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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

Os cânones corporais e o corpo grotesco

Fernando Fontanella1

Resumo: Este trabalho busca estabelecer um contraste ao relacionar a


corporalidade presente nas representações televisivas “populares”, vistas à
luz das análises sobre o realismo grotesco feita Bakhtin, com os cânones de
disciplina corporal da cultura de consumo contemporânea. Com isso, busca
montar um entendimento sobre como as representações do corpo dissonantes
se colocam em meio aos padrões estéticos hegemônicos.

1. O corpo grotesco

Sorrisos desdentados, rostos enfermos, corpos velhos, baixos, desengonçados,


obesos, sujos. Segundo Jesús Martín-Barbero, existe uma determinada circunstância em
que a televisão se trai e permite ver um “feio povo”, um povo que tenta-se ocultar a
todo custo, mas que insiste em aparecer, mostrando a sua face sem maquiagens. Trata-se
do realismo grotesco, “espacio de expresión de los de abajo” (1998: 258).

O termo tem sua construção com Mikhail Bakhtin em seu livro sobre a cultura
popular da Idade Média e do Renascimento (2002). Embora o teórico russo seja
cuidadoso em esclarecer desde o princípio que sua análise se dirige a uma circunstância
histórica determinada2, sem dúvida diversas de suas observações podem ser
extremamente úteis para ajudar a entender como acontecem atualmente, nos meios de
comunicação massivos, as representações do popular subalterno contemporâneo,
principalmente em um país onde a maior parte da população ainda mantém contato com
uma cultura oral tradicional3 - residual, nos termos de Raymond Williams – de muitas
formas semelhante àquela analisada por Bakhtin.

1
Aluno do Mestrado em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, bolsista da CAPES
2
Em vários momentos de seu livro, Bakhtin separa o grotesco objeto de sua análise
(contextualizado na obra de Rabelais) das várias formas de grotesco presentes em obras
artísticas a partir do século XVIII e em na maioria de suas expressões atuais, que ele vê como
portadoras de uma “degeneração” de princípios positivos presentes na cultura popular da Idade
Média e do Renascimento.
3
“O ethos” da cultura de massa brasileira, tão perto que se acha da cultura oral, é fortemente
marcado pelas influências escatológicas da tradição popular (SODRÉ, 1972: 39).
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Com base nesse entendimento, o que nos interessa aqui é analisar, as diversas
representações de um corpo grotesco, colocado em oposição contrastante aos padrões
de beleza corporal, na programação televisiva “popularesca”, ou seja, dirigida às classes
mais baixas da população urbana e caracterizada por uma forte presença da escatologia,
do sensacionalismo, da violência e do espírito característico da cultura “de praça
pública”. Este é o caso de alguns programas locais produzidos pelas emissoras da região
metropolitana do Recife, extremamente bem sucedidos comercialmente e com elevados
índices de audiência, que tomaremos como objeto da análise.

2. A estética corporal e a ideologia

Não faltam exemplos de como os discursos sobre o belo corporal funcionam em


função da construção de uma hegemonia política; a ideologia dominante em uma
sociedade trabalha no sentido de tornar “naturais” as imagens culturais valorativas que
interessam a um grupo dominante como forma de justificar as hierarquias sociais e a
exclusão dos grupos subalternos nas mais variadas formas. Na Alemanha nazista, a
idealização de um conjunto de características físicas arianas era uma das maneiras de
tornar “aceitável” para o cidadão comum a perseguição de raças desenhadas como
sendo biologicamente inferiores. Na propaganda do Reich, os ideais políticos e estético-
corporais juntavam-se de uma maneira absolutamente despudorada.

“A estética nasceu como um discurso sobre o corpo” escreve Terry Eagleton


(1993: 17). O objetivo de Alexander Baumgarten4 ao propor sua fundação,
resgatando o conceito grego de aisthesis, era fazer com que a filosofia
passasse a dar conta de todo um campo das percepções e sensações
humanas, até então deixado em segundo plano. A estética seria uma “irmã
da lógica”, mediadora entre as generalidades objetivas da razão e as
particularidades subjetivas do sentidos através dos quais o mundo nos
atinge.

“A ciência”, escreve Baumgarten, “não deve ser empurrada para a região


mais baixa da sensibilidade, mas o sensível deve ser elevado à dignidade do
conhecimento”. O domínio sobre todos os poderes inferiores, segundo ele, é
responsabilidade da razão; mas esse domínio não deve degenerar em tirania.

