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MATRIZES DO PENSAMENTO JURÍDICO: UM

EXEMPLO A PARTIR DA LITERATURA


Marcelo Campos Galuppo*

I.
Muitos autores têm utilizado o termo “paradigmas” para se referir aos modelos

muito genéricos que aglutinam e/ou contêm conjuntos consistentes de teorias. Paradigmas

são “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo,

fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma

ciência.” (KUHN, 1994, p. 13).

Apesar de o termo ter se tornado comum mesmo no Direito, seu uso não me parece

adequado quando empregado em Teoria da Justiça, basicamente por três razões:

a) Em primeiro lugar, o próprio Thomas Kuhn não está certo de que o termo possa ser

aplicado fora do domínio das ciências naturais, cujas comunidades lingüisticamente

estruturadas são mais coesas e cuja história indica uma evolução diferente dos

demais campos do conhecimento. (KUHN, 1994, p. 256)

b) Em segundo lugar, o conceito de paradigma pressupõe a refutação definitiva de um

paradigma por outro, em uma sucessão cronológica que podemos identificar como a

história da superação das teorias (ou seja: teorias científicas perdem a status de

ciência e passam a ser tratadas como história da ciência). Não há tal refutação na

Teoria da Justiça: o pensamento de Aristóteles e o pensamento de Kant são tão

*
Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Professor dos cursos de mestrado e doutorado em Direito da
PUC Minas. Professor dos cursos de graduação em Direito da PUC Minas, Faculdade Estácio de Sá (BH) e
UMA.
atuais (no sentido de poderem ser utilizados para se fundamentar posições) quanto o

pensamento de Rawls, o pensamento de Habermas ou o pensamento de MacIntyre

(se bem que possamos afirmar, por determinadas razões e em determinados

contextos, a superioridade de um sobre outro).

c) Em terceiro lugar, o conceito de paradigmas aponta, em última instância, para uma

concepção política e voluntarista da ciência: paradigma é aquilo que uma

comunidade lingüística (de cientistas) considera como sendo científico. Como isso é

determinado por um dado quantitativo (ou seja, quantos cientistas concordam com a

cientificidade de uma teoria), ainda que tal dado quantitativo possa se assentar em

um dado qualitativo (ou seja, a maior razoabilidade de uma teoria frente à outra),

corre-se o risco de um relativismo que coloca problemas sérios para a Filosofia.

Por essa razão, proponho utilizarmos outro termo, aparentemente mais neutro:

matriz. O vocábulo matriz, cuja origem etimológica é o latim matrix (mãe), possui, dentre

outros significados, os seguintes: lugar onde algo é gerado, fonte ou origem de algo, algo

que está na base, que tem grande relevância, que é primordial, básico, principal

(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1870). Conceber conjuntos consistentes de teorias como

uma matriz significa reduzir a complexidade inerente às próprias teorias, na tentativa de

compreende-las mais profundamente e de modo mais abrangente.

A Teoria da Justiça apresenta duas grandes matrizes (além de tentativas de superá-

las): o comunitarismo e o liberalismo (FARAGO, 2002, p. 163 e ss.).

As teses básicas do comunitarismo são a tese da prioridade do bem sobre o justo e a

tese da prioridade do todo sobre a parte A tese da prioridade do bem (entendido como a

felicidade da comunidade) sobre o justo (entendido como os direitos individuais) indica que

alcançar a felicidade social é mais importante que realizar os direitos individuais


(entendidos pelo liberalismo como fruto da vontade individual ou coletiva), porque a

felicidade coletiva é interpretada como causa da existência da organização societária. A

tese da prioridade do todo sobre a parte indica que, no conflito entre interesses coletivos e

direitos individuais, aqueles devem prevalecer sobre estes, porque, em última instância, são

a sua causa, origem e fundamento. Assim, podemos definir o comunitarismo como a

concepção que afirma a prevalência ontológica, axiológica e histórica da comunidade sobre

o indivíduo.

As teses básicas do liberalismo são a tese da prioridade do justo sobre o bem e a tese

da prioridade da parte sobre o todo. A tese da prioridade do justo sobre o bem indica que a

existência da sociedade só se justifica enquanto permita a realização, em grau máximo, da

liberdade, entendida como livre-arbítrio, razão pela qual os direitos individuais produzidos

racionalmente são superiores a todos os demais interesses coletivos, na medida em que

servem de fundamento a estes. A tese da prioridade da parte sobre o todo indica que, no

conflito entre interesses coletivos e direitos individuais, estes devem prevalecer sobre

aqueles, porque, em última instância, os indivíduos são tidos pela causa e fundamento da

sociedade, cuja origem é explicada mediante a hipótese de um contrato voluntário realizado

entre indivíduos livre. Assim, podemos definir o liberalismo como a concepção que afirma

a prevalência ontológica, axiológica e histórica do indivíduo sobre a comunidade.

O que caracteriza o comunitarismo e o liberalismo como matrizes não é apenas o

fato de a Filosofia ter refletido sobre elas, nem sequer apenas o fato de as instituições

jurídicas terem se pautado por elas, mas, sobretudo, o fato de que todas as maneiras e

modos como se conceberam as sociedades ao longo do tempo terem sido profundamente

influenciadas por elas. É por isso que podemos perceber sua presença e sua influência nas

mentalidades e nas obras de arte, sobretudo na Literatura.


