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Dentre as virtudes que todo 0 homem deve viver, hé uma, prosaica, envergonhada, que éa chave das outras, vistosas e muito cotadas: ehama-se modes- tamente ordem. E como essas estacas fundas que sustentam 0 edificio. Seu destino é enterrar-se, agiientar sem aparecer; se alguma vez aparece, é porque o edifi- cio desabou. E uma virtude humilde e, na bolsa dos valores humanos, humilhada; depreciada: parece estribilho para meninos e meninas de colégio, ndo para homens feitos. E, no entanto, sem ela nada persiste, tudo cai, mais cedo ou mais tarde, ‘amontoa-se como entutho feio e incémodo em ter- reno baldio. A desordem é uma das razdes de fundo da nossa fragilidade, apesar dos nossos bons pro- Jetos. Nao se pretende tecer nestas paginas umas con- sideragdes de mera prudéncia, ditadas pelo senso- -comum, nem oferecer conselhos de auto-ajuda, nem enunciar modos de methorar 0 rendimento pessoal ou a eficdcia organizativa. Do que se trata éde compreender methor que a origem ¢ o fim tlti- mos da ordem se situam fora do espaco e do tempo: na eternidade que nos precede e nos aguarda, nm A virtude da ORDEM Francisco José de Almeida Se TEMAS CRISTAOS 120 A VIRTUDE DA ORDEM FRANCISCO JOSE DE ALMEIDA | QUADRANTE Sio Paulo 2006 Copyright © 2006 Quadrante, Sociedade de Publicagdes Culturais Capa José C. Prado Iustragio da eapa A Criagao: Deus no inicio da Criagao (1332), Michiel van der Borch, Koninklijke Bibliotheek, Holanda Ilustragdes internas Cristiano Chaui dos Internacionais de Catalogasio na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, ‘imeida, Fr Tost de ‘A virtade da ordem / Francisco José de Almeida ~ Sto Paulo ‘Quadrante, 2006 ~ (Temas cristios; 120) ISBN: 85-7465-009-9 - colesio ISBN: 85-7465-101-X - vol. 120: A vitude da ordem 1. Conduta de vide 2, Ordem 3. Vida erst 4, Virtudes 1. Titulo, IL. Série, 08.8832 cpp-241.4 Indices para catalogo sistemitic 1. Ordem : Virtdes : Erica crit 261.4 ‘Todos os direitos reservados a QUADRANTE, Sociedade de Publicagdes Culturais Rua Iperoig, 604 - Tel.: 3873-2270 - Fax: 3673-0750 CEP 05016-000 - Sao Paulo - SP info@quadrante.com.br / www.quadrante.com.br INTRODUGAO™ Num dos pontos iniciais do seu livro Caminho, diz ‘So Josemaria Escriva: “Nao voes como ave de ca- poeira quando podes subir como as dguias”'. Com essa imagem, records-nos que, no meio da sua vida distia, 0 cristo deve ter a cabeca, os olhos € 0 cora- lo postos no céu e, assim orientado, procurar ele- var-se até as alturas de Deus. Outro dos pensamentos do autor, agora em Forja*, fala-nos de um passarinho que, por suas forgas, mai consegue chegar & sacada do terceiro andar de um pré- dio, até que um dia uma guia o arrebata nas suas po- garras ¢, depois de ergué-lo até o azul dos cus, o solta dizendo-the: “Vamos! Agora voa!” Sabemos que, por designio divino, nfo fomos fei- tos para arrastar-nos pelo chiio ou para bater as asas como uma galinha espavorida, para afinal sé nos des- ocarmos um ridiculo metro € meio. Fomos feitos para um v6o em que experimentaremos a liberdade, 0 ar puro e a vista inesgotivel dos cumes. (1) Josemara Escivi, Caminko, 9. ed, Quadrante, Sio Paulo, 1999, n.7. (@) Josemaria Escrivi, Forja, 2 ed, Quadrant, So Paulo, 2005, 238. Sabemos disso, mas também sabemos que, por nds proprios, se é que comegamos bem, em breve nos as- sustamos ante a magnitude do firmamento que nos en- volve ¢ tomamos a procurar terra, onde nos sentimos seguros. Ea diferenga entre o dom das alturas ¢ a vida rente A terra, esgaravatando o chao sem parar. O peso da nossa mediocridade, a asfixia do imediato levam- -nos instintivamente a ter medo de continuar a voar € ‘a desistir, quando comegdvamos a experimentar ¢ a ‘encantar-nos com um panorama de luz sem sombras ¢ de paz silenciosa. Mas se no duvidamos de que a Aguia divina tem os olhas postos em nds © nos impulsiona, se a ela nos confiamos e a sabemos sempre por perto — nio apenas no ponto de arranque —, esse peso ndo nos forga a tar agarrados & terra. A graga do Batismo fez-nos, com ‘uma marca indelével, da raga ¢ da familia dos