta é estabelecer escolas capazes de cente de escolas inclusivas. Essas escolas de-
○
○
educar todos os alunos com base em critérios de vem também ter uma qualidade reconhecida,
○
○
qualidade. Seriam escolas dispostas a incorporar o que pressupõe, em grande medida, que elas
○
todos os alunos, a despeito de sua cultura, origem sejam atraentes para a maioria dos pais. No
○
○
social e familiar ou capacidade, para participar, entanto, precisamos reconhecer o risco de que
○
○
conjuntamente, do processo de aprendizagem. as escolas inclusivas concentrem um número
○
○
Os esforços para estabelecer uma educação excessivo de problemas, porque, além de
○
inclusiva não advêm exclusivamente do campo da escolarizar alunos com necessidades educa-
○
○
educação especial. Os modelos de educação cionais especiais associadas a algum tipo de
○
○
acreditam na capacidade da escola de reduzir de- centual importante de alunos com dificulda-
○
dalidades inclusivas de educação. Em todas essas mente, a suas condições sociais ou culturais.
○
○
diversidade de culturas, de grupos sociais e de alu- des de uma escola, os pais dificilmente dese-
○
○
nos que convivem nas escolas. A resposta educa- jam escolarizar seus filhos nela.
○
○
cional a essa diversidade talvez constitua o mais A solução seria fazer com que todas as esco-
○
○
importante e difícil desafio atualmente enfrenta- las públicas e mantidas com recursos públicos
○
do por centros docentes. Essa situação impõe a fossem inclusivas e oferecessem condições se-
○
○
das para que todos os alunos, sem qualquer tipo buídos equilibradamente e não condicionariam
○
○
capacidades pessoais, sociais e intelectuais. Uma das estratégias que ajudam a promo-
○
○
Precisamos considerar que os principais ver uma maior valorização social das escolas
○
○
problemas enfrentados por muitas escolas, inclusivas é canalizar mais recursos para elas e
○
○
principalmente as de Ensino Médio, não estão dar-lhes preferência em todas as iniciativas ino-
○
apresentam alguma deficiência e, sim, às difi- ção, incorporação de uma maior oferta de lín-
○
○
culdades apresentadas por alunos com atrasos guas estrangeiras etc. Assim, a demanda dos
○
○
lidade para todos os alunos devem ser impulsi- Diagnóstico dos problemas
○
○
organização dos centros e os recursos disponí- mento ou de aprendizagem dos alunos envolve
○
○
veis. Quando a educação na diversidade torna- uma das controvérsias mais importantes no
○
possibilidade de fortalecer as escolas inclusivas campo da educação especial: a opção por situar
○
○
○
○
ou a rejeição dessa alternativa em decorrência comunidade dos que ouvem sem problemas.
○
○
do risco de classificar alunos. No segundo caso, O dilema do diagnóstico deve ser resolvido in-
○
○
enfatiza-se, principalmente, a detecção das ne- sistindo-se em que seu objetivo principal é ori-
○
cessidades educacionais do aluno e a resposta entar a resposta educacional mais adequada para
○
○
educacional mais adequada. cada aluno. Para se lograr esse objetivo, no en-
○
○
Na discussão desse dilema inicial, precisa- tanto, precisamos colher o maior número possí-
○
mos reconhecer que a informação biomédica vel de informações relevantes, que devem incluir
○
○
nos permite conhecer o desenvolvimento de todas as dimensões significativas do aluno: a ori-
○
○
um aluno em bases mais abrangentes. Além dis- gem dos problemas de aprendizagem, suas carac-
○
○
so, os avanços registrados na determinação do terísticas, os estilos de aprendizagem do aluno, a
○
genoma humano e as insuspeitas possibilida- incidência do contexto social e cultural, o papel
○
○
des que se abrem no campo da intervenção ge- da família e a influência da escolarização. O
○
○
nética nos obrigam a levar essa informação em enfoque mais correto é o contextual e interativo,
○
○
consideração. No entanto, existe também o ris- ○
no qual nenhuma dimensão pode ser contempla-
co, como assinalado acima, de que os avanços da isoladamente das demais. No entanto, preci-
○
○
genéticos levem a uma proliferação desneces- samos reconhecer também que, em alguns casos
○
○
e professores especializados para cada síndromes são extremamente úteis para a inter-
○
○
duz a um grupo específico e muito limitado de currículo comum para todos os alunos. Os alu-
○
○
alunos. Finalmente, não devemos nos esquecer nos com problemas graves de aprendizagem são
○
○
de que muitos problemas que podem ser abor- incorporados à escola regular para terem, com
○
○
podem também ser equacionados de uma ma- aprendizagem. A ênfase nos aspectos comuns
○
○
sociocultural. A situação dos portadores de de- enriquecedor e positivo das escolas inclusivas.
○
○
paradigmático. Embora esses alunos efetiva- tes de aprendizagem e modos pessoais de enca-
○
○
mente apresentem graves problemas auditivos, rar o processo educacional. A atenção às diferen-
○
○
que condicionam o desenvolvimento de sua ca- ças individuais constitui, também, um compo-
○
consideração que os portadores de deficiências aluno. Em alguns casos, o currículo comum pre-
○
○
auditivas têm uma linguagem própria, a dos si- cisa ser significativamente modificado para se
○
gem dos sinais e da cultura dos portadores de ser nada compatíveis, já que a primeira reforça
○
blemas que normalmente são enfrentados num bom livro sobre o tema das escolas inclu-
○
○
quando a criança portadora de deficiência au- sivas sintetiza com clareza esse dilema:
○
344
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas
É fácil ver como se pode acomodar o que é comum de propor adaptações curriculares específicas di-
○
○
– mediante a formulação de um currículo comum, ante de suas limitações, devem abrir caminho
○
○
a criação de escolas completamente inclusivas e a para propostas mais amplas e globais de trans-
○
disponibilização de experiências idênticas de
○
formação da escola, para se lograr uma maior
○
aprendizagem para todas as crianças. É fácil, tam- igualdade. O objetivo principal não é fazer com
○
○
bém, ver que os caminhos mais óbvios para lidar
que alunos diferentes tenham acesso ao currí-
○
com a diferença baseiam-se em estratégias opos-
○
culo estabelecido para a maioria dos alunos, mas
○
tas: a formulação de currículos alternativos, a cri- 345
reformular o currículo visando a garantir uma
○
ação de tipos diferentes de escolas para diferen-
○
maior igualdade entre todos eles e respeito por
○
tes alunos e a disponibilização de diferentes ex-
○
suas características próprias. A maior importân-
○
periências de aprendizagem para grupos ou indi-
○
víduos diferentes. No entanto, como se pode har- cia que se atribui às mudanças gerais da escola
○
estende-se à necessidade de se coordenarem
○
monizar precisamente esses enfoques tão diferen-
○
programas sociais e econômicos que reduzam as
○
tes de modo que os currículos sejam comuns e
○
múltiplos, as escolas sejam inclusivas e seletivas e desigualdades iniciais e ao reconhecimento da
○
○
as aulas proporcionem experiências de aprendi- participação dos pais no processo educacional
○
zagem que sejam iguais para todos e, ao mesmo de seus filhos.
○
○
tempo, diferentes para cada um? (Clark, Dyson, Seis fatores são particularmente importantes:
○
○
Esse dilema não pode ser facilmente resol- cultura e da organização das escolas; a colabora-
○
○
vido e também não nos podemos aprofundar ção de novos setores sociais; o desenvolvimento
○
○
nas alternativas que podem ser sugeridas para profissional dos professores; e a revisão da ins-
○
tos serem apresentados com um nível dife- competência em relação à solidariedade, a mai-
○
○
rem tutores dos demais são métodos de en- alunos com maiores dificuldades prejudica o
○
○
• Os professores de apoio trabalham conjun- vezes implícitas, que afetam o alcance e a pro-
○
inclusivas
○
○
A transformação do currículo
○
necessárias para se estabelecerem escolas inclu- Para favorecer a educação comum de todos
○
sivas coincidem em uma proposta: as iniciativas os alunos, é necessário que um currículo comum
○
○
mais individuais, orientadas no sentido de com- para todos eles seja adotado e que posteriormen-
○
○
pensar desigualdades iniciais entre os alunos ou te seja ajustado ao contexto social e cultural de
○
○
cada instituição educacional e às diferentes ne- mudança que potencializa a cooperação entre os
○
○
cessidades de seus alunos. Uma vez estabeleci- professores e que defende a flexibilidade organi-
○
○
do esse currículo comum, cabe à comunidade zacional e a identificação conjunta de soluções para
○
○
educacional e a sua equipe de professores refle- os problemas colocados pelos alunos. Essa flexibili-
○
tir novamente sobre o currículo, visando adaptá- dade organizacional possibilita a incorporação de
○
○
lo à população específica de estudantes que está novos colaboradores à tarefa educacional, amplian-
○
○
sendo escolarizada em cada instituição. do, assim, as possibilidades dos alunos.
○
Um currículo aberto à diversidade dos alunos
○
○
não é apenas um currículo que oferece a cada alu- A incorporação de novos colaboradores
○
○
no o que ele precisa de acordo com suas possibi-
○
As escolas, que estão enfrentando desafios ex-
○
lidades. É um currículo proposto para todos os
○
traordinários, como o de integrar alunos com ne-
alunos no sentido de que todos aprendam quem
○
cessidades educacionais associadas a deficiên-
○
são os outros, e deve incluir, em seu conjunto e
○
cias, não poderão alcançar os objetivos aqui pro-
○
em cada um de seus elementos, a sensibilidade
○
○
postos por conta própria, senão em casos excep-
necessária às diferenças existentes na escola. A ○
A modificação da cultura e da
○
organização da escola
○
O desenvolvimento profissional
○
dos docentes
○
ção, entre todos os membros da comunidade edu- das educacionais dos alunos. Precisamos reforçar
○
○
cacional, são os elementos que determinam o tipo essa posição e indicar claramente que não se pode
○
○
de projeto que a instituição irá elaborar e a orien- avançar no sentido de estabelecer escolas inclu-
○
tação que será seguida na aplicação do currículo. sivas se todos os professores, e não apenas aque-
○
○
A reforma da educação e o avanço no sentido les especializados na educação especial, não al-
○
○
supõem, ao mesmo tempo, uma transformação da para ensinar a todos os alunos. Além disso, a for-
○
cultura das escolas, uma mudança no sentido de mação tem estreita relação com a atitude assu-
○
○
uma cultura educacional que valoriza a igualdade mida em relação à diversidade dos alunos. Sen-
○
○
entre todos os alunos, o respeito pelas diferenças, a tindo-se pouco competente para facilitar a apren-
○
○
participação dos pais e a incorporação ativa dos alu- dizagem dos alunos com necessidades educacio-
○
nos ao processo de aprendizagem. Trata-se de uma nais especiais, o professor tenderá a desenvolver
○
○
346
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas
○
• A consideração de que seu desenvolvimen-
○
uma menor interação e menos atenção para com to pessoal e social é tão importante quanto
○
○
eles. O aluno, por sua vez, tenderá a enfrentar mais seu desenvolvimento cognitivo.
○
○
dificuldades para levar a cabo as tarefas propos- • A concepção de situações de aprendizagem
○
tas, reforçando as expectativas negativas do pro-
○
significativas, que o aluno possa posterior-
○
fessor. Essas considerações nos levam a afirmar mente aplicar em outros contextos.
○
○
que a forma mais segura de se melhorarem as ati- • A utilização de materiais audiovisuais e de
○
tudes e expectativas dos professores é desenvol- 347
○
informática, no sentido de ampliar o nível
○
vendo seu conhecimento da diversidade dos alu-
○
de informação dos alunos e contribuir para
○
nos e sua capacidade de proporcionar-lhes um despertar seu interesse.
○
○
ensino adequado.
• O planejamento do ensino de modo que a
○
Essa proposta, no entanto, deve considerar
○
aprendizagem ocorra por meio da colabo-
○
todo o conjunto de condições que influenciam o
○
ração entre os colegas.
○
trabalho do professor. Sua remuneração econô-
○
• Coordenação dos objetivos didáticos, dos
○
mica, suas condições de trabalho, sua valoriza-
métodos pedagógicos e dos critérios de ava-
○
ção social e suas expectativas profissionais cons-
○
liação com a participação de todos os pro-
○
tituem, juntamente com a formação permanen-
○
○
fessores.
te, fatores que facilitam ou dificultam sua moti-
○
vação e dedicação.
○
tar o currículo e a preparação dos professores colas inclusivas, a probabilidade de que o nú-
○
○
devem, em última análise, contribuir no senti- mero de escolas comprometidas com a inclu-
○
○
do de que todos os alunos participem do pro- são aumente e se consolide é maior. Em situa-
○
da mesma faixa etária. O trabalho do professor sores também têm uma margem de ação, em-
○
○
na sala de aula torna-se, assim, um fator fun- bora mais reduzida, que pode influenciar as au-
○
○
damental. Isso ocorre não apenas em decorrên- toridades educacionais. O esforço conjunto de
○
rículo acessível a todos os alunos, mas também garantia para criar condições favoráveis para
○
○
porque sua experiência posteriormente influ- uma educação para todos os alunos.
○
○
Bibliografia
○
dos alunos.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Educação inclusiva
○
○
○
○
○
Carlos Roberto Jamil Cury
○
○
PUC/MG – CNE
○
○
○
○
Eugênia desataviou-se nesse dia por minha cau- instinto, de modo que a necessidade consiste nes-
○
○
sa... Nem as bichas de ouro, que trazia na véspera, te caso em não poder fazer ou suportar de outra
○
lhe pendiam agora das orelhas, duas orelhas
○
forma” (Aristóteles, Metafísica, V, 5, 1014 b 35).
○
finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um
De um lado, é preciso fazer a defesa da igual-
○
simples vestido branco, de cassa, sem enfeites, ten-
○
dade como princípio de cidadania. Mas isso não
○
do ao colo, em vez de broche, um botão de
○
é fácil, já que a heterogeneidade é visível, é sensí-
○
madrepérola... Era isso no corpo; não era outra cousa
○
vel e imediatamente perceptível.
no espírito. Idéias claras, maneiras chãs, certa graça
○
O pensamento “único” ou empirista não apre-
○
natural... Saímos à varanda, dali à chácara, e foi en- ○
um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar- palpável. O empírico é necessário e é até “porta”
○
○
lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha res- de entrada para uma realidade mais ampla. Essa
○
Mandei-me a todos os diabos; chamei desastra- seres humanos, fundamento da dignidade da pes-
○
de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. mento e respeito se dão as entradas para todas as
○
○
Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas formas de racismo e correlatos, que se nutrem os
○
manifestou-se nestes últimos anos uma nova linha seu lugar, o micro, a subjetividade, o privado.