Para exemplificar isso, vamos tomar duas obras da Literatura universal. Uma é

antiga, e expressa idéias inerentes à matriz comunitarista; a outra é moderna, expressando

idéias inerentes à matriz liberal. Essas peças são Antígona, de Sófocles, e O Mercador de

Veneza, de Shakespeare.

Abordaremos a relação entre Direito e Literatura pela análise dessas duas peças de

teatro. Quando falamos em Direito e Literatura, temos em mente várias conexões possíveis

entre esses dois saberes.

Dworkin afirma que “Política, Arte e Direito estão unidos, de algum modo, na

filosofia” (DWORKIN, 1985, p. 166). Então, podemos conhecer muito sobre o Direito

estudando, por meio da Filosofia, a Arte (e a Literatura, em especial). Podemos conhecer

muito sobre as matrizes, investigando como a Literatura tentou apreendê-las e compreendê-

las.

II.

A palavra tragédia (τραγωιδια, tragoidia) é formada pelas palavras tragos (bode) e

oide (canto), que marca sua profunda relação com a religião grega. A referência,

obviamente, é a Dionisos, o deus metamórfico que assume a forma de bode, e aos sátiros,

seres mitológicos metade homens e metade bodes. De fato, em sua origem, a tragédia nasce

como uma encenação sem enredo, mas pautada pela embriagues, pelo canto e pela alegria,

todos dons de Dionisos (BRANDÃO, 2002, p. 10).

Na era clássica, por volta do século V. a.C., a tragédia assume uma nova função,

para além da religiosa: a reflexão sobre a polis, os deuses e a própria condição humana.
Como diz Kathrin Rosenfield: “A tragédia reflete sobre a organização social, os modos de

governar e de fazer justiça e a possibilidade de conter conflitos e de encarar as contradições

fundamentais da existência humana”. (ROSENFIELD, 2002, p. 09).

A tragédia pode ser caracterizada como a passagem da boa à má fortuna, mudança

essa que ocorre por causa do destino cego. No entanto, pelo menos em Sófocles, autor de

Antígona, o homem é con-causador desse destino (BRANDÃO, 2002, p. 13 e p. 42). É aqui

que intervém o conceito de hybris (υβρις), que pode ser traduzida como desmedida. Existe

uma medida para o homem. Em latim, o homem é humus, terra. Diante de um deus,

infinitamente superior a ele por ser imortal, só há uma atitude possível para o homem: a

humilitas, literalmente olhar para a terra, curvando a cabeça e reconhecendo que não

passamos de pó. (BRANDÃO, 2002, p. 18). No entanto, o homem geralmente se esquece

disso, e compara-se aos deuses. Nesse momento, o homem comete a desmedida, a hybris,

que, por sua vez, provocará a vingança do destino.

E o que leva o homem a praticar a hybris? Intervém aqui outro conceito comum à

tragédia grega: a hamartia (αµαρτια), o erro grave de avaliação ou de interpretação das

circunstâncias envolvidas pela ação (BRANDÃO, 2002, p. 14). Vejamos, por exemplo,

como isso ocorre no Édipo Tirano, de Sófocles. Laio, rei de Tebas, e sua mulher Jocasta,

casados há algum tempo, não têm filhos. Laio, então, consulta o Oráculo de Delfos, que lhe

diz que, se tiver um filho, esse o matará e se casará com sua mulher. Algum tempo depois,

Jocasta engravida. Quando nasce a criança, Laio se lembra da maldição, e, para tentar evitá-

la, ordena que sacrifiquem o filho. Um pastor é encarregado de, furando o pé da criança,

amarrar-lhe uma pedra e jogá-lo em um precipício, para que os lobos o devorem. No

entanto, movido pela piedade, o pastor entrega o menino ao rei de Corinto, Polibos, que,
não tendo filhos, leva-o para seu palácio e, juntamente com sua mulher, Mérope, cria-o

como filho. Édipo ama aqueles que pensa serem seus pais. Descobrindo uma profecia que

dizia que ele mataria o pai e se casaria com a mãe, resolve partir de Corinto. No caminho de

Delfos, para onde Laio também rumava, Édipo se encontra com esse, e, por causa de um

“desentendimento religioso” (EURÍPEDES, 2000B), mata-o. Parte então para Tebas, onde

uma esfinge devorava um menino por dia. Édipo derrota a esfinge e se torna tirano de

Tebas, recebendo também a mão da rainha da cidade em casamento. Com isso, Édipo

realiza o parricídio e o incesto (crimes hediondos aos gregos, ao lado dos crimes contra a

hospitalidade). Em que consiste o erro de avaliação? Em pensar que podemos vencer o

destino e desconhecer as circunstâncias envolvidas pela ação. Se Laio não tentasse lutar

contra o destino, certamente teria criado seu filho e este, provavelmente, o amaria e, para

fugir da maldição, abandonaria a cidade. Se Édipo não tentasse lutar contra o destino, teria

permanecido em Corinto e nunca teria se reencontrado com seu pai e com sua mãe. Se ele

não desconhecesse que Laio e Jocasta eram seus pais, seus crimes nunca teriam sido

cometidos. Essa hamartia, que causa a hybris, é também agravada pela hybris, e as

tragédias gregas clássicas apresentam heróis que perdem progressivamente a capacidade de

avaliar as circunstâncias por causa de seu erro inicial.