4
O filósofo alemão Alexander Baumgarten é considerado o fundador da estética moderna por
ter proposto suas bases em seu livro Aesthetica (1750).
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Ele deve assumir a forma do que agora, a partir de Gramsci, podemos


chamar de “hegemonia” (EAGLETON, 1993: 20)

Essa hegemonia na esfera da cultura estética seria construída através das


universalidades conceituais que poderiam ser encontradas em seu campo: o sublime, a
beleza, na “imediatez de nossa resposta a uma bela pintura ou excelente sinfonia”
(1993: 59). Discípulo do racionalismo de Christian von Wollf, para Baumgarten essa
beleza consistia em uma perfeição próxima à da razão. A formação de uma “teoria do
belo” tem um papel fundamental na formação de uma coesão social necessária a uma
sociedade que começa a livrar-se do absolutismo, que mantinha a ordem através de uma
política de estruturas opressivas. Em um momento de ascensão dos ideais mais
centrados no indivíduo da sociedade burguesa, através da experiência das coisas belas
os homens poderiam ver sua humanidade compartilhada, criando uma existência
coletiva verdadeiramente corporativa. Assim, com a mediação dos conceitos oferecidos
pela estética, estava a partir de então aberta a possibilidade não só de que a filosofia
ordenasse um entendimento do campo do sensível, mas também que a nova organização
social desenvolvesse um discurso hegemônico sobre as percepções humanas. A partir de
sua formulação por Baumgarten a estética assume um papel central no pensamento
moderno europeu.

Anteriormente uma definição objetiva da beleza, relacionada ao prazer


proporcionado por coisas belas, estava presente desde a definição de Aristóteles na
Metafísica, dando como principais formas da beleza a ordem, a simetria e a definição
clara. Este alinhamento é mantido pela filosofia medieval5, tida como um dos conceitos
transcedentais como o Bom e o Verdadeiro que se harmonizavam como todos os
gêneros.

Para Kant, o sensível, sendo parte do campo do subjetivo, deveria ser claramente
distinguido do entendimento. O belo irá converter-se em valor apenas estético,
designando “um objeto de prazer universal (segundo a racionalidade do entendimento) e
desinteressado (sem a mediação do conceito)” (SODRÉ, 2002: 18). Com isso, deixa de
ser pura objetividade, pois passa a depender da percepção subjetiva.

5
Segundo Tomás de Aquino (seguindo basicamente os princípios de Aristóteles) as três
condições da beleza são a integritas (perfeição), consonantia (harmonia de proporções) e
claritas (claridade ou brilho).
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“Apesar da insistência kantiana no desinteresse, a concepção política (e,


portanto, interessada) da beleza pode ser percebida claramente em alguns
movimentos modernos, como a cultura barroca, que está voltada para a uma
ação prática e operativa”. (SODRÉ, 2002: 19)

Sendo assim, os usos ideológicos do belo para a construção da hegemonia passam


a “mascarar-se” com a universalidade, do belo virtuoso, “que vêm de dentro” de cada
indivíduo, e não necessita da mediação do conceito. As formulações do establishment
sobre o assunto continuam convenientemente contaminadas com os mesmos juízos: o
belo é tradicionalmente identificado com o “bom”, e o feio com o “mau”.

3. O belo corpo

A construção da hegemonia através das imagens representativas da beleza talvez


seja mais clara no campo das representações do corpo. Determinando o que é “correto”
e o que é “errado” nas questões de estética corporal a cultura estabelece aqueles que são
incluídos e aqueles que devem ser excluídos do ideal de mundo – os quais serão
representados de maneira negativa ou que simplesmente lhes será negada uma
representação, nos termos de subalternidade apontados por Gayatri Spivak (1988).

Apesar das tendências a uma estética difusa e fragmentada que podemos observar
como tendência do pós-modernismo, ainda podemos observar claramente a presença de
um discurso hegemônico trabalhando constantemente para manter determinados
cânones de beleza, principalmente através da cultura do consumo. Um exemplo entre
vários é apontado por Cleide Campelo, ao sugerir que a publicidade cria um ideal
expresso em um corpo-mídia, “que utiliza como suporte sígnico para o que pretende
anunciar” (2003: 38). A partir dele cria-se um desejo-de-ser-corpo, o ideal sonhado
pelos consumidores para si mesmos. Como instrumentos para a formação deste corpo
mídia apresentam-se os modelos, artistas do cinema e da televisão e, com as novas
tecnologias, homens e mulheres virtuais que concretizam mesmo corpos ideais não
disponíveis no mundo real6.

