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JORNAL

MOVIMENTO
uma
reportagem
CARLOS AZEVEDO
com reportagens de
Marina Amaral e Natalia Viana

ACOMPANHA DVD COM AS 334 EDIÇÕES DO JORNAL

1ª. edição
Belo Horizonte/MG

2011

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Jornal Movimento, uma reportagem

A
o longo de sua história, a imprensa brasileira passou por
vários momentos de grave cerceamento da liberdade de ex-
pressão, e em todos eles soube mostrar dignidade e coragem.
Houve inclusive publicações que surgiram em pleno regime
de exceção, especialmente durante o mais recente período
autoritário (1964-1985), trazendo a resistência como marca de nascença.
Eram publicações pequenas, sem grandes recursos para assegurar sua so-
brevivência num ambiente absolutamente adverso (além da censura pro-
priamente dita, sofriam, por parte do regime, o bloqueio de publicidade
e, frequentemente, a violência de atentados e agressões). Souberam, com
formidável galhardia, carregar as melhores bandeiras das reivindicações
democráticas.
Daí a relevância deste projeto, que conta a história do semanário Movimento,
que circulou entre 1975 e 1981. Numa etapa em que a censura imperava, a
luta de pequenas publicações como Movimento contra a máquina de impor
silêncio era de uma audácia formidável. Foi imensa sua importância e sua
influência ao trazer à tona vários temas que geraram debates enriquecedores.
A Petrobras é a patrocinadora do projeto de resgate da história do se-
manário Movimento. Somos uma empresa que aposta no futuro. Por isso
sabemos da importância de se conhecer nosso passado.
Tendo como missão primordial, desde que foi criada, contribuir para o
desenvolvimento do Brasil, a Petrobras segue rigorosamente esse com-
promisso em seu dia a dia. Damos nossa contribuição apoiando a indús-
tria pesada brasileira, aprimorando nossos produtos, expandindo nossas
atividades para além das fronteiras, desenvolvendo tecnologia de ponta
– e patrocinando as artes e a cultura. Além de maior empresa do Brasil,
somos também os maiores patrocinadores culturais. E fazemos isso obser-
vando sempre nossa missão primordial.
Afinal, um país que não respeita sua cultura, que desconhece o seu pas-
sado, jamais será um país desenvolvido.

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JORNAL MOVIMENTO
UMA REPORTAGEM
Carlos Azevedo, coordenador
Marina Amaral, produtora
Natalia Viana, redatora
Juliana Sartori, historiadora
Leticia Nunes de Moraes, recuperação da coleção
Caio da Costa Carvalho, degravação das entrevistas
Pedro Ivo Sartori, editoração gráfica
Álvaro Caropreso, indexação do DVD
Fabiano Bezerra, aplicativo do DVD
Chico Max, diretor de arte
OK Linguística, preparação, revisão e índice onomástico
Neuza Gontijo, administração
Capa Chico Max, a partir de desenhos
de Elifas Andreato e Jayme Leão
EDITORA MANIFESTO S.A.
Presidente Roberto Davis
Diretor vice-presidente Armando Sartori
Diretor administrativo Marcos Montenegro
Diretor editorial Raimundo Rodrigues Pereira
Diretor de relações institucionais Sérgio Miranda
Todos os direitos reservados à Editora Manifesto S.A.
Rua do Ouro, 1.725 – 2º andar – Serra
CEP 30210-590
Belo Horizonte/MG
Tel. 31 3281-4431
administração.bh@oficinainforma.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Azevedo, Carlos
Jornal Movimento : uma reportagem / Carlos
Azevedo ; com reportagens de Marina Amaral e
Natalia Viana. -- 1. ed. -- Belo Horizonte, MG :
Editora Manifesto, 2011.

Acompanha DVD com as 334 edições do jornal.

1. Jornal Movimento 2. Jornalismo 3. Repórteres


e reportagens I. Amaral, Marina. II. Viana,
Natalia . III. Título.

11-05774 CDD-070.43

Índices para catálogo sistemático:


1. Jornal Movimento : Reportagens : Jornalismo
070.43
ISBN 978-85-99785-17-1

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Jornal Movimento, uma reportagem

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APRESENTAÇÃO

O
jornal Movimento foi uma das mais extraordinárias criações
do movimento democrático e popular brasileiro na luta con-
tra a ditadura militar dos anos 1964-1984. Surgiu em meados
de 1975, num momento em que o regime ditatorial desen-
volvia uma operação tática de grande amplitude: a “disten-
são lenta, gradual e segura” comandada pelo presidente general Ernesto
Geisel e seu grande estrategista e chefe da Casa Civil, general Golbery do
Couto e Silva.
Um dos lances mais destacados da “distensão” foi a suspensão da cen-
sura prévia a O Estado de S. Paulo. O grande diário conservador apoiara
o golpe militar de 1964. Mas não aceitara a censura prévia, que se fazia
através de comunicados da Polícia Federal com listas de assuntos proibi-
dos. Para poder continuar existindo, o jornal acabou por aceitar censores
federais dentro da própria redação.
No início de 1975, o governo retirou os censores do Estadão. E suspen-
deu os comunicados de censura da PF para os outros grandes jornais. Mas
manteve a repressão policial e a censura a periódicos mais combativos
selecionados. Ou seja: a ditadura recuava; mas com o claro propósito de
se fortalecer no campo conservador e isolar as forças mais progressistas.
Movimento se formou sob a liderança de um grupo de jornalistas e de
deputados do chamado grupo “autêntico” do PMDB que discordava da
avaliação de que o general Geisel levaria o País à democracia e faria um
governo ligado aos interesses nacionais.
O semanário apoiou-se decididamente nos movimentos populares. Foi
lançado a partir de uma empresa formada com pequenas contribuições em
dinheiro de cerca de 500 pessoas. Além de ser vendido em bancas, suas
assinaturas e seus números avulsos foram vendidos em algumas dezenas
de cidades do País, semana após semana, por centenas de jovens militan-
tes, de praticamente todas as correntes políticas que resistiram à ditadura,
durante seis anos e meio, de seu número 1, de 7 de julho de 1975, ao seu
número 334, de 23 de novembro de 1981.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Jornal Movimento, uma reportagem, de Carlos Azevedo, com reporta-


gens de Marina Amaral e Natalia Viana, que lançamos agora, destaca a
grande importância do semanário. E, além do mais, vem acompanhado
de DVD com a reprodução integral de todos os números de Movimento,
mesmo os que foram totalmente censurados.
Por certo, o livro provocará debates. E a nossa intenção ao publicá-lo é
exatamente provocar debate. Mas um debate específico: por que, hoje, em
condições aparentemente muito mais favoráveis, depois de mais de oito
anos de governos eleitos pelo campo democrático-popular, não se tem
um jornal como Movimento? Por que o movimento democrático-popular
não tem hoje um jornal com uma expressiva redação de profissionais,
com várias sucursais pelo País, com correspondentes no exterior, com
centenas de apoiadores e propagandistas ativos, com muitos milhares de
leitores, como foi Movimento?
A resposta de muitos, claramente insuficiente, é a de que o movimento
democrático e popular se uniu porque a ditadura o forçou a unir-se. Como
se, hoje, não fosse mais necessária essa unidade. Ou como se a própria
imprensa democrático-popular fosse hoje desnecessária.
No nosso entendimento, é evidente a necessidade de se desenvolver no
País, hoje talvez mais do que antes, a imprensa democrático-popular. Esse
tipo de imprensa tem longa tradição. Remonta à chamada Primavera dos
Povos, às Revoluções de 1848, quando as promessas liberais de “liber-
dade, igualdade e fraternidade” das revoluções burguesas de décadas pas-
sadas eram negadas na prática pelas condições de vida e de trabalho das
massas populares nas fábricas das grandes cidades surgidas com o desen-
volvimento e a consolidação do capitalismo.
A imprensa liberal se consolidou em modelos bem definidos, como o
diário de notícias The Times, de Londres, de 1788, a revista semanal de
informações The Economist, da burguesia industrial inglesa, de 1843, e
posteriormente os jornais “populares” de Hearst e Pulitzer, nos Estados
Unidos da América, mais para o final do século.
A imprensa democrático-popular surgiu da necessidade do movimen-
to dos trabalhadores de ter jornais que se distinguissem dessa imprensa.
Nasceu como uma imprensa de luta pelos direitos dos trabalhadores. E,
no início do século 20, na medida em que os partidos social-democratas
europeus, antes ligados aos trabalhadores, se associaram às suas elites
na guerra imperialista por colônias e mercados, tornou-se também uma
imprensa de luta pela defesa da soberania das nações pobres e espoliadas
pelo capital financeiro.
A despeito de todos os seus erros, Movimento foi um exemplo do es-
forço de unir as diversas correntes do campo democrático-popular. Foi,
além disso, um semanário de alta qualidade. E isso numa época em que
a imprensa semanal do grande capital involuia. O Economist tinha como
lema disputar a inteligência do leitor. A revista Time, o grande semanário
americano, fundado em 1923, já foi uma cópia piorada do Economist.

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E o semanário Veja, fundado no Brasil em 1968, acabou se tornando uma
cópia piorada dessa cópia americana.
Pode-se dizer que Movimento surgiu junto com um grande movimento
de massas. Esse movimento desmantelou os limites impostos pela “dis-
tensão lenta, gradual e segura” da dupla Geisel-Golbery, derrotou a censu-
ra e, afinal, forçou a ditadura a um recuo maior. Com a queda da censura,
Movimento cresceu. Depois, perdeu impulso e foi fechado.
O movimento de massas teve outra história. Não foi suficiente para to-
mar o poder político no País. Acabou se dividindo quando a distensão
organizada pela ditadura se transformou, em 1985, num governo de tran-
sição para a saída organizada dos militares do poder. E só chegou ao poder
político em 2003, depois de ter relegado ao segundo plano o movimento
das ruas contra o governo liberal. E, após ter divulgado uma Carta aos
Brasileiros, que foi, no final das contas, um grande compromisso com o
capital financeiro internacional.
Em 2005, ao reeditar nossa enciclopédia dos problemas brasileiros que
é o livro Retrato do Brasil, redigido inicialmente no final do regime mili-
tar, nós dissemos: o País saiu da ditadura militar para cair sob a ditadura
do capital financeiro. Paga as maiores taxas de juros do mundo. E as suas
remessas de lucros e dividendos para o exterior estão na quase inacredi-
tável faixa de 30 bilhões de dólares anuais.
E é por isso que nos perguntamos agora: se o Brasil está, de novo, sob
uma ditadura, mesmo que disfarçada, por que não unir, de novo, as forças
democráticas e populares?

Editora Manifesto,
São Paulo, maio de 2011

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Jornal Movimento, uma reportagem

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JORNAL MOVIMENTO,
uma reportagem
“A tormenta do combate ainda está aqui nessa praça;
o horror ainda é visível; a convulsão das escaramuças
está aqui petrificada; isso vive, isso morre, foi ontem.
As paredes agonizam, as pedras tombam, as brechas
gritam; os buracos são feridas; as árvores curvadas
e arrepiadas parecem fazer força para fugir.”

Victor Hugo, em visita às ruínas de Waterloo,


40 anos depois da batalha (em Os Miseráveis).

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Jornal Movimento, uma reportagem

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ÍNDICE

Epígrafe 01
Introdução 05
Capítulo 1: Já nasceu sob censura 09
Capítulo 2: Movimento nasce de Opinião 17
Capítulo 3: O jornal dos jornalistas 27
Capítulo 4: Uma mobilização nacional 35
Capítulo 5: A arte da resistência 55
Capítulo 6: A luta contra a censura 67
Capítulo 7: A batalha econômica 87
Capítulo 8: Em busca do método democrático 99
Capítulo 9: As primeiras divergências 113
Capítulo 10: O debate dos Ensaios Populares 121
Capítulo 11: A política de Carter, um dos estopins 133
Capítulo 12: O “racha” de abril de 1977 145
Capítulo 13: A luta continua 159
Capítulo 14: O sobe e desce das f inanças 175
Capítulo 15: A campanha pela Constituinte 181
Capítulo 16: A campanha pela anistia 189
Capítulo 17: O apoio aos militares dissidentes 197
Capítulo 18: A censura caiu: “Vencemos!” 203
Caderno de fotografias 212
Capítulo 19: Assuntos e o movimento contra a carestia 213
Capítulo 20: O movimento dos metalúrgicos do ABC 223
Capítulo 21: O jornal e o PCdoB 245
Capítulo 22: O debate sobre o campo socialista 255
Capítulo 23: Adeus ao AI-5 e anistia restrita 261
Capítulo 24: O debate sobre os novos partidos 271
Capítulo 25: Aos cinco anos, nova mobilização 283
Linha do Tempo 283
Capítulo 26: Queda nas vendas e o terrorismo 293
Capítulo 27: Os últimos esforços 301
Capítulo 28: “Até amanhã de manhã” 307
Epílogo Cordel 313
Anexo 1 - Artigo da Folha de S. Paulo, 27/11/1981 317
Anexo 2 - Equipe e folha de pagamento em 1975 320
Anexo 3 - Lista de acionistas em 1976 322
Índice onomástico 330
DVD encartado na terceira capa

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Jornal Movimento, uma reportagem

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Objetivos,
métodos
e critérios

J ornal Movimento, uma reportagem é um trabalho sobre um dos mais


notáveis exemplos da imprensa popular e democrática de nossa
história recente. Popular porque a chamada imprensa alternativa,
que alcançou grande repercussão e prestígio na década de 1970, foi
construída pelo esforço e recursos de jornalistas, intelectuais, es-
tudantes e trabalhadores, apoiada por um público leitor progressista, por
uns poucos pequenos e médios empresários, e à margem de investimentos
capitalistas. E democrática porque, no plano imediato, foi uma resposta
à necessidade de manifestação de opinião e de articulação de amplos se-
tores da sociedade, em oposição à ditadura militar que vigorava no País.
Movimento, em suas 334 edições, publicadas ao longo de seis anos e
meio (de julho de 1975 a novembro de 1981), retrata um momento de
grande riqueza histórica, em que as classes e camadas sociais que necessi-
tam de mudanças para se desenvolver compõem uma frente muito ampla,
conquistam várias vitórias e impõem o recuo do regime ditatorial.
Aqueles anos terríveis e também magníficos de sacrifícios e superação
de uma geração conservam-se lá, ao longo de 8.600 páginas, como o cená-
rio de um campo de batalha eternizado. E podem ser revistos como num
filme cheio de emoção e suspense, através das reportagens, artigos, deba-
tes, polêmicas, capas e ilustrações, e das cartas de seus leitores, sempre
muito participantes.
Este livro, além de referir-se ao conteúdo do jornal, registra outros aspec-
tos da sua vida difícil: o enfrentamento da censura e da repressão; a con-
tínua busca pela democracia em suas relações internas e as divergências
que teve de enfrentar; a luta permanente pela independência e o esforço
extremo para sobreviver à escassez de recursos e às sabotagens terroristas.
As páginas de Movimento constituem, com certeza, um dos mais lúci-
dos e detalhados retratos daquela época. Por isso, além do livro, esta obra
contém um DVD com toda a coleção de Movimento digitalizada, o que é
um convite para os pesquisadores e todos interessados na história da luta
contra a ditadura e no jornalismo combatente vivido por uma geração.

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Jornal Movimento, uma reportagem

O método escolhido foi o da reportagem, da pesquisa dos acontecimen-


tos que marcaram aquele momento histórico, da maneira como eles foram
refletidos e interpretados pelo jornal e de como sua presença e seu teste-
munho repercutiram na sociedade.
Consciente da passagem do tempo (35 anos) e das consequências que
essa circunstância acarreta sobre o trabalho, as mais importantes, a pro-
gressiva perda da memória pessoal, a deterioração e extravio dos docu-
mentos, por um lado, e o esvanecer (ou não) das paixões, as alterações nas
convicções políticas e pessoais, pelo outro, nossa equipe definiu alguns
critérios.
Primeiro, dar fé aos documentos escritos: ou seja, trabalhar com os
registros da vida interna do jornal, atas, relatórios, comunicados, cor-
respondência.
Isso foi feito por meio de pesquisa no arquivo pessoal de Raimundo
Rodrigues Pereira, doado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo; nos
documentos sobre a vida financeira do jornal preservados no arquivo do
Instituto Sergio Motta; em documentos dos arquivos pessoais de Sergio
Buarque de Gusmão, de Flávio de Carvalho, Luiz Bernardes, de Bernardo
Kucinski e os doados por Duarte Pereira ao Arquivo Edgar Leuenroth, da
Unicamp.
A consulta ainda abrangeu os documentos oficiais do regime militar,
sobre sua política e ações em relação à imprensa alternativa e especifica-
mente a Movimento, pertencentes ao Ministério da Justiça e organizados
no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.
Além disso, foi feita uma leitura exaustiva das 334 edições que formam
a coleção do jornal, de outros jornais do período, de dezenas de livros e
várias teses de mestrado e doutoramento.
Também se tentou trabalhar com o material cedido ao Arquivo da Pre-
feitura do Rio de Janeiro, que abriga os milhares de textos de Movimento
impedidos de ser publicados pela censura do governo. Mas esses docu-
mentos encontravam-se em processo de organização, o que tornou a pes-
quisa pouco frutífera.
Paralelamente, a equipe tomou como referência cerca de 60 entrevistas
realizadas com participantes, colaboradores e apoiadores de Movimento.
Os valores referentes à economia do jornal são apresentados em reais
de janeiro de 2011, atualizados de acordo com o Índice Geral de Preços –
Disponibilidade Interna (IGP-DI) da Fundação Getulio Vargas.1
O jornalista e ex-militante político Carlos Azevedo (Carlos Alberto de
Azevedo), que foi o coordenador deste trabalho, teve alguma participação
na história do jornal. Quando pertinente, é citado na terceira pessoa do
singular.

1 Esses vários links de atualização consultados apresentam valores aproximados: http://www.


fee.tche.br/sitefee/pt/content/servicos/pg_atualizacao_valores.php; http://www4.bcb.gov.br/pec/
correcao/corrige.asp; http://portalibre.fgv.br/

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Xilogravura de Rubem Grilo, 1978

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da primeira edição, 7 de julho de 1975

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1
Já nasceu
sob censura

O
jornal Movimento chegou às bancas pela primeira vez em 7
de julho de 1975, uma segunda-feira. E nasceu feio. A capa
não convidava o leitor, dava a impressão de que nem fora
paginada, toda negra. Logo abaixo do logotipo com o nome
do jornal, vazado em branco, lia-se “Ano 1 nº 1 Cr$ 5,00”.1
Mais nada, nem data trazia. Na metade superior, sobre o fundo negro, uma
foto obscura, um homem em pé, o rosto não aparecia, parado entre os
trilhos de uma estrada de ferro. Havia papéis rasgados, pedaços de pau e
objetos espalhados ao redor; um relógio de parede, amassado, jazia junto
a um dormente, com os ponteiros paralisados às 4 horas e 55 minutos.
À esquerda da foto, uma legenda na vertical que, posta às pressas, ficou
torta, e em pequenas letras brancas dizia: “Central do Brasil, Rio”. Na
metade inferior da página, se lia: “cena brasileira: SUBÚRBIO CARIOCA
por Aguinaldo Silva”. Na parte de baixo, duas chamadas de matéria dan-
çavam soltas na escuridão de tinta.
Vinte e um mil leitores o compraram. Gravemente mutilado pela censura
prévia, ainda assim aquele era um jornal ansiosamente esperado. Grande
parte dos que o compraram sabia que o que estava ali não era apenas um
jornal, mas o retrato de uma batalha, da luta pela liberdade de opinião.
Adquiri-lo era uma tomada de posição e um ato de apoio.
Que Brasil era esse de 1975 em que esse jornal estreava estropiado? A
ditadura militar que havia derrubado o Estado de direito acabara de com-
pletar onze anos. Em longo processo de repressão e crimes contra os di-
reitos humanos, havia liquidado a oposição, inclusive as tentativas de
resistência armada, e tinha o controle completo do País. Como uma onda
poderosa, ocupara toda a praia.
Porém, já começava a refluir. A bonança da economia capitalista do pe-
ríodo pós-Segunda Guerra chegava ao fim. Os Estados Unidos foram le-
vados a romper os acordos de Bretton Woods que garantiam o dólar com
1 Equivalentes a R$ 8,50 em janeiro de 2011 (IGP-DI FGV).

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as reservas americanas de ouro. Uma inflação expressiva passou a atingir


sua moeda. E, para sair da crise, a potência central do mundo capitalis-
ta promoveu uma violenta elevação dos juros. Os países produtores de
petróleo se defenderam impondo brutal aumento aos preços do óleo. O
Brasil, dependente de empréstimos e importador de petróleo, fora colhido
no contrapé, registrava endividamento crescente e ficara sem capitais para
investimentos. A população ressentia o empobrecimento.
A tentativa de institucionalização do regime militar brasileiro, ensaiada
com as eleições de 15 de novembro de 1974, resultara numa derrota elei-
toral espetacular, para surpresa inclusive do próprio partido de oposição
consentida. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) elegeu 16 em 22
senadores e sua bancada na Câmara Federal saltou de 87 para 160 depu-
tados. Além disso, passara a ser maioria em inúmeras assembleias legis-
lativas. O eleitorado havia se posicionado maciçamente contra o governo.
Essa derrota causou inconformidade nas Forças Armadas, principalmente
nos setores diretamente ligados aos organismos de repressão, que passa-
ram a acusar o governo de complacência com a oposição.
Tentando evitar o isolamento e dar sequência a um recuo lento e organi-
zado, ao qual deu o nome de “distensão”, o governo manobrava. Procurava
recuperar aliados perdidos nos meios civis, por isso, em janeiro de 1975,
liberou da censura o jornal conservador O Estado de S. Paulo, e suspen-
deu o envio de listas de assuntos proibidos a todos os outros grandes
jornais. Ao mesmo tempo, porém, voltava a fazer o uso do AI-5 para punir
parlamentares. E, para vingar-se da derrota eleitoral, desencadeou uma
onda de prisões contra o Partido Comunista Brasileiro (PCB), acusado de
infiltração no MDB.
Apesar disso, em fevereiro, circulava o primeiro de uma série de panfle-
tos intitulados “Novela da Traição”, que acusavam o general Golbery do
Couto e Silva, chefe da Casa Civil do general presidente Geisel, de ser res-
ponsável pela derrota eleitoral e por dar espaço à “subversão”. Em maio,
o jornal francês Le Monde noticiava:
A direita militar tenta reagrupar suas forças contra o governo
Geisel (...) circulam panfletos nos quartéis e escolas de oficiais
para denunciar “a traição da Revolução de 1964” e conclamam
“os chefes militares e civis a reagir quando chegar o momento”.
As tensões se acentuavam dentro do regime.
É nesse ambiente que Movimento estreia. O lançamento do novo sema-
nário não recebeu destaque da grande imprensa, na melhor das hipóteses
houve pequenas notas registrando a inédita censura prévia imposta ao
seu número um. A censura era o sinal de que o governo não o subestimou.
Ainda no final de junho, Edição S/A, a editora criada para fazer o jornal,
levara a público um folheto de oito páginas fazendo propaganda do seu
lançamento. Os 70 mil exemplares haviam sido distribuídos em universi-
dades, em bancas de jornais, e entregues a jornalistas e colaboradores. O
governo leu atentamente o folheto.

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Já nasceu sob censura

Em despacho com o presidente em 1º de julho de 1975, o ministro da


Justiça, Armando Falcão, anotou:
Sobre o novo jornal, Movimento, dirigido por um grupo de
elementos esquerdistas, entre os quais o ex-deputado Francisco
Pinto, determinei ao Departamento de Polícia Federal as se-
guintes providências:
1 – Apreensão do primeiro número do jornal, com circulação
anunciada para o próximo dia 7
2 – Instauração de inquérito policial, para enquadramento na
Lei de Segurança Nacional
3 – Estabelecimento de censura prévia.
Motiva este procedimento o fato de o jornal, no espelho que
chegou ao meu conhecimento, estampar matéria em que se en-
sina como incendiar vagões da Central do Brasil, incitando,
pois, o povo à depredação de trens (a PF descobriu ontem que
exemplares do jornal já estão circulando em universidades)2
Na tarde do mesmo dia, a redação na rua Virgílio de Carvalho Pinto, 625, no
bairro de Pinheiros, São Paulo, funcionava a pleno vapor. Preparava o jornal
de número um, a ser lançado na semana seguinte. Em meio ao burburinho
da redação – telefone, máquina de escrever, discussões –, Sérgio Buarque de
Gusmão, editor de Nacional, ouviu um chiado de walkie-talkie:
Entra um cara meio gordo, chega bem no meio da sala e diz:
– Com licença.
Olhei para o Flávio Aguiar, na mesa em frente, ele fez aquele
sinal de “já entrou, né?”.
– Sem rodeios, nós somos da Polícia Federal.
Aí, tinha uma coisa, essa coisa brasileira, com essa origem
lusitana, que é um formalismo patético. O cara foi levar um
ofício da Polícia Federal, para dizer que o jornal estava censu-
rado com base no AI-5.
Ao mesmo tempo, outra equipe da PF visitava a gráfica onde o jornal iria
ser impresso. A ordem era apreender o folheto de lançamento e enquadrar
quem desobedecesse às ordens na Lei de Segurança Nacional. Se não se
chegasse a um “acordo” sobre censura prévia, o número um seria também
apreendido. Sérgio Buarque telefonou para o editor, Raimundo Pereira:
Ligamos para o Raimundo. Ele chegou, começou a reclamar,
o policial ligou pra alguém e falou:
– Olha, o sujeito aqui tá criando caso...
O Raimundo reclamava:
– Como é que vocês vão censurar uma coisa que ainda não saiu?
Mas não teve jeito, né? 3

2 Arquivo Nacional/Ministério da Justiça – Fundo DSI/MJ (Despacho com o Sr. Presidente). In:
Souza, Maurício Maia. Henfil e a censura: o papel dos jornalistas. São Paulo, 1999. Dissertação
(Mestrado) – Escola de Comunicação e Artes, USP.
3 Entrevista de Sérgio Buarque de Gusmão em 21 de outubro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

As ordens, diziam os delegados da PF, vinham do próprio presidente


Ernesto Geisel, que naquela manhã estivera com o folheto de propaganda
do jornal nas mãos e o analisara junto com o ministro da Justiça.
Mais tarde, Antonio Carlos (Tonico) Ferreira, diretor responsável, e
Raimundo Pereira foram “convidados” para uma reunião com o chefe da
Polícia Federal em São Paulo, para estabelecer as condições para o jornal
circular. Os jornalistas responderam que não admitiam acordo para o es-
tabelecimento da censura. “Ela é um ato de força e dessa forma deve ser
aplicada por decisão unilateral e arbitrária do presidente da República”.
Exigiram documento legal da Polícia Federal com a decisão de censurar
o jornal.
Dois dias depois receberam o ofício 437/75, de 4 de julho de 1975, que
dizia:
De ordem superior, levo ao conhecimento de V.S. de que
a partir desta data, fica instituída a censura prévia no jornal
semanário “Movimento” e, à vista dessa determinação, não
poderá o mesmo ser distribuído sem a devida permissão des-
ta Superintendência, sob pena de apreensão e da aplicação
das medidas legais cabíveis no caso. Assinado: General José
Guimarães Barreto, Superintendente Regional.4

CORPO A CORPO COM A CENSURA


Quem leu Movimento número um não pôde imaginar o tamanho da batalha
que foi travada para aquela edição chegar às suas mãos. Na semana de lança-
mento, os editores e a equipe se revezaram entre a redação, a sede da Polícia
Federal e as oficinas. O esforço para suprir os “buracos” da tesoura não foi
pequeno; os censores vetaram nada menos que quatro propostas de capas do
jornal, além de 18 matérias inteiras, 8 fotografias, 10 ilustrações e 12 charges.
O principal chamariz da edição de estreia, uma “Cena Brasileira” es-
pecial com quadros relatando histórias em várias partes do Brasil com-
plementada por um ensaio sobre indicadores sociais, jamais chegaria às
bancas. Outras matérias foram parcialmente cortadas; a Cena Brasileira
“Bananas”, matéria não assinada, mas de autoria de Murilo Carvalho, teve
o lead, o “pé” e o “olho” vetados; a solução foi usar uma foto com aparên-
cia de rasgada ao meio para transmitir o fato ao leitor.
Pior: a exigência de entregar todo o material em um só lote atrapalhou o
planejamento gráfico, que previa um fechamento em três turnos. No final,
o jornal foi entregue à distribuidora Abril com 17 horas de atraso. Na se-
gunda-feira, chegou apenas ao Rio, em São Paulo e outras poucas cidades;
na maioria, chegou vários dias depois e até com mais de uma semana de
atraso – caso da capital federal, Brasília.
Com tamanho atraso, a vendagem não foi a esperada. Movimento saiu
com uma tiragem de 50 mil exemplares e a previsão de vender 30 mil no
primeiro número. Vendeu 21 mil.
4 Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão.

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Já nasceu sob censura

Meses depois, em um relatório enviado aos acionistas, a direção admitiria:


Nos surpreendeu a censura duplamente prévia; antes de
cada número sair e antes do próprio jornal existir nas bancas.
Sem dúvida fomos otimistas demais ao supor que o jornal te-
ria algumas edições iniciais sem censura, em que se pudesse
apresentar seu projeto inicial.5
Ou, nas palavras de Tonico Ferreira: “Minha maior frustração foi que
não pudemos mostrar o projeto do jornal.”6

MUITA COISA PASSOU, E ERA BOM JORNALISMO


Entretanto, informações significativas ainda haviam conseguido passar pela cen-
sura. A matéria de capa era uma “Cena Brasileira”, aquela seção de reportagens
sobre a vida e a luta do povo que tornaria célebre o jornal. “Subúrbio carioca”,
texto de Aguinaldo Silva, narrava mais um quebra-quebra nos trens que saíam
atrasados da Central do Brasil e dava significado à foto da primeira página:
A depredação começou metodicamente. Os passageiros des-
ceram do trem, armaram-se de paus e pedras, e começaram a
quebrá-lo (os gritos de “onde está o maquinista?” não obtive-
ram resposta: ele já havia sumido). Vidros, janelas, bancos fo-
ram quebrados e arrancados, amontoados dentro dos vagões e
incendiados. Parte da multidão seguiu para a estação, de onde
expulsou os funcionários da bilheteria, arrancando depois mó-
veis e telefones dos lugares, e atirando-os sobre a linha. De um
telefone público, numa rua próxima, aos berros, um funcioná-
rio da estação (que um usuário viu e preferiu ignorar), gordo
e careca, e de camisa aberta ao peito (onde se podia ver uma
guia de Ogum), gritava para o Serviço de Segurança da Central:
– Começou tudo outra vez! Começou tudo outra vez!
Um artigo sob a retranca “Ensaios Populares” saía em defesa dos direi-
tos da mulher. Discutia a revisão do código civil, feita sem amplo debate
e com participação popular zero, cujo resultado mantinha, por exemplo,
a preponderância do homem sobre a mulher nas questões de família. O
título: “Por que o marido?”.
À página 5, “A esfinge chamada distensão” era a abertura de uma ma-
téria sobre a conjuntura política, de duas páginas, não assinada. Para o
jornal, o MDB, por acreditar na política de distensão, havia ficado per-
plexo com o fato de o general Geisel haver usado o AI-5 para cassar o
mandato do senador Wilson Campos, do partido do governo, acusado de
corrupção, o qual o Senado havia recusado cassar. A matéria dizia que o
MDB não havia decifrado a esfinge que era a política da
distensão, e que ela, agora, o devorava. A distensão era, afinal,
a esfinge política que permitia sempre achar que a intenção do
5 Relatório aos acionistas nº 2, outubro de 1975. Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão.
6 Entrevista de Antonio Carlos Tonico Ferreira em 22 de outubro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

governo é a melhor possível, que sempre ele adotou uma opção


em vista de outra pior que poderia ter acontecido.
Assinada por Bernardo Kucinski, uma longa matéria trazia questões
incômodas em contraposição ao “aplauso geral” sobre o acordo nuclear
Brasil-Alemanha, tanto da oposição quanto da situação. Para o jornalista,
o sigilo nas negociações levantava dúvida sobre a seriedade da coleta de
informações, já que os maiores especialistas do Brasil não haviam sido
consultados. O fato de que os reatores importados da Alemanha traziam
tecnologia da americana Westinghouse mostraria “os limites do rompi-
mento” com os interesses norte-americanos. Além disso, a matéria estam-
pava uma declaração do ministro alemão de tecnologia e pesquisa con-
tradizendo o governo brasileiro: mesmo que não houvesse excedente de
urânio, o Brasil teria que assegurar fornecimento à Alemanha.
E havia muito mais: denúncias de corrupção, de fraudes da multina-
cional Esso na venda de combustíveis, uma grande matéria sobre greves
operárias na Argentina; a editoria de Cultura trazia o artigo “O nascimento
de um regime”, de Paulo Sérgio Pinheiro, em que, utilizando referências
de livros como 1964: Golpe ou contra golpe?, de Helio Silva, O governo
Castelo Branco, de Luis Viana Filho, e outros, fazia um estudo sobre a
origem da ditadura militar. Na página seguinte, uma resenha do livro A
revolução dos bandidos, de Eric Hobsbawn. Nas últimas páginas, 23 e 24,
contos de Hermilo Borba Filho e Moacyr Scliar.
Mesmo mutilado, o novo semanário trazia novidades e, sobretudo, um
novo ângulo de observação da realidade para o leitor. Estimulava o debate
político, a reflexão. Apesar do seu poder de retaliação, a censura havia
deixado passar textos importantes. Sinal de que o governo já não podia
fazer tudo que queria e que um jornal como Movimento tinha respaldo em
setores significativos da sociedade.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição número 9, 1º de setembro de 1975.


Desenho de Jayme Leão

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2
Movimento
nasce de Opinião

C
ada redator, cada colaborador de Movimento chegou ao jor-
nal por seu caminho pessoal e na certa o vê como uma passa-
gem: não sendo como um castelo, de pedra e argamassa, que se
constrói para ser eterno, um jornal é talvez como uma viagem.
Assim começava o texto “Nasce um Jornal”, publicado no
“número zero” de Movimento, na verdade, uma peça de propaganda na
forma de uma edição preliminar de oito páginas em formato tabloide, com
70 mil exemplares de tiragem, destinada a conquistar acionistas e leitores.
O objetivo, concretizar o projeto de um “jornal feito por uma empresa de
jornalistas” que acreditavam que sua tarefa profissional era “não apenas
descrever o mundo, mas ajudar a transformá-lo”.
Escrevendo na primeira pessoa do singular, o editor-chefe Raimundo
Rodrigues Pereira explicava ao longo do editorial como, onde e por que
nasceu a ideia de um jornal independente:
Para mim, a viagem começa em 1968, o ano das agitações de
maio da França, da invasão da Checoslováquia, da ofensiva do
Tet no Vietnã do Sul e do Ato Institucional nº 5 e do fechamen-
to do Congresso, no Brasil. Em 1968, no jornalismo brasileiro
estava se fazendo a equipe de Veja e se desfazendo a equipe da
Realidade (...) O fim da primeira equipe de Realidade se devia
a um desses dilemas a que sistematicamente chega uma equi-
pe que cria um jornal para uma empresa e que, com o passar
do tempo, e com o sucesso da publicação, começa a acreditar
que a publicação é dela, não do dono. O resultado da crise foi
que a equipe saiu e o dono ficou.
Na época, Realidade era a principal referência do bom jornalismo brasi-
leiro, não apenas por suas reportagens, que desnudavam o País da ditadu-
ra militar, mas também pelo brilho e independência de sua redação, que
se demitiu quando a interferência do patrão na vida da revista se tornou
incontornável. Em parte, foi a partir da experiência em Realidade que
nasceu o sonho do “jornal dos jornalistas”, das publicações sem patrão.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Raimundo Pereira em 1968 estava na revista Veja. Saiu em 1970, quando


sentiu que não tinha mais condições de continuar seu trabalho. Em 1971 e
1972, comandou as edições especiais “Amazônia” e “Cidades” da revista
Realidade. Nesse período, remanescentes da antiga equipe de Realidade,
alimentando o desejo de autonomia, haviam criado a editora Arte &
Comunicação, que fazia revistas independentes, Bondinho, Jornalivro,
Grilo. Colaborador marginal dessa experiência, Raimundo imaginava a
possibilidade de se fazer um jornal político junto ao pessoal da A&C.
No final de 1971 um grupo de editores e ex-editores da revis-
ta Realidade estava reunido em torno de um “boneco” (projeto
gráfico) de Assuntos, uma publicação independente, a ser fi-
nanciada em parte por seus editores. No grupo estavam quatro
dos futuros editores de Movimento: Elifas Andreato, editor de
arte da Abril Cultural, Dirceu Brisola, editor assistente de Veja
no setor de política nacional, Antonio Carlos Ferreira (Tonico),
jornalista e arquiteto, e eu.
Os quatro citados pelo editor-chefe faziam parte de um grupo maior,
que incluía Eurico Andrade, repórter da equipe pioneira de Realidade,
Dorrit Harazin, repórter da revista Veja, e Matias Molina, jornalista de
Economia da Editora Abril. Juntos haviam concebido “Assuntos”, que
Eurico Andrade imaginava como uma publicação de cunho político, um
“Le Mondinho”, como dizia, referindo-se a uma combinação do “jornal
dos jornalistas” dos franceses, o Le Monde, com o Bondinho dos brasilei-
ros. Os dois grupos não chegaram a um acordo, a A&C faliu e a ideia ficou
à espera de outras oportunidades.
Bernardo Kucinski, então amigo próximo de Raimundo, havia ido morar
em Londres, onde conheceu o empresário Fernando Gasparian. Este tam-
bém estava morando na capital inglesa, numa espécie de exílio, depois
que seu amigo Rubens Paiva fora assassinado pela ditadura e ele mesmo
sofrera ameaças de atentados. O empresário nacionalista queria fazer um
jornal político no Rio de Janeiro. Kucinski mostrou-lhe um exemplar da
edição do quarto aniversário de Veja, produzida por Raimundo a convi-
te de Mino Carta, editor-chefe da revista, que, na apresentação, cobria
Raimundo de elogios. Bernardo sugeriu que este fosse o editor do novo
jornal. Gasparian reagiu positivamente.
A reação do grupo de Assuntos à proposta de Gasparian foi descrita de-
talhadamente no texto de Raimundo no número zero de Movimento:
Bernardo me indicou para editor de Opinião, que era então
uma espécie de The New Statesman brasileiro na cabeça de
Fernando Gasparian; o grupo que pensava em Assuntos viu no
convite boa oportunidade. O sentimento geral (...) era mais ou
menos o seguinte: sentia-se um certo cansaço do jornalismo de
grande empresa; acreditava-se que a tarefa do jornalista não é
apenas a de descrever o mundo, mas de ajudar a transformá-lo;
e que as grandes empresas jornalísticas tinham se acomodado

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Movimento nasce de Opinião

a uma situação de censura progressiva que vinha asfixiando a


imprensa brasileira há algum tempo.
Mas havia obstáculos para um acordo com o empresário:
O projeto de Opinião se atrasou um mês porque nós insis-
tíamos em ter uma forma de assegurar a presença da redação
em todas as decisões. Se queria ter pelo menos 49% das ações
da empresa (...). Gasparian disse que não acreditava na possi-
bilidade de sobrevivência de uma empresa que tivesse como
donos muitos jornalistas. Garantiu que o fato de ele ter a pro-
priedade jurídica de Opinião não significava que fosse dono
das ideias do jornal. Concordou em fazer Opinião como um
jornal que fosse propriedade intelectual de todos que o fizes-
sem. Mas queria ter toda a propriedade jurídica.
A busca de alternativa foi infrutífera, prossegue o texto:
O grupo de Assuntos julgou que aquelas declarações não
eram suficientes. Passou um mês procurando nova forma de
capitalizar seu projeto. Não conseguiu; então tornou a procu-
rar Gasparian.
Decidimos fazer Opinião nas bases propostas por Gasparian,
para formar uma equipe e adquirir experiência até onde fosse
possível. Depois, se a experiência fosse interrompida – uma
possibilidade que já se antevia pelo fato de a redação não ter
nenhum mecanismo de controle sobre o jornal – prosseguir
com o projeto de ter uma empresa jornalística onde as pessoas
que escrevessem, de fato e de direito, ou seja, também juridica-
mente, tivessem o poder de decisão para garantir a observação
de suas idéias.
Opinião foi lançado em 23 de outubro de 1972, num coquetel ao qual
Raimundo não compareceu, desagradando Gasparian logo de cara. “Eu
era muito purista, foi uma bobagem”, reconheceu o jornalista depois. O
jornal foi pioneiro por se apresentar abertamente de oposição à ditadura,
embora fortemente censurado, além de ser um exemplo de respeito à in-
dependência da redação. Como Raimundo reconheceu no texto do núme-
ro zero de Movimento:
Durante os 121 números em que a equipe de jornalis-
tas que se organizou em torno daqueles editores do projeto
de Assuntos esteve em Opinião, os termos do acordo com
Fernando Gasparian foram cumpridos: o dono do jornal não
foi simultaneamente o dono das suas idéias, mas concordou,
ele também, em submeter à discussão da redação suas ideias
e editoriais.
Até que sobreveio a demissão do editor.
O sonho do jornal independente esteve todo tempo vivo na redação de
Opinião como se percebe em uma entrevista concedida por Raimundo, às

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Jornal Movimento, uma reportagem

vésperas do lançamento de Movimento, para outro jornal independente,


o Ex, quando fez um balanço do desempenho de sua equipe em Opinião:
A principal coisa: nós desmentimos a grande imprensa. A
primeira fase de Opinião foi a fase de demonstrar o que as
grandes publicações não faziam, porque tinham escolhido a
estratégia da adesão. Afinal é um jornal feito com 300 mil cru-
zeiros (capital inicial, equivalente a 916 mil reais de 20111) e
que colocou a política em primeiro lugar. E só porque para lá
convergiam alguns jornalistas independentes, mais uma série
de intelectuais que não tinham outro lugar para escrever, em
pouco tempo Opinião estava concorrendo nas bancas com as
grandes publicações.
O novo semanário foi um sucesso de vendas, segundo a entrevista:
Opinião, até o número 24, foi de 28 mil pra perto de 38 mil
exemplares vendidos. Veja estava vendendo pouco mais de 40
mil nas bancas, e Visão, nas bancas, vendia perto de 10 mil.
A redação do Opinião chegou a ser uma das maiores do País,
em termos de esforços mobilizados a favor dela. Fora do País,
era um negócio maior ainda: tinha o Robert Kennedy mandan-
do entrevistas, tinha essas grandes publicações estrangeiras
cedendo direitos pro Opinião só porque o Opinião resistia à
censura.
Raimundo concluía com uma avaliação positiva: “Fizemos 121 edições
em 2 anos e três meses, mais 2 meses de preparação. Total de 2 anos e
meio de trabalho no Opinião. Mais ou menos o tempo que durou a equipe
de Realidade, um grande tempo.”2

A POLÊMICA DA DEMISSÃO
No dia 18 de fevereiro de 1975, Fernando Gasparian havia demitido o editor-
chefe Raimundo Pereira, alegando “problemas pessoais”, como reafirmaria
na nota publicada na edição 122 de Opinião, na semana seguinte. A reda-
ção, que havia participado da fundação do semanário e contribuído para seu
indiscutível sucesso, considerou a atitude incompatível com os princípios
do jornal e a grande maioria se demitiu, sem deixar de fornecer sua própria
versão do episódio: em uma nota lida na Associação Brasileira de Imprensa
(ABI), a equipe insistia no conteúdo político da demissão em um momento
delicado, quando se discutia o significado da distensão prometida pelo pre-
sidente Ernesto Geisel.3
1 Atualização por índice do IGP-DI FGV.
2 Entrevista de Raimundo Pereira ao Ex-12 em 12 de maio de 1975.
3 Nota de Gasparian, edição 122 de Opinião, 7 de março de 1975:
“Substituição
A direção de Opinião decidiu substituir o editor do jornal, o sr. Raimundo Rodrigues Pereira, e foi
surpreendida com a demissão coletiva da redação. As razões da substituição do editor estão
relacionadas unicamente a problemas de gestão interna do jornal.
Opinião representa um estilo de jornalismo íntegro e independente que não se baseia apenas na
linha de coerência política e nos princípios profissionais da direção ou da redação. É um jornal

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Movimento nasce de Opinião

Alguns episódios vinham desgastando as relações entre Gasparian e o


editor-chefe. Um exemplo foi a matéria publicada em dezembro do ano
anterior na seção de política, como parte de um conjunto de perfis dos
deputados do MDB eleitos em novembro. O texto relatava que o deputa-
do Marcos Tito, do MDB mineiro, havia feito campanha se apresentando
como “autêntico” e depois de eleito recusou essa condição, decepcionan-
do os estudantes que o haviam apoiado. Gasparian não costumava interfe-
rir no trabalho editorial, mas considerou a matéria uma provocação (a re-
dação não sabia, mas ele dera apoio material à campanha de Marcos Tito)
e exigiu que o responsável, Luiz Bernardes, da sucursal de Belo Horizonte,
fosse demitido. Raimundo foi investigar os fatos e concluiu que Bernardes
havia escrito a nota “jornalisticamente” e se recusou a demiti-lo.
Outro episódio desgastante: o governo não se limitava à censura para
tentar inviabilizar Opinião. Fernando Gasparian aprendeu isso quando
se deu conta de que estava sendo de diversas maneiras boicotado pelo
governo. Ficou indignado quando bancos oficiais como o Banco do Brasil
recusaram-se a aceitar duplicatas da Editora Inúbia, que editava o jornal.
Acabou por apelar para José Aparecido, que era representante do banquei-
ro e senador Magalhães Pinto, presidente da Arena, o partido do governo
e um dos líderes destacados do regime. Ele era dono do Banco Nacional e
foi por meio dessas relações pessoais que Gasparian conseguiu descontar
suas duplicatas. Uma crítica feita pelos jornalistas de Opinião a Magalhães
Pinto (sua cabeça teria a forma de um joelho) pode ter colocado Gasparian
em dificuldades com o seu único banqueiro.
que não comporta personalismos: o penhor de sua posição está enraizado no público a que serve
e na independência e firmeza política dos seus colaboradores.
A nova redação continuará, portanto, junto com os colaboradores e a direção, a servir seu público
e abrigar nas páginas de Opinião as análises daqueles que lutam com intransigência pelas
liberdades democráticas e por melhores condições de vida para o povo brasileiro. Esses
princípios, que são inseparáveis de uma linha coerente de independência na defesa sem va-
cilações dos interesses nacionais frente à dependência estrangeira e da luta em benefício do
povo contra a desigualdade social e econômica, constituem a razão de ser do nosso jornal.
Apesar das divergências, a direção de Opinião agradece o muito que todos os jornalistas,
que ora o deixam, fizeram pelo jornal e por nossa luta comum com seriedade, competência,
dedicação e firmeza. Espera continuar a contar com sua ativa solidariedade na batalha que o
jornal prosseguirá travando. Por outro lado, dispõe-se a apoiar a publicação que eventualmente
venham a fundar, esperando que esta se paute pelos mesmos princípios que têm norteado este
jornal, como fará com qualquer publicação capaz de ampliar a trincheira que Opinião estabele-
ceu e manterá”.

MANIFESTO DOS JORNALISTAS DEMISSIONÁRIOS:


“Aos leitores do Opinião e aos Jornalistas, Rio de Janeiro, 28-02-1975. O proprietário jurídico do
jornal não é, simultaneamente, o dono de seu pensamento e orientação, mas concorda, também,
em submeter à discussão suas sugestões editoriais (...) foram esse princípios de funcionamento
democrático que possibilitaram ao jornal superar suas diversas crises e inclusive se fortalecer
(...)
No dia 18 passado, contudo, Fernando Gasparian comunicou ao editor Raimundo Rodrigues
Pereira a decisão de afastá-lo do jornal. A posição irredutível do proprietário (...) sem aceitar
as várias propostas de mediação que lhe foram oferecidas, inclusive a criação de um conselho
editorial ao qual um alegado personalismo do editor ficasse subordinado, implicava (...) no
rompimento da prática democrática do jornal. Em vista disso, a redação resolveu se afastar
coletivamente de Opinião, com o propósito de constituir um novo jornal que abrigue as amplas
correntes de opinião que compõem as forças democráticas do País...” (Citado em Jornalistas e
revolucionários, Kucinski, Bernardo. 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 2003.)
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Jornal Movimento, uma reportagem

“FOI A QUESTÃO DO GEISEL”


O texto de Raimundo no número zero de Movimento citava sete incidentes
entre o dono do jornal e ele. Mas antes sempre haviam chegado a um acordo,
quase sempre intermediado por amigos de Gasparian e colaboradores como
o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, e um editor da Editora Abril, Pe-
dro Paulo Popovic. Algumas vezes, a redação assumia o erro, como ocorreu
quando uma matéria sobre um show de Chico Buarque e Caetano Veloso
reproduziu palavrões ditos pelos artistas. “Nós vamos ser fechados por ter
publicado um palavrão, isso é um absurdo!”, reagiu Gasparian. Às vezes
era Gasparian quem cedia, como aconteceu quando pediu a Raimundo para
ler as matérias antes de serem publicadas. “Respondi: ‘Então você põe outro
editor, porque esse é o meu papel’, e ele voltou atrás”, lembra Raimundo.4
Para o ex-editor-chefe de Opinião, porém, não foram esses incidentes
que provocaram a demissão. Gasparian sabia que todos, inclusive os mi-
litares, o consideravam pessoalmente responsável pelo que era publicado
no jornal, mesmo quando estava em desacordo com a redação, como ocor-
ria frequentemente quando o tema era a distensão promovida por Geisel:
“A briga mesmo foi a questão do Geisel, que Gasparian dizia ser na-
cionalista, e nossa postura colocando em dúvida a distensão prometida
por ele”, opina Raimundo. “Nós fizemos duas matérias bem fortes para
mostrar quem era Geisel de fato: uma, dos votos de Geisel quando era
ministro no Superior Tribunal Militar (STM), e outra, sobre a política de
exploração de petróleo da Petrobras. E o Gasparian queria pôr anúncio da
Petrobras de graça no Opinião!”, lembra o ex-editor-chefe.
Nós não tínhamos a menor dúvida do caráter político da de-
missão, porque não estávamos fazendo isso de ingênuos.
Tínhamos uma posição política, estávamos disputando a
orientação do jornal. Chegamos a dizer: “Nós também somos
donos do jornal”, o que é uma ficção mas também tem a ver.
O jornal não saiu daquele jeito da cabeça do Gasparian. Foi
resultado de uma mobilização mais ampla, onde ele teve um
papel ultraimportante como criador do jornal, com o peso de
seu nome, trazendo as grandes figuras que deram prestígio ao
jornal.5
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso lembra hoje que tentou in-
terceder:
Eu sempre fui contrário ao divisionismo. (...) Tem que jun-
tar, sempre foi a minha opinião, na vida, tem que agregar, não
separar. Mas é muito difícil, porque ali tinham concepções po-
líticas diferentes. Na verdade, o Opinião, na medida em que
o Gasparian tinha influência, era um jornal mais nacionalis-
ta e mais interessado na questão institucional; enquanto que
o Movimento era muito mais de participação ampliada, mais
4 Entrevista de Raimundo Rodrigues Pereira em 9 outubro de 2009.
5 Entrevista citada.

