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Br - Edição nº 14 – Capoeira
A edição traz fotografias de Pierre Verger e desenhos do Carybé, que ilustram entrevistas e artigos
de pesquisadores, mestres de capoeira e autoridades ligadas à cultura brasileira, na qual se
destacam as significativas implicações da capoeira para a cultura e a vida social, como modalidade
de jogo, dança, música e oportunidade para inserção social.
A Revista:
• Prefácio
• Os desafios contemporâneos da capoeira
• As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira
• A repressão à capoeira
• O Capoeira
• A Guarda Negra: a capoeira no palco da política
• Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem
• A performance ritual da roda de capoeira angola
• A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos
mítico
• Capoeira: metáforas em movimento
• A música na capoeira angola da Bahia
• A mulher na capoeira
• Entrevista com a Senhora Rosângela C. Araújo (Mestra Janja)
• As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX
• Benefícios educacionais, físicos e psicológicos da capoeira
• Capoeira e inclusão social
• A internacionalização da capoeira
• Carybé
• Pierre Verger
Comentários:
Aproveitamos o excelente material disponibilizado pelo Ministério das Relações Exteriores, para
presentear os amigos e leitores do Portal Capoeira com uma compilação especial para o Natal da
Revista Textos do Brasil - Edição nº 14 - Capoeira. Trata-se de uma composição reunindo todos os
textos da Revista em um único arquivo organizado, disponível para download em nosso site.
Fica ainda uma enorme satisfação ao ler a revista e encontrar em suas belíssimas páginas a
presença de grandes amigos e parceiros que nos ajudam no dia a dia a construir o nosso Portal e
contribuem para a disseminação com coerência e qualidade da nossa capoeiragem.
Saudações Capoeirísticas
Luciano Milani
Editor Portal Capoeira
COORDENAÇÃO DE DIVULGAÇÃO
Os Desafios Contemporâneos
da Capoeira
Luiz Renato Vieira e Matthias Röhrig Assunção
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Foto: Alexandre Gomes
res): capoeira na escola, na universidade, para portadores mais se destacou na história contemporânea da capoeira: a
de necessidades especiais, nos cursos de licenciatura em consolidação da lógica da organização na forma de grupos,
educação física, em institutos de reeducação de menores em que o professor ou mestre que se forma e organiza sua
infratores, como terapia, como “ginástica brasileira” e como escola procura vincular-se a uma instituição já reconhecida
objeto de dissertações e teses acadêmicas. Há na literatura no mercado. Pode-se, inclusive, discutir em que medida essa
sobre a capoeira diversos registros de trabalhos relevantes, forma de organização contribui para preservar a diversidade
em todas essas áreas e em algumas outras e não é nossa e a riqueza cultural da capoeira e para o fortalecimento cole-
proposta aqui enumerá-los. O importante é destacar esse tivo da arte como forma de resistência cultural.
momento de mudança na história contemporânea da ca- Outra tendência importante, a partir do início dos anos
poeira. Foi nas décadas de 70 e 80, também, que a capoeira 1980, foi a revalorização das tradições e dos “velhos mes-
conquistou seu lugar no cenário esportivo nacional, ainda tres”, juntamente com o fortalecimento dos grupos de ca-
sob a égide da Confederação Brasileira de Pugilismo, e ob- poeira angola, que ganharam muito espaço à medida que a
teve reconhecimento de vários órgãos governamentais li- comunidade da capoeira começava a questionar os cami-
gados ao esporte e à educação. No início, as competições nhos da desportivização.2 Iniciou-se, assim, uma trajetória
de capoeira assemelhavam-se às de outras modalidades de de reafricanização da capoeira, principalmente nos centros
luta, não considerando toda a riqueza da arte, reduzindo-a de prática mais tradicionais, que se refletiu nas linguagens
a um simples esporte de combate. Aos poucos, foi-se che- próprias da capoeira: na musicalidade, na instrumentação
gando a formas mais elaboradas e completas de avaliação musical e até mesmo na abordagem histórica dos pesqui-
dos capoeiristas e as competições ficaram muito pareci-
das com as próprias rodas de capoeira. Convém lembrar
o papel das competições de capoeira dos Jogos Escolares (1) Cabe, aqui, um esclarecimento: no universo da capoeira, um grupo representa uma escola
fundada por um ou mais mestres e reúne, sob um mesmo nome, os núcleos de ensino
Brasileiros (JEBs) nesse processo, como laboratório para a constituídos por seus alunos que alcançam a condição de professores ou mestres. Há grupos
pequenos, reunindo dois ou três núcleos de ensino de capoeira, e grandes grupos, organizados
construção de uma visão mais global da capoeira. juridicamente em moldes empresariais e disseminados em todo o mundo. Com certa freqüência,
É importante destacar que os anos 1980 foram também ocorre de o capoeirista já formado se desligar de um grupo e aderir a outro, já na condição
de professor, por razões profissionais. Essas circunstâncias modificaram profundamente o
a década da expansão nacional dos grandes grupos de ca- significado da relação mestre-aluno no mundo da capoeiragem. Se, até os anos setenta, o
nome do mestre era praticamente o sobrenome do capoeirista (p. ex. Mestre João Pequeno de
poeira.1 Firmou-se esse modelo na organização da nossa Pastinha), atualmente o praticante se identifica pelo grupo do qual faz parte.
arte, apesar dos esforços de alguns pela adoção do modelo (2) É importante observar que durante a década de 70, período marcado pela vigência do regime
militar e por intenso espírito de modernização e de desenvolvimento econômico, enfatizou-se
tradicional das federações. Esse, sem dúvida, foi o passo que a abordagem da capoeira a partir de seus aspectos esportivos e de “arte marcial brasileira”.
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Esse, sem dúvida, foi o passo que mais sadores, que passaram a acentuar as origens africanas e
se destacou na história contemporânea buscar lutas ancestrais e “irmãs” da capoeira, como a lad-
ja, da ilha caribenha Martinica, e o moringue, do Oceano
da capoeira: a consolidação da lógica da Índico. O nacionalismo simplista, anteriormente tão forte,
organização na forma de grupos, em que passou a dar lugar a uma visão mais global da cultura e do
o professor ou mestre que se forma e processo de formação da capoeira, inserindo-a na história
organiza sua escola procura vincular-se a da resistência dos africanos escravizados e de seus descen-
uma instituição já reconhecida no mercado. dentes mundo afora. Viu-se que a capoeira precisava ser
tratada como um esporte, mas que a arte não poderia ser
reduzida somente ao seu aspecto desportivo. Essa abor-
dagem culturalista, então, foi muito enfatizada a partir dos
anos 1980, quando as palavras “resgate” e “bagagem” pas-
saram definitivamente a fazer parte do vocabulário comum
dos capoeiristas. Sintomaticamente, os capoeiristas, que ti-
nham passado a utilizar atabaques com tarraxas, mais fun-
cionais e fáceis de afinar, voltaram a preferir os tambores
trançados com grossas cordas de sisal. É nessa perspectiva
– como cultura, e não como modalidade esportiva – que a
Os Desafios Contemporâneos
da Capoeira
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Capoeira
Os Desafios Contemporâneos da Capoeira
loriza sua ancestralidade africana e seu potencial de crítica vida de que representa um estilo novo, que se definiu não
à cultura ocidental. É fundamental, portanto, entender essa somente a partir da continuidade com a capoeira baiana
expansão internacional no contexto da dinâmica da cultura como se praticava na década de 1930, mas também a par-
globalizada, mas também na sua lógica interna, que reflete tir da oposição sistemática ao estilo regional. Ou seja, se,
essas contradições. por exemplo, na regional utilizavam-se balões, os angolei-
ros condenavam seu uso, mesmo que esses existissem na
OS ESTILOS NA CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA. A capoeira baiana “tradicional”. Além do mais, é preciso lem-
modernização e a desportivização da capoeira a partir da brar que a capoeira baiana antes da modernização não era
década de 1930 resultou na formação de dois estilos distin- homogênea e uniforme, mas que cada mestre ensinava um
tos. O primeiro estilo moderno, a capoeira regional, foi criado conjunto específico de movimentos, ritmos e rituais. Tanto
pelo Mestre Bimba (1900-1974) apoiado por um grupo de que a capoeira de outros mestres antigos como Waldemar,
alunos. Bimba partiu de uma crítica da antiga “vadiação baia- Cobrinha Verde ou Canjiquinha podia ter características
na”, que não estaria à altura das novas lutas que vinham de- bastante distintas da forma ensinada por Pastinha.
safiando a capoeira nos ringues de luta livre da época. Bimba Dessa maneira, nunca houve tradição única e monolí-
selecionou as técnicas que lhe pareciam mais adequadas, tica na capoeira baiana antiga, o que, por sua vez, facilitou
eliminou outras que considerava ultrapassadas e integrou que posteriormente cada grupo ressaltasse elementos di-
alguns golpes novos – geralmente de grande eficácia – à versos e mesmo conflitantes da “tradição”. Por outro lado,
sua “luta regional baiana”. Mais importante ainda foi o de- convém salientar que ambos os estilos – regional e angola
senvolvimento de uma didática, a formalização do ensino na – coincidem na sua ruptura com a malandragem antiga,
academia – treinos com uniforme – e a imposição de uma transferindo a prática da capoeira da rua para uma aca-
disciplina e uma ética desportiva. Mas, apesar de grande su- demia, com treinos regulares, uniformes e regulamentos,
cesso, principalmente a partir da década de 1960, seu estilo expandindo o ensino a grupos maiores de alunos e recru-
não logrou unanimidade entre os capoeiras baianos. tando novos segmentos da população brasileira: crianças e
Outra corrente, liderada a partir da década de 1940 por jovens da classe média e mulheres.
Mestre Pastinha, se propôs a manter justamente aqueles A expansão da capoeira moderna pelo Brasil a partir
elementos da antiga capoeira que a regional decidiu des- desses dois estilos baianos complicou ainda mais a ques-
cartar, como as “chamadas”, o “jogo de dentro” mais lento, tão. A difusão ocorreu de várias maneiras: (1) por meio de
a teatralidade na roda, assim como uma série de rituais (co- alunos já formados pelos mestres baianos que se fixaram
meçando pelas ladainhas iniciais). Enquanto Bimba desta- em outros estados, sendo que a grande maioria migrou
cava a inovação, Pastinha e seu grupo enfatizavam o resga- para cidades do Sudeste; (2) por iniciativa de alunos de ou-
te da tradição. Por essa razão, escolheram a denominação tros estados que só receberam instrução ocasional desses
capoeira (de) angola para designar seu estilo, ressaltando, mestres quando iam à Bahia. Nesse caso, o caráter auto-
dessa forma, a continuidade em relação às origens africa- didata da prática encorajava mudanças de estilo, como se
nas da arte. Mas, apesar dessa postura tradicionalista – de pode ver no caso do grupo Senzala do Rio de Janeiro. Além
resto, característica dos angoleiros até hoje – não resta dú- do mais, as capoeiras baianas vão encontrar em várias ci-
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(3) As “seqüências da capoeira regional”, ou “seqüências de Mestre Bimba” configuram uma das
mais importantes características do método de ensino criado por esse importante mestre
baiano. Consistem em séries de movimentos de ataque e defesa, formando lutas simuladas e
atuando como uma espécie de inventário dos principais golpes e técnicas da capoeira regional.
As seqüências (alguns consideram uma seqüência com oito partes) eram utilizadas para o
ensino dos iniciantes e para o treinamento diário dos capoeiristas em estágio mais adiantado.
(4) Além de fornecer a base rítmica para o desempenho da “bateria” da capoeira, o berimbau
tem um importante valor simbólico significativo na roda. Os toques do berimbau expressam
algumas escolhas do grupo ou do mestre que conduz a roda, determinando a velocidade e
outras características do jogo. Assim, além de diversos outros, existem toques “de angola” e
“de regional”.
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Capoeira
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inicial (o “Salve!”, ainda hoje adotado por muitas escolas de contexto original e seu ingresso em academias, escolas,
capoeira) até ao regulamento minucioso de competições. Se universidades, palcos de dança, competições de luta livre
essa evolução facilitou a integração da capoeira em ativida- e até salas de terapia multiplicou sentidos, significados, for-
des escolares e deportivas em âmbito nacional, e, por con- mas, maneiras de treinar e de jogar. Em outras palavras a
seqüencia, outra onda de expansão pelo Brasil afora, gerou, transformação da capoeiragem – entendida aqui como o
por outro lado, reações contrárias por parte de capoeiristas contexto social da capoeira – também impactou o conte-
comprometidos com o ideal de resistência. údo da arte. Acreditamos, por isso, que é preciso, além da
Diversos grupos, alguns dos quais grandes, não somen- clássica oposição binária angola-regional, distinguir vários
te se recusaram a aderir à federação, mas buscaram de- estilos de capoeira, dependendo dos aspectos enfatizados:
marcar claramente essa linha, estabelecendo, por exemplo, luta, tradição, cultura, brincadeira ou dança.
sistemas de graduação e seqüências de cores de cordéis
de graduação alternativos. Nesse processo, o resgate das
tradições afro-baianas começou a assumir papel importan-
te, a ponto de alguns deles aproximarem-se da capoeira
angola. Isso coincidiu, é claro, com a revalorização da cultu-
ra afro-brasileira pela qual lutava o movimento negro. Esse
processo também favoreceu o fortalecimento da capoeira
angola, que havia passado por longa fase de declínio marca-
do pela extinção de toda uma geração de antigos mestres
baianos e que culminou com a morte de Pastinha (1981). A
partir da década de 1980, esse estilo passa a formar novos
mestres e a conquistar novos adeptos não só no Brasil, mas
também no exterior. A partir de então, ocorrem tensões en-
tre um estilo angola, cujos grupos invocam uma linhagem
direta com um mestre baiano, e estilos que poderiamos
denominar de “angolizados”, por incorporar parte das ca-
racterísticas estilísticas dos angoleiros, mas sem abandonar
Foto: Embratur
outras características suas, consideradas “regional” pelos
primeiros. Isso ocorreu a ponto de alguns grupos passarem
a reivindicar a condição de angoleiros, qualificativo que lhes
é negado pelos praticantes do que poderiamos chamar o
“núcleo duro” da angola.
A situação torna-se ainda mais confusa quando nos
referimos ao qualificativo “regional”. Para os angoleiros
em geral, todos os demais estilos são classificados, indis-
tintamente, como pertencentes à Regional, vocábulo que
assume, muitas vezes, conotação negativa em suas falas.
Do outro lado do espectro estilístico, alguns herdeiros di-
retos de Bimba, que procuram manter o estilo do mestre
sem outras grandes inovações, igualmente proclamam
que só eles merecem o epíteto de regional. Por isso, mui-
tos mestres de capoeira que não pertencem a nenhum
desses dois extremos ou estilos “puros” começaram a se
autodefinir como fazendo capoeira “contemporânea”, ou
afirmar que praticam os dois estilos (o que se afigura van-
tajoso do ponto de vista do mercado de ensino, cada vez
mais competitivo). Também é comum o uso da expressão
“angonal” como termo depreciativo pelos puristas, para
desqualificar quem está “em cima do muro”, mas reivindi-
cado abertamente por outros.
Falar de capoeira “contemporânea”, no entanto, não
esclarece muito de que capoeira se trata, dado que há mui-
tas formas distintas na atualidade, a começar pela angola
e regional contemporâneas. A saída da capoeira do seu
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Foto: Alexandre Gomes
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As metamorfoses da capoeira:
contribuição para uma história da
capoeira
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A interpretação da obra dos cronistas Deve-se reconhecer, entretanto, que a definição acima
viajantes estrangeiros – que passaram a é historicamente definida. Sua aplicação indiscriminada –
como, por exemplo, ao jogo de capoeira tal como praticado
nos visitar com maior freqüência a partir nos tempos da Independência ou nos tempos do Segundo
da chegada da família real portuguesa Reinado – constituiria exemplo de anacronismo. A identifi-
em 1808 – muito tem contribuído para a cação das metamorfoses da capoeira e das transformações
reconstituição dos costumes e da sociedade na forma de sua inserção na sociedade constitui o tema
brasileira do período. Nesse sentido, parece que, a seguir, se explora.
ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) 1. AS PRIMEIRAS REFERÊNCIAS (C. 1770-1830).
a primeira descrição da capoeira (1835). Há quem fale na prática da capoeira desde os tempos
do Quilombo dos Palmares. 1 A associação da capoei-
ra com a história da resistência negra à escravidão é,
com efeito, instigante: seria ela não só um folguedo,
por meio do qual os escravos se esqueciam momenta-
neamente das agruras de sua condição, mas também
um instrumento de luta para a conquista da liberda-
de. O estádio atual da pesquisa histórica, todavia, não
permite identificar a prática do jogo da capoeira entre
quilombolas. 2 Pode-se, no máximo, encontrar referên-
cias que remontam à segunda metade do século XVIII,
e num ambiente urbano.
O memorialista Luis Edmundo descreve o capoeira dos
tempos do Vice-Reinado no Rio de Janeiro como uma figu-
As metamorfoses da capoeira: ra soturna, aventureira e astuciosa, que, no entanto, não
deixava de reverenciar as imagens sacras dos oratórios
contribuição para uma história públicos, então muito presentes na paisagem urbana da
da capoeira capital da colônia.3
Na obra de Elísio de Araújo sobre a história da polícia na
antiga capital4, encontra-se testemunho distinto – menos
literário e mais convincente. Citando o ilustrado Dr. J. M. Ma-
cedo, sem, contudo, mencionar a obra, discorre:
(1) Ver, por exemplo, a entrevista do Mestre Almir das Areias ao jornal Movimento em 13.09.1976,
citada por Roberto Freire em Soma, uma terapia anarquista, vol. 2/Prática da Soma e capoeira,
p.160-168, Editora Guanabara-Koogan, Rio de Janeiro, 1991. Da mesma forma, no filme
Quilombo (1983), do diretor Cacá Diegues, aparecem cenas que sugerem a utilização de golpes
de capoeira.
(2) Cf. Memorial de Palmares, de Ivan Alves Filho, Xénon Editores, Rio de Janeiro, 1988.
(3) Cf. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, Athena Editora, Rio de Janeiro, s/d.
(4) Cf. Estudo histórico sobre a Polícia da Capital Federal de 1808 a 1831, Primeira parte, Imprensa
Nacional, Rio de Janeiro, 1898, p. 56.
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São Salvador
J. M. Rugendas, 1802 - 1858
como personagem das Memórias de um Sargento de (...) Os negros têm ainda um outro folguedo
Milícias que impunha às ruas do Rio de Janeiro sua dis- guerreiro, muito mais violento, a capoeira: dois
cricionária “inquisição policial”.5 A fama do major Vidigal campeões se precipitam um contra o outro,
teve origem no seu infatigável combate aos quilombos, procurando dar com a cabeça no peito do ad-
candomblés e capoeiras. Teria sido o criador da temida versário que desejam derrubar. Evita-se o ata-
sessão de tortura conhecida como “ceia dos camarões”6 que com saltos de lado e paradas igualmente
reservada aos capoeiras e vagabundos que infernizavam hábeis; mas, lançando-se um contra o outro,
a vida carioca. mais ou menos como bodes, acontece-lhes
Apesar de a primeira codificação criminal brasileira – o chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça,
Código Criminal do Império do Brasil, de 1830 – não especi- o que faz com que a brincadeira não raro dege-
ficar os capoeiras, eles estariam enquadrados na categoria nere em briga e que as facas entrem em jogo
de “vadios e mendigos”, da qual trata o Artigo 295 do Ca- ensangüentando-as.8
pítulo IV.7 De fato, o praticante da capoeira era identificado
como integrante de grupos de bandidos, sem ocupação Além dessa descrição, o artista alemão deixou duas gra-
definida, verdadeiros marginais. Resta, contudo, averiguar vuras que retratam a prática da capoeira e que constituem,
de que forma esse estigma social de marginalidade se con- com razoável probabilidade, os mais antigos documentos
ciliaria com a idéia de um “inocente” folguedo de escravos iconográficos sobre o assunto. Na primeira delas, intitulada
e de negros. São Salvador, a capital soteropolitana - vista de algum pon-
A interpretação da obra dos cronistas viajantes estran-
geiros – que passaram a nos visitar com maior freqüência
a partir da chegada da família real portuguesa em 1808 – (5) Cf. Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida, Irmãos Pongetti
Editores, Rio de Janeiro, 1963, prefácio de Marques Rebêlo, p. 28.
muito tem contribuído para a reconstituição dos costumes (6) Cf. Almeida, op. cit.; Waldeloir Rego, Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfico, Editora Itapuã,
Salvador, 1968, p. 295; e Raimundo Magalhães Júnior, Deodoro: a espada contra o Império, Cia.
e da sociedade brasileira do período. Nesse sentido, pare- Editora Nacional, São Paulo, 1940, vol. 2, p. 183.
ce ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) a primeira (7) Cf. Rego, op. cit., p. 291
(8) Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, Livraria Martins, São Paulo, 1940,
descrição da capoeira (1835): p. 197.
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Vale a pena frisar que em nenhuma to próximo à Igreja de Nosso Senhor do Bonfim – ocupa o
destas gravuras aparece o berimbau – o fundo enquanto no primeiro plano um pequeno grupo de
três negros e quatro negras assiste à contenda de dois ou-
que permite a formulação da hipótese de tros negros. Apesar da ausência de qualquer instrumento
que esse instrumento não estava, naquele musical visível, sente-se o pulsar de um ritmo pelas posi-
momento, associado à capoeiragem.9 Um ções dos contendores e da platéia. É de notar não só a
detalhe de cunho técnico, do ponto de vista presença de mulheres, como também o assédio de um dos
da luta, merece, ainda, ser observado: os assistentes sobre uma delas.
Em outra gravura, denominada Jogo da Capoeira, vê-se
punhos cerrados dos capoeiras na segunda um grupo de dez negros e negras, dispostos em semicírcu-
gravura. lo, que se entretêm assistindo ao embate entre dois negros.
Aqui está representado o atabaque e um dos assistentes
bate palmas. À exceção de uma negra, que serve algo de
comer para um ancião, todos parecem hipnotizados pelo
ritmo e pelos movimentos dos capoeiristas, inclusive uma
que traz à cabeça um cesto de abacaxi. Esse último detalhe
permite inferir que o cenário é urbano.
Vale a pena frisar que em nenhuma destas gravuras apa-
rece o berimbau – o que permite a formulação da hipótese
de que esse instrumento não estava, naquele momento,
associado à capoeiragem.9 Um detalhe de cunho técnico,
do ponto de vista da luta, merece, ainda, ser observado: os
punhos cerrados dos capoeiras na segunda gravura.
A obra de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), apesar de
As metamorfoses da capoeira: não conter de referências explícitas à capoeira, fornece por
meio de duas aquarelas, e de suas respectivas explicações,
contribuição para uma história subsídios importantes para a reconstituição histórica da ca-
da capoeira poeira. Na descrição da prancha intitulada Enterro do filho
de um rei negro o artista francês escreve:
Detalhe
Jogo de Capoeira, J.M Rugendas 24
O negro trovador
J. B Debret, 1768 - 1848
É interessante constatar a presença num cortejo fú- Nesse período aproximado de 1770 a 1830, pode-se
nebre desses “negros volteadores”, cujos movimentos conceber a capoeira sob, pelo menos, duas perspectivas.
acrobáticos serão incorporados, no século XX, ao jogo da Sob uma ótica, por assim dizer, etnográfica, como um diver-
capoeira, seja como “floreios”, para eludir o oponente, seja timento de negros (portanto, de origem africana), praticado
como intimidações, ou, ainda, como demonstrações de ha- a céu aberto, a ponto de possibilitar a sua reprodução por
bilidade e destreza físicas de apelo turístico. viajantes estrangeiros. Sob um prisma sociológico, não se
Na aquarela O negro trovador, Debret representa um pode ignorar ter sido a capoeira objeto de forte persegui-
ancião cego que toca o urucungo ou berimbau. ção policial, uma vez que seus praticantes, em geral escra-
vos ou negros libertos, eram identificados como assaltantes
Esses trovadores africanos, cuja facúndia é fértil e baderneiros, que faziam uso da capoeira para perpetrar
em histórias de amor, terminam sempre suas in- crimes e atentar contra a ordem pública.
gênuas estrofes com algumas palavras lascivas
acompanhadas de gestos análogos, meio infalível 2. AS MALTAS: “PROFISSIONALISMO” E SERVIÇOS
para fazer gritar de alegria todo o auditório ne- POLÍTICOS (C. 1830-1890). Apesar de toda perseguição
gro, a cujos aplausos se ajuntam assobios, gritos que sofreu, a capoeira conseguiu sobreviver e, ao longo da
agudos, contorções e pulos, mas cuja explosão Regência e do Segundo Reinado, chegou a expandir-se so-
é felizmente momentânea, pois logo fogem para cialmente. De alguma maneira e em algum momento dei-
outros lados a fim de evitar a repressão dos solda- xou de ser coisa exclusivamente de negro ou de escravo. É
dos da polícia que os perseguem a pauladas.10 claro que são negros e mulatos os que compõem a maior
parte da galeria de capoeiristas famosos do século passado.
Corroborando a hipótese formulada acima, a partir das Não eram, contudo, os únicos conhecedores da arte.
gravuras de Rugendas, pode-se concluir, de forma provisó- De fato, a incapacidade da repressão para acabar com
ria, que capoeira e berimbau não estavam associados, pelo a capoeira (e com outras manifestações da cultura negra,
menos, até a terceira década do século XIX. Fato surpreen-
dente uma vez considerada a visceral relação que prevale- (10) Cf. Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo,
ce entre os dois, desde, pelo menos, a década de 1930. 1989, tomo II, p. 164-165.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Assim, num esquema político de eleições como o candomblé) permitiu sua difusão para outras cama-
fraudulentas, os serviços das maltas das da população, ainda durante o Império. No centro des-
se contraditório processo de criminalização e alastramento
organizadas podiam ser considerados encontra-se a formação das maltas de capoeira. Não foi por
“profissionais”: o ingresso em uma delas acaso que cronistas como Lima Campos e Coelho Neto se
representava alternativa de sustento para os referiram ao tempo de Dom Pedro II como o da fase de
membros da numerosa classe de homens apogeu da capoeira: “Durante o Segundo Império, a capoei-
livres e pobres. Era, portanto, na ampla ra chegou ao auge, foi verdadeiramente, aquela época, a do
seu pleno domínio e máximo desenvolvimento”.11
camada de desocupados, vadios e biscateiros Por um lado, o florescimento das maltas se relaciona
onde se iam buscar, de uma maneira com o crescimento urbano do Rio de Janeiro na segunda
geral, os contingentes de capoeiras que metade do século XIX, que foi acompanhado de um forte
integravam as maltas. incremento demográfico provocado pela imigração, princi-
palmente nas camadas mais pobres da população livre.12 Por
outro lado, o que explica, em grande parte, a organização
das maltas, apesar da perseguição, é o seu aproveitamento
político para fins eleitorais. Sobre esse aspecto, o seguinte
comentário de Melo Morais Filho é bastante eloqüente: “(...)
