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MARCHELLI

ARTIGO DE PSREVISÃO
ET AL.

AUTONOMIA E MUDANÇA NA ESCOLA:


NOVOS RUMOS DOS PROCESSOS DE
ENSINO-APRENDIZAGEM NO BRASIL

Paulo Sergio Marchelli; Carmen Lúcia Dias; Ivone Tambelli Schmidt

RESUMO - O presente artigo compreende uma reflexão sobre o princípio


da autonomia pedagógica conferido pela atual Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) às escolas e redes de ensino brasileiras. Discute-
se o conceito de escola aberta, aplicado às instituições onde o ensino se
processa segundo a idéia de deslocar as paredes da sala de aula para além
dos limites de séries anuais e disciplinas separadas. Apresenta-se a Escola
da Ponte, fundada por José Pacheco há 30 anos, em Lisboa, Portugal, em
cujo projeto pedagógico não há divisão por séries e as aulas não são separadas
por disciplinas. São destacadas experiências brasileiras baseadas no conceito
de escola aberta e analisa-se como o princípio da autonomia conferido pela
LDB colabora para o surgimento de projetos capazes de renovar a prática
pedagógica e estabelecer novas interpretações para o trabalho didático. O
artigo conclui que, nos últimos anos, as escolas brasileiras aumentaram sua
diversidade e pluralidade pedagógicas, apontando os caminhos segundo os
quais esse fenômeno foi realizado.

UNITERMOS: Instituições acadêmicas. Ensino fundamental e médio.


Educação. Modelos educacionais.

Paulo Sergio Marchelli - Doutor em Educação pela Correspondência


FEUSP e professor da Universidade São Marcos. Paulo Sérgio Marchelli
Carmen Lúcia Dias - Doutora em Educação pela UNESP Rua Croata, 440, apto. 62 - Lapa - São Paulo - SP -
- Júlio de Mesquita Filho, Campus de Marília; docente CEP: 05056-020
e coordenadora de Projetos da Fundação para o E-mail : paulo.marchelli@ajato.com.br
Desenvolvimento do Ensino, Pesquisa e Extensão -
FUNDEPE . UNESP, Marília, SP; docente do Curso de
Pós-Graduação em Educação da UNOESTE, Presidente
Prudente, SP.
Ivone Tambelli Schmidt - Professora Livre Docente em
Psicologia Organizacional pela UNESP - Campus de
Assis e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
da UNOESTE, Presidente Prudente, SP.

Rev. Psicopedagogia 2008; 25(78): 282-96

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AUTONOMIA E MUDANÇA NA ESCOLA

INTRODUÇÃO enfocadas como unidades longitudinais de


A Lei de Diretrizes e Bases da Educação ensino, mas isso é relativo, pois é perfeitamente
Nacional (LDB) procura estimular o sistema possível que o processo privilegie soluções
educacional no tocante a renovar constantemente transversais e várias unidades diferentes de
seus métodos de ensino e trabalho administrativo, trabalho sejam abertas. O alargamento das
bem como sua gestão financeira: “os sistemas de paredes da sala de aula é um fator fundamental,
ensino assegurarão às unidades escolares pois sem isso não haveria espaço para a proposta
públicas de educação básica que os integram transformadora apresentada, nem mesmo seria
progressivos graus de autonomia pedagógica e possível concebê-la.
administrativa e de gestão financeira, observadas Sobre o alargamento das paredes da sala de
as normas gerais de direito financeiro público”1. aula, Alexander Sutherland Neill, criador da
Se, por um lado, os princípios de autonomia da corrente pedagógica da Escola de Summerhill,
gestão administrativa e financeira apregoados escreveu que:
pela LDB ainda não geraram desde sua
publicação até hoje nenhum posicionamento do Quando faço palestra para um grupo de
setor público, a autonomia pedagógica tem sido professores, começo por dizer que não vou
alvo de constantes debates nos meios falar sobre assuntos escolares, sobre
educacionais, mormente os acadêmicos, disciplina ou sobre aulas. Durante uma
podendo-se verificar iniciativas que corroboram hora meu auditório ouve em enlevado
os pressupostos da Lei. silêncio, e, depois do aplauso sincero, o
O aspecto mais notável no contexto brasileiro presidente anuncia que estou pronto para
advindo da idéia de desenvolvimento pedagógico responder perguntas. Pelo menos três
autônomo está relacionado a uma espécie de quartos das perguntas que me fazem
experimentação que pode ser denominada de versam sobre matéria escolar e ensino. Não
escola aberta, termo que advém de concepções digo isso tomando ares superiores, de forma
encontradas em certo número de autores que alguma. Digo-o com tristeza, e para mostrar
estão influenciando significativamente nossos como as paredes das salas de aulas e os
sistemas educacionais. Destacam-se, entre eles, edifícios com aspecto de prisões estreitam a
a pedagogia das escolas de área aberta visão dos professores, impedindo-os de
portuguesas 2 e a pedagogia espanhola da verem as coisas verdadeiramente essenciais
organização do currículo por projetos de trabalho3. da educação. O trabalho deles trata com
uma parte da criança que está acima do
A ESCOLA ABERTA pescoço, e naturalmente, a parte vital,
Reunimos, sob a denominação comum de emocional dela, fica sendo território
“escola aberta”, aquelas instituições onde o estrangeiro para o mestre. Eu gostaria de
ensino se processa segundo a idéia de deslocar ver um movimento maior de rebelião entre
as paredes da sala de aula para além dos limites nossos jovens professores. Educação de alto
de séries anuais e disciplinas separadas. nível e diplomas universitários não fazem a
Trabalha-se segundo o critério de interesse ditado mínima diferença na confrontação dos
pelo princípio da liberdade de aprender, males da sociedade. Um neurótico letrado
organizando-se os alunos fundamentalmente em não faz diferença alguma de um neurótico
grupos ou deixando-os optar por estudarem iletrado4.
sozinhos, se assim o desejarem. Os professores
propõem tarefas e promovem interações Quase sempre a pedagogia de Summerhill é
construtivas de acordo com as dificuldades e criticada porque Neill não considera os aspectos
progressos verificados. Em geral, as tarefas são ideológicos de natureza política presentes na