Antígona é uma peça sobre o embate trágico entre Creonte, que representa as leis

políticas, e a própria Antígona, que representa as tradições imemoriais. Com o auto-exílio

que Édipo se impôs e, finalmente, com sua morte, Polinices e Etéocles, seus filhos,

combinam que se alternarão no trono de Tebas, sempre por períodos de um ano. No

entanto, ao fim do primeiro ano, Etéocles se recusa a ceder o lugar ao irmão, que, exilado,

sai da cidade e se une à Argos, rival de Tebas, empreendendo uma excursão contra a cidade

de Etéocles para depô-lo. Na batalha, os dois irmãos se matam. Creonte, irmão de Jocasta,
que assume o trono vago, vê em Polinices um traidor da pátria, por ter se unido aos

inimigos da cidade e ter sido causa da morte de muitos tebanos, e ordena que ele seja

deixado insepulto, para que os animais carniceiros dessem conta de seu corpo, enquanto

Etéocles deveria ser sepultado com honras, como herói da cidade. Para os gregos, ser

deixado insepulto significaria não lhe ser franqueado o ingresso na mansão dos mortos, o

Hades: a pena de Polinices perduraria pela eternidade.

Neste ponto inicia-se a peça: Antígona, irmã dos mortos, e noiva do filho de

Creonte, Hêmon, compadece-se de Polinices e, contra a ordem de Creonte, resolve sepulta-

lo. Creonte descobre o fato e condena Antígona à morte, ordenando que a mesma fosse

sepultada viva. Apesar de muitos tentarem convence-lo da crueldade de seus atos, Creonte

não cede, e ordena o sepultamento de Antígona. Hêmon intercede pela vida da amada.

Como Creonte não cede, Hêmon se retira, momento em que chega Tirésias, que diz a

Creonte que grande mau lhe sobrevirá se não reverter os dois atos que está praticando:

deixar insepulto Polinices e sepultar Antígona viva. Creonte se convence do perigo, dá

funeral a Polinices, mas não chega a tempo de salvar Antígona, que se suicida para evitar o

sofrimento. Hêmon, em desespero, mata-se. Creonte, por sua imprudência, descobre ser

causa de seu próprio infortúnio.

A estória de Antígona, assim como a de Édipo, liga-se ao ciclo dos labdácidas, ou

seja, dos descendentes míticos do rei de Tebas, Lábdaco. Quando Laio, seu filho, era

jovem, exilou-se de Tebas na corte de Pêlops. Laio apaixona-se pelo filho de Pêlops,

Crísipo, e acaba por raptá-lo. Pêlops acredita que Laio, com isso, rompe com o dever de

respeito inerente à hospitalidade que lhe fora conferida, e amaldiçoa o tebano a não deixar

descendentes. Laio acaba retornando a Tebas e assumindo o trono que pertencera ao pai,

casando-se com Jocasta e dando início ao ciclo trágico.


Há um conceito pressuposto nessa sucessão de catástrofes: o miasma (µιασµα),

misto de maldição familiar e conturbação da ordem natural das coisas. O miasma, por sua

vez, torna mais certas, e cada vez maiores, a hamartia e a hybris: os crimes praticados por

Laio impelem Édipo ao erro. Os crimes praticados por Laio e Édipo, por sua vez, induzem

Etéocles e Polinices ao erro.

Em que consiste o conflito trágico contido na peça, que tanto interessa ao Direito?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que, ao contrário do que uma leitura apressada e isolada

da peça poderia sugerir, Polinices é, de fato, um traidor. Ele não está preocupado, de modo

algum, com o bem da polis, mas apenas com seu próprio bem. Se se preocupasse com a

polis, teria preferido sofrer a injustiça por parte de Etéocles a colocar em risco a vida dos

habitantes de Tebas. Por isso, Creonte é, de fato, um defensor da polis.

Em segundo lugar, não podemos dizer que a razão assista totalmente a Creonte ou a

Antígona. Ao contrário, todos os dois têm razão, mas apenas parcialmente, e, por isso,

nenhum dos dois tem razão. Os dois estão corretos em seus fundamentos, mas, na execução

de suas ações, os dois cometem a hybris. Creonte é imprudente por causa de sua

intransigência, mas Antígona também é imprudente, só que por sua arrogância.

Vejamos, então, a célebre passagem das linhas 511 e seguintes, e prestemos atenção

a algumas palavras. Antígona justifica a Creonte porque desobedeceu a suas ordens, e a que

ordens ela obedeceu:


Mas Zeus não foi o arauto delas para mim, nem essas leis são as ditadas entre
os homens pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me
pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a
obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje,
não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que
ninguém possa dizer quando surgiram. E não seria por temer homem algum,
nem o mais arrogante, que me arriscaria a ser punida pelos deuses por viola-las
(SÓFOCLES, 2001, p. 219..)
Se Zeus é o rei dos deuses, porque não foi ele que ditou as leis que Antígona segue?