○
ela consiste na passagem gradual, porém cada vez la fonte igualitária, introduzem sérios problemas
○
○
mais acentuada, para ulterior determinação dos su- para a conceituação e mesmo para as políticas
○
reu com relação ao gênero, seja às várias fases da As causas diferencialistas causam problemas
○
○
vida, seja à diferença entre estado normal e estados sérios quando elas não evidenciam como sua base
○
necessário quando uma força qualquer nos obri- • cultura do fragmento e essencialização da di-
○
○
348
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas
○
○
igualdade; O artigo 5º é uma longa e saudável lista de
○
○
• no vazio do Estado do Bem-Estar Social, no incisos na defesa dos direitos e deveres indivi-
○
○
vácuo do genérico, na crise da esquerda, na duais e coletivos. Para as finalidades deste texto,
○
não-realização do projeto socialista de uma cumpre destacar entre os 77 incisos que o com-
○
○
maior igualdade material duradoura, além da põem os seguintes:
○
○
igualdade formal e jurídica: abre-se mão da
○
igualdade em favor da diferença. 349
○
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
○
Os portadores de necessidade especial carre- qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
○
○
gam consigo alguma limitação, no plano físico ou e aos estrangeiros residentes no País a
○
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
○
psíquico, temporária ou permanente, parcial ou
○
igualdade, à segurança e à propriedade [...].
○
total, que pode afetar o modo de aprendizagem e
○
I – homens e mulheres são iguais em direitos e
que, por meio de processo pedagógico, pode ser
○
obrigações, nos termos desta Constituição;
○
reduzido ou eliminado.
○
[...]
○
A educação inclusiva responde por uma mo-
○
III – ninguém será submetido a tortura nem a
○
dalidade de escolarização em que os estudantes tratamento desumano ou degradante;
○
e os professores freqüentam os mesmos estabe- ○
○
[...]
lecimentos sem nenhuma discriminação de sexo, XLI – a lei punirá qualquer discriminação
○
○
Trata-se de uma integração adaptada às ne- XLII – a prática do racismo constitui crime
○
cessidades específicas do aluno, que lhe permita inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
○
○
participar das atividades da maioria dos alunos reclusão, nos termos da lei [...]3
○
○
de sua idade.
○
A Constituição formaliza em si, como Lei De acordo com esse artigo, as normas nele
○
○
Maior, algo que os sujeitos sociais já defendiam definidas têm aplicação imediata.4 Esses direitos,
○
○
e em certo sentido haviam conquistado na prá- segundo o artigo 60 da Constituição, não podem
○
1988 vai incorporar em seu Preâmbulo, entre Constituição prevê entre as funções do Ministé-
○
○
outros princípios, o de assegurar no Brasil uma rio Público a defesa da ordem jurídica, do regime
○
○
reito” a “dignidade da pessoa humana” e o nos estados e municípios que não assegurarem a
○
○
“pluralismo político”. O artigo 3º afirma ser “obje- observância dos “direitos da pessoa humana”. De
○
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, garantias fundamentais assinados pelo Brasil em
○
○
minação”.2 O artigo 4º estabelece como princípio Ao lado da defesa contra os atentados à digni-
○
○
○
○
○
○
1
O princípio da fraternidade simboliza a igualdade universal dos “irmãos” (frater) e o do pluralismo (plus = mais que um) já sinaliza a diferença.
○
Pode-se ler aqui uma relação dialética entre “o todo e as partes” no interior de uma sociedade democrática.
○
○
2
Ver a esse respeito o Programa Nacional dos Direitos Humanos no Decreto nº 1.904, de 1996.
○
○
3
As Leis nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, e nº 9.459, de 13 de maio de 1997, regulam os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de
○
cor. Já a Lei nº 8.081, de 21 de setembro de 1990, estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceitos
○
de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza. O
○
○
Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991, reforça a condenação à tortura e o Decreto Legislativo nº 26, de 22 de junho de 1994, visa à
○
4
Pelo inciso LXXI, concede-se o mandato de injunção quando a efetivação de um desses direitos se torne inviável por falta de norma regula-
○
dora. Isso coloca na mão dos sujeitos um instrumento jurídico importante na defesa de seus direitos individuais e coletivos.
○
dade da pessoa humana, há outros direitos especi-
○
socialista por excelência aquela que, liberando,
○
ficados no capítulo dos “Direitos sociais” e listados iguala e iguala quando elimina uma discriminação;
○
○
no artigo 7º. O inciso XX desse artigo reconhece di- uma liberdade que não somente é compatível com
○
○
reitos específicos das mulheres no mercado de tra- a igualdade, mas que é condição dela” (1987: 23).
○
balho, o inciso XXX proíbe diferença de salários por Todas as formas impeditivas da igualdade, to-
○
○
“motivos de sexo, idade, cor ou estado civil” e o madas pelo ângulo da uniformidade, ignoram o
○
○
inciso XXXI proíbe a discriminação de salário e de valor das diferenças ou as condenam aos estreitos
○
critérios de admissão para alguém que seja “porta-
○
espaços do privado, terminam em regimes auto-
○
dor de deficiência”. Este último inciso reserva ritários, ditatoriais ou mesmo totalitários. Porém
○
○
“percentual dos cargos e dos empregos públicos” a excessiva consideração das diferenças pode re-
○
○
para portadores de deficiência. O trabalho de me- dundar no oposto de sua valorização, isto é, como
○
nores é proibido antes dos 16 anos, a fim de que o não-enriquecimento do ser social do homem.
○
○
possam cumprir a escolaridade obrigatória.5 Algo que se pode verificar em sociedades toma-
○
○
A Lei nº 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases das por fundamentalismos ou crispações identitá-
○
○
da Educação Nacional, também reafirma o prin- ○
rias de qualquer espécie nas quais, como diz
cípio do direito à diferença complementar e recí- Rouanet (1994), domina a ontologização da dife-
○
○
proco ao conjunto dos direitos comuns inerentes rença. É o mesmo autor que defende o que cha-
○
○
à igualdade. Assim, seu artigo 3º reafirma vários ma “universalismo concreto”: “A utopia iluminista
○
○
princípios constitucionais, entre os quais o é a de uma ética fundada na razão, voltada para a
○
pluralismo. A lei introduz a referência à “tolerân- felicidade, capaz de julgar e criticar o existente, e
○
○
cia” como princípio da educação, tanto quanto “a tendo como telos uma comunidade argumen-
○
○
gestão democrática” como princípio inerente ao tativa sem fronteiras, em que a igualdade não sig-
○
dade de atendimento diferenciado “aos edu- não leve à dissolução do particular” (1994: 162).
○
○
candos com necessidades especiais” e adequação A democracia supõe tanto a igualdade para o
○
○
às condições peculiares de jovens e adultos que que é igual ou que deve ser igual, quanto a con-
○
Essa tomada axiológica se justifica porque por os seres humanos, desde que tal diferença se ex-
○
○
meio dela se reconhecem a complexidade do real presse na matriz igualitária do ser humano.6 Re-
○
várias culturas presentes no país não significa um a síntese aberta entre o ser e o modo de ser. É
○
○
amálgama entre elas ou o esquecimento no modo este o entendimento que se pode ter do texto
○
○
minatórias e a afirmação de direitos foi posta em ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.
○
○
evidência por Bobbio (1987). Para ele, a valorização Rio de Janeiro: Aguillar, 1992. Obra Completa, v. I.
○
que ela serve para pôr abaixo uma discriminação . A era dos direitos. 1992.
○
É nesse sentido que ele aponta para uma dialética NOVAES, Adauto. (Org.). Ética. São Paulo: Cia. das Le-
○
○
5
O artigo abre exceção para aprendizes que tenham completado 14 anos.
○
○
6
O racismo e todos os seus correlatos nascem do não-reconhecimento da igualdade e da dignidade de todas as pessoas humanas.
○
350
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas
A formação de professores
○
○
○
para a Educação Especial na
○
○
○
Universidade Federal de
○
○
○
Santa Maria/RS, na perspectiva
○
○
○
da educação inclusiva 351
○
○
○
○
Soraia Napoleão Freitas
○
○
Universidade Federal de Santa Maria/RS
○
○
○
○
A Universidade Federal de Santa Maria Maria, em março de 1962. Esse curso, sem dúvi-
○
○
(UFSM) vem formando recursos humanos para a da, criou uma nova perspectiva para a Educação
○
○
Educação Especial desde 1962, na gestão de seu Especial, na medida em que a Universidade, pela
○
fundador, o professor José Mariano da Rocha Fi- seqüência de cursos que continuou a oferecer,
○
○
lho. A origem da Educação Especial foi no Insti- ○
○
constitui uma referência para a cidade, para o es-
tuto da Fala, que tinha como diretor o professor tado e mesmo para o país.
○
○
Reinaldo Cóser. No Instituto da Fala desenvolvi- Em 1974 foi criada a habilitação em Deficien-
○
nas áreas da audição, fala e linguagem. Em 1976, após aprovação do Conselho de Ensino,
○
○
com surdez, sem possibilidade de recuperação clí- a Formação de Professores de Excepcionais Defi-
○
○
nica, o professor e médico otorrinolaringologista cientes Mentais. No ano de 1977, o curso de For-
○
○
Reinaldo Fernando Cóser percebeu que a perspec- mação de Professores para Deficientes Mentais
○
○
tiva de integrar a criança deficiente auditiva na es- passou a constituir um curso em separado, como
○
cola exigia a habilitação de professores. Iniciou Licenciatura Curta. Nos anos seguintes, o curso
○
○
então, com muito rigor e persistência, a formação de Educação Especial passou por nova reestrutu-
○
○
O primeiro episódio dessa história de quaren- na, sendo reconhecido como tal pelo Parecer do
○
ta anos foi possibilitar a duas pessoas a realiza- Conselho Federal de Educação (CFE) nº 1.308/80,
○
○
ção de um curso no Instituto de Educação de Sur- e homologado esse reconhecimento pela Porta-
○
○
O curso durou três anos e uma das professoras ao CFE proposta de reestruturação dos cursos de
○
○
não retornou para Santa Maria, fixando-se no Rio Pedagogia e de Formação de Professores em Edu-
○
○
de Janeiro. Esse processo de formação de recur- cação Especial: propunha-se um curso que reunis-
○
○
via necessidade urgente de integrar a criança sur- municação, do curso de Pedagogia, e o curso de
○
○
custo, a alternativa encontrada para formar pro- Houve aprovação de tal solicitação pelo Parecer do
○
○
fessores foi a criação de cursos de extensão uni- CFE nº 65/82. A partir do ano de 1984, o ingresso
○
versitária. Um acordo com o Departamento de dos alunos passou a ser no curso de Educação Es-
○
○
Educação Especial da Secretaria Estadual de Edu- pecial – Licenciatura Plena, nas habilitações Defi-
○
○
cação possibilitou que o primeiro curso para a cientes Mentais (DM) ou Deficientes da Audioco-
○
○
formação de professores de deficientes auditivos municação (DA), sendo oferecidas 40 vagas no con-
○
fosse realizado na Universidade Federal de Santa curso vestibular, assim distribuídas: 20 vagas para
○
○
a habilitação em Audiocomunicação e 20 vagas ciedade. O curso oferece dez vagas, das quais seis para
○
○
para a habilitação em Deficientes Mentais. Deficientes Mentais e quatro para Deficientes da
○
○
O curso de Educação Especial, com as duas Audiocomunicação, com ingresso anual. Ainda em
○
○
habilitações – DA e DM –, tem para cada habili- nível de pós-graduação, o Programa de Pós-Gradua-
○
tação os seguintes objetivos específicos: ção em Educação (PPGE) oferece curso de Mestrado,
○
○
• Formar profissional, no plano biopsicossocial, nas linhas de pesquisa de Formação de Professores e
○
○
capaz de atuar na Educação Especial de defi- Práticas Educativas nas Instituições, um núcleo
○
cientes da audiocomunicação ou de deficien- temático denominado Educação de Pessoas em Cir-
○
○
tes mentais. cunstâncias Especiais, cujos estudos são orientados
○
○
• Desenvolver atividades cognitivas, psicomotoras para a produção e a aplicação de conhecimentos que
○
○
e afetivas para o desempenho das atividades pro- provocam a inserção social de pessoas impossibili-
○
tadas da realização de interações comuns para a cons-
○
fissionais inerentes ao seu campo de atuação,
○
segundo diretrizes do sistema de ensino. trução de conhecimentos.
○
○
As décadas de 1970 a 1990, no Brasil, foram o
• Aplicar metodologia científica na realização
○
○
• Participar, de forma integrada, dos programas social, onde nascem e se desenvolvem; não poden-
○
○
A formação de recursos humanos para a Edu- quais influi, ocasionando transformações, essas
○
○
pela prestação de serviços de extensão à comuni- nal com condições internas e externas explicam a
○
Assistência (LBA). O SACDA servia de local de es- Em síntese, a Educação Especial na Univer-
○
tágio aos alunos dos cursos de Educação Especial, sidade Federal de Santa Maria se efetiva em mo-
○
○
atividades do SACDA foram reformuladas e am- recursos humanos como objeto de envolvimen-
○
○
pliadas e o serviço recebeu nova denomina- to curricular regular, separando-se, para efeito
○
Educação Especial implantou no CACEE uma 1976) – 3.135 horas (2.280 horas no Núcleo
○
Foi, então, criado o Núcleo de Ensino, Pesquisa e Mentais – Licenciatura Curta (5 semestres)
○
tar a compreensão das potencialidades, das limita- Plena – Habilitação em Deficientes Mentais
○
des especiais, propondo ações interativas com a so- Momento 4: Curso de Educação Especial – Li-
○
352
SIMPÓSIO 24
A formação de professores na perspectiva da educação inclusiva
e novas perspectivas
cenciatura Plena – Habilitação em Deficientes tos relacionados entre si, que são: desenvolvimen-
○
○
Mentais – Habilitação em Deficientes da to, aprendizagem e ensino. Deste ponto de vista, o
○
○
Audiocomunicação (1984 à atualidade) – 8 se- currículo entendido como Projeto Curricular pode
○
mestres, com carga horária distribuída entre
○
efetivamente contribuir para a formação e o aper-
○
disciplinas obrigatórias (3.525 horas) e disci- feiçoamento dos professores. Projeto Curricular é,
○
plinas optativas (90 horas), totalizando 3.615
○
sobretudo, um projeto de ação educativa que enri-
○
horas (carga horária total do curso na Habili-
○
quece o processo de desenvolvimento de todos os
○
tação Deficientes Mentais). 353
alunos em todos os níveis de ensino, pois o traba-
○
○
Procuramos verificar como se deu a forma- lho do professor, se por um lado tem o aspecto inte-
○
○
ção docente, estabelecendo agrupamentos de dis- lectual, por outro lado não se limita a ele. O traba-
○
ciplinas e tendo como preocupação captar: a con-
○
lho intelectual do professor exige deste uma atitu-
○
cepção de deficiência possivelmente envolvida; de prática de transformação estrutural da organi-
○
○
se houve preocupação em proporcionar visão ge- zação escolar, que tem uma íntima relação com a
○
○
ral do ser humano, inserido num contexto social sociedade da qual ele participa.