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escola, que ditam os parâmetros de como ela deve de aula deixa de ser o centro da pedagogia. Na
ser construída. Mas seja qual for o regime político, escola aberta, não são as paredes físicas as mais
a escola pressiona as novas gerações do mesmo importantes, mas sim as pedagógicas, pois os
jeito com o objetivo de prepará-los para serem professores não mais ensinam lições
cidadãos produtivos dentro das diferentes formas preestabelecidas, e sim consideram o interesse
de organização econômica possíveis. A sociedade do aluno pelos símbolos existentes na cultura. A
cobra da escola a consecução de objetivos partir disso, eles os ensinam a ler e escrever, a
incrustados nas formas de conformação política fazer cálculos, pensar geometricamente,
que predominam em diferentes países. Sobre isso, desenvolver o senso estético, a arte, a cidadania.
Neill escreveu que: A escola aberta é libertária, mas não é só isso,
pois ela vai além, estimulando o indivíduo a
Em todos os países, sejam eles capitalistas, conhecer sem coação, pois só o conhecimento
socialistas, ou comunistas, primorosos liberta. Não há planos de ensino
prédios escolares são construídos, para a preestabelecidos, nem currículos, apenas
educação dos jovens. Mas todos os propósitos que são cumpridos segundo o controle
laboratórios e oficinas maravilhosos nada rigoroso da avaliação externa, que submete a
fazem para ajudar John, Peter ou Ivan a todos, professores e alunos, a um trabalho
vencer os prejuízos emocionais e os males exaustivo de ensinar e aprender de forma cada
sociais nascidos da pressão sobre eles vez mais massificada, mais intensiva, sujeita ao
exercida pelos pais, pelos professores e pela mandato imperioso do método científico, da
qualidade coercitiva da nossa civilização4. prescrição didática, de livros e manuais de ensino.
Com isso, vê-se que nem tudo na escola aberta é
Os promotores da escola aberta colocam os maravilhoso!
seguintes enunciados como seus principais Porém, a escola aberta é transformadora,
objetivos5: 1) propiciar um ambiente que encoraje mesmo no que toca à sua eficiência como
uma melhor comunicação entre alunos e promotora de uma educação em massa,
professores; 2) mobilizar os professores para o envolvendo muito mais agentes do que apenas
trabalho em equipe; 3) facilitar a adaptação da os professores e alunos, dando espaço para a
organização escolar às diferenças individuais e participação direta dos pais no processo
à contínua aquisição de conhecimentos, a fim de educativo, que podem interagir com os
permitir os reagrupamentos funcionais de alunos; professores e seu filho dentro da própria sala de
4) estimular nas crianças a multiplicação dos aula. Nessa escola, o ensino é muito mais rico do
contatos pessoais e, por conseguinte, uma melhor que quando baseado na aprendizagem em classe
socialização; 5) facilitar múltiplas e diversas tradicional, pois ela permite que seja utilizada
organizações, transformações temporárias e, por uma quantidade maior de meios facilitadores da
vezes permanentes, permitir as mais variadas aquisição de conhecimentos, contando, sobretudo
modificações, dando assim flexibilidade não só com interatividade social, que até então era restrita
aos diferentes modos de organização escolar, como à relação professor-aluno e não incluía pais ou
também aos diferentes tipos de didática e outros agentes. A aprendizagem em pequenos
pedagogia; 6) favorecer todas as formas de grupos sob a tutela de múltiplas agentes
trabalho dos alunos (individual, em grupo, educativos tem se mostrado vantajosa, pelo fato
atividades livres, etc.) de acordo com o espírito de desenvolver não somente a inteligência
da Escola Ativa. individual, mas o trabalho comum e a vida
Não se trata, portanto, apenas da revolução coletiva. Dessa forma, o redimensionamento da
arquitetônica do edifício escolar, mas da amplitude da sala de aula permite que ela possa
transformação radical imposta quando o conceito dar acolhida aos vários atores que constituem o

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fenômeno educativo na sociedade: pais, As origens da Escola da Ponte remontam a


professores, alunos, pessoal auxiliar, pessoas da 1941, quando Portugal sofreu uma grande
comunidade, visitantes e interessados de uma catástrofe ambiental pela formação de um ciclone
forma geral. As grandes dimensões contribuem que causou pesados danos às edificações
para ampliar a reflexão sobre a prática didática. escolares e derrubou uma enorme quantidade de
“O trabalho e vida em grupo, a exigência de árvores. Como a cumprir a sentença de Comenius
escutar o outro, tornam-se tão importantes como - “se não podemos levar a árvore para a escola,
a mudança de relações entre os professores e levemos a escola para debaixo da árvore”7 - a fim
alunos”5. Pode-se, em suma, afirmar que o simples de não desperdiçar a madeira de boa qualidade
aumento do espaço de sala de aula e a adoção posta abaixo pelo ciclone (carvalhos, pinheiros,
dos princípios norteadores da escola aberta etc.), o Ministério da Educação português
conseguem realizar objetivos educacionais muito resolveu aproveitá-la. Frutos do acaso e da
maiores que a escola tradicional. necessidade, foram construídas assim as
denominadas “escolas de área aberta”. Os
A ESCOLA DA PONTE arquitetos e técnicos de educação que as
Entre os povos de língua portuguesa, a mais conceberam consideraram que o lugar onde a
conhecida proposta que se aproxima da nova criança passa grande parte do seu tempo durante
os primeiros anos de aprendizagem é
tendência educativa é a Escola da Ponte, fundada
fundamental para a sua vida futura. O que se
por José Pacheco há 30 anos, em Lisboa, Portugal.
aprende e, principalmente, o modo como se
Nesse projeto, não há divisão por séries e as aulas
aprende pode despertar ou bloquear todo o
não são separadas por disciplinas. Com a ajuda
posterior percurso de desenvolvimento. Libertar
do professor, os alunos selecionam seus projetos
a criança da rigidez dos espaços e do mobiliário
de estudo e são eles também que indicam quando
tradicionais pareceu aos pedagogos e arquitetos
se sentem preparados para serem avaliados,
portugueses daquela época um passo importante
fugindo ao padrão de provas agendadas.
para a livre expressão e desenvolvimento da
Segundo Pacheco:
espontaneidade e criatividade naturais e também
um ato decisivo de socialização. A escola de área
Na Ponte, os alunos aprendem a fazer aberta, pelas suas características próprias -
prova, embora não contem para avaliação, existência do grande espaço polivalente -,
pois terão de fazer provas no futuro em facilitou a integração no meio social, tornando
muitas situações e lugares. Formamos possível a presença da comunidade dentro dela,
nossos alunos para a autogestão do tempo e de forma a estabelecer um sentido de comunicação
para se adaptarem ao ritmo do toque de e colaboração diferentes.
uma campainha. Eles aprendem a estar em O novo padrão de construções multiplicar-se-
qualquer contexto. Sabem ser solidários, ia em Portugal até os anos sessenta. Em 1963, as
mas não deixam de ser competitivos. [A contingências decorrentes da escolaridade
escola da Ponte] foi avaliada por testes, obrigatória conduziram à harmonização entre a
iguais para todas as escolas, e ficou concepção das construções escolares e as
classificada entre as melhores. Foi a única orientações no campo da pedagogia, definindo-
escola portuguesa avaliada por uma se que o edifício da escola primária representava
comissão nomeada pelo Ministério da a transição da habitação para a vida pública. Não
Educação. Os relatórios revelaram a se restringindo apenas à sala de aula, o ensino
excelência do projeto. A partir dos dados, o estaria voltado também para o exterior, valendo-
ministério reconheceu a Ponte como se da atividade que a diversificação dos espaços
referência6. permitisse. A organização de situações como a

