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A SOCIEDADE CONTRA O

ESTADO ( P. Clastres)
A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO ( P. Clastres)

A Sociedade contra o Estado ( P. Clastres)

A Sociedade contra o Estado é uma obra fundamental cujo autor é Pierre Clastres,
fundador da antropologia política e um dos maiores antropólogos de todos os tempos.

A sociedade contra o Estado, coletânea de onze artigos publicados por Pierre Clastres
entre 1962 e 1974, é um dos mais importantes trabalhos de antropologia políticos já
divulgados. Lançada em 1974, traz o sabor de sua época refletindo uma reviravolta
nas ciências humanas, propiciada na década anterior por autores franceses como
Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault e Gilles Deleuze.

Como estes Clastres agarram-se ao projeto de uma forte crítica da Razão ocidental -
no seu caso, uma crítica da Razão política, então aferrada em noções de dominação e
subordinação. No entanto, Clastres morreu prematuramente (aos 43 anos), não
podendo continuar, como queria e poderia ter feito o seu projeto original de
constituição de uma antropologia política geral.

A tese que atravessa os textos da coletânea, fortemente alinhavados a despeito dos


anos que os separam, é retumbante: a sociedade civil pode prescindir da figura do
Estado, e isso pode ser verificado - empiricamente - na experiência de boa parte dos
povos indígenas da América do Sul. Com efeito, o argumento lançado aguçou o
interesse de antropólogos, filósofos e cientistas políticos. Se, por um lado, Clastres
escrevia para especialistas em povos não-ocidentais, tocando num problema bastante
delicado para eles - até que ponto essas sociedades podem ser ditas igualitárias? -, por
outro, ele (re) abria uma séria discussão, própria da filosofia política, sobre a natureza
do poder político.

Um chefe sem poder

A figura que serviria de inspiração a Clastres é a do chefe indígena (figura certamente


genérica), autoridade que não detém poder algum, prisioneiro do grupo. Mesmo
dotado de privilégios como a poliginia (casamento com mais de uma mulher), esse
chefe está submetido a uma série de obrigações que pressupõem certas habilidades,
dentre as quais, as mais importantes são a generosidade e o dom da oratória.

O chefe indígena é, em suma, aquele que pode dar e sabe falar. Essa sua fala reúne os
homens ao seu redor sem, no entanto, mostrar-se eficaz para cooptá-los. Em suma, é
uma fala vazia, pois não tem poder de mando, mantém o chefe numa posição de poder
que é de fato aparente. O argumento de Pierre Clastres vai mais longe. Não se trata
simplesmente de afirmar que o chefe indígena não detém o poder, pois, para o autor, a
sociedade indígena (ou "primitiva", como ele prefere chamar de modo algo antiquado
e que hoje poderia soar como "antropologicamente incorreto") não é estranha ao
poder. O chefe não detém o poder porque é impedido pela própria sociedade, essa sim
a detentora de um certo poder, que não consegue, no entanto, constituir-se como
esfera política separada - ou seja, como Estado. O poder ali permanece difuso.

Essa tese fora formulada por Clastres quando ele tinha apenas 28 anos e divulgada
num artigo intitulado "Troca e poder: filosofia da chefia ameríndia" - segundo
capítulo da presente coletânea. Nessa época, ele ainda era um estudante de filosofia e
preparava-se para iniciar suas pesquisas de campo em sociedades indígenas sul-
americanas, como os Guayaki, Guarani e Chulupi - todos do Chaco Paraguaio -, os
Yanomami da Venezuela e os migrantes Guaranis mbyá das redondezas da cidade de
São Paulo.

Questionando o marxismo e estruturalismo

As experiências de campo foram certamente responsáveis pela sofisticação de seu


pensamento, no entanto, a idéia central havia sido lançada já no texto de 1962,
publicado originalmente na revista L´Homme, que tinha como director Claude Lévi-
Strauss. A propósito, "Troca e poder" - seguido, sobretudo, de "Independência e
exogamia" (Cap. 3) - é um diálogo aberto com a obra deste autor e, com efeito, um
momento decisivo de ruptura com o estruturalismo. Ao tomar o poder como foco,
Clastres afasta-se de campos como a mitologia e o parentesco, então consagrados pela
análise estrutural. A Clastres não interessa a dedução de princípios cognitivos
universais que tornam possível a existência de qualquer sociedade, mas sim a
verificação de como determinadas sociedades - no caso, as indígenas - respondem de
maneiras diferentes a problemas de fato gerais, como a possibilidade de vigência de
um poder político separado, o Estado. Vale lembrar que, nesse ponto, Clastres
também aposta em questionar o marxismo, visto que, ao contrário do que este pensam,
ele não vê a formação do Estado como função do desenvolvimento de uma
desigualdade econômica. A realidade, para ele, é justamente a inversa: são as relações
de poder que definem as classes e, portanto, a divisão da sociedade em pobres e ricos.