filhos de Deus. Os outros Sacramentos instilam-nos gota a gota a vida ¢ a forca do proprio Deus. Ouvimos no in- timo o incessante murmtrio encorajador dessa Tercei- a Pessoa, amavel e paciente, que € 0 Espirito Santo. ‘Temas & nossa disposigo, sempre que dela necessite- ‘mos, a temura do regago de Santa Maria, Mae de mi- sericOrdia. Estamos amparados por esse Corpo do qual somos membros vivos ~ a Igreja -, que nos vitaliza e nos reabastece em pleno véo. E tantas ajudas mais. ‘Mas a todas essas ajudas — que pela fé estio a0 nosso dispor , temos que dar-thes 0 suporte das nos- ‘sas prOprias asas, o ponto de aplicagao da graca divina. “Deus que te criou sem ti, ndo te salvard sem ti”, diz Santo Agostinho. E do cortejo de virtudes que com- poem ¢ fortalecem as nossas débeis asas, hd uma, pro- saica, envergonhada, que & a chave das outras, vistosas ‘e muito cotadas: chama-se modestamente ordem. 4 E como essss estacas fundas que sustentam o edi- ficio, Seu destino é enterrar-se, agiientar sem apare- cer; se alguma vez aparece, é porque 0 edificio desa- ou. E uma virtude humilde e, na bolsa dos valores humanos, humilhada, depreciada: parece estribilho pa- ra meninos e meninas de colégio, no para homens feitos. E no entanto sem ela nada persiste, tudo cai, mais cedo ou mais tarde, e amontoa-se como entulho feio e incdmodo em terreno baldio. A desordem é uma das razbes de fundo da nossa fragilidade, apesat dos bons projetos. Que acontece com um homem, uma mulher, um jovem estruturalmente desordenados? Nao os veremos dar um passo que seja seqiiéncia do anterior ¢ por isso nunca chegaro ao término do edificio. Ou serio o cata-vento que brilha e nada sustenta, inconstantes, frivolos, ociosos a espera de ver de que lado sopra 0 vento. Ou entiio esses homens afobados, esgotados, correndo atris dos planos inacabados, dos encontrées em si proprios nas esquinas da sua desarrumagao. Se se virem ao espelho da sua consciéncia, serio a ima- gem espectral da volubilidade ou do egoismo frenéti- co. E, para os outros, sero fundamentalmente pessoas ‘niio confidveis: nao respeitardo compromissos, nem prazos, nem amizades, ¢ menos ainda ideais, Talvez seja por falta de reflexio ou de uma vontade firme. Talvez. Ou entio, simplesmente por falta de ordem, ‘A ordem & uma virtude-serva: existe para servir. Mas, na sua raiz, é uma virtude-senhora: tanto pela sua origem, pelo seu bergo, como pela meta a que nos conduz, se aceitamos a servidio paradoxal de servir a essa virtude que nos serve. ‘Nao se pretende fazer aqui umas consideragdes de 5 ‘mera prudéncia, ditadas pelo senso-comum, nem ofe- recer conselhos de auto-ajuda, nem enunciar modos de melhorar 0 rendimento pessoal ou a eficécia organiza- tiva. Do que se trata é de compreender melhor que @ origem e o fim iltimos da ordem se situam fora do es- paco e do tempo, na eternidade que nos precede e nos aguarda. O QUE E A ORDEM? Em matéria de ordem nas nossas ocupagdes, todos tendemos a cuidar do imediato, se no do atrasado ou do urgente, sem refletir habitualmente nos principios que deveriam dar origem e razio de ser is nossas ati- vidades. Ouvimos falar dessa palavra ¢ logo pensamos nna mesa do nosso eseritério, atulhada de papéis pen- dentes...; no armdrio, na confusio do quarto das crian- gas ou dos nossos livros amontoados... Mas, na reali- dade, esse aspecto utilitério no é — nio deve ser — um Principio auténomo nem um fim em si mesmo, mas Conseqiiéncia de outra ordem fundamental, interior, que se traduz ¢ se projeta no que se faz. Para entender o que ¢ a ordem, & preciso comegar Por compreender que no é qualquer tipo de estrutura- Go das minhas coisas que pode realmente merecer esse nome. Sem it mais longe, uma ordem que se li- mitasse 4 mera organizacdo de coisas materiais ¢ ocu- ppagdes pessoais, vendo nela uma lei suprema, a ponto de converter-se numa mania, num verdadeiro idolo a0 qual se sacrificassem valores mais importantes, seria ha realidade uma grave desordem. Dai que seja muito importante conhecer e viver os critérios da ordem que ho de regular a vida e as coisas da vida. Por exemplo, poss