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de trabalho em grupo era facilitada pela para um trabalho com as características que
mobilidade do equipamento escolar. Sendo um as [escolas de área aberta] apontavam.
edifício aberto, a escola transformar-se-ia em Umas vezes por falta de informação, em
equipamento social para uso de toda a outras por falta de formação, ou na
comunidade. Em 1969, novos planos de ausência de ambas, os professores
construção aperfeiçoariam as tendências refugiaram-se ao menor pretexto no seu
observadas, influenciados pelos movimentos de espaço íntimo, num contexto de trabalho
renovação pedagógica que, na época, emergiam. que correspondia à sua concepção de
No início dos anos setenta, a influência das ‘aula’5.
correntes cooperativistas introduziu o trabalho
em equipe de 2, 3 ou 4 professores e, como Assim, em Portugal, as inúmeras escolas de
alternativa ao tradicional sistema de turmas área aberta construídas não se popularizaram,
divididas em classes, núcleos de espaços perderam a confiança da sociedade e o projeto
educativos para grupos heterogêneos de alunos declinou totalmente na década dos anos 1990.
foram criados. Não houve capacitação adequada dos
Nos primeiros anos da década de oitenta, professores? Ou seria de fato impossível uma
ocorreram novos investimentos na pedagogia que não tenha como metas formar
regulamentação do funcionamento das escolas de cidadãos úteis e prepará-los para o trabalho? É
área aberta, envolvendo a formação de utópica a possibilidade de construir uma escola
professores, pois o projeto pressupunha a sem paredes ou fronteiras? Não se sabe a resposta
necessidade do trabalho em colaboração, sendo a essas perguntas, mas quase todas as
necessário realizar aperfeiçoamentos para isso. pedagogias progressivas surgidas no último
Cada núcleo de sala de aula deveria corresponder século são atualmente abandonadas, pois as
a um espaço único de ensino, com um corpo de novas gerações não as levam a sério como
professores a trabalhar em equipe, de acordo com proposta efetiva de trabalho.
um programa elaborado em conjunto. Criaram- O totalitarismo travestido com a fantasia de
se assim situações compulsivas de ensino em democracia iludiu em muito a mente dos
equipe e de cooperação entre docentes, o que pedagogos do século passado. Veja o
ocasionou protestos de correntes não afeitas ao pragmatismo de Dewey, o teórico da escola
progressivismo pedagógico implicado. Paredes democrática - que herança ele deixou para os
entre os espaços de área-aberta começaram a ser Estados Unidos da América? “O interesse social
erguidas a partir de 1987. Também se dispunham [da criança] penetra e se funde com o seu
armários como improvisos arquitetônicos, interesse nas próprias ações e sofrimentos, como
constituindo muralhas e permitindo assim a cada ainda inspira o seu interesse pelas coisas”8. A
professor, na sua sala, com os seus alunos, o seu sociedade mais rica do mundo é especializada
método e os seus manuais, voltar ao ensino em fazer a guerra, bombardeando e impondo
tradicional: sofrimentos a muitos povos. Sem dúvida, ela
adotou os princípios que seu grande pedagogo
Estas medidas coincidiam no tempo com a pregava, lançando-se ao domínio imperial
suspensão de um primeiro esboço de capitalista do mundo, que suga as riquezas de
formação em área-aberta e com o povos mais fracos. A passagem do livro de Dewey
levantamento das primeiras paredes a citada afirma que o interesse em agir e sofrer é
isolar as salas que haviam sido concebidas dado socialmente à criança, o que pressupõe
para comunicarem entre si. Os espaços prepará-la por meio da educação para o campo
“abertos” desapareceram gradualmente. Os de combate. Nessa pedagogia, o princípio de que
professores não haviam sido preparados os sofrimentos inspiram o interesse pelas coisas

