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RELEITURAS

DONALD WOODS: HOMEM As razões profundas para esses


DE CONVICÇÕES E traumas e ressentimentos que nem o
CORAGEM! tempo pode apagar, vamos encontrar
nas crônicas diárias de um dos homens
mais odiados pelos verdugos do regime
racista sul-africano. Chama-se Donald
Wilson Gomes de Woods, nome inscrito no imaginário
Almeida coletivo dos habitantes de paralelos e
meridianos, através do filme Um Grito
de Liberdade, baseado no livro de sua
autoria Biko – que conta e denuncia a
verdade sobre a morte do líder
estudantil negro Steve Biko.
De verdade, pela sua coragem,
responsabilidade sócio-político-
profissional e humanismo seu nome
extrapolou todas as fronteiras do seu
país, deixando para trás as muralhas e
cercas de arame farpado do apartheid
para se espraiar na consciência
universal.
Donald Woods era jornalista de
É verdade que enquanto profissão e por anos seguidos foi editor
instituição formal o regime do do Daily Dispatch, jornal da pequena
apartheid da África do Sul desintegrou- East London, cidade da África do Sul,
se a partir das eleições multipartidárias onde assinava regularmente uma coluna
que conduziram Nelson Mandela, bastante concorrida e que era pelo
histórico líder do Congresso Nacional interesse que despertava replicada em
Africano (ANC), à presidência do país, outros jornais de seu país. E, foi assim
embora do ponto de vista da práxis essa que se notabilizou internacionalmente
não é sabidamente uma questão como crítico acérrimo e inimigo
resolvida. Muito pelo contrário, a confesso e irreconciliável da segregação
realidade pós-apartheid é bem diversa, racial.
e ao mesmo tempo muito dolorosa para Sua mordacidade era
as maiorias desprovidas dos meios de simplesmente demolidora. Os efeitos da
produção. Prevalece, portanto a certeza sua contundente e perseverante crítica
de que é da responsabilidade exclusiva eram devastadores e incomodavam,
dos cidadãos da África do Sul a deveras o regime. E, como
hercúlea tarefa de construir em novas incomodavam! Por isso mesmo não
bases a sociedade matizada do rancor havia como os donos do poder racista
que se revela através das profundas fazerem ouvidos moucos ao seu verbo!
cicatrizes e das muitas chagas abertas Dono também de uma ironia
com os traumas e ressentimentos que fina, mas ao mesmo tempo corrosiva e
periclitam entre a latência e a deletéria, tirava-lhes o sono, mantendo-
conflagração, herdada dos sombrios os em estado permanente de histeria.
anos do domínio branco. Talvez por isso mesmo, diante de cada
nova crônica publicada sentiam que
precisavam ripostar, agir para pelo ao enquanto jornalista comprometido com
menos minimizar o seu elevado poder a verdade. Citemos alguns daqueles que
desmascarador do apartheid. mais enfureceram e tiraram do sério os
Não tardou muito que o patronos do aparthied: Por trás da
esperado aconteceu. Foi submetido à Máscara de Vorter; Dois Homens em
prisão domiciliar, proibido de escrever, um Banheiro; Marcianos em
viajar, falar em público ou ser citado Langkloof?; O Afrikâner Começou na
pela imprensa. Restava-lhe a alternativa Índia; Mandela Deve Ser Libertado; O
da fuga que o levou a Londres onde Dia em que Jogaram Fertilizante no
residiu pelo resto de sua vida. Ventilador; Onde o Tempo Parou;
Por dentro do Apartheid: o Tarde Demais para Perguntar; Melhor
cotidiano da resistência na África do Bustos do que Bobagens; Dachau para
Sul é uma compilação de uma seleta de Crianças; Um Caso para Sherlock;
crônicas publicadas por Donald Woods Sinais de Soweto; Indecisão no Púlpito;
entre 1975 e 1977 no Daily Dispach. A Morte de Um Detido; Gravem Bem
Publicado no Brasil pela Editora Best Este Nome; Diga-lhes para Parar; Não
Seller (São Paulo, 1988), numa tradução Temos Tempo para Tréguas; Como
de Édi G. de Oliveira, contem 57 Fazer Biltong; Carta Aberta a Vorster;
artigos, cuja leitura inquestionavelmente J’accuse!; O Ministro Kruger Deve se
ajuda o leitor a penetrar nas entranhas Demitir. As parangonas falam por si só!
do segregacionismo sul-africano que Em todos eles perpassam manifestações
infelicitou a população negra e explicitas da veia irônica, da troça
perturbou a consciência branca penetrante e do espírito arguto do autor,
esclarecida por mais de meio século. mas também o clima de tensão e medo
Despretensioso na sua que emolduvava a ambiência onde elas
apresentação, até por não se tratar de foram escritas.
um volume alentado semelhante às Como escreve Alon Paton,
consagradas obras do gênero, o livro de responsável pela seleta em apreço,
Donald Woods carrega uma trajetória J’acusse, escrita por ocasião do
densa e profícua. Nesse sentido é assassinato de Steve Biko na prisão,
praticamente impensável alguém do marcou um ponto de inflexão nas
lado de cá do Atlântico (isso também crônicas de Donald Woods, a partir da
serve para alguém do outro lado do qual definitivamente “a coluna mudou
Pacífico), que se predisponha a dissecar de tom e já não havia mais
a essência do apartheid sem levar na brincadeira”. Mas foi também a partir
devida conta o proselitismo quase desse momento que a intolerância do
doutrinário por ele realizado na poder com o jornalista atingiu níveis
incessante busca da conquista de mentes insuportáveis.
e corações na luta contra a anomia Fica muito evidente que Como
branca. Fazer Biltong altura em que o autor
Lendo-o percebe-se o quão pôs-se a escrever sobre a culinária sul-
Donald Woods era corajoso e africana para dar por assim dizer, um
destemido. Não satisfeito em denunciar “refresco” às autoridades racistas já
e desmascarar o apartheid se sentia completamente celeradas com os seus
impelido a desafiá-lo, confrontando-o artigos, pode ter sido um momento
cotidianamente. Basta que se lhe lêem sintomático do que estava por vir. Para
alguns dos títulos de suas crônicas, para quem não conhece, o biltong,
que não restem dúvidas de que afrontar amplamente consumido na África do
o regime permanentemente era parte Sul, é uma carne crua seca, de cabra,
essencial da sua conduta profissional bovino ou caça, de textura consistente,