ordenar a minha atividade segundo principios ue me ajudem a cumprir cabalmente o dever, ou en- 7 A ordem exterior 6 reflexo de outra ordem, mais fundamental, que é interior. tio pela lei do menor esforgo ou do gosto pessoal; se~ gundo critérios de generosidade ou de egoismo; em nivel puramente sensorial ou de acordo com critérios morais, etc. Em iiltimo termo, para cortar caminho, diremos que a ordem digna desse nome tem de partir e apontar para um objetivo muito alto: 0 de conseguir que todos (08 nossos atos se ordenem para uma vida virtuasa, que se proponha traduzir nesses atos a ordem querida por Deus para nés ¢ para as coisas que dependem de nés, tal como consigamos apreendé-la. A ordem seri as- sim, mais que uma virtude, 0 resultado de muitas vir- tudes juntas que refletirio a vontade de ajustar-nos a0 8 que Deus quer de nés: & ordem por Ele estabelecida para 0 nosso caso. ‘A ORDEM QUERIDA POR DEUS Deus estabeleceu uma ordem ao criar os seres ina- ‘imados € os seres vivos, em especial o homem. Nao criou por criar. Nada no universo existe sem finalida- de. O homem, dotado de alma imortal, menos ainda. E nao 86 0 homem em geral, mas eu em particular. Costuma-se dizer que “Deus s6 sabe contar até um”. Isto significa que eu ndo sou um ser perdido na imen- sido do universo, mas alguém muito especial em quem Deus pousou individualmente o seu olhar de Pai € de quem espera um comportamento determinado, ‘Ajustar-me a essa expectativa, conformar os meus pla- nos € agdes a esse projeto divino, cuidadosamente pro- ‘eurado e meditado, é a ordem que deve reger os meus dias e os meus pasos. ‘Nio pensemos que a idéia de Deus sobre cada um de nés ¢ algo vago, impossivel de ser apreendido, Em primeirissimo lugar, porque Ele nos fez conhecer os ‘seus principios de ordem para o género humano e, por conseguinte, para nés: os Dez Mandamentos. Cum- pri-los é o primeiro elemento ordenador da nossa vida; descumpri-los ¢ a desordem, melhor, a fonte de todas, as desordens e, no fundo, a verdadeira e tinica desor- dem: chama-se a isso pecado, ‘Aos olhos humanos — superficiais e mfopes -, 0 pecado nao parece as vezes tio importante. Mas no é verdade. Recordemos, a este propésito, a conhecida afirmagao do Cardeal Newman, quando se converteu do anglicanismo a Igreja Cat6lica: “A Igreja Catélica afirma que, se 0 sol ¢ a lua se precipitassem do firmamento, ¢ a terra se afundasse, e 0s muitos milhdes que a povoam morressem de inanigao em extrema agonia, tudo ‘sso, que causaria males temporais, tudo isso se- ria um mal menos grave do que o de uma tinica alma que nio s6 se perdesse, mas cometesse um linico pecado leve, dissesse deliberadamente uma mentira ou roubasse sem motivo uma moeda de cingiienta centavos”. A isso acrescenta-se 0 que diz 0 Catecismo da Igreja Catélica: “Os Dez Mandamentos fazem parte da reve- lagdo de Deus. Mas, a0 mesmo tempo, ensiniam- -nos a verdadeira humanidade do homem. Poem fem relevo os deveres essenciais e, por conse- guinte, indiretamente, os direitos fundamentais inerentes natureza da pessoa humana. O Decé- Jogo encerra uma expressio privilegiada da «lei naturaly”*, Quer isto dizer que todo 0 pecado, por ser uma ofensa a Deus, que, “escreveu os Dez Mandamentos «com o seu dedo» (Ex 31, 18; Deut 5, 22) e os revelou na Nova Alianga em Jesus Cristo no seu sentido ple- no” (cfr. op. cit. n. 2056), introduz um elemento de corrupeo na natureza do homem, desfigurando-a ¢ contaminando as relagdes humanas. Por menor que parega, 0 pecado &, pois, a maior desordem e a fonte @) Apologia pro vita sua, cap. 5. (4) Caecismo da fgreia Cathic, 1. 2070. 10 de toda a desordem, mesmo socialmente, Seria absolu- ‘tamente errado ver nos Dez Mandamentos um conjun- to de proibigdes. Sdo antes a sinalizagio que protege ‘contra 03 descaminhos e permite 0 avango ordenado ‘uma realizagao digna do ser humano ¢, em conse- {qiiéncia, da prépria sociedade. Escrevia 0 filésofo Ro- bert Spaemann que as condigdes de sobrevivéncia do hhomem e da sociedade nio sdo objeto de votagdo: so ‘como sto. Quer dizer, so ditadas pela propria nature- za do set humano, tal como Deus 0 criou. Ignoré-las ‘ou desrespeiti-las’ é destruir-se; cumpri-las € reali- zar-se, Essa € a ordem, (QUE COISAS ORDENAR? 