Ao seu ombro tisnado escorou-se, até há pouco, o senado
e a câmara, para onde, à luz da navalha, muitos dos que nos
governam, subiram”.13
A julgar pelas informações de Lima Campos e de Melo
Morais Filho, as maltas do Rio de Janeiro possuíam uma es-
trutura disciplinar interna que não dispensava uma rígida
As metamorfoses da capoeira: hierarquia e uma espécie de “progressão funcional”. Esses
agrupamentos tanto podiam ser formados a partir de bair-
contribuição para uma história ros (Glória, Lapa, Largo do Moura, Santa Luzia etc.) como a
da capoeira partir de ocupações (Carpinteiros de São José, Conceição
da Marinha).
Em um determinado momento, segundo Lima Campos,
ocorre a fusão destas diferentes maltas em duas grandes
“nações”: os “guaiamus” e os “nagôs”. O interesse político
na preservação das maltas consistia na sua utilização para
“serviços eleitorais”; daí, a constante e audaciosa presença
dos capoeiras, que gozavam de relativa impunidade em ra-
zão da conivência das autoridades. Cada uma das “nações”
se associara a um dos partidos da monarquia: os liberais e
os conservadores. Entre os serviços possíveis incluíam-se a
dissolução de comícios, o roubo ou falsificação de urnas elei-
torais e a coação de eleitores, além de vinganças pessoais
contra políticos do partido rival. Assim, num esquema político
de eleições fraudulentas, os serviços das maltas organizadas
podiam ser considerados “profissionais”: o ingresso em uma
delas representava alternativa de sustento para os membros
da numerosa classe de homens livres e pobres. Era, portan-
to, na ampla camada de desocupados, vadios e biscateiros
onde se iam buscar, de uma maneira geral, os contingentes
de capoeiras que integravam as maltas.
(11) Lima Campos, “A Capoeira”, artigo publicado na revista Kosmos, Rio de Janeiro, 1906, apud
Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, Rio de Janeiro em prosa e verso, Livraria
José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1965, p. 191-194.
(12) Sobre a expansão urbana do Rio de Janeiro nos meados do século XIX, cf. de Maurício de
Abreu, Evolução urbana do Rio de Janeiro, IPLANRIO/ Zahar, Rio de Janeiro, 1988.
(13) Cf. Festas e tradições populares do Brasil, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo,
1979, p. 257-263, apud Rego, op.cit., p. 280.
Detalhe
Jogo de Capoeira, J. M. Rugendas
26
Capoeira
As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira
Não eram eles, contudo, os únicos praticantes de capo- bel. Chegou a contar com verbas da polícia do Governo
eira. Filhos de boa família se tornaram valentes brigões gra- de João Alfredo e atuou como força paramilitar contrária
ças ao conhecimento adquirido no convívio com capoeiras. às mobilizações do ascendente movimento republicano.
Coelho Neto, confesso admirador da capoeiragem, men- Aproveitando-se dos sentimentos de simpatia provocados
ciona “vultos eminentes na política, no professorado, no pelo fim da escravidão, a Guarda Negra arregimentou seus
Exército, na Marinha” que teriam aprendido os segredos da membros junto aos capoeiras – cujo elevado nível de or-
capoeira ao se associarem, de alguma forma, às maltas.14 ganização e mobilização devia-se à estrutura interna das
A conivência das autoridades com as atividades das maltas – e na variada camada de delinqüentes e malandros,
maltas de capoeira atinge o paroxismo com a criação da que transitavam socialmente entre a criminalidade e a or-
Guarda Negra, que era uma espécie de associação secre- dem. A Guarda Negra – que teve como um dos seus idea-
ta, cujo objetivo declarado era a defesa da Princesa Isa- lizadores José do Patrocínio – foi, assim, a responsável pela
dissolução de vários comícios e reuniões dos republicanos
e representava uma alternativa desesperada do governo
para salvar a Monarquia. Durante os acontecimentos que
culminaram com a proclamação da República, a denúncia
de que o quartel do Primeiro Regimento de Cavalaria se-
ria atacado pela Guarda Negra teria servido como pretexto
para o início da insubordinação militar.15
Ao tratar da capoeira durante o Império, não se pode
deixar de fazer uma referência especial a uma fotografia
de Christiano Júnior, tirada entre 1864 e 1866, que re-
produz em estúdio o que seria uma lição particular de
capoeira.16 Um jovem negro inicia um menino negro na
capoeira, ensinando-lhe o que parece ser os rudimentos
da “ginga”. A foto sugere a idéia de que a transmissão da
técnica da capoeira envolvia, já naquele tempo, alguma
espécie de metodologia e uma relação do tipo mestre/
discípulo. A existência de uma rígida hierarquia no interior
das maltas, caso confirmada, poderia contribuir para fun-
damentar essa hipótese.
Por fim, deve-se mencionar que os capoeiras ocupa-
vam um lugar ambíguo no imaginário social da época:
ao mesmo tempo em que aterrorizavam a população
com as badernas e pancadarias que promoviam, eram
admirados pelas façanhas realizadas contra os represen-
tantes da ordem e do poder estabelecido. Sobre esta
discussão, vale a pena reproduzir trecho de uma crônica
de Machado de Assis:
(14) Coelho Neto cita Juca Paranhos, o futuro Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores
de 1902 a 1912, e patrono da diplomacia brasileira, “que, na mocidade, foi ‘bonzão’ e disso
se orgulhava nas palestras íntimas em que era tão picaresco”, apud Magalhães Júnior, op.cit.,
p. 185.
(15) Cf. Rego, op.cit., p. 313-315; Magalhães Júnior, op.cit., vol. 1, p. 326-327, 341-342, 373-376;
vol. 2, 63-64, 183, 228.
(16) Cf. Escravos Brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr., Paulo Cesar de Azevedo e
Maurício Lissovsky (orgs.), Editora Ex Libris, São Paulo, 1987, figura 71.
(17) Machado de Assis, Crônicas (1878-1888), W. M. Jackson Inc. Editores, 1938, vol. IV, p. 227-228,
apud Rego, op.cit., p.280-281.
Lição particular de capoeira
Christiano Júnior
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A constante freqüência dos capoeiras Coelho Neto, por sua vez, idealizava o capoeira, com
na crônica policial das últimas décadas nostalgia e romantismo, ao atribuir-lhe elevada dignidade
moral uma vez que não usava navalha (sic), não batia em
do Império levou a que recebessem um homem caído e, caso defendesse causas nobres, como o
tratamento diferenciado por parte da abolicionismo, o fazia por idealismo e não como mercená-
legislação penal brasileira. rio (sic). Exaltando a valentia dos capoeiras, Coelho Neto
relata o terror que produziam na própria polícia.18
(18) Cf. Coelho Neto, crônica “O nosso jogo”, in Bazar, Livraria Chandron, de Lello e Irmãos Ltda.,
Porto, 1928, apud Magalhães Júnior, op.cit., p. 136-138.
(19) Código Penal Brasileiro, pelo Doutor Manuel Clementino de Oliveira Escorel, Tipografia da Cia.
Ind. de São Paulo, 1893, apud Luiz Renato Vieira, Da vadiação à capoeira regional, tese de
Mestrado para o Departamento de Sociologia da UnB, 1991.
Detalhe
Jogo de Capoeira,
J. M. Rugendas
28
Capoeira
As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira
capoeiras para o Mato Grosso. Sampaio Ferraz teria pren- menta que esta possibilidade de mistura social presente na
dido e desterrado para Fernando de Noronha, sem proces- capoeira ocorria tradicionalmente nas irmandades religio-
so, cerca de 600 capoeiras. O mesmo autor observa que sas e nas organizações assistencialistas de auxílio mútuo.
“havia muitos brancos e até mesmo estrangeiros” entre os Eram “ocasiões de auto-reconhecimento” da população
capoeiras: das 28 pessoas presas, em abril de 1890, sob do Rio de Janeiro, que vivia a transição de um espaço ur-
a acusação de capoeiragem, cinco eram pretas, dez bran- bano típico de uma cidade colonial e escravista para o de
cas, das quais sete estrangeiras. “Era comum aparecerem uma moderna metrópole capitalista. Como exemplos de
portugueses e italianos entre os presos por capoeiragem. E movimentos que simbolizam a construção de espaços de
não só brancos pobres se envolviam”.20 confraternização, cita a popularização da festa da Penha, a
De fato, naquele mês de abril de 1890 uma crise minis- participação de políticos conhecidos nos centros de can-
terial foi quase desencadeada a partir da prisão do famoso domblé, a gradual ascensão social do samba e a difusão do
capoeira e baderneiro Juca Reis, rapaz de rica família por- futebol entre as classes mais pobres. No plano político, en-
tuguesa, proprietária do jornal O Paiz, que fora dirigido por tretanto, a ausência de cidadania engendrava a indiferença
Quintino Bocayuva, então Ministro das Relações Exteriores. e o cinismo e, além disso, a tendência para a carnavalização
Diante da prisão e da iminente deportação do burguês “va- do poder e das relações sociais.21
lentão”, Quintino ameaçou demitir-se: ou libertavam o filho Estas considerações ajudam a problematizar o tema da
de seu ex-patrão, o que implicava na demissão de Sampaio tardia aceitação social da capoeira. A repressão empreen-
Ferraz, ou ele se retiraria do Governo. Chegou-se, enfim, dida por Sampaio Ferraz pode ser considerada um sucesso
a uma solução de compromisso pela qual ao capoeira da na medida em que provocou o virtual desaparecimento
elite seria facultado o embarque para o exterior tão logo da capoeira. Segundo um viajante francês, que residiu na
chegasse a Fernando de Noronha. capital por alguns meses, em 1883, as estatísticas policiais
O episódio demonstra o grau de difusão social alcança-
do pela capoeira. Na capoeiragem, com efeito, era possível (20) Cf. José Murilo de Carvalho, Os bestializados/ O Rio de Janeiro e a República que não foi, Cia.
das Letras, São Paulo, 1987, p. 179, nota 25 e p. 155.
o convívio entre classes sociais distintas. Carvalho argu- (21) Carvalho, op.cit., p. 156-160.
Jogo de Capoeira
J. M. Rugendas (1802 – 1858)
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A partir dos anos 1930, tem início longo computariam aproximadamente 20.000 capoeiristas entre
processo cujo sentido será o de gradual a população carioca. Cerca de vinte anos depois, no prefá-
cio ao livro Educação Física Japonesa, o Capitão-Tenente
desvinculação da capoeira da criminalidade Santos Porto afirmava: “Entre nós, em tempos que já vão
e do mundo do crime. Trata-se da lenta longe, os exercícios de agilidade conhecidos por capoeira-
ascensão e aceitação sociais da capoeira. gem floresceram mesmo entre os filhos das mais distintas
famílias”. O já citado Lima Campos lamentava, em 1906,
a perda de um suposto espírito autêntico da capoeira ao
afirmar que os capoeiristas daquela época “não fazem [do
jogo] verdadeiramente uma arte, uma profissão, uma insti-
tuição. (...) são mais, a bem dizer, mazorqueiros, navalhistas,
faquistas, enfim, estriladeiros avulsos, que própria, exclusiva,
profissional e arregimentadamente capoeiras”.22 Carvalho
menciona a versão do chefe de Polícia em 1904 sobre a
prisão de vagabundos em seguida à Revolta da Vacina: das
mais de 2.000 pessoas detidas por vadiagem, apenas 73 o
foram por capoeiragem. À gritaria e ao alarido exaltado das
maltas seguiu-se um silêncio quase total acerca da capoei-
ra. É, no entanto, necessário aprofundar a pesquisa no sen-
tido de comprovar a idéia segundo a qual a capoeira quase
desapareceu a partir da última década do século passado.
Na Bahia a perseguição alcança a década de 1920,
quando ficaram famosas as incursões do delegado Pedro
de Azevedo Gordilho, o Pedrito, contra os candomblés e os
As metamorfoses da capoeira: capoeiras. É preciso assinalar que a estratificação social em
Salvador era mais radicalmente marcada pela oposição se-
contribuição para uma história nhor/escravo (ou branco/negro) do que no Rio de Janeiro.
da capoeira De qualquer forma, maiores estudos deverão ser condu-
zidos para se determinar o nível de penetração social da
capoeira ao longo do século XIX na Bahia. Até o momento
não foi possível detectar a presença de maltas na Bahia do
século passado. Rego fala no capoeira-capanga assalariado
por potentados, provavelmente se referindo aos integran-
tes das maltas cariocas.23 Wetherell, Vice-cônsul britânico
na Bahia de 1842 a 1857, descreve uma luta comum na
Cidade Baixa na qual “(...) [os negros] são todo movimento,
saltando e mexendo braços e pernas sem parar, iguais a
macacos quando brigam (...)”.24
(22) Cf. Santos Porto, prefácio ao livro Educação física japonesa, Cia. Topográfica Brasileira, Rio de
Janeiro, 1905; Lima Campos, apud Drummond e Bandeira, op.cit., p.193.
(23) Cf. Rego, op.cit., p. 315.
(24) Cf. James Wetherell, Brasil: apontamentos sobre a Bahia 1842-1857, Ed. do Banco da Bahia. O
tradutor identifica a capoeira nesta descrição
Detalhe
Jogo de Capoeira, J. M. Rugendas
30
Capoeira
As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira
O desenvolvimento de uma capoeira “acadêmica” a par- Além de supervalorizar a capoeira na sua dimensão
tir da introdução de uma metodologia de ensino teve como marcial, privilegiando a técnica e até introduzindo movi-
pressuposto uma conjuntura político-ideológica na qual a mentos originários de outras lutas, Bimba buscava des-
questão da identificação e da construção de uma cultura vinculá-la do estigma da marginalidade. Como observa
nacional encontrava-se no centro do debate intelectual. De Vieira, para ingressar na academia regional, o “aluno” (daí
fato, nas décadas de 1920 e 1930, intelectuais seguidores de “escolarização”) deveria ser estudante ou trabalhador, ex-
diferentes tendências estéticas e políticas preocupavam-se cluindo-se os vagabundos (ou desempregados?). Ao lado
com a construção de uma “brasilidade” ideal, de um refe- desta segregação, Bimba assimilou aspectos formais pró-
rencial de valores culturais “autenticamente” nacionais. No prios da cultura erudita e, portanto, alheios ao ambiente
fulcro desta discussão estava a busca de conciliação entre a da cultura popular: exame de admissão, curso básico, ceri-
necessidade de modernização e, ao mesmo tempo, de pre- mônia de formatura e curso de especialização. Procurava,
servar as tradições. Foi, portanto, no bojo das transformações por esta via, a legitimação da sua capoeira como atividade
sociais e políticas relacionadas com o processo de industriali- educativa e incorporava os princípios militares de hierar-
zação que se plasmaram as condições para o surgimento de quia e disciplina.
uma capoeira renovada. A participação de Bimba e de seus alunos no desfile
Assim, a Revolução de 1930 assinala o estabelecimento oficial do Dois de Julho de 1936, a autorização legal para
de novas relações entre o Estado e as classes sociais. Com o funcionamento de sua academia em 1937 (na prática,
discurso e práticas populistas, a nova elite detentora do poder descriminalizando a capoeira), a sua atuação como pro-
político procura legitimar a tutela do Estado sobre a socieda- fessor no Centro de Formação de Oficiais da Reserva do
de e forja uma “ideologia estatal”, com a participação de in- Exército, de Salvador, entre 1939 e 1942, e a exibição para
telectuais modernistas, engajados no projeto de construção Getúlio Vargas, em 1953, constituem fatos emblemáticos
simbólica da nacionalidade. As Forças Armadas, imbuídas da da aceitação e da ascensão social da capoeira. Com efeito,
crença na sua missão de “purificadoras” da política, passam houve um contato do mestre com grupos de universitários
a identificar na educação instrumento de mobilização social, interessados em aprender a capoeira, e, além disso, muitos
imprescindível para a (re)construção da nacionalidade. Inten- de seus alunos eram membros da elite social de Salvador.
tam, desta forma, conciliar educação de massa e os princí- Por conseguinte, parece não ser destituída de verdade a
pios militares de disciplina e hierarquia. Assim, promovem, afirmação de que a regional teria sido orientada para as
a institucionalização da Educação Física como disciplina classes mais privilegiadas da sociedade..26
escolar. Nesse sentido, o Estado, como agente e promotor Uma das conseqüências do aparecimento da chamada
da cultura, apropria-se de manifestações da cultura popular. “capoeira regional” foi a falsa distinção entre dois “estilos”: a
É bastante significativa a inclusão da capoeira no programa “angola”, tida como mais antiga e tradicional, e a “regional”,
curricular da Polícia Especial, criada em 1932, servindo a dois considerada, pelos puristas, como uma descaracterização.
objetivos pragmáticos: como técnica de luta, considerada Na verdade, o conceito de “capoeira angola” surge como
como necessária para a formação profissional do policial, e resposta ao advento da regional de Bimba, a partir da ini-
como valor cultural, afirmador da nacionalidade.25 ciativa de Mestre Pastinha (Vicente Ferreira) de criar seu
Nesse contexto surge uma nova forma de capoeira, Centro Esportivo de Capoeira Angola, em 1941, na Bahia.
que tem como base programática a noção de eficácia, Ocorre, com freqüência, a confusão entre o “toque” de
cujo marco inicial pode ser simbolizado pela criação, por berimbau conhecido como “toque de Angola” (isto é, um
Mestre Bimba, da primeira academia em 1932, denomina- determinado ritmo que implica determinado tipo de jogo)
da Centro de Cultura Física e Capoeira Regional da Bahia. e um suposto “estilo angola” de jogo. Deve-se esclarecer,
É importante assinalar que até então – e a despeito das antes de tudo, que existem diferentes toques que determi-
considerações suscitadas pela fotografia de Christiano Jú- nam diferentes formas de jogo, sem que essa variedade de
nior – a capoeira era aprendida na rua; a roda se fazia em ritmos implique, necessariamente, a cristalização de dife-
espaço público e o aprendizado técnico excluía a idéia de rentes “estilos” ou “escolas” de capoeira.
treinamento formal. Ou seja, aprendia–se jogando, e não Um dos efeitos da disseminação das academias foi, por
treinando, como hoje. Ao fundar seu novo “estilo” no cri- um lado, o definitivo rompimento do elo que associava a
tério de eficácia da luta, Bimba implicitamente considerava prática da capoeira à marginalidade. Assim, o estigma de
a capoeira existente como fraca do ponto de vista marcial. “coisa de vagabundo” ou “de marginal” foi sendo gradual-
Partindo desta perspectiva, elabora um método de ensino mente desfeito pela realidade daqueles que compõem o
que, ao priorizar a formação do capoeirista como lutador, mundo da capoeira nos dias de hoje. Por outro lado, a difu-
tende a menosprezar o componente lúdico da arte. Tem são social provocada pelas academias teve sua contrapar-
início, desta maneira, um processo de “escolarização” da
capoeira, com o declínio do seu aspecto de “vadiação” e o (25) Cf. Vieira, op.cit., capítulo II.
gradual desaparecimento das rodas de rua. (26) Cf. Vieira, op.cit., p. 175.
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Foto: Lilia Menezes
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
As metamorfoses da capoeira:
contribuição para uma história
da capoeira
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Foto: Lilia Menezes
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A repressão à capoeira
Frederico José de Abreu
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Fenômeno que pode ter ocorrido pela via Nessa época, batuque era um termo genérico, com o
do tráfico interprovincial e pelo processo qual se denominavam indistintamente manifestações ne-
gras que se expressavam, quase sempre, mediante a união
migratório interno. Nessas cidades, a da percussão com a dança. O canto também entrava nessa
capoeira – incrustrada nos atos cotidianos combinação, fossem manifestações de natureza sagrada ou
– identificava-se como uso e costume dos profana, as quais podiam acontecer em separado, uma de
negros, presente mais constantemente nos cada vez, ou em conjunto. Dessa forma, samba, candomblé,
mundos do trabalho, da desordem social capoeira e outras danças e folguedos negros, apesar de dis-
tintos entre si, podiam ser todos denominados batuque.
(caso de polícia) e da festa negra. Parte significativa das observações históricas que obti-
vemos sobre o Brasil oitocentista deve-se aos olhares e às
impressões dos visitantes estrangeiros, os quais produziram
documentos essenciais para identificar características con-
cernentes aos usos e costumes dos negros, fossem eles
escravos, livres ou libertos, africanos ou crioulos (negros nas-
cidos no Brasil). Assemelhar o Brasil à África era uma consta-
tação muito comum entre os estrangeiros, principalmente
quando seus olhares recaíam sobre o cenário de cidades
como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, pertencentes, pela
ordem, às províncias da Bahia, Pernambuco e Rio de Janei-
ro. À época, três cidades portuárias, de vida movimentada,
e incrementadas pelo tráfico de escravos, até a completa
extinção deste em 1871. Nelas, predominava a população
negra, indispensável para o funcionamento da dinâmica da
vida urbana e principal responsável pelos movimentos das
ruas. Por essas condições, essas cidades se transformaram
em campos férteis para os batuques.
A repressão à capoeira Salvador, Recife e Rio de Janeiro – até onde as pesquisas his-
tóricas alcançaram – principais núcleos de formação e difusão
da capoeira, foram responsáveis pela migração dessa manifes-
tação para outros locais do Brasil, do século XIX até meados do
XX. Fenômeno que pode ter ocorrido pela via do tráfico interpro-
vincial e pelo processo migratório interno. Nessas cidades, a ca-
poeira – incrustrada nos atos cotidianos – identificava-se como
uso e costume dos negros, presente mais constantemente nos
mundos do trabalho, da desordem social (caso de polícia) e da
festa negra. Tais notícias, encontradas nos relatos dos estrangei-
ros, provêm também de fontes como: a oralidade, os jornais da
época, a crônica policial e a documentação judicial, dentre ou-
tras. A partir desses relatos, pode-se perceber que a repressão à
sua prática foi uma das maiores adversidades enfrentadas pela
capoeira em sua história.
Na primeira metade do século XIX, o Brasil vivenciou um
contexto sociopolítico agitado e permeado por movimen-
tos, conflitos e guerras pela independência, os quais culmi-
naram na libertação da nação brasileira do jugo de Portugal,
em 1822. Na seqüência, aconteceram revoltas populares, tais
como a Sabinada (1831-1833), na província da Bahia, a Caba-
nagem (1835-1840), na província do Grão-Pará e a Balaiada
(1838-1841), na província do Maranhão. Revoltas cronologica-
mente antecedidas pela Conspiração dos Alfaiates (1798), movi-
mento rebelde deflagrado em Salvador, que incorporou anseios
de liberdade de uma classe popular e socialmente subalterna
(os escravos), atraída para dela participar com aspirações de ex-
36
Batuque
J.M. Rugendas (1802 – 1858)
tinção da escravatura. Para agravar esse quadro de instabilidade sivos provocadores de sons e atos para os batuques. Uma
política, contribuíram os muitos levantes e insurreições escravas situação limite colocava-se perante a sociedade escravocra-
que aconteceram na primeira metade do século XIX, tanto nas ta, dependente do escravo para sobreviver: como poderia tal
zonas rurais como nas áreas urbanas do País, principalmente sociedade proibir os escravos de praticarem manifestações
em Salvador, entre 1807 e 1835. A exigüidade do tempo e a para eles indispensáveis, que impulsionavam seu viver e que
contigüidade geográfica desses acontecimentos na capital a essa sociedade provocava tantos incômodos e temores?
baiana e adjacências sugeriam a existência, nessa província, de Que incômodos e temores eram esses? Poderiam ser
um vigoroso cotidiano de rebeldia escrava. captados nas queixas da população em jornais da épo-
A vigência de um clima de conspiração negra – evidente- ca: “multidões de negros de um e outro sexo, das diversas
mente – pôs em alerta as autoridades e a população de Sal- nações africanas, falavam, dançavam e cantavam canções
vador, receosa da animosidade reinante, quase sempre de- gentílicas ao toque de muitos horrorosos atabaques”; “diver-
finida de forma clara ou subjacente em termos raciais. Para timentos estrondosos”; “sons e vozes dissonantes”; “bárba-
combater as rebeliões escravas, desencadeou-se um esforço ros costumes”; “convulsão inebriante e confusão”; “brigas”;
no sentido de identificar suas causas; dentre elas estavam os “cenas indecentes e imorais”; ou “danças horrorosas”… As
batuques negros. Proibir as manifestações que compunham queixas não se limitavam a desqualificar as manifestações
os batuques não era uma questão de fácil resolução, como culturais dos negros do ponto de vista da civilização. Acusa-
comprovava a renitente desobediência por parte dos negros vam, ainda, inversões da ordem social: ao ter lugar a prática
em usarem atabaques e também marimbas dentro dos mu- dos batuques “onde e quando os escravos queriam”, esses
ros e praias da cidade. Esses instrumentos foram proibidos negros exerciam – mesmo que precária e momentanea-
por posturas municipais, datadas de 1716, que, por força de mente – autonomia sobre os espaços ao tempo em que es-
lei, pretenderam disciplinar a vida do negro nas ruas da ci- ses batuques aconteciam. Como era de costume e quando
dade. Os atabaques e marimbas eram instrumentos percus- permitido, as manifestações negras, mesmo às margens do
37
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Havia, contudo, na elite, quem defendesse centro dos acontecimentos, faziam-se presentes nas festas
os batuques. Havia quem os interpretasse de rua do calendário católico. De acordo com as queixas,
nessas ocasiões “os toques e cantos dos negros predomina-
como “folguedos honestos e inocentes”, vam não se escutando nenhum outro”.
a exemplo de alguns eclesiásticos que Nos meandros dessas queixas podia-se perceber a impor-
argumentavam serem os escravos também tância visceral do batuque para a vida dos escravos e a altivez
filhos de Deus e, por assim ser, também que essa manifestação lhes proporcionava. Isso os viajantes
teriam direito à folga e ao gozo. estrangeiros observaram e noticiaram. Cronistas que eram,
admiravam-se com a animação e a disposição com que os
escravos aos batuques se entregavam, após uma pesada jor-
nada de trabalho forçado. Não acreditavam que estivessem
diante de escravos. De acordo com os seus relatos, pela dispo-
sição dos negros para os batuques, esses podiam ser interpre-
tados como fontes de prazer, completando-se como função
regeneradora do corpo, maltratado pela dureza da jornada do
trabalho escravo. Diante dessa circunstância, Rugendas, um
desses cronistas viajantes, admirou-se e sentenciou: “não con-
seguimos nos persuadir de que são escravos que temos dian-
te dos olhos”. A partir desse ponto de vista, pode-se afirmar
que o batuque (capoeira, samba, candomblé e outros folgue-
dos negros) proporcionava ocasiões para o escravo recuperar
sua humanidade brutalizada pela escravidão.