Brian Turner (1982) e Mike Featherstone (1982), valendo-se da teoria de Michel


Foucault, fazem análises sobre como as de imagens de beleza corporal têm uma relação
6
Sobre isso, é interessante notar como estes modelos corporais transitam de um ambiente a
outro, reforçando a formação de padrões de beleza: modelos que viram artistas de TV, artistas
que aparecem e comerciais e, no caso recente do filme Tomb Rider, modelos virtuais que
tomam a forma de pessoas reais (Lara Croft encarnada na atriz Angelina Jolie).
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intensa com a manutenção de uma disciplina do agir em relação ao corpo entre os


indivíduos.

“Consumer culture latches onto the prevalent self-preservationist conception


of the body, which encourages the individual to adopt instrumental strategies
to combat deterioration and decay (…) and combine it with the notion that
the body is a vehicle of pleasure and self expression “(FEATHERSTONE,
1982: 170).

Featherstone observa que, dentro da cultura de consumo as representações


midiáticas incentivam um trabalho constante de “manutenção corporal” direcionada
para um corpo ascético, cuja recompensa são benefícios cosméticos e de saúde. Quanto
mais os corpos reais de aproximam das imagens idealizadas de juventude, boa forma e
beleza, maior é seu valor de troca (1982: 177).

Bakhtin, partindo do ponto de vista de sua análise nas imagens grotescas da


cultura popular, preocupa-se em definir em que consistem os padrões de beleza
contemporâneos com referências aos limites que o corpo tem com um universo que o
cerca.

“A propriedade característica do novo cânon – ressalvadas todas as suas


importantes variações históricas e de gênero – é um corpo perfeitamente
pronto, acabado, rigorosamente delimitado, fechado, mostrado do exterior,
sem mistura, individual e expressivo. Tudo o que sai, salta do corpo, isto é,
todos os lugares onde o corpo franqueia seus limites e põe em campo um
outro corpo, destacam-se, eliminam-se, fecham-se, amolecem. Da mesma
forma se fecham todos os orifícios que dão acesso ao fundo do corpo.
Encontra-se na base da imagem a massa do corpo individual e rigorosamente
delimitado: a sua fachada maciça e sem falha”. (BAKHTIN, 2002: 280)

Nesse contexto, o papel predominante pertence às partes do corpo que “assumem


funções caracterológicas e expressivas”, como o rosto, os olhos, os lábios, o sistema
muscular e a situação que ocupa o corpo no mundo exterior. Trata-se de evidenciar um
corpo completamente pronto em um mundo exterior totalmente acabado, “em cuja
função as fronteiras entre corpo e mundo não são de forma alguma enfraquecidas”
(2002: 281).

Outro aspecto importante a ser ressaltado é a idealização de um corpo jovem, ou


que pelo menos represente jovialidade; na publicidade, quando se representa um idoso,
ele terá sempre um corpo bem cuidado e bem vestido. “Não há espaço no corpo-mídia
para os problemas de pele ou dentários” (CAMPELO, 2003: 40): o sorriso é essencial
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para expressar a felicidade. Também há uma fuga dos corpos que apresentem marcas da
ação do tempo ou da gravidade.

4. O feio corpo

Se considerarmos o que representam as imagens dos corpos bonitos na cultura de


consumo contemporânea, podemos começar a delinear um fenômeno extremo de
contraste entre as representações do corpo grotesco, como pensado por Bakhtin e que
continua presente nas comunicações populares.

Para o teórico russo, o traço mais marcante do realismo grotesco é o


rebaixamento, ou seja, “a transferência para o plano material e corporal, o da terra e do
corpo” de tudo o que é “elevado, espiritual, ideal e abstrato” (2002: 17).

Ao analisar essa formulação de Bakhtin, Muniz Sodré e Raquel Paiva colocam


que a imagem grotesca ameaça qualquer representação, escrita ou visual, ou qualquer
comportamento excessivamente marcados pela idealização. Operando por meio do
ridículo, da estranheza, leva ao chão tudo o que é colocado alto demais pela idéia.
(2002: 39)

“O comum nesses casos é a figura do rebaixamento (chamada de bathos na


retórica clássica), operado por uma combinação insólita e exasperada de
elementos heterogêneos, com referência freqüente a deslocamentos
escandalosos de sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do
corpo, fezes, dejetos – por isso tida como fenômeno de desarmonia do gosto
ou disgusto, como preferem os estetas italianos – que atravessa as diversas
épocas e as diversas formações culturais, suscitando um mesmo padrão de
reações: riso, horror, espanto, repulsa” (SODRÉ, 2002:17).

