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Cuidados paliativos transformam paciente em

Salvo no Dropbox • 7 de set. de 2021 14:44


ATÉ O FIM!
Cuidados paliativos transformam paciente em
protagonista da sua própria história até o último
segundo

SAMANTHA CERQUETANI
COLABORAÇÃO PARA VIVABEM

! Faremos tudo o que estiver ao


nosso alcance, não somente para
ajudá-lo a morrer em paz, mas
também para você viver até o dia
de sua morte"

A frase de Cicely Saunders, médica britânica,


pioneira nos cuidados paliativos, resume a
abordagem que visa colocar o paciente com
uma doença incurável no cerne do cuidado,
respeitando até o último momento os seus
desejos e a sua individualidade.
É provável que boa parte das pessoas ainda
não saiba o que são os cuidados paliativos —
ou só entenda a sua real necessidade após
receber um diagnóstico de uma doença grave
que ameace a própria vida ou de algum
familiar, como câncer. No entanto, o objetivo é
oferecer conforto, qualidade de vida e aliviar o
sofrimento de quem sofre.

Independentemente da faixa etária ou


enfermidade, para os paliativistas morrer é tão
importante quanto nascer. Para eles, é preciso
viver com qualidade até o último dia e que a
pessoa seja vista como um ser humano, muito
além da doença.

Quando não é possível mais realizar


intervenções médicas que possam curar o
paciente, entram em campo os profissionais de
cuidados paliativos porque, após um
diagnóstico, ainda há muito a se fazer, tanto
pela pessoa quanto por seus familiares.
O que realmente importa?
É comum acharmos que temos tempo. E,
muitas vezes, adiamos os planos e seguimos
uma rotina cansativa. Mas isso muda após um
diagnóstico apontar que a finitude da vida está
mais perto do que imaginávamos.

Para Douglas Crispim, paliativista e presidente


da Academia Nacional de Cuidados Paliativos,
quando a pessoa se depara com uma doença
que ameaça a vida, inevitavelmente pensa no
que é essencial.

! Os cuidados paliativos apoiam a


ressignificação e
operacionalização daquilo que é a
essência de cada um. Valorizando
sua biografia e seus desejos.
Para uma pessoa viver
plenamente o final da vida,
precisa ter cuidados físicos
adequados, controle dos
sintomas, apoio psicológico e
espiritual e segurança. Os
paliativistas dão condições para a
dignidade acontecer de fato.

Na prática, os cuidados paliativos oferecem


uma assistência bastante ampla por meio de
uma equipe multidisciplinar. Os paliativistas
não medem esforços para melhorar a
qualidade de vida de quem tem uma doença
incurável (e de sua família), mas todas as
ações respeitam os limites do paciente, a sua
autonomia e crenças.
Princípios básicos dos cuidados
paliativos

Promover o alívio da dor e de outros


sintomas

A!rmar a vida e considerar a morte


como um processo natural

Não acelerar nem adiar a morte


Integrar os aspectos psicológicos e
espirituais no cuidado ao paciente

Oferecer suporte para que o paciente


viva tão ativamente quanto possível

Melhorar a qualidade de vida e


in"uenciar positivamente o curso de
vida
Ser iniciado o quanto antes, junto de
outras medidas para prolongar a vida

Auxiliar os familiares durante a doença


do paciente e a enfrentar o luto
Mudança no olhar
Apenas na década de 1990 surgiram os
primeiros serviços organizados de cuidados
paliativos no Brasil. Desde o ano 2000, a
médica Maria Goretti Maciel* atua nesta área.
No início, realizava assistência domiciliar em
pacientes com câncer e depois montou o
Serviço de Cuidados Paliativos no Hospital do
Servidor Público, em São Paulo.

"Quando começamos, ainda eram


pouquíssimos os profissionais da área. A
filosofia é o elo de tudo. Não é uma medicina
de protocolos, mas de princípios. Proteger é a
palavra-chave. Os paliativistas devem proteger
o paciente do sofrimento envolvido em adoecer
e ter a vida ameaçada", completa a diretora de
Serviços de Cuidados Paliativos do Iamspe
(Instituto de Assistência Médica ao Servidor
Público Estadual de São Paulo).