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Movimento nasce de Opinião

popular, essa coisa toda, e a questão nacional não era tão dra-
mática quanto a questão social. Mas todos estavam no mesmo
lado, estou dizendo aqui nuances.6

AINDA A DEMISSÃO
O momento era delicado também para a redação de Opinião, traumatizada
por deixar o jornal, como lembra Flávio de Carvalho, que foi editor de Inter-
nacional do semanário.
O Raimundo chegou na redação e disse: “Acabou”. Foi uma
grande comoção... Estava terminando uma coisa em que todo
mundo estava investindo, virava a noite fazendo o jornal, en-
frentava a censura, era um sacrifício danado. Aquilo era a vida
de todo mundo, a gente morava no Rio e ninguém ia à praia, o
máximo de farra era comer pizza no (restaurante) Guanabara.
Mas ali mesmo, já naquela reunião, combinamos que íamos
tentar fazer outro jornal, em São Paulo.7
Além de superar o trauma e enfrentar a aventura de fazer um novo
jornal sem os recursos financeiros e o respaldo político e intelectual de
Gasparian, a redação enfrentava críticas de que estaria dividindo o movi-
mento de resistência à ditadura.
Na entrevista citada, Fernando Henrique Cardoso lembrou: “No primei-
ro momento, fiquei contra dividir. Pra que dividir?” Ele achava que po-
dia pôr em risco o Opinião e não conseguir concretizar uma alternativa.
“(Poderia) ficar sem instrumento, sem a força do Opinião. Ficar sem um
instrumento qualquer. Mas depois, dado que era inevitável, fiquei nos
dois. Fui do conselho dos dois, escrevia nos dois...”
Daí a preocupação de Raimundo no texto do número zero de Movimento
em demonstrar que haviam feito tudo o que podiam para reverter a deci-
são de Gasparian – “as discussões com Gasparian se prolongaram ao longo
de vários dias” – e que as previsões de FHC não se confirmariam:
A possibilidade de transformar a crise em um acontecimen-
to criativo para o País surgiu quando nós decidimos fazer
Movimento e, além disso, quando a maioria da equipe se con-
venceu de que, a despeito de o dono do jornal ter tomado uma
decisão fundamentalmente errada, se devia lutar por Opinião,
ajudando-o a conservar princípios duramente conquistados.
Raimundo repetiu em entrevista em outubro de 2009 que a redação fez
tudo o que pôde para manter-se em Opinião, oferecendo primeiro a possi-
bilidade de formar uma comissão para editar o jornal e depois outro nome
do time para substituir o editor-chefe:
Eu estou quase certo que houve até o seguinte: o cara de
quem o Gasparian gostava pessoalmente era o Marcos Gomes
(...). Eu já sou meio avacalhado hoje, se vocês me vissem na
6 Entrevista de Fernando Henrique Cardoso em 10 de fevereiro de 2010.
7 Entrevista de Flávio de Carvalho em 5 de novembro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem Um jornal nasce de outro

época, eu ia com uma bermuda, dormia no meio da minha sala


com uma lauda com um buraco para deixar o nariz pra fora...
E o Marcos estava sempre bem vestido, era um sujeito muito
mais político, tinha sido dirigente da UNE, tinha política na
cabeça, conversava muito com o Gasparian. Já nós éramos jor-
nalistas e, assim, tinha uma coisa meio liberal anarquista, né?
Marcos Gomes opina que a diferença se dava
primeiro talvez por minha experiência política. Eu, ainda que
fosse uma pessoa muito jovem, o via (Gasparian) claramente
como um aliado. E eu não estava a fim de escandalizá-lo de
nenhuma maneira. Quer dizer, era um escândalo para ele o
Raimundo ir para a redação de bermuda, toda esfiapada (...)
Então, eu tinha uma boa interlocução com ele. Uma interlocu-
ção educada, desde cumprimentá-lo.
Luis Marcos Magalhães Gomes, então com 27 anos, de fato, já acumu-
lara considerável experiência política. Havia tido intensa militância no
movimento estudantil em Belo Horizonte. Foi eleito vice-presidente da
UNE em 1966. Entrou para Ação Popular (AP), se deslocou para o meio
operário, participou da organização das greves dos metalúrgicos de 1968
em Minas Gerais escrevendo jornais para os operários. Preso diversas ve-
zes, transferiu-se para São Paulo, onde participou da direção regional da
AP. Preso outra vez em 1969, acusado em 22 processos, condenado a uma
pena de 4 anos, foi cumpri-la no presídio Tiradentes. Teve sua pena redu-
zida e foi libertado após 20 meses, em setembro de 1971. Ao sair, vigiado
pelos órgãos de repressão, encontrou dificuldades para retomar a militân-
cia em Ação Popular, foi trabalhar como redator em uma agência de pu-
blicidade no Rio de Janeiro. Em 1972, seu irmão Frederico o apresentou
a Raimundo Pereira, que o convidou para trabalhar em Opinião. Junto
com Raimundo e Tonico, ele iria formar o trio de jornalistas que “tocava”
o dia a dia na redação. Raimundo declarou em entrevista que Marcos “foi
muito importante em Opinião no enfoque político mais adequado para as
matérias, na definição das pautas e nos entendimentos com Gasparian”.8
Sobre os motivos para a demissão de Raimundo, Marcos sugere:
Acho que foram as duas coisas, ele (Gasparian) foi se irri-
tando com a relação e também houve a questão da conjuntura
política. O País marchando com o Geisel, o jornal numa situa-
ção financeira complicada. Acho que ele não via ali sobretudo
a flexibilidade que ele estava buscando. E, quando ele propôs
aquela história de publicar anúncios gratuitos da Petrobras,
a redação não topou. Quer dizer, você está ali naquela resis-
tência desgraçada, fizemos aquelas matérias sobre o governo
Geisel, pegamos todos os votos dele (no STM), o cara só votava
contra todo mundo. Chamar o cara de democrata nacionalista
era só o que nos faltava. A redação se rebelou.
8 Entrevista de Raimundo Pereira em 9 de outubro de 2009.

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Movimento nasce de Opinião

Gasparian achou que Marcos podia substituir Raimundo:


Então, Gasparian conversou comigo: “Mas por que só pode
ser o Raimundo? Por que você, por exemplo, não pode editar
o jornal?”
Eu falei: “Fernando, você não conhece a redação que traba-
lha com você, porque ninguém aqui vai se dispor a substituir
o Raimundo. Tem unidade tranquila em torno disso, se você
vier com essa proposta, vai ser um desastre. Não tem a menor
possibilidade de eu substituir o Raimundo.9
Com a saída de Raimundo e da equipe, Opinião passou a ser editado
pelo jornalista Argemiro Ferreira, que permaneceu no cargo até junho de
1976. Foi sucedido pelo próprio Gasparian, que assumiu o comando da
redação e nele se manteve até abril de 1977, quando decidiu fechar o jor-
nal, por não suportar mais a censura implacável e o boicote financeiro.

9 Entrevista de Marcos Gomes em 30 de janeiro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Expediente e equipe, na primeira edição, em 7 de julho de 1975

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3
O jornal dos
jornalistas

N
o calor da hora da saída coletiva de Opinião, houve con-
senso de que era possível fazer um novo jornal, um jornal
sem um empresário patrão, um “jornal dos jornalistas”. O
primeiro problema era o dinheiro. Sem um patrão, de onde
o dinheiro viria?
Uma solução provisória foi dada pelos amigos de Raimundo, engenhei-
ros, expurgados como ele do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA),
após o golpe militar em 1964, que moravam no Rio de Janeiro, e com os
quais tinha laços políticos e de amizade que atravessariam anos (no final
de 2008, quarenta e quatro anos depois da data em que deveriam ter se
formado, eles foram finalmente anistiados e receberam diplomas de en-
genheiros honorários da escola). Frederico Magalhães Gomes, irmão de
Marcos Gomes, Raymundo Theodoro de Oliveira, que seria depois depu-
tado estadual no Rio, Gilcio Martins, engenheiro da Digital, Ezequiel Dias,
engenheiro do Serpro, serviço federal de processamento de dados, João
Lizardo e outros amigos se cotizaram e levantaram recursos para manter
por três meses Raimundo, Tonico e Marcos representantes do grupo em-
penhado no esforço de articular o novo jornal.
Essa foi a parte mais fácil. Difícil, aliás, impossível, foi obter um con-
senso entre o pessoal da redação, agora todos desempregados, quanto ao
caminho a ser seguido. Foi um processo complicado, detalhadamente
descrito em “Nasce um Jornal”, publicado no número zero:
Fernando Gasparian costumava dizer que se discutia demais
em Opinião e, a certa altura, os fatos pareciam concordar com
ele: a redação levou uma semana para dar o primeiro passo
que lhe permitiria sair democraticamente de Opinião para
Movimento – a nomeação de uma comissão que representasse
todas as tendências dentro do jornal e que tivesse poderes para
decidir tudo, especialmente quem seria o editor geral e como
ele se relacionaria com os editores – questões centrais do po-
der dentro de uma redação.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Surgiu uma divisão dentro da equipe. Lembra Raimundo:


Houve uma disputa interna para ver quem representava a re-
dação de Opinião, que ganhamos. Mas não de imediato. A tur-
ma do Montenegro (Júlio César Montenegro, editor de Cultura
de Opinião) achava que tinha de ter uma representação maior.
Para isso, queria que o fórum para discutir as questões fosse
apenas a redação. Nós dissemos que não. Que o certo era ter
uma comissão que representasse não só a redação profissio-
nalizada, mas toda a redação solidária que existia em torno,
os colaboradores regulares. Nós ganhamos essa discussão e aí
entrou na equipe o Maurício Azedo (colaborador na área de
esportes; em 2010, era presidente da Associação Brasileira de
Imprensa), entrou Aguinaldo Silva (colaborador em assuntos
de polícia, novelista da Globo em 2010), entraram Jean-Claude
Bernardet (crítico de cinema), Nelson Werneck Sodré (histo-
riador), Chico de Oliveira (sociólogo), Fernando Peixoto (di-
retor e crítico teatral). A comissão ficou formada então por 16
pessoas e nela os dissidentes liderados pelo Montenegro fica-
ram com cinco votos.
Foi-se, então, para a segunda discussão. A grande disputa foi
essa: o Montenegro defendia a tese extravagante de que cada
editor deveria fechar a sua parte, o editor-chefe só poderia ler
as matérias depois de publicadas.
A posição do grupo de Raimundo – que achava necessário “um jornal
mais centralizado” em que “o editor poderia ler e vetar as matérias dos
vários editores de seção antes de elas serem publicadas”1 – ganhou na
votação final por sete a seis. Apenas 13 dos 16 integrantes da comissão
estavam presentes na reunião. Cinco dos seis derrotados decidiram sair
do Conselho, como rememora Raimundo: “O Montenegro saiu, junto com
outros do seu grupo, como o Ronaldo Brito, nosso crítico de arte”.
Onze pessoas passaram então a representar o projeto do novo jornal:
Raimundo, Tonico, Marcos, Maurício Azedo, Jean-Claude Bernardet,
Aguinaldo Silva, Elifas Andreato, o editor de arte de Opinião, Bernardo
Kucinski, Fernando Peixoto, crítico de teatro, Chico de Oliveira e
Teodomiro Braga, um jovem repórter que viera de Minas para a redação
do Rio.
A terceira divergência na equipe surgiu quanto à atitude a tomar em
relação a Opinião e seu dono. Como diz Raimundo:
Havia um grupo mais amplo que o liderado por Montenegro
que queria brigar com o Gasparian. Entre eles, Bernardo
Kucinski (que era o correspondente de Opinião em Londres).
Ele defendia a tese de que a gente deveria entrar na Justiça
com uma reclamação trabalhista, visto que nossos salários
eram muito baixos. Mas isso não prosperou. Nós mesmos tí-
1 Entrevista de Raimundo Pereira em 23 de janeiro de 2010.

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O jornal dos jornalistas

nhamos optado por ter salários menores e uma equipe maior.


Gasparian, ao contrário, queria uma redação pequena e mais
bem paga. Acabamos aprovando a pacificação com Gasparian
por unanimidade.2
Na comissão dos 11 foram tomadas, então, as decisões mais políticas.
Foi escolhido um Conselho Editorial para o jornal, com figuras que o gru-
po considerava representativas do movimento democrático e popular bra-
sileiro, das diversas regiões do País e com ligações com a equipe. Foram
convidados e aceitaram fazer parte: o cantor e compositor Chico Buarque,
o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, o presidente do Sindicato dos
Jornalistas no Estado de São Paulo, Audálio Dantas, o indigenista Orlando
Villas-Boas, o escritor pernambucano Hermilo Borba Filho, o político e
intelectual gaúcho André Foster, e o pensador católico mineiro Edgar da
Mata Machado. A comissão dos 11 resolveu também selar a união que
de fato já existia com o grupo autêntico do MDB: Chico Pinto foi convi-
dado para fazer parte dela, assim ampliada para 12 pessoas e que viria a
constituir o Conselho de Redação. O deputado federal do Paraná, Alencar
Furtado, veio a ser o representante dos autênticos no Conselho Editorial.
Partiu-se, a seguir, para a definição mais precisa do programa do jornal.
Desde o início, o programa de Movimento tinha um caráter político explí-
cito, de oposição à ditadura, jornal popular, democrático, em defesa dos
interesses nacionais, o que iria caracterizar sua trajetória. Revendo isso
hoje, Fernando Henrique Cardoso lembra que todos os jornais têm pro-
grama, “mas não dizem”, isto é, fingem que são neutros. Para ele, ter um
programa explícito “naquele momento ajudava, porque era um momento
em que você tinha que dizer a que veio, botar as cartas na mesa.”3
O jornal se definia “pelas liberdades democráticas; pela melhoria da
qualidade de vida da população; contra a exploração do País por capitais
estrangeiros; pela divulgação da cultura popular; pela defesa dos recursos
naturais.” Esse programa teve sua formulação atribuída a Marcos Gomes.
Ele admite ter redigido esse texto, mas diz que não inventou nada, foi a
partir de um consenso existente na redação:
Surgiram aquelas discussões: “Qual é a nossa marca?”.
Então, foi uma coisa meio natural, que no jornal Opinião não
precisou. Porque só de o Gasparian querer fazer um jornal, já
era um negócio de oposição, não precisava de marca. Mas nós
estávamos saindo do jornal Opinião, que tinha uma história,
tinha prestígio, uma trajetória. Você podia perguntar: O que
nos diferencia? O que nos caracteriza? Então, acho que foi uma
coisa natural, também, tanto que foi amplamente aceita, não
gerou grandes discussões... O Bernardo Kucinski pôs lá uma
parte que falava da defesa dos direitos materiais e naturais,
que englobava a natureza. Então, aquilo foi uma coisa tranqui-
2 Idem.
3 Entrevista de Fernando Henrique Cardoso em 10 de fevereiro de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

la. (...) Uma plataforma democrática, das forças democráticas,


que já estava na nossa cabeça, incorporada. Eu ia inventar o
quê?4
Também por unanimidade decidiu-se que a empresa que faria Movimento
– Edição S/A – deveria ter sua propriedade dividida entre as pessoas que
o fizessem e que Raimundo deveria ser o primeiro editor, os próximos
seriam escolhidos pelo Conselho Editorial “a quem se delegaria poderes
de participar da escolha do editor de Movimento” – e pelo Conselho de
Redação.
A equipe havia decidido fazer a sede do novo jornal em São Paulo, em
vista de haver ali uma movimentação política mais dinâmica tanto da
intelectualidade como do movimento popular. Mas por onde começar a
organização do jornal? Marcos Gomes registra que naquele período ini-
cial o sociólogo Chico de Oliveira desempenhou um papel importante,
empenhando-se para a viabilização do projeto. Recorda Tonico Ferreira:
A gente estava perdidão, não ia conseguir tirar aquele jor-
nal, precisava de alguém com experiência administrativa. E
aí o Chico de Oliveira falou: “Tem um cara que vai resolver
o problema pra vocês (...) chama-se Sérgio Gordo”. E o Serjão
(Sergio Motta) era um administrador da melhor qualidade e
tinha uma estrutura na Hidrobrasileira. Ele tinha lá os conta-
dores, o Dillinger, que seria o contador do Movimento.
Com a ajuda de Sergio Motta se desenvolveu o plano de criar uma em-
presa, uma sociedade anônima, a qual iria arrecadar ações para formar o
capital inicial. Em março iniciou-se a campanha de venda de ações.
Por que as pessoas deveriam dar seu dinheiro para uma publicação de
responsabilidade dos próprios jornalistas se as experiências anteriores
(como a da Arte & Comunicação, que fez o Bondinho) haviam fracassa-
do e quem ajudou “perdeu” seu dinheiro? No texto de apresentação do
número zero de Movimento, essa questão mereceu explicações. Escreveu
Raimundo:
Não parece, à primeira vista, eficiente contar a história de
Movimento, um jornal a ser feito por uma empresa de jorna-
listas, a partir da história de A&C, uma empresa de jornalistas
que foi a uma falência comercialmente pouco gloriosa em cer-
ca de dois anos, com dívidas em torno de um ou dois pares de
milhões de cruzeiros. Acredito, porém, que se aprende a fazer
fazendo e a lição de A&C é uma fonte de conhecimento de va-
lor inestimável.
Um dos problemas de A&C, dizia Raimundo no número zero, era o de
não encarar adequadamente as questões empresariais: “Para mim, o fim
da experiência (de A&C) veio disso: se curtia a vida interna da empresa,
mas ela estava metida no “mundo mau” das empresas, onde ou se tem
lucro ou se vai à falência”.

4 Marcos Gomes, entrevista citada.

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O jornal dos jornalistas

De acordo com Marcos Gomes, a proposta do jornal, com seu amplo


programa democrático, era inteiramente adequada para aquele momento
político. Em resposta houve “uma adesão maciça, extraordinária, em toda
parte”, diz, registrando que essa ampla mobilização foi a marca distintiva
essencial entre Opinião e Movimento.
Gomes foi para Minas Gerais, onde tinha grande relacionamento, resul-
tado de sua militância anterior. Junto com Luiz Bernardes teve êxito em
obter apoio expressivo seja em termos de acionistas como de colaborado-
res. Tonico foi para São Paulo, onde tratou de iniciar a organização física
do jornal. Raimundo ficou viajando entre São Paulo e Rio e também apro-
fundando nos outros estados os contatos que Gomes e Bernardes tinham
feito anos antes em todo o País em suas militâncias itinerantes pela UNE
e a UBES, e que então haviam retomado.
Luiz Bernardes lembra que o apoio recebido dos jornalistas de São Paulo
foi notável. Participou de diversas visitas às redações de jornais e revistas
e ainda se admira do quanto era calorosa a recepção, ao mesmo tempo que
generosas as contribuições: “centenas se tornaram acionistas”. O mes-
mo entusiasmo se verificou entre professores, intelectuais, funcionários
de estatais e de grandes empresas: “aqueles que não podiam se tornar
acionistas por temerem ser alvos de represálias, compravam as ações e
as transferiam para nós, da equipe. Assim, eu, por exemplo, acabei sendo
titular de muitas ações em nome deles”, recorda.
Certamente, os acionistas de Movimento não tinham esperanças de obter
dividendos e lucros de suas ações. Eles estavam conscientes de que cola-
boravam para um projeto político que por meio do exercício do jornalis-
mo fosse um instrumento de apoio à democratização que a sociedade já
fermentava. Assim, Movimento nascia com uma ampla base social. Era o
“jornal dos jornalistas”, mas era mais que isso, era um projeto de oposição
à ditadura.
O projeto de Movimento também trazia uma inovação importante, o es-
paço dedicado às reportagens seria bem maior do que na publicação de
Gasparian, que enfatizava os artigos. Haveria uma ênfase mais forte nas
duas seções dedicadas a descrever as condições de vida da população:
“Cena Brasileira” e “Gente Brasileira”. Do texto do número zero:
Decidiu-se por unanimidade que se pretendia um jornal
mais popular e que, diante da impossibilidade de ser lido ou
mesmo comprado amplamente, por exemplo, por trabalhado-
res sindicalizados, falasse de temas que pudessem interessar a
esses trabalhadores e que tivesse uma linguagem que pudesse
ser entendida por eles (...). Disso decorreu uma preocupação
em Movimento em descrever as condições de vida das massas,
apresentar a cena brasileira, a gente brasileira.
No projeto Raimundo incluiu também uma seção de ensaios semanais,
os “Ensaios Populares”. Era algo como o Time Essay do semanário ameri-
cano Time. No seu entendimento era um lugar para difundir o pensamento

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Jornal Movimento, uma reportagem

mais elaborado da esquerda, a partir dos fatos do dia a dia. Posteriormente,


no modelo de semanário se incluiu também a seção Histórias Brasileiras,
para difundir a literatura nacional e os novos escritores.

UMA EQUIPE RESPEITÁVEL


Movimento teve uma direção editorial experiente, contou com uma admi-
nistração profissional competente, chefiada por Sergio Motta. E uma equi-
pe respeitável. No expediente do número um estão listadas, nas diversas
funções do semanário, cerca de 70 pessoas, entre funcionários de tempo
integral, com metade desse número, e colaboradores regulares nas várias
áreas. (na maior parte da vida do jornal, a equipe foi grande. Para se ter
ideia de seu tamanho e da folha de pagamento, ver Anexo 2, na página
320). A sede da empresa foi estabelecida em São Paulo, na rua Virgílio de
Carvalho Pinto, 625, bairro de Pinheiros, área central da cidade.
De acordo com o que fora decidido pelo Conselho de Redação, os edi-
tores das várias seções do semanário foram escolhidos por Raimundo.
Tonico Ferreira, obviamente, foi o secretário de Redação, como em
Opinião. Marcos Gomes não quis ir para São Paulo – ficou no Rio, onde se
criou uma sucursal e ele ficou, como editor especial. Teodomiro Braga, o
repórter revelação do Opinião, foi para Brasília, para garantir a cobertura
política e chefiar os trabalhos jornalísticos da sucursal, dirigida por Chico
Pinto, a grande referência política de Movimento. Para editor assistente de
política nacional, em São Paulo, Raimundo convidou Sérgio Buarque de
Gusmão, que conhecera em Belém, como correspondente de Veja, quando
fez Realidade Amazônia. Bernardo Kucinski ficou como editor especial
e de início cuidou das seções “Cena Brasileira” e “Gente Brasileira”. É
nessa seção que se vai revelar Murilo Carvalho, um jovem escritor saí-
do do ramo da publicidade que se tornaria o grande repórter nacional
do semanário. O editor internacional foi Flávio de Carvalho, o estudan-
te de Física que, junto com sua companheira, Cecília Magalhães, foi de
Belo Horizonte para o Rio trabalhar em Opinião. O casal acompanharia
a equipe na mudança para São Paulo. O editor de Economia foi Arlindo
Mungioli, que trabalhara com Raimundo na Folha da Tarde. O editor da
seção de Cultura e Comportamento foi Fernando Peixoto, o diretor teatral
que fora crítico de teatro de Opinião. Ele contava com dois editores assis-
tentes, Flávio Aguiar, gaúcho, professor de Literatura na Universidade de
São Paulo, e José Miguel Wisnik, professor e músico famoso. Entre os co-
laboradores e editores contribuintes mais conhecidos estavam os jornalis-
tas Dirceu Brizola, Aguinaldo Silva, Percival de Souza, Maurício Azedo,
Ricardo Kotscho, Carlos Alberto Sardenberg, Elmar Bones, Jefferson Rios
e personalidades como Nelson Werneck Sodré, Chico de Oliveira, Moniz
Bandeira e Fernando Henrique Cardoso. Na editoria de arte, como se verá
no capítulo cinco, sob a influência de Elifas Andreato, aparecia uma dúzia
de nomes de cartunistas, ilustradores e fotógrafos que ainda hoje fazem
parte do primeiro time da arte gráfica brasileira.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição número 75, 6 de dezembro de 1976.


Desenho de Jayme Leão

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4
Uma mobilização
nacional

M
ovimento existiu, de fato, em virtude de uma das mais
amplas mobilizações políticas daquele período. Diversos
setores da sociedade desde o início identificaram o jornal
como uma janela para o debate político e lhe deram res-
paldo, como os militantes e intelectuais de esquerda das
mais variadas tendências e partidos. Foi o caso também dos católicos mais
ligados à população pobre, aos movimentos eclesiais de base, com ação em
sindicatos de trabalhadores e movimentos de bairro, que, apoiados no jornal,
deram impulso à oposição sindical metalúrgica, ao Movimento do Custo de
Vida em São Paulo e aos movimentos em defesa dos trabalhadores rurais sem
terra, posseiros e índios. Bispos como dom Pedro Casaldáliga, de São Felix
do Araguaia, e Moacir Grecchi, da Pastoral da Terra, e outros, pelo País afora,
se tornaram interlocutores e bases de apoio do jornal.
O repórter Murilo Carvalho, que fazia as reportagens sobre a Cena
Brasileira, conta que em qualquer lugar a que chegasse pelo País afora
encontrava abrigo e apoio nas prelazias e missões católicas:
Qualquer lugar em que eu chegasse, por exemplo, na
Amazônia, havia sempre um grupo de 10, 12 pessoas que
eram distribuidoras do jornal Movimento (...) era assim em
tudo quanto é canto do País. Eu tenho amigos, que hoje são
sessentões como eu, que continuam me apoiando nos meus
trabalhos sociais. E a gente se encontra, temos contato com
uma certa frequência, na Bahia, no Amazonas, no Pará, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas, muita gente aí.1
O jornal foi utilizado como instrumento de debate pelo movimento estu-
dantil, pelos intelectuais de oposição e movimentos populares, nos vários es-
tados. Dessa mobilização iriam surgir as sucursais e uma rede de distribuição
do jornal por todo o País. O núcleo central das atividades do jornal sempre foi
São Paulo. Tanto o trabalho jornalístico como também as principais articula-
ções políticas se concentravam na capital paulista. Ali se davam as maiores

1 Entrevista de Murilo Carvalho em 14 de dezembro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

vendas, seja nas bancas como em assinaturas e ainda em venda direta, e ali
estava o maior grupo de acionistas. O apoio político era palpável e se eviden-
ciou nos momentos de dificuldades do jornal, que foram vários. Os apelos
da equipe receberam até o fim respostas positivas. Era grande o número de
colaboradores, vendedores, articulados por toda a capital e algumas cidades
vizinhas. Os estudantes estavam entre os mais participantes.
Paulo Barbosa, então estudante de Comunicação, foi um deles.
“Eu vi o número zero. Chegou lá na faculdade de Medicina da USP,
onde eu trabalhava, e achei muito interessante, essa coisa do jornal dos
jornalistas, que ia informar sobre a cultura e a situação do Brasil”.2 Paulo
foi procurar emprego no jornal, e acabou ajudando na administração, na
complicada logística da censura e também na área de vendas.
“O importante era fazer o jornal circular. A gente trabalhava com o maior
ânimo. Eu participava do movimento estudantil, tinha muitos conheci-
dos, então distribuía nas universidades, USP, PUC, na Cásper Líbero. E
sempre que tinha eventos também, teatros, shows, a gente ia na porta ven-
der”, diz Paulo. Luiz Bernardes conta que ele começou a participar desse
sistema de vendas ainda no tempo de Opinião, em Belo Horizonte:
Aí, começou essa coisa, da venda militante, da venda política, de usar o
jornal, o próprio conteúdo dele, mas também o processo de venda e distri-
buição como um processo de aglutinação política, parece que surgiu ali. O
jornal chegava, a gente passava ao DCE e os DAs3 vendiam imediatamente.
Esse hábito foi sendo criado. Essa foi uma experiência que acabou depois
sendo mais sistematizada no jornal Movimento.4
Bernardes havia sido militante político da Ação Popular no movimen-
to estudantil, ficara preso entre 1971 e 1972 no presídio Tiradentes, em
São Paulo. Ao sair, começou uma carreira de jornalista. Trabalhou numa
revista da editora Abril e no Diário de Minas em Belo Horizonte. Dali foi
para Opinião. Ficou algum tempo na sucursal, como redator, depois foi
chamado para o Rio de Janeiro para organizar o sistema de assinaturas.
Por que ele? Porque, em sua militância como dirigente da União Brasileira
de Estudantes Secundarístas, Ubes, havia viajado muito e feito contatos
políticos e amizades por todo o País. Por isso, logo no início do novo jor-
nal ele se transferiu para São Paulo, onde participou da primeira fase da
organização do departamento de vendas.
À sede do jornal em São Paulo se agregaram outros vendedores, mi-
litantes políticos recém-saídos das prisões. Antonio Neto Barbosa, mais
conhecido como Barbosinha, de Poços de Caldas, conterrâneo e amigo de
infância de Murilo Carvalho, era dirigente do PCdoB. Ao ser libertado,
foi morar na casa de Luiz Bernardes. Convidado por este, foi trabalhar no
jornal no departamento de vendas, em 1976. A maior parte dos militantes
do PCdoB que passou a colaborar com o jornal o fez no setor de vendas,
2 Entrevista de Paulo Barbosa em 17 de dezembro de 2009.
3 DCE – Diretório Central de Estudantes; DA – Diretório Acadêmico.
4 Entrevista de Luiz Bernardes em 30 de novembro de 2009.

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Uma mobilização nacional

como Barbosinha. Foi o caso de Amelinha Telles, que ficara três anos pre-
sa e procurava trabalho.“Eu tinha um marido preso e os filhos pequenos
que dependiam de mim”. Ela conta que suas companheiras do jornal fe-
minista Brasil Mulher a informaram que havia possibilidade de emprego
remunerado no jornal Movimento. “Eu conhecia o Barbosinha da prisão.
Aí, falei com ele e fui”.
Amelinha, que em 2010 continuava a ser uma militante em favor da inves-
tigação sobre os assassinatos e desaparecimentos praticados pela ditadura
militar, trabalhou no departamento de vendas do jornal entre 1976 e 1979.
Ela lembra que a sede era agitada dia e noite pelo movimento de estudantes
entrando e saindo. Muitos eram da faculdade de Medicina da USP, que ficava
perto dali: “Eles vinham tomar um café e conversar. Queriam levar o jornal
para vender na faculdade ou então acertar o que venderam... E sempre fala-
vam: ‘olha, essa capa ficou horrível, essa matéria está boa...’”.5
“Tinha estudantes que eram mais velhos e foram para a clandestinida-
de, estavam voltando, ou estavam na clandestinidade e viam que a gen-
te estava lá”, conta Amelinha, explicando que se tornou uma referência
para militantes do PCdoB que estavam desarticulados. “As vendas diretas
eram o termômetro do apoio da militância ao jornal”, explica Raimundo
Pereira. “A campanha de assinatura era permanente, ela dava sustentação
política. E a pessoa também emprestava seu nome, seu prestígio para di-
zer para ditadura: ‘Eu também leio o jornal Movimento, então, não mexa
com ele’”, completa Amelinha Telles, para quem os assinantes do jornal
merecem ser lembrados pela sua coragem e generosidade.
Na capital, havia uma articulação de cooperação e apoio com a opo-
sição sindical metalúrgica, ligada à Juventude Operária Católica (JOC) e
às Comunidades Eclesiais de Base. Através da JOC mais gente começou
a tomar contato com Movimento. Foi o caso de Sueli Freitas, que mora-
va na zona leste da cidade. Filha de imigrantes nordestinos, ela entrou
em contato com a JOC através do movimento comunitário do bairro de
Burgo Paulista. Ainda em 1976, Raimundo Pereira foi lá para apresentar
o projeto.“Me ofereci para ser o contato deles e vender o jornal”, lembra
Sueli, na época com 20 anos. “Eu ia até à redação para pegar os exempla-
res com o Barbosinha. Pegava três conduções até lá, e o dinheiro não dava
para absolutamente nada. Mas eu sentia que estava fazendo alguma coisa
importante, estava na resistência à ditadura”, conta.6
“Para mim foi uma abertura, um salto de consciência muito grande o de
tomar conhecimento do que estava acontecendo no País e no mundo. E
foi o jornal que fez isso”, lembra. Além de uma lista de contatos dada por
Barbosinha, Sueli vendia para amigos, o pessoal da JOC – que inclusive
fazia grupos de leitura das matérias – e ia aonde houvesse shows, grupos
de teatro e rodas de capoeira. Também entregava exemplares a uma freira,
que os revendia em Ermelino Matarazzo.

5 Entrevista de Amelia Telles em 5 de janeiro de 2010.


6 Entrevista de Sueli Freitas em 6 de janeiro de 2010

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Jornal Movimento, uma reportagem

Mas o engajamento como vendedora de Movimento acabou criando pro-


blemas com a família. “Uma bela noite cheguei em casa, meu pai estava no
quintal queimando uma pilha de exemplares (...) Meu pai disse: prefiro ver
você morta a comunista...”. Sueli passou a ser controlada pelo pai – teve até
que inventar um namorado falso para poder escapar de vez em quando e
seguir nas vendas. Quando completou 21 anos, ela decidiu mudar-se para
Recife. Levou na mala alguns contatos de colaboradores do jornal, e logo iria
se juntar ao grupo de apoio local. “Foi com o jornal Movimento debaixo do
braço que eu saí da casa dos meus pais e de São Paulo”, lembra.
O que aconteceu em São Paulo se repetiu, em escalas e formas diferen-
tes, por todas as regiões do País.

BRASÍLIA
Como o jornal surgiu depois de quatro meses de campanha em busca de
apoio por vários estados, ele já nasceu com uma abrangência nacional. A
representação de Movimento em Brasília foi uma das mais importantes.
Em 1975, quando o mineiro Teodomiro Braga chegou à capital, com 21
anos, ele estava praticamente isolado.
Eu era o único jornalista de oposição em Brasília. Era quase que
um leproso ali, porque havia uma acomodação ao regime militar
em todas as instituições. Então, tive dificuldades. Não consegui
credencial do Palácio, não consegui credencial da Câmara dos
Deputados, não consegui credencial do Senado, não consegui de
lugar nenhum. No começo, era uma dificuldade imensa para fazer
a cobertura, e a gente fazia um esforço enorme para ouvir todos
os lados, ouvir o governo, ouvir as autoridades, os ministros.7
Mas aos poucos foi sendo criada uma rede de contatos e de fontes de
informação. “Tínhamos um bom contato com os autênticos, um bom con-
tato com o MDB de modo geral, e tinha um grupo grande da Arena com
quem a gente conseguia falar, não era nem dissidência, era um pessoal da
Arena mais aberto”, diz Teodomiro.
Junto com ele trabalharam vários outros jornalistas, ao longo da história
do jornal: Fátima Murad, Jaime Sautchuk, Vera Lúcia Manzolillo, Antonio
Carlos Queiroz, Barbara Harz, Eduardo Neto, Carlos Alberto de Almeida.
Fátima Murad lembra:
A gente vivia no Congresso, vendia cotas, assinaturas, levanta-
va pautas... Me lembro uma vez eu vendi uma assinatura até para
o Jarbas Passarinho, ele me conhecia porque cobri o Ministério
da Educação quando estava na imprensa de Brasília, e me cha-
mava de “língua ferina”. Um dia, falei para o Teodomiro: “Você
quer ver eu vender uma assinatura do Movimento para o Jarbas
Passarinho?”. Ele falou: Eu duvido. Aí eu fui lá: Ah, senador que-
ria pedir um favor..., e ele: Não recusaria nada pra você... Depois
era engraçado ver o nome dele na lista de assinantes.8
7 Entrevista de Teodomiro Braga em 1º de dezembro de 2009.
8 Entrevista de Fátima Murad em 25 de janeiro de 2010.

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Uma mobilização nacional

O trabalho era animado: “A sucursal era muito interessante. Era fre-


quentada pela intelectualidade. Um negócio extremamente pujante, às
vezes era difícil trabalhar de tanta gente que ficava ali”, conta Antonio
Carlos Queiroz.9 Um dos frequentadores era Antonio Ibanez, professor
de Engenharia na Universidade de Brasília (UnB), que depois seria reitor
da escola. Outro, era Paulo Timm, economista do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada, Ipea.
“Paulo Timm nos abriu a porta do Ipea, que era um órgão de pensamento
do Brasil. Ele nos indicava as pessoas do Ipea para entrevista, dar infor-
mação, fazer análise de problemas do Brasil”, diz Teodomiro Braga. Não
só isso; Timm mantinha 40 assinaturas de Movimento em seu nome, que
recebia toda semana e depois redistribuía aos colegas do Instituto.
Quarenta economistas assinaram o jornal, porém não quiseram
fazer assinaturas no nome deles, com medo de retaliação do re-
gime. Isso aí era muito comum, nós não conseguíamos vender
mais assinatura porque as pessoas tinham medo. Ser assinante
do jornal era participar de uma lista de adversários do regime.
Uma ajuda fundamental vinha dos jornalistas da grande imprensa, como
Carlos Chagas, Zenaide Azeredo, Pompeu de Souza e vários outros, que com-
partilhavam informações e até materiais que não sairiam nos seus jornais.
O jornalista Carlos Alberto de Almeida era um dos estudantes da UnB que
colaboravam com o jornal. Ele era e continua a ser um militante trotskista
de linha posadista (tendência trotskista nacionalista criada pelo argentino J.
Posadas) que, em 2010 trabalhava como correspondente da TV Tele Sur no
Brasil e era editor na TV Senado. Beto Almeida, como é conhecido, lembra:
O jornal servia para os debates. Nós fazíamos, por exemplo,
aos sábados à tarde, seminários para discutir, na Faculdade de
Geologia, a questão mineral brasileira. Aí, levávamos as ma-
térias do jornal que tratavam disso. Por exemplo, nós parti-
cipamos ativamente do debate sobre a questão das indústrias
farmacêuticas, os laboratórios internacionais. (...) E o jornal
tinha todas essas matérias. O jornal, portanto, estava na mão
da gente o tempo inteiro. E o que nós fazíamos mais? A gente
usava o Movimento conscientemente para estimular, venden-
do assinatura, mas também debatendo. Os murais (na univer-
sidade) tinham o jornal Movimento.10
Um dos pontos fortes da sucursal de Brasília era o apoio dos deputados
“autênticos” do MDB e em especial a participação de Chico Pinto como
chefe da sucursal. Ao organizar Movimento, Raimundo Pereira havia ido
ao Pelotão de Investigações Criminais (PIC), quartel do Exército no Distrito
Federal, onde Chico Pinto estava preso após um contundente discurso contra
o ditador chileno general Pinochet, quando este veio ao Brasil, e que também
9 Entrevista de Antonio Carlos Queiroz em 24 de fevereiro de 2010.
10 Entrevista de Beto Almeida em 25 de fevereiro de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

havia lhe custado a cassação do mandato de deputado federal. “Chico era


muito carismático, era um aglutinador; as pessoas iam atrás dele. Trabalhava
de noite e dormia de dia”, lembra Teodomiro Braga. Antonio Carlos Queiroz
conta que ele “chegava na sucursal depois do almoço, banho tomado, fuma-
va uma piteira enorme e ficava mastigando drops Halls, e também gostava
demais da conta de Coca-Cola. Volta e meia, ele tinha também, para oferecer
aos visitantes, bombons. Era uma figura!”11
Chico Pinto estabeleceu, no mesmo décimo andar onde se localizava a
sucursal do jornal, no edifício Márcia Kubitschek, um instituto de pesqui-
sa que na verdade servia mais como espaço de reuniões e articulações dos
autênticos. Assim, os parlamentares visitavam a redação e, no mesmo cor-
redor, o instituto. E desse relacionamento saíram sugestões de matérias,
informações, fontes.
Alencar Furtado, o representante dos autênticos no Conselho Editorial,
avalia que “o jornal era uma válvula de escape para a gente, era um meio
de comunicação pequeno, um jornal modesto ainda, mas qualificado”. E
a contribuição dos autênticos era política:
Nós éramos sem tostão, essa é que é a verdade. Vivia empapa-
gaiado nos bancos. Mas a gente tinha uma tarefa diária muito
grande. Nós, por exemplo, nos multiplicávamos, éramos minoria
dentro do MDB. O grupo autêntico é que se virava para fazer opo-
sição, inclusive, para alimentar os jornais de notícias.12

RIO DE JANEIRO
A sucursal do Rio de Janeiro também nasceu junto com o jornal. “O nos-
so calcanhar de aquiles sempre foi o Rio”, avalia Marcos Gomes13, que
comandou a sucursal até meados de 1977, junto com Ricardo Bueno e
Genilson Cezar. Entretanto, alguns dos colaboradores cariocas seriam
fundamentais, chegando a se confundir com a história do jornal, como
Aguinaldo Silva, uma das “estrelas” do semanário. Outro foi o jornalista
Maurício Azedo, com textos brilhantes como o do casamento do futuro
presidente da República Fernando Collor de Melo, então um playboy bus-
cando ascensão social, com uma jovem da alta sociedade carioca, Lilibeth
Monteiro de Carvalho, herdeira de um sócio da Volkswagen e de mais de
uma dezena de indústrias.14
11 Entrevista de Antonio Carlos de Queiroz, citada.
12 Entrevista de Alencar Furtado em 25 de fevereiro de 2010.
13 Entrevista de Marcos Gomes em 30 de novembro de 2009.
14 “ Um Casamento inesquecível”, edição 17, pág. 9 – (...) Cita o cronista Zózimo Barrozo do
Amaral, que no estilo das histórias das mil e uma noites relatava assombrado: “além de dezenas
de perus, cascatas de lagostas, camarões, etc., havia uma mesa onde era possível ao comensal
escolher o queijo francês de sua preferência, já que se encontravam ali todos os tipos, marcas e
sabores mais conhecidos”. E o colunista Jacinto de Thormes, que escrevia: “desafio que na história
do Copacabana Palace, mesmo as festas ao Príncipe de Gales, aos reis de tantos reinados e artistas
de tantas coisas, não tenha acontecido algo tão próprio. (...) Foi o último e foi o primeiro. Não me
lembro de ter visto nada assim”. (...) Só um reparo foi feito à festa: o vestido da noiva tinha uma
etiqueta francesa de Scherr. Maria Claudia Bonfim manifestou seu desencanto com isso: “Por que
não prestigiou nosso Guilherme Guimarães? A hora está para a gente aplaudir as cores pátrias”.

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Uma mobilização nacional

Por meio da sucursal do Rio participaram de Movimento importantes


intelectuais cariocas, como os médicos Carlos Gentile de Melo e Mario
Victor de Assis Pacheco, os historiados Nelson Werneck Sodré e Moniz
Bandeira, a psicanalista Tania Coelho e o economista Jesus Soares Pereira,
para só citar alguns.
Márcio Bueno, que começara no jornal estudantil Avesso, em São Paulo,
e se tornara repórter de Movimento, foi para o Rio, como chefe da sucur-
sal, no início de 1977. Ele conta que a redação era cheia de estudantes de
todas as tendências:
Nossa repórter Denise Cunha (em 2010, diretora na TV Globo)
um dia foi presa numa passeata. Na delegacia, mostrou creden-
cial de Movimento. O delegado disse: “O Raimundo Pereira é o
nosso maior inimigo em nível nacional. E o Márcio Bueno é nos-
so maior inimigo no Rio”. Ele achava que era eu que estava co-
mandando a reorganização do movimento estudantil.15
A sucursal do Rio também dava apoio às articulações para a realização dos
debates sobre a democratização, que se realizavam periodicamente no Teatro
Casa Grande, uma grande casa de espetáculos da cidade. Raimundo Pereira
foi diversas vezes convidado a participar desses debates. “A propaganda do
jornal foi muito também a propaganda dos debates, sobre Constituinte, anis-
tia... os clandestinos não podiam, então eu fui um cara que apareceu muito.
O jornal começou a jogar lenha nesse debate”, lembra Raimundo.
Mesmo tendo deixado de ser a capital, o Rio de Janeiro continuava a ser
um centro importante de acontecimentos nacionais. Marcos Gomes conta:
Fiz uma matéria sobre a Light que (antes) havia sido ofere-
cida a todos os jornais. Ninguém aceitou fazer. O presiden-
te da Eletrobrás era o Antônio Carlos Magalhães. Foi o Mario
Kertész, chefe de gabinete dele, que me passou. Ele me disse:
“Essa matéria aqui é que o pessoal do Rio, esse bando de ad-
vogados administrativos de grandes multinacionais querem
pegar o dinheiro do governo para comprar a Light. Nós temos
aqui o documento inteirinho. Nós já oferecemos para o Jornal
do Brasil, para O Globo... Vocês publicam?”
Marcos respondeu:
Movimento está sob censura. Mas essa matéria tem chance
de ser publicada. Você me dá essa última página com todas as
assinaturas. Aí eles foram para outra sala, ficaram em confabu-
lação e decidiram me dar. A matéria saiu, a Gazeta Mercantil
repercutiu, houve um alarde. Então, quer dizer, estávamos ali
fazendo o nosso trabalho.
A sucursal do Rio foi a única do jornal a ser invadida pela polícia. Na ma-
nhã de 14 de abril de 1978, dois desconhecidos teriam chegado perguntando
pelas “meninas do jornal”. Um vizinho respondeu que “havia muitas”, dado
o entra e sai de estudantes. A sala foi revirada, os arquivos arrombados e um
15 Entrevista de Márcio Bueno em 24 de fevereiro de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

aviso foi deixado no quadro negro: “Tem que fechar”. Mais sinistro ainda, a
porta da sala não havia sido forçada. Segundo Márcio Bueno, a polícia não
foi nem mesmo checar as digitais. “Se a polícia quisesse, poderia identificar
os invasores”, declarou ele à Folha de S.Paulo.16

BELO HORIZONTE
A sucursal de Belo Horizonte foi a mais poderosa, chegou a reunir 500
apoiadores. Era a que mais vendia jornais, que mais vendia assinaturas e
cotas de acionistas, depois da sede em São Paulo.
O núcleo do jornal em Belo Horizonte começou a partir das articulações
de Marcos Gomes e Luiz Bernardes, que reuniram inúmeros colaborado-
res e acionistas no seu entorno. O jornalista Lélio Fabiano dos Santos,
que usava sua sala de diretor da escola de Comunicação da PUC como
uma pequenina redação, foi o primeiro correspondente. Lélio dividia seu
pequeno salário com dois jovens jornalistas, Marco Antonio Vale e José
Eustáquio.
Movimento teria uma sucursal em Belo Horizonte já em outubro de 1975.
E isso se deveu bastante aos esforços de Alberto Dias Duarte, o Betinho, um
pequeno empresário que havia sido militante da Ação Popular. Procurado
por Marcos Gomes para ajudar a vender cotas, Betinho foi além, ofereceu
uma das salas do prédio da rua Rio de Janeiro, onde funcionava a sua em-
presa Cifra Ltda., como sede da sucursal. “A infraestrutura praticamente
toda era da minha empresa. Que eu me lembre, nunca recebi um centavo
do jornal”, diz Betinho.17
Ele cuidava da parte administrativa, enquanto Lélio comandava a re-
dação. Com uma sede fixa, o grupo ia crescendo. A convite de Betinho
entraram novos colaboradores, gente politizada e intelectualizada, como
Aloisio Marques, João Batista dos Mares Guia, Fausto Brito, Flávio
Andrade, Flaminio Fantini, Murilo Albernaz, Maria das Dores Freire e
Fernando Pimentel18, todos muito atuantes nas intensas discussões inter-
nas de Movimento das quais se falará logo mais.
No começo de 1976, Raimundo Pereira foi a Belo Horizonte para orga-
nizar pessoalmente a estrutura da nova sucursal. Betinho foi nomeado
chefe, tendo o jornalista Fernando Miranda como redator-chefe. A sucur-
sal tornou-se uma usina de articulação, textos e ideias. No primeiro ano já
havia mais de 30 pessoas colaborando das mais variadas maneiras. Belo
Horizonte teve, por exemplo, uma das maiores produções de contos e crô-
nicas entre as sucursais; naquele ano, 22 Estórias Brasileiras foram envia-
das, embora apenas dez tenham sido publicadas. Quanto às reportagens,
das 201 matérias enviadas, 64 foram publicadas e 41 vetadas pela censu-

16 Folha de S.Paulo, 14 de abril de 1978.


17 Entrevista de Alberto Dias Duarte, Betinho, em 1º de dezembro de 2009. Mais tarde ele se
tornaria vereador em Belo Horizonte, eleito por três mandatos, e presidente da Câmara Municipal,
condição em que assumiu temporariamente a prefeitura em seis ocasiões.
18 O último foi prefeito de Belo Horizonte e, em 2011, tornou-se ministro de Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior.