○
por meio de disciplinas filosóficas, históricas e
○
Sob esse ponto de vista, entendemos que o
○
sociológicas; como se desenvolveu a preocupa- trabalho do professor não se limita a uma ativi-
○
○
ção com a especificidade do ser humano, sujeito dade livre e descompromissada, mas, sim, é um
○
Os momentos analisados são reveladores da lação. Portanto, a Educação Especial, como uma
○
○
concepção de aluno.
○
percebemos, pelo número de horas e pelo con- Acreditamos que a formação do professor
○
○
teúdo das ementas de cada disciplina, qual foi para trabalhar com alunos portadores de defici-
○
também constatamos qual o enfoque prio- consiste em não considerar apenas os “meus in-
○
○
rizado, ou seja, o deficiente mental como um teresses” ou os “teus interesses”, mas os interes-
○
○
sujeito incompleto e a educação como uma ses de todo e qualquer aluno. A verdadeira igual-
○
Diante dessas evidências, reforça-se nossa inexistência de privilégios, em que uma desvan-
○
○
constatação de que o aluno da Educação Espe- tagem inicial possa ser compensada por um tra-
○
○
cial é visto ainda como defeituoso, doente e que tamento diferencial. Com essa perspectiva edu-
○
nóstico e pelo emprego de técnicas. A nosso ver, cio investigativo, que compreende seu compro-
○
○
o alunado da Educação Especial permanece, ain- misso com pesquisas que possam contribuir para
○
○
priorizando ora uma, ora outra, em função dos As políticas públicas e, portanto, a educa-
○
○
condicionantes sociopolíticos, das concepções ção, deverão levar em conta fatores que visem
○
A análise dos grupos de disciplinas nos mo- mente feliz, isto é, possibilitar-lhe o gozo de
○
○
mentos considerados revela que para algumas seus direitos e deveres de cidadão.
○
○
Para a implementação de uma ação pedagógi- patologia individual, quer como dominação social,
○
○
ca eficiente e de qualidade, a tendência atual da Edu- mas como resultado dos dois pólos, isto é, da situ-
○
○
cação Especial destaca como essenciais três elemen- ação de cada um (limites e potencialidades), den-
○
tro de uma sociedade que solicita modos de ser, mentar, na formação de professores e especialistas
○
○
aspirações, modelos necessários a uma certa or- no planejamento, na gestão e na supervisão da edu-
○
○
ganização social. cação, em nível de pós-graduação.
○
○
O nosso desafio em educação é, respeitando Tendo a Universidade Federal de Santa Maria sido
○
as individualidades do aluno, com suas potencia- pioneira na interiorização do atendimento por meio
○
○
lidades e limitações, possibilitar-lhe os conheci- das atividades de extensão e ensino e tendo persistido
○
○
mentos necessários para viver integralmente na- nesse trabalho ao longo de quarenta anos, julgamo-
○
quela sociedade, modificando-a nas “brechas” pos- nos habilitados para realizar a formação de recursos
○
○
síveis de melhoria das condições de vida. Não é humanos para a Educação Especial consoante as di-
○
○
reproduzir indivíduos para o contexto, adaptando- retrizes políticas formuladas para a área. Também – e
○
○
os, sufocando-os, mas permitir-lhes o desenvolvi- avançando as atividades de extensão e ensino –, a pro-
○
mento pleno para viver e ser mais, ser além de có- dução e a divulgação de conhecimentos têm sido per-
○
○
pias, e isto vale para todos os educandos. seguidas por meio de projetos e pesquisas que envol-
○
○
Daí a importância de não ignorar o contexto, vem discentes e docentes da instituição.
○
○
com suas limitações e avanços. Em cada momen- ○
Neste momento, parece-nos importante que a
to histórico, em função das condições econômi- atual formulação curricular que o curso de Educa-
○
○
co-sociais e político-culturais, “a sociedade pro- ção Especial apresenta, com pequenas adequa-
○
○
duz a escola de que necessita e a transforma den- ções, possa permanecer como reserva institucional
○
○
tro das possibilidades concretas e dos limites im- para referenciar o currículo de formação de pro-
○
postos pelo avanço real da totalidade dentro da fessores de forma que atenda às demandas pro-
○
○
qual ela se organiza no tempo” (Xavier, 1997: 229). postas na política educacional do país.
○
○
Bibliografia
○
reformulações visam à sua adequação às Dire- BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1966. Diretrizes e
○
Nacional de Educação.
○
cidade de oferecer atendimento aos educandos BREZINSKI, Íria. Pedagogia, pedagogos e formação de profes-
○
dimentos a alunos com necessidades especiais BUENO, J. Geraldo Silveira. A produção social da identidade do
○
Cortez, 1997.
○
rer nos âmbitos da: formação inicial de todos os pro- Janeiro: WVA, 1997.
○
○
fessores; formação de professores de Educação Es- COELHO, I. M. A formação do educador: dever do Estado, tarefa
○
pecial; e formação de professor dos professores. Na da universidade. Formação do educador. São Paulo: Unesp,
○
○
1996. v. 1.
formação inicial em nível médio ou superior, o pro-
○
e implementar ações e apoios pedagógicos em clas- em Educação). UFSM/Unicamp, Santa Maria, 1998.
○
○
ses comuns da Educação Básica. Para o atendimen- MARQUEZAN, Reinoldo; TOALDO, Marilene Machado. Formação
○
Jean Hebrard
Miriam Schlickmann
355
Da formação de professores
○
○
○
à formação das escolas
○
○
○
○
○
João Barroso
○
○
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação/Universidade de Lisboa/Portugal
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
As transformações em curso na formação de necessário que se estabeleçam novas relações de
○
○
professores são determinadas, fundamentalmente, força que lhe sejam favoráveis, mas também que os
○
○
por três ordens de razões: mudança nos processos atores desenvolvam novas capacidades cognitivas e
○
de trabalho de alunos e professores; mudança nas relacionais, e que se estabeleçam novas formas de
○
○
organizações e modos de gestão; mudança nos mo- governo. Por isso, como insistem Crozier e Friedberg
○
No primeiro caso, a mudança do público escolar sultar de uma ação convergente sobre os homens e
○
○
dos alunos e a perda da eficácia dos mecanismos de No terceiro caso, a formação contínua de adul-
○
○
seleção tornaram caducas uma organização pedagó- tos valoriza cada vez mais as modalidades que favo-
○
○
gica e uma prática de ensino que se baseava numa recem a capacidade de os atores, nas organizações,
○
cultura de homogeneidade, cujo objetivo era “ensi- “produzirem” o seu próprio conhecimento, quer seja
○
○
nar a muitos como se fossem um só” (Barroso, 1995a). pelos “métodos autobiográficos” e outras formas de
○
○
Hoje em dia, para atender à heterogeneidade dos alu- “formação experiencial”, quer pela “aprendizagem
○
tiça é preciso reinventar a organização escolar e alte- Assiste-se, assim, a um processo sincrônico e recí-
○
A escola torna-se um lugar de vida, uma “cidade polí- “destaylorização” das formações. Como notam Nelly
○
○
tica” (Ballion, 1998). Os alunos deixam de ser vistos Bousquet e Colette Grandgérard (1990: 79), “nas or-
○
saberes necessários ao seu crescimento e desenvol- mo um processo de formação, pondo fim a uma con-
○
vimento. Os professores tornam-se, cada vez mais, cepção demasiado estreita e tradicionalmente es-
○
○
gestores de situações educativas. O professor já não é colar de formação, que se limitaria às situações for-
○
○
o que transmite conhecimentos aos alunos, mas o que mais de aquisição de conhecimentos”.
○
cria as condições necessárias para que estes apren- É no contexto dessas três mudanças que se si-
○
○
dam. Ele é, portanto, um organizador e um tua a minha intervenção, subordinada ao tema “Da
○
○
colegas ou outros técnicos de educação e em Com ela pretendo pôr em evidência o isomorfismo
○
○
interação com outras instituições educativas. que deve existir entre “práticas de ensino”, “mode-
○
de reconhecer as organizações como construções Numa primeira parte, irei analisar o paralelismo
○
○
sociais e os seus membros como atores estratégicos existente entre a evolução dos modos de organiza-
○
lho deixa de ser vista unicamente como um lugar de Numa segunda parte, aplicando às escolas o
○
○
execução (Moisan, 1993) e passa a ser vista como conceito de “organizações aprendentes”, irei subli-
○
um “sistema concreto de ação” (Crozier e Friedberg, nhar a necessidade de incluir as práticas de forma-
○
○
1977; Friedberg, 1995). Nesse sentido, para que a ção na própria organização do trabalho dos profes-
○
○
mudança possa ocorrer numa organização não só é sores e nas funções da gestão escolar.
○
○
356
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
○
○
selham: “pensar ao mesmo tempo o indivíduo
○
desenvolvimento
○
e a organização”.
○
organizacional
○
Essa aproximação entre “formação” e “orga-
○
nização” é favorecida pelos próprios efeitos in-
○
O processo de institucionalização de um sis-
○
diretos que, entretanto, a proliferação de cur-
○
tema de formação contínua, que se desenvol-
○
sos (mesmo quando decorriam sem qualquer
○
veu, principalmente a partir da década de 1960, 357
relação imediata com a situação de trabalho)
○
na maior parte dos países industrializados de-
○
passa a exercer nos processos de mudança
○
correu numa relativa marginalidade em relação
○
organizacional.
○
aos problemas das organizações e das situações
○
Esses efeitos da formação sobre as estrutu-
○
de trabalho.
ras da organização foram estudados por
○
Ao mesmo tempo, a excessiva formalização
○
Sainsaulieu e outros sociólogos cujos trabalhos
○
da “educação permanente” e a sua transforma-
○
sobre a formação profissional mostram que “as
○
ção em “mito regenerador” de todos os proble-
○
ações de formação contínua são portadoras de
○
mas individuais, profissionais e sociais, criaram
processos transformadores e de mudanças
○
uma “sociedade pedagógica” que, como dizia
○
organizacionais suficientes para que se possam
○
Beillerot (1982) no início da década de 1980, ○
Novos paradigmas
○
tão, fizeram com que emergissem novas práti- nais da formação contínua de adultos só são
○
○
cio da década de 1980: “já não era a procura in- se faziam sentir as transformações decorrentes
○
○
dividual de formação que constituía o seu ‘ob- de novas práticas de gestão, abertas à partici-
○
dos postos de trabalho, da sua qualificação e das Assim, é a inexistência dessas alterações dos
○
○
suas evoluções, sob o efeito conjunto das mu- princípios e práticas de gestão que explica a “re-
○
A função de mediação que a formação exer- mantém no essencial uma estrutura e organi-
○
○
maior integração, visando permitir aquilo que formação como instrumento de gestão e de de-
○
○
senvolvimento organizacional. 2. O princípio segundo o qual a mudança nas
○
○
Os aspectos das novas teorias das organiza- organizações é um fenômeno político que
○
○
ções e da gestão e da sua aplicação prática que não pode ser reduzido a simples decisões
○
hierárquicas e que depende da capacidade
○
mais favorecem a integração da formação nas
○
situações de trabalho estão relacionados com a de aprendizagem, pelos atores, de novos
○
modos de relação e de novas formas de ação
○
importância que é dada aos “atores” nas orga-
○
coletiva. Para que a mudança possa ocorrer
○
nizações e com o abandono de uma visão
○
numa organização, não só é necessário que
funcionalista delas.
○
se estabeleçam novas relações de força que
○
As organizações passam a ser consideradas
○
lhe sejam favoráveis, mas também que os
○
como construções sociais e não como uma en-
○
atores desenvolvam novas capacidades
○
tidade natural (“reificada”) que existe para lá da cognitivas e relacionais, e que se estabele-
○
ação humana. O desenvolvimento da sociolo-
○
çam novas formas de governo. Por isso,
○
gia das organizações veio pôr em causa alguns como insistem Crozier e Friedberg (1977),
○
○
dos “mitos” que durante o período anterior ser- qualquer processo de mudança deverá re-
○
○
viram de modelos de referência às práticas de ○
sultar de uma ação convergente sobre os
gestão e à organização do trabalho. homens e as estruturas.
○
○
nossa maneira de encarar as organizações são organizacional tem também repercussões evi-
○
○
qüência, dos conjuntos que eles formam (as or- danças que estão a ocorrer nesse domínio e as
○
Dos vários princípios que decorrem dessa mecanismos de controle, o nível das qualifica-
○
As organizações também
○
numa organização são atores capazes de Um dos elementos essenciais dessas mu-
○
○
cálculo e de escolha, isto é, com um racio- danças consiste na importância que é dada ao
○
cínio estratégico. Este princípio tem reper- “saber” nas organizações. Como afirma hoje
○
○
cussões evidentes na atividade de trabalho, Donald Schon (que já em 1978 escrevera, com
○
○
que deixa de ser vista unicamente como um Argyris, uma obra significativamente chamada
○
358
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
tirar lições dos seus êxitos e dos seus erros do aprendizagem em equipe, autonomia, novos
○
○
passado, empreender certas experiências e em- estilos de liderança”.
○
○
penhar-se numa inovação permanente. No É nessa perspectiva que se radicam, por
○
mundo acadêmico, como no mundo do traba-
○
exemplo, várias formas de organização do tra-
○
lho, a aprendizagem organizacional, ou (o que balho que começam a ser divulgadas como “as
○
○
não é bem a mesma coisa) a “organização apta à
equipes autogeridas”, “os círculos de qualida-
○
aprendizagem”, tornou-se uma idéia corrente
○
de” etc.
○
(Schon, 1990: 220). 359
Outro exemplo da importância que o “sa-
○
○
ber” tem na concepção de novas formas
○
Para isso, como diz o mesmo autor (recor-
○
organizacionais nas empresas e na sua gestão é
○
dando os contributos que a perspectiva
○
dado por Handy (1989) e pelo seu modelo de
“sociotécnica” trouxe a este conceito de “orga-
○
“organização do triplo I”.
○
nização apta à aprendizagem”), é preciso que
○
Segundo esse autor, a nova fórmula do su-
○
se desenvolvam processos de participação co-
○
cesso e da eficácia das companhias do futuro
○
letiva pelos quais grupos de indivíduos, em es-
○
reside na capacidade de os trabalhadores usa-
pecial assalariados, desenvolvam novos esque-
○
rem a sua Inteligência para analisar a Informa-
○
mas de trabalho, novas perspectivas de carrei-
○
ção adequada, com o fim de gerar Idéias para
ra, capazes de melhor articular a sua vida fami- ○
○
novas organizações.
○
A “destaylorização”
○
das formações
○
mas; experimentação com novos enfoques; Como se vê, a evolução recente nas teorias
○
tória passada; aprender com as melhores expe- práticas de gestão, constituem um contexto fa-
○
○
riências e práticas dos outros; transferir rápida vorável à busca de novos modelos e práticas de
○
○
organização.