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talvez sirva para justificar as ações de guerra. De qualquer forma, o projeto pedagógico da
Não se pode esquecer que Dewey é o teórico da Escola da Ponte parece resistir ao tempo. Em
distinção entre as categorias funcionais do 2003, surge oficialmente o Projeto Pedagógico da
interesse direto e indireto, da educação integral, Escola da Ponte11, estabelecendo fundamentos
do esforço e da motivação, estados de espírito que consistem em solidarizar parceiros em torno
essenciais para a atividade mental e a de um movimento que se mantém coeso pela
aprendizagem. Definitivamente, o progres- existência de uma intencionalidade educativa
sivismo pedagógico deweyniano parece estar coerente e eficaz, que é claramente reconhecida
ultrapassado. e assumida por todos: alunos, pais, profissionais
Iniciada no século passado, não se sabe se a de educação e demais agentes. O projeto desafia
Escola da Ponte conseguirá sobreviver à catástrofe os limites que as ideologias de reprodução das
que as pedagogias progressivas anteriores estão desigualdades sociais incutem no todo orgânico
sofrendo no presente. Há muitas experiências da escola tradicional, pois se orienta no sentido
semelhantes em outros países, como o caso das de trabalhar para a formação da cidadania,
escolas da cidade de Reggio Emilia9, no norte da autonomia, responsabilidade e solidariedade, de
Itália, sinônimo de excelência em educação forma democrática e comprometida com a
infantil. Nesse país, o ensino elementar é mantido “construção de um destino coletivo e de um
projeto de sociedade que potenciem a afirmação
pelo governo federal e obedece a moldes
das mais nobres e elevadas qualidades de cada
tradicionais. Os programas educacionais não
ser humano”11. Os parceiros envolvidos não estão
costumam sofrer uma ruptura traumática e as
sujeitos a hierarquias, todos são igualmente
escolas de Reggio Emilia fizeram um longo
responsáveis pelos sucessos e fracassos
trabalho de transição rumo à posição de referência
observados, envolvidos em processos que
internacional que elas hoje representam. Desde
convergem permanentemente para mudanças
1994, a prefeitura da cidade mantém a instituição
desejadas. A matriz educativa não mais está
Reggio Children para administrar as atividades
baseada apenas na relação professor-aluno, mas
de intercâmbio educacional com todo o mundo.
práticas organizacionais específicas para nela
incluir os pais e os outros parceiros integrantes
No início do ano, redigimos uma espécie de do projeto são um compromisso importante. Como
declaração de intenções e desenhamos ponto de partida, a Escola da Ponte “reconhece
grandes linhas de ação. Depois definimos aos pais o direito indeclinável de escolher o projeto
uma estratégia de abordagem dos assuntos. educativo que consideram mais apropriado à
Mas os projetos não são preestabelecidos. formação dos seus filhos” e, simultaneamente,
Eles se estruturam oportunamente. arroga o direito de propor a eles e à sociedade a
Estimular o gosto pela leitura e pela escrita execução do que ela julga “mais adequado à
ou saber arrumar a mesa do almoço estão formação integral dos seus alunos11. Os resultados
sempre entre nossos objetivos, mas não há da implantação do Projeto Pedagógico da Escola
previsão de horários determinados. A rotina da Ponte mostram que se estabeleceu no âmbito
é muito ligada à organização do espaço, da comunidade envolvida referenciais de
totalmente diferente de uma sala pensamento e ação balizados e orientados
tradicional com mesas e cadeiras. Quando segundo a participação democrática de todos os
se chega, já há o que fazer porque o agentes e parceiros na vida escolar e na
ambiente convida. Não faz sentido elaborar administração educativa.
um planejamento diário: as atividades se Alguns importantes objetivos nunca atingidos
desenvolvem com certo grau de pelas escolas tradicionais parecem factíveis em
espontaneidade10. termos da perspectiva pedagógica engendrada

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por escolas como a Ponte. Desde que cada ser necessidade da educação de atitudes com
humano é único e irrepetível, tal progressivismo referência ao quadro de valores subjacente ao
pode tornar a experiência de escolarização e o Projeto Educativo”11.
trajeto de desenvolvimento de cada aluno também
únicos e irrepetíveis. As necessidades individuais EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS
e específicas de cada educando podem ser No Brasil, a Escola Municipal Desembargador
atendidas singularmente, desde que os múltiplos Amorim Lima construiu recentemente uma versão
agentes sociais envolvidos com a escola interajam do projeto português da Escola da Ponte.
no que tange às suas formas próprias de Localizada no Butantã, bairro da Zona Oeste da
apreensão da realidade. Neste sentido, todo aluno cidade de São Paulo, ela realizou uma grande
tem necessidades educativas especiais, mudança nos seus espaços físicos e concepções
manifestando-se em formas de aprendizagem pedagógicas. Segundo depoimentos relatados na
sociais e cognitivas diversas. Na sua dupla imprensa12, a cerca de 10 anos, a Amorim Lima
dimensão individual e social, o percurso educativo encontrava-se à beira de um verdadeiro desastre,
de cada aluno supõe um conhecimento cada vez como acontece em quase todas as escolas públicas
mais aprofundado dos agentes escolares a seu no Brasil ainda hoje. Um dos problemas gritantes
respeito, de como se processa o seu relacio- era que havia apenas quatro funcionários na
namento solidário com os outros. A singularidade escola a trabalhar no período das 8h às 23h, para
do percurso individual integrada dentro do grupo fazer a merenda, a limpeza e acompanhar o
supõe a apropriação individual subjetiva do recreio. As brigas entre os alunos sempre foram
currículo, tutelada e avaliada pelos diversos motivo de preocupação, até que as coisas
promotores da sua aprendizagem. O conjunto de chegarem ao extremo, quando o embate começou
atitudes e competências considerado no currículo, a resultar em crianças ensangüentadas na hora
que ao longo do percurso escolar pretende ser do recreio. Isso levou à necessidade das mães
adquirido e desenvolvido, torna-se adaptável começarem a acompanhar o recreio dos seus
à potencialidade e capacidade interiores de cada filhos, para protegê-los. Algumas crianças
aluno, evitando que ele fracasse quando entravam às 8 horas da manhã e saiam ao meio-
o pretendido é que aprenda de acordo com uma dia sem assistir nenhuma aula, devido ao excesso
concepção vinda de fora para dentro. O currículo de falta dos professores. Enquanto a escola
exterior ou objetivo é um perfil, um horizonte reclamava da indisciplina dos alunos, os pais
de realização, uma meta; o currículo interior colocavam a culpa nos professores. Uma
ou subjetivo é um percurso único de animosidade insólita instalou-se dentro do
desenvolvimento pessoal, um caminho, um conselho escolar e a pressão dos pais para
trajeto. encontrar os verdadeiros culpados fez com que
O currículo subjetivo é o conjunto de eles recorressem à lei que rege o funcionalismo
aquisições de cada aluno que valida a pertinência público, ao regimento das escolas municipais e
do currículo objetivo. Fundado no currículo ao estatuto do magistério. Havia muitos deveres
nacional português, o currículo objetivo é o atribuídos aos professores que eles não estavam
referencial de aprendizagens e realizações cumprindo, sendo assim considerados os maiores
pessoais dentro do Projeto Educativo da Escola culpados pela situação. Por outro lado,
da Ponte. Sua projeção é eminentemente reclamavam os pais, havia alunos indisciplinados
interdisciplinar, organizada em cinco dimensões que deveriam ser expulsos da escola. Porém, a
fundamentais: lingüística, lógica-matemática, essa pressão a diretoria não cedeu.
naturalista, identitária e artística. “Não pode Ana Elisa Siqueira era a diretora do Amorim.
igualmente ser descurado o desenvolvimento O que fazer com todo este cenário? - indagava
afetivo e emocional dos alunos, ou ignorada a ela, até se resolver a tentar um projeto coletivo.