É preciso olhar o paciente de uma forma mais


humana e individualizada, compartilhando
suas dores. E sempre é necessário enxergar a
pessoa inteira —seus valores, trajetória,
medos, desejos, crenças— e não apenas a sua
doença.
! Após o diagnóstico de uma
doença grave, o paciente vê a
perspectiva da sua morte. E os
paliativistas diminuem o
sofrimento e o ajudam a
atravessar essa fase. Nós
acompanhamos a pessoa no
processo de morrer para que isto
seja o mais leve possível e menos
sofrido para a família.

*A ilustração acima deste texto foi feita


baseada numa foto da médica Maria
Goretti

Cuidados paliativos em números


Como você quer vivenciar a sua
morte?
A maioria dos médicos é treinada para curar.
Mas diante de uma doença incurável, a equipe
de cuidados paliativos realiza intervenções
específicas para aliviar o sofrimento físico e
permitir que a vida siga seu curso natural. E
assim, a pessoa tenha uma "boa morte"
(kalotanásia).

De acordo com Crispim, as intervenções


médicas devem ser implementadas apenas
quando oferecem benefícios. "Prolongar uma
vida é maravilhoso, desde que seja com
qualidade. Qualquer procedimento deve ser
comprovado cientificamente e ter
concordância do paciente e de seus
familiares".

A equipe de cuidados paliativos é composta


por diversos profissionais que controlam os
sintomas:

Do corpo (médicos e enfermeiros);


Da mente (psicólogos e psiquiatras);
Espirituais (padre, pastor, rabino, entre
outros);
Sociais (assistentes sociais).

A pessoa que está em processo de morte


precisa decidir como deseja que sejam os
seus cuidados e os tratamentos que quer (ou
não) receber no momento da finitude. Para
isso, há as diretrizes antecipadas de vontade
(ou testamento vital).

"É importante elaborar o plano de cuidados.


Tudo o que for feito é preciso ser estudado
para não abreviar a vida ou causar dor",
explica Goretti.
Tipos de morte

Eutanásia
É uma forma de abreviar a vida de
alguém com uma doença grave e
incurável a pedido da própria
pessoa. É considerada crime no
Brasil, assim como o suicídio
assistido.

Ortotanásia
É a morte natural com dignidade,
ou seja, quando não há
interferência da ciência. A pessoa
tem uma morte sem sofrimento, no
momento adequado, sem alterar o
processo natural, sem apressar ou
retardar o fim da vida.

Distanásia
É o prolongamento desnecessário
da vida por meio de intervenções
médicas que podem ser invasivas.
O objetivo é estender a vida do
paciente, mas isso acaba
causando grande sofrimento e
angústia.

Kalotanásia
Conhecida como a "boa morte",
consiste em um conjunto de ações
para que o processo de morrer
seja o mais suave e sereno
possível. Promove a consciência
da morte, controla sintomas
desagradáveis, respeita o desejo
dos pacientes e promove a sua
autonomia até o fim.

Muito além do câncer


! Os pacientes recebem os
cuidados no local ou são
encaminhados para unidades de
internação específicas. Também
realizamos serviço de
atendimento domiciliar e por
telefone. Contamos com cerca de
40 profissionais de saúde atuando

Ricardo Tavares , coordenador do Núcleo


de Serviços Paliativos do HC-FMUSP
Cuidar de quem está morrendo
O que leva um médico a atuar com quem está
na reta final da vida? Para Marco Túlio Mourão,
médico de família e comunidade, geriatra e
paliativista, o caminho foi natural. "Ao me tornar
geriatra passei a conviver com idosos que
estavam chegando à finitude. Percebi que esse
processo poderia ser sem dor e humanizado".

O médico atua em uma UBS no Ceará e realiza


atendimento domiciliar em pacientes que não
conseguem se locomover. Para ele, é
fundamental conhecer a história da pessoa,
conversar com a família e saber o contexto
social para realizar um diagnóstico realista e o
tratamento humanizado.