○
Mas, como assinala Bolívar (2000), “as orga- tegração entre o campo da formação e o campo
○
○
nizações de aprendizagem não surgem do nada. da organização, o que leva a uma articulação (ou
○
○
São fruto de um conjunto de atitudes, compro- mesmo simbiose) das situações de formação
○
cultivados. Por isso é preciso construir um am- Uma das perspectivas que mais tem favore-
○
○
biente que favoreça as aprendizagens em con- cido essa integração é a que encara a formação
○
○
junto: tempo para reflexão, visão partilhada, como um investimento produtivo, integrada na
○
○
decisão política e na estratégia geral da empre- autodirigida” e outras formas de “autoformação”.
○
○
sa (Jobert, 1987). Assiste-se, assim, a um processo sincrônico
○
○
Como assinala Le Boterf (1988), os planos e recíproco de “destaylorização” das organiza-
○
○
de formação tendem a articular-se estreitamen- ções e de “destaylorização” das formações.
○
te com o plano estratégico da empresa e orien- Como notam Nelly Bousquet e Colette
○
○
tam-se para a resolução de problemas e reali- Grandgérard (1990: 79):
○
○
zação de projetos.
○
Nesse sentido torna-se necessário identifi-
○
Nas organizações do trabalho transformadas, o
○
car nas empresas as “situações-problemas” que processo de mudança, de modernização, torna-
○
○
são suscetíveis de tratamento educativo. se em si mesmo um processo de formação, pon-
○
do fim a uma concepção demasiado estreita e
○
Viallet (1987) identifica as seguintes: proble-
○
mas ligados à gestão de topo; problemas pró- tradicionalmente escolar de formação, que se
○
○
limitaria às situações formais de aquisição de
prios das unidades de trabalho; o estado das
○
conhecimentos. A formação é entendida como
○
equipes; o profissionalismo do pessoal; o ser-
○
○
uma dinâmica global que faz apelo a conteúdos
viço prestado ao consumidor; o futuro profis- ○
mação centrada na resolução de problemas não gados à evolução das tarefas, a uma maior dele-
○
○
é o de propor um sistema novo que venha subs- gação da responsabilidade, à associação à vida
○
da empresa etc.
○
em condição de reparar os defeitos dos siste- Como é evidente, todas essas transforma-
○
○
mas em que vivem” (Viallet, 1987: 153). ções no domínio da formação contínua de adul-
○
○
A modalidade de formação que é desenvol- tos e nas suas organizações de trabalho tiveram
○
dade de formação “apresenta-se como um pro- • Por um lado, reforça-se a idéia de que os
○
○
atores que são afetados por eles” ( Jobert, 1987: estar orientados para a mudança dos com-
○
○
27) e que integra, simultaneamente, as dimen- portamentos e das práticas, o que exige um
○
○
sões formação, investigação e ação (Boterf, trabalho simultâneo sobre a pessoa do pro-
○
1988).
○
Essas e outras práticas de formação que se bre as suas representações, mas também
○
crítico-reflexiva).
○
plo da emergência de novos paradigmas no • Por outro lado, as escolas são consideradas
○
○
campo da educação de adultos em geral, que como lugares de formação por excelência,
○
experiencial).
É nesse contexto que na formação contínua
○
○
de adultos se valoriza cada vez mais as modali- Essa evolução da formação de professores
○
○
dades que favorecem a capacidade de os atores, inverte a posição tradicional como era vista a
○
gráficos” e outras formas de “formação Já não se trata de, primeiro, formar profes-
○
360
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
○
○
partindo do princípio de que, como diz Rui Ca- Se é verdade que “a otimização do poten-
○
○
nário (1994), “os indivíduos mudam mudando cial formativo das situações de trabalho passa,
○
○
o próprio contexto em que trabalham”, de fazer em termos de formação, pela criação de dispo-
○
da mudança das escolas um processo de forma- sitivos e dinâmicas formativas que propiciem,
○
○
ção (e mudança) dos professores. no ambiente de trabalho, as condições neces-
○
○
Essa perspectiva desloca o problema da for- sárias para que os trabalhadores transformem
○
mação de professores para o problema da for- as experiências em aprendizagens a partir de 361
○
○
mação das escolas. um processo formativo” (Canário, 1994: 26), não
○
○
Como assinalam Monica Thurler e Philippe nos podemos esquecer também que é preciso
○
○
Perrenoud (1990) num texto apresentado ao criar dispositivos e dinâmicas organizacionais
○
Congresso da Sociedade Suíça de Investigação que propiciem que os trabalhadores transfor-
○
○
em Educação, que tinha o sugestivo título de mem as suas “aprendizagens” em “ação”.
○
○
“L’instituition scolaire est-elle capable Nessa relação entre formação – gestão – mu-
○
○
d’apprendre?”: dança (que está subjacente a essa perspectiva da
○
“formação centrada na escola”) estamos peran-
○
○
Podemos recusar entrar no jogo da metáfora te um problema típico do “ovo e da galinha”!
○
○
escola? quais são os processos e as estratégias dalidades de formação que permitam aos tra-
○
○
decisão.
cas, da difusão das idéias no sistema escolar.
○
cola como um sistema social, de que modo ela impede tratar os coletivos como indivíduos);
○
res-fazer, como capitaliza e teoriza a experiên- que por meio delas seja possível mudar as mo-
○
○
cia, tanto na escala do estabelecimento de ensi- dalidades e dispositivos de formação. Mas isso
○
○
no como na de organizações mais vastas? não deve ser cumulativamente, porém sim
○
que o professor se forma. O que implica esta- Para isso há que evitar duas coisas:
○
ções para que se produza uma outra relação tos, vendo nela, unicamente, uma das
○
isso, é preciso que as escolas disponham de dança organizacional” (de que fala
○
○
ais e coletivas (ver a esse propósito Barroso, 2. Assumir uma perspectiva “voluntarista” da
○
○
1995b; 1997). Só assim será possível empreen- formação contínua de adultos, julgando
○
○
der as mudanças necessárias para que a for- que todos os profissionais se deixam atra-
○
○
. Autonomia e gestão das escolas . Lisboa:
○
sociedade (e as organizações) porque se Ministério da Educação, 1997.
○
○
mudam as práticas de formação. BEILLEROT, J. La société pédagogique. Paris: PUF, 1982.
○
BOLÍVAR, António. Los centros educativos como
○
Por isso, a “formação centrada na escola” organizaciones que aprenden: promesa y realidad.
○
○
não deve ser vista unicamente como uma mo- Madrid: Editorial La Muralla, 2000.
○
dernização das políticas e práticas de formação, BOUSQUET, Nelly; GRANDGÉRARD, Colette.
○
○
mas sim como um dos instrumentos de uma Détaylorisation des formations et stratégie de flexibilité.
○
Éducation Permanente, n. 104, p. 73-82, 1990.
○
estratégia mais geral de mudança
○
BURNES, Bernard. Managing change: a strategic approach
organizacional, entendida como uma ação po-
○
to organisational development and renewal. London:
○
lítica que tira a sua racionalidade e legitimida-
○
Pitman Publishing, 1992.
○
de dos atores que a praticam e das característi- CANÁRIO, Rui. Centros de formação de escolas: que futu-
○
○
cas dos seus sistemas concretos de ação ro?. In: AMIGUINHO, A.; CANÁRIO, Rui (Org.). Escolas
○
(Friedberg, 1995). e mudança: o papel dos centros de formação. Lisboa:
○
○
A principal finalidade da “formação Educa, 1994.
○
○ CROZIER, Michel; FRIEDBERG, Erhard. L’ acteur et le
centrada na escola” deve ser a de animar e ○
p. 25-32, 1983.
○
concreto sobre a sua organização, elaborem um FRIEDBERG, Erhard. O poder e a regra: dinâmica da ação
○
zem as suas experiências, saberes e idéias para GARVIN, D. A. Building a learning organization. Harvard
○
○
19-33, 1987.
○
Para isso é preciso utilizar dispositivos e moda- KOENIG, G. L’ apprentissage organisationnel repérage des
○
○
lidades de formação adequadas, como vimos. lieux. Revue Française de Gestion, n. 97, p. 76-83, 1994.
○
E, quanto ao resto, é de repetir o que Crozier LE BOTERF, Guy. Le schéma directeur des emplois et des
○
○
1988.
○
geral:
○
“[...] como na guerra e no amor, a arte da Révue Française de Pédagogie, n. 102, p. 45-54, 1993.
○
Bibliografia
○
Éditeur, 1998.
THURLER, Monica Gather; PERRENOUD, Philippe. L’ école
○
1995a.
elle capable d’apprendre?. Actes..., 1990.
○
Educativa, 1995b.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
362
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
A formação de professores
○
○
○
polivalentes do Ensino Fundamental
○
○
○
no Brasil e na França:
○
○
○
balanço, perspectivas
○
○
○
363
○
Jean Hebrard
○
○
Ministério da Educação Nacional/EHESS/Paris/França
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
A formação dos professores deve hoje fazer concernem à evolução da educação em âm-
○
frente a missões complexas e freqüentemente con-
○
bito mundial. É nessa perspectiva que tenta-
○
traditórias. No entanto, ela é o instrumento decisi- rei comparar aqui as grandes evoluções das
○
○
vo para o sucesso das evoluções em curso. Tentar políticas de formação em dois países que co-
○
de formação no Brasil
○
te de tarefas específicas. Entretanto, não se- Desde a última guerra mundial, os nossos
○
○
ria inútil tentar fazer um comparativo dessas dois países têm conhecido, quase que no mes-
○
○
evoluções, ainda que estas possuam um gran- mo momento, períodos de forte crescimento
○
de contraste, pois, por trás das políticas apa- econômico que foram acompanhados por uma
○
○
tuam-se problemas freqüentemente simila- mento rápido dos empregos urbanos (cresci-
○
○
○
educativos duais, pouco adaptados à formação permitiram que o ensino público, único suscetí-
○
○
desses novos atores da vida econômica: um en- vel de alfabetizar milhões de crianças das famí-
○
○
sino primário (universalizado na França, por lias mais desfavorecidas, encontrasse, no Brasil,
○
muito tempo lacunar no Brasil) destinado à al- a imagem que deveria ter sido a sua. É interes-
○
○
fabetização limitada da maior parte da popula- sante ressaltar que, entre o regime de Vargas e o
○
○
ção, um ensino secundário e superior (para os regime militar, no momento em que tudo, de
○
quais a França serviu amplamente de modelo, novo, voltaria a tornar-se possível, os meios mais
○
○
particularmente como pioneira da école influentes do Brasil (em particular, os intelectu-
○
○
nouvelle – escola nova – nos anos 1920-1930) ais) tenham escolhido apoiar um sistema dual
○
○
destinado à formação das elites recrutadas no (público/privado) mais do que um sistema pú-
○
meio das classes burguesas urbanas. blico universalizado. A partir daí, e até um perí-
○
○
No melhor dos casos, o pólo secundário1 só odo muito recente, a qualidade do ensino públi-
○
○
escolarizava entre 2 e 3% da população, mas, co não foi um problema prioritário no Brasil, na
○
○
em geral, o fazia visando à excelência. A forma- ○
medida em que as classes em ascensão social
ção dos seus professores colocava poucos pro- (que cresciam com o nascimento de uma classe
○
○
blemas, na medida em que dizia respeito a po- média muito ativa) tinham à sua disposição um
○
○
pulações culturalmente homogêneas. Forma- ensino privado de qualidade que havia tomado
○
○
dores universitários (responsáveis pela prepa- o lugar do sistema secundário público no mo-
○
ração para as licenciaturas de ensino), profes- mento em que este tinha começado a crescer e,
○
○
sores e alunos do secundário possuíam as mes- portanto, a perder seu caráter elitista.
○
○
leituras, compartilhavam as mesmas discus- de 1882 foi, muito cedo, respeitada. Daí resul-
○
○
sões. A licenciatura para o ensino, uma forma- tou um sistema público certamente ignorado
○
○
ção acadêmica de prestígio, era suficiente para pelas elites, mas muito presente no espaço pú-
○
○
legitimar os professores desse nível. blico e dotado de uma imagem muito poderosa.
○
Porém o pólo primário, por sua vez, conhe- As escolas normais transformaram-se em cen-
○
○
ceu, nos nossos dois países, sortes muito tros de formação, respeitados na medida em que
○
○
muito tempo, como algo acessório e abandona- ascensão social das camadas populares (um fi-
○
do à boa vontade das autoridades municipais ou lho de camponês podia, pela escola normal, che-
○
○
à dos estados da federação. O resultado foi a gar a ser professor do ensino primário; seu filho
○
○
que nenhuma organização federal, até estes úl- sistema secundário para nele tornar-se profes-
○
timos anos, veio a corrigir. O status dos profes- sor; e, com isso, seu neto podia ascender a car-
○
○
sores, seu nível de recrutamento e sua formação reiras que antes tinham acesso reservado, tais
○
○
permaneceram, durante muito tempo, anárqui- como Direito ou Medicina). Todavia, não é certo
○
○
cos. Apenas os estados mais ricos souberam que essas escolas normais tenham preservado
○
criar, graças a escolas normais estreitamente sempre a qualidade da formação. Sabemos que,
○
○
movimento de confiança na escola pública que ensino primário foi formada nas escolas nor-
○
○
poderia ter permitido ao Brasil avançar mais ra- mais, a outra metade entrou na profissão certa-
○
pidamente rumo a soluções eficazes. No mo- mente com um nível de qualificação equivalen-
○
○
mento decisivo, as arbitragens do regime de Ge- te (o brevet, ou seja, diploma de fim do Ensino
○
○
túlio Vargas em favor da liberdade de ensino cer- Fundamental até 1945 e, depois, com o
○
○
○
○
○
○
1
Na França, o ensino secundário recrutava seus alunos desde os 7 ou 8 anos de idade naquilo que se denominava petits lycées , permitindo,
○
assim, que as famílias burguesas evitassem as escolas comuns, as quais faziam parte da rede do ensino primário.