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Com uma verba do Fundo Nacional de adulto. Eles têm receio de experimentar e
Desenvolvimento Educacional (FNDE), passou não dar certo. O que adianta derrubar as
a aperfeiçoar a equipe escolar e durante dois minhas paredes se não derrubarem as
anos, de 1998 a 1999, recebeu consultoria do paredes deles mesmos? Mas, as crianças,
Instituto Pichon Rivière, cuja proposta era ah, elas tiram de letra. Aqui, como na
desenvolver o diálogo criativo, crítico e Ponte, seguem um roteiro de estudo
democrático, gerador de mudanças nas pessoas sugerido pelos educadores e decidido por
e nos grupos. O trabalho envolveu todos os elas. Não há desordem ou espaço para
agentes escolares, desde o pessoal da limpeza indisciplina: elas têm liberdade para andar
até a diretora. A equipe estabeleceu, assim, as pela sala, mas, para chamar o professor,
condições para o sonhado projeto coletivo e cada uma espera sua vez. No salão maior,
capacitada que foi para implementar diálogos por exemplo, estão as crianças
construtivos com os pais, conseguiu envolvê-los correspondentes à primeira e segunda
para auxiliarem nesse propósito. séries do ensino fundamental. Misturam-se
Posteriormente, o Amorim passou a receber as que já sabem ler e as que ainda não
orientação do Instituto Vereda, baseado nas idéias aprenderam. Para Amanda, que está na
de Paulo Freire, que aperfeiçoou ainda mais a segunda série e já lê muito bem, não há o
equipe, à qual os pais já estavam totalmente menor problema. Ficamos juntos para um
integrados. Uma outra consultoria educacional ensinar ao outro o que sabe. Outro dia,
que veio a seguir apresentou um vídeo sobre a uma mãe contou que seu filho deixou de ser
Escola da Ponte, de forma a deixar o conselho tímido, agora conversa mais em casa. Com
entusiasmado com a possibilidade de que o a liberdade, as crianças ganham
projeto do Amorim adotasse os princípios conhecimento. Com conhecimento,
educacionais lá praticados. A idéia foi levada adquirem autonomia. Com autonomia,
pelos próprios pais à secretária municipal de exercem a solidariedade13.
educação da época, Maria Aparecida Perez, que
em visita ao Amorim aceitou implantar ali um O projeto teve início com as primeiras e quintas
projeto-piloto inspirado na Escola da Ponte. Os séries e no final no ano de 2004 já se tinha um
entusiastas perguntavam-se: Qual era a fórmula prognóstico completo de sua implementação na
de José Pacheco? Como poderia ser repetida escola como um todo. No primeiro momento, o
aqui? Em janeiro de 2004, finalmente, as paredes peso dos programas tradicionais que a escola
das salas foram derrubadas. Quatro salas se sempre adotou não permitiu mudanças
tornaram uma só, na qual grupos de cinco curriculares significativas, acrescentando-se a
crianças foram distribuídos, com três professores mais apenas a matéria de cultura brasileira. No
a ministrar as aulas simultaneamente. O entanto, a experiência em curso mostrou
depoimento da professora Cleide Portis, que na rapidamente a todos os envolvidos que a escola
época era recém chegada, exprime com clareza o precisava se preparar ainda mais, pois o que ela
que se passava: oferecia era pouco para os alunos, eles próprios
se pondo a exigir resultados, transformados por
Dos 20 anos que tenho de escola pública, a uma motivação nunca antes presenciada.
docência era algo solitário, eram os meus Em 11 de agosto de 2005, o Conselho aprovou
alunos, meu espaço, meu pensar. Aprendi a a organização de assembléias pelos alunos
compartilhar. Dividimos as idéias e o da Escola Municipal de Ensino Fundamental
material e agora as crianças aprendem Amorim Lima. A compreensão do que é uma
juntas, com os colegas, no seu ritmo. Notei assembléia e como esta se organiza, a
que mudar de rotina é muito difícil para o participação dos alunos na vida escolar e seu

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papel nas instâncias de deliberação foram os Princípios de Convivência e o grupo de


principais pontos da pauta das primeiras reuniões preparação as compilou, buscando
semanais que vieram a seguir, sempre a se contemplar todas as sugestões, sendo os
observar aumento no número de participantes. pontos polêmicos levados ao Conselho de
Em 30 de novembro de 2005, os coordenadores Escola. A redação final da carta foi
das assembléias apresentaram ao Conselho da aprovada na reunião extraordinária do
Escola uma avaliação das seis seções que Conselho de Escola de 17 de novembro de
ocorreram, sintetizando as reivindicações dos 200614.
estudantes, tais como: o pedido de estes poderem
escolher livremente seus grupos de estudo no Presentemente, a diretoria da Amorim Lima
salão, a instalação de armários para guarda de tem dado declarações à imprensa que a proposta
pertences, a melhor organização do uso dos pedagógica adotada está auxiliando o sistema de
computadores disponíveis durante as aulas, a progressão continuada adotada pela Rede
realização de campeonatos esportivos, a confecção Municipal de Educação de São Paulo: “mesmo
de carteirinhas de identificação para todos os que que o aluno passe de ano sem estar preparado,
tivessem acesso ao salão durante as aulas, entre ele continua a desenvolver atividades para
outros. O Conselho avaliou a experiência como melhorar suas deficiências de acordo com o seu
positiva e o grupo de preparação das assembléias tempo”15.
se disponibilizou a continuar o trabalho em 2006. Outro projeto semelhante foi desenvolvido
Em março desse ano, foram retomadas as reuniões pela Escola Municipal de Ensino Fundamental
desse grupo, mas o mesmo apresentou-se Presidente Campos Salles, em Heliópolis, bairro
esvaziado, com apenas três alunos atuantes. situado na periferia da Zona Sul da cidade de
Diante da necessidade de novas estratégias de São Paulo. A transformação das 10 salas de aula
trabalho, o Conselho Pedagógico procurou tradicionais em 4 grandes salões, onde alunos
implementar grupos de responsáveis para a de séries diferentes passaram a estudar segundo
adequada continuidade do projeto. métodos de trabalho em grupo, recebeu forte
apoio dos professores, que se empenham em
Cada tutoria deveria constituir um grupo de desenvolver continuamente novas estratégias de
responsabilidades e enviar um ensino. Segundo o diretor, Braz Rodrigues
representante para reuniões com o grupo de Nogueira, “como tínhamos casos de crianças com
preparação de assembléias. Foram feitas sérias dificuldades de leitura e escrita,
três reuniões que agregaram os percebemos que o modelo tradicional de carteiras
representantes de todas as tutorias a fim de enfileiradas e o professor na lousa não estava
discutir as tarefas dos grupos de funcionando” 15 . Pelo fato de estar sendo
responsabilidade. Nessas reuniões, os desenvolvido em uma região periférica da cidade
alunos se queixavam de dificuldades na São Paulo, no interior da Favela de Heliópolis,
esfera dos relacionamentos na escola, onde uma das maiores do Brasil, o projeto da Campos
os problemas ocorriam devido à falta de Salles está chamando a atenção dos educadores
respeito e de compromisso de alunos, de todo o país.
educadores e funcionários. Nesse sentido, o
grupo de preparação sugeriu que se criasse PROJETO PEDAGÓGICO, AUTONOMIA E
uma Carta de Princípios de Convivência, MUDANÇA NA ESCOLA
onde todas as tutorias se comprometessem a Os progressivos graus de autonomia
discutir e sugerir pontos para compor essa pedagógica conferidos pela LDB às unidades
carta, e assim o fizeram. Mais de 40 grupos escolares públicas brasileiras começam a se fazer
apresentaram sugestões à Carta dos sentir. Os casos relatados das escolas municipais