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Uma mobilização nacional

ra.19 A sucursal cumpria as pautas indicadas pela sede, mas ia tomando a


iniciativa de fazer outras matérias sem que o jornal tivesse condições de
publicá-las.
“A produção era enorme, nós aglutinávamos dezenas de pessoas”, lem-
bra Betinho. “Raimundo pedia algumas matérias, nós fazíamos essas ma-
térias, mas também muitas outras, porque tínhamos aqui intelectuais bri-
lhantes”. Ele conta como buscava agregar ainda mais:
Tinha João Machado, cujo apelido era João Campeão, que foi
da executiva nacional do PT e hoje é do Partido Socialismo e
Liberdade, Psol. Fui atrás dele e do Flávio Andrade, eles mo-
ravam no bairro Santo Antônio. Eu cheguei lá, falei: “Ô, vocês
são intelectuais de quê? Vocês não fazem nada. Por que vocês
não vão lá para o jornal Movimento?”. Eles foram.
Com tantos braços dispostos a ajudar, a turma de Belo Horizonte assu-
miu uma atividade importante: reimprimia os relatórios sobre a censura,
feitos em São Paulo, e os distribuía. Enquanto a matriz os enviava para
personalidades relacionadas, Minas enviava aos acionistas, assinantes e
colaboradores, num total de 200 exemplares por semana.
Nas vendas, um grande grupo de estudantes universitários ajudava em
mutirão. Betinho e Fernando Pimentel iam até o aeroporto da Pampulha
todos os sábados para recolher os pacotes. De volta ao escritório, a turma
já estava a postos para envelopar os exemplares e postar no correio local
até as cinco da tarde. Mesmo assim, o jornal só chegava terça ou quarta-
feira para os leitores.
A outra parte dos exemplares era levada pelos estudantes para ser ven-
dida em faróis, bares e restaurantes, como conta Betinho. “Eles sabiam
onde era o point de intelectuais e da classe média, saíam e vendiam para
valer. Os estudantes vendiam não só por uma decisão política, mas tam-
bém porque ganhavam uns trocados para tomar umas à noite”. Entre os
vendedores estava Nilmário Miranda, recém-saído da prisão, que mais
tarde seria deputado estadual, federal e ministro da Secretaria Especial de
Direitos Humanos no primeiro governo de Lula, mas naquela época foi,
segundo o ex-chefe da sucursal, “um dos maiores vendedores de assina-
turas do jornal Movimento”.
A sucursal mineira rapidamente se tornou a mais rentável.
Até o início de 1978, a receita de Movimento em Belo Horizonte vinha
principalmente de assinaturas (78%). Ajudou muito a ideia de Alberto
Duarte, posta em prática pela primeira vez em Belo Horizonte, de vender
assinaturas parceladas para o público de menor renda. “O preço da assi-
natura não era para trabalhadores, eu introduzi um esquema de venda em
carnê, em suadas prestações mensais. Foi a popularização do jornal”. O
método seria repetido em outros lugares.
Em um relatório de julho de 1976, Raimundo Pereira resumia:
A experiência de Belo Horizonte é a mais rica das experiên-
19 Arquivo Público do Estado de São Paulo, pasta AP 290.04.03, Fundo Movimento. O código é
como segue: AP 290.04.03 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

cias das sucursais de Movimento – é a que mais vendeu assi-


naturas e a que mais se reuniu para discutir o jornal; é das que
mais enviou artigos e cartas ao jornal e mais formou novos co-
laboradores; Belo Horizonte foi a única sucursal a apresentar
ao Conselho de Redação um projeto formal para o seu funcio-
namento; a primeira sucursal a divulgar entre os nossos acio-
nistas e principais colaboradores a lista de matérias vetadas.
A sucursal de Belo Horizonte foi origem do primeiro grande debate den-
tro do jornal, o chamado “caso Murilo Albernaz”, a ser contado depois. Os
mineiros também foram dos que mais insistiram pela expansão formal do
Conselho de Redação e houve inúmeras discussões visando a formulação
do estatuto, que ele ainda não tinha.

CAMPINAS
Um dos mais longevos e efetivos pontos de apoio de Movimento se es-
tabeleceu na importante cidade universitária de Campinas, a cem quilô-
metros de São Paulo. Em março de 1977, um jovem estudante de Física
(na verdade, ele mais participava de movimento estudantil do que ia às
aulas) soube que Movimento precisava de vendedores na cidade. “Como
eu conhecia absolutamente tudo na Unicamp, comecei a vender muita
assinatura”, lembra Álvaro Caropreso. Já no primeiro mês, foram 35 assi-
naturas semestrais. Ao longo de cinco anos, Álvaro foi um dos principais
vendedores do jornal, organizando uma equipe em Campinas e contando
com um carro comprado pela empresa. “Rodei uns 30 mil quilômetros
naquele fusquinha verde-abacate”.20 Dos 5 mil assinantes que Movimento
chegou a ter, cerca de um quinto era da região de Campinas.
A tática era simples: buscar apoio político amplo, conversar com todos,
sem perguntar filiação partidária; e aceitar ajuda de todos.
O político do MDB Orestes Quércia, por exemplo, entregou ao vendedor
uma lista de cadastro do MDB na região: centenas de nomes, que Álvaro
foi visitar um por um. “Eu traçava um roteiro para ir com meu fusca, ia pa-
rando de lugar em lugar, PUC, prefeitura, Cia. Paulista de Força e Luz...”,
diz ele, para quem qualquer um que fizesse política era “alvo”. Outros
aliados foram Paulo Renato de Souza, futuro ministro de Educação do go-
verno FHC, que listava nomes de colegas que poderiam virar assinantes;
José Roberto Magalhães Teixeira, futuro prefeito de Campinas e deputado
federal, que tinha uma banca de revistas e mantinha um talão de assi-
naturas para oferecer aos clientes; e Alcides Mamizuka, futuro vereador
e secretário municipal de Educação, que tinha uma banca de livros no
Instituto de Ciências Humanas da Unicamp.
A principal base era mesmo na Unicamp. Tanto que, meses depois, um
grupo de professores da Engenharia passou a cotizar o aluguel de uma sala
pertinho da universidade, com cheques pré-datados – entre eles, Hermano
Tavares, futuro reitor da Unicamp e secretário municipal de Educação. E
20 Entrevista de Álvaro Caropreso em 24 de fevereiro de 2010.

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Uma mobilização nacional

Jurandir Fernandes, que seria secretário de Transportes de Campinas e


depois secretário de Transportes Metropolitanos do estado.
“Foi em Campinas que estendemos a faixa no dia que acabou a censura.
Foi uma comemoração assim como se fosse Copa do Mundo, a gente saiu
na rua soltando rojão. Atravessava a rua, de um poste a outro. A faixa di-
zia: ‘Vitória, fim da censura em Movimento’”, conta Caropreso.
Sábado era o dia em que ele pegava o fusquinha, ia até a rodoviária, e
de lá trazia as pilhas de jornais enviados pela matriz, que eram dobrados
e devidamente endereçados a cada assinante: “Eu juntava um bando de
voluntários, os ajudantes da ocasião que estivessem ali na parada”. No
domingo, Álvaro ia pessoalmente ao centro de triagem dos Correios para
entregar o jornal. Os assinantes recebiam segunda-feira cedinho, antes
mesmo do que muitas bancas.
Contando com centenas de assinantes e apoiadores, poucas vezes a re-
pressão incomodou o pessoal de Campinas. Certa vez Álvaro foi detido,
mas logo liberado. Era noite, e ele voltava de um dos seus circuitos à
caça de assinantes. O fusquinha foi atingido por outro carro e capotou.
Atordoado, foi ajudado por um senhor, que o abrigou na varanda da sua
casa. Recobrando os sentidos, o vendedor pediu para levar até ali o que
sobrara do carregamento: exemplares, talões de assinatura, faixas e carta-
zes de Movimento:
Ficamos lá esperando chegar o fusquinha da radiopatrulha pra
fazer a ocorrência. Estávamos nesse papo quando dali a pouco
chegou a polícia. Um caminhão da tropa de choque. Desceu a tro-
pa de choque imediatamente, um caminhão inteiro, perguntan-
do: quem é o cara? O sujeito da casa: é ele. Eu fui imediatamente
algemado e conduzido a uma delegacia. Fui levado até o delega-
do de plantão, colocaram aquele monte de papel, jornal, em cima
da mesa e ficaram ali com uma cara até de orgulhosos. O delega-
do pegou uma edição do jornal e começou a folhear com atenção.
Folheou, folheou, depois pegou outro, folheou, folheou… Até
que se virou e falou: “Vocês apreenderam isso aqui porque vocês
acham que é subversivo? Subversivo é o preço do feijão!”.

SALVADOR
A primeira articulação para uma sucursal na Bahia começou em 1975, quan-
do Luiz Bernardes entrou em contato com um ex-colega do movimento se-
cundarista, Tibério Canuto. Ex-preso político, Canuto presidira a União Brasi-
leira dos Estudantes Secundaristas, em 1966, fora militante da Ação Popular
e àquela altura trabalhava no Jornal da Bahia. Formava, ao lado de Emiliano
José (que mais tarde se tornaria deputado federal), Oldack Miranda e outros,
um grupo de jornalistas de esquerda na Bahia. “Eu já tinha feito uma matéria
para o Opinião antes da ruptura do Gasparian com a equipe. Passou um certo
tempo, o Bernardes fez outro contato e o Raimundo viajou até a Bahia para
conhecer a gente”, conta Canuto.21
21 Entrevista de Tibério Canuto em 15 de março de 2010.
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Jornal Movimento, uma reportagem

Tibério veio a ser chefe de redação e alugou uma sala contando com o apoio
especial dos autênticos do MDB. Chico Pinto morava em Brasília, o que o im-
pedia de ter tanto contato com a sucursal. Mas seu aliado Adelmo de Oliveira
entrou no projeto como chefe do escritório. A pequena sala em um prédio
comercial da rua Sete de Abril foi, inclusive, alugada em seu nome.
“Outro grupo forte eram as correntes do movimento estudantil que
se aproximaram do jornal buscando um espaço para a sua expressão.
Tinha duas correntes que disputavam entre si, mas trabalharam juntas
em Movimento: Viração e Novação”, lembra Canuto. Ambas tinham for-
te presença na Universidade Federal da Bahia e levaram para as fileiras
de apoio ao semanário nomes como Candido Vacarezza22 e o jornalista
Antônio Jorge Moura.
Além dos exemplares dos assinantes, a turma levava jornais para ven-
der na universidade e em algumas bancas de revistas. “Tinha a Banca do
Careca, ao lado do Elevador Lacerda, na época, o mundo político e inte-
lectual comprava jornais do sul nessa banca”, diz Canuto. Assim, evita-
vam o atraso comum da distribuidora, que às vezes entregava o jornal só
na terça-feira: “No sábado a gente já estava botando na banca do Careca.”
“Havia divergências no jornal em relação a algumas posições”, diz
Tibério Canuto. Tais discordâncias estavam na raiz da ruptura de abril de
1977, quando a maioria da equipe da sucursal deixou Movimento. Uma
outra sucursal se organizaria em seguida.

RECIFE
Em Recife, um ano depois do lançamento (1976), um grupo se juntou para
divulgar o semanário. Por iniciativa própria alugou uma sala, rateando o
aluguel, antes mesmo de o Conselho de Redação aprovar a implantação
de uma sucursal. Antes disso, o jornalista Ivan Maurício, que tinha sido o
grande redator de Opinião no Nordeste, já representava Movimento como
correspondente fixo. O jornal chegava tarde da semana na cidade, às quar-
tas-feiras ou depois. Só passaria a chegar mais cedo, na terça, em setembro
de 1975. “É um grande trunfo para a imagem do jornal por aqui”, registrou
então Ivan Maurício.
Em março de 1976, assumiu como correspondente o estudante Geraldo
Sobreira, que trabalhava também para o Diário de Pernambuco. Além dele,
passaram a colaborar os jornalistas Marcos Cirano, Virginia Botelho, Antonio
Magalhães e Bety Salgado. Em agosto daquele ano, o escritor Paulo Santos
Oliveira tornou-se responsável pelas assinaturas na cidade, iniciando tam-
bém a bem-sucedida estratégia de venda em livrarias. No mesmo mês,
Sobreira recebeu a notícia de que a turma de São Paulo aprovara a fundação
de uma sucursal. A reação foi entusiasmada, já que, segundo ele, Movimento
era pouco conhecido no Nordeste, e em algumas capitais importantes, como
Maceió, quase desconhecido. “No interior, nem se fala”, escreveu em uma
22 Candido Vacarezza se tornaria deputado estadual e depois federal, sendo, a partir de 2009, líder
do governo na Câmara dos Deputados.

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Uma mobilização nacional

carta. Segundo ele, “para estabelecer contatos com algumas personalidades


democráticas para apoio ao jornal, precisamos de uma estrutura de sucursal.
E, lentamente, quase já temos essa estrutura”.23
Desde então o grupo se concentrara nas vendas em diretórios acadêmi-
cos, livrarias e diretórios regionais do MDB, chegando a vender em média
115 exemplares por semana, além dos 200 que já eram vendidos através
das bancas. Conseguiu ainda dobrar a folha de assinantes de 58 para 105
nas primeiras semanas. Sueli Freitas, aquela jovem que saíra da casa da
família em São Paulo com Movimento debaixo do braço, conta que em
Recife era ela que ia receber o jornal no aeroporto todo sábado de manhã.
“Trazia de ônibus até a sede e então passava em uma série de lugares dis-
tribuindo, em DCEs, na escola de advogados, na Universidade Federal.
A gente também ia vender onde tinha atos públicos, ou nos bares onde a
esquerda se reunia”. Ela lembra ainda que, com as sobras de cada semana,
o grupo fazia um pacote de 5 exemplares antigos para vender na porta dos
cinemas: “O jornal era interessante, não caducava”.24

BELÉM
Em Belém, Movimento se inseriu na articulação para a constituição da
Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), foco de re-
aglutinação de militantes da esquerda.
Em 1976, estávamos tendo contato com pessoas que queriam
retomar o movimento democrático. Era uma peregrinação de-
mocrática, pessoas que tinham sido estudantes na década de
1960... A distribuição de Movimento era justamente entre es-
ses setores de esquerda, pessoas com quem a gente podia con-
tar para a retomada dos movimentos sociais,
assim explica Hecilda Veiga,25 ex-militante da AP que estivera presa ao
lado do marido, Paulo Fonteles,26 por um ano, período em que teve um
filho na prisão: “Nesse momento o jornal acabou sendo um grande esti-
mulador do debate de que era possível nos organizarmos pela luta demo-
crática.”
Belém é a porta de entrada para a floresta, tema de muito interesse do
jornal e de Raimundo Pereira em particular.
Nós, jornalistas, temos de ser os naturalistas modernos que
descreverão o horror da atual colonização da Amazônia pelo
capitalismo e o latifúndio selvagem e, ao mesmo tempo, os
arautos dos que profetizam as maravilhas da nova civilização
que a natureza e o povo amazônico certamente esperam e qua-
se certamente conseguirão,
23 AP 284.03.42 Fnd Mov APSP.
24 Entrevista de Sueli Fontes, em seis de janeiro de 2010.
25 Entrevista de Hecilda Veiga em 20 de janeiro de 2010.
26 Paulo Fonteles, advogado de posseiros e trabalhadores rurais, militante do PCdoB, foi deputado
estadual no Pará, assassinado em Belém em 11 de junho de 1987. Ver de Carvalho, Luiz Maklouf
Contido à bala. Belém, editora Cejup, 1994.

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Jornal Movimento, uma reportagem

dizia o editor-chefe em carta27 ao correspondente Luiz Maklouf Carvalho,


que passou a colaborar com o jornal em dezembro de 1977.

CURITIBA
Curitiba também viu um grupo de apoio ser formado a partir do empenho
de uma colaboradora. A jornalista Fátima Murad, repórter de Movimento
na sucursal de Brasília, mudou-se para a cidade em abril de 1976.
Fátima tinha 22 anos, era jornalista havia três e não conhecia absoluta-
mente nada de Curitiba. Mas chegou com a determinação de fundar ali um
escritório de Movimento.
Procurei alguns deputados autênticos do MDB do Paraná,
como Alencar Furtado, que era do Conselho Editorial do jor-
nal, e Sebastião Rodrigues, aí eles foram me passando contatos
lá. Me deram listas de gente de oposição no geral, eu não tinha
ideia se dessa ou daquela tendência.28
A primeira peregrinação foi para vender cotas. A cada pessoa que ela
procurava, surgiam mais três, quatro nomes.
Em Curitiba estava um desânimo em todas as correntes.
Estavam todos desagregados por causa da repressão. Uma
pessoa que me recebeu bem foi o Euclides Scalco, que era o
presidente do MDB local, e fui conhecendo deputados, como
Trajano Bastos, Deni Schwartz. Procurei um grupo de advo-
gados, entre eles Edésio Franco Passos, que depois foi verea-
dor pelo PT... E até o Paulo Leminski, eu me lembro que fui à
sua casa; ou vendi assinatura ou arranquei alguma cota dele.
Nunca recebi recusa na venda de cotas. E era engraçado por-
que eram ações furadas, não tinham nenhum valor na Bolsa,
mas as pessoas queriam mesmo ajudar.
Ela acredita que o jornal deu uma força para rearticular a esquerda após
o auge da repressão: “Movimento tinha essa coisa de agregar tudo que era
oposição, você sentia que o jornal era um incentivador à participação. E
para mim jornalismo era isso, formar opinião, discutir e abrir”.
Outro grupo que rapidamente acolheu Fátima, a “pessoa do Movimento”
na cidade, foram os alunos da PUC e da Universidade Federal do Paraná:
“Os estudantes já compravam, se interessavam, aí a gente foi armando nú-
cleos para aumentar as vendas”. Em poucos meses, conseguiram vender
400 assinaturas na cidade.
Sem um tostão para uma sala própria (montar uma sucursal àquela altu-
ra estava fora de cogitação), Fátima encontrou grandes aliados nos jorna-
listas. Usava as redações do Estadão – próxima à sua casa – e de Veja. De
manhã, ia ao Estadão, com a bênção do chefe de redação Dirceu Martins
Pio. Às tardes, Hélio Teixeira garantia que ela sempre tivesse uma mesa
com uma máquina de escrever à sua disposição no escritório de Veja.
27 AP 290.06.04 Fnd Mov APSP.
28 Entrevista de Fátima Murad em 22 de janeiro de 2010.

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Uma mobilização nacional

Aos domingos, era Fátima que buscava os jornais no aeroporto:


Eu pegava um ônibus até São José dos Pinhais, na Grande
Curitiba, pegava aqueles pacotes e sempre alguém na rua se
compadecia, me ajudava a entrar no ônibus de volta – eu não
tinha dinheiro para táxi, essas coisas. Chegava na cidade, pe-
gava outro ônibus para casa...
E aí se fazia o mutirão para colocar os exemplares em envelopes que de-
pois iriam para o correio. Eram amigos que faziam parte dos grupos de es-
tudo sobre Marx e História do Brasil que aconteciam na casa de Fátima.
“Quando a gente viu que era viável, eu aluguei minha salinha”, lembra
ela. Além dos estudantes voluntários, Fátima contratou uma secretária
e dois rapazes pra ajudar nas vendas. A salinha, que ficava na rua das
Flores, no centro da cidade, foi ganhando cor. “Quando começaram a falar
em Constituinte a gente fazia uma vez por semana, à noite, reuniões para
discutir o assunto”. Com crescente apoio, o jornal tornou-se uma “nova
instância política”, nas palavras da correspondente, e um ponto de encon-
tro de diferentes tendências: “A gente era tão prestigiada que eu chegava a
ser convidada para participar de reuniões fechadas do diretório estadual
do MDB.”
A equipe formada por Fátima testemunhou um dos episódios mais dra-
máticos de repressão contra o jornal. No final da tarde de 17 de março de
1978, uma sexta-feira, a repórter Juracilda Veiga, de 21 anos, foi agarrada,
ao sair do colégio onde lecionava, por três homens armados, e levada para
dentro de uma Veraneio azul – carro usado pela repressão. Foi o início de
uma forte onda de repressão que atingiu Curitiba.
Na manhã seguinte, seguiram-se as prisões de mais 11 pessoas ligadas
a atividades intelectuais – incluindo outro colaborador de Movimento,
Walmor Marcelino, e o advogado Edésio Franco Passos. Permaneceram
incomunicáveis com base na Lei de Segurança Nacional.
Euclides Scalco foi procurar o arcebispo dom Pedro Fedalto – conhe-
cido pela postura conservadora, mas que deu apoio – e, no mesmo dia,
membros da igreja e de setores democráticos montaram uma assembleia
permanente na Cúria Metropolitana de Curitiba, reunindo mais de 400
pessoas. Segundo Fátima Murad.
“Teve uma grande assembleia, grande mesmo, no auditório
da Universidade Federal, e a gente escreveu um documento,
datilografou, imprimiu... Ia ser Domingo de Ramos, aí dom
Pedro Fedalto escreveu uma autorização para cada padre de
cada paróquia, e esse documento foi lido em todas as missas.
Foi uma coisa impressionante.”
O episódio repercutiu no Brasil inteiro, o que acabou levando todos
aqueles presos a serem libertados. Juracilda foi solta na noite do sábado
em uma estrada próxima à cidade de Registro, no estado de São Paulo. Os
seus algozes receberam um comunicado dizendo que “tinha dado zebra”

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Jornal Movimento, uma reportagem

e que “soltasse a menina ali mesmo” – antes, eles haviam dito que a es-
tavam levando para São Paulo para “bater um papinho com o delegado
Fleury”. Enquanto esteve presa, foi interrogada diversas vezes, sempre
encapuzada. Sofreu choques elétricos nos pulsos e nos braços, além de di-
versas ameaças. “Prisões e sequestro no Paraná – o terceiro em menos de
8 meses”, noticiaria a edição seguinte de Movimento, complementando:
“Mas desta vez a reação da comunidade foi maior”.

LONDRINA
Na mesma época, Londrina, a 379 quilômetros de Curitiba, firmava-se
como um polo de oposição ao regime. Ao contrário da capital – todas as
capitais eram “área de segurança nacional” e só podiam fazer eleição indi-
reta –, ali havia eleição direta para vereadores e prefeitos, prevalecendo o
MDB. Organizado em torno da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
e da PUC, o movimento estudantil era criativo e articulado, mantendo um
jornal de qualidade, o Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima, que
chegou a imprimir 3 mil exemplares.
O estudante Marcelo Oikawa, que já trabalhava como jornalista, conta
que “éramos um grupo de jovens com uma formação cultural e uma pre-
ocupação política um pouco mais avançadas, e de maneira organizada
tentávamos manter uma atividade cultural, como teatro popular, concur-
so de poesia...”29
Uma das atividades de mais peso eram as semanas de discussão em
que se debatia de tudo – economia, guerra do Vietnã, indústria nacio-
nal, a questão do Líbano. Nomes como dom Tomás Balduíno, dom Pedro
Casaldáliga e Luis Bandeira figuraram entre os palestrantes. Raimundo
Pereira foi convidado para falar sobre o trabalho de Movimento. A ligação
nasceu ali. Segundo Oikawa, “as pessoas que tinham a preocupação de
entender um pouco melhor o que acontecia ficavam muito atentas a qual-
quer tipo de publicação underground que surgisse”.
Raimundo voltaria muitas vezes a Londrina. Aquele grupo de estudan-
tes (alguns formariam mais tarde um núcleo do PCdoB) manteve por mui-
to tempo estreita ligação com Movimento, tornando-se chave no apoio
dentro do movimento estudantil. Tonico Ferreira também iria algumas
vezes a Londrina, assim como Sérgio Buarque de Gusmão, que chegou a
ser impedido pela polícia de ali proferir uma palestra.
Além dos estudantes, os professores estaduais ligados à Associação de
Professores do Paraná também formavam uma das “pernas de apoio” do
jornal em Londrina, segundo Marcelo: “Foi um dos grupos mais impor-
tantes. Eram jovens que se formaram na UEL dentro do movimento estu-
dantil, e em 1978 promoveram uma greve que parou todas as escolas do
estado.”
Em certo momento, segundo Marcelo, a região teve mais de 1.600 assinan-
tes, uma enorme façanha alcançada graças ao empenho desses professores,
29 Entrevista de Marcelo Oikawa em 24 de fevereiro de 2010.

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Uma mobilização nacional

que lideravam núcleos pelo interior e vendiam muitas assinaturas. “Também


tinha muitos estudantes do interior que levavam para casa e vendiam”, diz
Oikawa. Faziam parte do grupo estudantes como Alberto de Paula Machado,
que viria a ser presidente da OAB no Paraná, Gilberto Berguio Martin, que
seria Secretário de Saúde do estado, José Antonio Tadeu Felismino, futuro
vereador e presidente da câmara municipal, e Luís Cheida, que seria prefeito
de Londrina em 1993 e deputado estadual.
“O pessoal de São Paulo ficava surpreso porque batíamos todos os re-
cordes de assinaturas”, lembra Marcelo. Após o “racha” no jornal, que
ocorreu em 1977, o grupo foi convidado pela diretoria para enviar inte-
grantes para a redação. “O convite do Raimundo era um reconhecimento
da importância e do nosso preparo político e jornalístico. Para nós foi
um fortalecimento”. A turma decidiu, em reunião, enviar os jornalistas
Nilson Mourão e Roldão Oliveira Arruda. Além deles, em 1979, Célia de
Souza passaria a ser a diretora de vendas de Movimento. “Ficamos com o
Raimundo desde o início até o final”, diz Marcelo Oikawa.

PORTO ALEGRE
Desde o seu lançamento, em 1975, Movimento teve um correspondente
em Porto Alegre, o jornalista Carlos Moissman. Mas, no início, o grupo
gaúcho permaneceu pouco estruturado e sem apoio substancial. Em 1976,
o candidato emedebista a vereador Marcos Klassmann, egresso do movi-
mento estudantil, passou a coordenar as vendas de assinaturas, levando
a sede da distribuição para seu escritório de campanha. Klassmann pro-
curou a corrente Viração do movimento estudantil, que acabou sendo o
principal apoio do jornal na cidade. Na época estudante de arquitetura,
Guilherme Loss se engajou na empreitada.30 Com a cassação do mandato
de Klassmann, 15 dias após a posse, essa articulação perderia força.
Parte da dificuldade para a implantação de Movimento ali vinha do fato
de que o Rio Grande do Sul já tinha o seu veículo jornalístico de oposi-
ção. Entre 1976 e 1983, o Coojornal, de uma cooperativa de jornalistas,
foi o principal meio de informação independente do estado, chegando a
alcançar uma tiragem de 40 mil exemplares, em 1979. As duas equipes
mantinham relações cordiais e de colaboração e intercâmbio de matérias
e informações.
Em Santa Maria formou-se um núcleo de apoio ao jornal. Raimundo Pereira
esteve lá e proferiu uma palestra. Desse núcleo fizeram parte Adelmo Genro
Filho e seu irmão, o ex-vereador do MDB, Tarso Genro.31 Como Tarso Genro,
no Rio Grande do Sul, centenas desses jovens pelo País iriam se tornar lide-
ranças políticas, muitas delas de projeção nacional.

30 Entrevista de Guilherme Loss em 23 de fevereiro de 2010.

31 Tarso Genro viria a ser prefeito de Porto Alegre, ministro das Relações Institucionais, da
Educação e da Justiça, nos governos de Lula, e elegeu-se governador do Rio Grande do Sul em 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

ELES ERAM CENTENAS


Viajando por todo o País, o repórter Murilo Carvalho podia perceber de
perto a repercussão de Movimento:
Eu via que o jornal estava se constituindo como um instru-
mento muito bom no interior do País.(...) E talvez as pessoas
de São Paulo não percebessem a importância disso que nós
estávamos fazendo, nas pequenas comunidades do interior do
País, nas cidades pequenas, grupos de discussão, pessoas que
iriam ter alguma influência no futuro. Tanto que se você olhar,
quase todas as pessoas que fundaram o PT, os deputados, todo
esse pessoal era tudo gente do jornal Movimento, gente que
era vendedor de Movimento. Então, acho que o jornal teve um
papel fundamental para levar informações para jovens que não
tinham acesso a nada (...) Ajudou a criar lideranças, não tenho
dúvidas disso. E são centenas.32

32 Entrevista de Murilo Carvalho em 14 de dezembro de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Edição 186 de 22 de janeiro de 1979. Corta essa!

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A arte da resistência

O
s recursos gráficos de Movimento eram magros. Impresso
através de fotolito, a mais avançada técnica da época, o jor-
nal era composto com uma tipologia limitada, em preto e
branco, com apenas a liberdade de uma corzinha extra na
capa. Mesmo assim, foi um espaço importante para a afir-
mação de uma nova geração de ilustradores e cartunistas como Jayme
Leão, os irmãos Chico e Paulo Caruso, Cássio Loredano, Grilo, Alcy, Luiz
Gê, João Zero, Arnaldo, Nilson, Laerte, Jota, Angeli e Glauco, levados ao
jornal por influência de Elifas Andreato, autor do projeto gráfico1.Eles
marcariam a “cara” do jornal. E mais: esse destaque dado às ilustrações
influenciaria toda a imprensa.
Elifas Andreato reconhece que o projeto gráfico partiu de uma ideia “con-
servadora”. “Isso já era uma imposição do próprio conteúdo. Sabíamos
que a gente ia fazer um jornal de oposição em que o texto teria papel
de destaque. A discussão era: 60% imagem e 40% texto ou vice-versa?
Prevaleceu 60% texto e 40% imagem. Mas nunca funcionava exatamente
assim porque o Raimundo sempre ‘roubava’ um pouco a gente”, brinca.2
Armando Sartori, que esteve envolvido na produção do jornal desde o pri-
meiro até o último número, sublinha que a parte visual não era prioridade.
Não dá pra dizer que o Movimento era um jornal bonito, né? A
gente tentou em algum momento fazer um novo projeto gráfico
e não conseguiu. Eu diria para você que a gente não tinha pre-
ocupação muito grande com esse problema da beleza do jornal,
do acabamento gráfico, não tinha mesmo. O jornal era sempre
muito pensado pelo seu conteúdo, pelo que ele ia dizer.3
1 O artista gráfico Elifas Andreato era na época diretor de arte na editora Abril. Durantes dois anos
deslocou-se semanalmente ao Rio de Janeiro para editar Opinião, sempre levando com ele um grupo
de ilustradores. Em 1969 e 1970, Elifas e sua companheira Iolanda Huzak colaboraram com a Ação
Popular diagramando as matrizes do jornal clandestino Libertação, editado por Carlos Azevedo. Em
1970, Elifas desenhou a capa do Livro Negro da Ditadura Militar, editado clandestinamente pela
Ação Popular.
2 Entrevista de Elifas Andreato em 13 de julho 2010.
3 Entrevista de Armando Sartori em 5 de julho de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Ele explica da seguinte maneira o espírito da produção gráfica: resis-


tência era fazer o jornal chegar, toda semana, às bancas. Depois de ser
retalhado pela censura prévia, tratava-se de juntar tudo o que sobrou e
ainda assim fazer um jornal: “Não estou querendo dizer que essa era única
maneira de fazer o jornal, era a maneira que a gente encontrou de fazer.”
A censura, além dos textos, cortava também ilustração atrás de ilustração,
impondo um ritmo de trabalho exaustivo. Depois de prontas as matérias, os
ilustradores faziam um esboço que era mandado à censura. O desenho só era
concluído se a ideia passava pelo censor. O ilustrador Alcy relembra:
Às vezes a gente fazia vários esboços numa mesma matéria
só pra dar trabalho pro censor. Na correria dele ter que ver
tudo aquilo, acabava passando alguma coisa. E depois tinha
o dia do fechamento. O desenho vinha da censura, o tempo
de finalizar aquilo não era uma maravilha. E vinha o Tonico
Ferreira, “vamos fechar pessoal”, “vamos fechar”...4
Ao todo, foram 3.162 desenhos vetados em quase três anos.
Chico Caruso foi um dos primeiros a entrar na equipe, pois conhecia
Tonico Ferreira da faculdade de Arquitetura da USP. Segundo ele, os de-
senhistas costumavam produzir três vezes mais que o necessário. “Isso
foi dando pra gente uma certa sabedoria. A gente fazia um desenho mais
violento, um água com açúcar e um intermediário. O cara cortava o mais
violento, deixava o intermediário.”5
Do Rio, Grilo enviava suas impressões em xilogravura a partir da matriz
esculpida na madeira. O processo era ainda mais trabalhoso do que das
ilustrações habituais porque implicava em fazer alguns esboços de dese-
nho, decidir por um deles, e depois passar dois dias gravando a madeira
para depois “carimbar” um papel. Mas, até mesmo pela natureza do traba-
lho, ele teve pouco problema com a tesoura.
Eu nunca fiz um trabalho que é mais alvo de censura, que é
a charge, com um recado mais facilmente compreensível. A
charge é mais direta, mais popular, está lidando com assuntos
que as pessoas sabem o que é, é mais facilmente censurada. A
ilustração tem camuflagem, ela pode ganhar um certo impacto
de acordo com o contexto.6
O artista dá dois exemplos. Numa gravura sua, um limpador de unhas
passando pelas pontas dos dedos de uma mão foi editado em tamanho
grande porque naquela edição muitas reportagens haviam sido vetadas. E
acabou ganhando grande repercussão.
Quando foi ampliado, naquele momento de tortura, de repres-
são política, ficou uma forte referência à tortura, mas não era essa
a intenção. Então até saía fora da ideia original do trabalho por-
que era contaminado pela maneira como ele era inserido.
4 Entrevista de Alcy Linares em 8 de julho de 2010.
5 Entrevista de Chico Caruso em 12 de julho de 2010.
6 Entrevista de Rubem Grilo em 22 de julho de 2010.

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A arte da resistência

Outro exemplo é a capa da edição 103, de 20 de junho de 1977, também


gravada por ele, em que uma figura circense usa uma máscara terrível,
e segura uma tesourinha – esta, sorrateira, escapou da vista do censor.
“Você vê a máscara, aquela figura, aquela história toda era só pra botar
uma tesourinha, uma alusão à censura, que estava ali meio solta. Você
vê a que extremo a gente chega quando está num regime em que tudo era
proibido. Hoje esse detalhe pode parecer bobagem”, explica.
Elifas avalia que havia uma liberdade de criação invejável pelo fato de
a publicação ser um dos poucos espaços não submetidos à autocensura.
“Nas empresas grandes havia autocensura, um forte controle sobre o con-
teúdo a ser publicado, apesar de haver jornalistas comprometidos. Mas foi
assim também na música, no teatro; a gente usava todo lugar onde achava
que tinha espaço para colocar as questões do momento”, diz ele. “Os co-
vardes, como diz Chico Caruso, a história apagou”.

DIAGRAMAÇÃO
Ao longo da história de Movimento, o setor de arte variou muito, mudou
de mãos e de orientação. Em 1975, dividiram as tarefas gráficas o próprio
Tonico Ferreira, que tinha experiência como diagramador, o Juca Martins,
fotógrafo, e Toninho Mendes, esse sim um diagramador profissional.
Armando Sartori, inexperiente, se ofereceu para ajudar o time no come-
ço de 1976 – antes, era revisor. Ele recorda que, de acordo com a técnica
da época, seu trabalho consistia basicamente em fazer contas.
Era o seguinte: você recebia a lauda datilografada, meio ra-
biscada. E tinha que calcular o número de toques... Em teoria,
cada lauda devia ter 1400 toques, 20 linhas de 70 toques. Você
fazia o cálculo da centimetragem da coluna e aí jogava aqui,
dizia se tinha que cortar ou não, riscava, fazia um esquema as-
sim: aqui começa o texto, aqui vem a capitular, aqui pode por
o intertítulo, aqui o título, o texto corre, aqui uma fotografia.
Esse “boneco” ia depois para a gráfica, onde os textos eram digitados já
no formato escolhido – duas ou três colunas, com fotos nos devidos luga-
res e intertítulos – e depois transformados em fotolito.
Armando se lembra de muitas e muitas madrugadas que passou na grá-
fica tentando resolver probleminhas de última hora; se o cálculo estivesse
errado, uma palavra sobrava, faltava espaço.
Quando você vai fechar na gráfica, tem que resolver esses
problemas. Ou você vai pedir “pelo amor de Deus” para um
redator ir lá e cortar, ou vai falar “então tira a foto”, preenche
o buraco aqui e resolve pra fechar. Ou, no caso em que falta,
você amplia a foto. Tem que dar um jeito de alguma maneira,
porque o jornal tem que sair.
Meses depois, ele seria promovido a chefe de arte, cargo em que per-
maneceu até 1978. Trabalhou ao lado de dois jovens estudantes da USP,
Sérgio de Oliveira e Cid Oliveira. Lembra Sartori:

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Jornal Movimento, uma reportagem

No dia a dia, era assim, o Cid e o Sérgio só iam lá na quinta


feira à noite e na sexta. Na sexta-feira um deles ficava na dia-
gramação e o outro, que acho que era o Sérgio, ficava fazendo
produção, isto é, ficava buscando foto e tal. Aí, tinha um es-
quema interessante, grande parte das fotografias que a gente
usava eram da editora Abril. O esquema era o seguinte: nós
tínhamos amigos na editora Abril, um deles era o Pedro de
Oliveira, editor de arte da Veja. A gente pedia as fotos que pre-
cisava para ele. Ele pedia como se fosse para a Veja e a gente ia
lá, pegava o envelope, publicava e devolvia depois.
Pedro de Oliveira confirma. Sua contribuição também era transmitir in-
formações que obtinha nas redações e contatar fotógrafos amigos para obter
fotos. Ele diz que sempre ajudou, combinando as coisas com Elifas, tanto
em Opinião quanto em Movimento: “Como a Veja fechava na sexta-feira, no
mesmo dia dos jornais, eu não tinha tempo, fui só umas poucas vezes dar
alguma ajuda no fechamento na gráfica.” Pedro vendia o jornal no Sindicato
dos Jornalistas, onde atuava como ativista sindical. E comprou ações: “Tenho
até hoje os papéis dessas ações, as primeiras que comprei na vida.”7

A CARA DO JORNAL
Mesmo com tantos percalços, Movimento muitas vezes chamava a aten-
ção justamente pelo visual, com belas capas – e o mérito é do grande time
de ilustradores reunidos por Elifas Andreato. Ele mesmo produziu capas
marcantes, que ficariam na história do jornal.
Numa delas, que ilustraria a edição especial sobre a Mulher e o trabalho,
em maio de 1976, uma bela mulher morena, de cabelos negros caindo so-
bre os ombros e semblante sério, traz a mão grossa pousada sobre o peito.
Em preto e branco, com detalhes em rosa, a capa é um exemplo perfeito
da produção de Elifas à época, que figurava em muitas capas de LPs e car-
tazes de peças de teatro.
Ele aponta como uma de suas preferidas a capa da edição 63, de 13 de
setembro de 1976, que traz a cobertura da morte de Mao Tsetung.8 O dese-
nho em preto e branco ocupa toda a primeira página e traz um retrato do
líder chinês de lado, com os olhos voltados para fora do quadro. Ao lado,
em duas linhas, a única chamada, “Mao Tsetung, 1893-1976”, é encimada
por um único detalhe colorido: uma estrela vermelha.
Outro que fez muitas capas e deu mais ideias ainda foi Chico Caruso:
“Me lembro de uma capa que eu fiz sobre a Copa da Argentina (em 1978),
fiz um fuzil com a camiseta da Argentina”. Muitas vezes ele dividia o
trabalho com o Alcy, e chegou, inclusive, a inventar um codinome para a
dupla, Alchico.

7 Entrevista de Pedro de Oliveira em 26 de julho de 2010. Ele foi militante da AP e depois do


PCdoB, no qual, em 1910, era assessor da liderança do partido na Câmara dos Deputados.
8 A grafia atual é Mao Zedong.

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A arte da resistência

Relembra Alcy:
A gente bolava uns desenhos sobre o assunto de capa, e o que
passava na censura acabava entrando. Me lembro de uma capa
com um trabalhador carregando o Brasil nas costas, eu colei um
mapa do Brasil que recortei de um atlas. Essa ideia é do Chico.
Ele que desenhou e mandou para a censura, mas depois me deu
pra finalizar porque ele estava com muitas coisas pra fazer.
O cartunista Jota, conhecido por todos como Jotinha, foi outro que fez
muitas capas – na fase final foi até contratado como capista. Antes disso
ele passou por um longo aprendizado com o pessoal da arte, de quem era
amigo. Com 17 anos, ele fora trazido de Londrina por Jayme Leão. “Eu me
lembro que numa época eu tinha o dobro da idade dele. Mas ele saía com
a gente e era muito engraçado porque ele era muito crítico, um cricri mes-
mo, mas um cara muito inteligente, muito bom”, recorda Alcy.
Armando Sartori completa:
A gente contratou o Jota, pagava fixo pra ele ir lá na quinta-
feira e na sexta-feira para fazer a capa. Não é que ele ia dese-
nhar a capa, ele ia fazer o layout e resolver a capa. Só não fez a
última edição porque o miserável sumiu, acho que estava de-
sesperado porque o jornal ia fechar e tal, quem fez foi o Alcy.
Mas o maior capista de Movimento foi mesmo Jayme Leão. Seus traços
fortes, realistas e detalhados imprimiam um peso ao desenho que resumia
bem o conteúdo denso das reportagens. Um exemplo é a capa da edição
19, de 10 de novembro de 1975, que mostra um menino segurando um
pedaço de pão, orelhudo, com fortes traços marcando detalhes no rosto
e nas mãos, sua expressão mostra desconforto e receio e seu olhar mira
diretamente o leitor. A manchete é “A Fome”, esclarecendo que dentro do
jornal uma reportagem de quatro páginas mostrará que o Brasil teria con-
dições até de “super-alimentar” seus habitantes se quisesse.
Jayme Leão grafou seus traços em alguns dos principais momentos do
tabloide: quando Figueiredo foi lançado como candidato à sucessão, em
1978; quando Maluf se tornou governador de São Paulo, em 1979; quando
começaram as primeiras greves sindicais; quando Figueiredo propôs, em
lágrimas, seu projeto da anistia (na ilustração, as lágrimas foram realçadas
e se tornaram grossos pingos como verdadeiras “lágrimas de crocodilo”,
expressão usada no texto da matéria).
De memória, Armando Sartori estima que Jayme Leão teve participação
em “pelo menos” metade das capas:
Ou porque ele desenhou, ou porque ele fez a capa. Porque o
Jayme além de desenhar fazia o layout, sabia a fonte que esco-
lher e tal. O Jayme tem uma formação de publicidade, então
tem uma concepção muito precisa do layout. Ele foi muito im-
portante porque quando não tinha nem material para ilustrar
inventava uma capa com letras, com a chamada.

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Jornal Movimento, uma reportagem

RANCHO DA GOIABADA
Os ilustradores trabalhavam bastante e ganhavam pouco, como os demais.
A maioria, como o gravurista Rubem Grilo, tinha outra ocupação para pa-
gar as contas. Ele dava aulas de arte e fazia bicos como paisagista.
O que me levava era a oposição ao regime militar. Assim eu
inseria o que estava fazendo dentro da realidade, dava uma
função imediata para o meu trabalho, em vez de fazer uma
obra de arte e acumular essa obra pra um dia colocar na pare-
de, um percurso totalmente afastado da realidade. O jornal me
deu razão para fazer o trabalho que continuo desenvolvendo
como artista até hoje.
“É preciso entender que no período nós todos tínhamos um inimigo co-
mum e todos lutávamos contra ele”, resume Elifas Andreato.
Era uma luta com a cara do grupo – sem muita discussão teórica, com um
tom bem-humorado e cheio de criatividade. Alcy explica que, “se bem que
não fosse um cara muito informado, alinhado com nenhum partido”, o ini-
migo comum o unia ao pessoal da redação. “Foi gostoso conhecer pessoas
que trabalharam duro ali pra brigar contra as coisas. E também conviver com
os artistas era uma coisa muito boa, era um convívio social, as noitadas que
a gente fazia...” Nas noitadas dos bares de Pinheiros, onde ficava a redação,
eles às vezes se autodenominavam marxistas “da linha Groucho”.
Rememora Alcy:
Tinha uma coisa muito prazerosa durante uma certa fase, a
gente reunia os cartunistas, chargistas, ilustradores para de-
senhar todo mundo junto. Me lembro de noite, noite mesmo,
tava lá o Chico Caruso, Cássio Loredano, o Jayme Leão, o Jota,
o Angeli, acho que também o Luis Gê, então era uma delícia,
a gente juntava umas mesas, fazia uma mesona grande e ficava
todo mundo conversando e desenhando.
Naqueles anos se foi definindo meu trabalho, tive uma con-
vivência muito boa com outros artistas, tinha uma boa troca de
impressões, de estilo de um pro outro, que me fez crescer. Era
legal que fosse um jornal não da grande imprensa, que estives-
se lutando contra o estado de coisas, isso nos ajudou a manter
uma linha de buscar a independência até hoje.
Até mesmo por ser um jornal bastante politizado, além da disputa cor-
riqueira entre o espaço destinado à arte, havia desentendimentos com a
redação em relação ao enfoque das matérias e à linha editorial. Para Chico
Caruso, que ainda guarda grandes críticas à publicação, “o que prejudica-
va era o espírito panfletário do jornal, que publicava sempre um massacre
de texto, sobre ‘a questão do campo’, ‘a questão da cidade’...”
Ele diz ter tentado intervir algumas vezes durante reuniões de pauta,
propondo temas menos “duros”, mas lembra até hoje entre risadas da vez
em que se decidiu pela inserção de uma pauta mais “leve” na edição.
Estávamos lá discutindo: “pô, os temas são muito duros,

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A arte da resistência

por que a gente não faz uma matéria sobre alguma coisa mais
corriqueira, como o casamento?” Daí um repórter, acho que o
Murilo Carvalho, foi fazer a pauta. Saiu da redação e virou no
primeiro armazém que encontrou, foi falar com uma portugue-
sa, ali, de braços cruzados. “Olha, estou fazendo uma matéria
sobre casamento”. E a mulher: “Mas o senhor com tanta coisa
pra escrever no seu jornal, vai escrever sobre uma coisa tão
vagabunda como o casamento?”
A frase foi usada para abrir a matéria.
Outro episódio que ilustra a discordância ficou marcado na memória de
alguns dos ilustradores. Era 1976, e Aldir Blanc e João Bosco haviam aca-
bado de lançar a música “Rancho da Goiabada”, cuja letra dizia:
Os bóias-frias quando tomam umas birita/ Espantando a tris-
teza/Sonham com bife-a-cavalo, batata-frita/ E a sobremesa/ É
goiabada-cascão com muito queijo/ Depois café, cigarro e um
beijo/ De uma mulata chamada Leonor/ ou Dagmar.
Sérgio Buarque de Gusmão publicou um texto criticando a letra. A tur-
ma não gostou, mas não perdeu o bom humor. “Ali tinha uns caras muito
sérios”, diz Alcy. “Escreveram que era um desrespeito aos boias-frias a
letra, e aquilo, pô, a gente morria de rir. Pô, o cara escreve um texto lá de-
sancando a música, e a gente ali – Juca, Toninho Mendes, Chico, Jotinha
– não batia com aquela ideia”. Elifas Andreato é outro que discordou:
Eu achava mágica aquela música, nada mais cruel, nada mais
real... Até hoje adoro. Mas tinha um grupo ali que achava uma
coisa assim, não podia ter mulata, não podia misturar sexo
com revolução... Nesse episódio os ilustradores ficaram com
dois pés atrás.
“A gente era a favor do ‘Rancho da Goiabada’, né?”, arremata Alcy.