E quem são os deuses infernais, ao lado de quem mora a Justiça, ou seja, a deusa Diké? Por

que essas leis vigem desde os tempos remotos? Vamos observar outro fragmento da peça.

Tirésias denuncia a Creonte a ofensa que ele praticou contra os deuses:

Então fica sabendo, e bem, que não verás o rápido carro do sol dar muitas
voltas antes de ofereceres um parente morto como resgate certo de mais gente
morta, pois tu lançaste às profundezas um ser vivo e ignobilmente o sepultaste,
enquanto aqui reténs um morto sem exéquias, insepulto, negado aos deuses
ínferos. Não tens, nem tu, nem mesmo os deuses das alturas, tal direito; isso é
violência tua ousada contra os céus! Estão por isso à tua espreita as vingativas,
terríveis Fúrias dos Infernos e dos deuses, para que sejas vítima dos mesmos
males. (SÓFOCLES, 2001, p. 247, versos 1180 e ss.).
Para entendermos que referências são essas aos deuses infernais, aos deuses das

alturas e às Fúrias, ou Erínias, precisamos voltar ao surgimento dos primeiros deuses. No

princípio Gaia, a terra, e seu filho Urano, o céu, formavam um par. Urano estava em um

coito perpétuo com Gaia, de modo que a deusa Terra engravidava, mas não podia parir.

Gaia tinha o ventre entumecido, e sentia dores. Gaia produz uma foice no interior de suas

entranhas. Ela pede a um de seus filhos, Cronos, o Tempo, o mais jovem dos titãs, que a

liberte de sua dor. Cronos, então, castra o pai. Urano sente uma dor terrível, e se afasta de

Gaia, formando a abóbada celeste. Mas do pênis castrado de Urano caem três gotas de

sangue sobre a Terra. Delas nasceram as três últimas filhas dos dois deuses: as Fúrias, ou

Erínias. As Erínias, cujos nomes são Alecto, Tisífone e Megera, são deusas que exigem

que, toda vez que o sangue de um parente for derramado, ele seja vingado. Cronos sabe que

o seu reinado, que assume após o exílio do pai, não será perpétuo. Para evitar ser

destronado, Cronos devora seus próprios filhos. Mas suas mulher, Réa, prepara um ardil:
ela entrega-lhe, no lugar do filho caçula, uma pedra, que ele engole pensando ser a criança.

Assim salvou-se Zeus, que, ao crescer, lutará contra Cronos e seus irmãos, os titãs.

Vencendo a batalha com a ajuda de seus próprios irmãos, os Cronidas, ou deuses olímpicos,

Zeus constrói para si e para seus onze aliados uma morada: o Olimpo. Os demais deuses,

aliados de Cronos, serão encerrados no Inferno (Hades): o próprio deus Hades, a deusa

Diké, Ares, os Titãs e as Fúrias (VERNANT, 2000). Com isso, estavam instauradas duas

ordens de deuses: os deuses olímpicos, ou das alturas, protetores da polis e de suas leis, e os

deuses ínferos, ou infernais, protetores do sangue, da família, da terra e da tradição. Sobre

isso, diz Kathrin Rosenfield:

A Teogonia de Hesíodo relata a luta dos antigos deuses telúricos, gigantes e


titãs das profundezas insondáveis da terra e do mar contra os (futuros) deuses
olímpicos, cuja morada está nas alturas celestes. Zeus vence a luta e reorganiza
o cosmo. Ele e seus aliados olímpicos (de cima) são os protetores da
organização política e religiosa das cidades (as novas leis dos homens), ao
passo que os deuses de baixo (Erínies, Hadas, Ares) protegem a pureza do solo
e dos laços de sangue, fixadas por costumes imemoriais (ROSENFIELD, 2002,
p. 67)
Por isso, como diz Knox, é uma simplificação dizer que apenas Antígona defende

um ponto de vista religioso, ou moral, e que apenas Creonte defende um ponto de vista

político: “a oposição de Antígona à polis é uma ação tanto política quanto religiosa, e a

exposição do corpo de Polinices por Creonte parte de convicções religiosas e políticas”

(KNOX, 1992, p. 75). Com relação à natureza também política do ato de Antígona, diz esse

autor:

a sua lealdade é de fato uma lealdade política, não somente porque as


circunstâncias particulares a forçam a escolher entre a família e a polis, mas
também porque, historicamente, o forte, indissolúvel laço de relações
sangüíneas foram, nos tempos remotos e através dos gene (clãs), o fator
dominante no ambiente social e político dos cidadãos. Ele era muito mais antigo
que a polis, e ainda se manifestava na Atenas democrática (...) [sendo um] rival
e, mesmo, (...) um perigo potencial para as recentes instituições civis e formas
de organização. (KONX, 1992, p. 76)
Com relação ao ponto de vista também religioso ou moral de Creonte, afirma Knox:

O ponto de vista de Creonte é, simplesmente, que os deuses, aqueles deuses


adorados nos festivais e abrigados nos templos da cidade, são os campeões e
protetores da cidade (...). É obvio que Creonte considera sua proclamação como
uma expressão da vontade dos deuses (...) Mas esses não são os deuses que
Antígona adora. Diferentemente de Hades, eles têm seus templos, com colunatas
de pilares de mármore, cheios de estátuas e oferendas (KNOX, 1992: 101-2).
Isso revela que a questão política e a questão religiosa (ou moral) constituem uma

unidade que não pode ser cindida nem mesmo atribuindo-se um ponto de vista único a cada

um dos personagens.