Havia, contudo, na elite, quem defendesse os batuques.
Havia quem os interpretasse como “folguedos honestos e
inocentes”, a exemplo de alguns eclesiásticos que argumen-
tavam serem os escravos também filhos de Deus e, por as-
sim ser, também teriam direito à folga e ao gozo. Até mesmo
A repressão à capoeira alguns senhores viam nos batuques uma oportunidade para
os escravos esquecerem-se, por alguns momentos, da sua
triste condição: o prazer para esconder a dor.
Aquela situação limite a que se fez referência esboçava-se
como um dilema pertinente a toda a sociedade: grave, consi-
derando o contexto histórico da época. Pela existência de um
cotidiano de rebeldia negra, o sistema escravocrata em vigor
tentava evitar todas as atividades que pudessem provocar
ajuntamentos de negros e que acontecessem fora da órbita
e da vigilância dos senhores e da polícia. Nesse caso, enqua-
dravam-se os batuques, pois, para se realizarem, provocavam
ajuntamentos de negros, vistos pelas autoridades como sus-
peitos de manobras conspiratórias e fontes alimentadoras das
revoltas escravas que estavam tendo lugar na Bahia à época.
Opiniões sobre o batuque emitiam as autoridades go-
vernamentais, eclesiásticas, policiais, senhores de escravos,
parlamentares e pessoas do povo. Pensar, opinar e influir na
decisão de reprimir ou permitir a sua prática todos podiam.
Porém, a decisão de fazer isso, considerando a gravidade da
situação exposta nas queixas e ao se associar os batuques ao
cotidiano da rebeldia negra, cabia ao Governo. Até porque,
desde a criação do Calabouço, em 1767, local público de
castigos dos escravos, os senhores não eram mais estimu-
lados a castigar os seus escravos privadamente e o controle
dos negros na rua não era mais da alçada dos seus proprietá-
rios, e, sim, do poder público, do Estado e do aparelho policial
a ele subordinado.
38
Capoeira
A repressão à capoeira
Negros lutando
Augustus Earle, (1793 – 1838)
No plano do poder municipal, responsável pelas posturas tica mais branda em comparação com a do seu antecessor,
municipais (leis que procuravam disciplinar as pessoas e as ati- recomendando à polícia maior moderação na repressão. Sua
vidades exercidas nas ruas), não se conseguia interromper a política oscilava entre o permitir e o reprimir os batuques, na
ação dos batuques nem bloquear a iniciativa dos negros em medida em que tentava conciliar duas razões inversas: reprimi-
realizá-los. Na verdade, com os recursos de controle vigentes, los, em função do conteúdo das queixas advindas dos estratos
as autoridades não tinham mais domínio sobre a situação. Proi- socialmente mais influentes da população; ou permiti-los, con-
bir a prática daquelas manifestações ou prender os batuqueiros siderando as recomendações dos eclesiásticos e de alguns
(seus participantes) não era mais suficiente, não cessava a cau- senhores de escravos. Os termos dessa conciliação se expli-
sa. Era necessário articular uma nova política de repressão, que citam nas medidas tomadas pelo governador no sentido de
afastasse os temores da população, norteasse as ações policiais controlar aquela prática dos negros, determinando os locais e
e efetivasse posturas municipais específicas de repressão. as oportunidades para acontecerem. Não mais poderiam ser
Colocado nesses termos, o primeiro a enfrentar a situa- realizadas a qualquer hora e lugar, como alegavam as velhas
ção foi o Conde da Ponte, governador da Bahia entre 1804 queixas. Em compensação, também estariam assegurados
e 1808. Sua opção foi por uma política de combate sem os momentos de lazer e festa tão necessários aos escravos,
tréguas aos batuques, recomendando, inclusive, ações vio- como a qualquer ser humano, de acordo com as solicitações
lentas por parte da polícia. A finalidade era radical: extinguir de religiosos e senhores. Tudo, porém, de forma controlada.
os batuques. Essa era a única forma, segundo ele, de sanar a Quanto ao alerta à condição do batuque como fonte
questão: subjugar os batuqueiros e evitar oportunidades que alimentadora das revoltas escravas, o Conde procurava ate-
favorecessem ações conspiratórias dos escravos. Medidas nuar esse receio, enfatizando serem os ajuntamentos dos
tomadas em vão, pois os batuques prosseguiram como se negros oportunidades muito mais favoráveis para a geração
fossem incontroláveis, assim como inevitáveis continuaram de desentendimentos entre eles, movidos por diferenças ét-
sendo as perplexidades e reclamações dos que se achavam nicas – remontáveis à África e às rusgas provocadas pelas di-
por eles perturbados. As rebeliões escravas prosseguiram ficuldades existenciais dos negros no Brasil escravocrata. Na
enquanto o Conde da Ponte governou a Bahia. verdade, a política do Conde dos Arcos, quanto aos efeitos,
Em seguida, de 1808 a 1818, a Bahia foi governada pelo igualou-se à do Conde da Ponte: os batuques continuaram
Conde dos Arcos, que procurou colocar em ação uma polí- perturbando o conforto físico e a paz de espírito da socie-
39
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A repressão à capoeira teve diversas fases, dade escravocrata baiana. Naquele tempo, como o sistema
desde a simples proibição, passando pela escravocrata só podia funcionar dependente da exploração
de trabalho do negro, para este, por sobrevivência, os ba-
aplicação dos açoites até ser tratada como tuques continuaram indispensáveis. Prosseguiram como se
uma questão de Estado pelo regime fossem incontroláveis, assim como inevitáveis, as perplexi-
republicano, que a enquadrou como crime dades e reclamações dos que se achavam por eles pertur-
no Código Penal da República em 1890. bados. Nem as reclamações dos jornais, nem as proibições
impostas pelas posturas municipais, nem os estragos que as
perseguições policiais lhes infligiram, conseguiram interrom-
per o curso da sua história embalada pela incrível força que
têm as coisas quando elas precisam acontecer, como diria o
compositor e cantor brasileiro Caetano Veloso.
Voltando à lista das queixas, vamos encontrar no meio
delas o conceito de barbaridade atribuído aos batuques, pre-
conceito amplamente absorvido e difundido pelas elites do-
minantes durante todo o século XIX e boa parte do século XX,
e que, na verdade, ainda não morreu de vez. Capoeira, samba,
candomblé, para as elites, comprometiam o modelo civilizador
que desejavam, por não estarem concernentes aos costumes
e procedimentos públicos dos países por elas considerados
mais civilizados (os europeus). Vale dizer que, em nome desse
preconceito, forjaram-se argumentos tanto para afastar das
zonas nobres da cidade a prática dessas manifestações, como
para proibi-las de acontecer. Ficavam no desejo, sustentado
por uma retórica vazia e alguma mentalidade progressista, pois
o modelo civilizador das elites não se concretizava satisfatoria-
mente, impedido por profundas causas socioeconômicas. Na
A repressão à capoeira verdade, pode-se afirmar que o desenvolvimento econômico,
a modernização e transformação urbana que se registravam
nas principais cidades do Brasil, alinhavam-se com o que se
tinha de mais atrasado para a época em termos do trabalho e
sua organização: a escravidão, condição humana considerada,
àquela altura do tempo (século XIX), uma barbaridade para um
estrangeiro, a quem se pretendia bem impressionar, oferecen-
do-lhe um modelo europeizado. A escravidão era suficiente
para reverter essa expectativa.
Nessa exposição generalizada de combate ao batuque,
feita até aqui, podem-se identificar os elementos que norte-
aram as ações repressivas às manifestações negras. Neces-
sário, contudo, é dizer que cada uma dessas manifestações
enfrentou contextos específicos, como também particulares
foram as ações de resistência vivenciadas pelos praticantes
de cada uma delas. Isso fez com que cada qual, apesar do
significativo número dos elementos comuns que possuíam,
tivesse uma história própria à semelhança da capoeira. So-
bre essa manifestação encontram-se, desde antes do século
XIX, notícias da sua presença no Brasil. Desde então, tem-se
também notícias sobre a repressão aos capoeiras, fator tão
implícito à antigüidade da capoeira que a história desse tem-
po, para ser pesquisada, estudada e contada, tem entre suas
principais fontes a crônica e a documentação policial.
Essas fontes devem ser analisadas com cuidado para
delas se eliminar o jargão policial, os preconceitos contidos
na narrativa, a abordagem viciada, que podem contaminar a
40
Capoeira
A repressão à capoeira
visão histórica sobre os capoeiras de antigamente. Tomadas te de “Voluntários da Pátria”, do qual fizeram parte capoeiras
essas precauções, pode-se, por meio desses documentos, em defesa do Brasil na Guerra do Paraguai (1864-1870).
perceber dos capoeiras os anseios, os ritos, os modos de É necessário dizer que a política e as ações de repressão à
comportamento social e hábitos, as maneiras como se tra- capoeira se sustentavam num estereótipo formulado pela po-
tavam, as gírias, a geografia urbana por eles permeada, as ar- lícia, que considerava os capoeiras como desordeiros, valen-
mas utilizadas, dados biográficos, dados sobre a cor, a etnia, tões, vadios e malandros. Tipificação essa na qual certamente
o vestuário, a ocupação, a profissão, os rituais de conflitos não se enquadravam todos os capoeiras e que não era exten-
entre eles e entre eles e a polícia, e as táticas e os momentos siva aos praticantes não negros, dentre esses aristocratas, poli-
oportunos para expressarem sua arte. ciais, membros da elite, estudantes etc. Nesse bloco devem-se
A repressão à capoeira teve diversas fases, desde a sim- incluir jovens que se rebelaram contra algum autoritarismo fa-
ples proibição, passando pela aplicação dos açoites até ser miliar e educacional. Eles escolhiam a rua como ambiente de
tratada como uma questão de Estado pelo regime republica- liberdade e se entregavam à prática da capoeira como forma
no, que a enquadrou como crime no Código Penal da Repú- de divertimento e um recurso de luta que lhes serviam para se
blica em 1890. Antes de chegar a esse ponto, antecederam- situarem e se afirmarem no espaço da rua.
se muitos conflitos entre os capoeiristas e a polícia. Conflitos Deve-se dizer que no seio da elite em que se encontra-
agravados de tal ordem que poderemos definir esse período vam praticantes de capoeira surgiu e tomou corpo a idéia
(compreendido entre a segunda metade do século XIX e as de que a capoeira era uma ginástica saudável e uma luta
primeiras décadas do século seguinte) como tumultuoso, eficiente e que os elementos perniciosos que lhe eram im-
tendo como cenário principalmente as cidades do Rio de putados seriam provenientes dos seus praticantes marginali-
Janeiro, Recife e Salvador, pelas razões já explicadas. zados (negros, malandros, vagabundos, proletários etc.).
As tradições da capoeira nessas cidades eram muito pa- No Rio de Janeiro, em Recife e em Salvador, como reação
recidas não só na forma de se expressarem, mas também na à repressão, os capoeiristas agiram colocando em ação táticas
equivalência do comportamento social dos seus praticantes. de resistência, delineadas à base de despistes e simulações
Os capoeiras dessas cidades, geralmente, eram trabalhadores para enganar a polícia. Procuravam praticar a capoeira em lu-
de rua (carregadores, carroceiros, vendedores ambulantes, fei- gares periféricos, ou nos principais bairros da cidade, quando
rantes, serviçais de limpeza) ou ligados à zona portuária (esti- e onde a vigilância policial era menos assídua. Essas táticas
vadores, trapicheiros e remadores). Cabe salientar que, dentre eram bem ao uso dos capoeiras baianos de antigamente, que
as ocupações desses capoeiras, se incluíam algumas conside- também incluíram entre suas iniciativas de resistência a ne-
radas como próprias de vadios e vagabundos, como pescado- gociação com a polícia, conseguindo licença para a vadiação
res, meninos de recado e biscateiros, dentre outras. Sabe-se (sinônimo de capoeira). No plano da resistência, certamente
também da predileção dedicada aos ambientes festivos. Con- não faltaram conflitos entre os capoeiristas e as forças policiais,
traditoriamente, até para muitos daqueles que tinham receio cujos combates às vezes se decidiam em favor dos primeiros,
da presença dos capoeiras nas festas populares, seu compa- que tinham como trunfo maior conhecimento da geografia
recimento era considerado essencial para a animação da par- das ruas e superioridade nos combates corpo-a-corpo. A his-
te profana das festas, juntamente com o pessoal do samba, tória da repressão também enriqueceu o imaginário popular
como acontecia na Bahia e no Rio de Janeiro. Mesmo quando com narrativas e lendas que atribuíam aos capoeiras poderes
eram acusados pelos tumultos provocados nessas festas. sobrenaturais, como seres humanos capazes de se transfor-
Comum a todas essas cidades foi o processo repressivo, marem em paus, plantas e animais quando perseguidos.
muito embora tivesse variado em grau de um para outro lo- Os tempos tumultuosos da capoeira, como revelam os
cal, tendo sido mais veemente no Rio de Janeiro. A repressão dados históricos, foram mais freqüentes e intensos na cidade
se deu por meio da proibição da prática da capoeira, por pos- do Rio de Janeiro, cidade na qual os capoeiras, tiveram mais
turas municipais, por perseguições e prisões, muitas delas ar- influência e participação na vida cotidiana do que em qual-
bitrárias, pelo abuso dos castigos corporais e pelos trabalhos quer outro local no século XIX. O noticiário dos jornais da épo-
forçados e deportações. Fez parte da repressão, ainda, o re- ca dão conta disso ao narrarem as ações das maltas (grupos
crutamento forçado para o Exército e a Marinha, práticas re- de capoeira adversários entre si) em conflito com elas próprias
montáveis aos tempos coloniais brasileiros quando ainda não e a policia, para demarcarem geograficamente parte da cida-
havia forças armadas profissionalizadas e o recrutamento se de, com o fim de exercerem o domínio e o poder paralelo. As
dava na ruas e tinha como foco os considerados malandros, notícias desses jornais acusam a veemente participação dos
vadios e criminosos. Além do mais, nesse período, o Exérci- capoeiras do Rio em outros aspectos da vida da cidade, como
to e a Marinha configuraram-se como casas de correção de na vida política, com sérios envolvimentos em eventos como
menores, abastecidas pelo recrutamento inclusive de negros a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da Repú-
escravos fugidos que, com outros nomes, poderiam, então, blica (1889). Foi muito por conta do comportamento social
ingressar nas Forças Armadas. É indispensável registrar que a dos capoeiras no Rio de Janeiro que se justificou a inclusão da
campanha governamental visava à formação do contingen- capoeira como crime no Código Penal da República.
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w
Um nome é destacado como ícone nesse Ao enquadramento da capoeira com crime no Código
processo de virada histórica da capoeira, Penal, seguiram-se outras medidas de ordem policial concre-
tizadas na prisão dos principais capoeiras do Rio e sua ime-
Mestre Bimba, o primeiro a exercê-la como diata deportação para a ilha de Fernando de Noronha, que
um ofício. Aquele que garantiu pela via funcionava como uma colônia penal. Essas ações repressivas
oficial o direito de ensiná-la, um precursor foram determinantes para que a tradição da capoeira cario-
das lições que fariam com que a “vingança ca perdesse força de continuidade e praticamente desapa-
histórica” da capoeira se realizasse: ser recesse. Alguns membros que escaparam da repressão en-
contraram sobrevida no meio da malandragem boêmia – no
hoje solicitada para solucionar mazelas samba e no carnaval. Em Pernambuco, por razões ainda não
sociais das quais no passado era tida como bem estudadas, a capoeira no mesmo período entra em de-
causadora. cadência e, como manifestação, encontra salvaguarda, mol-
dando os passos vigorosos do frevo, manifestação cultural
pernambucana.
Enquanto isso, a tradição baiana ganha maior vitalida-
de, mesmo tendo experimentado, ao longo do século XIX,
momentos de repressão e sendo ações dos seus capoeiras
interpretadas como equivalentes às do Rio de Janeiro. Mas,
historicamente, os capoeiras baianos surpreenderam com
outras ações diretamente dirigidas para a preservação e con-
tinuação da capoeira como uma manifestação artística, um
divertimento, uma oportunidade para vadiar (folgar, brincar,
divertir-se), mesmo sem eliminar suas possibilidades como
defesa pessoal. Assim, eles desenvolveram relações de afe-
tividade e procuraram afirmá-la socialmente, usando como
um dos instrumentos para isso fazê-la presente no calen-
dário das festas populares da Bahia e transformando-a num
A repressão à capoeira divertimento ao agrado do povo baiano.
A responsabilidade por essas ações pertence a uma ge-
ração de mestres que, apesar de ter permanecido pratica-
mente anônima, foi responsável pela formação, a partir dos
anos 30, de mestres na arte de civilizar. Eles vão modificar os
modos e maneiras de comportamento dos capoeiras: refinar
sua forma de jogar; acentuar os aspectos socializadores da
prática, historicamente inerentes a essa manifestação, man-
tidos mesmo quando vigoraram os momentos conturbados;
atribuir-lhe valores e efeitos socioeducativos; e fazer com que
a capoeira se destacasse como um símbolo de identidade
nacional. Dessa forma, estavam estabelecidas as bases para
transformar a criminalização da capoeira numa incongruên-
cia do Código Penal. Um nome é destacado como ícone nes-
se processo de virada histórica da capoeira, Mestre Bimba, o
primeiro a exercê-la como um ofício. Aquele que garantiu
pela via oficial o direito de ensiná-la, um precursor das lições
que fariam com que a “vingança histórica” da capoeira se
realizasse: ser hoje solicitada para solucionar mazelas sociais
das quais no passado era tida como causadora.
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w
O CAPOEIRA
(Oswald de Andrade, 1890-1954)
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w
O CAPOEIRA
(Oswald de Andrade, 1890-1954)
43
A Guarda Negra:
a capoeira no palco da política
Carlos Eugênio Líbano Soares
ÃO
IA D A ABOLIÇ
HISTÓ R M
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POPULA E P Ô S FIM À ES A R A M CONTRA , C O M O REFLE
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ECRETO L, SE MO BAR A C
PELO D CESA IS A B E
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R O N O , A PRIN E S A V ONTAD
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O M A LEI ÁUR
MO C
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Antes que um fenômeno apertado na Esses negros estariam movidos por sentimentos de sub-
estreita margem entre o 13 de maio de serviência, introjetados durante séculos de escravidão, por isso
não tinham capacidade de perceber que a oposição à Monar-
1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda quia era bem anterior à Lei Áurea e que o republicanismo fora
deita raízes mais profundas em outra alimentado por longos anos também pela perpetuação do re-
manifestação da cultura brasileira, que, gime do cativeiro, obra da Monarquia em toda sua história.
somente há poucos anos, começou a ter sua Dominados por sentimentos ultrapassados, pré-mo-
história retirada das sombras: a capoeira. dernos, primitivos (na linguagem da época), esses negros
estavam condenados pela modernidade. Seu mundo de-
sapareceria quando o regime monárquico fosse extinto, no
caso após o 15 de novembro de 1889, quando a Monar-
quia caiu como um castelo de cartas. Esse era o sentimen-
to de grande parte da intelectualidade brasileira da virada
do século XX.
Outra visão emana dos artigos do jornal Cidade do Rio,
dirigido pelo jornalista negro José do Patrocínio. Entusiasta
da Abolição, via a Guarda Negra, nos seus primeiros meses,
como a encarnação da vontade política da gente negra re-
cém-arrancada do cativeiro. Após séculos de servidão, essa
população podia, pela primeira vez, expressar-se politica-
mente em praça pública, e, logicamente, sua mensagem era
de apoio à medida que a tinha tirado das senzalas, mesmo
que manifesta no calor da hora do radicalismo político do
contexto da Abolição, à sombra do ressentimento de cente-
nas de fazendeiros, antigos pilares do Império, que perderam
suas propriedades e não foram indenizados, e de republica-
A Guarda Negra: nos irados pela súbita popularidade alcançada pela monar-
a capoeira no palco da política quia, na construção da imagem de “Isabel a Redentora”.3
Essas visões polarizadas foram tragadas pela avalanche
política do Quinze de Novembro. A República colocou-se
como uma pá de cal nesse aceso debate, que foi visto como
parte de um passado já extinto, que tinha de ser jogado nos
museus da memória, substituído pelas novas questões que o
regime recém-implantado colocava na ordem do dia: cidada-
nia, modernização política, emigração, federalismo...
A nova historiografia brasileira, que veio à luz nos cente-
nários da Abolição e da República, ao fim da década de 1980,
trouxe novas temáticas e novas evidências que a história ofi-
cial não suspeitava. E por caminhos também inesperados.
A Guarda Negra foi um dos alvos dessa revisão da his-
tória brasileira, que ainda não acabou. Antes que um fenô-
meno apertado na estreita margem entre o 13 de maio de
1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda deita raízes
mais profundas em outra manifestação da cultura brasileira,
que, somente há poucos anos, começou a ter sua história
retirada das sombras: a capoeira.
(1) A Lei Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888, extinguindo a escravidão no Brasil.
(2) Para um retrato do sentimento anti-Guarda Negra latente na elite branca da época, ver os
artigos de Rui Barbosa escritos no jornal Diário de Notícias em 1889. BARBOSA, Rui. Campanhas
Jornalísticas. Império (1869-1889. Obras Seletas, v. 6, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1956
(principalmente o artigo intitulado “A arvore da desordem” publicado em 18 de agosto de
1889), pp. 189-192.
(3) Para a construção da imagem da “Loura mãe dos brasileiros” ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Dos
males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira” in GOMES, Flávio
dos Santos & CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quase-cidadão: história e antropologias da pós-
emancipação no Brasil, Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007.
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Vista por décadas como manifestação trazida da África, Assim, a capoeira como tema histórico passou nos últi-
desenvolvida pelos escravos nas senzalas dos primórdios mos anos por uma verdadeira metamorfose de significados
da colônia e transplantada para o Quilombo dos Palmares (se bem que não consensuais dentro da comunidade de
até alçar vôo como marca da cultura negra, a capoeira pesquisadores). E a política foi uma das dimensões novas
lentamente passa a ser relida como criação da cultura que se abriram nos últimos tempos.
escrava no Brasil, criada por africanos e crioulos (pretos Em meu trabalho4 esforço-me em mostrar o peso que a
nascidos no Brasil) no ambiente urbano, e que teve seu Guerra do Paraguai teve na transformação cultural operada
espaço de atuação nas vilas e cidades do último século na capoeira no final do século XIX. Maior conflito bélico do
da colonização portuguesa. De forma de resistência aos Brasil no século retrasado, com duração de cinco longos
senhores e ao Estado escravista, passa a ser vista como anos, essa guerra abriu caminho para transformações que
instrumento de dissuasão dos conflitos internos dentro acabaram levando ao colapso da ordem monárquica.
da própria camada escrava urbana. De brincadeira gerada No fragor do combate, ela teve um impacto no imagi-
em oposição ao trabalho servil e degradante (vadiagem), nário da sociedade brasileira que perduraria por décadas.
passa a ser vista como elemento indispensável no contro- Para os pretos e pardos pobres, livres e escravos da cida-
le por escravos e negros libertos do ambiente de rua, um de do Rio de Janeiro, principais praticantes da capoeira na
verdadeiro poder paralelo, em que vendedores ambulan- época, ela se corporificou nos batalhões recrutadores, que
tes e negros de ganho (escravos que vendiam mercadoria
ou serviços no espaço público) controlavam o comércio
(4) SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras na Corte Imperial
informal da cidade colonial. 1850-1890, Rio de Janeiro: Ed. Access, 1994.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
No combate corpo a corpo, os fuzis de vigiavam as ruas e invadiam as moradias coletivas em bus-
pederneira, carregados pela boca a cada ca de “voluntários” da pátria. Presos, enjaulados, amarrados,
os negros capoeiras eram levados aos magotes a envergar
tiro, eram de pouca valia após a primeira as fardas do exército imperial nos campos do sul.
descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos No combate corpo a corpo, os fuzis de pederneira, car-
nas ruas da distante cidade do Rio de regados pela boca a cada tiro, eram de pouca valia após a
Janeiro, eram a arma de que se valia o primeira descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos nas
soldado negro ou mulato brasileiro, não ruas da distante cidade do Rio de Janeiro, eram a arma de
que se valia o soldado negro ou mulato brasileiro, não ape-
apenas do Rio, mas também de Recife nas do Rio, mas também de Recife e Salvador. Nos campos
e Salvador. Nos campos da peleja, os da peleja, os capoeiras forjaram sua lenda.
capoeiras forjaram sua lenda. A volta para casa foi recebida em triunfo. Saídos como
marginais, obrigados a assentar praça nas fileiras de um de-
sacreditado exército, eles retornaram como heróis. Alguns
cobertos de medalhas, muitos libertos da escravidão pelo
“tributo de sangue” ao servir nas forças armadas (escravos
eram alforriados antes de ingressarem no serviço militar).
Desmobilizados, estavam de novo nas ruas, alguns querendo
reaver os “territórios” perdidos após a remessa para o front.
Mas a elite política tinha outros planos. Impressionados
pela agilidade dos capoeiras no combate, os antigos oficiais
comissionados, agora membros da elite política da cidade
do Rio de Janeiro, pleitearam nas sombras transformar os
ex-combatentes em aliados políticos, capangas à disposi-
ção das novas refregas do tempo de paz.
Assim, a capoeira entra no palco da política. Não a
A Guarda Negra: micropolítica dos escravos, como se viu nos cinqüenta
a capoeira no palco da política anos do século XIX, mas a política dos salões, dos parti-
dos Liberal e Conservador, das ante-salas do Parlamento,
das eleições concorridas, dos votos cabalados, do regime
parlamentarista.
Era a época da Flor da Gente, grupo de capoeira que
bairr da Glória. Arregimentada por um impor-
dominava o bairro
tante membro do d Partido Conservador – Duque-Estrada
tradi
Teixeira, de tradicional família política – ela entra nos em-
bates da alta política
pol na eleição de 1872. A golpes de na-
valha, rasteira, rabos
ra de arraia e cabeçadas, os capoeiras
da Flor da Gente – veteranos de combates militares no Rio
Paraguai – varreram
var os eleitores liberais das urnas, e os
o
candidatos opositores dos palanques.