CORTA ESSA!
Foi nesse mesmo espírito que os cartunistas “tomaram conta” da última
página do jornal, criando a seção “Corta Essa!” em meados de 1978, logo
depois do fim da censura prévia. A seção de cartuns circulou até julho de
1980, como uma provocação e um grito de liberdade. Mesmo com parcos
recursos gráficos, a última página foi muitas vezes portadora dos comen-
tários mais mordazes e certeiros sobre os fatos da semana.
A primeira edição foi a 155, uma depois da queda da censura. O texto avi-
sava, dúbio: “Humor cortante, pode causar apreensões”. E prosseguia:
Aproveitando o espaço conquistado e revivendo o saudável há-
bito da gozação, os humoristas de Movimento cumprimentam os
leitores e pedem licença para apresentar mimosa coletânea de
diatribes contra a prepotência. E desafiam: corta essa! corta essa,
leitor, e cola na escrivaninha, na oficina, na parede do bar...
“Eu que sugeri esse nome, ‘Corta Essa!’, que era uma expressão que eu
achava descontraída, gozadora e meio crítica. Também sugeria várias coi-

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Jornal Movimento, uma reportagem

sas, pretendia-se que o jornal fosse popular, então que o trabalhador cor-
tasse lá pra colar na parede...”, diz Alcy, que editava a seção junto com
Chico Caruso. E era também uma evidente referência à censura.
Flávio de Carvalho, editor de internacional, foi assíduo colaborador da
seção e chegaria a editá-la. Ele lembra que a ideia surgiu, claro, numa
mesa de bar.
Como a gente volta e meia depois do fechamento ia “prum”
boteco, numa rua paralela à Virgilio de Carvalho Pinto – Flor
do Pinho o nome, a gente chamava de Pinho Sol – as conversas
foram ficando engraçadas, e assim veio essa ideia de fazer uma
seção de humor que fosse também política, com sátira.9
Com a sua colaboração a seção trazia também poesias satíricas e algumas
“cartas do leitor” fictícias.
Do lado do texto de alerta sobre o conteúdo “perigoso”, a primeira edi-
ção trazia uma charge do Angeli que mostrava um jornalista diante da
máquina de escrever numa redação. Ele olha pra um tipo baixinho, bi-
godudo, que trazia consigo um gordo com cara de poucos amigos: “Bom,
agora é liberdade com responsabilidade e o Nelsão vai ficar aqui pra não
deixar que você se esqueça disso”.
Abaixo, um cartum do João Zero vai direto ao ponto. Um jornalista de TV,
microfone na mão, lança para um senhor de terno e gravata: “E agora, se-
nhor Ministro da Economia, a última pergunta: me empresta 50 paus?” No
canto inferior esquerdo, uma charge assinada pelo Jota e o Chico Caruso:
um general com várias estrelas no peito faz continência e diz “Estado de
direito, volver!”
“Corta Essa! era um desafio”, diz Alcy.
Inicialmente era o Chico e eu que editávamos. Editar com-
preendia o seguinte: receber os desenhos, selecionar e fazer o
layout da página, dar destaque pra um, pra outro. Era pauleira,
os caras fechando na gráfica e a gente ia até 4, 5 horas da ma-
drugada. Era produtivo, era ótimo!
E não faltava material, segundo ele: “Havia um interesse grande, tinha
muita gente que era, estava sendo ou queria ser ilustrador, cartunista, apa-
receram vários caras. Tinha o João Zero, o Saiti... Então muita gente pu-
blicou ali”. Vale lembrar outros nomes que passaram pela seção: Luscar,
Glauco, Arnaldo, LOR, Duá, Vasqs, Nilson, Maringoni, Henfil, Laerte, Ohi.
A equipe foi responsável por ótimos momentos do jornal. Quem fosse à
última página da edição 169, de 25 de setembro de 1978, veria um cartum
do Alcy em que dois amigos conversam:
– Caiu o AI-5!
– Em cima de quem?
Na edição 197, de 15 de abril de 1979, Maringoni brincava com a proposta
de anistia feita por Figueiredo. Um oficial anuncia: “Saiu a Anis”, ao que
um homem comenta para o outro: “É a tal anistia parcial do Figueiredo.”
9 Entrevista de Flávio de Carvalho em 6 de julho de 2010.

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A arte da resistência

Uma das vítimas favoritas da seção foi ele mesmo, Figueiredo – que, é
bem verdade, colaborava muito. Assim, na edição 165, a frase acima da
seção é “A última do Figueiredo: nem me conte, tenho medo!”. E abai-
xo: “o rapaz tem futuro... Senão como presidente, como redator do Corta
Essa!”. Foram muitas charges sobre a célebre frase “prefiro cheiro de ca-
valo a cheiro de povo”, por exemplo. Uma, do “Alchico”, mostrava uma
égua recebendo um carinhoso “cheiro” do futuro presidente.
Foi uma charge sobre Figueiredo, aliás, que rendeu um aditamento ao
processo pela Lei de Segurança Nacional contra Tonico Ferreira (capítulo
18). Era o desenho de uma urna com forma de cavalo que havia caído em
cima de alguém (ver à página 206). A charge foi vista como desrespeitosa
pelo Procurador Geral junto à Justiça Militar, mas durante a audiência al-
guns dos ministros do Tribunal Militar não conseguiram evitar um sorriso
ao olhar para a seção.
O flagrante saiu numa foto na edição 189, e a turma do Corta Essa! come-
morou, no mesmo número:
... não é que no julgamento do nosso editor responsável na
Auditoria do II Exército por chacota por nós perpetrada e con-
siderada (por eles) atentatória à Segurança Nacional, no jul-
gamento, dizíamos, desalentados que estávamos com a mo-
nótona rotina de fazer troça sobre troça, chiste sobre chiste,
pilhéria sobre pilhéria, e ninguém (ninguém) rir, eis que se
nos acontece... O quê ? Verifique na foto! Os juízes militares se
divertem com o Corta Essa! Quer dizer que funciona! Fazemos
rir! Existimos! Somos engraçados! Ficaremos ricos!
Ninguém ficou rico, claro. E com o tempo os principais colaboradores,
como Chico Caruso e Alcy, acabaram debandando para outras empreita-
das. Alguns continuaram colaborando, em especial Jota e Nilson, que che-
gou a fazer edições inteiras sozinho. Mas sem uma liderança comprometi-
da, a seção passou a ser errática, sumindo por algumas semanas. Quando
o jornal celebrava cinco anos, em julho de 1980, ela não dá as caras. Só
reaparece na edição 251, de 21 a 27 de abril de 1980, totalmente reformu-
lada e a cargo do já bastante sobrecarregado Flávio de Carvalho.
A seção passou a ter cruzadinhas satíricas com perguntas sobre o des-
tino do País, por exemplo. Flávio de Carvalho também publicava notas
políticas de bastidores carregadas de ironia. Outra constante eram os ho-
róscopos como este, da edição 252:
Capricórnio. Pessoas nascidas sob esse signo são metalúrgi-
cas e têm salário médio de 12 mil cruzeiros. Os comunistas,
que nascem sempre em peixes, se infiltram entre os capricor-
nianos para propagandear idéias deletérias à classe dominante
e para insuflar greves que são legais no primeiro decanato mas
que viram ilegais no segundo.
Uma das marcas desse período final era a sátira sobre os militantes da
esquerda. Flávio ainda traz na memória: “Uma que teve muita repercus-

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Jornal Movimento, uma reportagem

são era sobre um personagem da esquerda, mas superconservador. Ele


tinha um lema que era tipo retroceder com decisão”. Na verdade o bordão
era “retroceder ofensivamente”.
Outros personagens eram o prof. Péssimus Ignotus e o Sr. Rocha Corvo,
que se empenhavam ferrenhamente na disputa interna de poder. Na edi-
ção 257, de 2 de junho de 1980, chegaram a tentar tomar o poder da seção,
segundo uma nota intitulada “Racha no Corta Essa!” No caso dos dois
vilões a coisa não deu certo. Após fazer “grandes análises de conjuntura”
que previam a “derrocada do regime para o dia seguinte”, eles haviam
marcado a data da revolução para o dia 28 daquele mês, às 12 horas, no
Viaduto do Chá. Não compareceram. “Alegaram eles que não puderam
comparecer ao local e hora da Revolução por terem, descuidadamente,
marcado dentista para o mesmo horário”, elucida o texto.
Para Flávio de Carvalho, a seção fazia sucesso porque nenhuma outra
publicação de esquerda tinha uma seção de humor. “Mas quando foi acu-
mulando muitos problemas no jornal, aí tinha gente que não gostava, que
achava que o jornal era sério, que não podia ter essas coisas, então teve
uma assembleia em que foi votado o fim da seção”.
Ele se refere à Convenção Nacional de cinco anos de Movimento, rea-
lizada em 19 de julho de 1980 com a participação de 350 funcionários
e acionistas. Durante a reunião, que durou doze horas, algumas pessoas
propuseram encerrar Corta Essa!. Raimundo defendeu a continuidade,
mas a proposta saiu vitoriosa – democraticamente, embora em votação
apertada. A edição 264, de 21 de julho de 1980, seria a última do Corta
Essa!. “Foi uma surpresa isso de ver que tinha muita gente mal-humorada
na esquerda”, reclama Flávio de Carvalho.

UM TOQUE DE ICONOCLASTIA
Antes mesmo de nascer Corta Essa!, uma experiência de humor já havia
sido feita em Movimento – uma espécie de “avó” da seção. Foi a edição
especial de fim de ano de 1977, chamada “Pacotão de Natal”.
“O Chico falou pro Raimundo, aí a gente reuniu os cartunistas e fomos
lá em casa”, lembra Alcy.
E nós chamamos o Myltainho, que ficou sendo o editor.
Mylton Severiano tinha sido de Realidade, do Bondinho, do
Ex, tinha um texto atrativo, e juntamos material pra fazer um
negócio de fim de ano. O Myltainho quando viu falou: “é um
pacotão!”
Ele explica que o “Pacotão” foi inspirado nos “pacotes”, decretos de res-
trição das liberdades democráticas, que o Geisel lançava, especialmente
o de abril de 1977: “Fizemos brincadeiras com todas essas estultices dos
golpistas de 1964.”10
A edição saiu recheada de matérias fictícias de repórteres como Caco
Barcellos, charges, cartuns e textos satíricos – por exemplo, um texto do
10 Entrevista de Mylton Severiano em 21 de julho de 2010.

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A arte da resistência

“Professor Pereira”, escrito pelo Raimundo, e um do Nilsinho, em que uma


vidente anunciava como seria o ano de 1978. O especial tinha duas faces:
na primeira, era “Pacotão de Natal!” e satirizava temas natalinos. Do outro
lado, no que seria a última página, havia outra capa, chamando a edição de
“Pacotão de Ano Novo”. Assim, passado o Natal, era só virar o lado.
O jornal foi vendido de mão em mão pela turma. “A gente ia vender à noite,
vender o jornal e beber”, relembra Alcy. “Na verdade, vendeu mais ou me-
nos. Mas foi um jornal legal, todo mundo que fez gosta de ter participado”.
“Um ‘produto’ que nos divertiu bastante fazer”, resume Myltainho.
Fechei junto com os irmãos Caruso, Chico e Paulo. Foi uma for-
ma de fazer “caixa”. Eles gostaram tanto que queriam transformar
num periódico de humor. Mas não houve condições político-eco-
nômicas para tanto, o mar ainda não estava para peixe.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Edição 154 de 12 de junho de 1978. Desenho de Elifas Andreato.

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A luta contra
a censura

A
edição de nº 2 de Movimento teve 14 matérias vetadas, 12
parcialmente cortadas, num total de 72 laudas. Várias ilus-
trações não puderam ser publicadas. A capa, que anuncia-
va uma longa reportagem sobre a crise dos trens da Central
do Brasil, teve que ser substituída depois que metade da
matéria foi vetada. Na mesma edição, uma reportagem sobre indicadores
sociais no País, feita por Teodomiro Braga, também foi censurada; e até
mesmo a história de um meeiro do interior de Minas Gerais, feita por
Murilo Carvalho, ficou de fora.
Mesmo assim, o jornal saiu com 28 páginas, em alguns artigos trazia
a crítica à política de distensão do governo, à incompetência da Arena
(o partido governista) e às escorregadelas adesistas de parte do MDB, o
único partido legal de oposição. Trazia reportagens de denúncia como
a de Aguinaldo Silva sobre o insolúvel assassinato da menina Aracelli
em Vitória (ES), de irregularidades e corrupção no DNER, do processo
de desnacionalização da indústria, de poluição do ar na cidade de São
Paulo. Um artigo do cientista Marcelo Damy criticava o acordo nuclear
feito com a Alemanha. A editoria de Internacional contribuía com uma
entrevista feita pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez com o
general Omar Torrijos, governante do Panamá, que tentava recuperar a
soberania sobre a zona do canal; também registrava a crise do peronismo
na Argentina, e uma derrota do Partido Socialista de Portugal depois da
“revolução dos cravos”. Havia uma seção com muitas notas curtas trazen-
do informações importantes. A editoria de Cultura contribuiu com cin-
co páginas: Jean-Claude Bernardet noticiava a crise do cinema brasileiro,
José Miguel Wisnik comentava o lançamento de dois discos e uma nova
postura do compositor Caetano Veloso; Flávio Aguiar entrevistava o es-
critor João Antonio. Em “Estórias Brasileiras”, contos de novos escritores,
Murilo Carvalho e Emanuel Medeiros Vieira.
A edição nº 3 também teve 14 matérias vetadas, 10 parcialmente censu-
radas, num total de 59 laudas cortadas, sem falar nas ilustrações e na capa.

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Jornal Movimento, uma reportagem

O jornal saiu com 28 páginas. A matéria principal, uma grande geada no


Paraná, feita pelos jornalistas apoiadores de Londrina, foi inteiramente
vetada. Mas um texto da redação, intitulado “Um grande frio”, apresentou
um cenário geral do País, atingido por uma onda de frio histórica, neve e
geada no Sul, que queimou as plantações desde o Rio Grande do Sul até
Minas Gerais. Em São Paulo, apenas uma consequência positiva, a chuva
desvaneceu a nuvem de poluição que sufocava a cidade. No Nordeste,
porém, a frente fria produziu inundações gigantescas, parte da cidade de
Recife ficou embaixo da água, 26 mortes foram anunciadas. Ao mesmo
tempo, mais um desastre de trem no Rio de Janeiro provocara 11 mor-
tes. Segundo o jornal, o presidente Geisel e parte do comando político e
militar do governo foram se reunir na sede da ferrovia Central do Brasil,
no Rio, para avaliar a sequência de desastres na via férrea mais saturada
do País. O ministro Mario Henrique Simonsen, da Fazenda, veio a públi-
co para dizer que a dívida externa assumia proporções ameaçadoras. Foi
uma semana de más notícias. O texto era um retrato áspero mas fidedigno
do País: o povo estava sofrendo e a ditadura, em dificuldades.
Havia uma detalhada cobertura da reunião da Sociedade Brasileira Para o
Progresso da Ciência, SBPC, que se tornara um espaço para o debate de teses
cada vez mais politizadas; um questionamento de Bernardo Kucinski sobre a
quebra do monopólio estatal dos minerais atômicos no acordo nuclear com
a Alemanha; a crítica a um líder do MDB que apoiava o AI-5. “Vampiros
tropicais”, na página 11, era um texto brilhante de Aguinaldo Silva sobre os
bancos de sangue que exploravam os pobres e desempregados da Baixada
Fluminense. Mas dessa vez ele teria que dividir a glória de melhor texto com
“O Circo”, da seção “Cena Brasileira”, de Murilo Carvalho, na página 3, a
história de um circo mambembe, viajando pelas cidades mais pobres e dis-
tantes do País. As atrações eram um anão, um equilibrista que não conseguia
se equilibrar, um atirador de facas desastrado e uma comédia da qual a pla-
teia participava entusiasmada. Em certa altura a vida real invadiu a trama. O
espetáculo foi interrompido por um espectador embriagado que manifestava
sua desaprovação falando palavrões. Recebeu uma lição de moral em judi-
ciosas palavras do palhaço e, para maior euforia do público, de seu próprio
filho, que também estava na plateia, e que pregava sobre os malefícios da
bebida. Sob vaias, o bêbado chorou. Plateia e atores participando da trama,
tudo terminava com grandes aplausos.1
A edição nº 4 de Movimento teve 14 matérias totalmente vetadas, 12 par-
cialmente cortadas, publicadas com mutilações, num total de 94 laudas
censuradas. Por exemplo, deixaram de sair uma reportagem sobre Cuba,
um artigo do general Albuquerque Lima sobre os contratos de risco para
exploração de petróleo; outro, sobre a crise e a estatização de empresas;
uma carta de leitor tratando da política indigenista; uma Cena Brasileira
descrevendo a vida de um trabalhador meeiro, e um artigo sobre o general
Golbery. Essa edição também saiu com 28 páginas.

1 Movimento nº 3, 21 de julho de 1975.

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A luta contra a censura

AS VÁRIAS ETAPAS DA CENSURA


Para se entender a evolução da censura em Movimento é preciso enten-
der a sua evolução sob a ditadura. A censura sob o regime militar teve
várias etapas. A primeira é a do próprio golpe. Foi o momento da censura
à mão armada. Nele se destruiu um pedaço extraordinário da imprensa
brasileira, toda a imprensa comunista e socialista, os jornais sindicais e
estudantis. Foi destruído, também, talvez o melhor dos grandes jornais
do País, Última Hora, o maior representante da imprensa nacionalista e
democrática, do jornalista e empresário Samuel Wainer. Era uma cadeia
de jornais, com edições em várias capitais, cuja fundação, em 1950, havia
sido apoiada pelo presidente Getulio Vargas. Concorria com os jornais de
Assis Chateaubriand, outro famoso empresário do setor, criador da ca-
deia dos Diários Associados, de orientação conservadora, que, ainda em
2010, tinha jornais remanescentes, como o Correio Braziliense, O Estado
de Minas e o Diário de Pernambuco. Última Hora era um jornal político.
Apoiou o governo Vargas eleito em 1950, até o suicídio do presidente, em
1954. Depois, apoiou também o governo do herdeiro político de Vargas,
João Goulart, até sua deposição pelo golpe militar de 1964. Era um jornal
vibrante, com ampla cobertura noticiosa, nacional, internacional e local,
abrindo um espaço inédito na grande imprensa para notícias do movimen-
to sindical, e movimentos populares, como os das associações de bairro e
outras reivindicações das comunidades. Tinha uma forte cobertura poli-
cial. E uma seção de cultura expressiva, na qual escreviam críticos como
Paulo Emilio Sales Gomes, Paulo Francis, Jean-Claude Bernardet. Um dos
humoristas do jornal era o carioca Sérgio Porto, conhecido como Stanislaw
Ponte Preta, o outro, o paulista Arapuã. Também Aparício Torelli, o famo-
so Barão de Itararé, foi colaborador. Tinha uma série de colunistas políti-
cos, entre eles Jânio de Freitas, em 2010 ainda ativo na Folha de S.Paulo.
A UH tinha oito edições regionais. José Ermírio de Morais, empresário na-
cionalista, apoiou a criação da Última Hora do Recife, que fez a campanha
que o elegeu senador pelo estado de Pernambuco na chapa com Miguel
Arraes, que se elegeu governador do estado.
O golpe militar derrubou o governo de João Goulart, que apoiava Última
Hora. E destruiu o jornal. A corrente política que UH representava foi afas-
tada do poder. Muitos de seus protagonistas foram presos. Outros perderam
seus mandatos. Até empresários perderam mandatos, como foi o caso de
Fernando Gasparian, dirigente de sindicato patronal, afastado pela ditadura.
O empresário Rubens Paiva, amigo de Gasparian, foi preso, torturado e mor-
to. Seu corpo continuava desaparecido quarenta anos depois.
Ao se falar da censura não se destaca suficientemente esse ponto: o golpe
armado de 1964 destruiu tanto a imprensa socialista como a nacionalista e
democrática. Também não se destaca suficientemente que o golpe se voltou
violentamente contra os comunistas. Os jornais comunistas tinham uma cir-
culação quase livre. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) não tinha existên-
cia legal, mas tinha uma grande liberdade de atuação. Mantinha nas bancas

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Jornal Movimento, uma reportagem

vários jornais, entre eles o semanário Novos Rumos. O outro partido comu-
nista, o PCdoB, tinha A Classe Operária. A esquerda católica editava o se-
manário Brasil Urgente. Outras correntes de esquerda tinham jornais, como
o Semanário, o Ligas, das Ligas Camponesas. Com o golpe, seus dirigentes
foram perseguidos, vários de seus jornalistas foram presos e mortos. As gráfi-
cas que possuíam foram invadidas e confiscadas.
Essa censura inicial foi a mais radical e muitos de seus efeitos persistem
até hoje. Mesmo agora, quase meio século depois do golpe, o País não tem
mais, em escala ampla, em nível nacional, nenhum jornal da chamada
grande imprensa de qualquer modo parecido com o que foi Última Hora.
Em 1967, empresários progressistas fizeram no Rio de Janeiro o Sol, um
diário de oposição. Mas era um jornal diferente, mais voltado para as-
suntos culturais para fugir da repressão. Além disso, teve pouquíssima
duração. Pode-se dizer que, no campo político, Opinião (1972-1977) foi o
único grande projeto de imprensa da burguesia nacionalista e democráti-
ca que se desenvolveu depois do golpe. Mas era um semanário e não teve
alcance comparável ao de Última Hora.

O AI-5 E O APARATO DA CENSURA


Depois dessa censura inicial houve momentos e episódios de censu-
ra. Mas um aparato censório formal só foi construído com base no Ato
Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que suspendeu todas as
garantias e liberdades individuais previstas na Constituição e permitiu
aos generais no comando da Presidência do País governar por atos não
passíveis de exame pelo Congresso Nacional e pela Justiça. Logo depois
da decretação do AI-5, o general Silvio Correia de Andrade, delegado da
Polícia Federal em São Paulo, declarou em entrevista coletiva:
Podem dizer que foi instaurado o arrocho à imprensa escrita,
falada e televisada por parte do Contel, sob minha fiscalização
direta. Os jornais estão sob censura no que diz respeito a gre-
ves, passeatas, comícios, agitação estudantil e qualquer tipo de
ataque às autoridades.
Em 8 de setembro de 1970, uma extensa lista de normas foi apresentada
a delegados da Polícia Federal durante um congresso no Rio de Janeiro.
As recomendações, reproduzidas pelo jornalista Maurício Maia de Souza
em sua dissertação de mestrado,2 incluíam vetar notícias “falsas”ou sen-
sacionalistas, testemunhos em off, de fontes anônimas, comentários dos
punidos pelos atos institucionais ou ligados a entidades estudantis dissol-
vidas. Também eram proibidos relatos de ações de religiosos que criassem
tensões ou choques religiosos, greves e movimentos operários capazes de
promover a subversão da ordem e, claro, notícias sobre todo tipo de re-
pressão: cassações de mandatos, suspensão de direitos políticos, prisões,
tortura. Em documento de 29 de março de 1971, o ministro da Justiça,
2 Souza, Maurício Maia. Henfil e a censura: o papel dos jornalistas. São Paulo, 1999. Dissertação
(Mestrado) – Escola de Comunicação e Artes, USP.

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A luta contra a censura

Alfredo Buzaid, reafirmou os assuntos proibidos: os referentes a campa-


nhas de revogação dos atos institucionais, especialmente o AI-5; os de
“inconformidade com a censura”; de “contestações ao regime vigente”; as
“notícias sensacionalistas que prejudiquem a imagem do Brasil no exte-
rior”; as “notícias para agitar meios estudantis e sindicais”, “sobre censu-
ra e prisões políticas”; a “descrição minuciosa de crimes ou atos sociais”;
as “notícias sobre tensões de natureza religiosa”; as “que coloquem em
perigo a política econômica do governo”; a “divulgação alarmista de mo-
vimento subversivos em países estrangeiros, bem como divulgação que
venha indispor o Brasil com nações amigas”.3
A censura foi suspensa em etapas. No início de 1975, o governo Geisel
suspendeu os avisos de temas censurados expedidos diariamente para os
grandes jornais, que não precisavam de censura na redação, porque obe-
deciam aos avisos. Acabou, ainda, com a censura na redação de O Estado
de S. Paulo, que não obedecia aos avisos. E suspendeu também a censura
na revista Veja. A censura a Movimento, O São Paulo, jornal da cúria
metropolitana de São Paulo, dirigido por dom Evaristo Arns, e a Tribuna
da Imprensa, jornal do Rio de Janeiro, dirigido por Hélio Fernandes, só
acabou em junho de 1978. Opinião foi fechado por Gasparian em abril de
1977, ainda sob censura.

A CENSURA E A LUTA INTERNA DO REGIME


Uma visão conservadora vende a história da censura da ditadura como
sendo a da luta entre duas correntes: uma, do bem, que seria liderada pelo
general Ernesto Geisel e seu assessor Golbery do Couto e Silva, que co-
meçou a abrir o País a partir de certa época e eliminou a censura; e outra,
do mal, formada por nacionalistas sanguinários que mataram, prenderam
gente e censuraram. É um equívoco: tanto a censura como a luta contra
ela foram acontecimentos mais complexos. Setores da imprensa que re-
presentavam o grande capital, como O Estado de S. Paulo, resistiram à
censura. Houve luta contra a censura nas redações dos jornais do grande
patronato. Nesses locais houve resistência até mesmo de personalidades
em altos cargos, como o jornalista Mino Carta, diretor de redação de Veja.
Carta acabou sendo um empecilho para o acordo da empresa dona da
revista, a Editora Abril, com o regime militar, para suspender a censura à
publicação. A ditadura só liberou a revista depois que Carta foi afastado,
no final de 1976.
Também houve uma vigorosa resistência à censura por parte dos jor-
nalistas de órgãos clandestinos. Partidos e organizações em luta contra
a ditadura recriaram as gráficas destruídas pelo golpe e continuaram pu-
blicando jornais, apesar de todos os riscos. Apenas um exemplo, o jornal
Libertação, órgão da Ação Popular, e depois do PCdoB, foi publicado con-
tinuamente de 1968 a 1975.
3 Idem.

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Jornal Movimento, uma reportagem

E, no campo oposto, do lado da ditadura, as medidas tomadas refletiram


problemas mais amplos e não apenas as posições ideológicas das correntes
militares. A censura, por exemplo, foi relativamente contida no início do
governo do general Emílio Médici (1969-1973), que é visto de um modo
geral como o mais sanguinário dos generais. A história da censura a Veja
é emblemática dessa situação. O semanário surgiu em setembro de 1968.
O AI-5 veio logo a seguir. Em 1969, o presidente, general Costa e Silva,
teve um derrame. A incapacitação do general deixou os militares sem um
sucessor escalado. Formaram-se correntes entre os blocos de generais das
três armas – Exército, Marinha e Aeronáutica – para disputar a sucessão.
Veja estava vendendo apenas 15 mil exemplares em banca, depois de ter
vendido 700 mil exemplares no lançamento. E Mino Carta aproveitou a
crise entre os militares para fazer a revista crescer. Formou uma equipe,
dirigida por Raimundo Pereira, que depois se tornaria o editor de política
da revista. Na equipe estavam repórteres mais tarde famosos, entre eles:
Elio Gaspari, Dirceu Brizola, Luiz Gutemberg, Bernardo Kucinski e Almir
Gajardoni.
Essa equipe cobriu a crise da “sucessão presidencial”, que durou várias
semanas, até a escolha do general Médici como presidente. Ouviu as três
facções militares que se formaram: a do general Albuquerque Lima, um
dos pretendentes à sucessão; a do general Médici, que venceu a disputa; e
a do general Ernesto Geisel, que saiu da contenda escalado como o suces-
sor de Médici.Veja ousadamente aproveitou uma brecha para fazer uma
cobertura histórica. Quando Médici assumiu, por alguma razão, a certa
altura falou para um assessor que não ia admitir torturas. A revista publi-
cou, então, como matéria de capa: “O presidente não admite torturas”. Na
semana seguinte, o repórter Elio Gaspari encontrou o ministro da Justiça,
Alfredo Buzaid, no aeroporto Santos Dumont, mostrou-lhe a capa de Veja
e perguntou: “Ministro, o presidente não admite torturas. O que o senhor
fará?”. Buzaid falou: “Vou mandar investigar”. E aí a equipe da revista,
com o apoio de Mino Carta, que mandou desligar os telefones da revista
para não receber as proibições da censura, fez todas as sucursais levanta-
rem histórias de torturas no Brasil. Foi feito um dossiê, que o presidente
da editora Abril iria levar depois às autoridades militares. Com o dossiê se
fez a histórica capa de Veja, de dezembro de 1969: “Torturas”.
A censura tornou-se mais pesada a partir de meados de 1972. Nos anos
anteriores, a partir de 1968, o Brasil vivera um surto de crescimento eco-
nômico espetacular, que chegou a 10% ao ano. Essas condições começa-
ram a mudar quando o milagre terminou e, de outra parte, surgiu, dentro
da resistência armada ao regime, uma ameaça que, de início, pareceu mui-
to perigosa, a guerrilha do Araguaia. A ditadura não conseguiu derrotar
a guerrilha numa primeira e grande operação militar, ficou preocupada,
aumentou a repressão. A censura, aí sim, tornou-se permanente em certos
órgãos. O ano de 1973, o último do governo do general Mécidi, e 1974, o
primeiro do governo do general Geisel, foram os da censura mais pesada.

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A luta contra a censura

Nesses anos o regime organizou seu ataque vitorioso contra os guerri-


lheiros do PCdoB. Os guerrilheiros foram perseguidos, presos, torturados
e mortos, a maior parte deles, quando já estavam presos, sob responsabi-
lidade do Estado. Seus corpos foram escondidos e, com exceção de dois,
cerca de 70 continuavam desaparecidos em 2010. Como Elio Gaspari mos-
tra em seus quatro livros sobre a ditadura, a quantidade de desaparecidos
é maior no período do general Geisel, tido por muita gente, até hoje, como
o mais liberal, do que no governo do general Médici, considerado o mais
fascista.
Quando a censura saiu formalmente de toda a imprensa, em junho de
1978, ficou, no entanto, um aparato de censura operando na clandestinida-
de e acobertado pelo aparato repressivo legal, que fez atentados contra as
bancas de jornais para impedir a venda dos jornais alternativos. E, curio-
samente, um empresário da grande imprensa patronal, Julio Mesquita
Neto, editor de O Estado de S. Paulo, ajudou a programar atos de protesto
contra a nova forma de repressão à imprensa, fez parte de comissões. Não
teve uma participação mais ativa, mas emprestou solidariedade política
também à luta contra esse tipo de censura.

A PREOCUPAÇÃO DO REGIME COM MOVIMENTO


A censura a Movimento teve episódios absurdos. Certa vez, o censor vetou
todos os nomes próprios de uma reportagem sobre a lei do inquilinato.
Em outra ocasião cortou todos os “nãos” de uma matéria. Mas esteve lon-
ge de ser uma censura ridícula e aleatória. Os arquivos do Ministério da
Justiça, à disposição no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, oferecem uma
rica documentação de como o governo tratava Movimento. Os documen-
tos evidenciam a preocupação e a seriedade com que as autoridades da di-
tadura o encaravam. Jamais lhe deram folga. Até 8 de junho de 1978, data
em que foi suspensa, a censura prévia havia vetado no jornal 3.093 artigos
na íntegra, além de 450 mil linhas de textos parcialmente cortados e 3.162
mil desenhos. Mais de 4,5 milhões de palavras foram vetadas – cerca de
40% do conteúdo produzido, conforme balanço feito pelo semanário em
sua primeira edição sem censura.4
A preocupação dos agentes da repressão com o jornal fica evidente pela
frequência com que o material enviado para a censura ia também para o
Ministério da Justiça e para o Serviço Nacional de Informações (SNI), o
principal serviço de informações da ditadura. Em 7 de outubro de 1976,
um funcionário da Polícia Federal, ao explicar que “o material censurado
seria entregue com atraso”, disse que “o mesmo estava sendo lido pelo
SNI”.5 Outro documento, hoje também no Arquivo Nacional, é o estudo
sobre a censura a Movimento realizado pelos agentes do Cenimar, o centro
de informações da Marinha. Datado de abril de 1978, o texto detalha as
técnicas de “propaganda adversa” usadas pelo jornal nas matérias vetadas
4 Movimento 154, 12 de junho de 1978.
5 Idem.

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Jornal Movimento, uma reportagem

desde abril de 1977. O jornalista Maurício Maia acha que esse estudo teria
sido “a última cartada dos setores mais duros das Forças Armadas para
manter parte da imprensa sob controle direto”.6
O Cenimar analisou e classificou 1.182 artigos e 944 ilustrações e desco-
briu “técnicas de propaganda” utilizadas, como “insinuações”, “simplifi-
cações”, “generalizações” e “desfiguração dos fatos”. Com a intenção de
demonstrar a periculosidade do jornal, a análise apontava também outros
métodos adotados “no esforço subversivo de ‘conscientização’ e de modi-
ficação das ‘condições subjetivas’ da população”. Para o Cenimar, o jornal
utilizava tom de “vitória inevitável” sobre a ditadura, o uso de “testemu-
nhos” contrários ao regime, fazia “orquestração” pela Constituinte e usava
e abusava de ataques pessoais às figuras do poder.
Por sua vez, o SNI fazia relatórios semanais sobre o conteúdo de jornais
da imprensa alternativa, entre eles Movimento. Até 1981, esses relatórios
repetidamente chegavam à mesa do ministro da Justiça pedindo provi-
dências. É o caso do informe de 30 de junho de 1979,7 que tratava de uma
entrevista com um “mateiro” que trabalhou para o Exército durante a caça
à guerrilha do Araguaia, publicada na edição 210 de Movimento. Para o
SNI, a reportagem dava uma versão “francamente favorável aos guerri-
lheiros do movimento armado”, e enfatizava o papel “heroico” deles. A
conclusão do informe é de que a matéria visava despertar a atenção para
o problema dos desaparecidos.
Em julho de 1979, chegava ao Ministério da Justiça outro informe8 em
tom de forte alerta, sobre a entrevista com João Amazonas, o principal
dirigente do PCdoB, publicada na edição 215 de Movimento, de 13 de
agosto. Destacava a defesa da luta armada e a promessa de Amazonas de
voltar ao Brasil ainda em 1979. E concluía:
É lícito admitir-se um recrudescimento na pregação da luta
armada, em face do retorno, cada vez maior, ao Brasil de mili-
tantes do PCdoB, anistiados, que nas declarações à imprensa
demonstram claramente a radicalização existente em favor da
principal bandeira do partido: a derrubada do atual regime.
Outra reportagem que acirrou os ânimos do SNI foi a revelação de que o
comandante de um sequestro que tinha tido grande repercussão política
e cuja autoria passara por ser desconhecida, a do bispo de Nova Iguaçu,
dom Hipólito, fora um coronel do Exército. Movimento publicou o nome
do coronel, José Ribamar Zamith, e a foto dele na capa.
Além de relatar o conteúdo da matéria, o SNI alertava para a crescente
importância do jornal. O informe diz que Movimento,
adotando uma grande variedade de assuntos em cada edição,
vem constituindo-se em veículo de sistemática campanha con-

6 Souza, Maurício Maia, op. cit.


7 Documentos no Arquivo Nacional. Palavras-chaves: Brasil, Arquivo Nacional, Rio, Divisão de
Segurança e Informações do Ministério da Justiça, Movimentos Contestatórios, Processo. O Código é
como segue: BR_AN_RIO_TT_0_MCP_PRO_1718.
8 BR_AN_RIO_TT_0_MCP_PRO_1721.

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A luta contra a censura

testatória ao governo e ao regime, logrando, por força dos en-


foques explorados, a maior parte deles de natureza política,
influenciar a opinião pública favoravelmente aos regimes de
esquerda.9
Em 1980, os informes continuaram. Um deles fazia uma espécie de des-
crição do suposto plano subversivo dos editores de Movimento. Diz o in-
forme de 16 de julho de 1980:
Indispor a população contra autoridade, instituições e as
Forças Armadas; induzir o povo a acreditar que pode haver
conciliação entre o cristianismo e o comunismo; exaltar o cle-
ro progressista e depreciar o clero conservador; persuadir o
povo a colocar-se contra o acordo nuclear e a favor da convo-
cação de uma Assembléia Nacional Constituinte e fazer prose-
litismo de esquerda foram os objetivos a que se propuseram os
editores no exemplar 260 do jornal supracitado.10

TRABALHO DOBRADO, “NO ESCURO”


A censura a Movimento já a partir do primeiro número foi além do espe-
rado. Desde as primeiras reuniões para a formação do jornal, no entanto,
Raimundo Pereira sempre insistira que a cara da publicação só seria defi-
nida após ser conhecido o peso da censura. E ela passou a ser desde logo
um fator muito presente na pauta do jornal. Tanto que, numa reunião de
pauta, logo após o seu final, em julho de 1978, um editor distraído comen-
tou, sobre uma matéria: “mas será que isso passa?”.
A ordem na redação era fazer o máximo possível para driblar a censura
e, ao mesmo tempo, evitar esforços inúteis. A equação era delicada porque
incluía, segundo Sérgio Buarque, levar em conta a “realidade objetiva”.
Não podíamos perder tempo escrevendo que o general
Médici e o general Geisel eram ditadores, né? Uma estupidez.
Não fazíamos um jornal para censura, mas um jornal para o
público, que era censurado. Uma coisa que sempre evitamos,
e o Raimundo sempre cuidou disso, era querer ser mais esper-
to que a censura, fazer brincadeirinha. Esse tipo de esperteza
nunca nos seduziu porque a gente sabia, éramos prisioneiros
do cara, na semana que vem ele te acaba. Então, sempre foi
um jogo ali da chamada correlação de forças. Nem nós, nem
ninguém, né? Quem que ia escrever que o regime matava e
torturava?
Além dessas questões táticas, havia ainda os problemas práticos criados
pela censura. A partir da segunda edição, a Polícia Federal permitiu a
remessa de material a ser censurado em três partes – na quarta-feira, quinta-feira
e sexta-feira –, o que, graças a um escalonamento do fechamento das ma-
térias, facilitou a produção e a diagramação do jornal. Mas, ainda assim,
9 BR_AN_Rio_TT_0_MCP_PRO_1731.
10 BR_AN_RIO_TT_0_MCP_PRO_1777.

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Jornal Movimento, uma reportagem

sem saber o que viria a ser cortado, trabalhava-se “no escuro”. “Não dava
para planejar nada, não tínhamos nenhum controle. A gente mandava
aquele negócio, não sabia o que vinha de volta e depois tinha muito pou-
co tempo pra editar”, lembra Sérgio Buarque.11 Como não dava para fazer
um espelho – um esboço do semanário, com a programação do conteúdo
de cada página –, o jornal saía não só retalhado no seu conteúdo, mas
também na aparência. Todos os aspectos eram influenciados. Programar
um desenho em uma página com muito texto para dar leveza visual, por
exemplo, por vezes era inviável.
O trabalho, também, era sempre dobrado. Em cada edição faltavam pelo
menos três ou quatro matérias principais. Por isso, toda semana os edi-
tores trabalhavam com três ou quatro artigos de capa diferentes, porque
nunca sabiam quais seriam vetados. No início, a entrega do material era
feita na sede da PF em São Paulo, na rua Piauí, no bairro de Higienópolis.
A cada semana um funcionário diferente era escalado para levar e ir bus-
car. O próprio diretor, Tonico Ferreira, chegou a ir. Sérgio Buarque tam-
bém foi. Os mais escalados eram os novatos. O então estudante Paulo
Barbosa, que trabalhava na área de vendas, era um dos que mais levava o
material, com sua moto – um envelope com mais de uma centena de lau-
das datilografadas, sempre as originais. “Quando eu levava a da quinta à
tarde eu trazia a que havia entregue na quarta. Na sexta, eu buscava a que
entregara na quinta”, lembra Paulo Barbosa. Paulo também tinha que “se
virar” quando havia uma notícia quente, de última hora:
Tinha um censor, era um senhor que morava ali na Peixoto
Gomide, que fazia um atendimento excepcional na casa dele.
Muitas vezes eu fui até lá na sexta à noite pra ele liberar uma
matéria. Mas aí era uma matéria só ou duas...12
Aos sábados uma cópia do jornal já diagramado era levada à PF para que
os cortes fossem checados. Somente após a aprovação o jornal era impres-
so e a distribuidora, da Editora Abril, aceitava distribuí-lo.
A partir de segundo número, enquanto o jornal ia para a gráfica, algum
jornalista (em geral Tonico Ferreira) escrevia um minucioso “relatório da
censura”. O bloco com três ou quatro páginas, detalhando as matérias que
tinham sido vetadas, era enviado a cada uma das sucursais, aos acionistas
e a colaboradores. Além da descrição dos cortes, o relatório trazia sempre
considerações de repúdio à censura.
Os problemas logísticos da censura tornaram-se maiores a partir da edi-
ção de nº 20, de dezembro de 1975. Por exigência da Polícia Federal, a
censura passou a ser feita em Brasília. E, em princípio, numa só remessa.
Dizia o comunicado oficial, assinado pelo superintendente regional da
PF, José Guimarães Barreto:
V. Sa. deverá providenciar a remessa da matéria relativa a
cada edição, inclusive anúncios, fotografias, vinhetas, capa,

11 Entrevista citada.
12 Entrevista de Paulo Barbosa em 17 de dezembro de 2009.

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A luta contra a censura

contracapa etc., à sede do DPF em Brasília às quartas-feiras,


até as oito horas. Cumpre esclarecer que não será permitida a
substituição da matéria vetada, sendo obrigatório o preenchi-
mento de espaços relativos aos vetos com assuntos normal-
mente aprovados e, se não houver, o editor diminuirá o núme-
ro de páginas de edição.13
O jornal respondeu com uma carta à imprensa, que deu alguma reper-
cussão, como uma matéria de duas colunas em O Estado de São Paulo. A
carta dizia tratar-se de
mais um grave cerceamento à liberdade desse jornal e da colo-
cação de novo obstáculo ao funcionamento da empresa que o
edita, feitos através de medidas que não têm amparo de qual-
quer legislação (...)Todos os textos, inclusive anúncios, fotogra-
fias, têm de ser enviados e recebidos por malotes a mais de mil
quilômetros da redação, o que torna cada edição dependente
até mesmo das condições de voos nos aeroportos. Crescem os
custos de telefone, de transportes e mesmo de gráfica.14
Para ganhar tempo, o material era enviado por avião, com a colaboração de
passageiros dos voos comerciais. Paulo Barbosa ia correndo ao aeroporto:
Ficava vendo quais voos iam para Brasília, qual era o pri-
meiro que ia sair... Então ia lá na companhia e via quem estava
fazendo o check-in e conversava com ele, ‘olha isso aqui é um
material de imprensa, o senhor leva pra Brasília? Um rapaz
retira com o senhor no aeroporto’. A grande maioria aceitava,
quase ninguém recusava. Isso naquela época, que todo mundo
tinha medo...15
A sucursal de Brasília cuidava do contato com os censores. Como des-
creve Teodomiro Braga:
O pessoal de São Paulo colocava o material no avião, a gente
ia buscar às oito da manhã. Pegava a matéria, juntava com as
nossas, de Brasília, e mandava para a censura. Muitas vezes,
quem pegava era o contínuo, ia no aeroporto, levava na minha
casa; a gente terminava de fechar lá, juntava e levava na cen-
sura. A censura devolvia os textos às cinco horas da tarde.
Outra tarefa estratégica era distribuir o relatório das matérias censura-
das para colunistas, parlamentares, acionistas e colaboradores. Antonio
Carlos Queiroz, o ACQ, como era conhecido, relata:
Eu tinha na segunda-feira de manhã que fazer o périplo aos
colunistas. Um deles, o mais famoso, era o Carlos Castelo
Branco, do Jornal do Brasil. Eu chegava lá, ele me recebia, fa-
zia um comentário: “Ô, meu filho, o que aconteceu?” e às ve-
zes o papo se desenvolvia mais.
13 AP 2854.02.042 Fnd Mov APSP.
14 AP 285.05.01 Fnd Mov APSP.
15 Entrevista de Paulo Barbosa em 17 de dezembro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Ele também visitava os jornalistas D’Allembert Jaccoud e Pompeu de


Souza, na sucursal de Veja, e Carlos Chagas, na do Estadão, com quem
costumava trocar muitas “figurinhas”.
Muitas vezes o próprio ACQ ia receber o material e levá-lo aos censores:
Pegava um táxi do aeroporto, ia para o setor de autarquia
Sul, na sede da Polícia Federal, num prédio de vidros fumê.
O chefe da censura na época era um tal de Doutor Paulo Leite.
Aí, você ia até a sala dele e entregava o material. Se o avião
atrasasse, ele ficava puto. Eu dizia assim: “Mas é a Vasp, a
companhia aérea, que na época era do governo do estado de
São Paulo, que atrasou, como é que nós vamos fazer?”, e , mais
ou menos por volta de quatro, cinco horas da tarde, quinta-feira,
a censura ligava para a sucursal e dizia: “Tá pronto”. A gente
ia lá e pegava o material, para repassar para São Paulo.
Uma vez aprovado o material, os registros da censura eram transmitidos
em demorados telefonemas interurbanos. Conta ACQ:
Em geral, na época em que eu fazia isso, falava com o
Armando Sartori. E dizia assim: “Armando, matéria número
1”, ele tinha uma cópia lá, aí, eu falava: “...a página 1, liberada.
Página 2, da linha 7 à linha 13, corta. Página 3...” e assim por
diante, ou: “a matéria tá toda censurada.” Isso era um trabalho
medonho, que tinha que ser feito toda semana. E a reação que
se seguia era terrível, porque às vezes o repórter tinha traba-
lhado uma, duas semanas na matéria e ela era simplesmente
vetada. Isso provocava choro, era uma desgraça. Você ficava
naquela tensão tremenda!16
Teodomiro conta que chegou a conseguir certo diálogo com o responsá-
vel pela censura que, apesar de ajudar pouco, era “extremamente cordial”
com eles.
Lembro que o jornal ficava tão magro que a gente tinha que
convencer o Coronel Romão a nos deixar levar mais algumas
matérias, ou, então, fazia um apelo quase que dramático para
ele rever alguns vetos. Aí, ele juntava a equipe, fazia um se-
gundo turno de leitura do jornal e liberava alguma coisa. Mas
isso acontecia pouco. Você tinha que contar com a boa vontade
dele, tinha que pedir, quase que implorar; ele ficava fazendo
corpo mole. Era um negócio assim... extremamente desgastan-
te e difícil de fazer.17

HISTÓRIAS EXEMPLARES DA CENSURA


A censura em Movimento cortava até mesmo notícias já publicadas em
outros veículos. Foi assim a proibição da matéria especial sobre o livro
do então procurador Hélio Bicudo, Meu depoimento sobre o Esquadrão
16 Entrevista de Antonio Carlos Queiroz em 25 de fevereiro de 2010.
17 Entrevista de Teodomiro Braga em 1º de dezembro de 2009.

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A luta contra a censura

da Morte, em 22 de outubro de 1976. A edição consistia basicamente em


um compilado de matérias já publicadas em O Estado de São Paulo e no
Jornal da Tarde. Mas foi completamente vetada – títulos, olhos, fotos,
legendas, tudo. O jornal, através do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh,
decidiu entrar na Justiça contra o governo.
O mandado de segurança pedia a liberação da publicação, alegando “tra-
tamento desigual, inconstitucional, com total ausência de critério” que
feria o princípio de isonomia presente na Constituição Federal. Na peça,
Greenhalgh argumentava que a censura “reflete inequívoco e arbitrário
abuso de poder”, pois, como o material já tinha sido publicado, “parece
que a matéria só se torna censurável por se hospedar em Movimento, o
que evidencia uma conduta arbitrária”.18
O ministro Armando Falcão e o diretor-geral da PF, coronel Moacyr
Coelho, deram a mesma explicação: isso não era da conta da Justiça. “Toda
a matéria submetida para verificação prévia é examinada com base na le-
gislação revolucionária, como tal, salvo melhor juízo, não é suscetível de
apreciação judicial”, dizia o ofício de Moacyr Coelho.19 Como havia um
decreto genérico assinado pelo general Médici estabelecendo a censura
com base no AI-5, o Tribunal Federal de Recursos declinou de sua compe-
tência para julgar o caso.
A censura procurou, também, ir além de suas atribuições. Em 7 de
agosto de 1975, uma carta à redação, assinada por um inspetor da PF de
São Paulo, solicitava “colaboração” em informar nome, endereço e qua-
lificação completa dos responsáveis pelas reportagens do número zero,
outrossim, o endereço e a qualificação do Sr. Sergio Roberto Vieira da
Motta, que figura como fiador do contrato efetivado entre a diretoria e a
PAT – Publicações e Assistência Técnica Ltda”, dizia a intimação20. Pouco
depois, o diretor responsável Tonico Ferreira teve de comparecer à sede
da PF, onde esteve por quatro horas, prestou depoimento e foi informado
de que, com o folheto de lançamento de Movimento, teria infringido dois
artigos da Lei de Segurança Nacional: o artigo 16, que previa dois a cinco-
anos de prisão por “divulgar, por qualquer meio de comunicação social,
notícias falsas, tendenciosas ou fato verdadeiro truncado ou deturpado,
de modo a indispor ou tentar indispor o povo com as autoridades consti-
tuídas”, e o artigo 45, que previa um a três anos de prisão por propaganda
subversiva, “quando o ofendido for órgão ou entidade que exerça autori-
dade pública, ou funcionário, em razão de suas atribuições”. A acusação
era, justamente, pela reportagem “Minha vida com a Central do Brasil”, de
Aguinaldo Silva, e pela matéria sobre as vacilações do ministro Shigeaki
Ueki em relação aos contratos de risco para exploração de petróleo, publi-
cadas no número zero.