1Na seqiiéncia dessa ordem comum a todo o ser hu- ‘mano, vem 0 seu detalhamento de acordo com a si- ‘tuagio particular de cada um. As grandes linhas de umo queridas por Deus exigem comportamentos in- dividuais, isto é, a aplicagdo a0 caso pessoal. Temos ‘de compreender que, ainda que conhegamos 0 cami- tho certo, isso ndo basta — até podemos acabar por sair desse caminho -, se cada passo contradiz 0 ante- rior e dificulta o seguinte, se temos 0 pé direito indo para a frente € 0 esquerdo, todo torcido, indo para ‘rds. Talvez nao possamos estar seguros de que, por exemplo, a ordem numa gaveta do nosso armério de roupa, colocando as camisas & direita e os lengos a es- querda, seja algo expressamente querido por Deus; fa- lando com objetividade, to agradével a Deus poderia Ser dispor as camisas a esquerda e os lengos a direita. Mas 0 que podemos afirmar é que nao seria agradavel n a Deus que, por preguiga ou negligéncia, as camisas ou os Iengos estivessem misturados com os sapatos. E isto porque o Senhor quer ordem, isto é, que cada coi- sa esteja no lugar que lhe cabe, racionalmente estuda- do, de modo a permitir o curso da vida, sem compli- céla a curto ou médio prazo. E isto leva também a nogdo das prioridades. As nossas coisas niio tém todas a mesma importincia, ¢, por conseguinte, 0 que & mais importante deve vir em primeiro lugar, € 0 que o € menos tem de vir em se- gundo, e assim sucessivamente. Essa subordinagdo é querida por Deus. Qualquer ordem inferior deixa de ser ordem se contradiz ou usurpa o lugar da ordem su- perior. Hi que subordinar 0 imediato ao necessirio, 0 pessoal ao familiar, o divertimento ao dever, 0 capri- cho a0 compromisso, e, em iiltima anilise, o egoista e mediocre ao virtuoso; numa palavra, o temporal ao eterno, 0 dia-a-dia a imitago de Jesus Cristo, 0 tinico Nome pelo qual podemos ser salvos (cfr. At 4, 12), ¢ desse modo ter uma antecipagdo, um comego, do eter- no no temporal. O que se joga aqui, como vemos, ¢ algo decisivo, porque tem a ver com 0 longo prazo, ‘com. 0 nosso destino, E verdade que nem sempre somos capazes de agir: ‘com toda a consciéncia por uma motivagao tio eleva- da, E é também evidente que, mesmo que assim fosse, no chegariamos a consegui-lo de hoje para amanha. Trata-se, pois, de duas coisas que se alimentam uma & outra. Primeiro, convencermo-nos de que, efetivamen- te, a razio ultima para vivermos, pensarmos € traba- Tharmos com ordem esti em que assim cooperamos para a realizagao do plano divino. Segundo, que essa finalidade suprema, se I no fim a queremos alcangar, tem de refletir-se agora na ordem com que colocamos 2 as camisas, os lengos ¢ os sapatos... Isto é na vida diéria. Qualquer fragmento de ordem,— nas coisas ma- teriais, nas atividades do espirito, no trabalho € no la- zer, na familia, etc., etc. ~ tem todo o valor, apesar de um ou outro parecer insignificante ou sem conexio com o fim tltimo. ‘Nao nos preocupemos se, a0 chegarmos pontual- ‘mente 20 trabalho ow repormos um livro no lugar de ‘onde 0 tiramos, 0 fazemos por uma razo imediata de eficdcia, ou para economizar tempo, ou como meio de niio perder a calma e a paz interior, ow por respeito a0 préximo ou mesmo por temperamento. Esses motivos imediatos, para um homem ou mulher de fé, no po- dem fazé-los esquecer que, por tris deles, se escon- dem chamadas divinas para uma unidade de pequenos atos didrios, que se hiio de entrelagar para dar cumpri- mento 4 ordem querida por Deus para 0 universo © para cada ser humano. & isso, nada mais ¢ nada me- nos, 0 que esti em jogo nessa virtude tio apagada, ca- seira, CRITERIOS DE ORDEM Santo Agostinho definiu a ordem como “uma dis- posigdo de coisas iguais ¢ desiguais, que dé a cada luma 0 seu lugar”. Dai que, antes de colocarmos as nossas coisas e tarefas no seu devido lugar, seja pri- ‘mordial definir esse lugar. ra, isso leva-nos a averiguar quais as realidades (9) De Chita Dei, L. 19, cap. 13. 3

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