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Desigualdade Keynesiana

O modo de produção capitalista tem garantido, ao longo do tempo, a oferta de


uma quantidade incomensurável de novos produtos e serviços que influenciam a
demanda da sociedade e introduzem novos e dinâmicos padrões de qualidade de
vida. No entanto, parece estar evidente que o progresso econômico e a evolução das
forças produtivas, ao criarem esses bens, não desenvolveram mecanismos
automáticos capazes de garantir uma distribuição mais igualitária dos frutos gerados
pelo próprio sistema. O Estado que juridicamente formaliza as relações sociais e
corrobora com o avanço da desigualdade deve, portanto, concentrar esforços para que
os níveis de desigualdade sejam substancialmente menores, garantindo melhores
condições de vida à sociedade. A desigualdade, entendida como um fenômeno
complexo, estrutural e dinâmico que se materializa na diferenciação entre pessoas,
famílias e grupos sociais, tem como principal característica se manifestar em distintas
dimensões. Sua complexidade advém justamente da forma multidimensional que esse
fenômeno assume. É estrutural por ser intrínseco ao capitalismo e dinâmico por se
transformar ao longo da evolução da sociedade e das relações no interior desse modo
de produção.

A partir dessa premissa, o enfrentamento da desigualdade tem suporte na teoria


desenvolvida por John Maynard Keynes – considerado o maior economista do século
XX - em que se evidencia o papel desempenhado pela variável do investimento, um
dos mecanismos capazes de reduzir a desigualdade “multidimensional”,
especialmente quando sua composição fortalece e amplia, estrategicamente, a oferta
de bens e serviços que se mostram capazes de alterar a condição desigual de uma
sociedade, reduzindo e/ou amenizando a insuficiência/privação no acesso à saúde,
educação, transporte, habitação, saneamento, água, luz, lazer, cultura, entre outros.

A teoria de Keynes traz os principais elementos de suporte para uma estratégia


capaz de atuar nas duas dimensões básicas da desigualdade: a econômica, que está
associada à renda corrente, ao mercado de trabalho e ao patrimônio físico e
financeiro; e a social, referente ao acesso a diversos bens e serviços de uso coletivo,
cuja demanda não necessariamente é atendida pela via monetária no âmbito do
mercado.

A dimensão econômica da desigualdade pode ser equacionada, parcialmente,


pela elevação dos níveis de emprego e renda no âmbito do mercado de trabalho,
impulsionados pela elevação do nível da atividade econômica. O Estado, ao promover
políticas públicas de transferências monetárias diretas ou de valorização do piso
salarial de uma sociedade como, por exemplo, as medidas adotadas pelo Brasil a
partir dos 2000, pode alterar a desigualdade nessa dimensão. Nesse sentido, uma
tributação progressiva mostrar-se-ia relevante, tanto para a redução da desigualdade
de renda corrente, quanto para impactar positivamente a atividade econômica,
elevando a demanda efetiva, à medida que a propensão marginal a consumir dos mais
pobres é relativamente maior. Todos esses aspectos têm respaldo na teoria de
Keynes e permitem que se possa, por meio dessa, compreender os diversos
elementos capazes de atuar estrategicamente no enfrentamento da desigualdade
econômica. A dimensão econômica é relevante não apenas como parte do fenômeno
da desigualdade, mas, também, por afetar e ser afetada pela dinâmica econômica.
Como bem apontou Keynes, a elevação da renda dos indivíduos afeta diretamente, no
curto prazo, a atividade econômica e eleva o nível da demanda efetiva. Porém, não é
apenas a ampliação do nível agregado da renda que pode provocar esse efeito. A
redução da desigualdade de renda, isto é, a ampliação relativamente maior da renda
das camadas mais pobres, onde se observam maiores propensões a consumir,
também pode proporcionar um aumento do consumo e, por consequência, da
demanda efetiva no curto prazo. Isso quer dizer que a redução da desigualdade
econômica não é só relevante per se. Pelo contrário, essa pode ser capaz de
dinamizar a economia. Esse dinamismo se materializa na elevação do consumo, que
aumenta as expectativas de realização da produção, fazendo com que as empresas
elevem o volume de emprego e, por consequência, a renda das famílias. Essa renda
maior expande o consumo novamente, fechando um ciclo virtuoso para a economia.
No entanto, o consumo é apenas uma parte do conjunto dos elementos que afetam a
demanda efetiva.