A vitória de
d Duque-Estrada para a Câmara de Deputa-
dos lançou um novo jargão na imprensa política da épo-
ca: a Flor da Gente. O apelido nasceu quando Duque-
Estrada foi interpelado no Parlamento sobre de quem
era a gente que recebeu ordem para atacar nas ruas
candidatos e eleitores de oposição. Ele respondeu: “Da
gent da flor da minha gente.” Esse apelido per-
minha gente,
correria vinte
vint anos da vida política da cidade do Rio.
Esses capoeiras
ca não agiam somente a soldo, como
denuncia a imprensa liberal da época. Eles eram
denunciava
também
tam mobilizados pela crise da escravi-
dão, que era mundial. Nos Estados Unidos,
uma guerra civil tinha irrompido quando
o presidente eleito Lincoln deixou claro
seus planos emancipacionistas. A derrota dos confedera-
dos deixou a elite brasileira sozinha no continente como
mantenedora do regime do cativeiro nas Américas.
A vitória no Parlamento da Lei do Ventre Livre (1871),
apoiada pelo Governo e pelo Partido Conservador, teve for-
te impacto no imaginário da época. Essa lei decretava serem
livres os filhos de escravos e, por essa razão, foi combatida
por liberais e por facções conservadores temerosas do futuro
da mão-de-obra escrava nas fazendas. O Imperador Pedro II,
sua filha – a regente que assinou o decreto, pois o titular do
trono estava enfermo – e a liderança do Partido Conservador
passaram a gozar de alto prestígio junto à população negra do
Rio de Janeiro.
Os capoeiras sorviam esse clima político, passando a agir
como monarquistas empedernidos, açulados por políticos por
suborno, cumplicidade e impunidade frente aos desmandos
da justiça e da polícia dos brancos. Assim, forjou-se essa estra-
nha aliança: nos dias ordinários, os capoeiras dominavam as
ruas, intimidando rivais, achacando vendedores, protegendo
escravos fugitivos, fazendo pequenos furtos, desafiando a or-
dem policial com suas maltas (quadrilhas), gozando de prote-
ção de seus patronos políticos, para garantir sua escapada das Corte Imperial do Rio de Janeiro. Em 1878, a chegada ao
celas em caso de algum policial desavisado tê-los prendido. poder dos liberais – depois de uma década de ostracismo
Nos dias de eleição eles se juntavam nas redondezas dos – trouxe a primeira campanha policial contra os “capoeiras
locais de voto – na época, invariavelmente igrejas – e ataca- políticos”, como era denunciado na imprensa. Campanha
vam eleitores de oposição (o voto era aberto) ou fraudavam as que não deu em nada.
urnas fingindo ser eleitores ausentes (os populares fósforos), o Então, o clima político que propiciou a Guarda Negra es-
que costumava romper em grossa pancadaria. Também com- tava presente 15 anos antes. Dom Pedro II e sua herdeira do
pravam voto e atacavam urnas em que a vitória dos oposito- trono, Isabel, eram vistos como simpatizantes de causas abo-
res era certa. licionistas. Os políticos paulistas, que dominavam o Partido
Essa fama política logo se alastrou para outros campos. Republicano, eram conhecidos como irados senhores de es-
O eixo da economia do café, por volta de 1870, tinha clara- cravos, que arrancavam crioulos de suas famílias no Nordes-
mente se deslocado para São Paulo, deixando para a província te para serem castigados nas senzalas do Vale do Paraíba.
fluminense campos devastados e terra esgotada. Esses “no- Essa visão não aparecia na época da Guarda por causa
vos ricos” estavam marginalizados do jogo político imperial, de conveniências políticas: para os defensores, era cons-
amplamente dominado pelas elites tradicionais do Sudeste e trangedor filiar-se a movimentos tidos pela imprensa po-
do Nordeste. As políticas emancipacionistas ameaçavam suas lítica como autoritários e criminosos, como eram vistos os
fazendas escravistas, alimentadas pelo tráfico de escravos do capoeiras da Flor da Gente da década de 1870. Para os que
Nordeste e do Norte. atacavam, lembrar-se dessa fase recente era escapar do
Eles eram a alma do Partido Republicano. Fundado em contexto da Lei Áurea, que podia trazer sombrias lembran-
1870, era uma agremiação insignificante, mas que reunia ças do passado escravista de alguns políticos “liberais”.
membros renomados da elite intelectual. Seu jornal A Re- Assim, ambos os formadores de opinião pública da
pública fazia constantes ataques ao governo conservador. É época eram incapazes de compreender a raiz mais pro-
nesse contexto que temos que entender o primeiro conflito funda que dera origem à Guarda Negra. O primeiro embate
envolvendo capoeiras e republicanos: a tentativa de “empas- envolvendo-a foi o ataque ao comício de Silva Jardim, na
telamento” do A República. Sociedade Francesa de Ginástica, na Rua da Travessa da
Em 28 de fevereiro de 1873, logo após a vitória de Duque- Barreira, em 31 de dezembro de 1888. Silva Jardim percor-
Estrada e de sua Flor, e após candentes denúncias da “promis- ria o País, financiado pelos republicanos, aproveitando-se
cuidade” entre políticos e capoeiras, o jornal é vítima de pe- da súbita impopularidade da monarquia frente às classes
dras, gritos, tentativa de arrombamento. Um “moleque” sobe proprietárias, revoltadas com a perda de seus investimen-
na tabuleta do jornal e a pinta de preto. O Governo é acusado tos “semoventes”.
de cumplicidade. Naquela noite, os membros da Guarda tentaram entrar
Por quase toda a década de 1870, o condomínio entre à força no recinto onde Silva Jardim discursava. A seleta pla-
políticos monarquistas e negros capoeiras deu as cartas na téia de assistentes prontamente colocou-se para enfrentar
49
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Esse Partido Capoeira expressava a “corja de assassinos”. Cercados, eles sabiam que a saída
interesses imediatos de grupos urbanos seria uma autêntica pancadaria. E realmente foi. A polícia –
cuja chefia ficava a alguns metros – foi totalmente omissa.
marginalizados e trabalhadores, o Havia sérias suspeitas de que a cilada fora armada com co-
repúdio aos políticos mais aferrados ao nhecimento de altos funcionários do Governo. Mas o que
sistema escravagista e, também, uma clara poucos sabiam é que o rastilho de pólvora tinha sido aceso
identidade racial. meses antes.
Em 12 de julho de 1888, um fato raro desponta nos
anais da história da polícia carioca. Uma malta inteira de
capoeiras foi presa de uma única vez. E não era uma malta
qualquer. Era o grupo que dominava o Campo de Santana,
grande área aberta no coração da cidade. Esse grupo era
conhecido como Cadeira da Senhora, remetendo à ima-
gem de Santa Ana, avó de Cristo, que aparecia no frontis-
pício da Igreja de Santana, antes de ser derrubada para a
construção da estação central da Estrada de Ferro Dom
Pedro II (atual Central do Brasil).
Era raro nos informes de polícia a prisão de toda uma
malta, até por conta da impunidade de que gozavam graças
Co te. Eles
à ligação com políticos importantes da Corte. es foram
o a fi-
vam que seriam recru-
chados e os informes de jornais indicavam
ntecessores da década
tados para o Exército – como seus antecessores
de 1860. Mas, estranhamente, foram todos soltos no dia se-
guinte. Seus nomes aparecem nas fichas has de entrada da Casa
de Detenção da Corte, o grande presídiodio da cidade.
Esses mesmos nomes aparecerão, rão, em primeiro de
A Guarda Negra: elizmente as fichas da
janeiro de 1889, na imprensa – infelizmente
a capoeira no palco da política Casa de Detenção dessa data foram perdidas para sempre
– como asseclas do bando que cercou cou a Sociedade Fran-
cesa no fatídico 31 de dezembro. Fica claro que os dois
eventos estão relacionados, assim como a campanha de
recrutamento da Guerra do Paraguai ai tem relação com a
politização da capoeira na década dee 1870.
O que une os dois eventos é o que a imprensa do
período chamou de Partido Capoeira: a: uma forma de atu-
ação política – antes que um grupo específico – centra-
vadores e capoeiras
da na aliança entre políticos conservadores
egressos da Guerra do Paraguai que juntaram forças por
canais subterrâneos, embora povoassem ssem a imprensa do
País por quase vinte anos. Esse Partidodo Capoeira expres-
sava interesses imediatos de gruposs urbanos margina-
lizados e trabalhadores, o repúdio aos políticos mais
aferrados ao sistema escravagista e, também, uma
clara identidade racial.
Essa é outra dimensão da Guarda da Negra, ainda
dernos: ela é a
não trabalhada pelos estudiosos modernos:
mo negro no
primeira instituição que utiliza o termo
sentido positivo e político da palavra, e autono-
urante
meado. Em outras palavras, negro durante
ativa,
séculos foi palavra fortemente pejorativa,
capa-
que remetia a escravo, fraqueza, incapa-
cidade de luta, submissão. Africanoss e
crioulos ofendiam-se mutuamente no
Brasil, chamando-se de negros. Essee
50
Capoeira
A guarda negra: a capoeira no palco da política
uso tem relação com o sentido nefasto de “nigger” nos Es- na cidade. Tudo indicava que o gabinete João Alfredo era
tados Unidos, até pouco tempo um palavrão no seio do cúmplice em parte, daquela situação, e os republicanos,
movimento negro (sic) americano. de algozes do regime, se tornaram vítimas de uma cons-
A palavra passa a ter um sentido político, não por coin- piração urdida pelos poderosos. A Guarda Negra, de grupo
cidência no momento histórico em que os crioulos se tor- simpático para alguns intelectuais, que ocupava espaço na
nam maioria absoluta na comunidade escrava e de negros imprensa representando essa parte normalmente excluída
livres do País, fenômeno apontado desde o fim do tráfico da sociedade (algo inédito para o Brasil naquele tempo) ga-
atlântico de africanos em 1850. Esses crioulos criam novos nhava o estigma de grupo de baderneiros, desordeiros pa-
sentidos políticos – diferentes dos sentidos étnicos impri- gos pelo regime, “a canalha das ruas” que viviam em busca
midos pelos africanos –, sentidos estes que se cristalizam de violência e brigas. As mesmas acusações dos capoeiras
na noção de raça negra. da Flor da Gente em outros tempos.
Assim, os crioulos da Guarda Negra jogam frente à ra- Esse clima reforçava os pesados estereótipos raciais
cista sociedade brasileira da época um sentido novo para a que circulavam contra a “raça negra”. Despreparados para
palavra negro, que se expressa nos artigos do jornal Cidade o regime de plena liberdade política, inaugurado em 13 de
do Rio, principalmente naqueles assinados por Clarindo de maio de 1888, deveriam ser dirimidos pelas forças da or-
Almeida, o misterioso chefe da Guarda. Esses significados dem policial ou reconduzidos ao trabalho no campo, sob
escapavam aos autores da época e devem ser dimensiona- vigilância do Estado. Os “13 de maio”, como eram chama-
dos pelos estudiosos atuais como sinais diacríticos de uma dos os libertos da Lei Áurea, muito pouco tempo depois da
nova linguagem política, racial, abrangente, que foi subita- liberdade, já começavam a sentir o peso das novas limita-
e te calada.
mente ca ada. ções impostas pela sociedade “liberal” burguesa.
entr Guarda Negra e republica-
O segundo conflito entre O clima de guerra racial instaurado na época da Guar-
nos no Rio foi no dia 14 de julho de 1889, centenário da da Negra deve ter sido elemento importante no imagi-
Tomada da Bastilha, data magna m do republicanismo. Ao nário da alta oficialidade brasileira às vésperas do levante
anoitecer, um comício de republicanos desce a Rua que pôs um fim ao regime monárquico. Mas o colapso da
do Ouvidor. No meiome do caminho, um grupo da Guarda começa antes. Em julho de 1889, no mesmo mês
Guarda Negra os espera. Como era previsível, do conflito da Rua do Ouvidor, o gabinete João Alfredo
tudo termina em grossa pancadaria. Mas, dessa caía. Subia ao poder o Partido Liberal, na pessoa do Vis-
acu e os registros da Casa de
vez, a polícia acudiu conde de Ouro Preto.
Detenção foram preservados. O que parecia um novo começo arrastou a Monarquia
Em
Alfredo Emygidio Prestello, português, ainda mais para seu melancólico fim. O Visconde tinha uma
m
18 anos, marceneiro, morador na Rua péssima reputação. Em 1880, era ministro da Fazenda, e
Monte Albino Loureiro de Carvalho,
do Monte; foi dele a péssima idéia de criar um novo imposto sobre
também português de Vila Real, 21 as passagens de bonde. A taxação diminuiria ainda mais os
m
anos, morador na Travessa do Costa parcos ganhos da população pobre urbana. O resultado foi
Velho e Luiz Pinto Pereira, 21 anos,
Velho; a Revolta do Vintém, um movimento espontâneo da popu-
escr
escrevente, de Minas Gerais, resi- lação, que derrubou bondes, ergueu barricadas na cidade,
dind na Rua da Gamboa, todos
dindo enfrentou tropas do Exército. Os jornalistas da oposição –
bra
brancos, estavam do lado dos re- republicanos e abolicionistas – entraram em êxtase com o
pu
publicanos. José Carlos Vieira, 22 movimento. Depois de muitos mortos e feridos, o Ministro
ano carpinteiro, de cor parda,
anos, pediu demissão e o imposto foi cancelado. A Revolta do
mo
morador da Rua Pedro de Alcân- Vintém foi o pano de fundo para as campanhas de rua abo-
tara e José Antônio, de cor preta, licionista e republicana.
20 anos, baiano, sem ocupação, Dias após a proclamação, o generalíssimo Deodoro
era exemplos dos que forma-
eram convocava o advogado Sampaio Ferraz para assumir a che-
v o outro lado.5
vam fia de polícia do Distrito Federal. Ele imediatamente colocou
O conflito ocupou todas seus planos em ação.
as manchetes dos jornais da Há tempos Sampaio acompanhava como promotor
Corte. Estava ficando claro público a ação dos capoeiras. Sabia que o fim do regi-
para os setores médios da me e a instalação de um governo provisório ditatorial
sociedade carioca o clima era o ambiente ideal para dar um fim às maltas – e, no
insuportável. Militares tam- processo, eliminar os últimos vestígios da Guarda Negra.
bém se inquietavam com a
inação
in do Governo e o fracasso (5) Todas essas fichas estão no Livro de Matrículas da Casa de Detenção nº 4321, 15/07/1889,
da polícia em estabelecer ordem Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A Guarda Negra ainda passou cerca de um Em poucos meses, centenas de capoeiras, em atividade ou
século esquecida pela historiografia. Teorias “aposentados” (muito velhos para entrarem em ação), foram
presos da forma mais arbitrária. Encerrados na prisão de San-
que argumentavam a “anomia social” dos ta Cruz, foram jogados em um vapor e mandados para Fer-
negros como fiadores da sua incapacidade nando de Noronha, a ilha prisão do governo federal.
de enfrentarem a “nova” ordem burguesa Em menos de um ano, Sampaio tinha dado cabo dos úl-
não estimulavam estudos históricos. timos vestígios do Partido Capoeira e, de sobra, da Guarda
Negra. Em outubro, era publicado o novo código criminal da
República, tornando a capoeira crime. A maioria dos capo-
eiras apodrecia no meio do Atlântico. O destino final desses
homens é um mistério. A Guarda Negra ainda passou cerca
de um século esquecida pela historiografia. Teorias que ar-
gumentavam a “anomia social” dos negros como fiadores da
sua incapacidade de enfrentarem a “nova” ordem burguesa
não estimulavam estudos históricos. Precisamos esperar o
fim do regime militar de 1964 para revermos alguns fatos da
historiografia oficial e do tema da Guarda Negra.
Referências Bibliográficas
GOMES, Flávio dos Santos & CUNHA, Olívia Maria Gomes da.
Quase-cidadão: história e antropologias da pós-emancipa-
ção no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007.
GOMES, Flávio dos Santos. “No meio das águas turvas (ra-
cismo e cidadania no alvorecer da República; a Guarda Ne-
gra na Corte, 1888-1889)” In Estudos Afro-Asiáticos. Rio de
Janeiro, v. 21, pp. 75-96, dezembro de 1991.
52
Capoeira é defesa, ataque, ginga de
corpo e malandragem
Antonio Liberac Cardoso Simões Pires
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Tratar a capoeira de uma forma geral é Tratar a capoeira de uma forma geral é sempre difícil, pela
sempre difícil, pela diversidade histórica das diversidade histórica das formas de praticá-la e por ser cul-
tuada por pessoas oriundas de variados grupos sociais. Em
formas de praticá-la e por ser cultuada por princípio, ela teria sido uma prática dos escravos africanos no
pessoas oriundas de variados grupos sociais. Brasil, fruto das conexões culturais realizadas pelos represen-
tantes das diversas etnias africanas que foram trazidas para
cá, após capturas e escravização. Na documentação policial,
datada dos anos 1820, relativa às prisões de escravos por
praticarem capoeira na cidade do Rio de Janeiro, encontra-
mos um grande número de etnias, como, por exemplo: An-
gola, Congo, Moçambique, Cassange, entre outras.
No século XIX, a capoeira é praticada de forma siste-
mática e massiva apenas no Rio de Janeiro, mas é reprimi-
da pelas instituições policiais. Relatos sobre os capoeiras
remontam ao final do século XVIII, época do “major Vidi-
gal”, um policial que ficou famoso por usar a capoeira em
suas contendas com escravos fugidos, feiticeiros e com
os próprios capoeiras. Mas foi após a fundação da polícia
civil e militar, que encontramos, com maior constância,
registros dos capoeiras em fontes históricas. No início do
século XIX, os capoeiras já eram bastante conhecidos, na
cidade do Rio de Janeiro. No período de 1810 a 1821, en-
tre as 4853 prisões efetivadas pela polícia nessa cidade,
438 (9%) foram por acusação de prática da capoeira. Nes-
se período, os capoeiras formaram grupos e interferiram
Capoeira é defesa, ataque, ginga na relações de poder no espaço urbano da cidade do Rio
de Janeiro, assim como nas relações entre escravos e se-
de corpo e malandragem nhores e entre os próprios escravos.
Os praticantes de capoeira desse período estavam or-
ganizados por grupos, chamados de “maltas de capoeiras”,
que tinham como referência os bairros da cidade. Esse
modelo de organização foi relativamente hegemônico por
todo o Brasil. Além da navalha eles utilizavam sovelões, ma-
rimbas e paus como armas em suas contendas de grupo.
Sua práticas não se limitaram aos procedimentos da luta,
eles inventaram uma tradição em torno da capoeira que
incluiu nomes e gritos de guerra de cada grupo.
Plácido de Abreu, um dos maiores praticantes amadores
da época, explica que, na segunda metade do século XIX, os
capoeiras estavam divididos em dois grandes grupos denomi-
nados nações: “nagoa” e “guaiamu”. Na verdade, cada nação
era formada por diversos grupos de capoeiras que se organi-
zavam geralmente por bairros, ou seja, uma nação significava
a aliança entre um conjunto de grupos, representando certo
domínio sobre áreas específicas da cidade. A historiografia ain-
da não chegou a uma definição categórica dos termos que
denominavam essas duas grandes nações. As informações de
Plácido de Abreu apontam, entretanto, para diversas caracte-
rísticas desses grupos e possuem uma importância singular,
pois revelam a linguagem interna. A partir daí, temos um olhar
de dentro, de um indivíduo que participou ativamente dessas
organizações, tendo sido um “amador”.
(1) Amador era a denominação do praticante da capoeira que não pertencia a nenhuma malta.
56
Capoeira
Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem
O autor deixou, sem dúvida, o relato mais fascinante As cantigas eram chamadas de toadas e fizeram parte
sobre os capoeiras do século XIX. Escreveu, por exem- do jogo como elemento lúdico e de desafio:
plo, que os nagoas e guaiamus estavam divididos em
diversos “partidos”. Ele esclarece, ainda, que guaiamu é
o capoeira que pertence aos partidos de São Francisco, Os guaiamus cantavam:
situado no grande centro da cidade do Rio de Janeiro,
Santa Rita, Marinha, Ouro Preto, São Domingos de Gus- Terezinha de Jesus
mão, além de outros grupos menores. Os nagoas per- Abre a porta apaga luz
tenciam aos partidos de Santa Luzia, São José da Lapa, Quero ver morrer nagoa
Santana, Moura, Bolinha de Prata, além de outros. Esses A porta do Bom Jesus
grupos, denominados de “partidos” por Plácido de Abreu, Os nagoas respondiam:
estavam divididos por freguesias e áreas específicas no O castelo içou bandeira
interior das freguesias da cidade. Esses partidos também São Francisco repicou
estavam demarcados a partir de símbolos, principalmen- Guaiamu está reclamando
te os que faziam referências às cores: o vermelho dos Manoel preto já chegou.
guaiamus e o branco dos nagoas. Segundo Plácido de
Abreu, eles emitiam “gritos” de guerra: “É a Lapa. É a Es-
pada. Quando é daquela província. É a senhora de cadei- Concomitantemente à repressão desencadeada pelo go-
ra. Quando é de Sant’ana. É velho carpinteiro. Quando é verno provisório republicano, surgiu um movimento valoriza-
de São José. E assim por diante”. dor da capoeira que alcançou diversos grupos sociais. Alguns
parlamentares se lançaram em defesa da capoeira, como o
deputado Coelho Neto, que chegou a organizar um movimen-
to de oficialização do ensino nas Forças Armadas. Isso ocorreu
no mesmo momento em que centenas de capoeiras estavam
sendo presos e processados pelo artigo 402. Nessa fala está
o projeto de uma capoeira modelada pelas lutas marciais e a
idéia de um esporte “genuinamente brasileiro”.
Como afirmou Annibal Burlamaqui, conhecido por
“Zuma”, um exímio capoeira da década de 20 do século XX:
57
,,
Um traço comum aos praticantes da O campo de luta, idealizado por Zuma, era composto
capoeira no Brasil foi adquirir um apelido, de um círculo, desenhado em seu interior a letra “Z”. Para
as competições, haveria um juiz para controlar o tempo
costume que perdura até os dias de hoje. de jogo e os movimentos dos jogadores. O tempo de luta
Ao mesmo tempo em que os praticantes seria de no máximo uma hora, dividida em confrontos de
no Rio de Janeiro projetavam uma 3 minutos, com descansos de 2 minutos. A cada intervalo
capoeira vinculada às artes marciais, os deveria haver a apresentação dos lutadores no meio do
praticantes baianos, que não obtiveram círculo, como uma forma de controle do jogo por parte
do juiz. Em caso de empate, haveria ainda mais meia hora
grande visibilidade histórica no século XIX, de tempo com intervalos maiores para descanso. Caso o
despontaram com dois projetos de capoeira jogo continuasse empatado, o juiz passaria para a etapa
distintos: a capoeira angola e a capoeira da “morte”, quando os jogadores lutariam até cair (nocau-
regional. Mestre Pastinha e Mestre Bimba te), sem intervalo para descanso. Os embates dar-se-iam
foram os dois mais importantes praticantes em campos de futebol.
Apesar da forte repressão sobre os capoeiras desde os iní-
desses estilos ou modelos de capoeira. cios do século XIX até sua criminalização em 1890, a resistên-
cia foi maior e sua prática foi reinventada a partir dos anos 20
do século XX. Seus praticantes a colocaram em um patamar
de símbolo nacional, construindo identidades vinculadas ao
esporte, à dança, á música e às artes marciais, principalmente.
A prática da capoeira na Bahia do século XIX não so-
freu uma forte repressão, como no Rio de Janeiro. A po-
lícia baiana não processou ninguém pelo artigo 402 do
código penal de 1890. Entretanto, houve várias prisões
de capoeiras baianos no início do século XX. Os motivos
Capoeira é defesa, ataque, ginga dos processos eram por agressões físicas (artigo 303 do
código penal de 1890). Os capoeiras baianos também
de corpo e malandragem seguiram o modelo de organização das maltas cariocas,
ou seja, organização tendo como referência principal os
bairros da cidade soteropolitana.
Os capoeiras baianos ficaram famosos e permanece-
ram na memória coletiva dos praticantes da atualidade
com maior ênfase do que os praticantes cariocas. Aqui
citamos apenas alguns dos principais nomes da época:
Pedro Mineiro, Antônio Boca de Porco, Bemenol, Chico
Três Pedaços, Feliciano Bigode de Sêda e Besouro Man-
gangá, este último o mais famoso entre eles. Um traço
comum aos praticantes da capoeira no Brasil foi adquirir
um apelido, costume que perdura até os dias de hoje.
Ao mesmo tempo em que os praticantes no Rio de Janei-
ro projetavam uma capoeira vinculada às artes marciais, os
praticantes baianos, que não obtiveram grande visibilidade
histórica no século XIX, despontaram com dois projetos de
capoeira distintos: a capoeira angola e a capoeira regional.
Mestre Pastinha e Mestre Bimba foram os dois mais impor-
tantes praticantes desses estilos ou modelos de capoeira. A
capoeira regional e a capoeira angola apresentam a mesma
estrutura, sendo semelhantes desde o treinamento em série
até a utilização de indumentárias. Suas diferenças funda-
mentais estão no estilo do jogo e na musicalidade.
A capoeira angola aparece na Bahia nos anos 20,
principalmente com o grupo de Querido de Deus, um
capoeira estivador no Cais de Ouro da velha Bahia. Mas
foi Mestre Pastinha quem sistematizou a capoeira ango-
58
Capoeira
Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem
la em suas regras rituais, toques e ritmos de várias bele- esse mesmo movimento de expansão da capoeira regional
zas e uniformizou os praticantes, dando um caráter tam- algumas décadas depois. Mas, quando o fizeram, trouxeram
bém esportivo à prática cultural. Para Mestre Pastinha, a novo impulso ao processo de cristalização da capoeira como
capoeira angola era parte da cultura nacional brasileira. cultura global. Atualmente, a capoeira é praticada em todos
Houve uma grande diversidade de praticantes da capo- os continentes e, cada vez mais, torna-se importante prática
eira angola, como o Mestre Valdemar da Paixão, Mestre cultural e símbolo de nacionalidade.