Contra o Estado e a favor da sociedade

Sob esse aspecto, as sociedades indígenas deixam de ser tomadas, como de costume em
abordagens evolucionistas, como passado ou infância das sociedades modernas, cuja
organização política seria mais complexa e, logo, "superior". Se as últimas optaram
por viver sob o jugo de um Estado, as primeiras recusaram-no em nome da liberdade.
É então que chegamos à conclusão do último texto, "A sociedade contra o Estado"
(Cap. 11), que dá nome à coletânea. Ou seja, as sociedades indígenas não são
simplesmente sociedades "sem" Estado - esta seria a tese de um filósofo como
Lapierre, criticada em "Copérnico e os selvagens" (Cap. 1) -, são, sim, "contra" o
Estado na medida em que reconhecem a possibilidade de emergência de um poder
político, que está, segundo a definição da filosofia política clássica, atrelado ao
exercício da coerção, da violência.
A violência que se encontra nas sociedades indígenas não é monopolizada por um
Estado, mas controlada pela própria sociedade. Em "Da tortura nas sociedades
primitivas" (Cap. 10), Clastres salienta os rituais de iniciação - fortemente marcados
por intervenções no corpo, como perfuração de lábios e orelhas, escarificações,
reclusões etc. - como mecanismos de inscrição da lei (e memória) social nos indivíduos.

Promessas proféticas

Em "Do Um sem o Múltiplo" (Cap. 9), Clastres encontra no pensamento dos Guarani
a identificação do Mal com a figura do Um - e esse Um coincide justamente com
centralização política, com o Estado. No entanto, devido a fatores incertos como o
crescimento demográfico - tema discutido em "Elementos de demografia ameríndia"
(Cap. 4) -, os Guaranis vêem-se não raro às voltas com a emergência do Estado e isso
pode ser compreendido pelo aparecimento de líderes religiosos, os chamados profetas.
Os profetas, como os chefes, falam. Mas a sua fala não é um mero dever - o capítulo 7
("Dever da palavra") trata desse aspecto -, tão pouco é vazia. É uma fala que anuncia
o fim dos tempos e incita à busca da Terra sem Mal, onde a mortalidade poderia ser,
enfim, encontrada - este é, com efeito, o tema do capítulo 8 ("Profetas da Selva").

O profetismo ocupa, em A sociedade contra o Estado, um lugar intrigante. Referido


inicialmente como uma revolta, ele pode ser também o germe de uma organização
estatal entre os ameríndios. Com isso, Clastres reflete sobre a situação dos povos tupi-
guarani antes da Conquista.

As eventuais organizações em confederações, como aquela constituída pelos Tamoios


no século XVI, não seriam um produto do contacto com os europeus, mas antes um
processo constituído pelos próprios ameríndios. Mais uma vez, a questão não reside na
ausência do Estado, mas na sua presença, mesmo entre os nativos, em forma latente. O
que os distingue de nós, ocidentais, é a capacidade que eles apresentam de contornar,
sempre que possível, o poder. Ao contrário de nós, eles riem do poder e de seu perigo -
essa é a revelação de "De que riem os índios"? (Cap. 6).

Os índios e nós

Em A sociedade contra o Estado, Clastres viaja longe para refletir, de fato, sobre a
situação do Ocidente. Numa outra coletânea, «Arqueologia da violência: pesquisas em
antropologia política», ele rememorará o filósofo do século XVII Etienne de La Boétie,
que vê a razão da subordinação do homem como um ato de vontade. As sociedades
ameríndias, para Clastres, são aquelas que recusam a subordinação - por isso,
controlam o seu chefe, que não impõe leis nem executa sanções. Isso não reflete nem
significa sociedades desorganizadas, fragmentadas, como muito se pensou. Pelo
contrário, revela um alto nível de organização a tal ponto de tornar inviável o
aparecimento de um Estado. Essa escolha pela liberdade é o que Clastres quer
sublinhar nas paisagens que percorreu e, assim, formular uma lição para o Ocidente,
em que a dominação encontra-se por toda parte.

Em tempos como os que vivemos nos dias de hoje, marcados por guerras entre Estados
e pelo desejo de expansão e dominação de verdadeiros impérios, a leitura de A
sociedade contra o Estado parece, no mínimo, reconfortante. Diante de uma batalha
pelo poder político (e, por conseguinte, económico) que tem custado inúmeras vidas,
nada como imaginar um lugar onde este possa ser vivamente combatido pela
sociedade.

Sobre o autor

Pierre Clastres nasceu em Paris em 1934. Foi director de pesquisa no Centre National
de la Recherche Scientifique (CNRS, Paris) e membro do Laboratoire d
´Anthropologie Sociale do Collège de France. Realizou pesquisas de campo na
América do Sul entre os índios Guayaki, Guarani e Yanomami. Publicou Crónica dos
índios Guayaki [1972], A sociedade contra o Estado [1974], e A fala sagrada - mitos e
cantos sagrados dos índios Guarani [1974]. A sua morte prematura, num acidente de
carro em 1977, interrompeu a conclusão de textos que mais tarde seriam reunidos no
livro Arqueologia da violência - ensaios de antropologia política [1980].

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