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paulistanas Desembargador Amorim Lima e voga, bem como em outros projetos localizados.
Presidente Campos Salles são exemplos do Em decorrência de nossa multiplicidade social e
exercício dessa autonomia consagrada pela Lei. pluralidade cultural, muitas inovações estão
Há ainda outros exemplos, talvez de menor acontecendo nas unidades escolares de todo o
impacto que os relatados, mas que por hipótese Brasil, empenhadas que estão na elaboração de
refletem a perspectiva de que possíveis fontes seus projetos educativos.
de novas inspirações pedagógicas estão em
progresso nas escolas. Ainda que em geral O projeto educativo não é um documento
tímidas, as experiências são influenciadas por formal elaborado ao início de cada ano
políticas pontuais já em andamento, como o letivo para ser arquivado. Ele se realiza
sistema de progressão continuada por ciclos, que mediante um processo contínuo de reflexão
permitiu à escola pública brasileira combater a sobre a prática pedagógica, em que a
repetência e a evasão, consideradas as grandes equipe escolar discute, propõe, realiza,
“pragas” do sistema. A desseriação foi uma acompanha, avalia e registra as ações que
conseqüência direta da progressão continuada, vai desenvolver para atingir os objetivos
levando à pedagogia da escola aberta aqui coletivamente delineados. Nesse processo, a
contemplada. equipe escolar produz seu conhecimento
Dessa forma, a diversidade e a pluralidade pedagógico, construindo-o e reconstruindo-
pedagógicas aumentaram substancialmente nas o cotidianamente na sala de aula, com base
escolas brasileiras nos últimos anos. O princípio em estudos teóricos na área de educação e
de que a escola é uma unidade autônoma em outras áreas, na troca de experiências
conferido pela LDB credencia-a para a elaboração entre pares e com outros agentes da
e execução do seu próprio projeto educacional. comunidade, incluindo-se aí alunos e
A condição essencial para a efetivação dos pais16.
princípios expressos nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs)16 é que essa autonomia se Na elaboração de um projeto educativo com
concretize cada vez mais, sem o que não haverá base no princípio da autonomia, a escola terá que
mudança na educação. Os PCNs foram elaborados discutir e expor de forma clara os valores coletivos
para ajudar as escolas a desenvolverem uma que prioriza, delimitando suas prioridades,
proposta educativa explícita, no qual não falte a definindo os resultados desejados e incorporando
descrição de como se dará a realização em equipe instrumentos específicos de avaliação dos seus
de seu trabalho pedagógico. Isso está alunos. Não se deve esquecer que seu projeto
pressuposto na hipótese de que os movimentos será avaliado nacionalmente, em comparação com
pedagógicos correm no sentido de uma proposta outras escolas, de forma que ela está submetida
coletiva de ensino, realizada simultaneamente por a uma trama de circunstâncias que se cruzam por
todos os membros da equipe de professores para meio de diferentes fatores.
grupos não seriados de alunos, que se reúnem Na determinação da identidade pedagógica
não necessariamente nos grandes espaços das das unidades escolares é primordial investigar
escolas de área aberta, mas também nas salas de se os conteúdos dos projetos educativos por elas
aula tradicionais. Portanto, os próprios desígnios produzidos exprimem a autonomia de forma
da LDB e dos PCNs conduziram as escolas refletida e consciente, para o que é importante
brasileiras a descerrarem barreiras pedagógicas levar em conta seus momentos de vida, suas
incrustadas nas práticas tradicionais que se características sociais, culturais e suas
rompem de forma paulina, porém sistemática. O individualidades. Tal objetivo visa à identificação
fenômeno pode ser observado nas experiências dos “saberes diferenciados, de professores e
das escolas de área aberta que se encontram em alunos, de adultos e crianças, adolescentes e

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jovens, ou seja, de indivíduos com histórias essenciais, o que significa considerar


