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Fernando Fontanella1
1. O corpo grotesco
O termo tem sua construção com Mikhail Bakhtin em seu livro sobre a cultura
popular da Idade Média e do Renascimento (2002). Embora o teórico russo seja
cuidadoso em esclarecer desde o princípio que sua análise se dirige a uma circunstância
histórica determinada2, sem dúvida diversas de suas observações podem ser
extremamente úteis para ajudar a entender como acontecem atualmente, nos meios de
comunicação massivos, as representações do popular subalterno contemporâneo,
principalmente em um país onde a maior parte da população ainda mantém contato com
uma cultura oral tradicional3 - residual, nos termos de Raymond Williams – de muitas
formas semelhante àquela analisada por Bakhtin.
1
Aluno do Mestrado em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, bolsista da CAPES
2
Em vários momentos de seu livro, Bakhtin separa o grotesco objeto de sua análise
(contextualizado na obra de Rabelais) das várias formas de grotesco presentes em obras
artísticas a partir do século XVIII e em na maioria de suas expressões atuais, que ele vê como
portadoras de uma “degeneração” de princípios positivos presentes na cultura popular da Idade
Média e do Renascimento.
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“O ethos” da cultura de massa brasileira, tão perto que se acha da cultura oral, é fortemente
marcado pelas influências escatológicas da tradição popular (SODRÉ, 1972: 39).
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Com base nesse entendimento, o que nos interessa aqui é analisar, as diversas
representações de um corpo grotesco, colocado em oposição contrastante aos padrões
de beleza corporal, na programação televisiva “popularesca”, ou seja, dirigida às classes
mais baixas da população urbana e caracterizada por uma forte presença da escatologia,
do sensacionalismo, da violência e do espírito característico da cultura “de praça
pública”. Este é o caso de alguns programas locais produzidos pelas emissoras da região
metropolitana do Recife, extremamente bem sucedidos comercialmente e com elevados
índices de audiência, que tomaremos como objeto da análise.
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O filósofo alemão Alexander Baumgarten é considerado o fundador da estética moderna por
ter proposto suas bases em seu livro Aesthetica (1750).
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Para Kant, o sensível, sendo parte do campo do subjetivo, deveria ser claramente
distinguido do entendimento. O belo irá converter-se em valor apenas estético,
designando “um objeto de prazer universal (segundo a racionalidade do entendimento) e
desinteressado (sem a mediação do conceito)” (SODRÉ, 2002: 18). Com isso, deixa de
ser pura objetividade, pois passa a depender da percepção subjetiva.
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Segundo Tomás de Aquino (seguindo basicamente os princípios de Aristóteles) as três
condições da beleza são a integritas (perfeição), consonantia (harmonia de proporções) e
claritas (claridade ou brilho).
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3. O belo corpo
Apesar das tendências a uma estética difusa e fragmentada que podemos observar
como tendência do pós-modernismo, ainda podemos observar claramente a presença de
um discurso hegemônico trabalhando constantemente para manter determinados
cânones de beleza, principalmente através da cultura do consumo. Um exemplo entre
vários é apontado por Cleide Campelo, ao sugerir que a publicidade cria um ideal
expresso em um corpo-mídia, “que utiliza como suporte sígnico para o que pretende
anunciar” (2003: 38). A partir dele cria-se um desejo-de-ser-corpo, o ideal sonhado
pelos consumidores para si mesmos. Como instrumentos para a formação deste corpo
mídia apresentam-se os modelos, artistas do cinema e da televisão e, com as novas
tecnologias, homens e mulheres virtuais que concretizam mesmo corpos ideais não
disponíveis no mundo real6.
para expressar a felicidade. Também há uma fuga dos corpos que apresentem marcas da
ação do tempo ou da gravidade.
4. O feio corpo
“Coloca-se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre para o mundo
exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para
o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências,
tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz”
(BAKHTIN, 2002: 23).
