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Introducao Numa dessas intoleréveis tardes de garoa procurévamos, meus sou menos divertido ossas desgracas cotidi- anas, Fomos, naturalmente, ao centro de compras mais préximo, isto is. Ardua tarefa, pensava, con cis preferéncias. Outra vez. Jumanji nfo, eu rogava colegio de painéis cinematogriificos que ador- navam o centro de compras com seus letreiros coloridos nao havia um nossas ao céu, Natural sem irritagio, cinematografica desse ¢ salinhas, Mas no fomos capazes sncimento a algo Cannes desse ano, assinado por Kusturica, um Javo muito festejado em Berlim ¢ outras capitais europ&- ema, Comentei apenas isto, como quem fala para si, como ‘como quem diz “chove”. Disse a Underground de Kusturica”. Meus filhos comegaram a -me imoderadamente sobre as caracteristicas de um filme dizé-lo, nfo tinha grandes inteng6es de conhecer e sobre 0 sabia muito mais do que os painéis (coloridos) proclamavam. eéde iziam, perguntavam, reclamavam. visto € nfo tina lido nada sobre ele (as coisas nfo melhoraram. continuo ignorante dos contetidos e das formas filme que, no entanto, posso prever abominavel). “Mas é de de qué”. Por fim compreendi: o que se pretendia que eu senten~ sec era se ofilme era de aventuras ou de amar ou de ficgao cientifica. O obscuro nio contribusa, para eles, na elucidagio de uma relagio stencimento como esta, Impaciente (era o dia, era a garoa), res ‘Nao éde nada, é um filme de Kusturica. Kusturica é 0 diretor”. E tudo o que se pode di Minha impaciéncia, claro, chocou-se com outra impaciéncia, tyne, sendo resultado da soma de duas conscigncias igualmente impa- es, devolveu meu mau humor como que multiplicado por um tho de parque de diversées: monstruoso. “Todo filme é de alguma ha, sentenciosa como s6 eu posso ser nos , proclamou minha piores momentos. “Se num filme tem lutas, & de lutas, se tem ss6es & de acdo”, refletiu meu filho. Nao menos impaciente, mas pouco mais consciente do papel que devia cumprir, ensaiei ‘micro-aula a propésito das diferengas entre o cinema de géneroe ma de autor. Minha explicagio, naturalmente, no chegava a .cé-los porque era muita a irritago que tinhamos criado entre » Alion, ou como Alphaville, ou indiverda pasticipam, a seu modo, de algum gf poderfamos dizer, com o espectador desprevenido, ngas, Nao apelam arte como garantia, mesn no vasto saco da sétima arte. Mas Kusturica, & diferenga de é impossivel de prever. Ele é, ¢ sabe disso, um autor. E-um “a como toda grande personalidade, é imprevisivel ¢ até incompt vel. Afinal, 0 modelo das grandes personalidades € Deus, 0 mais in- compreensivel dos autores até agora existentes. ‘De modo que minha batalha estava perdida de antemao por r- bes climatol6gicas e psicol6gicas. Ainda assim, tentel explicar que exis- tem filmes, o “cinema de autor”, que sio reconhecidos por marcas estilisticas e nfo pelo “pertencimento” a uma classe mais ou menos abstrata ou convencional. “Afinal, Querv ser grande é de qué:”, pergun- tei, orguihoso de meu achado, porque se trata de um filme que nés trés amévamos (e amamos) até a ndusea. Nao é de suspense, nem de aco, nem de ficcfo cientfica, nem de amor. “De quem & Quera ser grande?”, perguntaram-ine. Nao sabia. Nao se. “Entio no é de autor” “E uma comédia” (cles), “Provavelmente” (eu), “Ent Underground também seja uma comédia”, “Duvido: Kusturica nfo tem qualquer sentido de humor”. Mas estava perdido. Sabia-o entfo e sei agora: contra a lucidez irrtada de meus filhos nada posso. A nio ser sentar-me e escrever. E é nessa coisas da cultura, que meus filhos possuiam nesta tarde, que é preciso encontrar 0s fundamentos deste aparte, Meus filhos presenteavam-me, sem sabé-lo, uma