diversas, o que propicia a construção de características, anseios e motivações dos
conhecimentos diferenciados”16. Ao considerar alunos, da comunidade local e da sociedade
essas diferenças e semelhanças em seu projeto em que a escola se insere. É preciso encontrar
educativo, a escola colabora para aproximar formas variadas de mobilização e de
expectativas, necessidades e desejos de organização dos alunos, dos pais e da
professores e de alunos. comunidade, integrando os diversos espaços
O trabalho de investigar a autonomia da escola educacionais que existem na sociedade e,
enquanto inovação provoca a reflexão sobre os sobretudo, criando um ambiente que leve à
problemas reais, organizacionais e de participação do leque de opções e do reforço
planejamento que dão sentido às ações das atitudes criativas do cidadão. É preciso
cotidianas, reduzem a improvisação, o arbítrio das haver elementos empíricos nas práticas
imposições e as condutas estereotipadas e escolares que respondam à questão: O possível
rotineiras que, muitas vezes, são incoerentes com confinamento das decisões ao interior da
os objetivos educacionais compartilhados pela escola e a não previsão de espaço para a
equipe pedagógica. Daí a importância participação de alunos, pais, membros da
fundamental de analisar se as jornadas de comunidade e pesquisadores, pode
trabalho dos professores incluem o tempo comprometer o projeto pedagógico?
específico para a atuação coletiva junto com os 2. O projeto educativo deve ter a dimensão do
demais membros da equipe como um todo. presente, onde a criança, o adolescente, o
Segundo os PCNs, “a perspectiva de conferir jovem vivem momentos muito especiais,
à escola a responsabilidade de elaboração e vivenciam tempos específicos da vida humana
desenvolvimento de seu projeto educativo não e não apenas situações de espera ou de
deve significar omissão das instâncias preparação para a vida adulta. Daí a
governamentais, tanto nos aspectos importância de que a equipe escolar procure
administrativo e financeiro como também no conhecer, tão profundamente quanto possível,
pedagógico”16. Dessa forma, diferentes propostas quem são seus alunos, como vivem, o que
pedagógicas se multiplicaram após o processo de pensam, sentem e fazem. Quando alunos
municipalização do ensino fundamental no Brasil. percebem a escola atenta a suas necessidades,
A municipalização passou a exigir projetos a seus problemas, a suas preocupações,
educativos claros e definidos, até mesmo para que desenvolvem autoconfiança e confiança nos
possam ser avaliados corretamente, permitindo outros, ampliando as possibilidades de um
os investimentos dos níveis federal e estadual, melhor desempenho escolar. Isso vale também
que se fazem valer pela força da Lei. É preciso para os adultos, que trabalham na escola ou
que os investimentos, além de obrigatórios, que estão, de alguma forma, envolvidos com
estejam de acordo com as diferentes necessidades ela: professores, funcionários, diretores e pais.
de cada localidade e que busquem, cada vez mais, 3. O projeto pedagógico deve ter a dimensão de
um equilíbrio em relação às condições de trabalho futuro, inerente ao ato de projetar, fazendo
de cada escola. antecipações sobre as formas de inserção dos
A elaboração e o desenvolvimento do projeto alunos no mundo das relações sociais, da
educativo autônomo de cada unidade escolar cultura e do trabalho. Para tanto, as pessoas
pressupõem alguns pontos essenciais, dentre os envolvidas precisam estar atentas para não se
quais se destacam: deixarem contaminar por posturas
1. O projeto pedagógico deve exprimir o papel conformistas, fechadas, avessas a
e a função da educação escolar, seu foco, sua transformações, atuando defensivamente em
finalidade e seus valores como necessidades relação a mudanças. Ao elaborar seu projeto,

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a escola propõe algo que ainda não existe, toda a equipe escolar? A elaboração e
mas que é uma possibilidade real, da qual execução do projeto por parte da equipe
possa se aproximar gradativamente. Isso supõe escolar são coerentes com as atividades
um posicionamento político da equipe escolar, desenvolvidas, e, principalmente, contribui de
para uma visão do ideal de organização da forma efetiva com a atuação sobre a realidade
convivência social e de um posicionamento na qual a escola trabalha? Dessa forma, a
pedagógico a fim de definir as ações experiência acumulada dos profissionais da
educativas e as características necessárias à escola é base para a reflexão e elaboração do
perspectiva de fazer com que o possível e o projeto educativo?
desejável se tornem realidade. 7. O projeto pedagógico precisa prever o
4. O projeto educativo deve ser prático e recolhimento de informações para verificar se
aplicável, as equipes atuantes na escola conhecem de
fato seus alunos, se reconhecem suas
[...] definindo metas a serem atingidas em necessidades, sua situação socioeconômica,
cronogramas exeqüíveis, fazendo com que suas expectativas, seu dia-a-dia e o que eles
as propostas tenham continuidade, fazem fora da escola. Para as equipes
prevendo recursos necessários, utilizando escolares, é preciso coletar dados e organizá-
de forma plena, funcional e sem los. É preciso acompanhar essa coleta,
desperdícios os recursos disponíveis, identificá-la, refletir sobre ela e apresentar
definindo um acompanhamento e uma subsídios para que as equipes os utilizem em
avaliação sistemática e não realizar o seu trabalho.
planejamento como tarefa burocrática, 8. O projeto educativo deve procurar articular
legalmente imposta, alienada, sem propostas de uma renovação pedagógica
criatividade e desprovida de significado contínua, para garantir a aprendizagem
para os que dela participam. Muitas vezes, significativa dos conteúdos selecionados pelas
valoriza-se o documento (plano) em escolas, em função dos objetivos que elas
detrimento do planejamento (processo) e a pretendem atingir. Para isso, é preciso verificar
atividade central é o preenchimento de se as equipes utilizam estratégias de atuação
formulários16. que garantam a participação dos alunos nos
diferentes projetos desenvolvidos, criando
5. O projeto pedagógico deve ser continuamente condições para que possam manifestar suas
analisado e reelaborado dentro de um clima preocupações, seus problemas e seus
institucional favorável, exprimindo a prática interesses. A escola é organizada como um
da reflexão coletiva da equipe escolar, pois espaço vivo, onde a cidadania é exercida a
isso não é algo que se atinge de uma hora cada momento, de forma que os jovens se
para a outra. A escola é uma realidade apropriam efetivamente do espaço escolar e
complexa e não é possível tratar sua questão reforçam laços de identidade cultural com sua
mais importante, que diz respeito às mudanças comunidade, bem como estabelecem vínculos
para ela engendradas pelos seus responsáveis, com uma aprendizagem socialmente
como se fossem simples de serem resolvidas. significativa?
6. O projeto educativo deve contribuir para a 9. O projeto pedagógico precisa definir as fontes
reflexão sobre a realização contínua dos mais importantes para a sua consecução, como
objetivos escolares, utilizando para isso os o contato com outras experiências
meios resultantes do conhecimento das ações educacionais, a bibliografia especializada e,
desenvolvidas pelos diferentes professores do em especial, as referências curriculares
sistema. Qual a base de diálogo e reflexão para oficiais. Os múltiplos aspectos a serem