○
364
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
baccaleuréat), porém sem a menor formação. urbano (desde 1954, mais de 50% das comunas
○
○
É depois da última guerra mundial e com o possuem mais de 2.000 habitantes). É, portan-
○
○
crescimento econômico que caracteriza esse to, nessa interface entre mundo rural e mundo
○
○
período que profundas transformações sociais urbano que as necessidades por educação se
○
vêm afetar os nossos dois países e contribuem tornam as mais sensíveis: o nível primário
○
○
para modificar profundamente nossos sistemas mune-se de uma prolongação (o curso comple-
○
○
educativos. O nascimento das classes sociais mentar), que conduz os alunos até o nível do
○
“médias”, produzidas pelo crescimento do setor cours moyen (séries finais do Ensino Fundamen- 365
○
○
terciário das economias, e o aumento do papel tal). Essa profunda evolução que, na França,
○
○
dos executivos nas empresas criam novos reque- constitui o verdadeiro motor da democratiza-
○
○
rimentos de ensino. No Brasil, o regime militar ção do ensino, se faz com os professores
○
escolhe a rede de escolas privadas para oferecer polivalentes das escolas primárias e sem a mí-
○
○
às famílias preocupadas com a ascensão social o nima formação. Nesse período, o crescimento
○
○
instrumento que lhes permitirá promover a for- demográfico é tão forte que ele interdita toda
○
○
mação de seus filhos no nível exigido pelo rápi- ação voluntarista de formação: a duras penas
○
do crescimento de uma economia urbana em encontram-se os professores necessários para
○
○
pleno desenvolvimento. Assim, com esse instru- serem instalados na frente dos alunos, e não é
○
○
mento, as famílias encontrarão aquilo que pro- raro encontrar um recém-egresso do ensino se-
○
○
curam prioritariamente: nem tanto pedagogias cundário, três meses após os exames de final de
○
renovadas, mas um ambiente social preservado, curso (com 17 ou 18 anos de idade), ensinando
○
○
que, a seus olhos, é mais a criação do contexto uma turma do ensino primário. Aliás, é duran-
○
○
do qual seus filhos têm necessidade para ter su- te esse período que se inventa uma nova fun-
○
cesso na escola e para se incorporarem às ma- ção no sistema educativo: o orientador peda-
○
○
neiras de viver das elites. É interessante salien- gógico, um professor do primário, experimen-
○
○
tar que as classes médias, tanto no Brasil quanto tado, que é encarregado de fazer o acompanha-
○
○
na França, sempre acharam que as formas mais mento dos professores recentemente nomea-
○
clássicas de ensino (ou seja, aquelas que são her- dos, sem formação.
○
○
dadas do antigo ensino secundário elitista) são A partir da V República (1958), desenha-se
○
○
as mais eficazes. A formação de professores sur- uma nova política. O general De Gaulle está
○
○
ge, nas escolas privadas, como um problema se- convencido de que a escola pública pode for-
○
cundário com respeito à preservação de uma necer os quadros médios de que o país necessi-
○
○
homogeneidade social percebida como o prin- ta. Ele opta, então, por transformar a rede de
○
○
cipal instrumento da educação. De forma para- cursos complementares (assistida por mestres
○
○
lela, o ensino público, abandonado pelas classes polivalentes do ensino primário) numa verda-
○
médias, torna-se, progressivamente, na opinião deira rede de ensino secundário (assistida por
○
○
delas, um ensino de menor valor e para o qual professores especializados egressos do secun-
○
○
não é necessário aumentar a despesa pública.2 dário). 3 Essa reforma, que seria progressiva-
○
○
Na França, durante o mesmo período, o mente implantada, terminaria após sua morte,
○
crescimento econômico produz uma primeira em 1975. Ela é conhecida sob a denominação
○
○
transformação. Desde então, de país eminen- “reforma do colegial único”. Visava reconstruir
○
○
temente rural, a França se transforma num país um sistema público obrigatório unificado (dos
○
○
○
○
○
○
2
Essa análise tem de ser mais elaborada. Em função dos estados e dos municípios, constata-se que o ensino público pôde ser, durante esse
○
período, mais ou menos preservado, oferecendo assim, durante estes últimos anos, as bases mais ou menos sólidas para a sua renovação.
○
○
3
É interessante ressaltar que essa transformação se produz tendo, como pano de fundo, uma luta sindical tão forte que e inscreve na Guerra Fria:
○
os sindicatos do ensino primário francês são majoritariamente reformistas (ligados à social-democracia, representada na França pelo Partido
○
○
Socialista), os sindicatos do ensino secundário são, pelo contrário, majoritariamente revolucionários (e, portanto, muito ligados ao Partido
○
Comunista). A reforma gaulista vem então em apoio dos sindicatos comunistas e produz, em permanência, a minoração dos sindicatos reforma-
○
dos (essa política há de lembrar a posição muito específica da diplomacia da gestão de De Gaulle durante a Guerra Fria).
○
6 aos 16 anos), que incluía duas etapas: uma de sua disciplina (principalmente na Matemá-
○
○
escola primária (dos 6 aos 11 anos) e um cole- tica, em Ciências, na Lingüística, na Literatu-
○
○
gial (de 11 aos 16 anos). O sistema dual, herda- ra). Paralelamente, esse movimento se vê for-
○
○
do do século XIX, foi aparentemente suprimi- talecido pela implantação de uma formação
○
do. Com efeito, durante o mesmo período, o sis- continuada da qual muito se espera, em parti-
○
○
tema de ensino católico privado se viu cular, para os professores do colegial. De fato,
○
○
grandemente fortalecido (os salários são res- se as escolas normais se renovam, o mesmo não
○
ponsabilidade do Estado, com a condição de acontece com os setores universitários que for-
○
○
que a escola respeite o currículo público), ofe- mam em licenciaturas, docentes para os quais
○
○
recendo, assim, às famílias uma alternativa ao a Pedagogia continua sendo uma disciplina pri-
○
○
ensino público, de forma semelhante ao que mária e que estão convencidos de que um pro-
○
aconteceu com as escolas privadas no Brasil. fessor especializado deve, acima de tudo, co-
○
○
Além disso, a segregação geográfica que preva- nhecer bem o que ensina. O Ministério da Edu-
○
○
lece no novo urbanismo contribui rapidamen- cação francês, então, decide não atrapalhar es-
○
○
te para distinguir, de um lado, as escolas e colé- ○
sas sensibilidades e apoiar a formação conti-
gios dos bairros burgueses dos centros das ci- nuada mais do que a formação inicial universi-
○
○
dades e, do outro, as escolas e os colégios mui- tária, e cria, nos colégios, a competência peda-
○
○
to populares nas novas periferias urbanas, onde gógica necessária para a acolhida de novos pú-
○
○
as moradias de baixo custo (tanto imóveis bai- blicos oriundos dos meios populares.
○
xos e alongados, quanto edifícios altos) concen- Num segundo momento, quando a esquer-
○
○
tram as populações de imigrantes que, por sua da socialista assume a direção do governo, a
○
○
vez, vêm reforçar o crescimento. partir de 1981, uma série de importantes refor-
○
É por ocasião dessa importante transforma- mas conduz à necessidade de repensar a forma-
○
○
ção que todo o sistema de formação francês é ção. A nova política educativa encontra sua ex-
○
○
repensado. Num primeiro momento (de 1969 a pressão legislativa na lei de orientação de 1989,
○
○
1981), quando a direita permanece no poder que prevê uma formação longa, de massas, e
○
após os acontecimentos de 1968 e a saída do exige que nenhuma criança saia do sistema edu-
○
○
general De Gaulle, as escolas normais são com- cativo, após 16 anos de escolaridade, sem ao
○
○
pletamente reformadas. Até então, elas visavam menos uma qualificação de nível V (qualifica-
○
○
propiciar a alunos oriundos dos meios popula- ção profissional), e que pelo menos 80% de cada
○
res a formação acadêmica à qual não poderiam geração tenha acesso ao nível IV (que conduz
○
○
te, para a obtenção do diploma de estudos se- diploma do ensino secundário profissional). A
○
○
cundários). A formação profissional estava li- lei também prevê um reajuste dos salários dos
○
do ofício: livros escolares, técnicas da discipli- e do secundário – escola maternal, escola de En-
○
○
na. A partir de 1969, tais escolas centram-se sino Fundamental, colegial, liceu – serão recru-
○
○
apenas na formação profissional. É preciso in- tados ao nível de licenciatura – três anos de for-
○
ventar novas didáticas e novas pedagogias. A mação universitária – e receberão uma forma-
○
○
época era propícia. A educação é um dos temas ção profissional durante dois anos nos Institu-
○
○
mais trabalhados pelos movimentos que nas- tos de Formação dos Mestres – IUFM). Por últi-
○
○
ceram por todo o mundo durante os anos 1960. mo, a lei prevê um importante dispositivo de
○
É o papel dos novos professores da escola nor- avaliação nacional que engloba toda a escola-
○
○
mal e, também, dos departamentos de ciências ridade obrigatória, bem como uma profunda
○
○
em minoria, que optam por explorar a didática da linguagem oral e da escrita transforma-se no
○
366
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
âmago de todos os aprendizados. Por último, tar a uma formação longa para todos os alu-
○
○
realiza-se um esforço muito grande para alon- nos – demandam uma vontade política tão for-
○
○
gar a duração da Educação Infantil (que perma- te que se arrisca a tropeçar, com a dispersão
○
○
nece sendo não-obrigatória): 4 desde o final dos dos meios e dos esforços, num sistema de es-
○
anos 1980, a totalidade dos alunos de 4 e 5 anos cola fundamental mais desbaratado, na medi-
○
○
se encontram escolarizados; no final dos anos da em que é crescentemente municipalizado.
○
○
1990, são todas as crianças com 3 anos de ida- Os Cefam(s), criados experimentalmente em
○
de que são acolhidas e, hoje, metade das crian- alguns estados em 1983, e que vão estender-se 367
○
○
ças de 2 anos de idade toma o caminho da es- progressivamente ao longo de toda a década,
○
○
cola. As necessidades de formação explodem. tentam responder a todas as exigências ao mes-
○
○
O IUFM, inicialmente encarregado apenas da mo tempo. Lamentavelmente, as escolhas fei-
○
formação inicial e, depois, a partir de 1999, da tas anteriormente conduzem à coexistência de
○
○
formação inicial e continuada, tem de inventar realidades escolares totalmente heterogêneas.
○
○
novos dispositivos de formação. Para a forma- O Brasil do início dos anos 1990 dispõe, de fato,
○
○
ção inicial, os Institutos caracterizam-se pela de diversos sistemas escolares que coabitam em
○
sucessão de um primeiro ano que visa dotar espaços diferentes (oposição norte/sul) ou, às
○
○
cada estudante com uma “alfabetização profis- vezes, nos mesmos espaços (em particular, as
○
○
sional” séria, ou seja, com uma capacidade de megalópoles) e que incluem tanto o ensino pri-
○
○
ler com folga toda a literatura profissional e de vado quanto o ensino público. Satisfazer ao
○
escrever os principais tipos de textos necessá- mesmo tempo todas as necessidades, com as
○
○
rios para o exercício da profissão. É no fim des- restrições dos financiamentos disponíveis, num
○
○
se primeiro ano que um concurso irá selecio- momento em que a inflação interdita as ações
○
nar os estudantes do segundo ano, que se trans- de longo prazo, leva numerosos estados a orga-
○
○
O segundo ano é dedicado a perfazer a tempo que buscam, fora do Brasil, os financia-
○
○
polivalência dos jovens mestres e, por meio de mentos necessários (FMI, Banco Mundial etc.).
○
uma série de estágios, dos quais diversos com a Segundo o estado federado concernente, é um
○
○
efetiva responsabilidade pelo ofício, a iniciá-los ou outro objetivo que é prioritariamente visa-
○
○
nas práticas da ocupação, em contato com os do: valorização do antigo Magistério, utilização
○
○
Por sua vez, a formação continuada, que é efe- ção de institutos estaduais, desenvolvimento de
○
○
tivada ao mesmo tempo pelos inspetores das institutos universitários especializados etc.
○
○
te a fazer ingressar todos os professores na nova ca, a uma forte valorização da escola pública
○
○
É só no final dos anos 1980 que o Brasil, associativos, sindicais ou políticos, sejam eles
○
○
realmente diante das opções políticas comple- classes médias, sempre crescentes, continuam
○
○
xas com as quais os países da Europa (em parti- a pensar que é preferível um sistema dual.
○
duas exigências – de universalizar a alfabetiza- favor das escolas públicas (mesmo naqueles
○
○
ção de base e de fazer passar a totalidade do sis- estados onde são os municípios que realmente
○
○
tema educativo de uma alfabetização elemen- mantiveram esse setor) continua sendo um ob-
○
○
○
○
○
4
Na França, a escolaridade obrigatória começa aos 6 anos de idade (primeiro ano da escola elementar), e não à idade de 7, como no Brasil.
○
jetivo em atenção às classes mais desfavoreci- um observador estrangeiro como eu, a necessi-
○
○
das, mais do que uma opção pessoal de educa- dade de formação, que tinha crescido de manei-
○
○
ção para seus próprios filhos. ra importante durante a primeira parte do decê-
○
○
Assim sendo, a exigência de formação defi- nio, mas que permanecia pulverizada entre a
○
ne-se de maneira bastante complexa. Ela pode multiplicidade de parceiros que estavam a car-
○
○
visar à melhoria das competências profissionais go dela e sujeita à boa vontade das
○
○
dos professores em exercício, já possuidores de municipalidades ou dos estados, aparece, cada
○
uma boa formação inicial (em geral, o Magisté- vez mais, como uma necessidade absoluta. Ela
○
○
rio) e dos quais se espera que sejam os media- dispõe dos instrumentos (os PCN) que tornam
○
○
dores entre o Ensino Fundamental tradicional e possível sua organização clara, visando objeti-
○
○
um ensino modernizado suscetível de favorecer vos explícitos. O debate nacional que cresceu em
○
uma escolarização longa e aberta para o gina- torno dos Parâmetros Curriculares permitiu, de
○
○
sial. Pode-se visar também à formação inicial de fato, que os múltiplos participantes que intervêm
○
○
jovens professores que irão, imediatamente de- na formação chegassem a um consenso (certa-
○
○
pois, desempenhar esse papel. Pode-se, ainda, ○
mente, não foi fácil) e que pudessem, depois,
tentar propiciar aos professores menos forma- apoiar-se num texto amplamente aprovado para
○
○
dos (professores leigos) a base mínima a que eles pensar, de uma maneira mais uniforme do que
○
○
deveriam ter tido direito. Mas, ao mesmo tem- no passado, o que podia ser a formação.5 A faça-
○
○
po, tem-se de recrutar professores para abrir es- nha efetuada nesse caso pelo governo federal foi
○
colas naqueles lugares em que nunca existiram a de criar uma representação suficientemente
○
○
(ou de onde há muito desapareceram), sabendo clara e poderosa dos objetivos da educação, para
○
○
que terão poucas probabilidades de receber um que ela pudesse ser aceita, sem reserva, pelos
○
salário equivalente ao salário mínimo. É claro estados e municípios e também por instituições
○
○
que o Plano Decenal de Educação para Todos, tais como as universidades e ONGs. A muni-
○
○
que responde, em 1993, ao engajamento do Bra- cipalização do Ensino Fundamental, que se ace-
○
○
sil à Conferência de Jomtiem, está especialmen- lerou durante esses mesmos anos, seguiu no
○
te atento a todas essas dimensões da formação; mesmo sentido, criando uma ligação direta, nova
○
○
dispõe, porém, de poucos meios de incorporar no Brasil, entre os municípios e o governo fede-
○
○
os municípios ou, até, os estados federados que ral que, acima das disparidades nacionais, ori-
○
○
dessa difícil dinâmica. É certo que o esforço fei- política educacional brasileira e, portanto, faci-
○
○
guintes (LDB de 1996), para traçar mais especi- Certamente, a complexidade da iniciativa
○
○
particular, aos PCN), para controlar de maneira elevar o nível dos professores com menos for-
○
○
mais firme as alocações financeiras para os mu- mação vem se acrescentar a iniciativa igual-
○
○
nicípios mais pobres e criar os meios para um mente importante de reorientação das práti-
○
○
reajuste dos salários dos professores (graças ao cas educativas capazes de fazer do sistema
○
Fundef ), bem como para exigir uma progressiva educacional público brasileiro um sistema de
○
○
ção (ao nível superior), torna possível o que não ça ao nível de uma alfabetização do tipo se-
○
○
era, na primeira metade da década dos 1990. Para cundário (autonomia no uso da escrita, utili-
○
○
○
○
○
○
5
Na França, foi preciso esperar até o ano de 2001 para que parâmetros curriculares fossem elaborados no modelo brasileiro. Até
○
aí, a França produzia apenas “programas” que definiam os conteúdos de conhecimento a serem adquiridos, sem fornecer nenhu-
○
ma orientação acerca da organização dos aprendizados. Tendo tido a oportunidade de participar, na qualidade de especialista
○
internacional, da iniciativa brasileira, a experiência que obtive pôde ser reinvestida de forma muito útil na iniciativa francesa. Nas
○
○
negociações que se desenvolvem atualmente em torno desses programas, é possível já enxergar que se reproduzem, na França,
○
os efeitos muito positivos que se produziram no Brasil, em particular, na área da formação inicial e continuada.