De um lado, Antígona defende as leis religiosas e morais ligadas aos deuses ínferos,

e, assim, a tradição, o sangue, a família e a terra. A isso corresponde uma concepção

política, aristocrática, que também privilegia o sangue, a família, a terra e a tradição. De

outro lado, Creonte defende as leis religiosas e morais ligadas aos deuses olímpicos, e,

assim, a polis, o nomos e a organização política (por oposição ao caos). A isso corresponde

uma concepção política democrática, que também privilegia a polis, o nomos e a

organização política. Por isso, a peça, escrita no auge da democracia ateniense, é uma

discussão sobre a polis e seu fundamento religioso (ou não), a democracia e o despotismo,

formulando a seguinte questão: O poder político fundamenta-se em si mesmo ou há algo

superior a ele?

O que ocorre na peça é uma confusão entre o público e o privado. Os critérios e os

fundamentos apresentados por Creonte, que se originam na ordem pública, acabam sendo

aplicados pelo tirano à ordem privada, da família. Mas também os critérios e os

fundamentos apresentados pro Antígona, que se originam na ordem privada, são aplicados

pela heroína, em desrespeito às leis da polis, à esfera privada. Dessa confusão entre o

público e o privado surge o enredo trágico da peça.


III

Por seu turno, A Europa do século XVI passou por uma revolução: a Renascença,

período artístico-científico a que correspondeu a consolidação do capitalismo e do

liberalismo. Essa revolução atingiu, também, a Inglaterra, sob o reinado dos Tudor, em

especial de Elizabeth I.

No contexto inglês da Renascença, surge o teatro elisabetano:

O teatro tornara-se uma instituição na vida da cidade. Qual uma lente


convergente, ele captava as radiações literárias do Continente e as focalizava
em cores vivas, florescendo com a recém-despertada consciência nacional. O
tema principal da Renascença, o indivíduo consciente de si mesmo, alcançou
seu zênite de perfeição artística no teatro elisabetano. (BERTHOLD, 2003, p.
312).
O teatro passa, nesse período, por uma profunda transformação. Ainda que tenha

preservado, indiretamente, a função de crítica que possuía na tragédia grega, o teatro há

muito perdera sua dimensão religiosa. Com o teatro elisabetano, porém, o teatro abandona a

vida palaciana e passa a ter, como função imediata, apenas o entretenimento.

Foi essa época que desenvolveu o palco, mais adequado à paixão renascentista pela

perspectiva (BERTHOLD, 2003, p. 284) e à exposição do drama pessoal do protagonista. E

é nesse palco, e tendo em vista a afirmação da individualidade e da personalidade de seus

heróis e de si mesmo, que Willian Shakespeare desenvolverá sua obra. Shakespeare é, em

essência, um liberal, e compartilha as idéias básicas do liberalismo:

Shakespeare vê o mundo através dos olhos de um cidadão abastado, de


mentalidade liberal (...). Expressa concepções políticas que estão radicadas na
idéia de direitos humanos – como a designaríamos hoje -, condena os abusos do
poder e a opressão de que é vítima o povo comum, mas também condena o que
chama a arrogância e a prepotência da populaça, e, em sua inquietação
burguesa e receio de anarquia, coloca o princípio de ordem acima de todas as
considerações humanísticas. (HAUSER, 1998, P. 424)
No primeiro ato de O Mercador de Veneza, escrito em 1594, o espectador é

apresentado a Bassânio, um nobre veneziano que deseja conquistar a bela Pórcia. Para faze-

lo, é preciso comprar presentes e viajar a Belmonte, despesas com as quais não pode arcar.

Por isso procura seu fiel amigo, o mercador veneziano Antônio, que, não dispondo da

quantia necessária no momento, três mil ducados, toma-a emprestada do judeu Shylock.

Shylock odeia o mercador, e empresta a quantia sob a condição contratual de ter direito a

uma libra de sua carne, caso não ocorra o pagamento do empréstimo no prazo estipulado.

Antônio, que está certo do retorno iminente de seus barcos com mercadorias das Índias,

assina o contrato.

No segundo ato, desenrola-se, na residência de Pórcia, o episódio da escolha de seu

noivo. Seu pai, antes de morrer, estabelecera que o pretendente da donzela seria escolhido

por uma prova, consistente em submeter ao candidato três pequenos baús, um de ouro, um

de prata e um de chumbo. Dentro de um deles há um retrato de Pórcia. Aquele candidato

que escolhesse o baú com o retrato se casaria com a donzela. O Príncipe do Marrocos e o

Príncipe de Aragão escolhem mal, pois escolhem o baú de ouro e o baú de prata. Ocorre

que a aparência não corresponde à realidade, e os baús escolhidos nesse jogo não trazem o

que deveriam trazer, do ponto de vista dos pretendentes. Enquanto isto, Jéssica, a filha de

Shylock, se converte ao cristianismo, demonstrando “ter alma” e “ser virtuosa”, ao

contrário do pai, para fugir com Lourenço, amigo de Bassânio. O episódio da fuga de

Jéssica serve para evidenciar a mesquinharia e o caráter de Shylock, pois ele lamentará

muito mais as jóias e o dinheiro que ela leva consigo que sua fuga para casar-se com um

cristão.