Quando o corpo é estetizado, espiritualizado pelos ideais da sociedade de


consumo, começa a ocorrer um mal estar do corpo real (ou biocultural) dentro da
linguagem. O desejo-de-ser-corpo coloca em situação de desconforto os corpos que não
se encaixam nos padrões. Inúmeros produtos que prometem modificar o corpo, esconder
ou eliminar o que é indesejado, são promovidos graças à insatisfação que é gerada nos
consumidores com relação aos seus próprios corpos.

Nesse contexto, o corpo grotesco pode se tornar uma radiografia inquietante do


real, desconstruindo as representações ideais, apresentando o conflito entre a cultura e a
corporalidade (SODRÉ, 2002: 60).
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Bakhtin define mais precisamente no que consiste a corporalidade no realismo


grotesco popular. Se os cânones apresentam um corpo fechado e acabado, o corpo
grotesco expressa exatamente o contrário: não está isolado do mundo, não é perfeito,
mas ultrapassa-se a si mesmo em seus limites.

“Coloca-se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre para o mundo
exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para
o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências,
tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz”
(BAKHTIN, 2002: 23).

Além disso, trata-se de um corpo em evolução dentro de um mundo material


também mutável. Os corpos nascem, crescem envelhecem e morrem para serem
substituídos pelo novo. Para Bakhtin essa imagem de renovação constante é o grande
aspecto positivo do realismo grotesco popular. Todos os fatos que expressam esse
caráter transitório e material também ganham importância: o comer, o beber, as
necessidades naturais, a transpiração e o humor nasal, a cópula, a gravidez, o parto, a
velhice, as doenças, a morte, a mutilação, o desmembramento, as feridas. “Em todos
esses acontecimentos do drama corporal, o começo e o fim da vida são
indissoluvelmente imbricados” (2002: 277).

A obesidade, anátema corporal na era das supermodels anoréxicas, também


assume um papel essencial na representação do corpo grotesco, como signo da intensa
interação com o mundo que o comer e o beber abusivamente proporcionam. Na
alimentação, “o homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz em seu
corpo, faz dele parte de si” (BAKHTIN, 2002: 245). Assim, a “fartura material” dos
gordos, como os reis-momo carnavalescos, sempre tiveram um lugar de destaque na
comicidade popular de praça pública.

5. O corpo dissonante

“O porta voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico
isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua
evolução cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é
tão magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e
afirmativo. O centro capital de todas as imagens da vida material e corporal
são a fertilidade, o crescimento e a superabundância. As manifestações da
vida corporal não são atribuídas a um ser biológico isolado ou a um
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indivíduo “econômico” particular e egoísta, mas a uma espécie de corpo


popular, coletivo e genérico.” (BAKHTIN, 2002: 17)

A estética tentou dar conta de uma “rebelião do corpo” contra a abstração da


razão. De certa forma o corpo grotesco que irrompe, insistente e desafiador, nas
representações midiáticas, constitui hoje em uma rebelião de um corpo real contra
aquele idealizado pela cultura de consumo, fazendo-se ver sem restrições e recordando a
todos a sua absoluta materialidade e transitoriedade.

Com sua inserção limitada na sociedade de consumo, pertencendo a grupos raciais


ausentes da representação do corpo ideal, as populações periféricas são justamente
aquelas em que reverberam de maneira mais forte as expressões dessa revolta. Não é
por acaso que pode-se identificar em programas televisivos direcionados a esse público
o destaque aos aspectos do realismo grotesco (que Bakhtin tanto associou à cultura
popular de praça pública).

Seus formatos, rejeitados pelo senso comum das classes médias e da elite, são bem
conhecidos para aqueles que acompanham a história da TV brasileira. São programas de
auditório e jornalísticos que se referem ao cotidiano dos bairros periféricos, ao mostrar
concursos de calouros, shows de variedades, cenas da violência urbana e narrativas de
conflitos familiares (adultérios, exames de paternidade) e de vizinhança. Neles o
“populacho” não só pode mostrar a sua cara, mas também contar suas histórias, seus
problemas que, ao serem transformados em espetáculo televisivo, passam a interessar
mais pelos detalhes sórdidos do que pelos dramas vividos.