18 O Estado de S. Paulo, 6 de novembro de 1976.


19 Ofício 110/76- SIGAB/DG/DPF – Arquivo pessoal de Luiz Eduardo Greenhalgh.
20 AP 294.04.005 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Mas Movimento foi censurado especialmente pelo seu esforço de co-


bertura de assuntos que causavam grande preocupação para o regime. As
cinco histórias a seguir são esclarecedoras:

CONTRATOS DE RISCO DE PETRÓLEO


A edição 15 de Movimento traria uma análise detalhada sobre o tema dos
contratos de risco que o governo anunciou que iria fazer com empresas priva-
das, nacionais e estrangeiras, para exploração de petróleo no País, que rom-
piam o monopólio da exploração de petróleo da Petrobras estabelecido por
Vargas. A edição teria uma carta aberta a Geisel criticando a decisão de abrir
a exploração às empresas estrangeiras, e pedindo que o presidente revisse a
posição. Além disso, havia artigos de análise sobre o problema e reportagens.
A edição enviada à PF havia voltado magra. Foram 16 artigos totalmente e
28 parcialmente vetados, num total de 107 laudas. Mesmo assim, a direção
considerou que havia material para pôr o jornal na rua.
Mas a edição não saiu. O episódio que tirou a edição de 13 de dezembro
de 1975 das bancas foi descrito como “kafkiano” pela direção do jornal.
No sábado, dia 11, como de costume, antes de começar a impressão, uma
cópia em xerox da versão final do jornal, já previamente censurado e dia-
gramado, foi enviada à Polícia Federal para a censura final. Na PF, o fun-
cionário do jornal foi informado que a edição seria apreendida por ordem
do ministro da Justiça.
“Agora temos um jornal apreendido – ‘por ordem do ministro da Justiça’,
segundo nos informa o coronel-chefe da Polícia Federal de São Paulo, e
esse jornal NÃO EXISTE, isto é, não estava impresso”,21 explica um co-
municado à imprensa e ao público. Agentes da Polícia Federal foram até
a gráfica para certificar-se de que o jornal realmente não existia. E levaram
o diretor até à PF para confirmar que os exemplares só eram impressos
depois da autorização da polícia. Tudo em vão.
Diz o mesmo comunicado:
Dirigimo-nos então ao chefe da Polícia Federal que coman-
dava pessoalmente a operação de análise dos xerox e lhe disse-
mos que não víamos sentido na proibição, já que o jornal, além
de ter sido submetido à censura e aprovado nas suas peças
isoladas, estava ali para ser censurado. O censor, portanto, que
estava presente, tinha o poder de retirar dessa edição tudo o
que lhe desagradasse.
Na segunda-feira à tarde, Tonico Ferreira foi à sede da PF e recebeu ordens
ainda mais absurdas: não só o número 15 não poderia ser publicado, como
a partir de então Movimento não poderia mais publicar nada sobre contratos
de risco, petróleo brasileiro ou a Petrobras. Além disso, não poderia contar a
ninguém sobre a proibição – sob pena de fechamento do jornal.
“Mas isso é impossível! Quando eu for avisar à redação sobre a apreen-
são do jornal estarei violando a ordem!”, respondeu Tonico.
21 AP 294.05.02 Fnd Mov APSP.

80

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A luta contra a censura

“Era uma censura inédita; nós, jornalistas de Movimento, e não apenas o


jornal, estávamos sendo censurados!”, publicaria o semanário anos depois,
quando foi liberado da censura. Os jornais Opinião, Pasquim, Crítica, Tribuna
de Imprensa e Ex também haviam recebido as mesmas ordens.
Movimento abriu um processo contra o governo. O advogado do jornal,
Luiz Eduardo Greenhalgh, questionava a legalidade da ação já que nenhu-
ma lei conferia este poder ao governo. Além disso, houve movimentação
política em solidariedade. A Associação Brasileira de Imprensa abraçou
a causa, enviando telegramas ao general Golbery, ao ministro da Justiça,
aos presidentes do STF, do STJ, do MDB e da Arena, pedindo o fim da
proibição. Enviou, também, um relato detalhado do caso à Sociedade
Interamericana de Imprensa (SIP). Assim, no dia 22 de outubro, quan-
do a SIP publicou seu relatório anual sobre liberdade de imprensa nas
Américas, o caso de Movimento e a proibição de críticas à política petro-
lífera mereceram destaque. Dois dias depois, o deputado do MDB, Israel
Dias Novais, levaria a discussão à Câmara dos Deputados, detalhando o
relatório da SIP “cujas palavras candentes me queimaram o ouvido de
brasileiro e de brasileiro jornalista, pois não há jornalista que leia tal rela-
tório sem ruborizar”.
O jornal continuou a protestar. Em 24 de fevereiro de 1976, enviou uma
carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, pedindo a revogação da
proibição. A carta, de cinco páginas e com a assinatura de todos os in-
tegrantes do Conselho de Redação, também criticava a forma autoritária
como os contratos foram anunciados: “uma decisão de tal importância
não poderia ter sido tomada sem amplo debate popular”. E ia ao centro da
questão: “estamos preocupados com a entrega a empresas estrangeiras de
nossas riquezas minerais mais valiosas”.22

VLADIMIR HERZOG, PROIBIDO


Movimento não pôde dar uma só linha sobre a morte do jornalista Vladimir
(Vlado) Herzog, da TV Cultura, no DOI-Codi, em 25 de outubro de 1975.
E até o fim da censura, em junho de 1978, o jornal nunca pôde referir-se a
Vlado. Entretanto, esse crime teve grande repercussão política, foi a gota
d’água que jogou a opinião pública contra o governo e os militares, preci-
pitou o desgaste do regime, agravou suas divergências internas enquanto
abria novos espaços para a oposição. Mesmo sob ameaças, 600 pessoas
foram ao cemitério no enterro do jornalista. E cerca de 8 mil conseguiram
chegar ao ato público na Catedral da Sé, depois de escapar a um enorme
cerco policial. Milhares de estudantes entraram em greve em São Paulo.
Diversas manifestações se seguiram em outros estados. O Estado de S.
Paulo deu grande cobertura aos fatos, em tom cauteloso, mas com riqueza
de informações, e repercutiu o tema por semanas.
Movimento não pôde publicar nada, mas os membros da equipe partici-
param ativamente das manifestações, convocando as pessoas a compare-
22 Carta a Armando Falcão, 24 de fevereiro de 1976. Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão.

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Jornal Movimento, uma reportagem

cerem ao sindicato dos jornalistas, de onde iriam se originar os protestos.


De acordo com Tonico Ferreira, “Raimundo teve um papel essencial” nes-
sa mobilização. Após o enterro de Vlado havia um clima de intimidação,
de não fazer nada, lembra Tonico.
Aí o Raimundo foi lá para o sindicato dos jornalistas e disse:
“Não! Tem de reagir! Se não reagir vai ser uma merda!” E o
Raimundo veio com a proposta, aquele negócio de fazer missa,
de juntar dom Paulo e tornar aquele caso um caso de ampla
repercussão.23
A capa vetada de Movimento trazia um retrato de Vlado desenhado por
Elifas Andreato. Quase três anos depois, na edição 154, em 12 de junho
de 1978, quando a censura, afinal, foi retirada, o jornal publicou uma
reprodução daquela capa com o retrato de Vlado e o carimbo da censura:
“vetado”. O desenho original fora doado à viúva, Clarice Herzog. A edição
censurada, a de número 18, de 3 de novembro de 1975, saiu com uma capa
totalmente preta, era um sinal de luto. E uma única chamada em grandes
letras para uma matéria sobre “a queda da ditadura”... a de 1945.

TRABALHO DA MULHER, VETADO


Periodicamente, Movimento publicava edições temáticas, com reporta-
gens mais aprofundadas realizadas ao longo de semanas, por jornalistas
em todo o País, num esforço extra da equipe. Uma dessas, dirigida pela
editora Adélia Borges, sobre “O trabalho da mulher no Brasil”, seria a
edição de nº 45, de 10 de maio de 1976. E foi inviabilizada pela censura.
Das 305 laudas de matéria enviadas aos censores, 283, ou seja, 93% do
total, foram vetadas; de 69 fotos, 58 foram vetadas; de 13 ilustrações, 6
foram vetadas; de 12 tabelas, 10, ou seja, 83% também foram proibidas.
Exemplo dos temas impedidos de circular: um resumo de um estudo da
ONU sobre a mão de obra feminina em todo o mundo; três dezenas de
depoimentos de mulheres que trabalham; um levantamento sobre a legis-
lação do trabalho feminino no País.
O relatório de 7 de maio de 1976, do Conselho de Redação para o públi-
co, jornalistas e autoridades, dizia:
a edição vetada corresponde ao maior esforço jornalístico con-
centrado que o jornal Movimento já fez: 82 pessoas – 63 mulhe-
res e 19 homens – de São Paulo, Rio, Recife, Belo Horizonte,
Porto Alegre, Brasília, Salvador e Belém trabalharam ao longo
de 40 dias para produzir essa edição.24
Um documento sobre o jornal proibido foi enviado a inúmeras perso-
nalidades políticas das quais o jornal recebeu apoio, entre elas, Prudente
de Moraes Neto, presidente da Associação Brasileira de Imprensa, o car-
deal dom Paulo Evaristo Arns, o escritor Antonio Callado, a atriz Tônia
Carreiro, os deputados do MDB Ulysses Guimarães e Alencar Furtado.
23 Entrevista de Antonio Carlos Tonico Ferreira em 22 de outubro de 2009.
24 AP 285.05.01 Fnd Mov APSP.

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A luta contra a censura

Escreveu o cardeal dom Paulo:


Depois de ler os originais vetados, resolvi levar-lhe minha
solidariedade, nesta hora de tanta incompreensão. Não é ape-
nas a equipe de Movimento que sofre um atentado à liberdade
de informar. Também o povo brasileiro está perdendo o direito
de ser informado sobre a realidade nacional. Quantas pessoas
não poderiam aproveitar aqueles dados, notícias e informações
sobre a vida e o trabalho da mulher! É lamentável que a censu-
ra continue escondendo ao povo a nossa História presente.25
A proibição foi recebida com protestos. Integrantes do Movimento
Feminista pela Anistia, do grupo “Nós, mulheres” e da Sociedade Brasil
Mulher, cogitaram a possibilidade de uma ação judicial. Os deputados
pelo MDB Jarbas Vasconcellos e Odacir Klein protestaram na tribuna da
Câmara. Até mesmo a Arena Jovem do Rio Grande do Sul, o partido do
governo, se manifestou contra a censura.26

CONSTITUINTE, EDIÇÃO APREENDIDA


Depois do episódio da apreensão da edição de nº 15 de Movimento, a PF
determinou que todas as edições do semanário fossem impressas antes
de serem levadas para a checagem final. Só depois de tudo impresso era
dada a ordem de liberação. Antes, isso podia ser conseguido apenas com
a apresentação à censura de um “boneco”, um esboço da edição.
A edição 116, de 10 de setembro de 1977, que tratava da vitória da tese
da Constituinte na convenção do MDB, foi apreendida sob as novas regras.
A edição já sofrera vetos em 37 matérias. Mesmo assim, às seis da tarde do
sábado, um grupo de policiais chegou à redação e proibiu a distribuição
do jornal. O motivo da apreensão? Um anúncio na última página, de pro-
paganda da encenação da peça Mortos sem sepultura, de Jean-Paul Sartre,
que era a imagem de uma suástica com um torturado sobre ela.
Armando Sartori, então secretário gráfico de Movimento, editor da revis-
ta Retrato do Brasil, em 2010, lembra:27
Quando chegamos à redação havia um clima pesado. Era tar-
de de sábado, e estavam ali o Raimundo, o Tonico, o Sérgio
Buarque e o Luiz Eduardo Greenhalgh. Apareceram pelo me-
nos dois caras que se apresentaram como agentes da Polícia
Federal. Um deles mais alto e gordo; o outro, baixo e magro.
Acho que foi o Raimundo que perguntou se eles tinham or-
dem legal para fazer a apreensão. O policial não gostou muito
e respondeu algo do tipo: “É sábado, eu queria estar em casa
comendo pizza com a família, então não complique a situa-
ção”. Já que não dava para impedir, Greenhalgh exigiu que os
policiais assinassem um documento registrando a apreensão

25 Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão.


26 O Estado de S. Paulo, 15 de maio de 1976.
27 Depoimento de Armando Sartori em 28 de abril de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

– depois de eles vasculharem algumas salas e reunirem cerca


de 200 exemplares que se encontravam por ali, nas mesas, em-
pilhados.
Armando prossegue:
Em seguida foi a vez de Greenhalgh redigir o tal “documen-
to”. Ele pediu a uma advogada que o acompanhava que da-
tilografasse o texto. Ela sentou-se e começou a digitar numa
máquina elétrica o que ele ia ditando. Quando Greenhalgh ia
ditar o nome dos agentes, perguntou ao mais gordo o nome
dele. Depois que o sujeito disse o nome, Greenhalgh falou algo
como: “Seu documento, por favor”... O cara ficou furioso. No
final deu a identificação e ainda assinou o documento. Depois
que os dois foram embora, caímos na risada.
Dezenas de agentes foram às sucursais, viaturas foram aos distribuido-
res e houve até uma perseguição “hollywoodiana” pela via Dutra atrás do
caminhão que levava os jornais para o Rio.

A DECLARAÇÃO AMERICANA, VETADA


A batalha de Movimento contra a censura foi ganha com muita persis-
tência. E também com talento. Na edição nº 53, de 4 de julho de 1976, a
censura sofreu uma derrota, que pôs em ridículo o governo militar, não
só aqui, mas também no exterior. Era uma reportagem sobre os 200 anos
da revolução americana, uma colaboração de Carlos Azevedo escrita na
clandestinidade. A matéria incluía um anexo com um trecho do texto da
Declaração da Independência americana, no qual há uma referência ao
direito do povo sublevar-se quando submetido a um governo opressivo.28
Segundo o Jornal do Brasil,
a Polícia Federal informou que, de acordo com as instruções
recebidas do Ministério da Justiça, teria de cortar trechos da
declaração dos revolucionários americanos de 1776; mas acha-
va isso inconveniente e preferia vetar o texto em bloco.
A direção de Movimento enviou um relatório para os outros jornais e
correspondentes estrangeiros. Vários deles, a exemplo de O Estado de São
Paulo e Jornal do Brasil, publicaram o texto da Declaração, informando
que fora vetado em Movimento, dando-lhe, portanto, muito maior divul-
gação. O Estado de S. Paulo publicou um editorial de elogio à Declaração,
aduzindo:
Não estranhamos que os censores do Ministério da Justiça
tenham expurgado a Declaração como matéria provocante ou
subversiva em órgão de nossa imprensa (...) estranhamos, sim,
que a República brasileira ignore o pioneirismo republicano e

28 Trecho da Declaração da Revolução Americana, de 1776: “Mas quando uma série de abusos e
usurpações perseguindo invariavelmente o mesmo objeto indica o desígnio de reduzi-los (os povos)
ao despotismo absoluto, assiste-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir
novos guardiões em prol da segurança futura.”

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A luta contra a censura

que a democracia nacional repudie as matrizes universais da


democracia.29
O grande alarido foi além das fronteiras. A imprensa americana ado-
tou um tom de ironia. E o jornalista Paulo Francis, então corresponden-
te da Folha de S.Paulo em Nova York, ouviu do escritor Gore Vidal: “o
governo brasileiro deve respeitar muito o povo. Nossa Declaração de
Independência é altamente subversiva”. Do senador democrata Frank
Church: “Dada a situação do Brasil, é perfeitamente compreensível a cen-
sura imposta pelo governo de Brasília, muito a caráter, eu diria”. De Hans
Morgenthau, cientista político: “Não me surpreende...”30
Alguns dias depois, em correspondência para Raimundo Pereira,
Teodomiro Braga informava de Brasília que “o jornalista Elio Gaspari, de
passagem pela capital federal, estivera com Humberto Esmeraldo, chefe
da Comunicação Social do governo Geisel e, provavelmente, também com
o general Golbery”. À saída, dissera a repórteres do Jornal do Brasil que
ficara sabendo que a censura vai cair, “inclusive em Movimento”. O episó-
dio da censura à Declaração americana foi citado como exemplo de resul-
tado negativo para o governo. E contribuiu para o desgaste da censura em
Movimento, cujo final, contudo, só iria acontecer dois anos mais tarde.31

29 O Estado de S. Paulo – Notas e Informações, 11 de julho de 1976.


30 Folha de S.Paulo, 7 de julho de 1976.
31 AP 290.05.29. Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição 108 de 25 de julho de 1977. Desenho de Rubem Grilo

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7
A batalha
econômica

P
ara que Movimento vingasse, foi importante contar com uma visão
empresarial, que imprimisse direção ao empreendimento sem se
chocar com o espírito coletivo que o inspirava. Sua longevidade –
seis anos e meio de existência para uma publicação independente
em plena ditadura pode ser considerado um feito importante –
deve-se em grande parte a um personagem que se tornaria marcante na his-
tória recente do País, mas que raramente é associada ao jornal: o engenheiro
Sergio Motta, o grande articulador da carreira política de Fernando Henrique
Cardoso e o principal responsável pela privatização da telefonia brasileira no
primeiro mandato do sociólogo como presidente da República (1994-1998).
Engenheiro, o ex-dirigente nacional da Ação Popular (AP) se tornara um em-
presário bem-sucedido como proprietário da Hidrobrasileira, especializada
em planejamento de obras de infraestrutura. Sua empresa fazia trabalhos
para o governo de São Paulo e também para empresas privadas. E, ao mesmo
tempo, contratava tanto ex-presos e perseguidos políticos como pesquisado-
res do Cebrap (o núcleo dos intelectuais de esquerda liderado por Fernando
Henrique) para trabalhar nos estudos e projetos realizados pela empresa.
A Hidrobrasileira bancou as primeiras despesas de implantação do jornal:
“dez máquinas de escrever modelo MS/60/33 – TS/Paica adquiridas da Oli-
vetti perfazendo o valor total de Cr$ 31.000,00 (cerca de R$ 55 mil em 2011)
pagos em parcelas mensais; dois telefones financiados pela Santa Maria S/A
Crédito, estando prevista uma parcela inicial de 12 mil cruzeiros e mais seis
de 10.467,80” (um total de R$141 mil),1 além de passagens aéreas para os
principais vendedores de cotas de Movimento: Raimundo Pereira, que, além
de conhecer gente em muitas das redações de São Paulo, tinha apoio seguro
em seu grupo do ITA, engenheiros bem remunerados, entre os primeiros a
subscrever cotas e contribuir com doações para o projeto do jornal; Marcos
Gomes, bem relacionado em Belo Horizonte.

1 Instituto Sergio Motta (ISM) – Acertos entre Hidrobrasileira e Movimento (documento


encadernado com recibos e notas fiscais em anexo).

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Jornal Movimento, uma reportagem

Os detalhes dessas despesas são conhecidos porque Sergio Motta era me-
ticuloso na organização de seus papéis. Em seus arquivos – conservados no
Instituto Sergio Motta e disponibilizados para esse trabalho por sua presi-
dente, Vilma Motta – está guardada toda a contabilidade de Movimento – de
março de 1975 a fevereiro de 1982, quando ele ainda lutava para colocar o
jornal – já fechado – em condições de liquidez. Como lembra Raimundo:
O grande do Sergio era isso, de cuidar minuciosamente da con-
tabilidade, porque administração é isso: você ver que objetivo tem,
quanto vai vender, que meta vamos fazer…Tem, com a letra dele, os
relatórios mensais do começo ao fim do jornal.2
Se Motta nunca abandonou Movimento, por maiores que fossem as dificul-
dades políticas e financeiras, também não fez o papel de “mecenas” como
supõem alguns.3 Papéis e entrevistas apontam na mesma direção: Motta doou
sua expertise, seu tempo, sua experiência política e empresarial, mas não
entrou com dinheiro. A começar pelo documento citado acima, sobre as des-
pesas de implantação da redação, com data de 25 de julho de 1975 e assinado
por Antonio Guido, diretor financeiro da Hidrobrasileira, que esclarece:
Considerando entendimento verbal mantido entre a Hidrobrasilei-
ra S.A e a Edição S.A (…) no qual ficou acertado (…) que as primei-
ras despesas de implantação do escritório de Edição S.A seriam pa-
gas pela Hidrobrasileira e, posteriormente, reembolsadas por Edição
S.A. Isto porque a Edição teria dificuldade em processar estas com-
pras, em virtude da falta de registros, etc, e está no âmbito de nossas
funções de assessoria técnica-contábil fixadas pela carta contrato.4
Os recibos anexados nesse documento comprovam o pagamento de Edição
S/A à Hidrobrasileira de valores que somam Cr$ 123.658,80 (R$222 mil), in-
cluindo as parcelas a serem pagas depois, cerca de 30% do total de despesas
de implantação do jornal, que foram de Cr$ 434.548,00 (equivalentes a R$754
mil), de acordo com outro documento, este de 3 de junho de 1975, com o
planejamento de despesas até o lançamento do número um.5
Motta também indicou um homem de sua confiança para a direção finan-
ceira e administrativa do jornal, o engenheiro Francisco Marsiglia. Além de
cuidar da administração de Movimento, Marsiglia também foi vender ações.
Fui a empresas estatais... em algumas, é claro, a gente tinha conheci-
mento, mas sempre orientado pelo Raimundo e a equipe dele. Fomos
vendendo ações e, num dado instante, depois de uns três meses, a gen-
te já tinha um certo recurso financeiro, alugamos uma casa.
Ele alugou, (Sergio Motta foi avalista) e mobiliou a sede da redação de
Movimento – um sobrado na rua Virgílio de Carvalho Pinto, 625, em Pi-
nheiros, próximo à gráfica onde o jornal seria impresso, de propriedade
2 Entrevista de Raimundo Rodrigues Pereira em 9 de outubro de 2009.
3 Prata, José; Beirão, Nirlando; e Tomioka , Teiji. – Sergio Motta, o trator em ação. São Paulo:
Geração Editorial, 1999.
4 Instituto Sergio Motta (ISM) – Acertos entre Hidrobrasileira e Movimento (documento
encadernado com recibos e notas fiscais em anexo).
5 ISM – Planejamento de lançamento do jornal (documento encadernado).

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A batalha econômica

da família do escritor Raduan Nassar, do Bazar 13, à época um grande


supermercado.
Francisco Marsiglia também figurava entre os doze sócios de Edição S.A,
ao lado dos jornalistas que compunham a Comissão dos Onze, na minuta de
constituição da empresa, com data de 8 de abril de 1975, registrada quatro
dias depois na Junta Comercial do Estado de S. Paulo. É dele o cargo de di-
retor operacional da empresa, ao lado de Raimundo, o diretor editorial. Foi
nessa função que seu nome apareceu pela primeira vez no Quadro de Loca-
ção de Pessoal do jornal, no mês de junho, recebendo a mesma remuneração
que Raimundo, Tonico (editor executivo), Elifas (editor de arte), Marcos Go-
mes (editor de economia), Bernardo Kucinski (editor de geral) e Chico Pinto
(chefe da sucursal de Brasília): Cr$ 5.850,00, cerca de R$10 mil.6

EMPRESÁRIOS CAUTELOSOS, JORNALISTAS OUSADOS


Com a venda de cotas e doações conseguiu-se pagar as despesas iniciais de
aluguel e pessoal, como também mostra o documento de planejamento finan-
ceiro e administrativo do jornal. Em abril, por exemplo, a receita do jornal foi
de Cr$ 123.000,007 (Cr$ 96.500,00 de subscrição de capital e Cr$ 26.500,00
de doações), enquanto a despesa foi de Cr$ 40.000,00. Na última semana de
maio, às vésperas da data prevista para o lançamento do jornal, as despe-
sas saltaram para Cr$ 106.080,00, ainda assim cobertas pela receita de Cr$
144.300,00,8 sendo Cr$ 121.300,00 em cotas e Cr$ 23.000,00 em doações. Em
junho, com a contratação da redação, as despesas de pessoal avançaram de
Cr$ 35.000,00 do mês anterior para Cr$ 122.000,00 e o aluguel da sede (até
então provisoriamente abrigada na casa de Tonico Ferreira, em Pinheiros) foi
de Cr$ 1.200,00 para Cr$ 6.500,00.9
A dificuldade era acumular capital de giro suficiente para a decolagem até
que a receita das vendas do jornal pudesse cobrir o custo do tabloide de 28
páginas; como a distribuidora (a Abril) completava o pagamento de cada edi-
ção 90 dias depois de o jornal chegar à banca, a direção calculou que o ponto
de equilíbrio seria atingido com a venda de 27 mil exemplares por edição – o
que a experiência em Opinião provara ser possível – e um capital inicial de
um milhão de cruzeiros.10
A venda de cotas foi bem-sucedida, como narra o texto do número zero do
jornal:
Em meados de março, foi feita a primeira viagem para visitar as
redações paulistas de onde pareciam cintilar salários mensais de
até dezenas de milhares de cruzeiros (…). A primeira redação pro-
6 IGP-FGV. A atualização dos valores não reflete claramente as relações entre o poder aquisitivo no
intervalo de tempo de 36 anos. Os salários em Movimento correspondiam a um terço dos salários
correntes nas redações na época. O valor real médio dos salários de jornalistas era maior do que na
atualidade. Em 2011, a maioria dos jornalistas não ganhava R$ 10 mil.
7 Valor atualizado: R$ 221.850,00.
8 Valor atualizado: R$ 255.000,00.
9 ISM – Planejamento de lançamento do jornal (documento encadernado).
10 Valor atualizado: R$ 1.700.000,00. Editorial Movimento número zero.

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Jornal Movimento, uma reportagem

curada foi a das revistas técnicas da Editora Abril, em São Paulo.


José Elias, o editor de Transporte Moderno, ajudou a vender as ações
com um bom humor e um entusiasmo que desarmou as preocupa-
ções. (…). De dezenas de reuniões feitas em redações, com grupos
de professores, médicos e engenheiros, empresários no Rio, em São
Paulo, Belo Horizonte e algumas outras cidades, o capital de Edição
S.A – a sociedade anônima que a redação criou para fazer o jornal
– começou a surgir. No final de maio, Edição tinha 160 acionistas,
metade deles sendo jornalistas, e 705 mil cruzeiros entre dinheiro e
promissórias assinadas.11
(Jornalistas, políticos e intelectuais, muitos dos quais se tornaram famosos, for-
mavam a maioria dos cotistas. Para verificar quem foi acionista de Movimento,
ver Anexo 3, a partir da página 322).
Ainda assim, o lançamento da primeira edição, previsto para 16 de junho
de 1975, foi adiado. A ousadia jornalística do empreendimento – que desper-
tou a ira do governo militar desde o número zero – foi sempre acompanhada
de cautela administrativa. A arrecadação do capital via subscrição de cotas,
embora em volume próximo ao que se pretendia, seria integralizada gradu-
almente, sendo insuficiente o capital disponível em caixa. Essa explicação,
com todos os detalhes, foi fornecida aos membros do Conselho Editorial e aos
acionistas de Edição S.A através do relatório Movimento Reservado número 1,
enviado junto com o número zero, no dia 3 de junho de 1975:
A campanha para a subscrição do hum milhão de cruzeiros neces-
sários ao projeto do jornal, embora esteja se processando num ritmo
mais lento do que o imaginado, tem sido extremamente bem suce-
dida. (...) Em contatos pessoais havíamos dito aos acionistas que o
projeto exigiria Cr$ 400.000,00 de investimentos, a serem feitos ao
longo dos três primeiros meses (de março a junho); Cr$ 400.000,00
de capital de giro, a serem gastos em treze semanas a partir da saída
do jornal; e R$ 220.000,00 para imprevistos (...).12
Desse esquema se vê que precisávamos de Cr$ 800.000,00 em seis
meses. Iniciamos nossa campanha oferecendo cotas de Cr$ 5.000,00
pagáveis em, no máximo, cinco vezes. Se os Cr$ 700.000,00 que te-
mos até agora tivessem entrado dessa forma não teríamos a essa altu-
ra nenhum problema financeiro. Entretanto, o interesse em ampliar
a venda de ações entre os jornalistas fez com que criássemos cotas
pagáveis em até 10 vezes. Em função disso e considerando que já
vendemos cotas ao longo de três meses, o capital de que dispomos
agora inclui promissórias vencíveis até fevereiro de 1976. No balan-
ço que fizemos no dia 22 passado, a análise dessa situação mostrou
que com o lançamento do jornal a 16 de junho, teríamos um “rom-
bo” financeiro de cerca de 300 mil cruzeiros, caso a arrecadação se

11 Valor atualizado: R$1.250.000,00.


12 A soma atualizada desses valores: R$ 1.770.000,00.

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A batalha econômica

processasse como vinha se fazendo (...).


Entre os riscos de procurar apressadamente um financiamento de 300 mil cru-
zeiros, optamos pelo adiamento. A diferença de 21 dias será usada para adequar
o fluxo de entrada de capital de Edição S/A às necessidades de capital de giro.
Quando o jornal foi finalmente lançado, no dia 7 de julho de 1975, as ven-
das em banca ficaram bem abaixo do previsto. Pior: os 21 mil exemplares
vendidos na primeira edição foram também um recorde, que só seria nova-
mente atingido no final de 1978, quando o peso da censura prévia já havia
sido retirado do jornal.

PREVISÕES E DECEPÇÕES
O conjunto de documentos preservados por Motta comprova: foram os pro-
blemas de receita, e não os de custo, que atormentaram a vida do jornal. A
qualidade do planejamento financeiro feito por Motta e executado por Marsi-
glia, a minuciosa contabilidade feita por Luiz Bittencourt e Dellinger Mendes
– este último funcionário da Hidrobrasileira que trabalhava voluntariamente
para Movimento13 – religiosamente entregue a Antonio Guido, diretor finan-
ceiro da Hidrobrasileira, no segundo dia útil do mês para que este elaborasse
os balancetes mensais, processasse a folha de pagamento e preenchesse as
guias de recolhimento de impostos,14 não conseguiram impedir que o jornal
operasse no vermelho na maior parte de sua vida.
Os boletins de venda do ano de 1975 mostram que, além de ficarem abaixo
das previsões, as vendas também eram inferiores às projeções da distribui-
dora Abril, feitas com base nos jornais recolhidos nas principais bancas ao
chegar a edição seguinte. Começando pelo número um, cuja previsão inicial
era de 36 mil exemplares.15 O relatório número um, escrito por Raimundo
no dia 14 de julho de 1975 com base no boletim de vendas número um da
Abril,16 já reduzia as estimativas de venda para 24 mil jornais e fazia a
ressalva: “A censura do número 1 nos atrasou mais de 15 horas e a Abril dis-
tribuiu tudo atrasado; o jornal só chegou a Brasília hoje e é possível que em
certos lugares não tenha chegado”. Já no boletim seguinte da Abril, o número
estimado de vendas dessa edição caía para 22 mil, estabilizando-se em 21 mil
no boletim de 3 de setembro de 1975. No mesmo relatório, Raimundo comen-
tava que o número dois foi “também mal distribuído”, além de “a gráfica ter
esquecido de fazer 10 mil jornais”. A projeção de vendas dessa segunda edi-
ção partiu de uma estimativa de 21.400 exemplares vendidos feita pela Abril
no recolhimento dos jornais em 21 de julho de 1975.17 O boletim seguinte
corrigiu essa projeção para 17.800 exemplares.
A direção de Edição S.A não esperou mais para rever suas previsões. Em
29 de julho, Raimundo, Tonico, Marsiglia, Sergio Motta e Antonio Guido
13 Entrevista de Francisco Marsiglia em 29 de junho de 2010.
14 ISM - Ata da reunião de 9 de julho de 1975, com divisão de tarefas administrativas.
15 ISM - Análise Sumária do Ponto de Equilíbrio.
16 ISM - O Boletim de Venda número um da Abril Distribuidora, com data de 14 de julho de 1975,
estima as vendas da primeira edição em 23,6 mil exemplares.
17 ISM. Boletim de Venda número dois da Abril Distribuidora, com data de 21 de julho de 1975

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Jornal Movimento, uma reportagem

reuniram-se e propuseram um corte de 20% nas despesas previstas no orça-


mento de julho a dezembro de 1975. A tiragem foi reduzida de 50 mil para
35 mil exemplares e o número de páginas do jornal de 28 para 24. E deu-se
o primeiro corte na folha de pagamento. Alguns profissionais, como Elifas
Andreato, Jayme Leão e Luiz Bernardes foram liberados para trabalhar em
outras publicações, reduzindo-se o pagamento que recebiam de Movimento.
Outros jornalistas que iriam começar no jornal foram dispensados, como Ri-
cardo Kotscho, Ana Maria Bahiana e Tárik de Souza.18 Todos os jornalistas,
inclusive os editores, tiveram seus salários reduzidos. Raimundo Pereira, ca-
sado com quatro filhas, Tonico Ferreira, casado, duas filhas, e Marcos Gomes,
casado, duas filhas, não ganhavam o suficiente para o sustento das famílias.
Porém, suas companheiras, respectivamente, Sizue Imanishi, Maria Stella
Magalhães Gomes (Teia) e Elza Gontijo, conseguiam compatibilizar os cui-
dados com as crianças pequenas e suas atividades profissionais. E foi prin-
cipalmente graças à dedicação e ao salário delas (ganhavam relativamente
bem, lembra Teia) que as famílias se sustentaram durante vários anos.19
Do lado da receita, um manuscrito de Sergio Motta anexado à ata dessa
reunião traz o planejamento de uma campanha de assinaturas a ser desenvol-
vida a partir de 10 de agosto de 1975.
Os esforços, porém, não foram suficientes para diminuir o prejuízo. A con-
juntura política do País se agravara, como demonstrava o discurso feito pelo
general Ernesto Geisel no dia 1º de agosto, considerado “uma pá de cal” na
promessa de distensão política. Para Movimento, isso significava recrudes-
cimento da censura, portanto, mutilação do jornal e consequente queda de
vendas: desde o número um, o jornal perdia leitores por conta das interfe-
rências da censura, que iam de atrasos na distribuição, “com prejuízos evi-
dentes para as vendas” à “destruição quase completa dos aspectos formais
do jornal”. Por “estimativas da própria distribuidora, os problemas ocasiona-
dos pela censura nos primeiros números” haviam ocasionado uma perda nas
vendas de “5 mil a 10 mil exemplares por edição”.20
Não era à toa que todas as reuniões de avaliação financeira de Movimento
começavam por uma análise política, como lembra Raimundo:
Mensalmente, íamos lá no escritório do Sergio Motta, na Vila Ma-
riana. O pessoal tinha contabilizado as receitas, as despesas, tudo
bem organizadinho, lá no Movimento, depois levávamos pra lá. A
gente sentava, ficava o Tonico que cuidava mais disso, às vezes eu
estava cansado e dormia no sofá. O Sergio tinha uma coisa de bom,
ele era um cara politizado. Então, primeiro discutia: “O que que tá se
passando? Como é que é? O que vamos fazer?” e tal...21
Menos de um mês depois do discurso de Geisel, o boletim da distribuidora

18 ISM – Ata da reunião de 29 de julho de 1975.


19 Maria Estela Magalhães Gomes, Teia, em 1980 foi trabalhar no jornal como responsável pelo
arquivo e a análise de conjuntura.
20 Relatório aos Acionistas 20 de outubro de 1975 – AP 287.05.001 Fnd Mov APSP.
21 Entrevista de Raimundo Rodrigues Pereira em 9 de outubro de 2009.

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A batalha econômica

Abril, de 25 de agosto de 1975, apontava estimativas de venda entre 17,6 mil


e 15,3 mil para as edições de 3 a 7. No mesmo dia, em reunião formal da di-
retoria de Edição S/A, registrada em ata, “partiu-se para uma redefinição da
estrutura do jornal”22 para adequá-la à realidade, com a redução das despesas
operacionais e a montagem de um novo orçamento para o período de 1º de
setembro de 1975 até 6 de junho de 1976, levando em conta um prejuízo
operacional acumulado de Cr$ 347.660,00.23 A receita foi estimada com base
na projeção de 15 mil jornais e, para adequar os custos a essa nova projeção,
decidiu-se por um segundo corte na folha de pagamento, o que se obteve dis-
pensando colaboradores e praticando uma pequena redução na faixa salarial.

SOS ACIONISTAS
As edições de agosto venderam mais ou menos o previsto nessa reunião – va-
riando de 14,6 mil a 15,5 mil (boletim de venda de 24 de setembro de 1975),
mas as de setembro, de acordo com as previsões do boletim de 28 de outubro
de 1975, foram de 14,9 mil a 13,1 mil. O grande golpe veio em outubro, com
a apreensão da edição nº 15, sendo que a edição anterior, muito censurada, já
havia vendido apenas 13,3 mil exemplares. Depois de uma reunião no escri-
tório de Sergio Motta, chegou-se à conclusão de que o jornal havia atingido
um ponto crítico. Reuniram a redação e expuseram a situação. Tinham que
reduzir a folha de pagamento pela terceira vez, o que agora afetaria o conjun-
to da redação, que concordou unanimemente com o sacrifício.
Anotações de Motta de uma reunião realizada em seu escritório no dia
28 de outubro de 1975 indicavam as providências que foram tomadas ime-
diatamente para alavancar o caixa, sendo a principal delas uma viagem de
Raimundo ao Rio e a Brasília com a missão de realizar cortes de despesas,
também nas sucursais, e detonar as campanhas de assinaturas com o objetivo
de obter Cr$ 144.000,00 com 1.500 assinaturas vendidas; e de subscrição de
capital de Cr$ 150.000,00. Em Brasília, Raimundo iria procurar Chico Pinto
para “um acerto geral da relação” e definir um responsável por “áreas de arre-
cadação, especialmente a área política”– seria o deputado federal João Cunha
–, que também poderia “listar prováveis doadores ou subscritores” de Edi-
ção S/A para obter rapidamente o capital. No Rio, além de conversar com o
pessoal da sucursal, Raimundo deveria “contatar Gasparian sobre campanha
promocional conjunta de venda de assinaturas” de Opinião e Movimento e
“falar com Chico Buarque” para propor um “grande show com ele no Ibira-
puera” e a “doação dos direitos de encenação da peça Gota d’água”.24
Pelas anotações da reunião de “avaliação da viagem de Raimundo”, feitas
por Motta em um bloco de papel amarelo, com data de 27 de novembro de
1975, sabe-se que se obteve o engajamento das sucursais nas campanhas, que
Gasparian não havia ficado muito “motivado” com a proposta de realizar
uma campanha conjunta, enquanto Chico Buarque
22 Análise Econômico-Financeira AP 285.03.001 Fnd Mov APSP.
23 Em valores atualizados, R$ 616.000,00.
24 ISM - Manuscrito “Decisões Tomadas em 3 de novembro de 1975”, anexado “Providências a
serem tomadas em função das decisões tomadas”.

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Jornal Movimento, uma reportagem

concordou em falar com o Paulo Pontes (coautor de Gota d’água); de


seu lado não vê empecilho em ceder os direitos de encenação para
Edição por meio da produtora Difusão, assim como a apresentação
de um show na volta de sua viagem para a Europa.25
Não há nada escrito sobre o resultado do chamamento de capital, mas o re-
sultado financeiro de dezembro aponta um capital de giro disponível de Cr$
362.000,00,26 obtido com subscrição de capital e venda de assinaturas – ou
seja, melhor do que o esperado. Do ponto de vista da venda em bancas, as coi-
sas também pareciam ter melhorado: os últimos boletins do ano apontavam
uma venda média de 15.500 exemplares, exatamente a prevista por Motta.27
Infelizmente, os boletins de venda de janeiro de 1976 corrigiram esses nú-
meros mostrando que, a partir da edição nº 20, quando se aumentaram os
preços e se reduziram as páginas do jornal, as vendas desabaram para uma
média de 11.800 exemplares no mês de dezembro de 1975.28

CENSURA EM ALTA, VENDAS EM BAIXA


A relação entre a situação política do País e as vendas em banca de Movi-
mento aparece na edição nº 154, de 12 de junho de 1978, a primeira publica-
da depois do fim da censura, que traz uma matéria especial de oito páginas:
“A história da censura prévia em Movimento”. A página 14 traz dois gráficos
do ano de 1976, com os títulos: “Maior tensão política, maior censura” – em
que os picos de páginas censuradas correspondem aos acontecimentos mais
dramáticos do ano; e “Mais censura, menos venda em banca” relaciona esses
picos de censura às quedas de vendas do jornal.
Com efeito, em janeiro de 1976, a cassação dos parlamentares Marcelo Gat-
to e Nelson Fabiano, seguida pelo afastamento do comandante do II Exército,
general Ednardo D’Ávila Mello, em razão do assassinato do operário Manoel
Fiel Filho no DOI do II Exército, tiveram consequências: a média de artigos
censurados por edição foi de 18 para 22 e as vendas em banca caíram de 14,8
mil exemplares no início do mês para entre 12 mil e 13 mil exemplares.
Em fevereiro, enquanto a imprensa debatia a crise militar, Movimento tinha
mais de 26 artigos censurados por edição, e as vendas caíam para pouco mais
de 11 mil exemplares. E diminuíram para 9 mil em meados de março (en-
quanto o número dos artigos censurados por edição subia para 38), na rea-
bertura do Congresso, quando foram cassados os mandatos dos deputados
Amaury Muller, Nadyr Rossetti e Lysâneas Maciel, este último muito próxi-
mo de Movimento.
A partir de abril, a curva da censura caiu e as vendas de Movimento ultra-
passaram o patamar de 10 mil exemplares. O jornal foi novamente golpeado
25 A Difusão era a produtora de espetáculos criada por Sergio Motta e a peça Gota d’água foi
encenada em dezembro de 1975, com produção do Teatro Casa Grande. Difusão montou diversas
peças no período, como Os mortos sem sepultura, de Jean-Paul Sartre. Quanto ao show, ele
realmente ocorreu, via Difusão, com o objetivo de levantar fundos para Movimento, em 1977, com a
presença de muitos artistas além de Chico Buarque.
26 Em valores atualizados, R$ 548.000,00.
27 ISM – Boletim de venda de 18 de novembro de 1975.
28 ISM – Boletim de venda de 8 de março de 1976.

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A batalha econômica

com a apreensão total da edição nº 45 (11 de maio de 1976) sobre a situação


da mulher no trabalho. Em junho, enquanto os censores saíam da redação
de Veja, os artigos vetados em Movimento baixaram para dez por edição.
Mas a censura recrudesceu no início de agosto, com o estouro do escândalo
das “mordomias” (série de reportagens publicadas no Estadão e assinadas
por Ricardo Kotscho), derrubando novamente as vendas para cerca de 9 mil
exemplares; curva que continuava descendente à medida que o número de ar-
tigos censurados subia durante a campanha eleitoral: em outubro, chegou-se
a 36 artigos censurados para cada edição e o número de exemplares vendidos
no mês caiu para 8 mil exemplares, metade da venda média do ano de 1975.

SUSTENTAÇÃO POLÍTICA
Como o jornal se manteve com tantas dificuldades? A melhor resposta está em
uma lauda com o logotipo de Movimento, amarelada pelo tempo, e anotada em
esferográfica azul com a caligrafia de Raimundo embaixo da curva de vendas
em bancas de 1976: “sustentação política máxima possível para o projeto”.29 Foi
isso que permitiu que o jornal seguisse em frente mesmo com o capital de giro
caindo dramaticamente durante todo o ano – de Cr$ 362 mil em 31 de dezembro
de 1975 para Cr$ 83.411 em agosto de 1976 –, chegando ao fundo do poço em
dezembro de 1976, com capital disponível negativo de Cr$ 146 mil.30
A “sustentação política” de Movimento se traduzia concretamente na soli-
dariedade dos acionistas, “que ao invés de receber lucros e dividendos, fo-
ram chamados a integralizar mais ações, que também não lhe trariam mais
dividendos”; dos leitores, “que passaram a pagar um preço relativamente alto
pelo jornal”, muitas vezes censurado e mutilado; pelos “funcionários e cola-
boradores da empresa que tiveram seus salários violentamente diminuídos
em seu valor real” para que o jornal sobrevivesse31 (fator decisivo para que o
furo orçamentário do primeiro semestre de 1976 fosse de apenas 0,6%);32 e
ainda por uma rede de apoio que envolvia estudantes e integrantes de mo-
vimentos sociais na venda direta em diversos pontos do País. Esse último
recurso foi crucial para a sobrevivência do jornal, como mostram os números
de 1976: enquanto a venda média em bancas ficou em torno de 9.500 exem-
plares, as vendas diretas tiveram média de 1.500 exemplares por edição.33
Uma contribuição significativa, uma vez que as vendas diretas não sofriam
a sangria de 45% do valor de cada exemplar cobrada pela distribuidora e
eram pagas no ato. Pelo mesmo motivo, as assinaturas do jornal cresceram
de importância à medida que a censura afastava os compradores de banca.
Entre 17 de novembro de 1975 (quando o preço do jornal subiu de Cr$ 5,00
para Cr$ 6,00) e fevereiro de 1976, foram vendidas 2.200 assinaturas a Cr$

29 Gráfico manuscrito da venda em banca de Movimento de 1976 a 1981 – Arquivo pessoal


de Raimundo Rodrigues Pereira.
30 Gráfico manuscrito de Evolução do Disponível de janeiro de 1975 a fevereiro de 1978 – Arquivo
pessoal Raimundo Rodrigues Pereira. Valor atualizado: R$ 151.000,00.
31 Movimento 154, 12 de junho de 1978. “Os números do arbítrio”.
32 ISM – Considerações gerais sobre a execução orçamentária e financeira de fevereiro e julho de 1976.
33 Idem.

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Jornal Movimento, uma reportagem

171,00, arrecadando Cr$ 376 mil34 – mais do que o resultado da venda em


bancas no mesmo período, que totalizou Cr$ 328.290,00. Foram, portanto,
decisivas para equilibrar o orçamento do jornal, como se percebe no mesmo
documento.35
Em agosto de 1976, uma nova proposta foi apresentada para alavancar as
receitas: aumentar o preço de capa do jornal e o valor das assinaturas para re-
compor o capital de giro, além de fazer “nova chamada de capital integraliza-
do para 1 milhão e meio (já temos um milhão)”.36 Conseguiu-se obter
Cr$ 300 mil, de acordo com a ata da Assembleia Extraordinária dos Acionis-
tas de 12 de novembro de 1976, aprovando o aumento de capital de Edição
S/A de 1 milhão para 1,3 milhão de cruzeiros.37 Esse valor foi subscrito em
nome de Raimundo Pereira e de Tonico Ferreira e pago no ato “em moeda
corrente” conforme o registro de livro de atas,38 o que não permite saber como
esses recursos, provavelmente doações, foram arrecadados. Além disso, de-
pois de muita polêmica (principalmente com as sucursais de Belo Horizonte
e Rio de Janeiro, que se opunham), o Conselho de Redação aprovou o aumen-
to do preço das assinaturas em outubro e “no dia 10 de dezembro de 1976
foi aprovada proposta da diretoria que previa elevação nos preços de capa
de Cr$ 7,00 para Cr$ 10,00 em duas etapas e economia geral na empresa”.39
Como de costume, anunciou-se o aumento de preço aos leitores: a primeira
edição de 1977, de 3 de janeiro, em matéria intitulada “Movimento a 9 cru-
zeiros”, destacava duas causas principais para o “reajuste”:
a primeira é a persistência das extraordinárias dificuldades que o
jornal enfrenta (N.E. a censura) e que impedem uma melhoria notá-
vel da sua qualidade e, em conseqüência, um aumento substancial
de suas vendas; a segunda é a elevação de custos de produção do
jornal: do período de junho de 1975 a dezembro de 1976, os custos
industriais de produção cresceram 94% (em dezembro de 1976, a
inflação chegou a 46%, a maior taxa desde 1974)40.
A estratégia deu certo: “as campanha de ações, assinaturas e vendas no
período de dezembro a abril de 1977 foram bem-sucedidas e o disponível ne-
gativo foi suspenso”.41 Quando os preparativos para a segunda reunião con-
junta dos Conselhos começaram, no início de abril, o capital de giro estava
acima de Cr$ 200.000,00,42 patamar relativamente confortável, em compara-
ção com o ano anterior.