encenacao de algo que havia tempo ocupava minha cabeca: os géneros e sua impor- tincia em relagdo produgdo cultural, a maneira natural com que as 63 como se le s se acostumam a manejar categorias nada naturais, O primeiro eles reclamay: aquela tarde e sempre, €0 género pertence”, As vezes a varios, as vezes a nenhum. E para que esta explicacdo tivesse lgum sentido, alguma eficicia, enfim, eu devia remontar as solenes categorias da arte e do juizo, da cultura s fungGes sociais das produ- gGes simbélicas. De modo que, passar bem. O certo é que grande parte da cultura do século XX, quer dizer, da cultura que importa, se reconhece como produzida em relagio com modelos genéricos mais ou menos estéveis ¢ mais ou menos hegemi -os. Nesse sentido, os géneros funcionam enquanto um sis- tema de otientagdes, expectativas e convengoes que circulam entre a indkistria, o texto e o sujeito. Nao vale a pena remontar aos gregos. As criancas séo impacien- tes € reclamam explicagdes mais ao alcance da mao. E, por outro lado, até as criangas sabem que nosso mundo, quer dizer, nossa cultura, nada tem a ver com a cultura “dos gregos”. J& que a hist6ria nao é linear, ndo se trata apenas de uma distincia temporal, mas de uma descontinuidade: tudo aquilo que sobre o mundo sabemos e estamos acostumados a pensar, inclusive as linguagens que utilizamos para nos comunicar, é bastante mais moderno que “a cultura dos gregos”. Pois © que poderiam dizer, a nds que no somos nem filésofos, nem histo- riadores, sobre o nosso presente, esses gregos? Por exemplo, a palavra que designa um dos géneros em que me deterei mais adiante, “melodrama”, tem uma evidente raiz grega. Quer dizer “drama cantado” ese tivéssemos que rastrear algo parecido com 0 drama cantado na “cultura da antigiidade” (por outro lado é bem certo que “a antigiiidade” s6 tem idéia de civilizaglo, nfo de cultura), wild isto € a tragédia clissica, ou nio? O certo € que o melodrama, nasso me- Jodrama, nao era conhecido pelos gregos. Do ponto de vista estritamen- te histérico, o melodrama é um género cuja origem é preciso buscar no século XVIII: é um género da modernidade ¢ ter-se-ia de per pois, que (de um modo ou de outro) encarna seus ideais. Nes descontinuidades (que fazem a historia) fundavamos, naquela t chuva no centro de compras, nossa reniincia a voltar aos gregos. Toda nossa cultura comega no século XVIII ¢ é apenas do século XVIII que podemos reconhecer nossa vida cotidi imaginaco e nossa desesperanga como nossas. E é por isso q nimos 0 género, os géneros, em relagdo com a indiistria, 0 t sujeito, trés categorias que s6 podem ser entendidas no context nossa modernidade. Entendamos suporte, com uma acordo com padrées uum filme, um video sfo textos no mesmo sentido que um rom a0 menos com respeito a nossas intengées neste tratado. Hi, portanto, “textos”, ¢ estes textos existem em precisamente, textos, artefatos culturais cujo ido no momento da leitura. A cultura indust dizer, 6 0 contexto de qualquer tipo de textualidade em que se desde as formas mais experimentais até as formas mais obedientes regra, da lei, da previs Hi certas tradicoes, em particular certas tradigées liter nal, a literatura é a arte com maior tradigio teérica e pre nos acostumaram a pensar em termos de “ruptura”: a arte ai onde algo (uma expectativa, um horizonte de leitura, um: século XX, ocorre que a literatura se ergue contra os mente reprodutivistas das estéticas genéricas para propor gressio” generalizada a respeito de tudo aquilo que suste menos em hipétese, um género. da lucidez de qu wem padréo. (meus que dos géneros se sabe tudo e da Jo contrério, nada. Também contra uma ingenuidade seme- «c € que estas paginas sobre géneros em