○
368
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
zação da escrita para construir conhecimen- meio de aulas magistrais, das disciplinas de re-
○
○
tos). Pode-se ver também, dentro desse imen- ferência da educação: Sociologia, Psicologia, His-
○
○
so esforço de formação, as premissas de uma tória da Educação...). Inversamente, pode-se
○
○
nova valorização do Ensino Fundamental pú- propor, nas faculdades de educação ou nos
○
blico, suscetível de reincorporar uma parte das IUFM, um treinamento profissional que, em ou-
○
○
classes médias que dele se afastaram para, as- tra época, caracterizava as escolas normais. Pa-
○
○
sim, aceitar novamente correr o risco e ter in- rece ser necessário hoje redefinir de maneira
○
teresse por ele. mais precisa o que se entende por formação aca- 369
○
○
Dentro dessa nova exigência de formação dêmica e por formação profissional.
○
○
que caracteriza o atual estado dos sistemas edu- No que se refere aos professores polivalentes
○
○
cativos de nossos dois países, quais são os prin- do Ensino Fundamental, é possível imaginar a
○
cipais obstáculos que nos corresponde superar? formação como um processo que deve obriga-
○
○
toriamente comportar diversos estágios. O pri-
○
○
meiro deles concerne à formação antes da es-
A articulação entre
○
○
pecialização. Todos concordam hoje que ela
a formação acadêmica e a
○
deve ser de nível universitário e conduzir o es-
formação profissional ○
○
tudante ao nível de uma licenciatura. De que,
○
○
tante de toda formação inicial. Ele acontece na estudante dispor, numa área dada do saber, da
○
○
maioria dos países que recorrem a um recruta- capacidade de ler e escrever de maneira autô-
○
Devemos lembrar que essa evolução foi, em tuir práticas de leitura e de escritura suscetíveis
○
○
grande medida, ligada às críticas feitas às anti- de permitir a análise das produções de uma área
○
○
gas escolas normais: estas só produziam pro- do saber. Em geral, os universitários são exce-
○
finidas pelo uso restritivo de livros escolares competência, pois ela corresponde a uma de
○
○
simples demais para permitir a todos os alunos, suas principais atividades: a inquietude cientí-
○
○
sem exceção, ingressar numa alfabetização de fica na sua área e a elaboração de sínteses dos
○
conhecimentos disponíveis.
○
nível universitário, esperou-se propiciar a cada O problema que aqui se coloca com os pro-
○
○
cos que lhe fossem confiados. Ora, é amplamen- relativas à escola primária. Por exemplo, será
○
○
te sabido que os professores que trabalham na preciso propiciar licenciaturas polivalentes es-
○
○
universidade vêem sua carreira evoluir em fun- pecíficas para os professores do Ensino Funda-
○
eles têm a tendência natural para reproduzir ma. A licenciatura permite adquirir atitudes
○
○
pesquisadores. A pergunta que se coloca então, intelectuais mais do que uma especialização. A
○
dade de dominar seu arcabouço profissional? pais problemáticas, mas será preciso que, na
○
tremamente diversificadas. Não é forçosamente científico de uma parte dessa área. A licencia-
○
○
entre os agentes universitários que se desenvol- tura universitária deve ser hoje concebida como
○
○
○
minada área do saber, mas que pode transferir- rápidas evoluções das missões que lhe são con-
○
○
se para outras áreas. O ideal seria que o estu- fiadas. Uma grande parte da formação continu-
○
○
dante licenciado pudesse ser um bom leitor de ada deve hoje ser confiada à escrita (seja ela
○
qualquer texto de divulgação, de qualquer cam- impressa ou informatizada).
○
○
po científico (por exemplo, páginas especia- O terceiro estágio de uma formação é o
○
○
lizadas dos grandes jornais e revistas). de acesso às práticas profissionais (formação
○
A partir daí, o segundo estágio da forma- inicial) ou de modificação das práticas pro-
○
○
ção, aquele de uma “alfabetização profissio- fissionais (formação continuada). Hoje sabe-
○
○
nal”, articula-se diretamente com o primeiro. mos melhor que as atitudes profissionais de
○
○
Os institutos de formação, quaisquer que se- base só podem ser aprendidas no exercício
○
jam eles, têm de, como missão primeira, en- da profissão. Não há nenhum curso teórico
○
○
sinar aos seus estudantes em formação inicial que possa ensinar a um jovem professor a
○
○
a capacidade de ler qualquer documento pro- maneira de construir uma relação de autori-
○
○
fissional e de elaborar sínteses de qualquer ○
dade com os seus alunos. Tal relação envol-
campo do conhecimento ligado à vida profis- ve milhares de ajustes, ao longo de uma hora
○
○
sional. Portanto, corresponde a esses institu- de aula, que constituem um mesmo número
○
○
des problemáticas que se situam no centro questão para múltiplas profissões, reconhe-
○
○
dos principais debates que aí se produzem. cendo, ao mesmo tempo, que, se se conse-
○
Esse é um trabalho muito específico, que tam- gue descrever esses processos especialistas,
○
○
bém pode envolver tanto os campos de co- ainda se está muito longe de saber como é
○
○
ca, Matemática, História, Ciências, Literatu- que não seja pela repetição de tentativas, de
○
ra), quanto os processos de transmissão (psi- acertos e de erros. Sabe-se também que um
○
○
cologia, sociologia, didática dos aprendizados professor sem experiência raramente é capaz
○
○
cetível de trabalhar permanentemente com a mestre mais antigo, quais são os atos que
○
sua área, ou seja, torná-lo particularmente ca- profissional é um processo tão complexo que
○
○
paz de descobrir, apenas pela simples leitura supõe muitos anos de experiência antes de
○
○
de pensar seu trabalho e, inclusive, de inven- O que se tenta transmitir com maior fre-
○
○
recrutados sem nível universitário, isto é, sem a dimentos mais estáveis da vida profissional,
○
primeira etapa de alfabetização, seja na França ou aqueles que, em geral, constituem os marcos do
○
○
no Brasil, raramente atingem essa autonomia ante trabalho. É assim que, nos IUFM franceses,
○
○
a literatura profissional e ficam, em grande me- grande parte da formação profissional consiste
○
○
conhecimentos que não resultam da cultura es- arte de escrever uma “preparação”, isto é, o pre-
○
○
crita. Eles têm necessidade de ver fazer e de ouvir visível desenrolar de uma seqüência de apren-
○
○
dizer. Eles não sabem identificar, a partir de uma dizagem. É interessante observar que os profes-
○
○
leitura, aquelas ações profissionais que, de outro sores que ensinam esse savoir-faire são, em ge-
○
Essa dupla alfabetização (geral e profissio- (um matemático ensina a arte de fazer prepa-
○
○
nal) é a única capaz de oferecer a cada profes- rações de Matemática), enquanto o estudante
○
370
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
permanece sendo polivalente. O resultado mais lisar os efeitos desse novo dispositivo sobre os
○
○
freqüente são profundas defasagens entre a alunos e para estabelecer as etapas sucessivas.
○
○
tecnicidade pretendida pelo professor e as com- Esses procedimentos de formação também
○
○
petências disponíveis no estudante. Ainda as- supõem, por um lado, mestres capazes de as-
○
sim, esses marcos de trabalho são justamente similar rapidamente a literatura profissional
○
○
aqueles mais facilmente acessíveis na literatu- disponível sobre o tema explorado e, por ou-
○
○
ra profissional (nas revistas, nos manuais etc.). tro, mestres que não se sintam perturbados
○
Pode-se, contudo, pressupor que, se um profes- pelas ações elementares do ofício. Podemos 371
○
○
sor adquiriu a capacidade de conceber instru- ver, então, que tais procedimentos têm mais
○
○
mentos desse tipo, ele será capaz de utilizar chances de ter êxito na formação continuada
○
○
melhor aqueles que achará em outro lugar, já do que na formação inicial.
○
elaborados. Esse é, portanto, um aspecto não- Em suma, é claro que a formação chamada “te-
○
○
desprezível da formação inicial. Ele deve ser órica” e a formação prática são hoje duas vias de
○
○
também um aspecto importante da formação trabalho que evoluem em paralelo. Seria talvez in-
○
○
continuada, quando surgem outros instrumen- teressante extrair disso todas as conseqüências, em
○
tos que não aqueles que constituem a cultura particular na medida em que nos interessarmos na
○
○
tradicional da profissão. formação dos formadores. Os “alfabetistas” respon-
○
○
Em geral, deposita-se confiança nos está- sáveis pela formação teórica não farão nunca o tra-
○
○
gios para efetivar a transmissão daquilo que al- balho dos práticos aguerridos (mestres-formado-
○
guns chamam de a “pedagogia invisível”, ou res). Porém é crucial que eles sejam excelentes es-
○
○
seja, o conjunto de práticas da profissão que pecialistas da literatura profissional e que esta os
○
○
dizem respeito diretamente à perícia no ofício. remeta a realidades concretas nas quais terão ex-
○
Ora, devido à sua própria invisibilidade, essas periência. Com os universitários, a pesquisa per-
○
○
práticas não são transmissíveis nem nos está- mite freqüentemente obter uma experiência dire-
○
○
gios, nem em cursos teóricos. Os estágios em ta da vida das escolas e das turmas. Por sua vez, os
○
○
geral asseguram a formação num mínimo pro- mestres-formadores devem aprender a “falar” as
○
fissional vital, ou seja, algumas atitudes mais práticas invisíveis da profissão, de maneira a tor-
○
○
previsíveis da profissão. Eles são, certamente, nar possível compartilhar as experiências direta-
○
○
uma contribuição essencial, mas muito insu- mente vividas nas aulas. É essencial que eles per-
○
○
ficiente. Sabemos hoje que a formação para a maneçam, para uma parte importante do seu tra-
○
profissional em início de carreira e foge, por- ma. Essa é, para eles, a única forma de criar as con-
○
○
tanto, com maior freqüência, aos institutos de dições desse intercâmbio sobre a qualificação para
○
○
especializados e algumas ONGs, no Brasil, fi- Uma das evoluções mais recentes das fun-
○
○
xaram-se como objetivo o de explorar essas no- ções do professor é aquela que consiste em
○
○
vas vias de formação. Na França, elas depen- confiar a ele menos a condução da seqüência
○
○
dem daquilo que se chama “dinâmica na cir- didática (que, com certeza, no futuro será
○
são colocadas sob a responsabilidade do ins- com o aluno singular ao longo de sua tarefa.
○
○
petor da circunscrição e da sua equipe de for- A qualidade da interação (análise do erro, re-
○
○
madores (em geral, dois a três mestres-forma- tomada da aprendizagem, explicitação das di-
○
fase é, portanto, uma fase de concepção de uma verdadeira diferenciação em sua ação.
○
preparos; posteriormente, numa segunda eta- Por enquanto, não sabemos como é que se
○
○
pa, a prática consiste em contatar esses mes- adquire esse tipo de qualificação num proces-
○
○
○
○
qualificação esperada. A França, de maneira to-
○
formação inicial, a formação
○
talmente experimental, está em via de explorar
○
continuada e a pesquisa em
○
a possibilidade de fazer evoluir o status de mes-
○
tre-formador7 para responder a essas exigências.
○
educação
○
A Universidade de Clermont-Ferrand inaugurou
○
○
A articulação entre a formação inicial e a um sistema de formação de mestres-formado-
○
formação continuada é a segunda das dificul- res, no nível do Diplôme d’Enseignement
○
○
dades com as quais os nossos sistemas educa- Supérieur Spécialisé (DESS),8 que os inicia na
○
○
tivos se confrontam hoje. Ela se coloca com tan- análise ergonômica das práticas profissionais.
○
○
ta força que, para uma parcela do pessoal, a for- O interesse da formação continuada, quan-
○
mação continuada pode ser a primeira forma- do se visam aspectos mais complexos da
○
○
ção de que participa. É o caso de muitos pro- profissionalização, tem possibilitado levar ao
○
○
fessores leigos no Brasil; é também o caso da- desenvolvimento de certas experiências de for-
○
○
queles professores que entraram na profissão ○
mação inicial particularmente originais. É o
na condição de suplentes, na França.6 caso, na França, de formações atualmente de-
○
○
formação profissional. Com efeito, ela se apóia nece deficitário), que visam colocar num mes-
○
numa primeira experiência da profissão e per- mo cargo duas pessoas não-formadas. Cada um
○
○
mite ao jovem professor basear-se na sua baga- dos membros dessa “dobradinha” passa, de for-
○
○
gem profissional para analisá-la e melhorá-la. ma alternada, de uma situação de professor en-
○
freqüentemente exclui professores de índole é, em geral, de três meses em cada uma das si-
○
○
universitária, que têm pouca experiência com a tuações. A duração total da formação (para um
○
vida em sala de aula. É claro que o formador- recrutamento após dois anos de estudos uni-
○
○
modelo deve ser, nesse caso, um professor mu- versitários) é de três anos. Esse sistema parece
○
○
nido de boa experiência profissional no âmbito ser muito apreciado pelos estudantes. No en-
○
○
da escola de Ensino Fundamental (se é que ele tanto, para os formadores, a tentação de só se
○
forma professores para esse nível) e que, além empenharem no terceiro estágio da formação e
○
○
disso, tenha adquirido uma formação nas prin- de menosprezarem a alfabetização geral e pro-
○
○
cipais didáticas bem como nas áreas de conhe- fissional é forte. Se a inserção no trabalho se
○
○
cimento de referência da educação. Dentro des- processa com maior rapidez, não é certo que,
○
sa perspectiva, utilizam-se freqüentemente an- no longo prazo, as bases assim adquiridas per-
○
○
tigos professores que adquiriram formação em mitam ao professor ter acesso à autonomia pro-
○
○
nível de pós-doutorado. Todavia, não é certo que fissional que atualmente todos procuram.