Noronha, Mestre Tibúrcio, Mestre Canjiquinha, Mestre Com efeito, os olhares discriminatórios da sociedade
Caiçara, Mestre João Pequeno e Mestre João Grande, e de suas instituições policiais sobre a capoeira perdem
entre muitos outros. Mestre Bimba, por outro lado, am- intensidade com o passar dos tempos. Em 1937, a capo-
pliou os golpes e ritmos, dando ênfase aos cantos e ao eira foi liberada, pois já se encontrava em outro degrau
regramento dos instrumentos musicais em apenas dois dos valores sociais. A cultura negra ganhava importância
pandeiros e um berimbau. Invenções que se tornaram no processo de transformação dos símbolos étnicos em
hegemônicas em todo o Brasil. símbolos nacionais e o Brasil apresentava a capoeira ao
A capoeira regional, por meio de seus praticantes baia- mundo com um de seus tesouros mais raros e como fruto
nos, rapidamente migrou para todo o Brasil. É raro encon- de um processo de sincretismo no qual os aportes das
trarmos um município do Brasil onde não exista praticante diversas etnias africanas, européias e indígenas se trans-
da capoeira, a não ser em áreas rurais extremamente dis- formam em uma mesma coisa, ou seja, na capoeira, uma
tantes. Os praticantes da capoeira angola acompanharam peculiaridade brasileira.
Referências Bibliográficas
Foto: Acervo MRE PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. A Capoeira no jogo
das cores. Criminalidade, cultura e racismo na cidade do Rio de
Janeiro (1890-1930). Campinas, Dissertação de mestrado, Uni-
camp. 1996.
Antonio Liberac Cardoso Simões Pires. Doutor em ALMEIDA, Manoel Antonio de. Memórias de um sargento de
História Social pela Unicamp. Prof. Dr. Adjunto da Universi- milícias. Rio de Janeiro, Ed. Crítica, 1978.
dade Federal do Recôncavo da Bahia.
Obras publicadas: “Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá, AGPMERJ – Correspondências recebidas – 16/11/1932.
Três Personagens da Capoeira Baiana”. Tocantins/Goaiania,
UFT/Grafset, 2001. “A capoeira na Bahia de Todos os San- ABREU, Plácido de Abreu. Os capoeiras. Rio de Janeiro, Tipo-
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Este artigo está baseado na obra do autor intitulada: Movi- tória da UFRJ, 1993, p. 110
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rado, Departamento de História, Unicamp, 2001. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade. Petrópolis, Vozes, 1988, p.54.
59
A performance ritual da roda de
capoeira angola
Rosa Maria Araújo Simões
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
O auge desse esforço é expresso na A capoeira originou-se no Brasil nos tempos da escra-
organização do ritual (a roda de capoeira), vidão e, de diferentes formas, ela vem acompanhando o
desenvolvimento de nossa sociedade. De acordo com
no qual há um conjunto de conhecimento Lima (1991: 10-12) há, basicamente, quatro etapas que
e de linguagens específicas que caracterizam caracterizam seu desenvolvimento histórico no País. No
o trabalho de capoeira angola levado sério. Império, antes da abolição dos escravos, o principal objeti-
Entremos na roda... vo da capoeira era a defesa. Na República, além de defesa,
a capoeira servia de canal aberto à manifestação cultural
do povo negro; aqui, ela era denominada capoeira ango-
la.1 Já no governo nacionalista de Getúlio Vargas, em me-
ados de 1930, a capoeira começa a ser organizada como
ginástica e, em 1972, ela passa a ser considerada esporte
pelo Conselho Nacional de Desporto. Na década de 30 foi
criado por Manuel dos Reis Machado (Mestre Bimba) um
novo estilo de se jogar capoeira, a luta regional baiana, ou
simplesmente nas palavras de hoje, capoeira regional. Na
atualidade, devido a algumas inovações que Mestre Camisa
do “ABADÁ Capoeira”2 fez na capoeira regional, cria-se a
denominação “capoeira contemporânea” para classificar o
estilo de capoeira que a maioria dos capoeiristas está prati-
cando. Levando em conta a existência de estilos diferentes
de capoeira temos, conseqüentemente, diferentes tipos de
roda3 e diferentes valores a serem transmitidos.
Neste artigo não pretendemos abordar tais diferenças,
o que demandaria outra pesquisa. O objetivo aqui é ilus-
A performance ritual da roda de trar o rigor subjacente à performance4 ritual e, para tanto,
debruçaremo-nos especificamente no estilo denominado
capoeira angola capoeira angola, fazendo uma descrição da roda a partir do
Centro Esportivo de Capoeira Angola – Academia de João
Pequeno de Pastinha (CECA – AJPP)5, o qual é uma refe-
rência da tradição da capoeira. Vale destacar que Mestre
João Pequeno de Pastinha (nascido em 27 de dezembro
de 1917), com seus 89 anos, é a própria “história viva” da
capoeira; sua escola vem se disseminando pelo mundo a
partir de alguns de seus discípulos, sendo o principal deles,
nesse processo de disseminação, Mestre Pé de Chumbo.
Nos discursos dos mestres de angola, observamos, de
uma maneira geral, a preocupação com a preservação da
tradição e dos fundamentos da capoeira angola (dentre
os quais podemos destacar, como exemplo, o respeito, a
justiça, a humildade e a paciência). O auge desse esforço
é expresso na organização do ritual (a roda de capoeira),
(1) Vale destacar que em 1922 foi fundado, pela nata da capoeiragem baiana o Centro de Capoeira
Angola Conceição da Praia (Mestre Bola Sete, 2001: 29).
(2) Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte – Capoeira.
(3) A roda é a forma pela qual a capoeira se expressa, é sua performance ritual.
(4) Para Turner (1982: 13), “a antropologia da performance é uma parte essencial da antropologia
da experiência” e, neste sentido, “todo tipo de performance cultural, incluindo ritual, cerimônia,
carnaval, teatro, é explanação e explicação da vida em si, como Dilthey freqüentemente
argumentou”. E, a expressão, por sua vez, é por si só, “um processo pelo qual se compele a uma
expressão que a completa”. Para melhor exemplificar tal afirmação, o autor recorre à etimologia
da palavra performance que, segundo ele, “não tem nada a ver com “forma”, e sim, deriva do
velho francês parfournir, “completar” ou “realizar, cumprir minuciosamente/rigorosamente/
totalmente”. A performance é, portanto, a própria finalidade de uma experiência” [traduções
minhas]. Para um maior aprofundamento teórico-metodológico vide a tese “Da inversão à re-
inversão do olhar: ritual e performance na capoeira angola” (SIMÕES, 2006).
(5) A sede é localizada no Forte da Capoeira em Salvador (BA), mas há núcleos em São Paulo
(Indaiatuba, Campinas, São Carlos, Presidente Prudente, Bauru, Sorocaba, Capital); Minas Gerais e
em outros países, tais como México, Suécia, Portugal, Espanha, Dinamarca, Estados Unidos etc.
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Foto Rita Barreto.
Poloca na roda
Nzinga Capoeira Angola
no qual há um conjunto de conhecimento e de linguagens os três berimbaus que vão ser usados durante a roda e
específicas que caracterizam o trabalho de capoeira angola também os de reserva, pois caso o arame de aço (a corda
levado sério. Entremos na roda... que é presa de uma extremidade à outra da verga6 dele)
estoure durante a roda, o berimbau deverá ser imediata-
mente substituído, sem interrupção do jogo.
CONTEXTUALIZAÇÃO DA DESCRIÇÃO DA PERFOR- A performance ritual da capoeira angola consiste na
MANCE RITUAL NA CAPOEIRA ANGOLA. roda, que representa, por sua vez, “o mundo velho de
Deus” (o universo). Para descrevê-la é necessário que seja
(...) quase todo objeto usado, todo gesto realiza- feita uma abordagem que contemple desde a questão da
do, todo canto ou prece, toda unidade de espa- musicalidade, passando pela questão da corporeidade, hie-
ço e tempo representa, por convicção, alguma rarquia, valores morais, entre outras. Considerando sempre
coisa diferente de si mesmo. É mais do que pa- os inúmeros pares de oposição expressos, tais como, mo-
rece ser e, freqüentemente, muito mais. vimento de resistência versus movimento de submissão,
(Turner, 1974: 29) jogo em cima e jogo embaixo, jogo de dentro e jogo de
fora, alegria e dor (tristeza), luta e diversão, luta e opressão,
Uma das características da performance ritual é a polisse- lealdade e falsidade, mão versus pé7 etc, a roda apresenta
mia/multivocalidade. Assim, tanto a decoração da academia um panorama do universo simbólico da capoeira.
– o que inclui espaço destinado para pendurar os berimbaus, Mestre Bola Sete afirma que muitos mestres acreditam
pintura do arco-íris nas paredes (logotipo do CECA – AJPP), que a capoeira, uma criação dos africanos no Brasil, seja
quadros com fotos de renomados mestres (os quais valori- originária de antigos rituais africanos.
zam a linhagem, contando, conseqüentemente, a história e a Câmara Cascudo (1967: 183) também relaciona a ca-
tradição da capoeira angola) – bem como o uso do uniforme, poeira às danças africanas ao apontar o N´Golo (Dança da
a movimentação corporal a musicalidade constituem as di-
versas linguagens na capoeira angola. (6) Verga é toda madeira que “dá o arco” para fazer berimbau. Exemplo de pau para fazer berimbau
Para preparar o espaço ritual, os alunos chegam um é a biriba, inclusive, cantada em versos: “Biriba é pau, é pau/Oi biriba é pau para fazer
berimbau...” (domínio público).
pouco antes do horário previsto para o início da roda, pro- (7) Num corrido de domínio público o puxador (o mestre geralmente, ou outros membros de
videnciando a limpeza do chão e arrumação dos bancos, posições hierárquicas próximas a ele) canta: “É a mão pelo pé” e o coro responde “O pé pela
mão”; depois o puxador canta “É o pé pela mão” e o coro responde “A mão pelo pé”. Esses
enquanto outros afinam os instrumentos musicais; armam versos são várias vezes repetidos continuamente.
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Revista Textos do Brasil
Na roda são estabelecidas comunicações Zebra) como dança guerreira que faz parte de um rito de
entre os instrumentos musicais que passagem, marcando a entrada da puberdade em que os
garotos dançam/lutam como exibição às garotas.
compõem a bateria, o canto (expresso em Antes da década de 30, a capoeira não era praticada em
forma de ladainha, quadras e corridos) e, recintos fechados (em academias), o que, provavelmente,
sobretudo, entre os jogadores que, com indicaria a existência de ritual diferente ao que existe na
seus corpos estabelecem uma comunicação atualidade, ou seja, ela existia em forma de luta pela liberda-
não-verbal. de e sobrevivência e, quando tinha um caráter recreativo,
era praticada nos engenhos, na beira do cais, nas ruas, em
frente aos bares, feiras, nos morros e nos largos dos bairros.
Quando observamos fotos desse período, vemos diferença
no número de berimbaus, na disposição da bateria, na in-
dumentária etc.
As academias de capoeira angola localizadas na cidade
de Salvador (Bahia) são as que procuram manter a tradição
que se tinha na década de 30, as quais seguem a linhagem
de Mestre Pastinha. Os grupos de capoeira angola que se
disseminaram pelo mundo afora também procuram seguir
a linhagem de Mestre Pastinha, por isso o relato sobre a
performance ritual é baseado no CECA – AJPP, uma vez que
Mestre João Pequeno é considerado o principal discípulo de
Mestre Pastinha incumbido pela transmissão dessa arte8.
(8) Num depoimento de Mestre Pastinha, ele afirmara: Deixo dois mestres de verdade e não
professores de improviso, fazendo referência a Mestre João Pequeno e a Mestre João Grande
(este último mora em Nova Iorque – E. U. A).
64
Capoeira
A performance ritual da roda de capoeira Angola
INSTRUMENTOS MUSICAIS E A HIERARQUIA NA Cada berimbau tem seu toque específico a ser feito. O
CAPOEIRA. Numa roda de capoeira angola o principal resultado desse conjunto sonoro resultará em cenas de
instrumento é o berimbau. Ele está no ápice da hierarquia. movimentos corporais predominantemente lentos, mas
É no “pé-do-berimbau”9 que se delineia o jogo que acon- os movimentos rápidos e com maior amplitude articular
tecerá. Há três berimbaus: o berra-boi (alguns o chamam acontecerão nos devidos momentos, a depender do rit-
de gunga10), que tem o som mais grave e é considerado o mo ditado pelos berimbaus. O conjunto dos instrumentos
mestre da roda - geralmente quem o toca é o mestre ou al- utilizados na capoeira é denominado bateria e dela fazem
guém mais próximo do mestre, levando em consideração a parte, na seguinte ordem: os três berimbaus (gunga, médio,
hierarquia (com o sentido de mais experiência e sabedoria) viola), dois pandeiros (às vezes apenas um), um agogô, um
na capoeira; o médio que tem o som médio e o viola com reco-reco e um atabaque.
o som mais agudo. Segue exemplo de disposição dos instrumentos na bateria:
Mestre João Pequeno com seu companheiro de jogo na bateria é mais rigorosa, geralmente, em relação a tais
no pé do berimbau. Neste momento, Mestre João Peque- instrumentos que são tocados no momento da ladainha,
no estava cantando a ladainha de sua composição “Quan- tanto é que no gunga está o Mestre Moraes; no médio,
do eu aqui cheguei” (que será transcrita mais à frente). Mestre Ciro; no viola Mestre Pé de Chumbo e, no pandei-
A situação de cantar ladainha no “pé do berimbau” ge- ro, o Professor Topete, todos personalidades significativas
ralmente se dá quando o próprio mestre será o jogador. para o universo da capoeira.
Assim, a ladainha não foi cantada a partir da posição do
mestre no gunga. Observar que estão tocando somente (9) Quando os dois capoeiristas estão agachados (de cócoras) de frente para os três berimbaus.
os três berimbaus e o pandeiro. A obediência à hierarquia (10) Gunga também é sinônimo de berimbau.
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Iê11
01 - Quando eu aqui cheguei
02- Quando eu aqui cheguei
03 - a todos eu vim louvá,
04 - vim louvá a Deus primero
05 - e os moradô desse lugá
06 - Agora eu tô cantando
07 - cantando canto em louvô
08 - Tô louvando a Jesus Cristo
09 - Tô louvando a Jesus Cristo
10 - porque nos abençoô
11 - Tô louvando e tô rogando
12 - ao pai que nos criou
A performance ritual da roda de 13 - Abençoe esta cidade
14 - Abençoe esta cidade
capoeira angola 15 - com todos seus moradores
16 - e na roda de capoeira
17 - abençoe os jogadores, camaradinho
18 - É mandinguêro (P)12
19 - Iê é mandinguêro, camará (C)13
20 - Oi io io é mandingá (P)
21 - Iê é mandingá, camará (C)
22 - Oi io io sabe joga (P)
23 - Iê sabe jogá, camará (C)
24 - Oi io io joga daqui prá lá (P)
25 - Iê jogue prá lá, camará (C)
26 - Oi io io joga aqui prá cá (P)
27 - Iê jogue prá cá, camará (C)
28 - Oi volta que mundo deu (P)
29 - Iê que o mundo deu,camará (C)
30 - Oi io io que o mundo dá (P)
31 - Iê, que o mundo dá, camará (C)
(11) “Iê” é cantado tanto para dar início à roda, quanto para dar início ao jogo entre mestres e/ou para
reiniciar jogos interrompidos, geralmente, devido a condutas não aprovadas durante o jogo.
(12) Puxador (solista)
(13) Coro.
(14) Para dar suporte à análise, antecedendo cada verso, há um número correspondente a ele. E,
a partir da “chula”, há no final de cada verso a letra (P) que significa puxador e a letra (C), que
significa coro.
(15) Mestre João Pequeno viajou e viaja pelo mundo todo ensinando capoeira angola
(16) Ou “Iê dá volta ao mundo”..
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A ladainha (versos 1 ao 17)14 é um tipo de cantiga na qual
tanto pode se contar uma história, como fazer uma oração,
uma louvação, um desabafo, uma provocação, ou dar um
aviso etc. Ela é cantada solo, ou seja, puxada pelo mestre. Na
ladainha de Mestre João Pequeno são feitas, simultaneamente,
uma oração e uma louvação que indicam Deus numa posição
superior em relação aos “moradores” (sejam os da cidade onde
ele mora ou das diversas cidades pelas quais ele passa)15.
Assim, ele louva a Deus primeiro, como uma maneira de
pedir proteção dos perigos da vida e, depois, louva os capo-
eiristas presentes na roda, como uma maneira de agradar o
público e, conseqüentemente, criar um ambiente pacífico,
controlando, assim, a impetuosidade exarcebada. Nesse Foto: Rita Barreto
momento, os dois jogadores estão agachados ao pé do be-
rimbau, ouvindo atentamente a mensagem (não há jogo).
Os instrumentos que acompanham o canto são apenas os sua posição na bateria) e, a partir do 4o. verso, o coro res-
três berimbaus e o (s) pandeiro (s). ponde alternadamente a cada verso puxado (o qual pode
Logo em seguida à ladainha (geralmente após a palavra ser repetido inúmeras vezes até o jogo “pedir” outro tipo de
“camaradinha (o)” como consta no verso 17), vem a chu- canto ou a bateria querer outro tipo de jogo).
la (versos 18 ao 31). Nela o “cantador” ou “puxador” (geral- Outro corrido que pode ser cantado como forma de refor-
mente o mestre) canta um verso e os presentes na roda çar o diálogo corporal (apontando os contrários como parte
respondem em coro, repetindo o verso puxado (cantado). deste) e/ou chamar a atenção para que haja perguntas e res-
Os jogadores também respondem ao coro e se apontam, postas no jogo, caso estejam ocorrendo “golpes em vão” é o:
reciprocamente, elevando ambas as mãos, enfatizando com
tal gesto a afirmação “é mandingueiro”, “sabe joga” etc. Oi sim, sim, sim, oi, não, não, não
Quando é cantado Oi volta que mundo deu16, os joga-
dores estão autorizados para começar o jogo. Eles se ben- Oi sim, sim, sim (P)
zem, fazendo o sinal da cruz e, depois, cumprimentam-se, Oi não, não, não (P)
pegando um na mão do outro. Oi sim, sim, sim (C)
A partir daí, começam a cantar os corridos, nos quais Oi não, não, não (C)
também há resposta de coro, mas, diferentemente da chu- Oi sim, sim, sim, sim (P)
la, os versos respondidos em forma de coro são constantes Oi não, não, não, não (P)
e específicos a cada corrido. Nesse momento, geralmente Oi sim, sim, sim (C)
os jogadores realizam, um de frente para o outro, uma que- Oi não, não, não (C)
da de rim, ambos na direção dos berimbaus, como uma Oi sim, sim, sim, sim, sim (P)
maneira de cumprimentar os berimbaus, expressando o Oi não, não, não, não, não (P)
respeito às normas do jogo que serão ditadas a partir da Oi sim, sim, sim (C)
bateria. Exemplo de corrido: Oi não, não, não (C)
(domínio público)
Tem dendê
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Revista Textos do Brasil
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Capoeira
A performance ritual da roda de capoeira Angola
Referências bibliográficas
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A capoeira e seus aspectos
mítico-religiosos
Pedro Rodolpho Jungers Abib
A CAPO
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Dentre os vários aspectos expressados pela Como dizia o saudoso Mestre Pastinha (Vicente Ferreira
capoeira, o componente mítico-religioso Pastinha, que viveu na Bahia e faleceu em 1980), “a capo-
eira é tudo que a boca come e tudo que o corpo dá!”. Essa
foi sempre um dos que mais suscitou frase dita por um dos maiores guardiões dessa manifesta-
curiosidades, debates, opiniões e muitas ção demonstra o caráter múltiplo e dinâmico da capoeira,
histórias contadas e recontadas por meio da que se transmuta e se adapta, que se rebela e se acomoda,
tradição oral presente na cultura popular, que cria e reproduz, que já serviu para se defender e até
uma das formas mais importantes de matar, e que hoje serve para educar, mas que sempre foi
um grito de liberdade e de reafirmação de uma cultura e
transmissão dos saberes e conhecimentos. de um povo oprimido, reflexo da triste história de quatro
séculos de escravidão no Brasil.
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Capoeira
A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos
Besouro Mangangá, ou Besouro Preto, ou ainda Besou- poeira é de Deus. Mundo e gentes muitas têm
ro Cordão de Ouro, como o chamavam seus companheiros mandinga, corpo tem poesia, pássaro tem bico.
de vadiagem, é o elo com a capoeira do século XIX, afirma Capoeira tem axé. Meu pai e meu mestre me
o pesquisador Antonio Liberac Pires1, tradição dos escravos ensinou. E isto não é pouca coisa. Mas mel não
e das lutas pela liberdade, tempo de conflito entre maltas, conhece flor nem reconhece abelha. O que me
disputas a navalha, capangas eleitorais. Passado lendário de ensinou capoeira conhecia.
vadiação, de façanhas memoráveis nas brigas com a polí-
cia. Besouro é cantado, ainda hoje, nas rodas de capoeira,
em prosa e verso. Sua valentia e perspicácia foram e conti-
nuam sendo referência para os capoeiras desde há muito
tempo. Pela fama que alcançou, inclusive pelas qualidades
adquiridas de ter o “corpo fechado”, Besouro tornou-se
uma lenda ainda em vida.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
O Mestre Cobrinha Verde era um dos que O grande Mestre Valdemar da Liberdade, outro também
mais valorizava as “artes da mandinga”, que já não está mais por aqui, disse uma vez ao pesquisa-
dor Luiz Renato Vieira5 que os mestres de antigamente “...
atribuídas aos ensinamentos que recebeu tinham muita mandinga, viravam folha, viravam bicho. Aqui-
de Besouro e de outros conhecedores desses lo era próprio para barulho. Besouro era um grande capoei-
“ofícios” em Santo Amaro da Purificação, rista, mas tudo debaixo de oração”.
no Recôncavo Baiano. Mestre João Pequeno dá uma das versões da morte de
Besouro, segundo a qual sua mandinga foi quebrada:
(6) Capoeiras e Mandingas. Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991
74
Capoeira
A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos
Cobrinha Verde dizia-se católico, mas não deixava de percorrer para desenvolver as “artes da mandinga”, proces-
recorrer também às tradições religiosas africanas para o so quase religioso de iniciação, porém sempre tendo como
“fechamento de seu corpo” com o intuito de se proteger referência os “antepassados que passaram isso pra gente”,
dos inimigos “desse mundo e do outro”. Uma das orações conclui Eletricista.
que usava é aqui descrita:
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
O berimbau ecoa sons ancestrais e pede conversar com os mortos. Só então os dois apertam-se as
a proteção aos antepassados. O berimbau mãos, e o jogo pode iniciar-se.
Outra situação muito característica da capoeira angola
era usado na África para conversar com que traz elementos da mandinga é a “chamada de angola”. A
os mortos. Só então os dois apertam-se as chamada é um momento de quebra e interrupção no anda-
mãos, e o jogo pode iniciar-se. mento do jogo. É um parêntesis na sucessão de movimentos
de ataque e de defesa, incluindo também a ginga, quando
um jogador promove a ruptura dessa dinâmica, “chamando”
o outro e assumindo uma posição estática e de observação.
O parceiro, então, aproxima-se lenta e cuidadosamente, pois
pode ser surpreendido com um ataque inesperado, até con-
seguir um contato corporal com o jogador que o “chamou”.
Inicia-se, então, um “bailado” entre os dois, que se deslocam
alguns passos para frente e para trás, sem que seus corpos
se “descolem” um do outro. A tensão entre ambos é visí-
vel, pois, a qualquer instante, um deles pode tentar alguma
“mardade” contra o outro. A chamada é interrompida no
momento em que aquele que “chamou” toma a iniciativa
de recomeçar o jogo, convidando seu parceiro por meio de
gestos característicos. E o jogo se reinicia.
Nessa simulação, representada pela chamada de angola,
a mandinga mostra-se na forma como cada jogador lida com
essa situação, demonstrando sua malícia, sua sagacidade e
sua habilidade de expressar-se dissimuladamente, dificul-
tando para o parceiro a interpretação de suas verdadeiras
A capoeira e seus aspectos intenções, quando um certo clima de apreensão paira sobre
os dois capoeiras. A chamada é um momento que sempre
mítico-religiosos guarda um certo mistério durante uma roda de capoeira
angola. Numa chamada tudo pode acontecer. Os dois ca-
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Capoeira
A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos
poeiras têm que estar atentos e preparados para possíveis grande valor que é suas mandinga tracueira para
surpresas, que não raro acontecem nessas situações. vencer todas parada que apareiza sendo a hora
suficiente si causo não for dezista para outra oca-
Urgente urgentíssimo ficar prevenido, estar de zião porque eziste outro encontro porque quem
alerta em qualquer ocasião, na tocaia das vastas apanha nunca cisquece e quem dá não se lem-
atalaias, já que toda atenção é pouca. Assim re- bra esta é a malícia do capoeirista (p.18).9
zam os preceitos da mandinga, uma vez que ma-
caco velho jamais mete a mão em cumbuca. (...) A mandinga de Besouro Mangangá - que segundo Mes-
O segredo da artimanha está dentro de si mesmo, tre Bimba (Manoel dos Reis Machado), criador da capoeira
no íntimo do seu mistério, verdadeiro e único. Já regional, “era capaiz di sartá di costa i caí de vórta dentru dus
que o martírio existe dentro das sete chagas de chinélu”10 -, e também de Mestre Noronha, Pastinha, Cobri-
Cristo, então camaradinho conserve a fé no que nha Verde e de tantos outros capoeiras antigos, considera-
você possui e desconfie até da sombra...com sim- dos “mandingueiros”, que povoam o imaginário popular de
patia, disciplina e iluminação na alma.8 Salvador e do Recôncavo, parece exercer sobre o capoeira
de hoje em dia uma influência que vai além daquela referen-
Analisar a mandinga na capoeira significa mais do que te às “qualidades” de desordeiros e valentões.
identificar alguns aspectos do ritual presentes na roda, da Esse componente de magia que reveste o universo da
malícia, do gestual ou do discurso dos capoeiras. Significa capoeira, embora proveniente desse imaginário popular,
buscar um entendimento mais aprofundado sobre determi- expressa o vasto campo de significados dessa manifesta-
nados comportamentos que certos “angoleiros” apresen- ção afro-brasileira e de suas ligações com o “sagrado”, as-
tam, os quais podem ser considerados como aprendizados sim como muitas das manifestações e tradições presentes
que se iniciam na roda de capoeira, e, como diz o Mestre no universo da cultura popular no Brasil. A dimensão do
Moraes (Pedro Moraes), expandem-se, posteriormente, para sagrado tem para o povo simples de nosso país um senti-
o cotidiano desses sujeitos, expressando-se nas suas formas do muito especial e profundo, que determina suas crenças,
de se relacionarem com o mundo. seus modos de vida, seus sonhos, suas lutas, suas vitórias
Certos procedimentos, crenças, superstições e hábitos e suas derrotas.
observados, principalmente entre os praticantes da capo-
eira angola, moradores de Salvador e arredores, que se es-
tendem até o Recôncavo Baiano, são características muito
peculiares de um certo tipo de sujeito social que se difere
justamente por ter adquirido, a partir da vivência na capoeira
angola, um comportamento baseado em outra lógica, que
escapa de uma racionalidade predominante nas sociedades
modernas e que se expressa pela forma como se relaciona
com a realidade em que vive. Normalmente são pessoas que
desenvolvem uma atenção, uma sagacidade, uma presença
de espírito, um sexto sentido mesmo, características estas
um tanto diferenciadas de um comportamento considerado
padrão nas sociedades urbanas contemporâneas.