No terceiro ato, Bassânio escolhe o escrínio de chumbo, e, dentro dele, encontra o

retrato de Pórcia, casando-se com a heroína. Pórcia entrega a Bassânio um anel e pede-lhe,
sob juramento, que nunca o dê a outra pessoa. Mas chegam notícias trágicas de Veneza: os

barcos de Antônio naufragaram, ele não tem condições de pagar o empréstimo e Shylock

exige dele a multa contratual: uma libra de sua carne, já que não pagara a dívida na data

combinada. Bassânio parte para Veneza, a fim de defender Antônio. Pórcia disfarça-se de

advogado e parte para Veneza.

Ao chegar a Veneza, no quarto ato da comédia, o caso de Shylock e Antônio está

sendo julgado pelo Duque. Pórcia, que finge ser Baltazar, discípulo do jurista Belario, de

Pádova, concorda com Shylock: o desrespeito àquilo que fora combinado entre as partes

colocaria em risco a credibilidade das leis de Veneza, o que arruinaria a cidade. No entanto,

Baltazar tenta persuadir Shylock a aceitar, em lugar da multa, o pagamento em dobro da

quantia devida. Shylock recusa, pois só está interessado na vingança. Baltazar, então, dá

razão a Shylock, e diz que ele pode pegar o que é seu: a libra de carne. Quando Shylock se

prepara para matar Antônio, Baltazar pede a palavra e lembra a Shylock que Antônio só lhe

deve uma libra de carne, não lhe devendo nenhuma gota de sangue. Shylock agora pretende

aceitar o pagamento em dobro da quantia devida, mas é tarde demais: neste jogo, ele já

optara pela libra de carne. Shylock então desiste da pretensão. Antes que se retire do

tribunal, Baltazar lembra a todos que as leis de Veneza dizem que um estrangeiro que

atentar contra a vida de um veneziano perderá todos os seus bens. Antônio abre mão de sua

parte nos bens, contanto que Shylock se converta ao cristianismo (um “justo” e “razoável”

castigo) e faça um testamento dispondo de todos os bens que lhe restam em favor de

Jéssica. Bassânio agradece a Baltazar, sem reconhece-lo como sua esposa, prometendo-lhe

pagar, com o que este lhe pedisse, pelo favor que lhe prestara. Baltazar pede a Bassânio, em

pagamento pelos seus serviços, o anel que Pórcia lhe dera. Bassânio vê-se obrigado, então,

a desfazer-se do anel.
No quinto ato, quando Bassânio, Antônio e Graciano voltam a Belmonte, encontram

Pórcia e Nerissa já de volta a seus trajes de mulher. Pórcia pergunta então pelo anel, e finge

não acreditar na estória de Bassânio, dizendo que, certamente, ele dera o anel para uma

mulher. Pórcia entrega, em substituição, outro anel a Bassânio, que, na verdade, é o mesmo

anel, imediatamente reconhecido pelo marido como aquele que ele dera ao advogado.

Pórcia diz que dormira com o advogado na noite anterior, que lhe presenteara com o anel.

Pórcia, ao final, revela toda a trama e sua participação no julgamento, dizendo, por fim, que

o naufrágio dos barcos de Antônio não passara de um equívoco, e que este continuava a ser

um rico mercador.

Nosso maior interesse está no 4o ato, quase todo ele ocupado pelo julgamento de

Antônio. Shylock lembra à corte que não abrirá mão da execução da cláusula penal contida

no contrato que elaborara com Antônio, e adverte: “Se ela me for negada, que o perigo

desça sobre a cidade e suas leis” (SHAKESPEARE, 1999, p. 109.).

Aqui aparece o primeiro ponto sobre o qual precisamos prestar atenção. A ação da

peça ocorre no início do século XVI, período em que floresceu o mercantilismo. Veneza

controlava militarmente o mediterrâneo, e por isso detinha, até o final do século XV, o

monopólio do rentável comércio com o Oriente. Ora, uma das condições para o

florescimento do mercantilismo foi a segurança jurídica garantida pelas leis e instituições

de Veneza. Weber nos lembra que a dominação burocrática, tipicamente moderna, depende

de segurança jurídica. Mas também o capitalismo, e, mais precisamente, a empresa

capitalista, dependem de segurança jurídica. Por isso, capitalismo e Estado moderno são co-

originários (WEBER, 1992, p. 178). A segurança jurídica discutida na peça revela algo

sobre as condições de existência da empresa e do Estado modernos.