34 Em valor atualizado, R$ 581.000,00.


35 ISM – Notas da Reunião de 17 de fevereiro de 1976 entre Sergio Motta e Francisco Marsiglia.
36 Ata de reunião do CR de 7 de agosto de 1976 – AP 285.04.001 Fnd Mov APSP.
37 Em valor atualizado, R$ 1.372.000,00.
38 ISM – Caderno de Atas – Assembleia Geral Extraordinária Anexo caixa 04 – e 9 – 01.
39 “Fatos sobre a evolução da situação econômica e financeira do jornal”, manuscrito – Arquivo
pessoal de Raimundo Rodrigues Pereira.
40 Movimento 79, 3 de janeiro de 1977.
41 “Fatos sobre a evolução da situação econômica e financeira do jornal”, manuscrito arquivo
pessoal de Raimundo Rodrigues Pereira.
42 “Evolução do Disponível”, manuscrito do Arquivo pessoal de Raimundo Rodrigues Pereira. Valor
atualizado: R$ 181.670,00.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Edição 123, de 7 de novembro de 1977, página 7. A democracia no jornal

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8
Em busca do
método democrático

A
democracia interna seria uma questão crucial durante toda a
existência do jornal “sem patrão”. Além de garantir a proprie-
dade da empresa “de fato e de direito” aos que nela trabalha-
vam, como pregava o número zero de Movimento, era preciso
conferir poder de decisão à redação, o que estava longe de ser
simples. A trajetória do jornal foi pontuada por crises e dissidências, segui-
das de reformulações que buscavam ampliar a participação de jornalistas,
funcionários e acionistas na condução do jornal.
Formatada pelo grupo inicial sob inspiração de Sergio Motta, a sociedade
anônima que publicava Movimento – Edição S/A – era controlada pelos jor-
nalistas através de um mecanismo simples: ao adquirir as cotas, os acionistas
doavam 51% delas ao Conselho de Redação, que por sua vez representava o
conjunto dos trabalhadores do jornal. Um modelo de negócio coerente com
a mobilização política em torno de Movimento. Afinal, ninguém estava inte-
ressado em ganhar dinheiro, e sim em garantir a sobrevivência de um jornal
de combate à ditadura, como lembra Francisco Marsiglia, o primeiro diretor
administrativo:
Todo mundo sabia que, no fundo, aquelas ações eram uma do-
ação travestida de compra de cotas, uma forma legal de montar
uma empresa sem que alegassem o “ouro de Moscou” ou coisa
do gênero. E vendemos cotas adoidadamente, tanto que ficamos
com 400 acionistas! As pessoas investiam a fundo perdido, arris-
cando-se até pessoalmente... Na ditadura em que vivíamos, para
ser cotista tinha que ter coragem.1
As ações – nominais – conferiam legalmente o controle da empresa aos
12 membros originais do Conselho de Redação; 11 deles remanescentes da
Comissão dos 16 (que fez a transição entre Opinião e Movimento). O primeiro
documento sobre a sociedade anônima encontrado nos arquivos de Raimundo
Pereira é uma carta-compromisso de 31 de março de 1975.2 Nela, Raimundo,
1 Entrevista de Francisco Marsiglia em 24 de novembro de 2009.
2 AP 291.01.001 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

depositário das doações naquele momento, promete, “de forma irretratável e


irrevogável, dividir essas ações da forma mais igualitária possível”. Seguem-
se os nomes dos outros dez jornalistas que formaram o primeiro Conselho
de Redação: Marcos Gomes, Maurício Azedo, Jean-Claude Bernardet, Elifas
Andreato, Fernando Peixoto, Francisco de Oliveira, Bernardo Kucinski,
Antonio Carlos (Tonico) Ferreira, Teodomiro Braga e Aguinaldo Silva. O ex-
deputado Chico Pinto, futuro chefe da sucursal de Brasília, se juntaria ao
time algumas semanas depois.
As principais decisões a respeito do jornal eram tomadas na reunião des-
se Conselho, também aberta à participação de outros membros da redação,
embora só os conselheiros tivessem direito a voto. Ainda no primeiro ano,
o Conselho de Redação foi ampliado para 16 membros com a inclusão dos
editores Sérgio Buarque, Juca Martins, Flávio de Carvalho e Flávio Aguiar –
ou seja, os que comandavam no dia a dia do jornal também deliberavam nas
reuniões do Conselho. Em dezembro de 1976, depois de debater intensamen-
te a necessidade de incluir no Conselho representantes de outros setores do
jornal, Francisco Marsiglia, da administração, e Alberto Duarte, o Betinho,
chefe da sucursal de Belo Horizonte, tornaram-se também conselheiros.
Alguns membros do Conselho raramente participavam de suas delibera-
ções, embora escrevessem regularmente para o jornal. O ex-deputado Chico
Pinto, por exemplo, comunicava-se frequentemente com Raimundo, Tonico
e Sérgio Buarque por telefone, mas só comparecia aos eventos mais importan-
tes. Azedo e Aguinaldo Silva, ambos do Rio, também apareciam raramente.
“Eu achava importante participar daquilo, gostava de fazer as matérias, ad-
mirava o Raimundo, os jornalistas, mas aquelas reuniões do Conselho eu
evitava; o que, aliás, não era difícil, já que raramente o jornal tinha dinheiro
para levar a gente do Rio pra São Paulo”, lembra hoje um bem-humorado
Aguinaldo. “Das poucas vezes em que participei, lembro de discussões inter-
mináveis, desgastantes. Você percebia que havia alguma coisa por trás, uma
divergência política, e aquilo não me interessava discutir”, conta Aguinaldo,
que, embora tenha se afastado do jornal em 1977 para tocar outro projeto – o
jornal Lampião, publicação gay pioneira no País –, manteve seu nome entre
os conselheiros: “Foi um acordo tácito: ninguém me pediu para sair e eu
queria ficar porque apoiava o jornal, apoiava o Raimundo. Dar esse apoio pu-
blicamente, compor a frente, tinha significado naqueles tempos de combate
à ditadura”, explica.3
Aguinaldo Silva continuou no Conselho de Redação até 1978, quando este
se transformou em Conselho de Direção – e se manteve entre os 35 mem-
bros deste novo Conselho, que representava a Sociedade dos Funcionários,
Redatores e Colaboradores –, instância máxima de participação de Movimento,
com 500 membros, que trabalhavam ou colaboravam com o jornal. Essa refor-
mulação veio na esteira do “racha de 1977”, que será tratado adiante.

3 Entrevista de Aguinaldo Silva em 4 de fevereiro de 2010.

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Em busca do método democrático

CONSELHO DE NOTÁVEIS
O Conselho Editorial, composto por oito personalidades proeminentes do
movimento contra a ditadura, manteve-se com a mesma composição a
maior parte do tempo: o deputado emedebista Alencar Furtado, o inte-
lectual André Forster, o jornalista Audálio Dantas, o compositor Chico
Buarque, o jurista Edgar da Mata Machado, o sociólogo Fernando Hen-
rique Cardoso, o escritor Hermilo Borba Filho e o indigenista Orlando
Villas-Boas. Edgar da Mata Machado decidiu deixá-lo no final de junho
de 1977. Apenas em julho de 1981, o CE teria outra mudança: foi amplia-
do para 25 membros. E dos sete membros antigos mantiveram-se Alencar
Furtado, André Forster, Chico Buarque de Holanda, Fernando Henrique
Cardoso. Já Audálio Dantas, Orlando Villas-Boas e Hermilo Borba Filho
(este havia falecido em 1976) não faziam mais parte dele, conforme mos-
tra o expediente da edição 316, de 20 a 27 de julho de 1981.
Os conselheiros não participavam do cotidiano da redação e compareciam
raramente à sede do jornal. Mas este Conselho tinha grande importância,
seus membros representavam um amplo leque político e sinalizavam para a
sociedade seu apoio ao programa do semanário. Além de ser uma instância
respeitável para a denúncia da censura, das prisões, perseguições e processos
a que os jornalistas estavam sujeitos.
O jornalista Audálio Dantas opina sobre sua participação no Conselho:
O Raimundo me convidou para o Conselho Editorial de
Movimento na qualidade de presidente do Sindicato de Jornalistas
de São Paulo, que depois de muita luta tinha acabado de reno-
var a diretoria (pelega). Era um conselho composto de persona-
lidades, não era deliberativo, era uma instância consultiva, de
aconselhamento, um conselho de homens bons, digamos assim.
Tanto é que nos reuníamos pouco: em todo esse período lembro
de ter participado de duas ou três reuniões, junto com o Alencar
Furtado, o Hermilo, o Chico Buarque... Mas Movimento era ví-
tima da censura desde o número um, nasceu vítima, e o que se
fazia era denunciar.4
Apesar da pequena convivência, os conselheiros eram contatados com uma
certa frequência através de comunicados e telefonemas. A redação percebia-
os como aliados, recorda o editor Sérgio Buarque:
Não era um conselho decorativo como são esses conselhos em
geral. Você sentia que havia uma adesão ao projeto do jornal,
sabe? Eles achavam importante o que fazíamos e o fato de os no-
mes deles estarem no expediente era importante para nós.5
O Conselho Editorial também dividia com o Conselho de Redação a missão
de eleger o editor-chefe para um mandato de um ano, conforme estabeleci-
do desde a fundação do jornal. Nesse intervalo, o editor-chefe tinha poderes
para contratar ou demitir funcionários, respondendo, a posteriori, diante do
4 Entrevista de Audálio Dantas em 19 outubro de 2009.
5 Entrevista de Sérgio Buarque de Gusmão em 21 de outubro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Conselho Editorial. Na prática, a eleição anual do editor-chefe ocorria em


uma sessão conjunta dos Conselhos (de Redação e Editorial) e seu resultado
era ratificado pela Assembleia Geral dos Acionistas, realizada alguns dias
depois, para atender a uma exigência legal: pelas regras das sociedades anô-
nimas, o editor-chefe tinha de ser escolhido pelo diretor editorial de Edição
S/A, que por sua vez seria indicado pela Assembleia de Acionistas.
A adaptação da regra não chegava a alterar o resultado da eleição uma
vez que os membros do Conselho de Redação detinham o controle acio-
nário da empresa e, portanto, ocupavam sua diretoria: Raimundo Pereira e
Tonico Ferreira revezavam-se nos cargos de diretor editorial de Edição S/A,
e Francisco Marsiglia foi o diretor administrativo até deixar o jornal em
1978, quando foi substituído por Flávio de Carvalho e por Tonico Ferreira;
Raimundo acumulava o cargo de diretor editorial com o de editor-chefe, que
exerceu durante os seis anos do jornal. Ele e Tonico foram os responsáveis
legais pela empresa até o fim, como relembra Tonico em entrevista: “A Junta
Comercial não queria saber se éramos um bando de jornalistas, se tínhamos
conselho editorial, queria saber quem respondia pela empresa. Do ponto de
vista formal, os responsáveis sempre fomos eu e Raimundo”,6 afirma.
Quanto aos acionistas minoritários – os que efetivamente compraram as
cotas do jornal –, tinham direito a participação em todas as reuniões e direito
a voto nas assembleias anuais, que, de acordo com Francisco Marsiglia, eram
bem populares: “A assembleia era concorrida, em algumas compareceram
uma centena, duas centenas de acionistas”.7 Algumas vezes ocorreram as-
sembleias extraordinárias – quase sempre com o objetivo de aumentar capital
ou aprovar mudanças no preço do jornal . A direção enviava boletins men-
sais aos acionistas. Os cotistas recebiam os boletins semanais sobre a censura.
Essa relação melhorou depois da reestruturação do jornal de 1977, quando os
acionistas passaram a ter dois representantes no Conselho de Direção.

A DEMANDA PELA PARTICIPAÇÃO


À medida que crescia a estrutura e a rede de apoio, com o estabelecimento de
novas sucursais, correspondentes e equipes de venda e divulgação do jornal,
aumentava a pressão por representação direta e pelo estabelecimento de re-
gras de funcionamento para o Conselho de Redação e para a Assembleia dos
Acionistas, que ainda não tinham estatutos aprovados.
Como observa a pesquisadora Rosane Montiel, que fez uma tese de mestra-
do sobre o jornal com base nos arquivos de Raimundo Pereira:
A partir de 1976, iniciou-se um longo processo de discussão
com o objetivo de regular as funções e atividades das instâncias
existentes, como o Conselho de Redação, e de encontrar formas
mais eficazes e institucionais de participação e representação do
coletivo.8
6 Entrevista de Antonio Carlos (Tonico) Ferreira em 22 de outubro de 2009.
7 Entrevista de Francisco Marsiglia em 24 de novembro de 2009.
8 Montiel, Rosane Movimento: a janela de uma geração. São Paulo, 1996. Dissertação de Mestrado em
História Social – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, USP.

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Em busca do método democrático

A tarefa era grande. Em 1976, Edição S/A tinha 300 acionistas e cerca de
80 jornalistas (entre sede, sucursais e correspondentes), além de centenas de
vendedores e divulgadores do jornal. Como organizar a participação de toda
essa gente? Além disso, não havia modelos a seguir, dado o pioneirismo do
projeto.
Vale reproduzir um trecho do documento “Relatório da Diretoria de Edição
S/A – A imprensa popular e democrática – a experiência de Movimento”, as-
sinado por Raimundo Pereira, Tonico Ferreira e Francisco Marsiglia – e apre-
sentado na primeira sessão conjunta dos conselhos, em 24 de abril de 1976.
Uma reunião importante, que contou com a presença de cinco dos oito mem-
bros do Conselho Editorial (André Forster, Chico Buarque, Audálio Dantas,
Edgar da Mata Machado e Hermilo Borba Filho):
Enquanto outros jornais são conduzidos de forma autoritá-
ria, por um acordo entre editor e proprietário, nós temos um
Conselho de Redação que se reúne todos os sábados para discutir
as principais questões que são semanalmente levantadas tanto
em nosso relacionamento de trabalho quanto pelos artigos que
publicamos ou deixamos de publicar. Dessas discussões já nas-
ceu um processo de crítica no jornal, no qual foi feito um balanço
geral e cujo esboço de relatório foi lido no Conselho de Redação,
e cuja versão final pretendemos distribuir a nossos conselheiros
brevemente.
O Conselho não tem, contudo, até o momento, uma estrutura
formal definida e suas relações com o editor do jornal e com os
outros funcionários devem ser mais detalhadas ao longo deste
ano; está em andamento um projeto de elaboração de estatuto do
Conselho no qual estas questões deverão ser definidas.
Em seguida, listava as questões a resolver:
Como os funcionários e colaboradores elegem o Conselho?
Quando uma pessoa se torna membro ou deixa de ser membro da
sociedade que elegerá esse Conselho? Uma vez escolhido o editor
pelo Conselho Editorial mais o Conselho de Redação, como esses
Conselhos podem contribuir para ter uma direção cada vez mais
democrática? Essas são algumas questões para as quais estamos
acumulando experiências práticas e teóricas para poder dar-lhes
respostas adequadas.
Assim concluía o documento, publicado na íntegra na edição 46, de 17 de
maio de 1976, para que também os leitores pudessem tomar conhecimento
do que ocorria internamente. 9
Movimento não chegou a aprovar os estatutos do Conselho de Redação. O
projeto anunciado por Raimundo foi de fato apresentado alguns meses de-
pois, após uma crise provocada pela demissão de um redator da sucursal de
Belo Horizonte. O “caso Murilo Albernaz”, como ficou conhecido, expôs os

9 AP 285.04.01 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

conflitos internos do jornal e trouxe como desfecho nova tentativa de apro-


fundamento da democracia interna.

INDEPENDÊNCIA E DEMOCRACIA
Para entender por que esse episódio aparentemente banal consumiu mais de
cem horas de discussão na sede e nas sucursais do jornal e provocou protes-
tos exaltados de diversos membros da redação – o editor de Nacional, Sérgio
Buarque, por exemplo, chegou a escrever uma carta de demissão por consi-
derar a saída de Murilo antidemocrática – , vale voltar ao relatório de 24 de
abril de 1976:
Em Movimento existiu, desde o início, a convicção profunda de
que dois princípios – independência econômica e direção demo-
crática – definem os únicos métodos associados com o objetivo
central da imprensa que luta pela ampliação da participação po-
pular. De outra forma, como perseguiríamos uma independência
efetiva sem nos basearmos em nossos próprios recursos? E como
nos proporíamos a aumentar a participação popular na vida po-
lítica do país se não nos propuséssemos, ao mesmo tempo, a au-
mentar a participação dos nossos colaboradores, redatores, edito-
res e conselheiros de nosso próprio jornal?”10
Durante toda a trajetória do jornal essas duas questões ocupariam o centro
dos debates. A primeira – como garantir a independência financeira do jornal
– mobilizou gente do País todo para vender assinaturas e distribuir o jornal,
além de um pequeno comitê que se reunia mensalmente na sala de Sergio
Motta para enfrentar a difícil tarefa de equilibrar despesas e receitas e garantir
a sobrevivência do jornal. Quanto a isso não havia discórdia: todos estavam
prontos a se sacrificar para que o jornal continuasse, apesar do volume des-
comunal de trabalho e dos salários bem abaixo do mercado, menores do que
os de Opinião, como lembra Tonico:
No Opinião fizemos um acordo para ganhar 30% a menos do
que o mercado pagava. Como o mercado estava aquecido, era um
bom dinheiro. Já em Movimento era pouco desde o começo, eu
dividia a casa com outro casal, não tinha carro, até deixei de fu-
mar por causa do dinheiro.11
Para os que vieram depois, o baque era maior. Sérgio Buarque, por exem-
plo, ganhava 2,5 vezes a menos em Movimento do que ganhava em O Estado
de S. Paulo, onde trabalhou antes. Fui para Movimento pela questão da mi-
litância: combater a ditadura, fazer um jornal nosso, sem patrão. E nem me
importava muito com essa coisa de salários, o que me incomodava mais é que
a gente tinha que economizar em tudo: por exemplo, o controle do telefone
era um inferno, prejudicava a qualidade do trabalho.
Para mim, era um choque porque tinha vindo do Estadão que, na época do
milagre, tinha dinheiro como nunca na vida. Uma vez fui fazer uma matéria
10 AP 285.04.01 Fnd Mov APSP.
11 Entrevista de Antonio Carlos (Tonico) Ferreira, citada.

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na Amazônia e levei tanto dinheiro que fretei um avião sem ter que pedir
para a sede. Aí, chega em Movimento e o Murilo Carvalho, que era o prin-
cipal redator das Cenas Brasileiras, viajava pelo Brasil todo, me trazia umas
prestações de contas que eram assim: pousada da dona não sei o quê, cinco
cruzeiros. Porra! Cinco cruzeiros! Era tudo muito franciscano12.
Um episódio ocorrido em outubro de 1975 dá a medida do engajamento
“franciscano” da redação. Havia cinco meses – desde sua criação –, o jornal
acumulava déficits por não ter conseguido atingir a meta projetada de ven-
das, prejudicadas pelo impacto da censura na qualidade editorial e na perio-
dicidade de suas edições. Como evitar a falência?
Quem conta a história é Francisco Marsiglia:
O jornal estava caindo muito em vendas e, em uma situação
dessas, não tinha como aumentar o preço porque seria morte sú-
bita. Decidimos reduzir o número de páginas do jornal de 28 para
20, mas ainda assim tínhamos de cortar as despesas de custeio e
a folha de pagamento (de 220 mil para 90 mil cruzeiros mensais).
Então, reunimos a redação e falamos: “Tem uma saída assim”. E,
incrível, todos toparam cortar seus salários pela metade numa
boa! Não tenho lembrança de uma pessoa falar: “Ah, não, eu que-
ro continuar ganhando o que estou ganhando”. Isso foi uma coi-
sa muito importante, não só para a sobrevivência do jornal, mas
porque serviu para solidificar a união de pessoas tão díspares
ideologicamente, embora fossem todas de esquerda.13

DEMOCRACIA NO DIA A DIA


Já a segunda questão – a direção democrática – suscitou muito mais conflitos
do que a independência econômica. Afinal, aquela era uma redação unida
a ponto de cortar na própria carne para garantir o sucesso do projeto, mas
composta por pessoas “díspares ideologicamente” e que lutavam por suas
opiniões. Mais do que uma disputa pelo poder individual, a batalha que se
travava cotidianamente era por posições políticas.
Pode-se dizer que a democracia funcionava no jornal por meio das frequen-
tes e concorridas reuniões. A rotina da redação incluía uma sequência de
reuniões semanais. Duas delas mais técnicas, voltadas para o fechamento do
jornal, feitas em duas etapas por causa da censura, na quinta-feira e na sex-
ta feira. Nas terças-feiras, definia-se o pré-espelho (que seria refeito diversas
vezes, à medida que as matérias furavam, ou eram vetadas e cortadas depois
de editadas) e, nas quintas-feiras, escolhia-se a capa. Aos sábados, quando
Tonico, Raimundo e boa parte dos editores mal tinha dormido, os encon-
tros esquentavam: além da reunião de pauta, transferida alguns meses depois
para segunda-feira junto com a reunião de crítica (que analisava a edição
anterior), sábado era dia de reunião do Conselho de Redação.

12 Entrevista de Sérgio Buarque de Gusmão, citada.


13 Entrevista de Francisco Marsiglia, citada.

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Jornal Movimento, uma reportagem

A reunião de pauta era livre, tradição que vinha desde Opinião nas recor-
dações de Marcos Gomes: todo mundo participava, os editores se pronuncia-
vam sobre o noticiário de seus respectivos setores, cada jornalista dizia o que
queria fazer , “reunião de pauta livre, quem quiser faz não sei o quê. Decidida
a pauta, entra em edição, não tem assembleia, críticas, a posteriori. Não é
autoritarismo”, arremata Gomes.14
Ou seja, as pautas eram decididas livremente, entretanto, uma vez fecha-
das, não se discutia mais, fazia-se a matéria, prevalecendo a hierarquia da
redação. Já na reunião de crítica do jornal, de participação igualitária, a dis-
puta política aflorava. Ali se discutia das capas aos artigos de cada edição,
sempre do ponto de vista do posicionamento político tomado pelo jornal.
As sucursais também mandavam relatórios, debatidos em São Paulo. Como
se percebe pela leitura das atas conservadas nos arquivos, as reuniões eram
longas, abordando tudo, da cobertura internacional do jornal, por exemplo,
da guerra no Camboja à política dos direitos humanos do presidente Jimmy
Carter, dos EUA, às matérias de política nacional, como eleições, MDB, dis-
putas internas do governo militar, economia, cultura. Tomando uma das atas15
como exemplo:
Três matérias do número 72 provocaram grandes polêmicas na
reunião. A discussão foi muito grande em torno da matéria dos
“neo-autênticos”, do Severo Gomes, e do “sinólogo anônimo”.
As matérias tocam em temas de constante discussão dentro do
jornal (MDB, burguesia, China) e não é de se espantar que as dis-
cussões sejam longas e muitas vezes acirradas quando o jornal
publica artigos sobre esses temas. É também natural e até mesmo
salutar que a discussão desses temas muitas vezes avance além
das próprias matérias.
A matéria dos “neo-autênticos”, assinada por Teodomiro Braga (conselhei-
ro e principal repórter de Brasília), foi julgada pelo coletivo “pouco clara, in-
completa e muitas vezes contraditória”. Além disso, registra Tonico na ata, a
conclusão de que os “neo-autênticos eram politicamente mais amadurecidos
do que os autênticos pode causar confusão e irritação na área”. Sobre o artigo
a respeito de Severo Gomes, depois de muito debate, Tonico registra:
No geral, houve concordância com a análise do Raimundo, que
afirma: “A matéria erra por desconsiderar os conflitos internos da
burguesia. Se os conflitos das várias facções da burguesia são se-
cundários, como explicar a morte de Getúlio e a queda de Jango?”
Já a matéria sobre a China, uma tradução publicada pelo editor de
Internacional, Flávio de Carvalho, “sofreu críticas gerais de todos que a le-
ram”. Foi qualificada de “irresponsável” por Raimundo, acusada de ser “de
direita” por Murilo Carvalho, e mereceu o seguinte comentário do secretário

14 Entrevista de Marcos Gomes em 30 de novembro de 2009.


15 Todas as citações entre aspas do parágrafo foram recolhidas da ata de avaliação da edição nº 72 –
AP 294.03.02 Fnd Mov APSP.

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da reunião: “Eu, Tonico, achei que a matéria vem mais para confundir do que
explicar e causará profunda irritação nas bases do jornal.”

O CASO ALBERNAZ
Em 29 de maio de 1976, o redator Murilo Albernaz enviou uma carta ao Con-
selho de Redação criticando duramente seus colegas e chefes da sucursal de
Belo Horizonte. Depois, em telefonema à redação, acusou o chefe da sucursal,
Betinho, de tê-lo ameaçado de “expulsão do jornal” por ter enviado a carta.
A notícia caiu como uma bomba na sede do jornal. Demitir um compa-
nheiro por crime de opinião? No jornal “sem patrão”? A surpresa foi ainda
maior quando se soube que o editor-chefe apoiava a decisão de Betinho. Foi
nesse momento que o editor de Nacional, Sérgio Buarque, chegou a pedir seu
desligamento do jornal e do Conselho de Redação,16 depois da reunião do CR
em que Raimundo se manifestou a favor da demissão, “expulsão”, segundo
Murilo, ecoado por Sérgio, o que dava uma conotação de partido político à
sucursal mineira.
Liderada pela “Centelha”, grupo de tendência trotskista, a sucursal de Belo
Horizonte era tida por muitos como radical e desligada da direção do jornal;
alguns, incluindo Murilo Albernaz, iam além, acusando o grupo de pretender
montar “um partido” e de funcionar à margem das diretivas do Conselho de
Redação, posições qualificadas de “nocivas” por Sérgio Buarque em sua carta
de (quase) demissão. Entre os fatos apontados para sustentar as acusações es-
tava o modelo de funcionamento da sucursal, adotado unilateralmente desde
o final de 1975, que incluía a participação de assessorias formadas por inte-
lectuais e profissionais liberais com o objetivo de “analisar, criticar e ajudar
a fazer o jornal”. Também havia uma proposta de instituir um Conselho de
Redação regional, já enviada aos conselheiros, reforçando as suspeitas de dis-
sidência da sucursal.
O apoio de Raimundo a Betinho foi ainda mais surpreendente por causa
das conhecidas divergências políticas entre o editor-chefe e a chefia da su-
cursal. Isso, porém, acabaria legitimando a posição de Raimundo, quando,
após dois meses de crise, ele finalmente explicou os motivos de sua decisão
em um longo relatório sobre o episódio, com o título “Aprendendo com a
crise”,17 afixado nas paredes da redação à moda dos “dazi bao” (jornais mu-
rais) dos chineses, em julho de 1976. Buarque desistiu de sair do jornal e a
maioria da redação aceitou as explicações do relatório.
Depois de ouvir “exaustivamente” os jornalistas da sucursal mineira, o
editor-chefe concluíra “que o erro tinha sido do próprio Murilo”. Segundo
Raimundo, embora ele mesmo tivesse advertido Albernaz durante uma con-
versa travada um mês antes deste entregar a carta de que “é mais correto fazer
as críticas primeiramente aos próprios companheiros com quem se trabalha
e, só depois de esgotada esta fase da discussão, tentar levá-la a uma instân-
cia superior”, ele se recusou a discutir o caso na sucursal, que “não recebeu
16 Carta de 14 de junho de 1976 – AP 283.03.04 Fnd Mov APSP.
17 AP 284.04.004 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

nenhuma cópia da carta enviada ao Conselho da Redação”. Na opinião do


editor-chefe, “Murilo não foi afastado da sucursal por tê-la criticado, mas
sim por ter encaminhado as suas críticas de forma incorreta”, o que acabou
dando margem “a fofocas e intrigas”. Portanto, argumentava Raimundo, se
o Conselho de Redação tivesse interferido na decisão de Betinho de “de-
mitir” Murilo, teria apenas agravado o problema e enfraquecido o papel do
Conselho:
Só o enraizamento em nossas cabeças da necessidade de for-
mular críticas aberta e diretamente aos companheiros com quem
se trabalha e da necessidade de nos esforçarmos ao máximo para
resolver os problemas onde eles surgem pode fazer com que o
Conselho de Redação desse jornal seja um órgão guia da constru-
ção de um jornalismo democrático...

UM PROJETO DE ESTATUTO
Por fim, embora criticasse a sucursal de Belo Horizonte por tomar posições
“isoladas” e “democratistas” em seu funcionamento interno, o editor-chefe
reconhecia que essas atitudes se deviam em parte à demora do Conselho de
Redação em aprovar suas próprias normas – em contraste com a tentativa da
sucursal de “avançar em sua organização” – e apresentava, junto com o rela-
tório, um projeto de estatuto para discussão. Entre outras novidades, o pro-
jeto propunha que “todos os funcionários e redatores do jornal com mais de
um ano de trabalho e todos os colaboradores regulares e frequentes do jornal
durante dois anos consecutivos” passassem a fazer parte de uma “Sociedade
de funcionários, redatores e colaboradores de Movimento” com poder de re-
novar o Conselho – o que seria de fato adotado, mas apenas dois anos depois.
O artigo mais interessante era o terceiro, uma espécie de “cartilha” de como
devem ser as relações entre chefes e subordinados, evidentemente inspirada
no caso Albernaz:
Embora o jornal tenha uma estrutura hierárquica de comando,
as operações em cada editoria, sucursal ou departamento devem
levar em conta as experiências concretas de cada local; portanto
é necessário autonomia e iniciativa nos escalões inferiores (...).
Com vistas à eliminação das diferenças entre chefes e subordina-
dos, é necessário buscar métodos de trabalho coletivo que aper-
feiçoem o nível técnico, político e ideológico de redatores e cola-
boradores. (...) Os subordinados, por sua vez, devem desenvolver
um espírito combativo e uma luta pelo aperfeiçoamento pessoal,
evitando críticas pelas costas ou obscuras, procurando confiar
em si mesmos e sempre, antes de apelar a escalões superiores,
esgotar todos os recursos pessoais e toda a mobilização possível
de seus companheiros de mesmo nível.
Havia uma orientação específica para os chefes:
O chefe não deve perder de vista a necessidade de aprender
com os subalternos e de ser um exemplo, assumindo para si a

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Em busca do método democrático

responsabilidade de executar na prática parte das tarefas que dis-


tribui; o subordinado deve respeitar a experiência dos chefes e o
conhecimento dos intelectuais dedicados ao jornal, mas ao pro-
curar aprender com eles, exigir deles, ao mesmo tempo, decisões
claras e democráticas e uma linguagem inteligível e educativa.18
Entrevistado em 2009, Sérgio Buarque afirmou que “Murilo Albernaz foi
apenas um ‘pretexto’” para a eclosão de uma crise motivada por “divergên-
cias políticas” que se explicitavam à medida que a situação do País evoluía
e o “espírito de frente” que inspirara Movimento se esgarçava. O próprio
Albernaz acreditava até o fim ter sido vítima de um embate político e sentiu-
-se logrado pela “visão simplista” de Raimundo sobre o caso, como revela
em uma carta escrita um ano e meio depois do episódio, seis meses após o
“racha”, o qual em boa medida confirmou seus pontos de vista:
(...)Na verdade o “caso” trazia dentro de si, na sua essência,
uma questão política muito mais séria. (...). E a minha expulsão
foi, na verdade, a primeira grande vitória que eles tiveram no jor-
nal. Foi o salvo-conduto para continuarem o trabalho de sapa que
vinham fazendo. Foi essa vitória, inclusive, que lhes deu força
para se agruparem com outras sucursais com o objetivo expresso
de dividir o jornal.19
Sem negar a origem política do conflito com a sucursal de Belo Horizonte,
Raimundo, em entrevista concedida em 2009, continuava a defender a posi-
ção tomada 33 anos antes:
O contrário seria aceitar a quebra da estrutura, discutir a solução
passando por cima da chefia da sucursal... Essas são discussões
que o cara que não participou pensa “olha que besteira”, mas não
viveu aquela época. Para você ver a riqueza disso, precisa ver o
passado de um modo mais sofisticado.20

ACUSAÇÃO DE AUTORITARISMO
Não faltava também quem acusasse a direção do jornal, que se pretendia “de-
mocrática”, de “autoritarismo”, críticas vindas de colaboradores ofendidos
com a edição final de seus textos ou de grupos que divergiam politicamente
da direção e não conseguiam fazer prevalecer suas posições. Tudo era in-
terpretado pelo viés político, o que também irritava editores como Sérgio
Buarque:
Era tudo uma saia muito justa. Chega lá um negócio jornalisti-
camente ruim, você não encaminha, o cara já vai te acusar de es-
tar censurando politicamente. Isso é um inferno, sabe? Eu lembro
do Jean-Claude Bernardet entrando na sala do Raimundo, para
reclamar de mim, que eu tinha cortado não sei o quê. Mas o jor-
nalismo, que eu saiba, é isso: mexe, tira, corta. Mas ali qualquer
18 Idem.
19 AP 284.03.008 Fnd Mov APSP.
20 Entrevista de Raimundo Rodrigues Pereira em 9 de outubro de 2009.

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coisinha que você fazia tinha uma discussão. Aí, fui aprender:
toda vez que você corta o texto de alguém, você cortou o “es-
sencial”, você “mutilou”, e tal... Agora, você turbina isso com as
questões políticas, vira um problemão.21
Apesar disso, em novembro de 1977, o próprio Buarque escreveu uma car-
ta a Raimundo acusando-o de censura por ter derrubado a segunda parte de
uma entrevista com o sociólogo Florestan Fernandes, editada por Buarque,
sem comunicá-lo. Episódio hoje apagado da memória, segundo o ex-editor de
Nacional, na mesma entrevista:
Não lembro desse caso específico, mas acontecia algumas vezes
de a censura ter aprovado um texto e o Raimundo não publicar, e
eu reclamava. Mas era aquela tensão natural de editor com reda-
tor-chefe, né? E lá tinha espaço para discutir, para criticar. Agora
o Raimundo tinha um saco de ouro, porque tudo ia em cima dele,
tudo dava discussão.
Tonico diverge:
O Raimundo era autoritário, não há como negar, e eu como se-
gundo era mais ainda. A gente não tinha muito jogo de cintura,
queria impor as nossas coisas, e aí quando eu digo que a esquer-
da briga, eu me incluo nela, né? Mas todas essas reuniões eram
feitas na base do levanta a mão e a redação inteira participava.
No fundo, sempre tinha duas posições, entendeu? A posição do
Raimundo, que era muito forte porque era muito difícil de con-
testar – o Raimundo é cheio de argumentos, e vai, vai, vai, vai e
vence a discussão – e a outra posição de quem, naquele momen-
to, estava querendo fazer alguma modificação no jornal.22

21 Entrevista de Sérgio Buarque de Gusmão, citada.


22 Entrevista de Antonio Carlos (Tonico) Ferreira em 22 de outubro de 2009.

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Capa da edição 80, 10 de janeiro de 1977. Foto de João Bittar

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As primeiras
divergências

O
jornal Movimento significava jornalismo político. Desde o
início, todos os que se aproximavam tinham formação po-
lítica e queriam fazer oposição ao regime militar. A maioria
deles, jornalistas ou intelectuais, inclusive os que vieram de
Opinião, havia tido em algum momento proximidade com
alguma organização política de esquerda. Raimundo Pereira e Bernardo
Kucinski estiveram para entrar na Polop, Tonico Ferreira vinha de laços
com o PCB e, depois, com a dissidência desse partido. Marcos Gomes fora
dirigente da Ação Popular e se aproximara do PCdoB. Luiz Bernardes
havia feito trajetória semelhante. Fernando Henrique Cardoso e Francisco
de Oliveira, pelo menos antes de 1964, haviam sido próximos do PCB,
da mesma forma que muitos dos colaboradores cariocas, tais como
Maurício Azedo, Nelson Werneck Sodré e outros. Havia ex-militantes
da antiga Ação Popular, como Sergio Motta e Luis Carlos Mendonça de
Barros. Remanescentes da guerrilha urbana, de organizações como ALN
e Colina, como João Batista dos Mares Guia e seus companheiros de
corte trotskista de Minas Gerais, Aloisio Marques, Fausto Brito, Flávio
Andrade, João Machado, Flaminio Fantini e outros. Havia aqueles ex-
-militantes da Ação Popular que, por diversos motivos, não haviam
concordado com a integração ao PCdoB, como Duarte Pereira, em São
Paulo, Emiliano José e Tibério Canuto, na Bahia. Havia jornalistas sem
vinculação partidária que buscaram em Movimento uma oportunidade
de se expressar com mais liberdade, como Teodomiro Braga e Sérgio
Buarque de Gusmão. E também aqueles jovens que estavam se ini-
ciando como jornalistas e encontravam uma porta aberta, como Caco
Barcellos, Armando Sartori, Roldão Arruda e tantos outros. E havia
ainda um movimento nada subestimável de apoio e colaboração por
parte de bispos, padres, freiras e leigos católicos, simpatizantes da teo-
logia da libertação, que criava um clima de simpatia em torno do jornal
e o levava por todo o País até às comunidades eclesiais de base.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Para Francisco Marsiglia,


Movimento era um jornal realmente de frente. Segundo o
Raimundo, que usava uma expressão futebolística, “aqui tem
Flamengo, tem Botafogo, tem São Paulo, tem Santos”, ele usa-
va essa expressão, mas, no fundo, tinha tudo que era gente,
de tudo quanto é partido. Partidão, Polop, 4ª Internacional,
olha... o que não tinha lá era gente de direita, só. Porque o que
tinha de esquerda, olha, era realmente impressionante. E nos
dávamos muito bem, porque é o tal negócio, fazer frente tem
que fazer um programa, não adianta juntar porque é amigo, é
conhecido, tem que botar um programa e fazer; o jornal facili-
tou tudo.1
Nesse jornal se discutia tudo. Periodicamente, aos sábados e domingos,
ocorriam debates sobre grandes temas nacionais, eram grandes reuniões
igualmente abertas ao público. A questão agrária, a Constituinte, a Anistia
e outros assuntos produziram polêmicas acaloradas. Ali já iam se evi-
denciando as várias tendências de pensamento político dentro da equipe.
Os relatórios desses debates eram depois mimeografados e distribuídos –
mais de 500 exemplares – para colaboradores e acionistas.
A discussão continuava no âmbito do Conselho de Redação, onde os
temas relevantes da semana eram abordados, desde, por exemplo, a co-
bertura sobre a guerra de Angola às posições do MDB. A propósito das
eleições municipais de outubro de 1976, por exemplo, houve demoradas
discussões sobre a posição que o jornal levaria aos seus leitores sobre
como votar. Havia quem defendesse voto nulo, ou voto só nos autênticos
e outros candidatos combativos ou nacionalistas. Após ásperos debates
que opuseram Raimundo e Kucinski (este achava que o jornal não devia
ter posição sobre em quem votar), prevaleceu uma decisão de consenso:
“o jornal deve em suas matérias e ensaios: 1. lutar pela realização das
eleições; 2. lutar pela democratização e aperfeiçoamento das eleições...”
Entendia-se que o jornal poderia apoiar determinados candidatos, “inclu-
sive no Ensaio Popular”, mas não apenas esses candidatos, para não dar a
impressão que fora deles apoiaria o voto nulo.
Nessa decisão se incluía a intenção de setores da equipe de estabelecer
mais controle sobre o conteúdo dos Ensaios Populares. Isso porque os tex-
tos dessa seção, cuja autoria até então era atribuída a Raimundo Pereira,
não eram submetidos a uma discussão prévia. Raimundo os entendia
como pequenos ensaios, pensatas, portanto, quando o colaborador apre-
senta ideias com mais autonomia. Mas cada vez mais aqueles textos eram
recebidos pelos outros, e pelos leitores também, como editoriais, como
a opinião do jornal. Bernardo Kucinski desde o início havia sido crítico
aos Ensaios Populares. Falava em seu nome, mas certamente havia outros
1 Entrevista de Francisco Marsiglia, citada.

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As primeiras divergências

que pensavam como ele, por exemplo, Chico de Oliveira, Flávio Aguiar,
Maria Moraes, Guido Mantega, sem falar do pessoal de Belo Horizonte e
de Salvador. Havia um clima crescente de disputa.

KUCINSKI: POR UM JORNAL “SOCIALISTA”


Bernardo Kucinski, intelectual, politizado, formado no movimento socialista
sionista2, já era um jornalista experiente em 1974, quando voltou de Londres
para trabalhar no novo jornal, conforme acerto feito com Raimundo. Ele con-
ta que vinha como que querendo pagar uma dívida por não ter enfrentado
a barra pesada que foi trabalhar em Opinião, “essa coisa de culpa de judeu.
Uma culpa que eu inventei”.3 Acabou não indo trabalhar na redação em tem-
po integral. Assumiu emprego na Gazeta Mercantil, mas colaborava sistema-
ticamente com matérias para o jornal, participava das reuniões na condição
de editor especial, membro do Conselho de Redação e acionista. Não partici-
pava do dia a dia da redação, mas tinha uma relação especial com Raimundo,
mantendo uma nutrida correspondência com ele: “foi a pessoa que mais me
escreveu cartas naquela época”, lembra Raimundo.
Em 23 de março de 1976, mais de um ano antes do “racha”, Bernardo
escreveu uma carta a Raimundo mostrando sua insatisfação.4 E a razão
eram divergências políticas sobre a linha do jornal. Defendia um “jornal
socialista” fazendo contraposição à linha política que Movimento estava
tomando:
Acho que você comete um equívoco ao definir o jornal como
porta-voz de uma frente ampla democrática eventualmente
existente no país que luta contra a ditadura, ou seja, o AI-5,
o 477 e o restante dos instrumentos de exceção. Opinião, por
exemplo, disputa esse papel com as mesmas credenciais, ou
até mais algumas, como por exemplo, a credencial de setores
da burguesia nacional, a partir de seu proprietário, que tem
posições específicas que nós aceitamos com muitas restrições.
Não seria mais correto definir o nosso jornal como porta-voz
de uma frente dentro dessa frente? Ou seja, como componente
específico dessa frente, e não a frente mesma? Uma definição
assim imediatamente nos aproximaria muito, e aproximaria
o jornal daquelas ideias sobre o jornal socialista. Eu pesso-
almente não acredito em nenhuma solução para a sociedade
brasileira passando por frentes com a burguesia nacional, e
sinto pouca vontade em gastar meu tempo em lances desse
tipo, mesmo taticamente. (...) Aliás, agora eu entendo melhor
o equívoco que, na minha opinião, você tem cometido, por
2 Na adolescência, Bernardo Kucinski foi militante do movimento socialista sionista, estudou
marxismo, deslocou-se para Israel, onde trabalhou por um tempo em um kibutz. Retornou ao Brasil
por motivo de doença em sua família e foi estudar na USP.
3 Entrevista de Bernardo Kucinski em 19 de abril de 2010.
4 Carta de Kucinski a Raimundo, 23 de março de 1976. AP 284.03.002 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

exemplo, ao julgar o Estadão como nosso aliado. O Estadão


é hostil ao AI-5, mas inimigo, um dos maiores talvez no país,
do socialismo (...) Não se pode confundir as contradições dos
Mesquistas (ao hostilizarem o AI-5 e a censura, por exemplo),
com aliança tática com a frente anti-fascista...
Continuando no tema do jornal socialista:
Acredito que a aspiração por uma sociedade socialista já é
bastante ampla no país, apesar do gigantesco esforço do regi-
me para ostracisar (sic) e conferir ilegalidade à tendência so-
cialista. Nosso jornal é potencialmente o porta-voz ideal para
essas aspirações reprimidas, como muitos depoimentos que
têm surgido espontaneamente em nossas reportagens o de-
monstram. Acredito também que os membros do CR, em sua
maioria, se considerem socialistas, se tomarmos essa palavra
no sentido de um denominador comum...
E sobre sua contribuição ao jornal:
...Acredito que nesta questão está a chave para o meu rela-
cionamento com o jornal. Sei que o jornal ganharia muito se
eu ficasse como teu braço direito, fazendo pautas, editando,
escrevendo (...) Sei também que você sempre aguardou com
ansiedade minha volta da Inglaterra exatamente por isso. Eu
gostaria e quero contribuir, tanto quanto possa. Mas você não
poderá mobilizar ou motivar pessoas como eu na base do ar-
rastão. Logo que começaram a surgir problemas, evidentemen-
te que nesses quatro anos nós seguimos experiências diferen-
tes, e talvez eu não pudesse ser o que você queria, deveria ter
havido muita conversa (...) Se eu precisar fugir do jornal, ou se
já estou fugindo, lembre-se de que sou apenas mais um de uma
série. Para evitar isso é preciso fazer um grande esforço mútuo.
Esta carta pretende abrir a possibilidade para esse esforço.
Durante os anos em que Raimundo esteve dirigindo Opinião, e criando
Movimento, e Kucinski permaneceu em Londres, os dois amigos viveram
“experiências diferentes”, como disse Bernardo, que mudaram seu modo
de pensar. Influenciado pelos acontecimentos do exterior e do País, que
pareciam prenunciar uma nova época, Raimundo movera-se de uma posi-
ção de puramente jornalista, politizara-se, entrara em contato com a lite-
ratura marxista, já não queria apenas retratar a sociedade, mas transformá-
-la, que é uma expressão de Karl Marx. Na Inglaterra, Bernardo também
esteve em contato com ideias políticas socialistas. Na sua entrevista, ele
diz que em Londres pôde constatar que o Brasil estava atrasado “30 anos”
em questões políticas. Por exemplo, na Europa, o debate sobre “stalinis-
mo e trotskismo estava completamente superado na década de 1970”.5
O certo é que, naqueles anos, Raimundo e Bernardo haviam mudado, e
5 Entrevista de Bernardo Kucinski em 19 de abril de 2010.

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As primeiras divergências

em 1975 já não tinham a mesma identidade de ideias baseada em posi-


ções de esquerda genéricas e na paixão pelo jornalismo. Ao participar
em Movimento, Bernardo não se sentiu à vontade desde o começo. Ele se
comportava reservadamente com pessoas que identificava que tivessem
militância partidária.
Revendo a carta em 2010, Bernardo fez o seguinte comentário:
Acho que eu começo, também, aqui (na carta) a disputar um
pouco a qualidade do Raimundo como formulador ideológico,
sabe? Como, afinal... querer cagar regra em política. Ele era um
puta jornalista, agora, fica querendo ter (...) Acho que eu come-
ço a sentir que ele não é isso que ele pensa que é.
Para ele, a carta também refletia a sensação de que já estava ocorrendo
“um processo de exclusão” dos que se opunham à corrente de opinião de
Raimundo, conforme diz na entrevista:
Porque isso tudo, essas propostas todas, eram manifestações
de um alinhamento político do jornal. Entendeu? Na políti-
ca, os grupos precisam demarcar posições, demarcar terreno.
Muitas bandeiras são feitas só pra demarcar em relação ao ou-
tro. Eu nunca gostei dessa cultura sectária, entende? Em que
você valoriza a diferença ao invés de valorizar a semelhança, a
aproximação. O Raimundo se torna um... ele entra, mergulha
nesse processo mental e vai levando o jornal para essas posi-
ções que demarcam posição, assim como ele demarcou com
o Gasparian. E a minha resistência a isso é de natureza quase
que biológica, não é porque eu sou daquele outro partido e
acho que a frente é desse tipo ou daquilo, isso não tem nada
que ver. Agora, quando ele diz um absurdo como esse, que o
Estadão é nosso aliado, entendeu? Aí não dá, também, para
engolir.6
No seu livro Jornalistas e Revolucionários, Bernardo Kucinski estabele-
ce uma nítida fronteira, dentro da imprensa alternativa, entre os “jornalis-
tas” e os “revolucionários”:
A interferência política desqualificou os participantes como
portadores de novo modelo ético-político-democrático...
(...) Protagonistas não organizados nos partidos clandestinos
– entre os quais frequentemente jornalistas líderes dos proje-
tos – viam-se reduzidos, de sujeitos do processo, a instrumen-
tos de manipulação...
(...) Assim, impulsos libertários, de origem intelectual-jornalís-
tica, combinados numa nova matriz de relações baseada na auto-
organização, na autonomia do trabalhador intelectual e numa
ética em que os métodos determinavam os fins, acabavam sendo
negados pelo falseamento das relações pessoais inerentes ao mo-
delo leninista, no qual os fins justificam os meios.7
6 Entrevista citada.
7 Kucinski, Bernardo, Jornalistas e revolucionários, 2ª ed, São Paulo: Edusp, 2003, pág. 26.
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Jornal Movimento, uma reportagem

Mas não é essa discrepância que se vê na sua carta de 1976. Nela não
se fala em jornalismo, a não ser para refutar uma alegada insinuação de
Raimundo de que Bernardo estivesse defendendo “jornalismo por jorna-
lismo”:
Achei especialmente equivocada sua alegação de que outras
pessoas estariam propondo o jornalismo pelo jornalismo (...)
se você não o praticou, muito menos as pessoas mais direta-
mente participantes nesse recente processo de críticas, e nem
isso foi proposto.
A carta foi escrita nove meses após o lançamento de Movimento. E é
uma antecipação do teor das divergências que levariam ao “racha” um
ano depois.
As divergências no jornal iriam crescer ao longo de 1976. Havia uma
pressão para debater os Ensaios Populares. Nas reuniões semanais de
11 e 18 de setembro, o Conselho de Redação decidiu planejar debater
os Ensaios, conteúdo, forma e a questão da assinatura do autor. Na reu-
nião de 25 de setembro, o CR descobriu como o assunto era complexo.
“Queriam discutir tudo”, relatava a ata redigida por Tonico Ferreira, “Mar
de 200 milhas, MDB, controle populacional”, isto é, queriam discutir o
conteúdo das dezenas de artigos já publicados. E comentava: “havia muita
divergência, seria uma discussão sem fim”. Para que a discussão levasse a
“alguma coisa, não ficasse apenas em discutir por discutir”, fez-se um pla-
no para desenvolver o debate na sede e nas sucursais.8 Decidiu-se discutir
a linha geral. Planejava-se fazer um documento com o histórico da seção,
sua evolução e situação atual, para orientar os debates. Nos documentos
posteriores não há registros sobre essa discussão.

A REPRESSÃO DÁ SUA CONTRIBUIÇÃO


Nesses mesmos dias, Geisel e Golbery eram criticados por setores militares
que preconizavam um endurecimento. E o ministro do Exército, general Fro-
ta, articulava com crescente desenvoltura sua candidatura à sucessão presi-
dencial. Atos de indisciplina se explicitavam. Em 19 de agosto de 1976, ex-
plodiam bombas nas sedes da OAB e da ABI, no Rio de Janeiro. Um panfleto
dizia que era advertência aos comunistas, já que as autoridades se omitiam.
Em setembro, o bispo dom Adriano Hypolito, de Nova Iguaçu, foi sequestra-
do. Seu carro explodido em frente à sede da CNBB. Na mesma ocasião, uma
bomba na casa do empresário Roberto Marinho, dono da TV Globo, esteve
perto de lhe causar ferimentos. Outra bomba explodiu no Cebrap, em São
Paulo. Em novembro, bomba no jornal Opinião.
Em dezembro de 1976, o governo agiu, mas não para conter os milita-
res terroristas. Em uma ação repressiva comandada pelo II Exército, uma
casa no bairro da Lapa, em São Paulo, foi invadida, surpreendendo uma
reunião do Comitê Central do PCdoB. A casa foi metralhada, dois dirigen-
8 Relatório da reunião do CR de 25-09-1976. AP 285.04.001 Fnd Mov APSP.