○
○
○
○
○
○
6
É o que se observa com muita freqüência no departamento da Guiana Francesa.
○
○
7
Na França, um Instituteur-Maître-Formateur – IMF (NT Professor de pré-escola ou de escola primária que ensina nos centros de formação de
○
professores) é um professor com pelo menos seis anos de experiência na profissão e que tem o diploma Certificat d’Aptitude aux Fonctions
○
d’Instituteur-Maître-Formateur – CAFIMF [Certificado de Aptidão para as Funções de IMF]. Esse certificado é obtido após a defesa de uma
○
monografia profissional e de uma prova de análise e de conselho da atividade de um professor estagiário. Os IMF são, em parte, liberados
○
○
das atividades docentes para trabalhar nos centros de formação, mas mantêm pelo menos dois terços de sua carga normal. Eles podem se
○
tornar Conselheiros Pedagógicos de uma Circunscrição – CPC. Nesse caso, eles estão capacitados a se tornarem adjuntos de um Inspetor
○
da Educação Nacional – IEN, que é encarregado de uma circunscrição. Uma circunscrição é um conjunto de escolas colocadas sob a
○
○
autoridade do IEN, que é responsável pela avaliação dos professores e pela sua formação. Em geral, um inspetor trabalha com 280 a 300
○
professores. Ele dispõe de uma equipe de circunscrição composta por uma secretária, e dois conselheiros.
○
○
8
O DESS é um diploma universitário de 3 e Cycle (análogo ao Diplôme d’Études Approfondies – sigla DEA, em francês), mas que tem uma
○
objetivação profissional e, portanto, não permite, como o DEA, preparar uma tese de doutorado.
○
372
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
○
○
continuada é hoje, com certeza, o de negligen- simplesmente aceitar que esse aspecto da for-
○
○
ciar os primeiros estágios de um dispositivo mação seja relegado a um acompanhamento
○
○
completo de formação, em particular quando dos primeiros anos de carreira profissional.
○
essa formação visa prioritariamente a uma ele- Com efeito, o principal perigo refere-se direta-
○
○
vação na qualificação de professores que tive- mente aos formadores. Estes podem ser condu-
○
○
ram pouco ou nenhuma formação inicial. Está zidos a centrar suas atividades apenas sobre a
○
claro que os professores leigos ou, inclusive, formação inicial e, a partir daí, perder os bene- 373
○
○
aqueles que já atingiram o nível de Magistério, fícios do contato regular com os práticos expe-
○
○
e que vão hoje, no Brasil, efetuar a formação rientes que, para esses formadores, constituem
○
○
para eles exigida pela Lei de Diretrizes e Bases, um princípio de realidade que se opõe às su-
○
encontram-se exatamente nessa situação. Eles gestões que são levados a oferecer. Nesse senti-
○
○
continuam a lidar de maneira difícil com a lite- do, pode-se considerar que a prática regular de
○
○
ratura profissional e se sentem incomodados atividades de formação continuada constitui a
○
○
quando se trata de sintetizar as informações melhor formação possível para um formador de
○
oferecidas. Assim sendo, a tendência é a de formadores. Num certo sentido, ela vem com-
○
○
abandonar essa alfabetização para retornar à pletar seu trabalho de inquietude científica na
○
○
análise das práticas profissionais. Não é certo área que é sua, bem como seu trabalho de pes-
○
○
que seja disso que eles mais necessitam. Reen- quisa, se ele for universitário.
○
quando se deseja completar com uma forma- Educação das universidades brasileiras, de cen-
○
○
ção continuada os conhecimentos das discipli- tros consagrados à formação continuada dos
○
nas dos professores. Na medida em que, entre professores da escola fundamental é, a esse res-
○
○
nós, a formação continuada exige uma candi- peito, um avanço muito importante. Na Fran-
○
○
datura por parte do professor, acontece, com ça, os IUFM assumiram recentemente (em
○
○
muita freqüência, ser impossível encontrar vo- 1999) a responsabilidade pela formação conti-
○
luntários que aceitem atualizar seus conheci- nuada. Eles ainda não integraram essa dimen-
○
○
História. As propostas de formação que visari- demasia as pessoas que trabalham com a for-
○
○
am a alfabetização geral ou a alfabetização pro- mação inicial daquelas que assumem a forma-
○
fissional, e que foram mencionadas neste tra- ção continuada. Podemos considerar que a for-
○
○
balho, seriam então ainda menos acolhidas. mação inicial sofre de bastante irrealismo e que
○
○
É possível afirmar hoje que o principal pe- os estágios dos estudantes que cursam o segun-
○
○
rigo que ronda a formação continuada é o de do ano de formação não são realmente condu-
○
processo de formação, que seria pouco capaz A articulação entre formação e pesquisa em
○
○
A formação inicial, à medida que se torna fosse um pesquisador em potencial. Está claro
○
○
de nível universitário, enfrenta um perigo bem hoje que nós não podemos desperdiçar os pou-
○
diferente. Certamente, ela pode negligenciar o cos recursos para pesquisa, de que dispomos no
○
○
nalização propriamente dita) não porque tal sas de que realmente temos necessidade, por
○
○
formação possa não desejar colocá-lo em prá- ações disfarçadas de formação profissionali-
○
tica, mas porque os estudantes na formação zante. Contudo, é pertinente que sejam os pró-
○
○
inicial não possuem nunca a experiência pro- prios pesquisadores os encarregados de colo-
○
○
fissional que lhes permitiria tirar pleno provei- car os resultados de suas pesquisas à disposi-
○
ção, tanto dos formadores de formadores quan- bém, à qualificação para todos), bem como para
○
○
to dos professores cursando uma formação. Isso permitir que o Ensino Fundamental prepare mais
○
○
é perfeitamente possível a partir do segundo e mais alunos para uma escolarização longa. O fato
○
○
estágio do dispositivo (a alfabetização profissi- de que essa evolução se faça no próprio âmbito dos
○
onal), na medida em que um professor deve sistemas públicos de educação deveria permitir a
○
○
aprender a ler e a utilizar os resultados de pes- estes últimos reconquistar – ou não perder – as fa-
○
○
quisas divulgados. Todavia, para o pesquisador, mílias das camadas médias que, desde meio sécu-
○
a qualidade da divulgação da qual é capaz vai lo atrás, têm-se transformado nos principais con-
○
○
depender, em grande parte, do conhecimento sumidores de educação. A presença de seus filhos
○
○
que ele pôde adquirir das representações de que nas escolas públicas é o único meio de evitar que
○
○
dispõe o público ao qual ele destina os conhe- os sistemas educativos reproduzam e ampliem
○
cimentos que produziu. Novamente aí, uma segregações sociais inaceitáveis. As escolhas que
○
○
prática assídua da formação continuada é a serão feitas deverão fornecer às instituições de for-
○
○
única capaz de permitir-lhe transformar-se mação as orientações capazes de permitir a esses
○
○
num bom divulgador. ○
sistemas conduzir, para novas práticas pedagógi-
cas, mais exigentes e mais complexas, um pessoal
○
○
tamente um dos fatores em jogo mais importan- mos ainda de instrumentos suscetíveis de satisfa-
○
○
tes dos orçamentos das políticas educativas no zer a todas essas exigências. Cabe às instituições
○
○
decorrer dos próximos anos. Esse será o preço a de formação, tanto quanto aos poderes públicos,
○
pagar para alcançar a democratização do ensino orientar sua ação, no sentido de encontrar rapida-
○
○
(um acesso não apenas à alfabetização, mas, tam- mente o meio de constituí-los.
○
○
○
○
○
○
○
Miriam Schlickmann
○
○
curriculares para formação inicial de profes- sica. Na verdade, do ponto de vista institucio-
○
○
sores da educação básica, o Brasil está com- nal, os estados e municípios assumiram uma
○
○
do país. Esse movimento teve dois ciclos bem ção e descentralização das políticas educacio-
○
○
distintos: o primeiro estendeu-se de 1983, nais, que contava com forte apoio de organi-
○
○
com a posse dos governadores eleitos pelo zação da sociedade civil, e como decorrência
○
voto popular, a 1993-1994, com a mobilização direta da renovação política, que começou
○
○
Nesse período, os estados e municípios 2001, portanto, essas duas instituições come-
○
374
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
moraram 15 anos. Durante esse período, ti- dadania. Em segundo lugar, pretendeu-se
○
○
veram uma participação destacada na lide- comprometer o Estado com o adequado pro-
○
○
rança das reformas. vimento desse direito, mediante vinculação
○
○
Ao longo da década de 1980 e da primei- de parcela das receitas públicas para o finan-
○
ra metade dos 1990, alguns sistemas estadu- ciamento da educação pública. As reformas
○
○
ais e municipais de ensino se destacaram por educacionais terão, portanto, como objetivo
○
○
iniciativas inovadoras de gestão e de organi- prioritário assegurar a universalização do
○
zação pedagógica, transformando-se em pre- atendimento escolar. 375
○
○
cursores e em referência nacional para as re- O cumprimento dessa meta, no entanto,
○
○
formas que seriam desencadeadas a partir de seria postergado pela desarticulação entre as
○
○
1995, quando teve início o segundo ciclo. Os três esferas de governo, problema que só co-
○
estados e municípios continuariam a desem- meçaria a ser resolvido com a aprovação da
○
○
penhar um papel central, mas a liderança das Emenda nº 14 e a criação do Fundef. Portan-
○
○
reformas foi assumida pelo Ministério da to, grande parte das energias que poderiam
○
○
Educação. ter sido canalizadas para fazer as reformas
○
Essa nova safra de reformas institucionais, avançar foram consumidas pelos impasses
○
○
consubstanciadas por meio da Emenda Cons- gerados pela quase interminável disputa tra-
○
○
rou as lições, as experiências e as inovações tralização, que havia tido forte impulso no
○
○
trazidas pelas iniciativas pioneiras de alguns início dos anos 1980, acabaria bloqueado até
○
○
estados e municípios. A nova Lei de Diretri- meados dos anos 1990. O Fundef, como sabe-
○
zes e Bases da Educação Nacional, sobretu- mos, deu novo alento à municipalização do
○
○
que vinham sendo implementadas pelos sis- A descentralização está associada a outro
○
○
temas estaduais e municipais de ensino. A fle- componente fundamental dessa primeira ge-
○
de organização e gestão dos sistemas de en- sistemas de ensino. Ao chegar a este ponto,
○
○
sino, que constituem as características bási- pretendo confrontar mais diretamente o tema
○
○
cas da LDB, refletem tendências que já esta- desta sessão que, de acordo com a minha in-
○
Podemos afirmar, portanto, que a LDB ins- “organização dos sistemas de ensino e a for-
○
○
de ensino. Todavia, é preciso reconhecer que da de 1990, vamos verificar que profundas
○
○
foi a partir da LDB e do Fundef que aconte- mudanças estruturais e organizacionais foram
○
○
ceu um verdadeiro surto de mudanças e ino- promovidas pelos sistemas de ensino. E, até
○
○
vações em todo o país. O panorama atual é, onde consigo enxergar, essas mudanças tive-
○
portanto, muito diferente daquele observado ram pequena, para não dizer nenhuma, reper-
○
○
há cinco anos. Essas mudanças na organiza- cussão nos programas de formação docente,
○
○
ção dos sistemas de ensino, conforme preten- seja ela inicial ou continuada. Não quero di-
○
○
do argumentar, têm profundas conseqüências zer com isso que tenha havido ou que haja
○
– ou, pelo menos, deveriam ter – para a for- descaso em relação ao problema da formação
○
○
do país? Em primeiro lugar, prevalece a ênfa- quer gestor educacional reorganizar o siste-
○
○
dos à educação como um direito básico de ci- área de formação, sobretudo a formação ini-
○
cial, a cargo de instituições externas aos sis- uma estratégia inteligente que trabalha os
○
○
temas de ensino e com elevado grau de auto- PCN dentro de um programa estruturado de
○
○
nomia, como é o caso das universidades. Não capacitação docente. Creio que os resultados
○
○
é surpresa, portanto, constatar que tem havi- dessa experiência são bastante encorajadores,
○
d o u m d e s c o m p a s s o e n t re a s m u d a n ç a s sobretudo por comprovar a viabilidade de
○
○
organizacionais e curriculares e a formação parcerias entre os sistemas estaduais e muni-
○
○
docente. cipais de ensino e as instituições formadoras.
○
Insisto, mais uma vez, que essa tem sido Esse trabalho também tem sido facilitado pela
○
○
uma preocupação central nos últimos anos. qualidade das propostas e dos materiais de-
○
○
Todavia, tem sido muito mais difícil avançar senvolvidos pelo Ministério da Educação.
○
○
na área de formação de professores do que nas Todavia, é preciso ainda muito esforço
○
demais reformas. É bem verdade que tem ha- para que se estabeleça uma fina sintonia en-
○
○
vido certa coerência nos passos que têm sido tre as mudanças organizacionais promovidas
○
○
dados, pois a definição das diretrizes e dos pelos sistemas de ensino, as diretrizes e os
○
○
parâmetros curriculares nacionais para as três ○
parâmetros curriculares e as atividades de
etapas da Educação Básica precedeu, como capacitação docente. O Censo Escolar apre-
○
○
não poderia deixar de ser, a elaboração das di- senta um retrato, ainda que superficial, da di-
○
○
retrizes curriculares para formação inicial de versidade existente hoje na organização dos
○
○
perfil profissional requerido pela nova pro- Em 2000, cerca de 38% dos alunos do En-
○
○
No entanto, não podemos esperar até que ou mais de uma forma de organização, en-
○
○
novas diretrizes curriculares definidas pelo cional seriado. A organização do Ensino Fun-
○
○
Parecer CNE/CP nº 9/2001 e comecem a for- damental em ciclos é mais comum na Região
○
mar professores com um novo perfil. Numa Sudeste, onde cerca de 57% dos alunos já par-
○
○
previsão bastante otimista, esses profissionais ticipam desse modelo, enquanto 28% seguem
○
○
deverão começar a sair das Faculdades de no sistema seriado e 15% em escolas que com-
○
○
Educação em 2005. Portanto, o novo modelo binam mais de uma forma de organização. O
○
de formação inicial deverá demorar para pro- sistema de ciclos também avançou em alguns
○
○
duzir impacto nos sistemas de ensino. estados de outras regiões, como Ceará, Rio
○
○
Devemos pensar, assim, em políticas de Grande do Norte, Amapá, Mato Grosso e Mato
○
○
na ativa. São esses profissionais que estão guns sistemas de ensino decidiram ampliar o
○
○
sendo pressionados a desenvolver a nova pro- Ensino Fundamental para nove anos, anteci-
○
○
Educação Básica. O programa Parâmetros em Educação. Essa medida tem sido incentivada,
○
○
Ação é um exemplo das alternativas que de- obviamente, pelo critério de distribuição de
○
○
vemos explorar e expandir. Creio que não des- recursos do Fundef. A ampliação para nove
○
○
merece essa iniciativa reconhecer que ela veio anos e a redução da idade de ingresso para 6
○
como resposta à percepção de que os Parâme- anos permitem a esses sistemas de ensino au-
○
○
tros Curriculares Nacionais não estavam sen- mentar o número de matrículas e, com isso,
○
○
tavam capacitados para desenvolver a nova ciclos aparece associada a diferentes propos-
○
○
Para remediar esse problema, criou-se implantaram essa medida. Em São Paulo, por
○
376
SIMPÓSIO 25
Organização dos sistemas de ensino e formação docente
e novas perspectivas
○
○
do em dois ciclos de quatro anos, combina- educacionais que terão lugar nos próximos
○
○
dos com a adoção do regime de progressão anos no Brasil. Essas reformas serão indispen-
○
○
continuada ou de promoção automática. Essa sáveis para que as metas traças pelo PNE se-
○
mudança foi precedida de um processo de re- jam efetivadas ao longo desta década.