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salgada, apimentada e regada de um volátil multidão. Nesta terra de
mix de temperos bem marcantes, como tensão racial, seria suficiente
regra preparada artesanalmente. Mas foi apenas um empurrão, um
com a crônica O Ministro Kruger Deve tropeção, uma observação
se Demitir, que a permanência de indelicada para provocar uma
Donald Woods na África do Sul deixou trágica explosão de retaliações.
de ser temerária e simplesmente Entretanto, nenhum acidente
arriscada e se tornou impraticável. desse tipo ocorreu no funeral de
Nas crônicas que se sucederam à Steve Biko esta semana. Durante
morte de Biko, Donald Woods despiu- cinco horas de discursos por
se das quase nenhumas veleidades e representantes de todas essas
pruridos que à duras penas vinha organizações, supostamente
dissimulando por razões de ofício para antibrancas, nenhum branco
reclamar pública e abertamente presente sentiu que não era
responsabilidade das autoridades, na bem-vindo ou que estivesse sob
pessoa do Ministro da Polícia, J. T. ameaça direta daquela multidão
Kruger, exigindo a sua demissão emocionada.Não que nós, os
sumária e uma investigação isenta sobre poucos brancos presentes, não
o acontecido. sentíssemos medo. Longe disso.
E, é tão verdadeiro o fato de que Foram as cinco horas mais
a morte de Biko o marcou profunda e assustadoras de minha vida.
indelevelmente, que não seria justo Minha esposa e eu estávamos no
negar ao leitor essas palavras de Donald meio da multidão parada e
Woods ao descrever sua participação no sentimos muitos momentos de
funeral do líder estudantil covardemente apreensão, pois a retórica
assassinado (na versão oficial Biko, um visava a violência dos brancos,
obstinado pela vida, “se suicidou”), na a crueldade dos brancos, a
crônica que leva por título: Uma exploração pelos brancos, os
Espécie de Milagre. privilégios dos brancos e a
“Pegue uma multidão de vinte morte dos mártires negros pelos
mil negros no funeral de um brancos. A gente tem muita
líder querido que morreu sob consciência de nossa brancura
custódia da Polícia de nessas ocasiões... “
Segurança branca; acrescente à Eram esses o tonus, a carga
sua raiva mais raiva pela emocional e o realismo que emergiam
insensibilidade do ministro da sistematicamente da coluna e através da
Polícia Kruger, ao dizer que qual transbordava da redação do Daily
essa morte o deixava frio; Despach para a África do Sul e para o
acrescente mais raiva pelo fato Mundo as realidades da necedade
de a polícia impedir que outras racista.
dezenas de milhares de pessoas Donald Woods morreu de câncer
partipassem do funeral, e aos 67 anos de idade, em 1981,
acrescente a raiva adicional portanto, quase três décadas depois de
provocada por discursos ter escapado ileso de uma tentativa de
emocionais contra a opressão assassinato pela polícia sul-africana –
branca. mesma ocasião em que uma camiseta
Acrescente a essa aglomeração envenenada foi depositada em sua casa
de negros raivosos, aflitos, um para uso pela sua filha de 2 anos de
pequeno grupo debrancos idade.
misturados a essa enorme e

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Sobretudo para as pessoas
céticas quanto à real e efetiva
capacidade do indivíduo poder
influenciar os destinos da história da
humanidade com o seu exemplo
militante, sua convicção inabalável, a
determinação de predispor as demais
gentes a se colocarem a mexer para
mudar o status quo, não importa a partir
de que posição geográfica sua luta é
travada (recordar que East London, de
onde eram lançados os torpedos
woodsianos contra Johanesburgo,
Pretória, Cape Town, Durban e Port
Elizabeth com estilhaços que se
espalhavam pelo resto do Planeta, não
passava de uma pequena cidade de
menos de 200 mil habitantes), a conduta
pública de Donald Woods deixa muito
mais do que o exemplo de inteligência,
otimismo e bravura, lega para toda a
humanidade verdadeira e inesgotável
fonte de lição de vida.

wongesada
yahoo.com.br

Nota: Esta matéria foi publicada


originalmente nas páginas da Sankofa,
revista de História da África e Estudos
da Diáspora Africana da Universidade
de São Paulo – USP
(http://sites.google.com/site/revistasank
ofa/sankofa-01/donald-woods)

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