Os investimentos, por sua vez, além de assumirem um papel central na


determinação da demanda efetiva e de possuírem a capacidade de dinamizar a
atividade econômica no longo prazo, também se mostram capazes de reduzir a
desigualdade em sua dimensão social. Na medida em que a desigualdade social se
manifesta no acesso diferenciado a uma gama de bens e serviços públicos de uso
coletivo, a dinâmica dos investimentos passa a representar uma possibilidade real de
alteração da condição desigual de uma sociedade, se a expansão da oferta desses
bens e serviços for capaz de reduzir as diferenças entre os grupos sociais em termos
de privação/insuficiência quanto ao acesso.

No âmbito de uma estratégia de enfrentamento dos problemas associados à


desigualdade, a criação dessa sinergia entre elevação do nível de investimento
(infraestrutura social) e redução da desigualdade social não pode ser pensada a partir
das decisões dos agentes privados no âmbito do mercado. Desse modo, construir uma
sociedade menos desigual exige uma atuação efetiva do poder público nas esferas
econômica e social.

É possível afirmar que a velocidade de transformação do capitalismo foi tão


elevada que, de fato, o crescimento do capital mostrou-se capaz de gerar, em
abundância, recursos e bens de consumo em grandes quantidades e variedades. Ao
mesmo tempo em que este sistema promoveu a ampliação da riqueza e dos bens,
também trouxe consigo problemas distributivos. Criou novas necessidades e novas
formas de desigualdade (por exemplo, bens de consumo de alta tecnologia e acesso à
informação), que passaram a confrontar-se com anseios pretéritos da sociedade
(moradia, transporte, saúde, educação e renda). A estratégia de buscar na Teoria de
Keynes os elementos para uma reflexão sobre a possibilidade de redução da
desigualdade a partir da ampliação da oferta de bens e serviços (investimentos em
infraestrutura social) combinada às elevações do emprego e da renda, dela correntes,
está baseada nos seguintes pontos: ele identificou que a organização econômica da
sociedade está dividida entre empresários (possuidores de capital físico e monetário) e
trabalhadores (possuidores de força de trabalho); estabeleceu relações importantes
para o entendimento do funcionamento da economia, destacando seu caráter
monetário (influência da taxa de juros e da moeda) e as funções das instituições
financeiras para a administração, da moeda e do crédito; identificou a importância do
gasto (público e privado) em consumo e em investimento para a dinâmica econômica;
demonstrou que a existência de uma parcela da sociedade que possui a capacidade
de elevar seu gasto para além de sua renda cria as condições para a geração de
emprego e renda; desmistificou a necessidade de poupança prévia para a expansão
dos investimentos, teorizando que o gasto é que produz renda e que apenas uma
parcela dessa é gasta; apresentou o princípio da demanda efetiva como um
mecanismo de decisões baseado em expectativas (de curto e longo prazos);
demonstrou que o investimento é a variável central da dinâmica econômica e,
portanto, da possibilidade de elevação do emprego, da renda, do consumo e, em
última instância, da criação das condições materiais para aumentar o padrão de vida
na sociedade; e por último ele elucidou que o papel do Estado tem potencial para
estabilizar, a partir de seus gastos e da imposição de regulações, um sistema
econômico intrinsecamente instável e concentrador, e que suas ações poderiam
controlar e estabilizar o investimento agregado, regular os impactos da moeda sobre a
economia (finanças e taxa de juros do dinheiro), impedir flutuações no emprego e na
renda e, por fim, ampliar a oferta de bens e serviços públicos.
A redução das variáveis da desigualdade, portanto, depende do enfrentamento
concomitante dos problemas associados à sua dimensão econômica (mercado de
trabalho e renda/patrimônio) e à sua dimensão social. Esses últimos dependem da
dinâmica dos investimentos ligados diretamente à expansão da oferta de bens e
serviços de caráter público que diferenciam, em termos de acesso, pessoas, famílias e
grupos sociais. Em outras palavras, dependem da expansão da infraestrutura social e
do acesso da população que se encontra na base da estrutura social. As teorias
apresentadas também se mostraram relevantes para a concepção de que esses
investimentos dependem da orientação, do direcionamento e, em grande medida, da
ação direta do poder público. É nesse sentido que se acredita que a teoria de Keynes
seja bastante rica e atual, o que permite uma reflexão complexa sobre a relação entre
a expansão do capital (investimentos), a sociedade moderna e suas demandas e
necessidades. Seus ensinamentos lançam luz sobre as bases para se pensar os
caminhos para o enfrentamento dos problemas oriundos da desigualdade, um
fenômeno imanente ao sistema capitalista de produção. De forma bastante sintética,
essas bases estão no entendimento dos papéis do consumo e do investimento para a
dinâmica econômica, bem como na percepção sobre a possibilidade de intermediação
pelo Estado da relação entre economia e sociedade, o que abre a possibilidade para
uma atuação estratégica no sentido de reduzir ou amenizar o quadro estrutural de
desigualdade multidimensional da sociedade capitalista moderna.

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