6. A violência e o cotidiano periférico

Um primeiro exemplo desta tendência é o programa apresentado pelo radialista


Joslei Cardinot, o Pernambuco Urgente7. Todos os dias, diversas pessoas vêm ao seu
7
Transmitido pela TV Guararapes de Recife até dezembro de 2003, quando Cardinot transferiu-
se para a TV Tribuna.
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estúdio em busca da solução dos mais variados problemas, que pode ser atingida através
de um advogado ou de um pai de santo. O “preço” é a submissão a um interrogatório
constrangedor feito por Cardinot, que se detém nos aspectos escatológicos e sórdidos
das situações vividas: detalhes anormais de relações sexuais, traições, a situação
humilhante do marido traído, ou os costumes desagradáveis dos protagonistas,
geralmente relacionados com funções corporais ou alimentação. Fica sempre clara a
intenção de expor os sujeitos das narrativas ao ridículo; quanto mais bizarra a situação,
melhor. Os movimentos de câmera subjetivos (que costumam focar as “partes baixas”
das pessoas em momentos propícios) e a sonoplastia completam o quadro.

Originalmente centrado na questão da violência urbana, Pernambuco Urgente


gradualmente vem abrindo cada vez mais espaço para este apelo ao riso suscitado por
situações vividas nas realidades das periferias. Seu principal concorrente no horário,
Blitz na Cidade8, apresentado por Jota Ferreira, não fica para trás e apresenta um quadro
chamado Barraco, em que se pode testemunhar lavagens de roupa suja entre vizinhos
em conflito. Seu apresentador intensifica ainda mais o clima de confusão com sua
presença de palco, constantemente movendo-se e agitando os braços, berrando e
mantendo intenso contato físico com a platéia em abraços e beijos.

Um ponto importante a ser destacado nesses programas jornalísticos que tratam da


violência urbana são as imagens de cadáveres assassinados, mostradas em closes
chocantes, buscando sempre valorizar os aspectos mais desconfortantes de cada caso.
De uma maneira absolutamente degenerada em relação àqueles princípios positivos que
Bakhtin via nas representações grotescas, pode-se identificar uma reafirmação da
materialidade corporal nas figuras de mutilações, dos ferimentos e do sangue. Os corpos
mostrados são “coisificados” à medida que são banalizados. Geralmente são criminosos
assassinados em brigas ou tiroteios com a polícia; subentende-se no tratamento dado
pelas reportagens uma fatalidade mórbida que atesta o destino daqueles que se
envolvem com o “mundo do crime”. A punição aos bandidos é a física no seu extremo.

7. O espetáculo do auditório

No caso dos programas de auditório, a representação do corpo grotesco está mais


presente em um ambiente carnavalesco, de festa de praça pública. Neles, os movimentos
8
Transmitido pela TV Jornal
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do auditório formado por populares cria a efervescência para a apresentação de bandas e


calouros. Estes últimos, atrações obrigatórias do gênero, têm seus movimentos
desajeitados sempre destacados pela câmera, assim como os detalhes risíveis de sua
aparência, como a falta de dentes, estrabismo ou roupas estranhas. As letras das músicas
executadas, quase sempre do gênero “brega”, fazem referências a uma corporalidade e
ao sexo sem espiritualizações: um dos temas favoritos atualmente são as histórias de

“amor de rapariga”9 .
A dança se pauta pelo exagero. Os dançarinos alternam momentos de extrema
interação corporal, quando dançam agarrados, e curtas apresentações hedonistas em que
o objetivo claro é chamar a atenção da câmera para o corpo, a qualquer custo através de
movimentos explosivos de membros e tronco pelo palco. Para maximizar esse esforço,
as roupas usadas esvoaçantes deixam à mostra as partes mais beneficiadas pela dança ou
mais atraentes ao olho: colo, coxas, nádegas e cintura para as mulheres, peito ou barriga
para os homens.

Os assistentes de palco que interagem com os animadores, geralmente destacados


por detalhes curiosos ou engraçados de sua aparência vestem autênticos personagens
dos espetáculos teatrais da comedia dell’arte italiana. São comuns homens travestidos e
palhaços com roupas espalhafatosas. No programa Tribuna Show, da TV Tribuna,
destaca-se o “Maestro de Peso”, um músico obeso que expressa, através de seus
movimentos e roupas chamativas, toda a alegria e irreverência de um momo em pleno
carnaval.