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As primeiras divergências

tes do partido assassinados no local, um outro, na tortura, e seis militan-


tes foram presos. Esse fato, que ficaria conhecido como o “Massacre da
Lapa”, afora a grande repercussão no País e no exterior, teve muitas con-
sequências políticas, inclusive sobre o jornal Movimento. Por exemplo, o
governo ficou sabendo que havia uma ligação de Raimundo Pereira com
o jornalista Carlos Azevedo, militante do PCdoB procurado pelo aparato
de repressão. Mesmo na clandestinidade, Azevedo havia encontrado um
meio de fazer colaborações para o jornal, escrevia matérias, sugeria pau-
tas, mandava artigos do jornal A Classe Operária. Sua companheira, Maria
Lúcia de Morais Carmo, se encontrava com Sizue Imanishi, a companhei-
ra de Raimundo, periodicamente, para passar os materiais. Ao arrancar
essas informações sob tortura, os agentes de repressão se regozijaram.9
Essa notícia chegou ao jornal por meio de um dos advogados dos pre-
sos, Luiz Eduardo Greenhalgh. Ele compareceu à redação numa ocasião
em que a equipe estava reunida e deu essa notícia a todos. Houve uma
grande repercussão interna. No início de 1977, menos de um mês de-
pois dessas prisões, Bernardo Kucinski comunicou verbalmente a Tonico
Ferreira que estava se retirando do Conselho de Redação. Como Tonico
não o atendeu, em 14 de fevereiro reafirmou sua decisão por escrito, pe-
dindo que seu nome fosse retirado daquela posição do Expediente, “sem
prejuízo de continuar colaborando com o jornal”.10
Porém, em 9 de maio, Kucinski enviaria outra carta, nesta se desligando
completamente de Movimento.11

9 Depois do Massacre da Lapa, A Classe Operária passou a ser feito no exterior, pelos dirigentes que
estavam fora do País, como João Amazonas. Suas matérias eram divulgadas pela Rádio Tirana, da
Albânia. Azevedo gravava as locuções das matérias, passava-as para o papel e distribuía. Mandava
uma cópia para Movimento. Bernardo Kucinski interpretou esses documentos como “diretivas” do
PCdoB a Raimundo Pereira. Na realidade, tinham o caráter de colaborações. Raimundo não tinha
qualquer compromisso com as posições ali expostas, pois não era e nunca foi militante do PCdoB.
Por diversas vezes expressou no jornal posições divergentes das do PCdoB, como, por exemplo,
quanto à guerrilha do Araguaia, ao pensamento de Mao Zedong e à chamada teoria dos três mundos.
10 Bilhete de Kucinsci a Tonico. AP 285.02.038 Fnd Mov APSP.
11 Carta de desligamento de Kucinski. AP 285.02.038
85.02.038 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição 90, 21 de março de 1977. Desenho de Chico Caruso

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10
O debate dos
ensaios populares

Eu deveria acusar mais corretamente a época, mostrando o quanto é difícil


se orientar em meio a uma batalha tão confusa, mais difícil ainda lutar con-
tra o sectarismo de partidos e de indivíduos que pensavam que uma melhor
tática e a prática de meios mais eficazes para vencer provoca o esquecimen-
to da “causa comum”. (Jean Guéhenno)1

U
m ponto crucial da divergência e da incompreensão que en-
volveu a trajetória do jornal Movimento é o da autoria e do
conteúdo político dos “Ensaios Populares”. Foi um dos mo-
tivos alegados para o grande “racha” do jornal, em abril de
1977, embora questões políticas mais gerais tenham sido o
centro da polêmica.
A apuração objetiva mostra um encadeamento dos fatos ao azar, em vez
de uma suposta conspiração, como se chegou a supor. Sergio Motta havia
indicado o engenheiro Francisco Marsiglia para ser o administrador finan-
ceiro do jornal. Eles já se conheciam do tempo da faculdade (Faculdade de
Engenharia Industrial, FEI), do movimento estudantil, onde os dois ajuda-
ram José Serra a ser presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE) de
São Paulo e, depois, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE),
em 1963 e 1964. Todos então eram militantes da Ação Popular, assim
como outro companheiro e amigo, o baiano Duarte Lago Brasil Pacheco
Pereira, que foi vice-presidente da UNE na gestão de Serra.
Chico Marsiglia se tornaria um técnico em finanças. Trabalhou em um
banco de investimentos, de onde foi demitido depois de haver sido detido
sob a acusação de arranjar uma casa para reuniões de dirigentes do PCdoB.
Em 1975, estava trabalhando na preparação do lançamento de Movimento
quando teve notícias de Duarte Pereira:
Fui procurado por um amigo comum, que me relatou como
é que o Duarte estava. Ele estava absolutamente isolado, a AP
1 Jean Guéhenno, diretor do jornal de esquerda Vendredi, e participante da resistência dos
intelectuais franceses contra o nazismo, comentando o fracasso do governo da Frente Popular, em
1937, na França. Lottman Herbert R., A Rive Gauche – Escritores, artistas e políticos em Paris 1934-
1953. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora, 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

tinha acabado, ele não topou entrar no PCdoB (...) (Esse ami-
go2) me procurou e disse: “O Duarte está numa situação incri-
velmente ruim, isolado, não está em partido nenhum, tem que
sobreviver, está morando na casa de um cara, tem que sair todo
dia de manhã para dar uma de professor que vai trabalhar, e
não vai (...) Fica girando em ônibus. Um negócio, assim, abso-
lutamente incrível, kafkiano. Tinha que voltar uma determina-
da hora, também para não dar na vista. Sob o ponto de vista
financeiro, vivia de algumas contribuições do próprio cara que
o abrigou, que também não era rico.” Eu falei: “Bota ele em
contato comigo, vou ver se ele topa trabalhar no jornal, ganhar
uns trocos e contribuir”. Marquei um encontro com o Duarte,
conversamos andando na rua, naquela época, era perigoso...3
(...) Aí, encontrei com ele algumas vezes e comentei com
o Raimundo: “tem um cara assim, assado...”, “Quem, da
Realidade? Puta vida, traz ele aí!”, “Ah, Raimundo, não dá,
né?”(Duarte estava na clandestinidade). (...) E, por outro lado,
eu já tinha falado com o Sergio (Motta), ele falou: “vamos, eu
converso também com o Raimundo, legal”. E o Sergio promo-
veu esse encontro.
Duarte Pereira lembra que foi encontrar Sergio Motta na empresa dele,
o qual disse: “‘Olha, vamos combinar, te apresento ao Raimundo e vamos
conversar. Vou marcar um jantar e te apresento’. E foi assim. Ele marcou
um jantar na casa dele, e foi onde eu conheci o Raimundo.”4
As reuniões de Raimundo com Duarte para estabelecer os rumos da co-
laboração se deram na casa dos pais de Marsiglia, no bairro do Itaim: “A
casa da minha mãe era um sobradinho, não despertava suspeitas, nada.
Deu para fazer reuniões várias vezes.” Duarte Pereira lembra com gratidão
dos “saborosos jantares” que a mãe de Marsiglia preparava para eles nas
ocasiões em que se reuniam em sua casa.5

DUARTE PEREIRA E AÇÃO POPULAR


Baiano de Santo Amaro da Purificação, ex-seminarista que depois iria se
formar em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Duarte Lago Brasil
Pacheco Pereira entrou na recém-criada organização política católica Ação
Popular, no segundo semestre de 1962. Ação Popular teve origem na Juven-
tude Universitária Católica (JUC), que, rompendo com a hierarquia da igre-
ja católica, empolgara as massas estudantis com uma proposta eclética de
“humanismo” e “socialismo” cristão e uma prática de intenso ativismo, em
contraposição ao reformismo e à prática cupulista do movimento estudantil
ligado ao Partido Comunista Brasileiro.

2 Trata-se do gráfico Celio Fujiwara, ex-militante de AP e PCdoB e amigo pessoal de Duarte Pereira.
3 Entrevista de Francisco Marsiglia em 24 de novembro de 2009.
4 Entrevista de Duarte Pereira em 5 de julho de 2010.
5 Entrevista de Duarte Pereira, citada.

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O debate dos Ensaios Populares

Em fevereiro de 1963, Duarte participou em Salvador do primeiro con-


gresso da AP, em que foi aprovado um “Documento-Base” que negava o
“idealismo” e o “materialismo” e se definia por uma “terceira posição”,
uma “perspectiva realista”.6
A AP se organizou como um partido estudantil, primeiro com grande
mobilização no meio universitário (a greve do 1/3) e depois no secun-
darista, com repercussão no meio cultural (UNE Volante, CPC da UNE).
Mas logo ampliou-se para outros setores populares. O Documento-Base
formulara como meta o trabalho entre operários e camponeses. Por meio
do Movimento de Alfabetização de Base (MEB), do movimento de sindi-
calização rural, e pela Superintendência para a Reforma Agrária (Supra),
organismos e programas do governo João Goulart, Ação Popular estabele-
ceu influência no movimento camponês e de trabalhadores rurais. Teve
êxito menor junto aos operários industriais, envolvidos pelo sindicalismo
oficialista e “pelego” ou sob a influência do Partido Comunista Brasileiro
(PCB). Os dirigentes e quadros da AP desenvolveriam rapidamente expe-
riência na organização das lutas de massas, aproveitando o forte movi-
mento de ascenso popular do período. Tal chegou a ser a sua influência
política, inclusive no Congresso Federal e no Executivo, que, por sua in-
dicação, o católico de esquerda, então deputado federal, Paulo de Tarso
Santos, tornou-se ministro da Educação.
Duarte Pereira já era uma das lideranças ascendentes da AP em 1963,
quando participou da articulação da chapa de José Serra para a presidên-
cia da UNE.
O golpe militar de 1964 sufocou todo esse movimento de ampliação da
participação política popular que estava em curso no País. A AP, sofrendo
o peso da repressão, foi para a clandestinidade, e seus dirigentes também,
como Herbert de Souza (Betinho), Aldo Arantes, Haroldo Lima, e o pró-
prio Duarte, entre outros. Nos anos seguintes, ela havia de se reorganizar
na clandestinidade, e participou das lutas de resistência à ditadura. E, ao
mesmo tempo, ia se transformando de uma organização de origem cató-
lica, de pensamento idealista, reformista, em um agrupamento político
que, ao mesmo tempo em que entrava em contato com a teoria do marxis-
mo leninismo, conviveu com períodos de predominância do “foquismo”,
passando ao “maoismo”, definindo-se como marxista-leninista no final,
até incorporar-se ao PCdoB em 1973.
A partir de 1965, o comando nacional da Ação Popular passou a sediar-se
em São Paulo. A organização contava com poucos recursos, mesmo para
sustentar seus dirigentes. Pouco conhecido pelo aparelho de repressão
policial-militar, e em dificuldades materiais para sustentar-se e à mulher
e dois filhos, Duarte decidiu sair da clandestinidade e combinar sua mili-
6 O “Documento-Base” de 1962 assumia o socialismo, e a socialização dos meios de produção, mas
se definia por um “socialismo como humanismo”, provavelmente um “socialismo sem ditadura
do proletariado (...) falava de revolução socialista, mas não apresentava uma proposição de como
realizar essa revolução (...) Expressão típica de uma intelectualidade idealista debatendo-se entre
concepções variadas, mas sentindo a necessidade de transformações sociais”. Lima , Haroldo;
Arantes, Aldo. História de Ação Popular da JUC ao PCdoB. São Paulo: Alfa Omega, 1984, págs. 37 a 39.

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Jornal Movimento, uma reportagem

tância com trabalho profissional. Em 1966, foi apresentado por um amigo,


Mauricio Segall, a Pedro Paulo Popovic, diretor da Editora Abril. Popovic
achou que Duarte se encaixaria bem na equipe de uma nova revista da
editora. E o levou a Paulo Patarra, que estava montando a equipe de jor-
nalistas de Realidade. Patarra o contratou incontinênti. Como Duarte
Pacheco, um dos seus quatro sobrenomes, ele consta do expediente da
revista, encarregado do Departamento de Pesquisas, desde o número um,
abril de 1966, e se mantém até o 11, em fevereiro de 1967. Duarte deixou
a revista em obediência à orientação da Ação Popular, que anos depois ele
passou a considerar dogmática, de “integração na produção” (o critério
para ser militante da AP passava a ser trabalhar na indústria ou no campo
e viver em bairro popular).
Sua passagem por Realidade foi marcante não só pelos textos com infor-
mações bem apuradas e escritos em um estilo transparente. Apelidado de
“Baiano”, fez amigos na equipe. Influenciou colegas e trouxe três deles –
Narciso Kalili, Sérgio de Souza e Carlos Azevedo – para a Ação Popular.
Narciso e Sérgio chegaram a ser dirigentes locais da AP, mas, em 1968, com
o advento da política de “integração na produção”, deixaram a organização.
Nos anos seguintes, Duarte Pereira esteve entre os dirigentes que promo-
veram a aproximação entre AP e o PC do Brasil.
Essa afinidade começou nas chamadas ações de massa, nas frentes de luta
estudantil e camponesa, onde os militantes das duas organizações com frequ-
ência apresentavam propostas semelhantes e agiam como aliados. Também
levavam em conta sugestões do PC da China, que os estimulava à unificação.
Por volta de maio de 1969, houve uma reunião de troca de opiniões entre
Pedro Pomar e Carlos Danielli, pelo PCdoB, e Jair Ferreira de Sá e Duarte
Pereira, pela AP. Embora houvesse pontos de concordância, havia muitas di-
ferenças entre as duas organizações. A esse tempo, a AP definia novas posi-
ções sobre a sociedade e a revolução, adotava um novo tipo de organização,
ao estilo dos partidos comunistas, passava a se denominar Ação Popular
Marxista-Leninista (APML) e se propunha a construir um partido de tipo
“inteiramente novo” da classe operária.
Nos estudos e debates que promoveu ao longo de três anos, a maioria
dos dirigentes de APML chegou à conclusão de que o PCdoB, por sua luta
contra o “revisionismo” do PCB prestista e do kruchevismo (de Kruchev,
do PC da União Soviética), havia se reorganizado em 1962 e, portanto, era
o partido da classe operária. Assim, não se tratava mais de “reconstruir
o partido proletário”, que havia sido até então a posição da organização.
Mais adiante APML concluiu que, sendo este o partido da classe operária,
a organização devia integrar-se a ele. Essa decisão vinha sendo amadure-
cida havia algum tempo e se deu numa reunião dos seis dirigentes que
compunham o Bureau Político, em meados de 1971. Uma minoria diver-
gia, Jair Ferreira de Sá e Paulo Wright.
Além disso, dentro da maioria surgiram também diferenças de opinião.
Haroldo Lima, Aldo Arantes e Renato Rabelo deixaram de defender a tese

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O debate dos Ensaios Populares

de um “partido inteiramente novo”. Para eles, agora, a unidade deveria


ser feita com a integração no PCdoB. Duarte Pereira concordava com a
unificação, mas sua posição se diferenciava. Propunha que as duas or-
ganizações construíssem “em torno do PCdoB” um partido inteiramente
novo, da terceira etapa do marxismo-leninismo, que incluía o maoismo.7
Posteriormente, Duarte evoluiu dessa posição, mas considerou que a dis-
cussão precisava ser aprofundada: “Por influência do PC da China, tínha-
mos abraçado a tese do ‘marxismo-leninismo-maoismo’ de forma preci-
pitada, dogmática e seguidista. Não devíamos revogá-la da mesma forma
agora sob a influência do PC do Brasil”.8
Também não concordava com o cancelamento do II Congresso da AP,
que havia sido estabelecido para a definição da unificação com o partido.
Na sua opinião, os militantes da AP não deviam integrar-se individual-
mente no PCdoB, mas enquanto organização. E esperava que o PCdoB
retificasse afirmações, na sua opinião equivocadas, que fizera sobre a AP
no jornal A Classe Operária.9
Haroldo Lima foi um dos principais dirigentes da AP desde sua funda-
ção até a unificação com o PCdoB. Depois, passou a fazer parte do Comitê
Central do partido, posto que continuava a ocupar em 2010. Ele conta
que, em 1972, a decisão pela unificação já havia sido tomada pela maioria
da direção da AP, o II Congresso estava programado para coroamento do
processo de discussão. Mas quando se divulgou a notícia da guerrilha
dirigida pelo PCdoB no Araguaia, “tudo mudou de figura”. Nas próprias
palavras de Haroldo Lima:
Eis que surge uma variável extremamente importante, é o
surgimento da guerrilha do Araguaia, colocando o PCdoB na
alça de mira da ditadura. O partido que estava conduzindo a
guerrilha era o PCdoB, com o qual nós queríamos nos unificar.
Então, essa realidade é que introduz um dado novo que foi
objeto de tratamento da “maioria da maioria”. (...) E nós, da
maioria da maioria, que éramos eu, o Aldo e o Renato, esse
pessoal pensou “realmente não dá mais (...) Pode ser que a
guerrilha acabe nesse período e acabe o partido”. E o próprio
partido também, que estava em contato conosco, dizia: “Nós
precisamos de vocês. Precisamos urgentemente de vocês”. Isso
é um apelo da revolução, não teve dúvida, esse pessoal não
teve dúvida.10
Em 1973, quando a unificação começou a ser efetivada, Duarte conside-
rou que aquelas premissas exigidas não haviam sido atendidas e decidiu não
entrar para o partido. Sua decisão causou estupefação entre os companhei-
7 Lima, Haroldo; Arantes, Aldo op. cit., pág 143.
8 Duarte Pereira, documento “Estêvão e o Partido Comunista do Brasil”, sobre sua posição quanto
à integração da AP ao PCdoB, no Arquivo Edgar Leuenroth, Centro de Pesquisa e Documentação
Social, Unicamp, 1999.
9 Duarte Pereira, documento citado.
10 Entrevista de Haroldo Lima em 31 de maio de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

ros que ele até então liderava no rumo da unificação, como lembra Carlos
Azevedo. Portanto, quando escrevia Ensaios Populares para Movimento,
Duarte o fazia na condição de militante político independente.

A IDEIA DOS ENSAIOS


Raimundo Pereira queria ter no jornal uma seção de ensaios rápidos, como
na seção Time Essay da revista americana Time. Duarte parecia a pessoa
indicada para isso. Raimundo conta (e Duarte confirma) que, em 1967,
quando pediu demissão em Realidade, Robert Civita, diretor da Editora
Abril, o havia convidado para fazer uma seção semelhante em uma nova
revista que estava para lançar (Veja seria lançada em 1968), mas, devido
à decisão política da AP, ele não pôde aceitar.11
Nos Ensaios Populares, em Movimento, Duarte Pereira foi encontrar uma
janela para expor seus pontos de vista. Sua colaboração, pelas posições
políticas que apresentava, pela qualidade formal e pela repercussão que
causava entre os leitores e na área política, teria em qualquer oportunida-
de produzido polêmica. Os textos de Ensaios Populares tinham o objeti-
vo de promover a “elevação do nível de consciência dos trabalhadores”.
Partiam dos fatos, da conjuntura, discutiam a política do governo e as
táticas da oposição, para lançar ideias e apontar caminhos. Por exemplo,
na edição de Movimento nº 24, de 15 de dezembro de 1975, comentando
uma proposta do senador Marcos Freire (MDB-PE) de se institucionalizar
o regime introduzindo aspectos do AI-5 na Constituição, um Ensaio tratou
didaticamente das duas ordens jurídicas coexistentes no País, a consti-
tucional e a “institucional”, isto é, a do AI-5, que tornava letra morta a
outra, a dos dispositivos constitucionais. Isso para concluir que propostas
como a de Freire, que não abrigavam as liberdades democráticas e a parti-
cipação popular, conduziam à institucionalização do regime de exceção e
não à democratização. Causando impacto nos vários setores da oposição,
os Ensaios Populares se tornaram de fato um ponto de referência para os
movimentos políticos.
Na opinião de Bernardo Kucinski:
Os Ensaios Populares destacaram-se pela clareza de estilo e
linguagem pedagógica. Propunham-se a “fazer educação po-
pular”, desenvolvendo um tema em forma editorial, a partir
de fatos da semana ou da conjuntura. Aos poucos foram de-
finindo, com vigor e estilo econômico, posições políticas, e
passaram a desempenhar dentro do jornal e junto ao público o
papel de símbolo ou comprovação de existência de uma deter-
minada hegemonia política no jornal.12

AS DIFERENÇAS APARECEM NO DIA A DIA


O programa do jornal defendia uma frente democrática contra a ditadura, era
uma plataforma geral em torno da qual havia consenso. Mas como ela se ex-
11 Entrevista de Duarte Pereira em 5 de julho de 2010.
12 Livro citado, pág. 355.
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O debate dos Ensaios Populares

plicitaria concretamente na pauta, nos artigos e reportagens, nos temas priori-


tariamente abordados, nos frequentes e concorridos debates promovidos pelo
jornal? No dia a dia é que haveriam de se evidenciar as divergências. Pois,
em qualquer episódio concreto, cada tendência presente no jornal tinha seu
modo particular de enxergar a frente democrática seja como caminho para a
democratização ou para a revolução democrática e popular, ou, ainda, para
a revolução socialista. Parte considerável da equipe defendia ardorosamente
a realização de uma reforma agrária no País. Outra parte era ardorosamente
contrária.13 A bandeira da convocação de uma Assembleia Constituinte tam-
bém era motivo de calorosos debates. Nesse clima, cada palavra se tornava
um símbolo, traía um significado, se apresentava como saída ou armadilha,
bandeira ou anátema. E tudo era acompanhado com “pente-fino”, como dizem
João Batista dos Mares Guia e Aloisio Marques em suas entrevistas, adiante.
Essas divergências, que no cenário nacional empolgavam as várias ten-
dências de esquerda desde os bancos da universidade até todos os meios
intelectuais, iriam de fato ser o pano de fundo dos acontecimentos que
levaram ao rompimento da primeira frente formada em Movimento.
Como esses temas eram tratados amplamente em Ensaios Populares,
a polêmica teve seu fulcro voltado para essa seção. Uma pesquisa com
os leitores, feita por Movimento em 1976, havia indicado que Ensaios
Populares era a terceira seção mais lida do jornal, depois de Cena e Gente
Brasileira e Histórias Brasileiras. Mas, para alguns membros da equipe,
esses textos divulgavam posições “atrasadas”, reformistas. E havia um
complicador: quem escrevia os Ensaios Populares?
A autoria era atribuída a Raimundo Pereira, mas pelas posições ali de-
fendidas alguns passaram a supor que fossem escritos pela direção do
PCdoB. Era um duplo engano, primeiro porque as propostas para a frente
pela democratização estavam disseminadas pelos setores progressistas do
País, formavam um certo consenso. Embora essas ideias tenham sido mais
bem desenvolvidas entre as organizações revolucionárias, pelo PCdoB e
também pela AP, isso não significava que o partido e a AP estivessem di-
retamente presentes onde quer que elas viessem a público. Em segundo
lugar, as ideias de Duarte Pereira, o autor dos Ensaios, sobre a tática, em
geral, não eram diferentes das do PCdoB, mas Duarte não era militante
do PCdoB, como vimos. Quanto a Raimundo Pereira, a sua concordância
com aquelas propostas vinha de antes, pelo menos desde quando diri-
gia o jornal Opinião. Ele com certeza concordava com o que publicava.
Entrevistado em 2010, disse:
Os Ensaios, pela sua qualidade, começaram a ter grande reper-
cussão. Eu os editava. Para mim, e para dezenas de milhares de
pessoas, tenho certeza, eles foram ótimos. Mas eu só podia publi-
13 Na época alcançaram repercussão os debates em Movimento sobre a reforma agrária. Marcos
Gomes em sua defesa e Chico de Oliveira contra. Fernando Henrique Cardoso também não via
importância na questão agrária, que só veio a conhecer concretamente em seu governo: foram oito
anos de grande pressão do movimento camponês liderado pelo Movimento dos Trabalhadores sem
Terra (MST).

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Jornal Movimento, uma reportagem

car aquilo com o que eu estava de acordo, pois, mesmo sem assi-
nar os textos – que não eram meus, claro – eu tinha de defender
aquelas ideias publicamente. Eram textos que a maioria da reda-
ção, e mais gente depois, na medida em que os textos ganharam
fama, achava que eram de minha autoria.14
Tonico Ferreira acha que a contribuição de Duarte foi importante:
... ele tinha uma cabeça muito boa e escrevia bem. Para a épo-
ca, foi importante. Então, ele esclarecia um pouco, toda a ideia
que a gente tinha do que tinha que fazer naquele momento que
era superar o trauma da luta armada. Você tinha que superar
aquilo tudo, porque... ninguém sabia direito o que fazer: “aca-
bou a luta armada, o que nós vamos fazer?”. Isso, um pouco,
era o papel dele lá escrever (...) nós éramos jornalistas, a gente
não sabia fazer, não estávamos preparados para isso. Então,
aquilo era uma contribuição importante para nós. Porque às
vezes você tem alguns intelectuais que dão uma ideia mui-
to própria e muito boa para um determinado momento (...)
Comigo, total afinidade, com o Raimundo, também.15
Mas despertou divergências desde o começo, lembra Tonico:
Isso era uma grande discussão lá, né? Isso tudo foi motivo
de brigas, porque achavam que em tudo aquilo estavam as po-
sições do PCdoB. Achei aquilo tudo muito engraçado, porque
eu não conhecia ninguém do PCdoB, não tinha nada a ver com
aquilo e até hoje as pessoas acham que eu sou do PCdoB, ou
fui. Eu não tenho a menor ideia, nunca fui em nenhuma reu-
nião, não sei de nada, não...
Tonico lembra que houve muita intriga:
É, porque havia uma desconfiança de que todo mundo... é as-
sim, digamos que você não é nada, você é, inclusive, de outra
tendência e está lá dando seu sangue pelo jornal. Aí, dizem pra
você: “não, você está trabalhando pros neguinhos do PCdoB,
eles estão pondo todas as ideias deles nos Ensaios Populares,
aquilo lá é para divulgar as opiniões (do partido) e você é mas-
sa de manobra”, ninguém aceita um negócio desses.
Na sua opinião, o problema era não poder dizer quem escrevia por causa
da repressão:
Então, não tinha como explicar aquilo. Não dava para di-
zer que o Raimundo tinha escrito, acho que até tentou-se uma
época dizer isso, mas não funcionou (...) eu sou a grande teste-
munha de que não houve nada, nenhuma grande conspiração,
mesmo porque eu ficava lá tanto tempo quanto o Raimundo e
provavelmente mais, nunca deixei o Raimundo sozinho.
Tonico sabia que era Duarte quem escrevia os Ensaios. Além de Raimundo,

14 Entrevista de Raimundo Pereira em 13 de janeiro de 2010.


15 Entrevista de Tonico Ferreira em 22 de outubro de 2009.

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O debate dos Ensaios Populares

só ele, Sergio Motta e Francisco Marsiglia sabiam. O motivo pelo qual


Raimundo não informou aos outros companheiros era, entretanto, defensá-
vel. Tinha que preservar Duarte. Ele era intensamente procurado pela repres-
são do regime, como importante dirigente da AP e, depois, do PCdoB. Os
órgãos da repressão não sabiam que Duarte não havia entrado para o PCdoB,
tanto que esperavam encontrá-lo na casa da Lapa onde houve o massacre
de dezembro de 1976. A revista Veja chegou a noticiar sua prisão naquela
ocasião.16 Se apanhado, corria o risco de ser assassinado. Além disso, se sua
colaboração ao jornal fosse descoberta pelos militares, Movimento estaria se-
riamente comprometido, poderia ser fechado, poderia haver prisões na equi-
pe. A redação de Movimento era um local aberto a todas as pessoas e não se
podia subestimar a possibilidade de uma infiltração policial. Era grande a
responsabilidade de Raimundo ao manter contatos sigilosos com Duarte. E
grave a decisão que assumiu de não informar sobre a colaboração de Duarte
nem mesmo aos amigos, como Marcos Gomes e Bernardo Kucinski.
Para este,
a condução do jornal, pelo Raimundo, foi contrária aos esta-
tutos do jornal. Violentamente contrária ao estatuto do jornal.
Introduziu um elemento de clandestinidade, que ele inclusive
podia ter introduzido, mas de forma legítima, ele introduziu
de forma ilegítima, porque ele poderia ter dito: “Nós temos um
pensador, de esquerda, clandestino, que não pode aparecer,
ele vai escrever sob um pseudônimo, o que vocês acham?”.
Na entrevista citada, perguntado se achava que, naquele clima de re-
pressão, a revelação da identidade do autor de Ensaios Populares pode-
ria levar a problemas de segurança para o jornal e para o próprio Duarte
Pereira, respondeu: “Isso eu não sei. O que eu sei é que o jeito que ele
(Raimundo) fez não estava correto, não foi a solução adequada. Entendeu?
Foi absolutamente não adequada (...)”
E também tem o ressentimento pessoal porque o velho amigo não confiou
nele: “Por que para o Marcos Gomes ele fala e para o Bernardo Kucinski
ele não fala?” Na verdade, Raimundo não falou de Duarte Pereira para
Marcos Gomes. Este, porém, lembra que logo deduziu por conta própria
porque conhecia o estilo de escrever de Duarte por haver militado a seu
lado na Ação Popular.
Em outro momento da entrevista, Bernardo diz: “Nós éramos muito
chegados (...) as famílias eram muito chegadas. Por isso que, depois, nos
episódios posteriores, teve uma dimensão muito pessoal, essa traição pes-
soal, ele não confiar a mim coisas que fazia...”17
Tonico Ferreira, Marcos Gomes e Luiz Bernardes concordam com os cui-
dados de segurança tomados por Raimundo, mas nas entrevistas que deram
para este livro disseram achar que foi um erro não atribuir uma autoria aos
Ensaios. Sem a assinatura de um autor, dizem, os artigos assumiam um tom
16 Veja, 29 de dezembro de 1976.
17 Bernardo Kucinski, entrevista citada.

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Jornal Movimento, uma reportagem

de editorial, de posição oficial do jornal, quando não deviam e não podiam


assim ser considerados, para o bem da unidade política da equipe.
“Devia ter assinado com um nome qualquer”, diz Marcos Gomes.
“Depois de 1977 eles não foram assinados com o nome fictício de Alfredo
Pereira? Por que não foi assim desde o começo?”
Será que a simples presença do nome de um desconhecido a pretexto
de assinatura resolveria o dilema? Se o autor fosse pessoa conhecida, é
possível que a situação fosse melhor em termos de confiança dentro da
equipe, mas não atenuaria o debate político, que era o centro das diver-
gências. O fato é que, naquele clima tenso de um jornal de oposição sob
cerco da ditadura, vivendo internamente divergências políticas, a decisão
de manter em segredo a colaboração de Duarte Pereira, tomada por razões
de sua segurança e da segurança do próprio jornal, assumiu ares de trama,
de conspiração.
Teodomiro Braga afirma que:
Eu nunca me senti enganado. Sabia que tinha as coisas ali
que não podia contar, não podia perguntar. Nunca perguntei
muito, porque sabia que se perguntasse poderia não ter a res-
posta que estava buscando. Ficava na minha, sabendo que nós
estávamos em plena ditadura, que era perigoso. Era complica-
da aquela época, você vivia numa tensão permanente, você, a
família. Não podia desconsiderar o braço da repressão, ainda
mais em São Paulo.
Para Teodomiro,
todo mundo sabia. Na verdade, sabia. O pessoal não queria
dar o braço a torcer, porque os que faziam expressavam uma
corrente diferente, que era rival das outras que não gostavam,
era isso. (...) Foi um pretexto. Se não fosse aquele episódio, se
não fossem os Ensaios Populares, iam rachar por outro motivo,
pela mesma razão, que é a questão de visões diferentes sobre o
Brasil naquele momento.18
A opinião de Murilo Carvalho é mais crítica:
Eu não estava aqui. Eu lembro que o Flávio de Carvalho me
escreveu uma carta contando essa história, ficamos todos mui-
to espantados. Houve uma série de justificativas do Raimundo,
dizendo que o Duarte estava clandestino e tudo, mas não foi
uma coisa muita inteligente, eu acho, manter isso escondido
dos outros companheiros de trabalho.(...) O problema é que
aquilo ali (os Ensaios Populares) era a voz do jornal.19
Francisco Marsigilia diz que “isso não era importante, o que importava
é que, fosse de que tendência ou organização política que fosse, que se
trabalhasse, como se trabalhou, para fortalecer o jornal”.
Na sua opinião, a crítica de Kucinski significa negar legitimidade à par-
18 Entrevista de Teodomiro Braga em 1º de dezembro de 2009.
19 Entrevista de Murilo Carvalho em 14 de dezembro de 2009.

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O debate dos Ensaios Populares

ticipação de pessoas que estavam forçadas a viver na clandestinidade,


principalmente à participação de militantes ligados ao PCdoB:
“E se havia a influência de partidos e pessoas que estavam na clandesti-
nidade, qual era o problema? Eles não tinham direito de se manifestar só
porque eram proibidos pela ditadura?”20, questiona.

20 Entrevista de Francisco Marsiglia em 24 de novembro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição 115, 12 de setembro de 1977.


Desenho de Jayme Leão

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11
A política de Carter,
um dos estopins

V
iviam-se dias dramáticos no início de 1977. Os acontecimen-
tos políticos indicavam tensão crescente entre governo e a opo-
sição, continuavam as cassações de parlamentares, a censura
prévia a vários jornais, sem esquecer as medidas mais duras
contra outros oposicionistas, prisões e processos. O “Massacre
da Lapa” ainda repercutia. A denúncia, feita em 1º de fevereiro, pelos advo-
gados Luiz Eduardo Greenhalgh e Márcia Ramos de Souza, de bárbara tortura
contra seu cliente Aldo Arantes, dirigente do PCdoB, provocou protesto no
País e no exterior. A Pontifícia Comissão de Justiça e Paz de São Paulo re-
cebeu a mãe de Aldo e se manifestou contra as “práticas abomináveis”. Em
Portugal, um abaixo-assinado contra o “Massacre da Lapa”, com 40 mil as-
sinaturas, foi apresentado ao embaixador brasileiro, general Carlos Alberto
Fontoura, que recusou recebê-lo. Quarenta personalidades francesas, inclu-
sive um Prêmio Nobel, enviaram carta ao presidente Geisel pedindo que ces-
sassem as violências. O governo também recebia questionamentos do novo
governo americano, do presidente Jimmy Carter, sobre a violação de direitos
humanos no País, que o levaria a suspender o Acordo Militar Brasil-EUA.
As dissensões entre os militares se agravavam, surgiam atos de indisciplina
nos quartéis. A política de distensão claudicava, enquanto a dinâmica das
denúncias contra abusos e manifestações de oposição tomava impulso. A
ideia da democratização se difundia pela sociedade e ganhava até as páginas
da grande imprensa.
Nas áreas de influência da esquerda havia uma animação. Grandes ques-
tões eram debatidas, todas parecendo vitais para o futuro da nação. O regime
dava sinais de esgotamento, entre militares e empresários formavam-se cor-
rentes divergentes. As classes sociais buscavam se posicionar tendo em vista
seu lugar no novo cenário de poder que se esboçava. Quem iria dirigir o pro-
cesso? A oposição precisava tomar a iniciativa. Precisava se unir para buscar
o poder. Mas unir-se em torno de quê? Quem eram os protagonistas? Quem
fazia parte da frente de oposição? Que objetivos essa frente devia almejar? A
burguesia nacional fazia parte da frente? Mas a burguesia nacional existia?

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Jornal Movimento, uma reportagem

Qual o papel da classe operária dentro dessa frente? Se ela não fosse a classe
dirigente, seria manipulada pela burguesia? A frente devia incluir os milita-
res dissidentes? Mas eles queriam de fato a democratização ou controlar o
processo democrático? Devia-se lutar por uma Assembleia Constituinte que
elaborasse uma nova Constituição? Mas quem iria convocar e dirigir a Cons-
tituinte? Ela iria democratizar de fato o País ou institucionalizar as leis de ex-
ceção do regime ditatorial? Essas questões estavam presentes no cotidiano da
equipe e nas páginas (quando passavam pela censura) do jornal Movimento,
com uma grande carga de emocionalidade.
Em 1º de abril, o general Geisel baixava o “pacote de abril”, um decreto com
base no AI-5, fechando temporariamente o Congresso, criando novos limites
para as eleições de 1978 e impondo pela força a Reforma do Judiciário que
o Congresso se recusara a aprovar por meio de emenda constitucional. Na
edição 92, de 4 de abril, Movimento dava matéria de cinco páginas e meia
(apesar dos cortes dos censores) detalhando o episódio. Pouco depois, o de-
putado Alencar Furtado, líder do MDB na Câmara dos Deputados e membro
do Conselho Editorial de Movimento, após discurso pela TV em que lamen-
tava os mortos e desaparecidos, tinha seu mandato e seus direitos políticos
cassados.
Alencar Furtado, aos 85 anos, com boa saúde, morava em Brasília em
2010. Relembrou com entusiasmo:
Fui o último cassado. Houve um protesto internacional mui-
to grande. A Câmara, o governo receberam, por exemplo, men-
sagens do Partido Socialista Francês, do Partido Trabalhista
Inglês, a Assembleia de Portugal fez uma mensagem unânime
e mandou contra eles aí. Enfim, houve uma reação, por que
realmente, naquela época, só havia dois partidos, era Arena e
MDB, então, cassaram um líder do MDB – naquela época eu
estava liderando a bancada –, ia ficar só o outro líder. Então,
foi uma violência enorme e a repercussão foi muito grande. Eu
acho que isso concorreu para não cassar mais ninguém. Mas
também já estava com as frestas de luz da abertura, né?1

A POLÊMICA
Na ressaca da derrota no Vietnã, o governo Carter iria adotar uma linha di-
plomática de tomar certa distância dos governos autoritários instalados sob a
inspiração dos EUA pelo mundo afora. Tonico Ferreira lembra que
o cônsul americano aqui, que era provavelmente um cara da CIA,
chamou a gente para conversar. Fui eu, porque o Raimundo não
quis ir (...) o Fernando Henrique Cardoso e acho que o Airton
Soares, ele convidou três caras para conversar, para sondar como
é que seria recebida pela esquerda a política de direitos humanos
do novo presidente, que ia tomar posse. (...) Enfim, de uma certa
forma, o governo americano sondando a esquerda sobre o novo
1 Entrevista do ex-deputado Alencar Furtado, “Autêntico” do MDB, em 25 de fevereiro de 2010.

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A política de Carter, um dos estopins

governo em uma nova fase. Desse ponto de vista, é super-rico,


você não poderia fazer nada, entender a oposição no Brasil, na-
quele momento, sem passar pelo jornal Movimento.2
Qual o real significado da política de direitos humanos de Carter? Na
edição 92, Movimento tratava do tema em dois artigos. Num Ensaio Po-
pular intitulado “Os direitos humanos e a soberania nacional” avaliava a
política dos direitos humanos do governo de Jimmy Carter como
uma forma de os EUA refazerem sua “autoridade moral”, aba-
lada por uma série de episódios como a derrota no Vietnã e
pelo apoio a regimes repressivos como os da Indonésia e Chile.
(N.E. obviamente, não podia referir-se ao Brasil, mas estava
implícito). Apropriar-se da bandeira dos direitos humanos se
prestava “a recuperarem o apoio interno e a iniciativa externa”
para poderem continuar sua política tradicional. Não signifi-
cava uma mudança na sua essência: “(...) O sentido geral da
política de Carter é imperialista, não democrático...”
Ao lado desse texto foi publicado um artigo de Bernardo Kucinski, in-
titulado “Capital financeiro e direitos humanos”. Referia-se a uma emen-
da apresentada por Carter ao Congresso americano, “que, condicionando
a concessão de empréstimos em organismos internacionais nos quais o
governo norte-americano tenha assento, a um certo código de respeito a
direitos humanos por parte dos tomadores desses empréstimos, contraria
uma lei fundamental que rege o movimento do capital financeiro”, isto
é, a lei que leva o capital a procurar sempre os melhores juros para seus
investimentos. Os melhores juros estariam, explicava o autor, nos países
que têm taxas maiores de exploração do trabalho e que frequentemente
são aqueles que menos respeitam os direitos humanos. Porém, “a ‘emen-
da Reuss’ só pode ser aplicada naquela fatia bem diminuta atualmente de
financiamentos concedidos por organismos internacionais com participa-
ção direta governamental”, cerca de 15 a 20% dos empréstimos.
Por todos esses motivos, os possíveis efeitos da “emenda
Reuss” dificilmente sairão de limites bem estreitos. De uma
estreiteza diretamente proporcional ao que essa emenda tem
de revolucionária em relação aos critérios consagrados pelo
capital financeiro...3
Essa expressão – revolucionária – foi retirada do texto pelo editor, que
fez quase duas dezenas de outros ajustes.

KUCINSKI E RAIMUNDO TROCAM CARTAS


Bernardo Kucinski protestou veementemente. Em 5 de abril de 1977 criticou
o Ensaio:
Sr. Editor, li com espanto o artigo que procura explicar a
nova política externa norte-americana como pouco mais que
2 Entrevista de Antonio Carlos (Tonico) Ferreira em 22 de outubro de 2009.
3 Movimento 92, 4 de abril de 1977.

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Jornal Movimento, uma reportagem

um mero truque retórico. Em nome da “descoberta” de que o


imperialismo norte-americano continua sendo o imperialismo
norte-americano, o autor despreza uma oportunidade histórica
que certamente terá seus limites mas que já produziu resul-
tados concretos e ainda parece longe de atingir a plenitude
desses limites. Para alimentar seu raciocínio o autor emprega
fatos incompatíveis com sua tese, subverte a ordem das coisas
e da história e termina sugerindo que a campanha de Carter é
nociva aos interesses dos trabalhadores da União Soviética.
Razões técnicas impedem-me de fazer já uma crítica detalhada
deste editorial que fez avançar o processo de confusão ideo-
lógica que tem – mais frequentemente que deveria – caracte-
rizado o jornal. Quero no entanto desde já deixar registrada a
minha vigorosa discordância principalmente porque meu arti-
go sobre capital financeiro e direitos humanos, publicado com
destaque ao lado do editorial, poderia induzir os leitores a
acreditarem que concordo com esse ensaio popular. Tanto não
concordo que em meu artigo, ao mesmo tempo em que procuro
mostrar os limites estreitos da “emenda Reuss”, digo que essa
estreiteza é diretamente proporcional ao que a mesma tem de
“revolucionário”, expressão essa inexplicavelmente ausente
do texto publicado.4
Raimundo respondeu três dias depois, em 8 de abril de 1977:
Caro Bernardo,
(...) a (sua) carta não contribui para o debate porque faz afir-
mações, mas não as fundamenta (...) sugerimos que você escla-
reça, por exemplo, que “oportunidade histórica” a política de
Carter nos proporcionou; que “resultados favoráveis” já pro-
duziu; que “plenitudes” está ainda longe de alcançar; quais
os fatos relevantes que o Ensaio omite de forma premeditada;
qual a ordem natural “das coisas e da história” que ele subver-
te; qual “o processo de confusão ideológica” que tem “mais
frequentemente que deveria” “caracterizado o jornal?”
Raimundo explicou quais eram os critérios gerais estabelecidos por con-
senso no jornal para as correções nos textos de seus colaboradores. Em
seguida escreveu:
Quanto aos cortes específicos feitos em seu artigo: acreditamos
que nada de essencial do que você escreveu inicialmente foi
omitido; é certo que omitimos a expressão onde você dizia que
a estreiteza da “emenda Reuss” era diretamente proporcional ao
que ela tinha de “revolucionário”; no entanto, todo seu artigo se
empenha em demonstrar que ela não significará coisa alguma,
dizer, de passagem, sem nenhuma explicação, que a emenda tem
4 Carta de Kucinski de 5 de abril de 1977. AP 289.02.02 Fnd Mov APSP.

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A política de Carter, um dos estopins

alguma coisa revolucionária, não nos parece qualquer contribui-


ção significativa ao texto. Isto pode ser visto se compararmos o
texto que saiu publicado com o texto integral.5

CARTA DE DUARTE PEREIRA


A propósito dessa polêmica, no início de abril, Duarte Pereira, que se manti-
nha na clandestinidade, escreveu uma carta a Raimundo.
Quanto à divergência de conteúdo – diz ele – devemos ter
cuidado para situá-la no eixo apropriado. Vejo o risco de se
embaralharem duas questões distintas: uma é a avaliação da
“política de direitos humanos” do governo Carter, de sua na-
tureza imperialista, de seus propósitos hegemônicos (...) outra
questão são as consequências negativas ou positivas que po-
dem derivar dessa política, apesar de seu caráter imperialista.
A primeira questão é a mais importante, é o eixo do Ensaio.
Não consigo entender como alguém que se pretende de “es-
querda” possa negá-la! (...) Quanto à segunda questão, preci-
samos ser cuidadosos para não sermos arrastados, no calor do
debate, a um falso dilema. Esta segunda questão está tratada
insuficientemente no Ensaio: em primeiro lugar, por uma auto-
-limitação deliberada, imposta pela censura prévia, é (...) um
problema muito mais difícil de ser exposto de forma aceitável
à censura, tanto isso é verdade que o bloco do Ensaio que abor-
dava o problema, embora redigido com cuidado, sem aprofun-
dar muito o problema, ainda assim foi vetado pela censura.
O desaparecimento desse bloco pode parecer secundário, mas
não é, quebra o equilíbrio do Ensaio (...) o Ensaio terminava ti-
rando conclusões práticas, sugerindo como, apesar do caráter
liberal-burguês das “políticas de direitos humanos” e de seus
propósitos imperialistas nas mãos de Carter, ainda assim as
forças populares poderiam tirar proveito dela, fazê-la voltar-se
contra qualquer imperialismo, a bem da luta revolucionária, e
sugeria ainda sob que condições isso seria possível. Em suma, o
Ensaio enfrentava o problema primeiro num plano crítico-ideoló-
gico e depois num plano político-tático; a censura acabou com
o segundo e não é difícil entender por quê!
É de se notar como a intervenção da censura havia complicado ainda
mais o debate entre Kucinski e o editor.
Duarte lamentava a forma agressiva com que Kucinski estava se relacio-
nando com o editor do jornal, em um tom “arrogante”, “presunçoso”, e
sua falta de confiança na honestidade de propósitos dos companheiros.
Apesar das sucessivas tentativas de entendimento, essa atitude estaria le-
vando uma contradição não antagônica a se transformar numa contradi-
5 Carta de Raimundo Pereira de 8 de abril de 1977. AP 284.01.08 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

ção antagônica, opinava. E, defendendo-se das acusações feitas aos textos


dos Ensaios Populares, lembrava, sem modéstia: “também Lênin foi acu-
sado a seu tempo de ‘dogmático’, ‘intolerante’ e ‘doutrinarista’”.6
Desde 14 de fevereiro, Kucinski já estava fora do Conselho de Redação,
conforme pedido dele feito por escrito, como se viu. Estava em processo
de saída. Esse retardamento objetivamente favoreceu uma saída coletiva,
que causou impacto e ajudou na criação de um novo jornal.

PROPOSTA DE FLÁVIO AGUIAR


Aproximava-se o momento da primeira Convenção anual do jornal, para um
balanço geral de sua atividade e a eleição do editor-chefe, marcada para 29 e
30 de abril de 1977. Em clima de tensão, realizavam-se as reuniões regionais
de preparação. Para encaminhar o debate sobre os Ensaios Populares havia
sido instituída uma comissão especial, formada por Flávio Aguiar, Chico de
Oliveira e Marcos Gomes. Em abril, Flávio Aguiar produziu um texto que es-
clareceu em grande medida o teor das divergências, evidentemente políticas
e já caracterizando a luta pelo poder dentro do jornal.7 Escreveu:
A leitura desses textos mostra que os ensaios têm sido uma
interpretação doutrinária adequada do programa do jornal, no
sentido de que buscam, sempre, ligar todas as lutas e aspira-
ções do povo brasileiro – sua versão delas, é bom não esque-
cer – à questão da luta pela democracia e pelo fortalecimento
desta democracia. Mas esta ligação se faz num nível de deta-
lhamento tal que os fazem uma interpretação possível do pro-
grama. Outras cabem dentro deste programa. Ou pelo menos
o seu debate. Não creio que esteja no âmbito desta comissão
determinar qual delas é a mais correta, ou a mais interessante,
para o jornal Movimento. Os debates no Conselho e no jornal
deverão, se for o caso, mostrar isso. O que interessa, a meu ver,
é fixar aqui o princípio de que cabe mais de uma interpretação
do programa do jornal – desde que se mantenha como eixo
central destas interpretações a formulação da luta democráti-
ca. Mesmo sobre isso é possível ir a detalhes que o programa
não prevê expressamente.
E continuando:
Me parece evidente que no nível de detalhe a que chegaram, os
Ensaios não podem ser tomados como uma expressão global do
Conselho de Redação ou, muito menos, de todas as pessoas que
compõem o jornal (...) sendo tomado como editorial quando, na
realidade não o é – a seção deixa de satisfazer a unidade do jornal.
O documento de Flávio Aguiar propunha que a seção fosse transformada
numa seção de debates, “uma seção aberta a todos os membros do jornal”(...),

6 Carta de Duarte Pereira sem data. AP 284.04.01 Fnd Mov APSP.


7 Flávio Aguiar, manuscrito. AP 287.03.03 Fnd Mov APSP.

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A política de Carter, um dos estopins

cujas colaborações seriam assinadas por iniciais; que a responsabilidade de


sua edição fosse do editor-chefe; e que fosse criada uma comissão executiva
do CR para aprovar textos, produzidos pelo editor-chefe ou por quem ele indi-
casse, para serem publicados sem assinatura e com a rubrica de “editoriais”.
E justificava:
Esse conjunto de medidas tem por objetivo preservar a con-
vivência democrática entre diferentes linhas de pensamento
dentro do jornal (grifo nosso) (...) visam assegurar um trata-
mento igualitário para todas as pessoas que se disponham a se
aliar ao jornal, em nome de um programa. (...) Tenho certeza
de que, se não tivermos sempre estes alvos em mente, nossas
discussões tenderão a se tornarem bate-bocas fratricidas, ou
negociações burlescas entre posições estanques e sectariamen-
te demarcadas.