Contra a acusação de que seu modo de proceder é desumano, Shylock lembra que

ele não se distingue muito do modo de proceder de muitos daqueles homens:

Por que temer, se não cometo erros? Vós tendes entre vós muitos escravos, que
usais como se fossem cães ou mulas; que usais para as tarefas mais abjetas,
porque os comprastes – devo eu dizer ‘libertai-os, casai-os com os vossos? Por
que mourejam eles? Que seus leitos sejam também macios, seus jantares cozidos
como os vossos’? Vós direis: ‘Os escravos são nossos’. Também eu digo que a
carne que estou exigindo, comprei-a caro, é minha e eu a quero: se ma negais,
adeus às vossas leis! Veneza não garante os seus decretos! Quero a sentença –
vamos! Ela é minha? (SHAKESPEARE, 1999, p. 111).
Se considerarmos Shylock, não como um vilão, mas apenas como a contraparte

dramática de Antônio, veremos aqui uma crítica liberal à escravatura. O argumento (ainda

que não silogístico) é o seguinte: se o direito dos homens livres de terem escravos se

justifica, então também o seu direito à libra de carne é legítimo. Mas sabemos que será

demonstrado que Shylock não possui tal direito. Portanto, tampouco assiste direito aos

homens livres de possuírem escravos. Uma das lutas básicas do liberalismo foi, exatamente,

a luta pelo abolicionismo. É nesse sentido que alguns intérpretes dirão que a peça não

celebra as virtudes cristãs, mas, ao contrário, revela a ausência delas (BERRY, 1972, p.

111). Na verdade, há mais semelhanças entre o comportamento de Shylock e de Antônio do

que pode se notar em uma leitura superficial. Ambos praticam um tipo de atividade que é

imoral: Shylock, cobrando juros pelo dinheiro que empresta; Antônio, obtendo um lucro

exorbitante com seu comércio (BERRY, 1972, p. 118). E se o ódio que Shylock demonstra

por Antônio é grande, não é menor o ódio que Antônio sente pelo judeu. Diz Shylock:

Signor Antônio; muitas, muitas vezes, buscou menosprezar-me no Rialto, por


meus dinheiros e minhas usuras. Aturei tudo só com um dar de ombros (pois o
suportar é a lei da minha tribo). Chamou-me de descrente, de cão vil, cuspiu na
minha manta de judeu, apenas porque eu uso do que é meu. (SHAKESPEARE,
1999, p. 36).
.A semelhança (talvez até física) entre ambos é tamanha que Baltazar, ao entrar na

corte, pergunta: “Quem é o mercador? Quem o judeu?” (SHAKESPEARE, 1999, p. 115).

Como diz Ralph Berry, “Shylock é o complemento de Antônio” (BERRY, 1972, p. 133).
Neste ponto, Baltazar intervém, dizendo: “Judeu, se clamas por justiça, pondera: na

justiça não se alcança salvação; e se oramos por justiça, essa mesma oração ensina os

gestos e os atos do perdão”. (SHAKESPEARE, 1999, p. 116).

Um dos temas tratados pela peça é a relação tênue entre justiça, vingança e perdão.

Há muito o desejo de Shylock não é por justiça, mas por vingança. Mas a proposta de

Baltazar tenta, por meio do perdão, fazer Shylock voltar à razão. Como diz Campbell:

Shakespeare contrasta as exigências da justiça e da misericórdia; mostra como


um desejo por justiça absoluta ou por vingança pode destruir a pessoa que
procura por ele, enquanto a habilidade para ser misericordioso beneficia tanto
aquele que a concede quanto aquele que a recebe (CAMPBELL, 1997, p. 534).
Frente à obstinação de Shylock, Baltazar vê-se obrigado a concordar com o judeu,

afirmando que a pena prevista no contrato deve ser paga. Afinal, “não há poder que altere

qualquer lei já promulgada. E o precedente que nós criaríamos seria usado para mil causas

podres nas nossas cortes. Isso é impossível.” (SHAKESPEARE, 1999. p. 117).

Mas quando Shylock está em vias de executar a pena, Baltazar o adverte:

Espera um pouco, que há mais uma coisa. A multa não lhe dá direito a sangue;
‘uma libra de carne’ é a expressão: cobre a multa, arrebanhe a sua carne. Mas,
se ao cortar, pingar uma só gota desse sangue cristão, seu patrimônio pelas leis
de Veneza é confiscado, revertendo ao Estado. (...) Prepara-te, portanto, para
cortar; mas não derrame sangue; e corte apenas uma libra de carne, pois se
cortar ou mais ou menos que uma libra justa – nem que seja para alterar o peso
pela mínima parte de um vigésimo de um quase nada – se a balança mexe o
espaço de um só fio de cabelo – o senhor perde a vida e as propriedades
(SHAKESPEARE, 1999, p. 122 e 123).
Como Shylock parece desistir do caso, Baltazar retoma a questão sob o aspecto de

uma falsa reconvenção:

Espere um pouco: a lei ainda o acusa de algo mais. Nas leis venezianas fica dito
que quando há provas de que um estrangeiro – por caminhos frontais ou
indiretos – buscou privar de vida um cidadão, aquele contra quem ele tramou
ficará com a metade de seus bens, revertendo ao Estado a outra metade-
enquanto que a vida do culpado só será salva por mercê do duque.
(SHAKESPEARE, 1999, p. 124)
Há algo de genial no que Shakespeare aponta. Sabemos que a Escola da Exegese

dizia que in claris cessat interpretatio: Quando a lei é clara, não é preciso interpretá-la. Daí

o fato de tal escola aferrar-se à interpretação literal, a mais “imparcial” de todas. Ora, o que
o texto de Shakespeare revela é que a interpretação literal não é imparcial. Tanto Shylock

quanto Baltazar recorrem a ela. Quando Baltazar pergunta a Shylock se ele pagaria um

médico para socorrer Antônio, o judeu responde: “Está dito aí que isso é exigido?”