Essa “outra lógica” relaciona-se com características mí-
tico-religiosas oriundas da cultura afro-brasileira, que, por
meio da capoeira, se expressa de várias formas, desde tem-
pos imemoriais.
O famoso Mestre Noronha (Daniel Coutinho), que viveu as
primeiras décadas do século XX em meio à malandragem da
capoeira baiana, deixou um legado valioso: seus manuscritos,
os quais retratam muitos aspectos da capoeiragem daquela
época, referência importantíssima para historiadores que bus-
cam reconstruir esse período de valentia e desordens. Em um
dos trechos, transcrito fielmente dos originais, ele diz:
(8) Maior é a capoeira, pequeno sou eu. José Umberto. Revista da Bahia, nº 33 – Salvador: Fundação
Eu e meus colega da mesma arte, de capoeira, Cultural do Estado da Bahia, 1999
porque hoje em dia está nos meios social e no (9) O ABC da capoeira angola: manuscritos do mestre Noronha. Frederico Abreu. Brasília. DEFER,
1993 (foi mantida a grafia utilizada no manuscrito).
mundo enteiro porque é uma defeiza pessoal de (10) Mestre Bimba: corpo de mandinga. Muniz Sodré Rio de Janeiro: Manati, 2002 (p.36)
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Capoeira: metáforas em movimento
Eliane Dantas dos Anjos
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Revista Textos do Brasil
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golpes como a gravata e na seqüência da cintura despreza- As associações com animais são especialmente recor-
da, uma série de movimentos de projeção. rentes, entre as quais: coice, rabo-de-arraia, sapinho, pulo
Os contatos dos alunos de Mestre Bimba com autori- do macaco e vôo-do-morcego. O termo galopante, que se
dades baianas contribuíram para que a capoeira fosse le- refere a um soco dado com os dedos unidos na região dos
gitimada e excluída do Código Penal, na década de 1940. ouvidos do oponente, também está relacionado a uma ca-
Com o reconhecimento da luta regional baiana de Bimba, a racterística de movimento de animal, os passos do cavalo,
capoeira tradicional, que passou a ser referida como capo- o seu galope. A capoeira, cuja etimologia indígena remete à
eira angola, também se fortaleceu, tendo como expoente mata, ka’a puera, mata extinta, tem em sua origem entre os
Mestre Pastinha. negros escravos uma relação forte com a natureza, por isso
O sistema denominativo de golpes da capoeira foi cria- utiliza tanto a denominação de animais para nomear novos
do, então, a partir do desenvolvimento da capoeira regional conceitos. O movimento é a essência da capoeira, como de
e angola, bem como dos focos de resistência da capoeira qualquer luta ou expressão corporal, e a observação de ani-
carioca. Atualmente, com a expansão da capoeira no Bra- mais é uma fonte de criação tanto de movimentos como
sil e no exterior, foram criadas variações dos movimentos de denominações.
básicos e incluídos novos movimentos, o que se reflete A relação movimento-animal torna o sistema denomi-
no conjunto de termos. Essa divisão da capoeira também nativo mais vivaz e concreto, facilitando a memorização,
se repercute nos movimentos, que podem ter execuções pois ao associar-se a denominação ao conceito no mundo
bastante variáveis. O rabo-de-arraia da angola, por exemplo, visível, ao ouvirmos o nome do animal ou de um movimen-
corresponde à meia-lua de compasso da regional, um gol- to que a ele se relaciona, visualizamos as características que
pe giratório, com apoio das mãos no chão, em que uma das tornam o golpe ou o movimento semelhantes a ele. Em sua
pernas visa acertar o oponente no plano horizontal; já na descrição da capoeira, Rugendas compara os capoeiristas
regional é a meia-lua de compasso executada sem o apoio a bodes, em virtude da grande quantidade de cabeçadas.
das mãos no chão; na capoeira carioca é um movimento Tanto é assim, que o termo marrada, cabeçada de bodes e
semelhante, mas executado no plano vertical. carneiros, foi utilizado por Mestre Bimba em um depoimen-
Com base em materiais escritos sobre capoeira publi- to gravado no CD Curso de Capoeira Regional. No entanto,
cados a partir de 1960, pelos mestres Bimba e Pastinha, o termo acabou sendo substituído por cabeçada.
por seus discípulos e com apoio também de livros sobre Instrumentos que podem ser utilizados como arma
capoeira de circulação nacional ou com grande divulgação, também são denominações muito freqüentes na capo-
foi organizado por Eliane Anjos, em 2003, um repertório de eira. O açoite, o arpão, a chibata, a cutilada, a forquilha,
termos que constituiu o Glossário Terminológico Ilustrado o martelo e a tesoura demonstram que a capoeira pode
de Movimentos e Golpes da Capoeira. Esse estudo mostrou ser entendida como uma arma corporal e que seus mo-
a predominância da metáfora (transferência de nome por vimentos, à semelhança desses citados anteriormente,
semelhança de sentido) e da metonímia (transferência de podem causar lesão. Movimentos como açoite e chibata
nome por contigüidade de sentido) entre os recursos de remetem-nos aos instrumentos de punição e tortura, prá-
formação de termos desse jogo. ticas aplicadas aos negros escravos. A relação movimen-
Entre as metáforas dos termos da capoeira, destacam- to/arma representa, então, um campo associativo, uma
se algumas regularidades associativas com animais, armas grande metáfora, mostrando a capoeira como a própria
(instrumentos perfuro-cortantes ou traumatizantes), formas arma, que um dia foi luta e que atualmente é considerada
circulares, representações gráficas e objetos do dia-a-dia. um jogo, um esporte.
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Tesoura de frente
S dobrado
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Capoeira
Capoeira: metáforas em movimento
A bênção é um termo irônico que subverte o significa- pes atribui ao quimbundo jangala, bambolear, no Dicionário
do de proteção religiosa e a ironiza, pois, na verdade, dife- Banto do Brasil (1995), não há qualquer evidência de que
rentemente do movimento realizado pelo padre ao levar as as raízes africanas desse jogo possam ter deixado heranças
mãos ao fiel, a bênção da capoeira é um empurrão com o lingüísticas. Essa tendência reforça a idéia de que a capoeira
pé, um movimento ofensivo. Esse caráter irônico e debo- tenha se desenvolvido no Brasil e não supõe a importação
chado também aparece nos termos bochecho e suicídio, de uma luta preexistente na África.
relacionando-se o ato de bochechar ao efeito do golpe e o Assim, o sistema denominativo da capoeira reflete suas
ato de suicidar-se ao risco assumido pelo capoeirista quando características de luta, de resistência à opressão da escravi-
executa o movimento. dão e do preconceito, da circularidade do jogo, da comu-
A maioria das metáforas ocorre pela semelhança de forma nhão do homem com a natureza e, acima de tudo, de uma
entre o movimento e o objeto, o animal ou a letra a ele as- manifestação cultural brasileira.
sociada. Há, ainda, semelhança por função em termos como
açoite, balão, bênção, bochecho, chibatada e martelo, relacio-
nados à ação do movimento e não a uma semelhança física.
As metonímias referem-se aos efeitos dos movimentos que Referências Bibliográficas
lhes servem de denominação como asfixiante, quebra-mão
e quebra-pescoço. Nesse tipo de metonímia, a associação ABREU, Plácido. Os capoeiras. Rio de Janeiro: J. Alves,
com o movimento é mais clara, pois se relaciona o efeito que [1886?]
provoca com o nome do movimento.
Outro tipo de associação metonímica recorrente é a par- BURLAMAQUI, Annibal (Zuma). Gymnastica nacional (capo-
te pelo todo. Apresenta termos como banda, que relaciona eiragem) methodizada e regrada. Rio de Janeiro, 1928.
o nome ao tipo de entrada realizada no movimento (entrada
lateral), cintura desprezada, para referir-se a um movimento FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo Aurélio Século XXI: o di-
cuja cintura é uma das partes do corpo envolvidas, boca-de- cionário da língua portuguesa. 3. ed. totalmente revisada e
calça, região onde se aplica o golpe. Os termos palma e pon- ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
teira demonstram as partes do corpo que têm participação
principal no movimento e, muitas vezes, o ponto em que GUIA DO CAPOEIRA OU GYMNASTICA BRAZILEIRA. 2. ed.
atinge o adversário. Rio de Janeiro: Livraria Nacional, 1907.
Termos como negativa, vingativa e resistência, que deno-
minam o golpe por meio de uma referência abstrata, subje- LOPES, Nei. Dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Se-
tiva, mostram a intenção do capoeirista, o caráter combativo cretaria Municipal da Cultura, Prefeitura do Rio de Janeiro,
do jogo, a negação, ou seja, a resistência à escravidão e a 1995.
vingança da opressão que subjazem aos nomes dos movi-
mentos. REIS, Letícia V. de S. Negros e brancos no jogo da capoeira:
O caráter irônico, humorístico e de resistência são carac- reinvenção da tradição. Dissertação (Mestrado em Sociolo-
terísticas do próprio estilo de vida do praticante da capoeira, gia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
notadamente, quando esse jogo era ainda uma manifesta- Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.
ção perseguida. Outro exemplo de ironia é o termo godeme,
que se tornou sinônimo de soco desferido pelos ingleses, ANJOS, Eliane D. Glossário Terminológico Ilustrado de Mo-
que por repetirem com freqüência a expressão “God damn vimentos e Golpes da Capoeira: um estudo término-lingü-
it!” (Deus amaldiçoe!), eram assim identificados pelos traba- ístico. Dissertação (Mestrado em Letras - Filologia e Língua
lhadores nordestinos de construção. Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
Segundo a antropóloga Letícia Reis (1993), em sua pes- manas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
quisa Negros e brancos no jogo da capoeira: reinvenção da
tradição, a capoeira constrói o mundo invertido tanto com RUGENDAS, Johann M. (1802-1858). Viagem pitoresca atra-
seus movimentos de baixo para cima, realizados no baixo vés do Brasil. Tradução de. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins
plano, quase no chão, como pela subversão, pelo riso, pela Editora & Editora da Universidade de São Paulo, 1972.
inversão de significado da bênção, pelo caráter de resistência
dessa cultura. A autora destaca que a capoeira resiste e passa Ilustrações: Reinaldo Uezima.
uma mensagem pela gramática corporal, pelos movimentos
inversos, manhosos e também por suas denominações.
Quanto à possibilidade de influência de línguas africanas Eliane Dantas dos Anjos. Mestre em Letras (Filologia e
na terminologia da capoeira, com exceção das etimologias Língua Portuguesa) pela Faculdade de Filosofia, Letras e
controversas dos termos aú e gingar, termo ao qual Nei Lo- Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
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A música na capoeira angola da Bahia
Ricardo Pamfilio de Sousa
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(1) Negacear é o resultado do diálogo de corpos no jogo da capoeira, quando um entra, o outro
sai, um ataca e o outro defende contra-atacando. “Capoeira é defesa, ataque, é ginga no corpo,
é malandragem” .
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(2) As partes sublinhadas nas letras das cantigas referem-se à parte do coro que responde ao
solista.
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Foto: Acervo Luiz Renato
usadas durante os movimentos dos jogadores de capoei- mais para acabar. No final do jogo, o conteúdo das letras
ra angola, pois não se joga durante uma ladainha, muito nas cantigas prepara o fim da roda ou indicam que alguém
menos na parte da chula. A dança/luta desenrola-se en- vai sair. O próprio tocador de berimbau, por exemplo, pode
tre ataques e contra-ataques: o jogador esquiva-se de um assim comunicar sua retirada. Ouve-se também, do mestre
golpe, lançando outro. ou de um aluno avançado, o grito Iêh, no início de uma
Existe também a chamada de um jogador para ou- ladainha e várias vezes durante a chula, algumas vezes nos
tro, que demonstra conhecimento, fundamento, ou para corridos e também para interromper ou finalizar o jogo.
se livrar de uma jogada com resolução muito difícil, ou,
ainda, para um instante de descanso. O angoleiro que
foi chamado deve ir ao local onde se inicia o jogo (pé Adeus Corina dam dam Vou-me embora
do berimbau) e, então, realizar movimentos em dire- Dam daram daram vou-me embora
ção a quem o chamou. Nessa chamada, os angoleiros Dam dam vou-me embora para Angola
“dançam” à maneira de uma caminhada, quase um
movimento de tango, às vezes meio saltitado, meio en- É meia hora só Eu já vou beleza
costado. Quem chamou finaliza a chamada com algum É meia hora Eu já vou embora
gesto que convide o companheiro a voltar ao combate. Eu já vou beleza
Cada um tem sua performance individual e os limites Iaiá vamo dá Que chegou a hora
são estabelecidos durante o jogo. Há também a “volta ao Uma volta só
mundo”3 para demonstrar malícia, conhecimento, algum Adeus adeus
fundamento ou também para um pequeno relaxamento, Boa viagem
descanso. O angoleiro usa malícia, sagacidade e traição
para golpear o camarada distraído.
Durante uma roda, a música tocada pelos berimbaus (3) Na capoeira angola, dar volta ao mundo é quando o jogador caminha em círculo dentro da
chega quase ao máximo de andamento acelerado, é a par- roda, aparentemente estão dando um simples passeio pela roda, os jogadores podem se dar as
mãos, o que pode ser arriscado, pois, com a proximidade dos corpos fica mais fácil de se acertar
te mais rápida; reduz um pouco e torna a aumentar ainda qualquer golpe, além do risco de um puxão pela mão.
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Revista Textos do Brasil
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Foto: Antonio Carlos Canhada
10º - Inicia-se o canto de entrada e, depois, o primeiro 14º - Durante a roda, há sempre outras ladainhas, geral-
corrido. É o sinal para o início do jogo propria- mente duas, no mínimo, e seis, no máximo.
mente dito. O viola passa a dobrar (fazer varia- 15º - Para terminar cantam: Adeus, adeus, boa viagem.
ções), repicando mais do que mantendo o toque. Os músicos levantam-se, continuam a cantar,
Quem mantém o toque é geralmente o gunga; o viram-se para a direita e caminham dando uma
médio normalmente inverte uma parte do toque volta até o lugar onde estavam (a volta ao mun-
do gunga ou reproduz o mesmo toque. Ambos do), em sentido anti-horário.
podem dobrar os toques durante o jogo. 16º - Depois de, no mínimo, dois minutos cantando
11º - Os dois jogadores, ao pé do berimbau, dão-se as a cantiga Adeus, adeus, boa viagem, a qualquer
mãos, cada qual no seu canto, e fazem o primei- momento pode-se ouvir o grito Iêh da boca do
ro movimento do jogo, “queda de rim”. Partem, mestre ou de um dos tocadores de berimbau, en-
então, para o combate corpo-a-corpo, sem se cerrando a roda da capoeira angola. Geralmente,
tocarem, usando geralmente “negativas” e “rabo- o jogo é “comprado”, ou seja, quando algum ca-
de-arraia,” ou outros movimentos. poeirista da roda entra entre os dois jogadores e
12º - Desde o início da roda, os alunos estarão sob os inicia um novo jogo com um deles.
olhos do mestre. A correção de qualquer proble-
ma de conduta é feita por meio do conteúdo da
letra de uma música ou pela chamada do berim-
bau, destinada a aproximar o jogador para ser
orientado pelo tocador de berimbau.
13º - Os jogadores alternam-se quando o mestre usa
a chamada ou quando um deles resolva parar o
jogo. Dão-se as mãos ao pé do berimbau e retor-
nam para a roda, voltando a fazer parte do coro
de vozes ou participando da bateria.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
No final do jogo, o conteúdo das letras nas O artista plástico Carybé, também capoeirista ativo,
cantigas prepara o fim da roda ou indicam descreve a música da capoeira da Bahia, em 1951, da se-
guinte forma:
que alguém vai sair. O próprio tocador
de berimbau, por exemplo, pode assim A Bahia muito contribuiu, na parte musical, in-
comunicar sua retirada. troduzindo o pandeiro, o caxixi e o reco-reco,
em substituição das palmas; e o berimbau de
barriga com corda de aço, com voz mais sonora
e muito mais recursos que o de bôca. Inventou
cantigas e deu regras ao jogo que começa com
as chulas de fundamento tiradas pelo mestre:
Sinhazinha que vende aí?/ Vendo arroz do Ma-
ranhão./ Meu Sinhô mandô vendê./ Na terra de
Salomão./ O coro responde: ê, ê Aruandê Ca-
marado/ Galo cantô/ ê, ê galo cantô Camara-
do/ Cocôrocô/ ê, ê cocôrocô Camarado/ Goma
de engomá/ ê, ê goma de engomá Camarado/
Ferro de matá/ ê, ê ferro de matá Camarado/ É
faca de ponta/ ê, ê faca de ponta Camarado/
Vamos embora/ ê, ê vamos embora Camarado/
Pro mundo afóra/ ê, ê pro mundo afora Cama-
rado/ Dá volta ao mundo/ ê, ê dá volta ao mun-
do Camarado. Os que vão lutar, escutam as can-
tigas de cócoras, defronte dos berimbaus, talvez
rezando suas “rezas fortes” para livrar de bala,
A música na capoeira angola de emboscada ou faca; chegam ao centro da
roda virando o corpo sobre as mãos e começam
da Bahia o gingado que é ao mesmo tempo uma guarda
e um passo da dança.
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Capoeira
A música na capoeira Angola da Bahia
O que Carybé designa no texto como “chula de funda- Qual é o toque? - São Bento Grande Repicado,
mento”, na capoeira angola denomina-se, predominante- Santa Maria, Ave Maria, Banguela, Cavalaria, Ca-
mente, “ladainha”. Na capoeira regional, assim como para lambolô, Tira-de-lá-bota-cá, Idalina ou Concei-
alguns angoleiros, o mesmo texto é considerado “quadra”. ção da Praia? - Bimba pensou rapidamente e
O trecho que segue uma chula propriamente dita é carac- disse: - Toque Amazonas e depois Banguela. Os
terizado pela resposta do coro, ou seja, o canto de entrada. berimbaus começaram a tocar. O crioulo apro-
No texto de Carybé, não é apresentada a pergunta do solis- ximou-se e Mestre Bimba apertou-lhe a mão. E
ta, o coro entra direto com a resposta. A palavra “camara- o povo começou a acompanhar o tin-tin-tin dos
do”, grafada na citação, refere-se, provavelmente, mais ao berimbaus, batendo palmas. Bimba balanceou
sentido do que à maneira como se falava: “câmara”. Porém, o corpo e cantou: “No dia que eu amanheço,
esse texto não menciona os corridos. Existem outras fontes Dentro de Itabaianinha, Homem não monta ca-
que citam os repertórios com as suas respectivas defini- valo, Nem mulher deita galinha, As freiras que
ções e acepções. estão rezando, Se esquecem da ladainha”. Mas
A capoeira regional, técnica criada pelo Mestre Bimba, o crioulo não ficou atrás e cantou, negaceando
tem, principalmente nesta época, muito mais proximidade o corpo no compasso dos berimbaus. “A iúna
do que distanciamento com a capoeira angola, como pode é mandingueira, Quando está no bebedor, Foi
ser observado na seguinte reportagem da década de 40, sabida e é ligeira, Mas capoeira matou”. Palmas
realizada por Ramagem Badaró (1980: 47-50): festejaram o repente do crioulo. Porém, Bimba
não deu tréguas à vitória do outro. E respondeu:
“Oração de braço forte, Oração de São Mateus,
P’ro Cemitério vão os ossos, Os seus ossos não
os meus”. Novamente o Povo aplaudiu e can-
tou o estribilho da capoeira: “Zum, zum, zum,
zum, Capoeira mata um, Zum, zum, zum, zum,
No terreiro fica um”. O crioulo, entretanto, não
deixou cair a quadra de Mestre Bimba e replicou:
“E eu nasci no sábado, No domingo me criei, E
na segunda-feira, A capoeira joguei”. A multidão
deu vivas e bateu palmas para os dois lutado-
res no centro do círculo. Uma preta comentou:
- Bom menino! Se é bom na briga como é no
canto, boa parada para Bimba. […] Tinha venci-
do a luta. O povo invadiu o terreiro aplaudindo
o rei da capoeira. Bimba abraçou o adversário.
E o crioulo mostrou que era homem mesmo.
Cantou: “Santo Antônio pequenino, Amansador
de burro brabo, Amansai-me em capoeira, Com
setenta mil diabos”. Bimba gostou do elogio e
retribuiu, cantando: “Eu conheci um camarada,
Que quando nós andarmos juntos, Não vai ha-
ver cemitérios, Pra caber tantos defuntos”.
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Capoeira
A música na capoeira Angola da Bahia
O repertório musical da capoeira transita entre o sam- KOSTER, Henry. Travels in Brasil. 2 ed. 2 v. London: Long-
ba-de-roda e alguns cantos que se aproximam de cantos man, Hurst, rees, orne, and Brown, Paternoster-Row, 1817.
de trabalho. Existem também o uso do repertório tradicio- –––––––– Viagem ao Nordeste do Brasil. Tradução e notas
nal do candomblé de caboclo e, alguns casos, até música de Luiz da Câmara Cascudo. Biblioteca Pedagógica Brasilei-
de candomblé de orixás. ra, série 5, v. 221. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
Atualmente, a capoeira, principalmente sua música, aju- 1942.
da a difusão da língua portuguesa, especificamente a falada
na Bahia. Além disso, essa expressão cultural catalisadora RUGENDAS, Johann Moritz. Malerisch Reise in Brasilien.
e estimulante dos movimentos corporais dos jogadores é Engelmann & Cie. In Paris, Cité Berger nº 1 in Mülhausen,
holística na sua visão de integração, mas é brasileira, mos- Ober-Rheinisches Dept, 1835.
trando, na música, sua principal força criativa. –––––––– Viagem Pitoresca e Histórica no Brasil. Biblioteca
Histórica Brasileira, direção de Rubens Borba de Moraes. 4
ed. tomo 1. v. 1 e 2. Trad. e notas de Sergio Milliet. São Pau-
Referências bibliográficas: lo: Martins, 1949.
BADARÓ, Ramagem. “Os negros lutam suas lutas misterio- WETHERELL, James. S.d.Brasil: Apontamentos sobre a Bahia.
sas: Bimba é o grande rei negro do misterioso rito africa- 1842-1857. Apresentação e trad. de Miguel P. do Rio-Bran-
no”. In Capoeiragem - Arte e Malandragem. Jair Moura, ed. co. Salvador, Banco da Bahia. [1972].
Cadernos de Cultura 2. Salvador: Secretaria Municipal de
Educação e Cultura, Departamento de Assuntos Culturais,
Divisão de Folclore. 43-55, 1944.
DEBRET, Jean-Batiste. Voyage pittoresque et historique au Ricardo Pamfilio de Sousa. Mestre em Etnomusicolo-
Brésil, ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 gia pela UFBA, 1997 “A música na capoeira angola.” Mem-
jusqu’en 1831 inclusivament. Edição Comemorativa do IV bro da Fundação Pierre Verger, responsável pela cultura
Centenário da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, digital no projeto Ponto de Cultura Pierre Verger no Centro
1965. Rio de Janeiro: Distribuidora Record; New York: Con- da Cultura Afro-brasileira.
tinental News. Fac-simile da edição original de Firmin Didot
Frères, Paris: 1834.
–––––––– Viagem Pitoresca e Histórica no Brasil. Biblioteca
Histórica Brasileira, direção de Rubens Borba de Moraes. 2
ed. tomo 1. 2 v. Trad. e notas de Sergio Milliet. São Paulo:
Martins, 1949.
–––––––– “L’Aveugle chanteur.” In Mercedes Reis Pequeno
(org.). Três Séculos de Iconografia da Música no Brasil 80.
Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1974
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A mulher na capoeira
Lilia Benvenuti de Menezes
Algumas das grandes referências femininas de força, garra, coragem e segurança retratadas na
história remetem-nos à década de 1940, quando se destacaram as famosas “Maria 12 Homens”,
“Calça Rala”, “Satanás”, “Nega Didi” e “Maria Pára o Bonde”, mulheres que se fizeram passar por ho-
mens para poderem conviver no meio da malandragem das rodas da capoeira. Personagens len-
dárias como Rosa Palmeirão, a capoeirista que serviu de inspiração para Jorge Amado no romance
Mar Morto, é também um desses exemplos. Respeitada e temida como a mulher mais “arretada”
que sacudiu o cenário dominado pelas figuras masculinas, era Maria 12 Homens, uma capoeirista,
assídua freqüentadora das rodas do Cais Dourado e da rampa do Mercado Modelo. O sobrenome
de Maria, não está registrado na memória de Salvador, mas o apelido, segundo a lenda, foi pelo fato
de ter conseguido levar 12 marmanjos a nocaute. Acima de tudo, essas mulheres fizeram o nome
na história e buscaram seu espaço com muita astúcia e malícia. Em busca de liberdade, consegui-
ram sair vitoriosas, deixando seu registro para a posteridade.
Há vários mitos em torno de mulheres que fizeram de sua honra uma batalha de vida, tornan-
do-se modelos de coragem e de determinação. Conta-se, por exemplo, que Aqualtune, filha do
rei do Congo, comandou um grande exército de dez mil homens quando os Jagas invadiram seu
território. Após tentar defender o reinado, acabou
cabou sendo derrotada e
levada para um navio negreiro como escrava va reprodutora. Foi obri-
gada a ter relações sexuais com um escravo, vo, desembarcando
em Recife grávida. No fim de sua gravidez, organizou uma
fuga com outros escravos para Palmares.
Rosângela Costa Araújo, a Mestra Janja, é uma das Janja: Gostaria, inicialmente, de tratar a capoeira como uma
personagens mais conhecidas no mundo da capo- manifestação cultural afro-brasileira. Isso é muito importante
eiragem. Formada em História pela Universidade para mim, uma vez que considero fundamental não prosse-
Federal da Bahia (UFBA) e Doutora em Educação guirmos pensando o Brasil sem as suas “africanidades”. A
pela Universidade de São Paulo (USP), dedicou mais partir daqui, entendo que a capoeira é uma arte reveladora
de vinte anos de sua vida à capoeira, seja em sua do jeito de ser do brasileiro, desenvolvendo formas criativas
vertente acadêmica, seja na prática do quotidiano. de ser relacionar com realidades muitas vezes violentas.