geral, mas sobretudo so~ guns géneros em particular, foram escritas " E preciso dizé-lo no i certas formulas, certos preciosismos, certas precisées: a cultura de ssas €a cultura industrialmente produzida, a cultura de massas éa rma discursiva de uma certa forma de dominagfo, a cultura de mas- a base da.repeticio, Estes enunciados “problematicos” merecem, seguramente, uma consideracio mais detida. € preciso deter-se uns minutos em Para que haja “género” (vale dizer: para que haja cultura indus- rial) deve haver repetigo ou, o que d4 no mesmo: para que haja “clas deve haver uma certa recorréncia de certas formas que permitam 1 generalizacio. E logico, pois, que toda estética de géneros corresponda a um momento de repetigao. Ora (6 preciso dizé-lo, & preciso deter-se, é necessério), é por- que a cultura industrial funciona em e pelos on: wodelos de identidade, em ltima instancia. Os géneros organizam a Os géneros, na cultura industrial, organizan a experién- periénci {classe enquanto colego, lembremos, opse-se sie da vida. O amor é um naufrdeio. O que faz, por exemplo, 6, simplesmente, organizar a experiéncia do amor, a infelicidade, co abandono. O que faz o melodrama € contar literalmente ¢ & até a exasperacdo os comportamentos culturalmente associados a Mas quando se introduz a variével dinheiro neste universo, tudo complicar-se policialmente, porque aparece (pode aparecer) 0 d um saxiboy que exaspera até o crime a quem o ama e mantém. ‘De todos os géneros da cultura, o mais variivel historicamente ratura infintil e 0 mais irrecuperdvel seria o melodrama, pi que na forga do abismo que abre nos sujeitos parece caber tudo meno: diivida. A seriedade (mortal) do amor torna o género obsceno, Ao mi ‘mo tempo o melodrama sobrevive precisamente pela capacidade qui amor tem para torné-lo totalmente opaco: a guerra, a fome, a doenga infortiinio, tudo pode ser lido como uma forma do amor ou de sua falta Ecdipo rei seré o primeiro policial ou o primeiro melodrama? Ea hist6ria de um crime e sua resolugio, porém é também a historia de uma falta (é a histéria, também, da parandia de sentido). ‘O que exporei a seguir, pois, nao é ria do género (dos géneres),’ mas uma analitica e uma critica de algumas de suas for- ‘mas contempordneas de aparicio. 2, Dai que os géneros produzam diferencas puras. As regularidades do género jf sio um cefcto de lecurs, ima bibliografa sobre génera e gneros, coma se pode supor:glosas mais ou Prélogo Primeira parte: O fim da teoria Coi Estudos culturais, literaturas comparadas e an: ele e textual: por uma pedagogia Carta 20 py Anilise (quantitativa) do presente Segunda parte: Géneros Introdugéo O jogo dos cautos (sobre o policial) Escad ara o céu (sobre ficgao cientifica) sumario u 7 31 43 53 59 61 69 4 I yeciso continuar? a modernidade ta parte: Argentina es, ele mesmo Akademie: ¢scritura, violéncia e no Rio da Prata raturae mercado ‘dipo m 1 grande 125 135 137 149 159 183 185 205 227 249 261 prélogo dos artigos reunidos neste volume foram lidos em gressos e simpésios organizados no Brasil ou publicados em revis- Nioéad a urdir este livro que, apesar de ma colegio d tigos, funciona enquanto um conjunto coerente vzandoo mes- de intervengoes em torno do que se poderia chamar (ut mo nome de ui de Bue jurante trés anos) “Os limites da literatura”: a teoria, cultura, a hist éneros sfo, de fato, estas margens se confunde com outra coisa (ou simplesmente ). Estes momentos de desaparigio, evanescéncia ou nntos de perigo) da literatura so mo 86 REITOR DE ADMINISTRAGAO. TRosattroRa DEEWSINO. 5 801 Link, Dae Liss Como se wad. Jorge 180 p= 1 Literatura savas a adil antelo, certamente

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