! Quando há uma doença sem


cura, meu papel é cuidar do
paciente, dar conforto, evitar que
ele sinta dor e não sejam
realizados procedimentos
desnecessários

Ele conta que atendeu uma mulher com


paralisia cerebral até os 40 anos. "Nunca vou
me esquecer da mãe me agradecendo por ter
cuidado dela até o fim. É gratificante que ela
tenha partido com tranquilidade."

E comemora que sua paciente de 92 anos, em


processo de morte, acamada com sequelas de
um AVC, siga sem dor: "Eu a acompanho há
quatro anos. E ela se comunica cantando. O
cuidado ao paciente traz paz e conforto para
quem está morrendo e aos familiares".
Vivendo com intensidade todos
os dias
Em 2015, a administradora de empresas Josi
Damasceno*, 49, foi diagnosticada com câncer
de mama. Depois do baque inicial, saiu de
Belém e veio para São Paulo realizar seu
tratamento.
"O câncer foi detectado no começo, mas
descobri que não tinha cura. Recebi um
doloroso diagnóstico de metástase óssea, pois
remete à morte. Não parava de pensar: 'Eu
nunca vou ficar boa?" ou 'Como vou contar
para a minha família?'. Para mim era o fim."

Com ajuda de uma médica, Josi descobriu os


cuidados paliativos e várias possibilidades
para ter qualidade de vida. "Comecei a encarar
a minha finitude de outra forma. Sabia que teria
dificuldades, mas viveria bem, mesmo em um
corpo adoecido."

Ela conta que com os cuidados paliativos


passou a entender que tem autonomia sobre a
sua vida e a sua morte. A abordagem ajudou
Josi a descobrir que é importante continuar e
que ela não deve deixar o câncer "roubar nada"
de sua vida.

"Hoje, busco a cura da minha alma e tento


errar menos. Não espero um milagre, pois
venço o câncer todos os dias. Quero que a
minha vida seja intensa, se não puder ser
extensa. Não tenho medo da morte, tenho
medo de morrer em vida."
*A ilustração acima deste texto foi feita
baseada numa foto de Josi

É preciso leveza para lidar com a


morte
Ainda há resistência em falar sobre a morte e o
luto, mas o tema deveria fazer parte das
conversas de familiares e amigos. No entanto,
o assunto nem sempre precisa ser abordado
com tristeza, dor ou de forma pesada.

É no que acredita Rodolfo Moraes, médico


paliativista que atua no Hospital do Câncer de
Franca (SP). Em 2018, ele criou uma conta no
Instagram (@dr.rodolfo.moraes) para divulgar
os cuidados paliativos e explicar
procedimentos de forma leve e descontraída.

! Vi a necessidade de divulgar esse


novo olhar da medicina para a
saúde, essa mudança de foco
para os pacientes. Eles se
identificam com o conteúdo e
perdem a vergonha de perguntar.
O humor ajuda a trazer leveza
para a morte, sem ser
desrespeitoso.

No final de 2020, a escritora Gisela Rao criou o


Luto na Lata (@lutonalata) e passou a divulgar
frases que os enlutados mais escutam. Com
um humor ácido, ela recebe um feedback
positivo sobre os conteúdos e consegue
dialogar sobre o tema.
"Sempre tive dificuldade em enfrentar a morte e
resolvi estudar. Percebi que as pessoas não
sabem o que falar para quem está morrendo
ou quem fica. É difícil sentir a dor do outro e
não somos ensinados a falar sobre o assunto.
O humor contribui com a discussão", diz Rao.

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Publicado em 1 de abril de 2021.


Reportagem: Samantha Cerquetani | Edição: Bárbara
Paludeti | Arte: Mathias Pape | Animação de capa: Leonardo
Rodrigues
Referências: Atlas Global de Cuidados Paliativos (2020) |
https://paliativo.org.br/ | OMS | Atlas dos Cuidados Paliativos
no Brasil 2019 | Manual de Cuidados Paliativos - Ministério da
Saúde.

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