Nesta entrevista concedida à revista “Textos do É assim que o “gingar”, mais que um movimento específico
Brasil”, Mestra Janja emite suas opiniões a respeito da capoeira, se converteu numa habilidade de vivenciar e en-
da inserção da mulher no mundo da capoeira, das frentar as adversidades, mimetizando luta e dança, e trans-
transformações ocorridas nessa área nos últimos formando estereótipos negativos em alegrias comunitárias.
anos e dos desafios e perspectivas que a capoeira
terá pela frente. TB: A senhora possui uma trajetória de mais de vin-
te anos dedicados ao mundo da capoeira. Nesse
período, quais foram as principais transformações
que a senhora notou em relação à capoeira?
S, RE-
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(1) Volta do mundo é parte de um verso cantado na ladainha, de abertura de um jogo de capoeira.
Esse termo pode ser traduzido como uma senha para o início da movimentação corporal do
jogo e significa também, no mundo capoeirístico, as diversas possibilidades de jogadas a serem
desenroladas durante a roda de capoeira. Alguns autores, como Letícia V. S. Reis (1997), traçam
um paralelo da roda de capoeira aos acontecimentos da vida cotidiana, daí a expressão voltas
do mundo também significar tudo o que é produzido pelos seres humanos no decorrer de
suas histórias.
(2) Neste texto utilizarei o termo Educação Física com as iniciais maiúsculas para designar a área de
conhecimento e educação física com as iniciais minúsculas para tratar da disciplina pedagógica
responsável pela pedagogização dos temas da cultura corporal.
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
As inter-relações entre a capoeira e a Esta análise foi construída a partir do meu trabalho de
Educação Física iniciaram-se no começo mestrado, no campo da Educação Física, orientada pelo
Prof. Dr. Lino Castellani Filho, no qual me propus compre-
do século XX, quando não só autores ender como os estudiosos dessa área de conhecimento se
da Educação Física, mas também da apropriaram da prática social capoeira e dos estudos deri-
Educação e das Forças Armadas buscaram vados desse tema. A partir deste ponto principal, surgiram
mecanismos para incorporar a capoeira ao outros três questionamentos que complementaram a aná-
esporte, em plena ascensão no período, e lise, foram eles: qual a história da prática social capoeira; se
seu percurso histórico corre paralelamente ao da Educação
adaptá-la aos métodos ginásticos. Física, se se intercruzam em algum lugar e em qual mo-
mento; e qual é o entendimento que o segmento vinculado
ao espaço de configuração da regulamentação da profissão
de Educação Física possui, tanto da própria Educação Física
quanto da capoeira, para justificar a subordinação da ação
profissional no âmbito da capoeira aos Conselhos Federal e
Regionais de Educação Física.
Na busca de respostas a essas indagações, foi realiza-
do um estudo bibliográfico referente à capoeira nas áreas
de Educação Física, História, Antropologia e Sociologia, e
também daquelas pertencentes ao mundo capoeirístico3.
Procurou-se complementar o material analisado com da-
dos de fontes bibliográficas originárias de revistas publica-
das nos últimos 20 anos que tratam desse tema.
Pude apreender que a história da prática social capoeira
As relações entre a capoeira permeou todos os debates desenvolvidos, uma vez que ela
serviu de pano de fundo para a compreensão do desen-
e a educação física volvimento dessa manifestação cultural na sociedade bra-
no decorrer do século XX sileira. E foi a partir da retomada de seu percurso histórico
que pude traçar os paralelos existentes entre a capoeira e
a Educação Física.
Primeiramente, é importante mencionar que a capoeira
tem sua origem ligada aos negros escravos que foram tra-
zidos ao Brasil e que forjaram, a partir do século XVI, várias
manifestações em solo brasileiro: o candomblé, o samba,
a congada, o maracatu, entre outras. A capoeira destaca-
se das demais devido à sua grande expansão nos últimos
anos, alcançando países nos cinco continentes do mundo.
Essa manifestação pode ser considerada como um misto
de luta, dança, brincadeira, teatralização, jogo, esporte.
Conforme pude constatar, as inter-relações entre a
capoeira e a Educação Física iniciaram-se no começo do
século XX, quando não só autores da Educação Física, mas
também da Educação e das Forças Armadas buscaram me-
canismos para incorporar a capoeira ao esporte, em plena
ascensão no período, e adaptá-la aos métodos ginásticos4
A idéia principal desenvolvida por esses autores, inclusive
(3) Compreendo como mundo capoeirístico tudo o que é produzido pelos mestres, professores e
praticantes da capoeira fora do âmbito acadêmico.
(4) A implantação da educação física no Brasil é diretamente ligada aos métodos ginásticos
europeus que ganharam força no País a partir do início do século XX. A finalidade desses, assim
como em seus países de origem, era disciplinar os corpos, objetivando o fortalecimento da
população para a produção nas fábricas e desenvolver um plano higienista, sem a preocupação
com o desenvolvimento de políticas sociais de saneamento básico e atendimento médico. Para
se obter mais informações sobre os métodos ginásticos no Brasil consultem as obras Educação
Física: raízes européias e Brasil, de Carmem Lúcia Soares, 1994 e Educação Física no Brasil: a
história que não se conta, de Lino Castellani Filho, 2000.
104
Foto: Ricardo Azoury/Pulsar Imagens
sendo alguns deles praticantes da capoeira, era a de torná- largo. Mas, até esse momento, a inter-relação entre a edu-
la uma modalidade esportiva ou uma luta de defesa pesso- cação física e a capoeira não se manifestava de forma clara
al que representasse a nação brasileira, daí a exaltação de e contundente.
sua brasilidade. Foi em 1945, com o professor Inezil Penna Marinho,
Dessa forma, pautados em um discurso nacionalista e que se concretizaram, de forma mais evidente, os primei-
aderindo à política higienista, em voga no início do século ros passos em direção à apropriação e a busca de um novo
XX, propuseram sua prática destituída dos valores herda- significado para a capoeira por meio da educação física, vi-
dos de suas origens negra e popular5. No entanto, nota-se sando desenvolver uma metodologia para o treinamento
uma oportunidade de aproximação de duas camadas dís- da capoeiragem baseada no Método Zuma. É interessante
pares da sociedade, a classe abastada, representada pelos apontar que esse processo ocorreu paralelamente ao da
autores citados, e a classe pobre, representada pelos ex- legalização dessa manifestação cultural no período do Es-
escravos e trabalhadores. Isso porque o discurso de “disci- tado Novo, década de 1930, demonstrando, novamente, a
plinarização” da capoeira passa a servir, em certa medida, luta dos representantes de classes sociais divergentes pela
para a sua revalorização pela camada dominada, uma vez apropriação da capoeira. No entanto, o resultado dessa luta
que sua prática em locais públicos havia sido proibida pelo foi favorável à proposta advinda dos mestres e praticantes
Código Penal de 1890. da capoeira, pautados em sua origem negra e popular, no-
Nesse sentido surgem ações, requerendo para ambas tadamente os representantes da classe subalterna de Sal-
as partes a legitimidade da capoeira como uma prática na- vador (Bahia), em detrimento daquela do professor Inezil.
cional, porém divergindo completamente na forma como Mas, apesar disso, é inegável a influência da educação física
propunham sua manifestação. De um lado, tínhamos a or- e esporte na configuração da capoeira adotada, hegemoni-
denação da capoeira com o Método Zuma, que sugeria sua
prática baseada no esporte – principalmente, nos moldes
(5) O termo negro e popular refere-se ao modo pelo qual a capoeira é pensada e praticada a
do boxe – e que era apoiada pela classe abastada. E, do partir de sua concepção como uma manifestação ambígua originária das tradições africanas
outro lado, a manutenção de sua prática no interior da ca- no Brasil. Já o termo branco e erudito é usado para designá-la a partir de uma concepção ligada
ao seu enquadramento como método ginástico brasileiro, luta de defesa nacional ou esporte
mada subalterna por meio das manifestações oriundas da legitimamente brasileiro. Estes termos foram forjados e discutidos com maior profundidade por
Letícia V. S. Reis, em seu livro O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil, de 1997.
população negra, como as festas de fundo de quintal e de
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Portanto, considera-se que a primeira camente, a partir das idéias dos mestres baianos. De acor-
inter-relação concreta entre a Capoeira e do com as análises das obras de Frederico José de Abreu7 e
de Antônio Liberac C. S. Pires8, pode-se constatar que foi a
a Educação Física se deu no sentido dos partir da estrutura esportiva que os mestres e praticantes da
praticantes de capoeira apropriarem-se capoeira primeiro demonstraram a possibilidade dessa ma-
do prestígio da Educação Física da época nifestação integrar o rol de modalidades esportivas – partici-
para firmarem suas idéias referentes a essa pação da capoeira nas lutas de ringue – e, depois, passaram
manifestação cultural. a organizar os treinamentos e aulas, servindo-se do prestígio
da educação física, na década de 1930, para posteriormente
apontar a capoeira como a Educação Física do Brasil.
Portanto, considera-se que a primeira inter-relação
concreta entre a Capoeira e a Educação Física se deu no
sentido dos praticantes de capoeira apropriarem-se do
prestígio da Educação Física da época para firmarem suas
idéias referentes a essa manifestação cultural. É interessan-
te mencionar que os mestres soteropolitanos realizaram in-
terpretações próprias sobre a Educação Física e o esporte,
relacionando-os com a prática da capoeira, como podemos
notar nas palavras de mestre Pastinha9: “[...] com franqueza,
já é tempo de zelar pelo esporte. O propósito meu não era
fazer-me melhor que os camaradas, sim valorizar o espor-
te”10. Ou nas explicações de mestre Bimba, para legitimar
seu método de ensino: “Tenho na parede uma autorização
da Secretaria de Educação. Sou professor de cultura físi-
As relações entre a capoeira ca. Ninguém pode mexer comigo”11. Assim, jogando com
os interesses governamentais e defendendo a prática da
e a educação física capoeira de forma democrática12, vemos vingar, a partir da
no decorrer do século XX década de 1930, a pedagogia popular13 para o ensino des-
sa manifestação cultural.
Ao mesmo tempo em que os mestres se utilizaram
da cultura erudita – representada, nesse caso, pelo es-
porte e pela educação física –, eles a remodelaram de
acordo com seus interesses. Dessa maneira, eles reinven-
taram sua tradição e consolidaram o discurso da capoeira
como legítima contribuição da Bahia e do negro baiano
na cultura nacional. Percebemos que, com a supremacia
desse discurso, ocorreu a valorização da capoeira como
uma manifestação cultural ampla, sem a negação de sua
origem africana e sem sua restrição a uma modalidade
esportiva ou luta de defesa pessoal. Notamos que os mes-
tres baianos potencializaram o caráter ambíguo da capo-
eira e, conseqüentemente, de sua prática, pois não recu-
(7) ABREU, Frederico José de. Bimba é bamba: a capoeira no ringue. Salvador: Instituto Jair Moura,
1999.
(8) PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da cultura afro-brasileira: a formação
histórica da capoeira contemporânea (1890 – 1950). 2001. Tese (Doutorado em História) -
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH), Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
(9) Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, e Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba,
foram ícones da capoeira baiana e obtiveram êxito na luta para a retirada da capoeira do rol de
atividades incluídas como contravenção penal, em 1890, conseguindo seu reconhecimento
pela sociedade brasileira, a partir da década de 1930.
(10) FILHO, 1997 apud PIRES, 2001, op. cit., p. 282
(11) ABREU, 1999, op. cit., p. 30.
(12) Conforme cantava Mestre Pastinha e outros mestres contemporâneos a ele: “Capoeira é pra
homem, menino e muié. Só não joga quem não qué”.
(13) Termo sugerido por Letícia Vidor de Souza Reis (1997) para designar as diferenças entre
uma pedagogia gerada pelos mestres de capoeira denominada popular e outra denominada
erudita emanada da área de Educação Física e influenciada pelo sistema social hegemônico
da época.
106
Capoeira
As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Cabe apontar que a capoeira, como bém existiam grupos de capoeira que apoiavam as idéias
manifestação cultural brasileira, também referentes à normalização dessa prática como modalidade
esportiva. Além disso, para acrescentar mais divergências,
passou a ser valorizada na Educação Física. na década de 1980 retomaram-se as antigas idéias ligadas
Isso devido ao desenvolvimento, a partir de à incorporação da capoeira pela educação física, pautadas
1980, de novos paradigmas relacionados à nas propostas dos métodos ginásticos.
área de Educação Física. Nesse contexto, percebe-se variadas situações, uma de-
las advinda do já conhecido professor Inezil Penna Marinho
(1982), que propunha a retomada do plano da capoeira como
a ginástica brasileira. Uma outra que, emanada dos favoráveis
pela permanência da capoeira nos moldes esportivos, de-
fendia a capoeira-esporte. Ainda nesse período, houve uma
movimentação ligada à Educação Física e encabeçada por
alguns de seus intelectuais, que visavam repensar o papel so-
cial dessa área. Se não bastasse todo esse panorama, repleto
de caminhos díspares, ainda houve alguns grupos de capoeira
que defendiam esta prática no rol das manifestações culturais
desvinculadas das normatizações das instituições legais.
Esse quadro complexo teve seu desenlace em alguns sen-
tidos, permanecendo inalterado em outros aspectos. No que
concerne à incorporação da capoeira no rol de manifestações
culturais, sem vínculos com os órgãos governamentais, ainda
existem setores ligados às organizações de capoeiristas que
apóiam esta idéia, mas são minoria. Isso porque não há clare-
As relações entre a capoeira za nos discursos dos seus defensores, por ser, inclusive, óbvia
a dificuldade em manter viva essa manifestação, sem apoio
e a educação física institucional, seja representada por órgãos esportivos, setores
no decorrer do século XX ligados à arte, escola, etc. Além disso, as manifestações cul-
turais que fazem parte da formação do povo brasileiro têm
a proteção legal adquirida com a atual Constituição Brasileira.
Dessa forma, a capoeira já possui um amparo institucional, se
encarada como manifestação cultural.
Cabe apontar que a capoeira, como manifestação cul-
tural brasileira, também passou a ser valorizada na Edu-
cação Física. Isso devido ao desenvolvimento, a partir de
1980, de novos paradigmas relacionados à área de Educa-
ção Física. Nesse movimento, é possível apreender novas
perspectivas, entre elas aquela que sugere à educação fí-
sica escolar a abordagem da “Cultura Corporal Brasileira”,
de acordo com a obra Metodologia do ensino da educação
física, de 1993. Essa proposta parece ser a mais coerente
entre as existentes na Educação Física porque compreen-
de a capoeira dentro de seus aspectos históricos e sociais,
valorizando sua prática e seu estudo.
Diante desse novo enfoque da capoeira no âmbito da
educação física, é possível denominar de progressista os
professores de educação física partidários da ampliação de
seu trato na área. Em algumas obras da década de 199015,
percebe-se o fortalecimento das inter-relações pautadas
(15) Posso citar as obras de FALCÃO, José Luiz. A escolarização da capoeira. Brasília: ASEFE Royal
Court, 1996; REIS, André Luiz Teixeira. Brincando de Capoeira: recreação e lazer na escola.
Brasília: Valcy, 1997 e de ROCHA, Maria Angélica. Capoeira uma proposta para a educação
física escolar. 1990. Monografia (Especialização em Educação Física Escolar) - Faculdade de
Educação Física, Universidade Estadual de Campinas.
108
Capoeira
As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX
no convívio mútuo de situações em que, de um lado ocor- contemporânea (1890 – 1950). 2001. Tese (Doutorado
re a valorização do mestre de capoeira como detentor do em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH),
conhecimento dessa manifestação, e, de outro, o respeito Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
pelo professor de educação física que deseja trabalhar a
capoeira como conteúdo de suas aulas. No entanto, essa REIS, André Luiz Teixeira. Brincando de Capoeira: recreação
forma de ação não é recorrente entre ambas as partes, e lazer na escola. Brasília: Valcy, 1997.
restringindo-se a poucos profissionais que procuram se-
guir por esse caminho. Apesar disso, essa pode ser uma REIS, Letícia Vidor de Sousa. O mundo de pernas para o ar: a
das formas mais ricas e compensadoras para se trabalhar a Capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 1997.
capoeira nas aulas de educação física.
Por fim, é importante apontar que a inter-relação mais ROCHA, Maria Angélica. Capoeira uma proposta para a edu-
rica em termos de produção cultural tanto para a capoeira cação física escolar. 1990. Monografia (Especialização em
como para a área de Educação Física é o ensino de uma Educação Física Escolar) - Faculdade de Educação Física,
prática consciente, tendo sido construída a partir da histó- Universidade Estadual de Campinas.
ria de um povo que foi trazido escravo para o Brasil e teve
a dignidade de, por meio de sua resistência cultural, deixar- SILVA, Paula Cristina da Costa. A Educação Física na roda
nos como legado a arte de lutar sorrindo, dançar lutando, de capoeira – entre a tradição e a globalização. Dissertação
cantar narrando seu passado e relembrar seus antepassa- (Mestrado em Educação Física), Faculdade de Educação Fí-
dos em um jogo corporal chamado capoeira. sica, Universidade Estadual de Campinas, 2002.
______ O mestre de capoeira face a regulamentação da
profissão de Educação Física. In: CONGRESSO BRASILEIRO
DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 12. 2001, Caxambu. Anais..., Ca-
Referências bibliográficas xambu: CBCE, 2001a.
______ Capoeira e Educação Física - uma história que dá
ABREU, Frederico José de. Bimba é bamba: a capoeira no jogo... primeiros apontamentos sobre suas inter-relações.
ringue. Salvador: Instituto Jair Moura, 1999. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 23,
n. 1, pp. 131-145, set./2001b.
AZEVEDO, Fernando de. Da Educação Física: o que ela é,
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CASTELLANI FILHO, L. Pelos meandros da educação fí- Paula Cristina da Costa Silva. Doutoranda da Facul-
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maio/1993. Unicamp/SP, capoeirista da Escola de Capoeira “Saci Pere-
____ Educação Física no Brasil: a história que não se conta. rê” e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
5ª ed., Campinas: Papirus, 2000. Educação Física Escolar (GEPEFE) e do Grupo de Estudos
de Capoeira (GECA).
COSTA, Lamartine Pereira da. Capoeira sem mestre. Rio de
Janeiro: Edições de Ouro, 1962.
109
Benefícios da Capoeira
Benefícios Educacionais
Ricardo Pamfílio de Souza
Filosófico: o despertar dos membros do grupo para os Não existe um modelo educacional da capoeira, mas sim
fundamentos da capoeira. diversos modelos que são individualizados pelos mestres,
sendo autônomos nas suas academias ou nos seus grupos,
Social: conscientização do grupo como tal, com respon- embora vinculados à tradição recebida pelos seus respec-
sabilidade, deveres e direitos dos associados. tivos mestres. Todo o trabalho realizado, envolvendo pro-
cessos cognitivos e afetivos na aprendizagem da capoeira,
Físico: aprendizagem dos movimentos corporais da capo- caracteriza a sistemática de uma prática de ensino na qual
eira dentro de limites físicos e mentais, compatíveis com a todos aprendem. Um dos exemplos dessa aprendizagem
experiência e idade. evidencia-se durante as rodas, quando novos movimentos
corporais são criados pelos aprendizes ou novas cantigas
Artístico: aspectos estéticos referentes à música da são improvisadas em cima de um fundo comum compa-
capoeira, às cantigas e aos toques de berimbau, ataba- tível com o inconsciente coletivo da capoeira. Trata-se de
que, pandeiro e agogô, além da dança e da encenação um ensino não ligado a uma instituição educacional formal,
do jogo. mas a uma cultura, a cultura da capoeira angola.
A capoeira é uma atividade física que se utiliza de exercícios desempenho eficaz, ou seja, executar movimentos com
dinâmicos, pois há deslocamentos do corpo, envolvendo vários amplitudes máximas, acabam por oferecer ao capoeirista a
grupos de músculos de maneira contínua e rítmica. No que diz elegância do movimento.
respeito ao tipo de contração muscular, os exercícios são isotô- A capoeira é também um método satisfatório para se
nicos e isométricos, além disso necessitam de esforço intenso. atingir força muscular, tendo em vista que em muitos mo-
Como qualquer atividade física, a capoeira apresenta mentos usa o peso corpóreo como resistência, como nas
efeitos fisiológicos – cardiovasculares, pulmonares e mus- posições de equilíbrio sobre pescoço e membros. Além dis-
culares. Há que se levar em conta que, além da idade e do so, por ser uma luta, utiliza-se de golpes de ataque e contra-
sexo, muitos outros fatores influenciam as respostas aos ataque, saltos e esquivas, nesse caso empregando-se a resis-
exercícios, tais como a postura, a massa total de músculos tência contra o adversário. Pode-se obter força, também, ao
envolvidos no esforço, o ambiente, o estado de hidratação e se praticar saltos, saltitos, paradas de mão e pela movimenta-
o treino físico do indivíduo. ção constante entre o jogo de chão e o jogo alto.
As qualidades físicas desenvolvidas pela capoeira são a Há duas formas de se desenvolver a resistência na ca-
flexibilidade, a força, a resistência, a velocidade, o equilíbrio, a poeira: uma na roda e outra nos treinamentos. Nos treinos,
agilidade e a coordenação. utiliza-se a chamada resistência específica, ou seja, a capa-
Considera-se a prática da capoeira um ótimo meio para cidade de executar as habilidades técnicas, com movimen-
adquirir flexibilidade, pelo fato de que os esforços extras tos intensos durante a prática esportiva. Na roda, exige-se
dos músculos e das articulações exigidos para se ter um do praticante também a resistência geral, a qual considera
o nível de condicionamento físico e de coordenação. A re-
sistência é uma qualidade essencial para o capoeirista, pois
é por meio dela que poderá demonstrar suas habilidades
na roda, devido à sua constante movimentação.
Na capoeira exige-se, em muitos momentos, certa velo-
cidade dos movimentos, seja para se deslocar, para mover
braços ou pernas rapidamente (golpes, ataques), ou para re-
agir a estímulos externos (contra-ataques, defesa, esquiva),
aprimorando-se os reflexos com agilidade e malícia. Esses
movimentos são acíclicos e caracterizados por não serem
uniformes e manterem acelerações diferenciadas.
Outra qualidade física adquirida com a prática dessa mo-
dalidade é o equilíbrio. Durante o jogo de capoeira, muitas
vezes o praticante precisa equilibrar-se em um dos pés, em
ambos ou até em uma das mãos, com os pés suspensos
ou não, durante certo espaço de tempo. O equilíbrio é in-
tensamente desenvolvido em movimentos, como o aú1 e a
bananeira2, para ficar em dois exemplos; ou em golpes como
o martelo3, a benção4 e a ponteira5.
(1) Floreio em que o capoeirista, apoiando as duas mãos no chão, forma uma figura semelhante à
letra “A” e, posteriormente, erguendo as pernas, forma uma figura semelhante à letra “U” para,
em seguida, retornar ao chão, num movimento semelhante ao da estrela.
(2) Floreio em que o capoeirista apóia as mãos no chão e fica parado, verticalmente, de cabeça
para baixo.
(3) Golpe traumático em que o capoeirista, com o dorso do pé, atinge seu adversário no rosto
ou no tronco.
(4) Golpe traumatizante e desequilibrante em que o capoeirista levanta uma perna e a impulsiona à
frente com violência, a fim de atingir o adversário no tronco com a sola do pé.
(5) Golpe traumatizante aplicado com o extremo da planta do pé.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Um grande mestre não educa apenas para a A capoeira desempenha um papel fundamental para
roda de capoeira. promover inclusão, igualdade e cidadania. As diferenças e
contradições sociais estão em todas as partes: nas condi-
ções de vida, nas oportunidades de estudo e de trabalho,
no acesso aos serviços fundamentais de habitação, saúde,
segurança, transporte, esporte, lazer e cultura. Tudo isso
vem reafirmando historicamente as desigualdades.
A capoeira, como produto da cultura popular, pode
e deve contribuir para reverter esse quadro e favorecer
a aproximação das pessoas, valorizando-as pelo que são,
em essência, e não pelas suas condições materiais. Contri-
bui, também, para a construção de espaços democráticos,
onde todos tenham direitos e oportunidades iguais; para
a compreensão das relações entre passado, presente e
futuro; e, sobretudo, para despertar a consciência política
e a capacidade de afirmação da cidadania e dos direitos
humanos fundamentais.
116
Capoeira
Capoeira e Inclusão Social
miliar, escolar e comunitária. Saber ouvir é fundamental, do praticantes. Em todo o Brasil, têm proliferado os trabalhos
mesmo modo que compartilhar, trocar e estabelecer par- do terceiro setor em diversos projetos junto às comunida-
ceria com os alunos e incentivá-los, apoiá-los, oferecer-lhes des. A capoeira vem ocupando espaço de destaque nesse
suporte emocional e intelectual, sabendo, é claro, que nem contexto e oferecendo contribuições significativas para a
sempre é possível resolver todos os problemas do aluno. inclusão social.
E essa não deve ser efetivamente a intenção. Trata-se de
oferecer uma orientação que o ajude a encontrar o melhor
caminho. Ser mestre é, em muitos momentos, ser pai, ser
amigo, ser irmão.
Evento Projete Liberdade Capoeira: Confraternização Projeto Porta Aberta: Capoeira e Cidadania
117
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Gradativamente, a capoeira vem promovendo inclusão de a capoeira realmente cumpra seu papel de incluir pessoas
pessoas que, até bem pouco tempo, estavam distantes e com diferentes condições sociais.
separadas da sua prática. Um trabalho com essas características tem como um
dos seus objetivos principais a construção e o desenvol-
vimento de cidadãos conscientes, verdadeiros líderes co-
munitários, capazes de promover transformação do seu
entorno imediato e do seu país como um todo. Cidadãos
com capacidade de tomar decisões que promovam o bem
estar e a justiça para a sociedade em que vivem.