5. O corpo dissonante
“O porta voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico
isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua
evolução cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é
tão magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e
afirmativo. O centro capital de todas as imagens da vida material e corporal
são a fertilidade, o crescimento e a superabundância. As manifestações da
vida corporal não são atribuídas a um ser biológico isolado ou a um
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Seus formatos, rejeitados pelo senso comum das classes médias e da elite, são bem
conhecidos para aqueles que acompanham a história da TV brasileira. São programas de
auditório e jornalísticos que se referem ao cotidiano dos bairros periféricos, ao mostrar
concursos de calouros, shows de variedades, cenas da violência urbana e narrativas de
conflitos familiares (adultérios, exames de paternidade) e de vizinhança. Neles o
“populacho” não só pode mostrar a sua cara, mas também contar suas histórias, seus
problemas que, ao serem transformados em espetáculo televisivo, passam a interessar
mais pelos detalhes sórdidos do que pelos dramas vividos.
estúdio em busca da solução dos mais variados problemas, que pode ser atingida através
de um advogado ou de um pai de santo. O “preço” é a submissão a um interrogatório
constrangedor feito por Cardinot, que se detém nos aspectos escatológicos e sórdidos
das situações vividas: detalhes anormais de relações sexuais, traições, a situação
humilhante do marido traído, ou os costumes desagradáveis dos protagonistas,
geralmente relacionados com funções corporais ou alimentação. Fica sempre clara a
intenção de expor os sujeitos das narrativas ao ridículo; quanto mais bizarra a situação,
melhor. Os movimentos de câmera subjetivos (que costumam focar as “partes baixas”
das pessoas em momentos propícios) e a sonoplastia completam o quadro.
7. O espetáculo do auditório
“amor de rapariga”9 .
A dança se pauta pelo exagero. Os dançarinos alternam momentos de extrema
interação corporal, quando dançam agarrados, e curtas apresentações hedonistas em que
o objetivo claro é chamar a atenção da câmera para o corpo, a qualquer custo através de
movimentos explosivos de membros e tronco pelo palco. Para maximizar esse esforço,
as roupas usadas esvoaçantes deixam à mostra as partes mais beneficiadas pela dança ou
mais atraentes ao olho: colo, coxas, nádegas e cintura para as mulheres, peito ou barriga
para os homens.
São imagens que contrastam com a estética clean da maior parte da programação
televisiva. Nelas os artistas populares e natureza corporal são o espetáculo. Como dizia
Décio Pignatari em relação ao aspecto “circense” do programa de auditório de Abelardo
Barbosa, o Chacrinha, na década de 70 e 80:
Esse aspecto pode nos dar instrumentos para pensar como é construída e que papel
exerce a imagem de um “corpo popular” dentro do discurso hegemônico televisivo, que
busca incluir as classes baixas, para efeitos de regulamentação das dos papéis sociais,
dentro de uma representação coletiva comum. Devemos pensar como as matrizes
culturais residuais grotescas oferecem as figuras para uma resistência - a de um corpo
como ele é – que causa mal-estar àqueles completamente inseridos no mundo do
consumo: para estes o corpo-mídia é uma esperança que será atingida através dos
produtos de beleza, das roupas da moda, das plásticas, dietas e medicamentos
emagrecedores. A exposição da “monstruosidade” física lembra a própria condição que,
através desses produtos, as pessoas tentam iludir. Nelas o riso provocado pelo grotesco
é o que mais expressa o estremecimento com a acusação de um mundo cuja segurança,
como escreve Wolfgang Kayser, “prova ser nada mais que aparência” (225).
Referências
TURNER, Bryan S. The Discourse of Diet, 1982. Em FEATHERSTONE, Mike e HEPWORTH, Mike.
The Body: Social Process and Cultural Theory. Londres: SAGE Publications, 2001.
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Na TV pernambucana: Pedro Paulo na TV, pela TV Guararapes, e Muito Mais, pela TV Jornal
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EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Trad. Mauro Sá Rego Costa. – Rio de janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1993
SODRÉ, Muniz. et PAIVA, Raquel. O Império do grotesco. Rio de Janeiro: MAUAD, 2002.
SPIVAK, Gayatri. Can the subaltern speak? Em Marxism an the interpretation of culture. London:
Macmillan, 1988.