○
○
organização da rede escolar, que separou fi- A primeira onda de reformas promoveu
○
○
sicamente o primeiro segmento do Ensino como prioridade a universalização do aten-
○
Fundamental (1ª a 4ª série) do segundo seg- dimento escolar. Para garantir o direito de 377
○
○
mento (5ª a 8ª série). todos à educação, foram enfrentados os pro-
○
○
Já no Ceará, a proposta é organizar o En- blemas do financiamento da educação, da dis-
○
○
sino Fundamental em três ciclos, mudança tribuição de competências e responsabilida-
○
acompanhada da sua extensão para nove des entre as três esferas de governo e da or-
○
○
anos. Encontramos ainda sistemas de ensino ganização dos sistemas de ensino.
○
○
que mantêm apenas o tradicional Ciclo Bási- A nova onda de reformas educacionais, na
○
○
co de Alfabetização, que em geral congrega as qual de certa forma o Brasil já está inserido
○
duas primeiras séries do Ensino Fundamen- desde meados da década de 1990, pois faz par-
○
○
tal. É o caso do Paraná, um dos Estados que te de uma tendência internacional, define
○
○
foi pioneiro na adoção dessa política, no iní- como prioridades a garantia de eqüidade de
○
○
tiva de experiências que estão sendo desen- financiamento, compatível com um padrão
○
○
de ensino. A organização em ciclos é uma ten- foco das políticas, portanto, passa da alocação
○
○
dência que ganhou velocidade nos últimos de recursos para os resultados do processo de
○
○
LDB. Essa política, no entanto, tem profun- E é nesse sentido que a profissionalização
○
sistema de ciclos implica a reorganização Se se espera que o(a) professor(a) assuma res-
○
○
curricular. Uma das dificuldades mais óbvias ponsabilidade pela aprendizagem dos alunos,
○
○
é a substituição dos livros didáticos, desen- é indispensável que ele (a) seja munido dos
○
volvidos para atender o sistema seriado. recursos necessários para atender a essa ex-
○
○
que reside o maior desafio. Capacitar os pro- rio requer deve contemplar competência pe-
○
○
proposta pedagógica e curricular é um impe- Embora todos nós tenhamos uma idéia
○
○
rativo para que as mudanças não sejam ape- aproximada das competências e habilidades
○
○
nas formais. Essa é uma preocupação central que constituem requisitos básicos de um
○
○
hoje dentro do Consed. Para conhecer algu- professor eficiente, certamente nenhum de
○
mas experiências que possam inspirar alter- nós tem uma receita pronta de como formar
○
○
nativas nessa área, o Consed estará promo- esse profissional. Certamente também não
○
○
vendo em breve uma missão técnica de Secre- encontraremos uma resposta satisfatória das
○
○
França. O objetivo será especificamente co- temos ouvido e repetido o chavão de que a
○
○
nhecer programas e políticas na área de for- educação para o século XXI requer do pro-
○
○
Creio que a formação inicial e continuada tos. Todavia, a definição desse perfil é ainda
○
tema mais amplo da valorização e da profis- Finalmente, está em voga a idéia de que,
○
○
○
○
cimento profundo e sofisticado sobre a disci- o Magistério.
○
○
plina que lhe compete lecionar. Formação es- O desenho do novo modelo de formação
○
○
pecífica para o Magistério, ou seja, competên- inicial é coerente com as Diretrizes, com os
○
cia pedagógica, tem sido reputada por alguns Parâmetros Curriculares Nacionais e com a
○
○
como requerimento secundário. Essa visão nova concepção integrada da educação bási-
○
○
simplista e distorcida precisa ser confronta- ca, assentada pela LDB. No entanto, esse mo-
○
da, antes que se torne um novo senso comum. delo não responderá adequadamente às ne-
○
○
Creio que as novas diretrizes nacionais cessidades da educação básica se as institui-
○
○
para formação inicial de professores respon- ções formadoras não estiverem atentas às
○
○
dem bem a esse desafio, ao reafirmar catego- novas formas de organização adotadas pelos
○
ricamente que a formação pedagógica é indis- sistemas de ensino. Ou seja, é essencial que
○
○
pensável. Essa orientação é clara no Decreto seja estabelecida uma sintonia fina entre os
○
○
nº 3.276/99, alterado pelo Decreto nº 3.554/ sistemas de ensino e as instituições formado-
○
○
2000, que regulamenta a formação básica co- ○
ras em cada unidade da federação.
mum que, do ponto de vista curricular, cons- O Consed vem dialogando com o Conse-
○
○
no processo de formação dos professores das (Crub) com o objetivo de criar canais institu-
○
○
diferentes etapas da educação básica. cionais que favoreçam essa indispensável in-
○
Parecer nº 133/2001, da Câmara de Educação de ensino. Tem havido, por parte do Crub,
○
○
Superior do Conselho Nacional de Educação. uma boa vontade muito grande em trabalhar
○
multidisciplinar terá de ser oferecida em cur- ção inicial. Essa integração também é alta-
○
○
sos de Licenciatura Plena, eliminando-se por- mente desejável em relação à formação con-
○
ante habilitação. Portanto, foram bloqueados blicas, têm uma enorme contribuição a dar
○
○
os atalhos que levavam ao Magistério pessoas para a melhoria dos sistemas de ensino.
○
○
As Diretrizes Curriculares para a Forma- ção básica não deve ser uma desculpa para
○
○
ção Inicial de Professores da Educação Bási- que estados e municípios não trabalhem em
○
○
ca adota uma abordagem que enfatiza o de- regime de colaboração na área de formação
○
○
senvolvimento das competências necessárias docente. Creio que esse deve se tornar um
○
dos das áreas de ensino da educação básica à Undime, bem como das Secretariais Estadu-
○
○
formação pedagógica. Portanto, a formação ais e Municipais de Educação. Sem essa cola-
○
○
pedagógica não é uma camisa que será vesti- boração, recursos preciosos continuarão sen-
○
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
E INCLUSÃO DIGITAL
Cláudio Francisco de Souza Salles
Luis Huerta
379
Formação de professores e inclusão
○
○
○
digital: a experiência do ProInfo
○
○
○
○
Cláudio Francisco de Souza Salles
○
○
Seed/MEC
○
○
○
○
○
○
Implantado a partir de 1997, o Programa Nacio- dades, em programas e cursos que favoreçam
○
nal de Informática na Educação (ProInfo) deu iní- aos interesses locais.
○
○
cio ao processo de universalização do uso das no-
○
O sucesso desse programa depende funda-
○
vas tecnologias de informática e telecomunicações mentalmente da capacitação dos recursos huma-
○
○
nos sistemas escolares públicos e à introdução de nos envolvidos com sua operacionalização. Ca-
○
inovações pedagógicas e gerenciais nas escolas.
○
○
pacitar para o trabalho com novas tecnologias de
Seu objetivo principal é promover o desenvol- informática e telecomunicações não significa ape-
○
○
vimento e o uso pedagógico das novas tecnologias nas preparar o indivíduo para um novo trabalho
○
○
processo de inovação em todos os sentidos, den- logia que suporta e integra processos de interação
○
○
aprendizagem;
○
• propiciar uma educação voltada para o pro- implica redimensionar o papel que o professor
○
○
• preparar o aluno para o exercício da cidada- século XXI. É, de fato, um desafio à pedagogia tra-
○
○
• valorizar o professor.
○
redes de ensino;
○
cos;
○
manente;
○
bilidades e competências;
○
○
de projetos e atividades com seus alunos, ou, divíduo para lidar com a incerteza e a com
○
de gestão escolar, que podem ser construídos com a responsabilidade daí decorrente;
○
○
de acordo com a realidade de cada contexto; • capazes de manter uma relação prazerosa
○
○
380
SIMPÓSIO 26
Formação de professores e inclusão digital
○
○
○
e formação de professores
○
○
○
○
Luis Huerta
○
○
INCITE, Inversiones en Ciencia y Tecnologia e INVENCION, Aplicaciones en Ciencia y Educación/Chile
○
○
○
381
○
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
A globalização incorpora à reflexão tam-
○
○
A Internet está se tornando uma das principais bém os países de menor desenvolvimento.
○
matérias na formação de professores. As reformas Ainda hoje, as respostas às necessidades edu-
○
○
curriculares incluem sugestões freqüentes para que cacionais incluem a busca de novas tec-
○
○
os professores incluam recursos da Internet em nologias que certamente se encontram mais
○
seus planos de ensino. De certa forma, a Internet ○
○
mas barreiras entre o sistema de educação formal trar uma forma de incorporar-se. As frontei-
○
rão ser empreendidos, a fim de que a Internet seja renda dos países mais pobres em relação à
○
○
faz da Rede. Um dos principais problemas é como provenientes da globalização e estas devem ser
○
○
vidas pela Internet, considerando-se o fato de que vendo-se centralizar esforços nas de maior re-
○
as novas tecnologias de aprendizagem eletrônica torno. Para a educação, a Internet é uma dessas
○
○
zagem e ensino.
○
○
○
exigências educacionais. Pela natureza da eco- ma escolar. Atualmente, o meio externo tem
○
○
nomia global, essas necessidades não fazem um ator de grande influência: a Internet.
○
○
parte do planejamento, ou não podem ser pre- Apesar da débil incorporação de nossos
○
○
○
afetam a igualdade de oportunidades ante o
○
humanos para a educação
○
conhecimento e a aquisição de habilidades.
○
○
Assim, um país pode crescer desequilibrada- Um único olhar sobre as relações hoje pre-
○
mente, o que, além dos efeitos desiguais na
○
sentes na escola e a sua comparação com o que
○
área social, também produz dificuldades na se espera que elas sejam no futuro coloca enor-
○
○
coordenação de recursos humanos competi- mes desafios. Com certeza, a gestão escolar, os
○
tivos dentro desse país. Em termos de eqüi-
○
atuais professores e as características dos alu-
○
dade e equilíbrio, as novas tecnologias de nos revelam profundos desajustes que aparen-
○
○
informação são um dever nos novos planos temente não encontrarão solução nos mesmos
○
○
nacionais de educação. atores da atualidade. Em alguns casos, a gravi-
○
Assim sendo, o conceito de currículo alcan-
○
dade do problema não apenas reside nas con-
○
ça hoje um significado maior, abrangendo os dutas dos atuais profissionais, mas numa
○
○
domínios da auto-aprendizagem e da área quantidade de recursos humanos absoluta-
○
○
educativa informal. Naturalmente, a reforma ○
dentro e fora da escola, de maneira comple- Física é 60% inferior ao requerido pelo novo
○
○
isso certamente sugere questões relevantes ção dos professores mas, também, da incorpo-
○
vêm ocorrendo pela aparição dos computa- recursos. É também evidente que a grande es-
○
○
enquadramentos empíricos. esforço de longo prazo, num país que não pode
○
crescente introdução de computadores tem econômicas atraentes para vir trabalhar nele.
○
○
que eram usuais e consideradas sagradas nos relevante, se considerarmos o seu potencial
○
gráfico devidamente organizado, tem substi- tância, com o objetivo de aumentar a produti-
○
○
tuído difíceis ações manuais. Será que essas vidade dos recursos humanos disponíveis.
○
suficientes para o trabalho criativo, ou para rar os computadores e a Internet como recur-
○
○
induzir uma atitude reflexiva e próxima da na- sos fundamentais e de uso obrigatório. Con-
○
tureza?
○
É claro que a resposta a essa pergunta pre- cimentos devem passar a satisfazer as deman-
○
○
cisaria de um espaço e de um tempo maior das de usuários que já são relativamente es-
○
○
do que aquele já transcorrido. Obviamente, tal pecialistas com respeito à utilização dessas fer-
○
ramentas.
○
tação. Porém a verdade é que quaisquer que Na transição ao uso de novas tecnologias
○
○
sejam as respostas elas não significarão que na educação, cientistas e engenheiros podem
○
○
teremos de abrir mão das novas ferramentas. ser aproveitados num esforço de estender suas
○
Seria essa a premissa para o conjunto da re- experiências para, assim, assistir os professo-
○
○
382
SIMPÓSIO 26
Formação de professores e inclusão digital
○
○
identidade de recursos e formatos com as for-
○
A Internet constitui uma comunicação re-
○
mas tradicionais, sendo certamente aquela da
○
mota, um conceito diferente, em que os com- dimensão real tridimensional a que falta na
○
○
putadores são elementos de grande importân- Internet. Esta última envolve certos aspectos
○
cia, mesmo quando, em termos tecnológicos,
○
sensoriais cujo papel na aprendizagem pare-
○
essa significação não seja imprescindível para ce ser importante, embora não existam expe-
○
○
o estabelecimento da própria comunicação. riências claras a respeito dos efeitos de sua au- 383
○
○
A comunicação via Internet inclui a web, a sência nos processos educativos.
○
qual permite compartilhar documentos em
○
A Internet redunda numa revisão da vali-
○
formatos crescentemente poderosos. A infor- dade de certas idéias longamente aceitas, ain-
○
○
mação em código, que viaja pela rede de fios da que o questionamento num ou outro sen-
○
e cabos e por satélites, incorpora instruções
○
tido venha com o transcurso da sua amplia-
○
que devem ser processadas num computador, ção. O importante é não se deter diante das
○
○
e as tarefas resultantes dessa informação que possibilidades abertas. Nesse sentido, nossos
○
○
foi transferida envolvem todas as operações países podem efetuar um esforço controlado,
○
das quais um computador é capaz. Podemos,
○
o qual será necessariamente compartilhado
○
então, imaginar o que ocorrerá em cada pon- ○
○