118
Capoeira
Capoeira e Inclusão Social
tem sido reconhecido todo o potencial da capoeira como No Brasil, o Governo vem reconhecendo cada vez mais
instrumento de desenvolvimento integral do ser humano. o potencial da capoeira em promover cidadania e vem ofe-
Mais recentemente, importantes trabalhos foram realizados recendo recursos para programas que envolvem a moda-
com pessoas idosas, que têm demonstrado ser a modalida- lidade. No entanto, dada a dimensão e o potencial da ca-
de uma excelente aliada na promoção da sua qualidade de poeira, as ações ainda têm muito a crescer. É preciso atuar
vida. Cada um joga dentro de suas capacidades, dos seus li- de forma mais consistente, produzindo conhecimento e
mites e muitas vezes esses limites são mais amplos do que promovendo ações sistemáticas, planejadas e continuadas
se imagina. E mesmo quem acreditava não ser capaz, pode de capacitação e educação dos seus educadores. O que se
se surpreender com as possibilidades que a capoeira ofere- vê são iniciativas isoladas, dentro de alguns grupos. Existe
ce em termos de movimentos e de convivência social. pouca articulação e troca de informações. Muito do que se
Além do jogo em si, com seus movimentos de ataque, faz é produto da criatividade e da iniciativa individual de al-
defesa e acrobacias, o que mais atrai os idosos à prática da guns mestres e professores de capoeira. Ações integradas
capoeira é o seu lado lúdico, artístico e sociável. O movi- entre Governo, universidades e a comunidade da capoeira
mento espontâneo, alegre e prazeroso é essencial. Perten- devem ser priorizadas.
cer a um grupo, estar entre amigos, relacionar-se e interagir
com o outro são aspectos fundamentais para a saúde inte-
gral do ser humano em todas as idades e, especialmente, CAPOEIRA EM FAMÍLIA. No processo de educação e in-
na terceira idade. clusão por meio da capoeira, a presença e a participação da
família são de grande importância. Pais, irmãos, tios, avós,
primos e filhos são o núcleo de referência mais próximo ao
CAPOEIRA ESPECIAL. Quando falamos em inclusão aluno. É na família que o aluno tem suas primeiras experi-
não podemos deixar de falar dos portadores de necessi- ências de vida. Em grande parte, o que ele vive no seio da
dades especiais, entre essas o que é mais importante: a família influenciará muito o seu caráter, os seus sentimen-
capacidade de acreditar na vida e de superar limites, dar tos, comportamentos e atitudes.
a volta por cima, desenvolver o seu potencial e alcançar
seus objetivos. Também para essas pessoas, a capoeira tem
representado um grande instrumento de desenvolvimento
biológico, psíquico e social. Os portadores de necessidades
especiais conseguem aderir à prática da capoeira, seja re-
alizando movimentos, tocando ou cantando. Muitas novas
metodologias têm sido desenvolvidas para o ensino da ca-
poeira para essa população. Cada vez mais, vemos a capa-
cidade de inclusão da capoeira ser ampliada. Há grupos de
trabalhos constituídos exclusivamente por portadores de
necessidades especiais e há grupos heterogêneos compar-
tilhando o mesmo espaço, o que tem trazido resultados
surpreendentes. Pessoas são especiais por diversos moti-
vos, mas principalmente por terem um nível de sensibili-
dade diferenciado. O que em um primeiro momento pode
gerar uma limitação, na verdade passa a ser um desafio,
que, quando superado, traz felicidade e realização pessoal.
119
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A luta da capoeira vem inspirando lhas podem ser reações observáveis em crianças que cres-
milhares de brasileiros a lutarem pela vida, cem em lares com carência de afetividade e harmonia.
No entanto, o fato de terem enfrentado dificuldades
por si mesmos e por suas comunidades. dentro de casa não deve significar problemas para as crian-
O objetivo principal do projeto é a ças. Ao encontrar e conviver com outro ambiente, onde
transformação por meio da prática de exista amor, respeito, diálogo, disciplina e compreensão, a
manifestações culturais. É a formação de criança desperta em si mesma o amor próprio e a auto-
cidadãos honestos, sensíveis e participativos. estima, desenvolvendo comportamentos pessoais e sociais
adequados. Passa a agir com ética e com equilíbrio tanto
nas suas relações em família quanto na comunidade.
É exatamente neste ponto que a capoeira pode cumprir
um papel decisivo na vida de crianças e jovens, contribuindo
para a sua inclusão social ao representar esse espaço de re-
estruturação em suas vidas. Para tanto, é preciso que haja di-
álogo e confiança do mestre para com os alunos, dos alunos
para com o mestre e dos alunos para com os seus pares.
120
Capoeira
Capoeira e Inclusão Social
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Nos últimos anos, muitos capoeiras1 Nos últimos anos, muitos capoeiras1 saíram do Brasil em
saíram do Brasil em busca de melhores busca de melhores condições de vida e de reconhecimen-
to. Nesse movimento, além de contribuírem, efetivamente,
condições de vida e de reconhecimento. com o processo de expansão de sua arte pelo mundo, co-
Nesse movimento, além de contribuírem, laboram com a divulgação da cultura brasileira no exterior
efetivamente, com o processo de expansão por meio de discursos que realçam a capoeira à condição
de sua arte pelo mundo, colaboram com de prática “exótica”, “tropical”, “brasileiríssima”.
a divulgação da cultura brasileira no Se à época da escravidão no Brasil o sangue jorrava da
caneta do feitor2 em sistemáticas investidas contra a ca-
exterior por meio de discursos que realçam poeira3, nos últimos anos, ela passou a receber do poder
a capoeira à condição de prática “exótica”, público um tratamento bem diferente, materializado por
“tropical”, “brasileiríssima”. algumas iniciativas de reconhecimento e valorização desse
importante símbolo da cultura brasileira.
Em comparação com os dias atuais, os capoeiras de ou-
trora tinham uma relação bem diferente com sua prática.
Porém, assim como hoje, não constituíam um bloco único
e não a cultivavam com a mesma finalidade. Se no Rio de
Janeiro ela teve uma vinculação forte com as maltas, as bri-
gas de rua e a política do Segundo Reinado, em Salvador,
ela tinha uma relação amistosa com os botecos, com as
quitandas, que, por sua vez, se beneficiavam de suas artísti-
cas manobras para atrair fregueses.
Antigamente, os trapicheiros, carroceiros, estivadores,
carregadores, vendedores ambulantes e também desem-
pregados reuniam-se próximo aos botecos, praças e largos
para tagarelar, beber e jogar, utilizando a capoeira como
A internacionalização atividade de lazer ou de disputa de espaço. Hoje, é comum
da capoeira ver profissionais de diferentes áreas utilizando a capoeira
como atividade de lazer. Muitos utilizam-na como trabalho,
como uma opção profissional, como um modo de sobre-
viver. Somado a esse contingente, encontra-se expressivo
segmento de jovens que vislumbra, na capoeira, um campo
de emprego nem sempre possível nas instituições e em-
presas convencionais.
Mesmo de forma precária, mas com grandes pitadas de
criatividade, esses profissionais utilizam-se dessa manifes-
tação cultural como meio de obterem recursos. Buscam
as mais inusitadas possibilidades para escapar da sina da-
queles que, considerados pela maioria como os grandes
mestres da capoeira, morreram em situação de miséria
absoluta. Mestres como Pastinha, Bimba, Valdemar da Li-
(1) Para designar os (as) agentes da capoeira (praticantes, mestres (as), professores (as), militantes
etc.), utilizaremos o termo capoeira em vez de capoeirista, por entendermos que o primeiro
tem, na cultura, o seu campo privilegiado de ação, enquanto que capoeirista nos sugere uma
intervenção mais específica, mais especializada.
(2) Em alusão a uma cantiga do Mestre Toni Vargas.
(3) De acordo com Rego (1968), a capoeira foi tratada durante muito tempo como caso de polícia,
“que dormia e acordava no calcanhar dos capoeiras” (p. 43). Alguns dos mais consistentes
estudos sobre a história da capoeira foram realizados a partir da documentação existente nos
arquivos da polícia brasileira. Ver Pires (1996) e Soares (1994 e 2001).
(4) Mestre Pastinha (1889-1981) - principal guardião da Capoeira Angola, fundou em 1941 o
Centro Cultural e Esportivo de Capoeira Angola, em Salvador. Faleceu cego e esquecido. Mestre
Bimba (1899 – 1974) fundou a primeira academia de capoeira do Brasil e foi o criador da
Capoeira Regional, um estilo de capoeira mundialmente conhecido. Faleceu pobre, lutando
por melhores condições de vida, em Goiânia-GO. Mestre Waldemar da Liberdade conduziu nas
décadas de 40 e 50, aos domingos, a roda de capoeira que se tornou o mais importante ponto
de encontro dos capoeiras de Salvador, onde o escritor Jorge Amado e o fotógrafo Pierre Verger
“se alimentavam culturalmente” (ABREU, 2003, p. 43). Morreu, em 1990, na pobreza, como
tantos outros capoeiras célebres.
124
berdade e outros,4 que “experimentaram a encruzilhada da
fome com a fama” (ABREU, 2003, p. 14), apesar de se torna-
rem os grandes referenciais da capoeiragem no século XX,
são, para as novas gerações de capoeiras, produtos de uma
condição de exploração da qual estas tentam se esquivar.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Influenciadas por outras perspectivas, brasileiros para competir nos diversos campeonatos orga-
expressivas levas de capoeiras estrangeiros nizados por grupos com sede no Brasil e que possuem filiais
em outros países6. A despeito das freqüentes críticas a essa
desembarcam nos aeroportos brasileiros forma de tratamento, esses campeonatos têm contribuído
para competir nos diversos campeonatos bastante para a divulgação da capoeira no exterior.
organizados por grupos com sede no Brasil Convém destacar que o grande interesse dos es-
e que possuem filiais em outros países6. A trangeiros pela capoeira se desdobra imediatamente em
despeito das freqüentes críticas a essa forma dois desejos: conhecer o Brasil e falar o português. Mui-
tos mestres e professores que ministram aulas no exte-
de tratamento, esses campeonatos têm rior, em busca de um apelo ao mais “tradicional”, fazem
contribuído bastante para a divulgação da questão de se expressarem no idioma português. Na luta
capoeira no exterior. por uma identidade baseada na tradição afro-brasileira,
muitos professores chegam a proibir nos seus trabalhos
que se façam traduções de nomes de golpes, de movi-
mentos, de cantigas e de instrumentos de capoeira. Falar
português nas aulas de capoeira é um requisito que opera
como uma espécie de “selo de qualidade” e vem contri-
buindo para abrir campos de trabalhos antes impensáveis.
O Hunter College, uma das mais tradicionais faculdades
de Nova York, já oferece cursos regulares de português,
em decorrência da demanda provocada pela capoeira
(NUNES, 2001, p. 3).
Entretanto, ao mesmo tempo em que o ex-frentista
de posto de gasolina, o brasileiro Mestre João Grande, ra-
dicado em Nova York há mais de dez anos e ganhador
do título de Doutor Honoris Causa do Upsala College, de
A internacionalização Nova Jersey, em 1996, ministra aulas em sua Academia no
da capoeira West Village, num autêntico português da Bahia, por ou-
tro lado, muitos workshops são traduzidos para outras lín-
guas (inglês principalmente), aqui mesmo no Brasil, como
é o caso do “Capoeirando”, evento organizado por reno-
mados mestres e realizado durante o verão em pontos
turísticos estratégicos do território brasileiro, para onde
se dirige expressiva massa de estrangeiros em busca da
“autêntica” capoeira.
Nesse complexo movimento de internacionalização, a
capoeira vem conquistando espaço nos mais diversos rin-
cões do planeta. Além da internet, os filmes também têm
contribuído para esse processo, sendo o primeiro deles, o
brasileiro “O Pagador de Promessas”, que ganhou prêmios
internacionais. Entretanto, foram as produções norte-ame-
ricanas, Only the Strong Survive (no Brasil recebeu o título
agressivo de “Esporte Sangrento”) e Roof Tops, que conse-
guiram emplacar maior difusão da arte-luta.
O movimento de difusão da capoeira no contexto
mundial é mais visível e intenso em direção aos Estados
Unidos e à Europa. Com raras exceções comprometidas
em desenvolver trabalhos de “retorno” dessa arte-luta à
(5) O Mestre João Pequeno é o professor de capoeira mais antigo do Brasil em atividade, atualmente
(2007), está com 89 anos. No dia 18 de dezembro de 2003, recebeu o título de Doutor Honoris
Causa pela Universidade Federal de Uberlândia-MG.
(6) Grandes grupos de capoeira realizam, atualmente, encontros internacionais, com a presença
de mestres e discípulos de vários países, como é o caso da Associação Brasileira de Apoio e
Desenvolvimento da Arte Capoeira (Abada-Capoeira), que é uma entidade que congrega mais
de 30 mil capoeiras em 26 países.
126
Capoeira
A internacionalização da capoeira
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
É verdade que a capoeira, com esse academias geralmente era que não queriam
“carimbo” de Brasil embutido em suas nada com galinheiros aqui em Portugal, porque
capoeira aqui em Portugal significa galinheiro.
cantigas e comportamentos, ramificou-se Então isso dificultou muito o início do trabalho
e expandiu-se significativamente e tem aqui (Mestre Umoi, comunicação pessoal, 27
servido, atualmente, como veículo de de junho de 2003)8.
agregação de povos de vários cantos do
mundo, adquirindo, assim, uma identidade A dedicação de muitos mestres e professores deu con-
tinuidade à iniciativa implementada por Nestor Capoeira e
supranacional. contribuiu para que essa manifestação adquirisse densida-
de, diversidade, visibilidade e prestígio social.
Na Europa, essa densidade expressa-se pelo rico acer-
vo cultural embutido nos seus gestos, cantos e história, os
quais extrapolam as referências de sua baianidade e edifi-
cam uma brasilidade, embora idealizada, à medida que não
leva em consideração as evidentes diferenças culturais (e
econômicas) presentes no Brasil. O fato é que essa mobili-
dade, expressada pela saída de capoeiras de diferentes cida-
des brasileiras em direção ao Velho Mundo e à América do
Norte, contribui para ampliar as referências culturais dessa
manifestação e ornamentar esse carimbo de brasilidade. Um
professor norueguês afirma que: “hoje em dia, as pessoas já
conhecem bem o que é a capoeira e querem a capoeira (...).
Quem procura a capoeira já tem uma idéia que é uma coisa
brasileira e querem isso!” (Professor Torcha, comunicação
pessoal, Oslo, Noruega, 18 de agosto de 2003).
A internacionalização É verdade que a capoeira, com esse “carimbo” de Brasil
da capoeira embutido em suas cantigas e comportamentos, ramificou-
se e expandiu-se significativamente e tem servido, atual-
mente, como veículo de agregação de povos de vários
cantos do mundo, adquirindo, assim, uma identidade su-
pranacional. O Mestre Umoi, já citado, afirma:
(8) Esse e outros depoimentos presentes nesse artigo foram tomados por ocasião de Estágio de
Doutoramento realizado pelo autor entre abril e agosto de 2003, na Europa, e serviram como
fonte para a elaboração do quarto capítulo da tese de Doutorado intitulada: O Jogo da Capoeira
em Jogo e a Construção da Práxis Capoeirana (FALCÃO, 2004).
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Capoeira
A internacionalização da capoeira
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
“Você vê muito angoleiro alemão jogando ário nesse reformatório em Caxias, na Linha de
uma Angola tão boa e até melhor do Cascais, que é um centro de correção. É como
se fosse um presídio de menores. Tinha lá uma
que muito capoeirista que nunca saiu de grande problemática, com muito aluno africano,
Salvador, que nunca saiu do Brasil. Aí você com muito aluno português, mas tinha até riva-
fala. Ah! é porque é alemão? Não, é porque lidades raciais mesmo. Eu apresentei lá o projeto
é capoeirista.” como estagiário. Felizmente a diretora já tinha
(Mestre Umoi, comunicação pessoal, Amsterdã, 18 de passado vinte anos no Brasil. Conseqüentemen-
agosto de 2003). te, conhecia capoeira e quando leu meu projeto,
não associou a galinheiro, a galinha, nem nada,
e isso foi uma coisa muito boa. Ela me aceitou
como estagiário. De estagiário me contratou e
no final do meu curso eu já fui contratado pelo
Ministério da Justiça, onde estou até hoje lá
(Mestre Umoi, comunicação pessoal, Lisboa –
Portugal, 27 de junho de 2003).
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Capoeira
A internacionalização da capoeira
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Revista Textos do Brasil
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Capoeira
A internacionalização da capoeira
Considerações finais. A realidade de algumas experiên- FALCAO, J. L. C. O jogo da capoeira em jogo e a construção da
cias sistemáticas de capoeira no exterior serve como fonte práxis capoeirana. Tese (Doutorado em Educação). Salvador-BA.
de inspiração para refletirmos sobre as possibilidades desse Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, 2004.
símbolo de brasilidade que vem encantando um número
cada vez mais expressivo de estrangeiros. Desta análise, é NUNES, V. Capoeira made in NYC. Correio Braziliense. Brasí-
possível depreender que a capoeira consolidou-se como lia-DF, Caderno Coisas da Vida, p. 1 e 3, 13 mar. 2001.
manifestação interétnica e o seu processo de internaciona-
lização, verificado a partir da década de 1970, não aniquilou PIRES, A. L. C. S. A capoeira no jogo das cores: criminalidade,
a participação de sujeitos políticos no campo cultural, mas, cultura e racismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1937).
sim, criou para eles novos desafios. Dissertação (Mestrado em História). Campinas-SP, Instituto
Algumas experiências com a capoeira colocadas em prática de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História,
no exterior vêm confirmando e ampliando os traços de trans- Universidade Estadual de Campinas, 1996.
nacionalidade que contribuíram para o seu desenvolvimento,
desafiando a fragilidade dos discursos que, ingenuamente, a tra- REGO, W. Capoeira Angola: um ensaio sócio-etnográfico.
tam como uma prática apropriada a determinadas camadas da Salvador: Itapuã, 1968.
população e vinculada a grupos étnicos específicos.
A complexidade e a dinamicidade da capoeira eviden- SANTANA, J. Velhos mestres. Correio da Bahia. Salvador: Ca-
ciam-se na intensificação do seu processo de internacio- derno Correio Repórter, p. 1-7, 15 abr. 2001.
nalização, cuja mobilidade se expressa horizontalmente,
pelos trânsitos e fluxos dos capoeiras em todo o mundo, SOARES, C. E. L. A negregada instituição: os capoeiras no
e verticalmente, pela possibilidade concreta de ascensão Rio de Janeiro, 1850-1890. Rio de Janeiro: Secretaria Muni-
na estratificada sociedade. Apesar de constatarmos uma cipal de Cultura, 1994.
sistemática reafirmação de que ela é “coisa nossa”, o que,
em tese, conferiria a todos os brasileiros o direito de exclu- SOARES, C. E. L. A capoeira escrava e outras tradições rebel-
sividade sobre a sua “mandinga”, as experiências analisadas des no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Campinas-SP: Editora
demonstraram que esse discurso se constrói sob a égide da Unicamp, 2001.
do conflito e da ambigüidade. A capoeira pode até ser “coi-
sa do Brasil”, mas também é de todo o mundo, à medida TRAVASSOS, S. D. Negros de todas as cores: capoeira e
que para ser ensinada, praticada, transmitida, construída, mobilidade social. In: BACELAR, J. & CAROSO, C. (Orgs.). Bra-
ela precisa ser compartilhada, dividida, multiplicada. sil: um país de negros? Rio de Janeiro: Pallas; Salvador-BA:
A capoeira pode ser interpretada de acordo com valores CEAO, p. 261-271, 1999.
e regras sociais. Como construção social e como manifesta-
ção cultural que permanentemente se constrói, a capoeira é VASSALLO, S. P. A transnacionalização da capoeira: etnicida-
influenciada pelo tempo histórico em que se situa, mas tam- de, tradição e poder para brasileiros e franceses em Paris. In:
bém edificada a partir dos interesses e das ações dos sujeitos Anais da Quinta Reunião de Antropologia do Mercosul. Flo-
que, por meio dela, atuam e disputam poder na sociedade. rianópolis-SC, 30 de novembro a 03 de dezembro de 2003.
Embora parcela significativa de capoeiras a trate como
símbolo étnico (capoeira é brasileira! é africana! é afro-brasilei- WEELOCK, Julie. Capoeira para americano jogar. Jornal do
ra!), seu movimento de internacionalização leva-nos a pensá-la Brasil, Rio de Janeiro, 11 Jan. 1989, p. 8, Caderno B.
como uma manifestação com status de patrimônio cultural da
humanidade. Nessa perspectiva ela não teria pátria, embora
carregaria símbolos de sua inquestionável brasilidade. José Luiz Cirqueira Falcão. Professor do Centro de
Desportos da Universidade Federal de Santa Catarina. Dou-
tor em Educação pela Universidade Federal da Bahia.
Referências bibliográficas
133
Carybé
Hector Julio Páride Bernabó, ou Carybé, nasceu em La- a renovação das artes plásticas. Em 1955 foi eleito o melhor
nús (Argentina) em 07 de fevereiro de 1911 e faleceu em desenhista da III Bienal de São Paulo, e em 1961 recebeu o
Salvador, em 02 de outubro de 1997. Destacou-se pela arte mérito de expor em sala exclusiva. Em 1957 naturalizou-se
figurativa brasileira, sobretudo a baiana, com motivos de mu- brasileiro, fato que legitimou sua condição de ícone da Bahia.
latas lavadeiras, pescadores, e capoeiristas, por meio de es- Com efeito, suas obras visam, sobretudo, a retratar a riqueza
tilo que se aproxima da abstração. Apesar de ter nascido na da cultura popular baiana.
Argentina e vivido sua infância na Itália, foi no Brasil que teve Carybé realizou mais de cinco mil trabalhos, entre pin-
sua formação artística e morada definitiva. Mudou-se para turas, desenhos, esculturas e esboços, incluindo ilustrações
o Brasil em 1919, e freqüentou a Escola Nacional de Belas para obras de autores consagrados como Jorge Amado, Ru-
Artes entre 1927 e 1929. bem Braga, Mário de Andrade e Gabriel Garcia Marquez. Pos-
Seu primeiro contato com a Bahia foi em 1938, quando sui murais nas cidades de Salvador, Londres e Nova York, em
foi enviado pelo jornal Prégon para fazer uma reportagem que se nota influência de Picasso e Rivera. Entre suas obras
sobre o célebre personagem Lampião. Com a falência do impressas, destacam-se a Iconografia dos Deuses Africanos
periódico, estendeu sua jornada pelo litoral norte do Brasil, no Candomblé da Bahia, resultado de 30 anos de pesqui-
que lhe inspirou desenhos para sua primeira exposição cole- sa, As Sete Portas da Bahia, coletânea de desenhos sobre a
tiva, em Buenos Aires, em 1939. Sua relação com o Brasil se cultura baiana, e Olha o Boi e Bahia, Boa Terra Bahia, ambos
aprofunda na década de 1940, quando verteu Macunaíma, em parceria com Jorge Amado. O escritor baiano, seu gran-
de Mário de Andrade, para o espanhol. Na década de 1950, de amigo, em um de seus versos integrantes da Cantiga de
a convite do Secretário da Educação Anísio Teixeira, Carybé capoeira para Carybé, traça bela descrição da relação de Ca-
muda-se definitivamente para Bahia, onde auxilia a promover rybé com a cultura baiana:
É de Carybé, camarado,
Ê camarado, ê. [...]”
Pierre Verger
Pierre Verger nasceu em Paris, no dia quatro de novem-
bro de 1902. Desfrutando de boa situação financeira, ele
levou uma vida convencional para as pessoas de sua classe
social até a idade de 30 anos, ainda que discordasse dos
valores que vigoravam nesse ambiente. O ano de 1932 foi
decisivo em sua vida: aprendeu um ofício - a fotografia - e
descobriu uma paixão - as viagens. De dezembro de 1932
até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos de
viagens ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamen-
te da fotografia. Verger negociava suas fotos com jornais,
agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresas
e até trocou seus serviços por transporte. Paris tornou-se
uma base, um lugar onde revia amigos - os surrealistas liga-
dos a Prévert e os antropólogos do Museu do Trocadero - e
fazia contatos para novas viagens. Trabalhou para as me-
lhores publicações da época, mas como nunca almejou a
fama, estava sempre de partida: “A sensação de que existia
um vasto mundo não me saía da cabeça e o desejo de ir
vê-lo me levava em direção a outros horizontes”.
As coisas começaram a mudar no dia em que Verger
desembarcou na Bahia. Em 1946, enquanto a Europa vi-
via o pós-guerra, em Salvador, tudo era tranqüilidade. Foi
logo seduzido pela hospitalidade e riqueza cultural que en-
controu na cidade e acabou ficando. Como fazia em todos
os lugares onde esteve, preferia a companhia do povo, os
lugares mais simples. Os negros monopolizavam a cidade
e também a sua atenção. Além de personagens das suas
fotos, tornaram-se seus amigos, cujas vidas Verger foi bus-
cando conhecer com detalhe. Quando descobriu o can- centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu, dei-
domblé, acreditou ter encontrado a fonte da vitalidade do xando à FPV a tarefa de prosseguir com o seu trabalho.
povo baiano e se tornou um estudioso do culto aos orixás. “A criação da Fundação Pierre Verger foi a conseqüên-
Esse interesse pela religiosidade de origem africana lhe cia de dois de meus amores: o que sinto pela Bahia e aquele
rendeu uma bolsa para estudar rituais na África, para onde que tenho pela região da África, situada no Golfo de Benin.
partiu em 1948. Além da iniciação religiosa, Verger começou Ela se propõe, através de seus objetivos e suas atividades, a
nessa mesma época um novo ofício, o de pesquisador. A his- realçar esta herança comum, oferecendo à Bahia o que ela
tória, costumes e principalmente a religião praticada pelos conhece sobre o Benin e a Nigéria e informar esses países
povos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e na sobre suas influências culturais na Bahia”, afirmou Verger no
Bahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisas primeiro boletim informativo da FPV. Ele doou à Fundação
e sua obra.. Como colaborador e pesquisador visitante de todo o seu acervo pessoal, reunido em décadas de viagens
várias universidades, conseguiu ir transformando suas pes- e pesquisas. São dezenas de artigos, livros, 62 mil negativos
quisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comprou fotográficos, gravações sonoras, filmes em película e vídeo,
a casa da Vila América. No final dos anos 70, ele parou de além de uma coleção preciosa de documentos, fichas, cor-
fotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África. respondências, manuscritos e objetos.
Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação de Criada legalmente em 1988, a Fundação é uma pessoa
Verger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um nú- jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, com autono-
mero maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acer- mia administrativa e financeira, que funciona até hoje na
vo. Na década de 80, a Editora Corrupio cuidou das primeiras mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, na
publicações no Brasil. Em 1988, Verger criou a Fundação Pier- Ladeira da Vila América, em Salvador. Gerida por um grupo
re Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente, de amigos, colaboradores e admiradores de Verger, a Fun-
assumindo assim a transformação da sua própria casa num dação cuida da preservação e divulgação de sua obra. En-
tre funcionários, diretores e curadores estão algumas das
pessoas que conviveram com Verger mais de perto nos
últimos anos de sua vida.