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analisados pela escola na elaboração e no identificamos como professores. Cada um


desenvolvimento de seu projeto educativo tem o seu modo próprio de organizar as
estão baseados nos diferentes documentos que aulas, de se movimentar na sala, de se
compõem os PCNs? dirigir aos alunos, de utilizar os meios
10.O projeto educativo deve produzir documentos pedagógicos, um modo que constitui uma
sob questões relevantes para serem analisados espécie de segunda pele profissional17.
e discutidos por toda a comunidade escolar.
Dentre tais questões, destacam-se interação e Os professores são peças-chave dentro da
cooperação, respeito à diversidade, equipe escolar, pois são eles que executam o
desenvolvimento da autonomia, disponi- trabalho pedagógico e o sucesso ou fracasso dos
bilidade para a aprendizagem, organização alunos depende de seu grau de eficiência e
do tempo e do espaço escolar, seleção de comprometimento. “Reduzidos às suas
material e avaliação. A equipe escolar é capaz competências técnicas e profissionais, ameaçados
de fazer uma avaliação para verificar se sua por utopias que os pretendiam substituir por
atuação é coerente com esses princípios. máquinas ou sistemas não humanos de educação,
11.O projeto pedagógico deve, finalmente, esvaziados de uma afirmação própria da
apontar quais tipos de integração e cooperação dimensão pessoal da sua profissão...” 17, os
com respeito à diversidade e o desenvol- professores passaram por momentos difíceis nos
vimento da autonomia pedagógica podem ser últimos anos. Eles se tornaram um grupo
identificados dentro da dinâmica de trabalho profissional particularmente sensível ao efeito da
do diretor, do coordenador, dos professores, moda, o que levou a pedagogia a criar ortodoxias
dos funcionários e dos pais. “[...] o projeto como defesa contra o abastardamento de seus
educativo só se realiza se os adultos métodos e técnicas. “Uma vez na praça pública,
envolvidos conseguirem atuar de maneira as técnicas e os métodos pedagógicos são
integrada e cooperativa”16. A disponibilidade rapidamente assimilados, perdendo-se de
para a aprendizagem se estende a todos os imediato o controle sobre a forma como são
envolvidos no projeto educativo. Diante disso, utilizados”17. Os modismos pedagógicos estão
pergunta-se: A equipe escolar está aberta ao cada vez mais presentes no terreno educacional,
que há de novo no mundo e na área em grande parte devido à impressionante
educacional? circulação de idéias no mundo atual. Mas, mesmo
diante da sua suscetibilidade aos modismos, os
CONSIDERAÇÕES FINAIS professores podem revelar essencialmente a
Nas últimas décadas, os especialistas em natureza dos projetos educativos segundo os
educação têm-se esforçado para racionalizar o quais trabalham. Simultaneamente, os diretores,
ensino, controlar os fatores aleatórios e coordenadores, supervisores e pais são peças
imprevisíveis do ato educativo e expurgar do também essenciais ao processo de levantamento
quotidiano pedagógico as práticas de todos os de dados das escolas.
tempos que não contribuem para o As abordagens de pesquisa educacional
aprimoramento do trabalho escolar. baseadas nas histórias de vida de professores são
denominadas por Nóvoa de “métodos (auto)
A resposta à questão, Porque é que fazemos biográficos”. Consistem em estudos que tomam
o que fazemos na sala de aula?, obriga a como referência a pessoa do professor,
evocar essa mistura de vontades, de gostos, exprimindo-se numa perspectiva sociológica,
de experiências, de acasos até, que foram normalmente baseada em metodologias de
consolidando gestos, rotinas, “história oral”, ou em “memórias escritas”, essas
comportamentos com os quais nos últimas articuladas segundo uma perspectiva

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psicológica. Nesse sentido, os “métodos (auto) A abordagem (auto) biográfica aponta no sentido
biográficos” integram-se às correntes de das transformações sentidas e expressas pelo
investigação ligadas ao “pensamento do professor. Sua operacionalização é feita no sentido
professor”17. Os estudos realizados segundo essa de “dar voz ao professor”, permitindo a ele que
perspectiva metodológica têm conduzido a uma se assuma como um profissional de largas
reflexão essencial sobre o domínio do currículo e margens de autonomia pedagógica, de forma a
da didática. identificá-lo como o principal responsável pelas
O método voltado à análise das transformações mudanças que visam ao desenvolvimento da
que estão a renovar o panorama educativo da escola17. O método propõe, assim, que sejam
educação fundamental no Brasil, tendo como foco mobilizadas as dimensões pessoais nos espaços
o funcionamento das unidades escolares institucionais, equacionando as transformações
explicitado nos projetos pedagógicos, conduz, da escola à luz das pessoas. Tal método aceita
dessa forma, a colocar o professor em posição que por detrás de toda pedagogia há sempre
central dentro do processo investigativo, não sentimentos que definem o que se conseguiu
esquecendo, no entanto, de considerar a realizar como um prolongamento das histórias
importância dos demais agentes identificados. sobre a vida profissional.

SUMMARY
Autonomy and reform in school: new routes of the
learning-teaching processes in Brazil

This paper aims at reflecting on the principle of pedagogical autonomy


conferred by the current National Education Law (LDB) to schools and
Brazilian teaching networks. It is discussed the concept of open school applied
to institutions where teaching is performed according to the idea of a school
building with open area. It is presented the “Escola da Ponte”, founded by
José Pacheco 30 years ago in Lisbon, Portugal, in whose pedagogical project
the students are not distributed by classes and school years. Brazilian
experiences are highlighted based on the concept of open school and it is
analyzed how the principle of autonomy conferred by the LDB collaborates
to the creation of projects that may renew the pedagogical practice and
establish new interpretations to teaching methodology. This article draws
the conclusion that in recent years, the Brazilian schools have increased
their pedagogical diversity and plurality, pointing new courses according to
which that phenomenon has been carried out.

KEY WORDS: Schools. Education, primary and secondary. Education.


Models, educational.

Rev. Psicopedagogia 2008; 25(78): 282-96

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MARCHELLI PS ET AL.

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nadora pedagógica de Reggio Emilia, na Porto:Porto Editora;1995. 214p.

Trabalho realizado na Fundação para o Desenvolvimento Artigo recebido: 07/08/2008


do Ensino, Pesquisa e Extensão- FUNDEPE/ Marília- SP Aprovado: 15/10/2008
e no Programa de Pós Graduação da UNOESTE,
Presidente Prudente, SP.

Rev. Psicopedagogia 2008; 25(78): 282-96

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