São imagens que contrastam com a estética clean da maior parte da programação
televisiva. Nelas os artistas populares e natureza corporal são o espetáculo. Como dizia
Décio Pignatari em relação ao aspecto “circense” do programa de auditório de Abelardo
Barbosa, o Chacrinha, na década de 70 e 80:

(...) gente e coreografia se confundem. Daí a impressão de festa contínua


que transmite, daí o calor humano que irradia (em contraste, por exemplo,
com os musicais da Globo, que são frios, porque neles a cenografia se impõe
e domina os artistas) (1984:12).
9
“Rapariga” é um sinônimo local para prostituta. Entre os sucessos mais recentes do tecnobrega em
Recife, estão as músicas “Amor de Rapariga” e “Rapariga é você”.
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Nos casos analisados, os artistas amadores e profissionais podem se libertar em


êxtase das amarras de uma coreografia ou roteiro organizado, para benefício da
expressão de sua corporalidade sem pudores. Se, como foi visto, há uma orientação na
cultura de consumo para disciplinar os corpos, o que explode no Tribuna Show e em
seus semelhantes10 é a absoluta indisciplina do corpo. Para seus protagonistas não
existem compromissos rígidos com a manutenção do corpo e com a expressão em
gestos pensados; pelo contrário, quanto mais essas regras forem quebradas, mas o
espetáculo cresce.

8. Que corpo é esse?

A presença de uma representação grotesca do corpo na cultura de massas popular


nas grandes cidades se dá na medida em que as populações periféricas são excluídas,
através de sua inadequação física, aos cânones corporais do discurso hegemônico da
publicidade, da moda e dos artistas da televisão do “padrão Globo de qualidade”.

Esse aspecto pode nos dar instrumentos para pensar como é construída e que papel
exerce a imagem de um “corpo popular” dentro do discurso hegemônico televisivo, que
busca incluir as classes baixas, para efeitos de regulamentação das dos papéis sociais,
dentro de uma representação coletiva comum. Devemos pensar como as matrizes
culturais residuais grotescas oferecem as figuras para uma resistência - a de um corpo
como ele é – que causa mal-estar àqueles completamente inseridos no mundo do
consumo: para estes o corpo-mídia é uma esperança que será atingida através dos
produtos de beleza, das roupas da moda, das plásticas, dietas e medicamentos
emagrecedores. A exposição da “monstruosidade” física lembra a própria condição que,
através desses produtos, as pessoas tentam iludir. Nelas o riso provocado pelo grotesco
é o que mais expressa o estremecimento com a acusação de um mundo cuja segurança,
como escreve Wolfgang Kayser, “prova ser nada mais que aparência” (225).

Referências

TURNER, Bryan S. The Discourse of Diet, 1982. Em FEATHERSTONE, Mike e HEPWORTH, Mike.
The Body: Social Process and Cultural Theory. Londres: SAGE Publications, 2001.

10
Na TV pernambucana: Pedro Paulo na TV, pela TV Guararapes, e Muito Mais, pela TV Jornal
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BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no renascimento: O Contexto de François


Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 5 ed. São Paulo: Annablume, 2002.

CAMPELO, Cleide Riva. Publicidade e Corpo. Em CONTRERA, Helena e HATTORI, Osvaldo


Takaoki. Publicidade e Cia. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.

EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Trad. Mauro Sá Rego Costa. – Rio de janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1993

FEATHERSTONE, Mike. The Body in Consumer Culture, 1982. Em FEATHERSTONE, Mike e


HEPWORTH, Mike. The Body: Social Process and Cultural Theory. Londres: SAGE Publications,
2001.

KAYSER, Wolfgang. Lo grotesco: su configuración en pintura y literatura. Buenos Aires: Editoral


Nova.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonía. 5


ed. México: GG, 1998.

PIGNATARI, Décio. Signagem da televisão. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

SODRÉ, Muniz. A Comunicação do Grotesco. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

SODRÉ, Muniz. et PAIVA, Raquel. O Império do grotesco. Rio de Janeiro: MAUAD, 2002.

SPIVAK, Gayatri. Can the subaltern speak? Em Marxism an the interpretation of culture. London:
Macmillan, 1988.

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