(SHAKESPEARE, 1999, p. 119). No entanto, partindo do mesma técnica de interpretação,

ambos chegam a posições muito diferentes, se não opostas. Não há neutralidade no Direito,

nem em seus métodos. Os métodos do Direito são meios para se realizar a justiça, razão

porque é fundamental estarmos conscientes sobre que concepção de justiça adotamos.

Também O Mercador de Veneza é, a seu modo, uma discussão sobre a relação entre

o público e o privado. Mas aqui, público e privado não são esferas equipotentes. Na

comédia de Shakespeare, o público está definitivamente a serviço do privado, e a justiça

está a serviço da vingança. É preciso lembrar que o ato “justo” da peça não é tomar os bens

de Shylock, mas convertê-lo compulsoriamente ao cristianismo. Pois diz Antônio, ao tomar

o dinheiro emprestado no primeiro ato: “o hebreu está ficando bom cristão”

(SHAKESPEARE, 1999, p. 39). Essa conversão, segundo Harold Bloom, rompe a

consistência dramática do personagem, e o aniquila definitivamente, já que, sendo cristão,

não poderá mais praticar a usura (BLOOM, 2001, p. 227 e 236). Ainda que o fato de a

justiça servir à vingança não seja da natureza do liberalismo, na peça de Shakespeare, e,

portanto, no modo como o autor capta o espírito de seu tempo, o ato final do julgamento

não é um ato de justiça, mas um ato de vingança, premeditado e anunciado desde o início

da peça. Primeiro, toma-se seu patrimônio, ainda que isso seja considerado “legal”, não

como uma retribuição pública, mas como um benefício privado. Harold Bloom diz: “Pórcia

encarna a mentalidade do ‘vale-tudo’ que prevalece em Veneza, e, com sua misericórdia,

sorrindo, arranca de Shylock a poupança de uma vida inteira, para o enriquecimento de seus

amigos” (BLOOM, 2001, p. 229). Depois, exige-se dele a conversão, a destruição total de
sua identidade cultural. É interessante a reação resignada de Shylock à sua conversão: “Fico

contente” (SHAKESPEARE, 1999, p. 125). Na peça, o direito é uma reserva de proteção

dos interesses individuais, de Shylock ou de Antônio.

IV.

Afinal de contas, o que há de comunitarista ou liberal nas duas peças? O primeiro

indício para decifrarmos esse enigma está nas palavras empregadas pelos dois autores. Na

peça Antígona, toda a discussão é sobre a justiça, palavra que não aparece em O Mercador

de Veneza, em que a discussão é sobre o direito e, em especial, sobre o direito positivo. Na

feliz expressão de Renato Janine Ribeiro, “uma característica essencial da modernidade [em

oposição à Antigüidade e à Idade Média] é exatamente a da substituição da iustitia [justiça]

(...) pela jurisdição” (RIBEIRO, 1994, P. 103). Diferentemente de Antígona, em O

Mercador de Veneza não se trata de descobrir o que a Justiça exige dos homens, mas

apenas de descobrir o que as leis escritas, que devem ser seguidas pelo simples fato de que

foram promulgadas pelos próprios homens, exige deles.

Isso implica a distinção quanto às concepções de justiça nas duas peças. Em O

Mercador de Veneza, não é que não haja uma concepção de justiça. É que, por definição,

justo é apenas aquilo que a lei prescreve. Já em Antígona, o conceito de justiça depende,

não da vontade humana, mas de uma ordem presente no próprio cosmo.

O que temos, em Antígona, é a proteção da comunidade: tanto Creonte protege a

comunidade (política) quanto Antígona protege a comunidade (familiar). Essas


comunidades são mais importantes que os homens, tanto do ponto de vista ontológico

quanto histórico, e por isso devem ser preservadas, ainda que a custo daqueles que as

integram. Ainda que Shylock recorra ao argumento retórico da segurança jurídica, que

aproveita a toda Veneza, sabemos que esse argumento é apenas retórico: De fato, Shylock

não busca justiça, mas vingança pessoal. Em O mercador de Veneza, o que observamos é a

luta de dois indivíduos, Shylock e Antônio, sob o império da lei elaborada pelos próprios

cidadãos venezianos. Aqui, prevalecem os indivíduos sobre a sociedade por eles formada:

inicialmente, parece que Shylock prevalece. Posteriormente, Antônio prevalece de modo

definitivo.

Finalmente, em Antígona a separação entre o público e o privado implica a

supremacia do público na política, o que justifica o sacrifício dos cidadãos. Em O

Mercador de Veneza, ao contrário, a esfera pública é controlada pela lógica da esfera

privada, e por isso a sociedade está, em última análise, ao dispor da vontade e do interesse

dos cidadãos.

Por essas razões, podemos afirmar que Antígona contém uma concepção

comunitarista da justiça e do Direito, enquanto O mercador de Veneza contém uma

concepção liberal da justiça e do direito.

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