RAIMUNDO RESPONDE A AGUIAR


Raimundo Pereira respondeu avaliando o texto de Aguiar como “sério, pes-
quisou, apreendeu muito bem a articulação essencial dos Ensaios Populares;
é aberto e fraterno nas críticas; nunca se ressaltará demais essas qualidades!”
Mas discordava:
Um programa, por mínimo que seja, deve ser um todo arti-
culado e suficientemente demarcador; por isso, nas posições
básicas que tome não comporta mais de uma interpretação (...)
Na realidade, sob a aparência de “várias interpretações” o que
pode ocorrer são vários programas...
Mais adiante:
Como os “Ensaios” não nasceram para ser editoriais, e por
isso não tiveram um método de encaminhamento correspon-
dente, como o Relatório examina muito bem, então é possível
que tenha avançado demais, entrado em questões que ultrapas-
sam o terreno da unidade; então é preciso circunscrever mais
claramente esse terreno da unidade, para que os “Ensaios” se
limitem a ele; mas, dentro dele, a interpretação tem de ser uma
só, senão estaremos entrando num terreno de engano mútuo,
fazendo jogo de palavras para dissimular divergências reais.
A importância do problema está em que um programa claro
e preciso, por mínimo que seja, é indispensável para todo o
jornal e não apenas para os Ensaios; ele interfere em toda a
pauta, nas ilustrações, nos títulos, na paginação, na seleção de
funcionários e colaboradores etc. É impossível que um jornal
como o nosso possa funcionar sem um programa único claro.
Raimundo argumentava que a proposta de Aguiar “altera substancial-
mente a concepção do jornal e dos Ensaios”. Para ele, “um jornal aberto,
definido apenas pela marca geral de ‘democrático’ e de ‘oposição’(...) re-
presentaria um passo atrás no que temos tentado ser até agora...”

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Jornal Movimento, uma reportagem

(...) Pois, embora aberto e solidário às oposições “liberal” e


“nacionalista”, nosso jornal tem procurado encarar os proble-
mas do ponto de vista da oposição popular (...) Mas para isso
não pode ater-se apenas à luta pela liberdade, pela democra-
cia; esta luta tem que estar articulada à luta anti-imperialista e
também por reivindicações especificamente populares, como
uma nova política salarial, reforma agrária, democratização do
ensino, direitos femininos etc.8
As divergências políticas estavam claras. O terreno em que o debate iria
se travar já estava definido.

A ALTERNATIVA MINEIRA
Em São Paulo, o debate se radicalizava, unindo no confronto com a direção
do jornal personalidades com posições políticas tão diferenciadas quanto as
de Bernardo Kucinski, Francisco de Oliveira, Flávio Aguiar, Guido Mantega,
Maria Moraes, Ricardo Maranhão, Silvia Campolin e outros intelectuais iso-
lados que não tinham massa crítica para se opor ou almejar o poder no jornal.
A massa crítica viria de Minas Gerais. A maioria da equipe da sucursal de
Belo Horizonte fora formada por um grupo previamente existente, cujo nú-
cleo somava novas lideranças do movimento estudantil com ex-militantes da
guerrilha urbana derrotada pela ditadura. Esse grupo alcançara grande uni-
dade política, era organizado e mobilizava amplos setores na capital mineira,
tinha força de massas. Arregimentara muitas energias em torno do jornal,
tanto que a sucursal chegou a vender quase tantos jornais e assinaturas quan-
to a própria sede, segundo as palavras de Betinho. Era a Centelha, um grupo
político influenciado pelas ideias de Ernest Mandel, mas principalmente for-
mado no pensamento de Leon Trotsky, conforme relata o economista Aloisio
Marques, na época um de seus articuladores: “Nós não tínhamos relação com
a Quarta Internacional, mas éramos afinadíssimos nas teorias de Trotsky, a
revolução russa, as teses da revolução permanente, da abertura para as ten-
dências, etc. e tal...” 9
Aloisio Marques conta que Raimundo Pereira contatou Alberto Duarte,
o Betinho, e este, que anos antes militara com Aloisio na antiga Ação
Popular, mas não fazia mais parte de qualquer grupo político, foi quem
convidou o grupo da Centelha para participar na sucursal.
Aloísio lembra que na Centelha tinham convicção “absoluta” de que o
PCdoB era o orientador das ações do jornal Movimento e sobretudo de
Raimundo Pereira. Mas era um jornal de frente, cujo programa defendia
a luta pelas liberdades democráticas e a Assembleia Constituinte, posi-
ções que eram centrais para o grupo, oferecia, portanto condições “para a
unidade na diversidade”, para sua participação com vistas a unir forças
contra a ditadura e também expandir a sua influência:

8 Raimundo Pereira, manuscrito, abril de 1977, arquivo pessoal de Bernardo Kucinski.


9 Entrevista com Aloisio Marques em 26 de março de 2010. Ele iria participar do PT desde sua
fundação e em 2010 era presidente do diretório do partido em Belo Horizonte.

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A política de Carter, um dos estopins

Sabíamos que no Brasil tinha muita gente como nós, disper-


sa, desgarrada, perdida e o jornal funcionaria como um agrega-
dor, um aglutinador de forças (...) Nosso grupo, que já era bem
organizado, foi decidido, uma decisão política de participação
integral (no jornal)...
O sociólogo João Batista dos Mares Guia, que participara da guerrilha
urbana pelo grupo Colina, quando retomou a vida legal foi um dos or-
ganizadores da Centelha. Tornou-se um dos participantes mais ativos na
sucursal de Belo Horizonte. Ele conta:
O Raimundo veio, o Raimundo é que foi o desbravador. Ele
agregou, no estilo do Raimundo, muita convicção, muita fir-
meza, que tinha a política de luta por liberdades democráticas,
Assembleia Constituinte, uma aliança política preferencial
com o campo dos Autênticos do MDB, coisas muito claras. De
modo que quem entrou sabia no que estava entrando. E não
é plausível, razoável nem justo com Raimundo e com outros
dizer que era um jornal do PCdoB, um jornal de partido. O
jornal foi tão amplo, tão aberto, que todos nós, que não éramos
ligados ao PCdoB, e muitas pessoas, o grupo Centelha, aqui em
Minas Gerais, através do Aloisio Marques e de mim próprio,
na época era ligado ao grupo, pudemos participar.10
Mares Guia ressalta a importância de Movimento como estuário da reor-
ganização das forças políticas de oposição:
O pessoal do PCdoB, esse grupo todo da Centelha e muitas
outras pessoas, acadêmicos, alguns professores universitários,
que eram colaboradores do jornal. E o jornal passou a ter uma
atividade política, de agregar todos os presos políticos que sa-
íam da cadeia, militantes que estavam sem perspectiva, não
tinham mais nenhum grupo de referência, de alguma maneira
se agregaram; pessoas que tinham parado de atuar em 1968,
com a ditadura, a fase dos anos de chumbo, voltaram a ter
algum tipo de participação, mesmo que fosse na vendagem de
cota, ou nos eventos que o jornal organizava. E passamos a ser
muito convidados para dar conferências no interior. Eu virei
um conferencista sobre a Assembleia Nacional Constituinte.
Aloisio lembra que na sucursal nem todos pensavam do mesmo modo.
Aqueles que eram ligados ao PCdoB polemizavam, mas o seu grupo era
muito forte, organizado e o debate era intenso:
Era muita gente e muito combativa, decidida. Nosso pessoal
era de corte trotskista e muito jovem, o que por vezes levava a
excessos. Eu, que era um pouco mais velho, até passei a usar
uma expressão, dizia que tínhamos “uma sanha crítica”(...)
Era pegar tudo, ponto por ponto, uma vírgula fora do lugar,
10 Entrevista de João Batista dos Mares Guia em 25 de março de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

uma palavra, uma concordância, qualquer coisa você pegava,


a gente tinha muito tempo, muita vontade, muita disposição
de participar, isso em excesso atrapalha (...) Nosso trabalho
era só fazer as matérias e criticar, enquanto que em São Paulo,
Raimundo e a equipe de lá tinham que fazer o jornal, enfrentar
a censura, fechar o jornal toda a semana...
O pessoal da sucursal de Belo Horizonte considerava que, diante de sua
expressão na vida do jornal, estava sub-representado e se encaminhou
para a reunião de abril de 1977 com o projeto de alcançar uma parcela
maior de poder.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição 93, 11 de abril de 1977.


Xilogravura de Rubem Grilo

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12
O “racha”
de abril de 1977

Quarenta anos depois de uma batalha é fácil para um não combatente


discutir sobre como ela deveria ter sido travada. Outra coisa é pessoal-
mente e sob fogo cerrado, dirigir a luta enquanto se está envolto na fu-
maça escura dos disparos. O mesmo se dá em relação a outras situações
emergenciais que envolvam considerações tanto práticas quanto morais,
e quando é imperativo agir imediatamente.
Herman Melville1

P
ara Bernardo Kucinski, em entrevista, a polêmica sobre a política
de Carter foi o estopim do racha. Na verdade, nas semanas que
antecederam a Convenção houve vários “estopins”, como um in-
cidente entre Chico de Oliveira e Sérgio Buarque, o fato de a “opo-
sição” começar a reunir-se à parte na casa de Bernardo Kucinski...
Outra polêmica, ainda mais acesa, e mais importante, agitava as lide-
ranças do jornal. Era a questão da posição sobre a amplitude da frente
democrática contra a ditadura.
No início de fevereiro de 1977, havia ocorrido a demissão do ministro
da Indústria e Comércio, Severo Gomes. Este vinha havia tempos fazendo
uma pregação de cunho marcadamente nacionalista e pelo restabeleci-
mento das franquias democráticas como meio de retirar o País da crise
e buscar um outro padrão de desenvolvimento. Isolado a maior parte do
tempo, começara a agregar apoios velados a partir de meados de 1976,
particularmente junto a médios empresários e em certos bolsões militares
e, mais recentemente, entre o grande empresariado.
Ensaios Populares, da edição 86, de 21 de fevereiro de 1977, trazia o tex-
to intitulado: “O acordo e o desacordo dentro da oposição”. Referia-se à
queda de Severo Gomes, sinal de agravamento das divergências dentro do
regime, que havia sido matéria de destaque na edição anterior.2 Segundo
o Ensaio, da polêmica nos meios empresariais após a queda do ministro,
1 Herman Melville, em Bud, um marinheiro.

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Jornal Movimento, uma reportagem

podem ser extraídas três conclusões mais importantes: a primeira


é de que não existe unidade entre os grandes empresários e fazen-
deiros na maneira de analisar a situação atual; se alguns insistem
nos métodos atuais de controle, ainda mais no atual período de
dificuldades econômicas, outros acreditam que a própria crise
econômica torna aconselhável a passagem aos métodos liberais.
(...) Esses setores empresariais e de grandes proprietários de terra
não pretendem mudar, no essencial, a estratégia econômica que
vem sendo aplicada desde 1964; entendem, contudo, que essa
estratégia não pode ser preservada, nas novas condições, sem re-
ajustes no terreno político e social.
A segunda conclusão, por conseguinte, é que uma parcela dos
grandes empresários e fazendeiros pode apoiar o objetivo básico
do programa oposicionista, que é a luta pela reconstitucionali-
zação democrática do país. Confirma-se dessa maneira que o le-
que oposicionista é amplo: começa com as correntes populares
que representam operários urbanos e rurais, lavradores pobres e
médios, camadas médias das cidades, passa pelas correntes na-
cionalistas, que expressam as aspirações de pequenos e médios
empresários urbanos e de lavradores mais ricos, e chega até às
correntes liberais, representativas dos setores dos grandes empre-
sários e dos grandes proprietários de terra.
A terceira conclusão é fácil de deduzir: numa frente tão lar-
ga, as contradições são evidentes. Bastaria considerar que os
grandes empresários sugerem reformular o modelo político
justamente para preservar o modelo de desenvolvimento capi-
talista dependente e combinado com o monopólio da proprie-
dade da terra; ao passo que a oposição popular busca alterar
o modelo político para alterar o modelo econômico. (...) Para
além desse objetivo comum, as correntes oposicionistas diver-
gem (...) Essas divergências, contudo, não impossibilitam, no
momento atual, um pacto democrático entre as várias corren-
tes da oposição...

OS DISSIDENTES PUBLICAM SEUS ARTIGOS


Na edição anterior, nº 85, Bernardo Kucinski analisara a demissão de Severo
Gomes avaliando que o ministro “estava isolado do empresariado, que não
aderiu a suas ideias no geral”. Na edição nº 86, o economista Guido Mantega3
recomendava “... não cair em conclusões equivocadas, a exemplo de analis-
tas apressados e de memória curta que julgam assistir à adesão do empresa-
riado brasileiro à democracia liberal”. Mantega admitia, entretanto, que havia
divergências, localizava o problema na luta do grande empresariado por con-
trole da política econômica do governo, porque “as estatais estavam amplian-

3 O economista Guido Mantega iria participar da fundação do PT. Anos depois, seria ministro da
Fazenda do governo Lula.

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O “racha” de abril de 1977

do demais, penetrando em setores tradicionalmente ocupados pela iniciativa


privada”. Na edição nº 87, de 28 de fevereiro de 1977, Maria Moraes contestava
a avaliação feita por Paul Singer, no jornal Opinião, que falava numa “adesão
dos empresários a uma reivindicação já levantada por outros setores sociais”,
isto é, a favor da democratização. Mas reconhecia que “seria falso afirmar
que a classe empresarial como um todo tem ojeriza à democracia represen-
tativa”... E, nas edições seguintes, Guido Mantega voltaria a escrever sobre o
tema, assim como o jornalista Jair Borin. Sinal de que nas páginas do jornal
havia espaço para a manifestação de pontos de vista divergentes.
A equipe da sucursal de Belo Horizonte, liderada por Betinho, Faus-
to Brito, João Batista dos Mares Guia, Flaminio Fantini, Flávio Andrade
e Aloisio Marques, manifestou-se coletivamente e mais claramente. Mas
sem ir a público. Numa carta ao editor-chefe criticou fortemente o conte-
údo político do texto da seção Ensaios Populares.
Resposta de Raimundo em 4 de março de 1977, três dias depois:
Vocês não admitem que grandes empresários possam ter di-
vergências essenciais com o sistema. Disseram: “foi conside-
rado mesmo um absurdo a colocação na oposição brasileira de
grandes empresários e latifundiários, os quais podem ter di-
vergências secundárias com o sistema, mas no essencial con-
cordam com ele, o colocaram aí e apoiam e defendem”.
O primeiro e grave erro que os companheiros cometem é de me
atribuir uma afirmação que não fiz; aliás, é o de afirmar exata-
mente o oposto do que eu disse para depois afirmar que eu estou
errado. No Ensaio se diz que os grandes empresários sugerem re-
formular o modelo político justamente para preservar o modelo
de desenvolvimento capitalista dependente e combinado com o
monopólio da propriedade da terra; ou seja, a “parcela dos gran-
des empresários e fazendeiros (que) pode apoiar (...) a luta pela
reconstitucionalização democrática do país está perfeitamente de
acordo com o modelo de desenvolvimento capitalista dependen-
te vigente no país, ou seja, com o sistema”. Ou seja, eu digo que a
parcela dos grandes empresários e fazendeiros que pode apoiar o
programa oposicionista está de acordo com o modelo capitalista
dependente e combinado com o monopólio da propriedade da
terra, e vocês me criticam dizendo que eu digo que não está.
Qual a origem do erro? É que vocês confundem o regime políti-
co brasileiro com o sistema capitalista; e pensam que, quando se
diz que um setor dos empresários está em desacordo quanto ao
regime político, se quer dizer que ele está também em desacordo
com o sistema. Ora, a matéria diz expressamente que esses setores
querem mudar o regime exatamente para preservar o sistema...4

4 Carta de RRP à sucursal de BH. AP 284.01.06 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

A REUNIÃO: O RELATÓRIO DE RAIMUNDO


A “oposição” paulista passara a se reunir na casa de Bernardo Kucinski, onde
formulou em 25 de abril um manifesto propondo a redefinição do programa
do jornal, a elaboração de estatutos, o controle editorial dos Ensaios Popula-
res etc. Em seguida, essas reuniões seriam ampliadas com a participação das
delegações de Belo Horizonte e Salvador. Ao ir para a Convenção já levavam
pronta a proposta que iria ser apresentada e derrotada na votação.
No dia 29 de abril, o Conselho Editorial e o Conselho de Redação se reu-
niram conjuntamente para um balanço das atividades do jornal, a escolha
do editor geral e a definição da linha editorial a ser seguida. No dia 30, a
Assembleia Geral dos Acionistas de Edição S/A, a empresa que fazia Mo-
vimento, reuniu-se na sede do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo para
eleger seus três diretores.
O relatório sobre as reuniões relata:
foram as eleições mais debatidas e preparadas de toda a his-
tória da equipe de Movimento: através de reuniões prelimi-
nares em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Salvador, Brasília e
Campinas, as atividades do jornal e da empresa foram discu-
tidas demoradamente por mais de 500 pessoas, envolvendo
portanto grande parte de seus 400 acionistas e cerca de 300
colaboradores, redatores, pesquisadores, vendedores e outros
funcionários.
Na reunião, Raimundo Pereira apresentou seu informe ao plenário.5 Um
documento de dez laudas em que afirmava que, ao completar seu terceiro
ano, o projeto de Movimento havia alcançado grandes realizações. Apre-
sentava cinco causas para o jornal ter sobrevivido e crescido: a primeira
delas era que o jornal manteve “intocada” sua linha geral de oposição. “É
um jornal político de oposição que não descaracterizou sua linha oposi-
cionista geral correta e decidida”.
Como lembra hoje João Batista dos Mares Guia, essa era
a questão central de nossas divergências, porque Raimundo
insistia em ter uma linha programática hegemônica no jornal e
nós da sucursal de Belo Horizonte recusávamos uma linha (ou
essa linha) hegemônica. Queríamos que as linhas das várias
tendências, como a nossa, presentes no jornal, tivessem seu
espaço. Não que não houvesse democracia, havia democracia,
tudo era discutido...
Prosseguia o informe:
Segunda: Edição S/A cresceu porque tem um programa de
luta e de trabalho, de defesa de posições comuns e não um
programa de discussões; cresceu porque tem clareza sobre al-
gumas poucas ideias que são muito justas e porque luta por
elas e não porque tem dúvidas sobre muitas questões e procura
5 Informe RRP à Convenção. AP 284.04.004 Fnd Mov APSP.

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O “racha” de abril de 1977

debatê-las; cresceu porque debate para eliminar confusões e


obter novas ideias justas pelas quais lutar e não porque lança
dúvidas sobre todas as tarefas práticas que tem pela frente.
E aprofundava a crítica:
Sempre estamos ameaçados pelo sectarismo dos que, sem ter
informação, querem ter posição e opinião a respeito de tudo e
se recusam a qualquer debate, estudo e pesquisa; mas estamos
ameaçados também pelos ecléticos, que querem pairar acima
de tudo, que adoram debater e detestam realizar as tarefas prá-
ticas da luta. Edição cresceu (...) porque esteve, como manda
seu programa, “ao lado dos cidadãos brasileiros na luta por
liberdades democráticas, contra a exploração do país por in-
teresses estrangeiros, pela melhoria da qualidade de vida da
população” (...) Parodiando um lema famoso: a oposição nos
aceitou porque chegamos para esclarecer e não para confundir.

A REAFIRMAÇÃO DO PROGRAMA
Terceira causa. Aqui, Raimundo passava a repetir, detalhando, os conceitos
emitidos no Ensaio Popular da edição nº 86 de Movimento sobre a frente de-
mocrática e sua amplitude, que já havia provocado o protesto da sucursal de
Belo Horizonte. Tratava-se de um detalhado programa político:
Edição S/A sempre esteve concretamente ao lado dos interesses das am-
plas classes e camadas trabalhadoras do país e ao lado do senador Paulo
Brossard nas suas bravas lutas por uma justiça democrática e contra as
violações dos direitos humanos; ao lado da grande e crescente imprensa
popular do país na luta por liberdade de imprensa e ao lado de O Esta-
do de S. Paulo (na carta a Raimundo, um ano antes, Kucinski havia se
oposto explicitamente à aliança com O Estado de S. Paulo), mesmo na
convenção da Sociedade Interamericana de Imprensa por liberdade de
imprensa que reuniu em São Paulo, como de hábito, alguns dos maiores
representantes da imprensa oligárquica do continente; ao lado dos que
tentaram denunciar todas as maquinações e casuísmos de leis eleitorais
e ao lado do ex-Ministro Aliomar Baleeiro quando ele excelentemente
definiu os pré-requisitos para uma verdadeira reconstitucionalização de-
mocrática: a anistia ampla, o fim dos atos de exceção, amplas liberdades
de propaganda, reunião e organização e a convocação de uma Assembleia
Constituinte; ao lado da classe operária do campo e da cidade na sua luta
por maiores salários e maior participação nas decisões políticas, culturais
e econômicas e ao lado do trabalhador camponês que quer um pedaço de
terra mesmo que este venha a sonhar em ser um pequeno empresário capi-
talista, ao lado do pequeno e médio empresário e dos empresários nacio-
nais independentes que desejam maior participação nas decisões mesmo
que estes sonhem apenas com um modelo de desenvolvimento capitalista
independente e este seja irrealizável ou inconsequente (Neste ponto em

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Jornal Movimento, uma reportagem

particular, o informe se opunha à maioria dos participantes da sucursal de


Minas Gerais, como vimos).
Quarta causa:
Edição S/A se manteve e se fortaleceu porque é uma empresa
cujas publicações procuram ligar-se às amplas oposições do
país, mas apoiam-se mais decididamente e procuram voltar-se
cada vez mais para as classes e camadas populares e as corren-
tes e personalidades políticas que as representam.
O informe defendia a busca da popularização dessas publicações. E
mais adiante afirmava:
precisamos ligar de forma cada vez mais ampla e profunda as
nossas publicações com as classes e camadas populares, para
fugir do círculo de giz do jornal de jornalistas, estudantes e in-
telectuais “progressistas” feito em função dos interesses paro-
quiais dos jornalistas, estudantes e intelectuais progressistas,
que é como o trabalho daqueles que procuram “se erguer do
chão puxando seus próprios cabelos”.
Parece ser uma alusão à posição do “jornalismo pelo jornalismo”, esque-
cendo os objetivos políticos, tema também debatido na carta de Kucinski.
Quinta causa: “Edição S/A cresceu porque tem democracia interna, mas
ao mesmo tempo tem organização e disciplina...” E se estendeu sobre os
métodos de debate e as relações entre editores, redatores, colaboradores,
sucursais, etc.
No capítulo das “nossas tarefas”, o informe avaliava que
a despeito da convicção de que internamente estamos mais
fortes e organizados e de que externamente crescem os movi-
mentos pela independência e pelos direitos democráticos dos
povos, nossas tarefas principais ainda, tanto a nível interno
como externo, consistem em levantar o máximo possível de
bandeiras bem gerais que interessem ao máximo possível de
pessoas e portanto evitem o isolamento e o esmagamento dos
setores mais progressistas.
E discutia as diferentes concepções da sociedade existentes em setores
da equipe:
Alguns procedem como se, no plano nacional, as massas es-
tivessem muito mais adiantadas que o jornal e que questões
como pedaço de terra, um salário maior, o fim de uma humi-
lhação econômica e liberdades burguesas formais não tives-
sem mais praticamente qualquer sentido; como se, no plano
internacional, o imperialismo tivesse se desagregado comple-
tamente, mudado de caráter, passado a apoiar a causa dos di-
reitos democráticos dos povos e a repudiar o apoio aos regimes
militaristas e fascistas e desistido das guerras de agressão e
que, portanto, bandeiras como a independência nacional (...)

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O “racha” de abril de 1977

perderam o sentido (...) A hipótese de que o imperialismo vai


desistir por razões morais é ingênua e perigosa...
Essa crítica tinha endereço certo, a polêmica que o editor-chefe acabara
de travar com Bernardo Kucinski sobre a política de direitos humanos do
governo dos EUA. A reunião prosseguiu por 12 horas, virou a noite em
ásperos debates.
Duas propostas foram, afinal, postas em votação. A proposta da diretoria
dispunha criar um amplo programa de debates e consultas para “esclare-
cer pontos de vista divergentes da atual diretoria”; a instituição de uma
Sociedade de Colaboradores, que receberia as ações do Conselho de Reda-
ção, para ampliar o número de proprietários e dos que podiam participar
da democracia interna; a criação de uma série de comissões para coman-
dar esse processo. Dispunha que a seção Ensaios Populares passasse a
ser assinada pelo editor do jornal e que haveria editoriais não assinados,
planejados coletivamente por seus editores e uma Comissão de Editoriais.
Ratificava a política de prosseguimento da experiência de popularização
dos textos do jornal. 6

A PROPOSTA DA OPOSIÇÃO
Os que divergiam apresentaram a “Proposta Movimento”, a qual reproduzia
em detalhes o documento apresentado um pouco antes por Flávio Aguiar, e
cuja introdução dizia:
Movimento se propôs a ser expressão de uma frente jorna-
lística de oposição democrática e popular, unida em torno de
objetivos comuns. No entanto, no decorrer da experiência, o
jornal assumiu uma interpretação particular desses objetivos,
definida de modo unilateral. Tal fato se constata pelo amplo
questionamento da nossa linha editorial, expressa principal-
mente nos Ensaios Populares. Esta unilateralidade, evidente-
mente, ameaça a nossa unidade e o desenvolvimento do jor-
nal. É necessário corrigir esse rumo. (...) A reparação da atual
unilateralidade da linha editorial de Movimento começa pela
discussão de seu processo de gestação. Isso aponta para a aná-
lise dos atuais métodos de trabalho, para a questão da demo-
cracia interna...”
Propunha “o desenvolvimento da democracia interna, partindo do princí-
pio do número zero, de que o jornal deve ser conduzido por aqueles que o
fazem (...) o desenvolvimento do nosso programa mínimo (...) ele deve de-
limitar explicitamente os termos da nossa unidade.” Propunha igualmente
“um amplo movimento interno de discussão e debate”. (...) “Durante o perío-
do de 90 dias... a seção Ensaios Populares fica aberta à participação de todos
os membros do jornal, e fica definida como única seção editorial do jornal,
segundo as seguintes normas: a) à retranca Ensaios Populares acrescenta-se a

6 Proposta da diretoria – Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão.

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Jornal Movimento, uma reportagem

palavra Editorial; b) todos os ensaios são assinados; c) todos são previamente


aprovados à luz do programa mínimo de 6 pontos, por um grupo de acom-
panhamento...” Nesse mesmo período, “o jornal se declara em regime de in-
tenso debate interno com o objetivo de obter consenso (...) sobre o caráter do
jornal e seus objetivos: (...) o desenvolvimento de um programa mínimo do
jornal; um estatuto que formalize a democracia interna do jornal...”. O docu-
mento se estendia em seguida sobre a criação de comissões e procedimentos
para a realização das tarefas propostas.7
Ao final da reunião, o Conselho de Redação e mais um membro do Con-
selho Editorial aprovaram a proposta da diretoria, por 9 votos contra 5 e
uma abstenção. No dia 30, a assembleia geral referendou a votação. De
acordo com o jornalista Armando Sartori, que à época era secretário gráfi-
co do jornal, a reunião terminou já de madrugada.
Havia cerca de 50 pessoas, a sala da redação estava abarro-
tada. Sem poder entrar, fiquei com outras pessoas, no corre-
dor em frente à sala. Bernardo Kucinski também estava ali.
Quando a votação terminou, Bernardo dizia exaltado a Paulo
Barbosa: “Está vendo? Eles conseguiram o que queriam, nos
dividir!”

RADICALIZAÇÃO
Outros protagonistas viram o mesmo episódio com nuances diferentes. Tanto
João Batista dos Mares Guia como Aloisio Marques dizem que, quando foi
para a reunião do Conselho em São Paulo, a delegação de Belo Horizonte não
tinha em mente participar de um “racha”. Mares Guia conta que encontrou
em São Paulo uma situação radicalizada.
Eu notei uma certa impaciência por parte das pessoas muito
ligadas ao Raimundo, por exemplo, esse que hoje é um jorna-
lista proeminente na Globo, o Tonico Ferreira. Tonico já era
um sujeito mais impaciente, mais aguerrido, mais agressivo. O
Luis Marcos Magalhães Gomes, que em geral era muito gentil,
foi ficando mais agressivo (...) eu mesmo senti no ar como se
houvesse um propósito deliberado de estabelecer uma hege-
monia dentro do jornal. Então, as pessoas começaram de algu-
ma maneira a se sentir excluídas e ameaçadas. Então, elas se
defendem. Se defendem como? “Vamos conversar entre nós e
ver o que está acontecendo.” 8
Aloisio Marques:
Tínhamos a ideia de conquistar mais espaço, de arejar mais
o jornal que era muito centralizado (...) não tínhamos a inten-
ção nem trabalhamos com a ideia de rompimento. Mas ele se
deu. Não foi puxado por nós, nós tivemos de participar (...)
Eu acho que (foram) basicamente Bernardo Kucinski, pessoa
7 Proposta da oposição – Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão.
8 Entrevista de João Batista dos Mares Guia em 25 de março de 2010.

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O “racha” de abril de 1977

de difícil operação política, e Chico de Oliveira, esse pessoal


processa a política de uma maneira muito de ruptura, nós éra-
mos mais mineiros (...) Tenho certeza absoluta de que Bernar-
do Kucinski e Chico Oliveira precipitaram, forçaram – as reu-
niões se davam na casa de Bernardo – nós fomos envolvidos,
atropelados, a palavra é essa, porque nós não trabalhávamos
com a hipótese do rompimento, trabalhávamos com a ideia de
abertura, sabíamos da importância da unidade, que era muito
difícil construir as coisas (...) mesmo que tivéssemos ideias
diferentes achávamos importante o papel de Raimundo e de
todas as pessoas que trabalhavam no jornal...”9
João Batista dos Mares Guia, sobre o racha:
Eu posso falar por mim. Primeiro, um sentimento de tre-
menda ambiguidade, no sentido de um sentimento de perda.
Uma coisa que você ajudou a construir, e eu dediquei dois
anos da minha vida intensamente, com completa lealdade ao
jornal Movimento. Intensamente, em todos os sentidos (...) o
centro da minha militância era o jornal Movimento. Então, foi
um sentido de perda dolorosíssimo. Dolorosíssimo. Por outro
lado, um sentimento de alta expectativa com a criatura que
nós íamos gerar (refere-se ao novo jornal).
Aloisio Marques:
Essa ideia de ruptura foi precipitada, foi atropelada, agora,
o atropelamento ocorreu, você não tem como decidir. Aí nós
decidimos criar o jornal Em Tempo, transferir parte dessas
pessoas para São Paulo para poder dirigir, e já tínhamos uma
conexão mais estreita com o Rio Grande do Sul, com o pessoal
do Raul Pont (...) depois, fizemos também uma conexão com a
Bahia (...) nesse processo Flávio Andrade teve um papel muito
importante...”
Na reunião ocorrida na casa de Kucinski, em 1º de maio, foi formulada
a carta de demissão coletiva. Mares Guia: “E aí vem a história, talvez isso
tenha ensejado a oportunidade de nós percebermos que havia entre nós
um elo de articulação que nos diferenciava. E era o quê? Exatamente essa
ênfase mais proletária, movimento operário.”
Devido às afinidades políticas, a partir de então, já começavam a se sen-
tir como um grupo com objetivos definidos. Nessa mesma reunião, deci-
diram iniciar o projeto de um novo jornal, o Em Tempo.
Ainda de acordo com Mares Guia:
o Flávio Andrade é um sujeito de família muito rica( N.E. da
família Andrade, sócia da empreiteira Andrade e Gutierrez)
e dava o lastro, o suporte para o jornal Em Tempo. Ele tinha
gráfica, então, por esse lado, o jornal Em Tempo era viável. (...)
9 Entrevista de Aloisio Marques em 26 de março de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Mas enfim, tinha uma razão de fundo que, naquele momento


ou mais tarde, justificaria uma separação. Porque aí as linhas
editoriais, embora se encontrassem no denominador comum
da Constituinte e das liberdades democráticas, elas se diferen-
ciavam no sentido de que o Movimento era percebido por nós
como estando num alinhamento automático com o MDB Au-
têntico, enquanto que nós tínhamos uma inclinação para for-
talecer o movimento operário, divulgar o movimento operário.
Pode-se inferir dessas declarações que a questão da formação dos novos
partidos já estava subjacente ao debate que levou ao “racha”, esta foi tam-
bém a opinião de Bernardo Kucinski na entrevista dada para este livro.
Aloisio Marques, por seu lado, lembra que, já no tempo em que estavam
em Movimento, representantes da Centelha se reuniam na casa de Almino
Afonso, com a presença de Fernando Henrique Cardoso, para discutir a for-
mação de um novo partido (ora falavam em Partido Popular, ora em Partido
Socialista), um partido amplo, que seria mais à esquerda que o MDB: “Depois
quando veio o PT, nós fomos para um lado, eles foram para um outro...”

A OPOSIÇÃO DEIXA O JORNAL


Em 1º de maio, os representantes da proposta derrotada emitiram um comu-
nicado, assinado por 38 membros da equipe, sendo 22 de São Paulo, nove de
Belo Horizonte e sete de Salvador, anunciando que se retiravam do jornal. Os
motivos:
1. Durante um tempo prolongado, a direção do jornal afir-
mou uma linha editorial que não satisfazia o consenso mínimo
do conjunto de pessoas que nela trabalhavam. Essa posição
editorial manifestou-se básica e explicitamente nos “Ensaios
Populares”, seção considerada como editorial de Movimento.
2. Em razão dos métodos de trabalho (de participação e de-
cisão) vigorantes no jornal, definidos por uma estrutura bu-
rocrática que mantinha fechado o poder de decisão, embora
aparentasse abri-lo em discussões amplas, qualquer consenso
estava longe de ser alcançado. E a direção do jornal objetiva-
mente não se interessou em promover o consenso através de
métodos democráticos.
No item 3, o texto se referia ao resultado da votação que aprovou
uma proposta da direção que, no fundamental, legitima a atual
linha editorial e confirma também o poder dessa estrutura bu-
rocrática que levaram à quebra do consenso acima apontado.
A partir daí, continuar no jornal implicaria em ser conivente
com tal perspectiva.
Assinaram o documento Bernardo Kucinski, Flávio Aguiar, Jean-Claude
Bernardet, Francisco de Oliveira, todos membros do Conselho de Reda-
ção; Maria Rita Khel, Silvia Campolin, Laís Tapajós, editoras. E colabora-
dores como Guido Mantega, Maria Moraes, Ricardo Maranhão, José Mi-

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O “racha” de abril de 1977

guel Wisnik e outros, num total de 22 de São Paulo; nove de Belo Horizon-
te, entre eles Betinho Duarte, também do Conselho de Redação e diretor
da sucursal, Fernando Miranda, Fausto Brito, Flávio Andrade, Flaminio
Fantini. E sete de Salvador, como Adelmo de Oliveira, Tibério Canuto,
Emiliano José, Oldack Miranda. Trinta e oito pessoas no total deixaram o
jornal. Esse documento foi publicado no O Pasquim e em outros jornais.
A censura não permitiu que Movimento o publicasse de imediato.10
Em resposta, os defensores da proposta vencedora (136 signatários mais
36 que assinaram depois), entre eles a grande maioria de jornalistas que
“tocavam” a rotina do jornal, divulgaram nota, pedindo que os que haviam
saído reconsiderassem sua decisão e continuassem a debater. Diziam que
o motivo alegado – não estarem de acordo com a linha editorial do jornal
expressa através de sua seção “Ensaios Populares” – não era suficiente.
Quais são as divergências que os companheiros têm em re-
lação a eles? Alguns tinham de fato manifestado discordância
em relação à maneira pela qual os Ensaios tratam as correntes
de oposição liberais; outros haviam criticado a insistência des-
ses textos na defesa da independência nacional; outros ainda
tinham objeções às tentativas específicas que o jornal utilizou
para aproximar-se dos setores mais populares. Mas sempre fo-
ram críticas ouvidas isoladamente; não se aprofundaram nas
discussões que precederam o dia 29; mais ainda, nunca foram
apresentadas como razões centrais das divergências...11
Em Tempo começou a ir às bancas a partir de janeiro de 1978. Este, sim,
iria ser o jornal dos jornalistas, é o que se dizia, mas logo passou a ser
porta-voz de tendências trotskistas, o que motivou a saída de parte de seus
participantes iniciais, como Francisco de Oliveira e Ricardo Maranhão.
Estes tentaram criar outro jornal, Amanhã, que não foi avante.12

SERGIO MOTTA E O “RACHA”


Embora procurasse limitar sua participação ao setor financeiro de Movimento,
Sergio Motta estava a par dos acontecimentos e percebia o agravamento das
tensões entre a equipe. Ele se empenhou para evitar que o “racha” se concreti-
zasse. Porém, pouco antes da Convenção de 29 de abril de 1977, Motta viu-se
envolvido em uma intriga que contribuiria para acirrar os ânimos. Depois de
um debate sobre a questão agrária, tema que dividia a esquerda naquele mo-
mento, o sociólogo Chico de Oliveira, um dos membros do Conselho Editorial
que estava na oposição, comentou com ele: “Isso é um belo programa para um
partido político”.13 A conversa não parou por aí, como relembra Chico:
10 Abaixo-assinado de 1º de maio de 1977. Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão.
11 Abaixo-assinado em apoio à maioria, sem data. Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão.
12 Em Tempo continuou a circular por vários anos como porta-voz da Democracia Socialista, uma
organização política trotskista formada pela união da Centelha, de Minas Gerais, com um grupo
do Rio Grande do Sul, liderado por Raul Pont. A DS aderiu ao PT constituindo-se em uma de suas
frações.
13 Entrevista de Francisco de Oliveira em 29 de janeiro de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Quem foi saber disso depois? Raimundo Pereira, que me in-


terrogou diretamente sobre isso na reunião seguinte do Con-
selho de Redação. E acionou o Sérgio Buarque Gusmão, que
estava nas minhas costas, porque a versão que chegou a ele
foi dada pelo Sérgio Buarque de Gusmão, com quem, prova-
velmente, Sergio Motta se reuniu. Raimundo Pereira disse:
“Agora, proponho uma acareação entre você, Chico, e o Sérgio
Buarque”, o Sergio nas minhas costas. Eu disse a ele: “Olha,
Raimundo, no dia em que eu quiser ir ao Dops, eu vou por
minhas próprias pernas”.
Motta se referirá a esse episódio em um texto ditado a Francisco Mar-
siglia, por telefone, para que fosse lido por este na Assembleia Geral dos
Acionistas, realizada no dia seguinte (30 de abril).14 Marsiglia reconhece
sua letra nesse manuscrito, mas não se recorda se realmente o leu, uma
vez que, além de tumultuada, a reunião começou no dia 29 de abril e
terminou na madrugada do dia 30.15 Trata-se de uma raríssima oportuni-
dade em que Sergio Motta manifesta suas convicções políticas, em geral,
e a única em que se posicionou publicamente por escrito sobre o jornal
Movimento.
A seguir, alguns trechos:
Acho que os Ensaios Populares representam um avanço da
oposição brasileira, sendo o que mais fortaleceu e caracterizou
o jornal, por ter levantado teses que contribuíram para ampliar
o debate junto a amplas camadas da população na busca de
posições mais justas; acredito que os Ensaios Populares, em
alguns instantes, talvez tenham avançado além do permitido
pelo consenso da frente que apoia o jornal hoje, sendo que esse
avanço, entretanto, pode ser canalizado positivamente através
do debate interno na frente das posições levantadas.
Algumas das teses divergentes sobre o processo de condução
da luta política no país, acredito que devam ser debatidas in-
tensamente sem, no entanto, servirem para romper a unidade
na fase do processo já que as divergências de tais teses não
me parecem essenciais na fase atual da condução da frente
de oposição ao regime, devendo ser explicitadas numa etapa
futura. (...) O esclarecimento de questões tais como a agrária, a
nacional, política externa devem ser objeto de debates, e leva-
das até o nível que o programa do jornal já as define, ou seja:
a) a luta pela independência nacional é essencial em função
da contradição básica entre o imperialismo internacional e os
interesses nacionais
b) a questão agrária torna-se fundamental como qualquer ou-
tra luta a favor dos oprimidos brasileiros por ser a conquista da
14 ISM - No manuscrito consta a anotação “Documento apresentado na assembleia de 30/04”.
15 Entrevista com Francisco Marsiglia em 29 de junho de 2010.

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O “racha” de abril de 1977

terra uma bandeira de luta das mais amplas camadas do povo


brasileiro submetido à exploração no campo
c) a questão internacional deve ser compreendida no âmbito
da busca de uma posição de defesa dos interesses nacionais,
fugindo às áreas de influência dos imperialismos norte-ameri-
cano e soviético.
(...) Assim em relação à situação atual do jornal acredito que
devemos buscar a unidade para a consecução dos objetivos
programáticos, entendendo que qualquer solução que leva
para a Assembleia Geral o conflito de facções na busca do po-
der, como a apresentação de chapas antagônicas, seria nesse
instante uma solução a serviço da ditadura, o enfraquecimento
da unidade e o início de uma fase interminável de luta inter-
na que não seria suportada por uma estrutura frágil igual a
do jornal, idêntica à oposição brasileira no geral, levando ao
esfacelamento. Em função do colocado, a solução correta me
parece a eleição de uma diretoria de unidade para Edição que
garanta para o próximo ano o término do estatuto de funciona-
mento que venha a superar as dificuldades do debate interno e
o término da discussão das questões políticas inseridas ou não
nos Ensaios Populares e que conduzam a um salto qualitativo
do jornal.
Sobre o incidente com Chico de Oliveira, Sergio Motta, embora o consi-
derasse “secundário”, lamentava-o e avaliava que ele deveria ser resolvido
em clima de “lealdade revolucionária”. Para Motta, “o clima policialesco
sugerido pelo surgimento de tal problema pode nos levar a eliminação de
qualquer liberdade individual de expressão e manifestação, contribuindo
para a manutenção das trevas da realidade brasileira atual”. E concluía:
“em relação à necessidade de acareação lamento ter isso sido proposto
no território democrático do jornal já que tais mecanismos são utilizados
em outras repartições e tendo enfrentado-os nas mesmas não esperava me
defrontar com o mesmo procedimento no jornal”.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição especial “Ensaios Populares”, abril de 1977

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13
A luta continua

O
“racha” de Movimento ocorreu num momento crucial. Em abril
de 1977, a ditadura recrudescia. Com o “pacote” de abril, o ge-
neral Geisel pretendia conter a vaga crescente da oposição e
apaziguar as divergências internas no regime. De imediato, o
jornal podia esperar mais censura e dificuldades para sua so-
brevivência. Em razão disso e como consequência do “racha”, o jornal fez um
esforço duplo, para tomar posição diante da crise em que o País estava mer-
gulhado, e para se reorganizar e democratizar as relações internas. Na própria
reunião da ruptura, sob o efeito da demissão de parte dos colaboradores, o
Conselho de Redação decidiu:
adiar a eleição definitiva de uma nova diretoria por seis meses
para que pudesse haver um amplo debate interno (e isso quando
todos, mesmo os defensores da proposta perdedora estavam de
acordo em que os atuais diretores deviam ser mantidos em seus
cargos); criar uma comissão ampla para aprovar os editoriais do
jornal; eliminar o caráter editorial dos Ensaios Populares, trans-
formando-os em uma seção assinada pelo editor; criar duas co-
missões com poderes legislativos, só subordinada aos Conselhos,
para deflagrar um amplo debate para aprovação e renovação de
seus estatutos e programa; tornar a indicação dos editores da se-
ção e chefes de departamento do jornal sujeita à aprovação do
Conselho; formar uma diretoria de unidade para trabalhar por
consenso.1
O semestre seguinte seria consumido entre a promoção dos debates para
reformular o jornal internamente, conforme essa determinação do Conselho,
enquanto se lutava para preservá-lo, pois continuava sob censura prévia e
sujeito a apreensões. Um desafio e tanto, reconhecido diversas vezes por
Raimundo Pereira, como transparece em um balanço apresentado por ele um
ano depois, em uma reunião de abril de 1978, transcrita em ata:

1 Arquivo pessoal de Sérgio Buarque de Gusmão.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Raimundo, como já disse em várias ocasiões, atribui à crise in-


terna que tivemos em abril passado um peso muito grande nas
quedas de vendas (bancas e assinaturas) de Movimento; houve
uma clara dispersão de forças na imprensa independente e de-
mocrática, com aumento do isolamento político do jornal”.2

RENOVANDO O COMPROMISSO
A primeira ata de reunião do Conselho que consta nos arquivos, datada de
29 de junho de 1977, mostrava a preocupação de reforçar os laços e aumen-
tar o espaço dos que ficaram: além de cinco conselheiros, participaram da
reunião com direito a voz e voto o chefe do Departamento de Vendas, e mais
seis representantes, ou chefes de sucursais, de outras cidades: Salvador, Rio,
Goiânia, Londrina, Campinas e Belo Horizonte.
Ainda assim, a reunião foi considerada “pequena demais para decidir” so-
bre o primeiro item da pauta: “discussão de critério básico de participação
dos funcionários de Edição S/A na direção da empresa”. Optou-se por le-
var às bases as três propostas existentes para colocar em prática o princípio
que deveria orientar a decisão: “a cada um de acordo com o seu trabalho”.3
Basicamente, as propostas se diferenciavam pelo peso menor ou maior dado
aos votos de colaboradores e funcionários na escolha dos delegados que os
representariam na eleição – por voto secreto – do novo Conselho de Direção.
A partir dessa reunião, a Sociedade de Colaboradores, Redatores e
Funcionários de Movimento começou a tomar forma. Na edição de número
121, de 24 de outubro de 1977, o jornal publicou um documento, dirigido
“aos colaboradores e amigos”, chamando à participação:
Movimento e Edição S/A farão nos próximos dias 28 e 29
eleições gerais para renovar a sua diretoria e o seu Conselho de
Direção, que substituiu o Conselho de Redação a partir dessas
eleições. Podem participar desse processo todos aqueles que de
alguma forma contribuíram para construir esse jornal e esta em-
presa. Para isso estamos formando uma sociedade de amigos e
colaboradores de Movimento e de Edição S/A que será o grande
colégio eleitoral desse processo. As editorias do jornal e os depar-
tamentos da empresa já estão há cerca de um mês conversando
com colaboradores e organizando a sociedade. Toda e qualquer
pessoa que julgue que contribuiu efetivamente para a constru-
ção de Movimento e Edição S/A e que não tenha sido até agora
consultada deve procurar a sede do jornal em São Paulo ou suas
sucursais em outros Estados para se informar sobre o assunto.
Ao lado desse documento foi publicado um comunicado “aos leitores de
Movimento” explicando a necessidade de aumentar o preço do jornal, e uma
convocação para a Assembleia Geral Ordinária dos Acionistas a se realizar no
dia 29 de outubro de 1977, no auditório do Sindicato dos Jornalistas. Além
2 AP 286.02.02 Fnd Mov APSP.
3 AP 285.04.01 Fnd Mov APSP.

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A luta continua

da eleição da nova diretoria, estava na pauta a aprovação de um aumento de


capital para 2 milhões de cruzeiros, o equivalente a R$ 1,57 milhão. O jornal
estava precisando de gás para seguir em frente.

A AMPLIAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO
As atas das reuniões de outubro de 1977 foram publicadas com destaque na
edição 123, de 7 de novembro. Sob o título “As eleições em Movimento”, o
texto destacava o avanço democrático do jornal: “Nos dias 28 e 29 passados
cerca de 500 pessoas, membros do jornal Movimento e Edição S/A elegeram
sua direção por voto secreto”. E fazia um balanço da situação do jornal desde
o “racha” à reestruturação interna consagrada nessa reunião. Transcrevendo
o original, publicado no jornal:
As eleições de abril haviam sido adiadas para outubro para que
fosse possível (...) debater mais aprofundadamente algumas di-
vergências internas manifestadas na época, principalmente com
relação à estrutura de decisão e de organização do jornal e da
empresa.
(...) A saída precipitada de 38 companheiros após abril (de
1977) foi desestimulante para cumprir a longa pauta de debates
exposta acima, porque entre eles estavam aqueles que em abril
mais manifestaram discordâncias em relação à forma como o jor-
nal vinha tratando todos aqueles relevantes temas.
Mesmo assim, nesse período, Edição S/A através das páginas
de suas publicações, de seminários e comissões, pode desenvol-
ver um debate amplo e profundo sobre a democracia e a campa-
nha por uma Assembleia Nacional Constituinte e sobre a popu-
larização da imprensa democrática. Por viver sob dificuldades
bastante conhecidas de seu público e por escassez de tempo não
pode aprofundar os outros temas propostos.
Mas, o resultado mais completo desses seis meses de debates
foi a criação de uma nova estrutura de decisão e de organização
para a empresa e para o jornal, através da fundação da Sociedade
de Colaboradores, que congregava os membros de Edição S/A, e
da eleição de um Conselho de Direção que substituirá o antigo
Conselho de Redação.
E prosseguia o documento:
(...) o Conselho de Direção da Edição S/A será renovado a cada
doze meses, pelo menos, através do voto secreto e direto dos de-
legados da convenção da sociedade de colaboradores ao contrá-
rio do antigo Conselho de Redação de Movimento, que não tinha
uma estrutura de renovação ampla e determinada.
A criação da Sociedade de Colaboradores, por sua vez, concre-
tiza uma antiga aspiração dos membros do jornal, pois definiti-
vamente coloca a propriedade do jornal nas mãos de quem o faz.
A sociedade com cerca de 500 membros é proprietária de 51%

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Jornal Movimento, uma reportagem

das ações de Edição S/A e será renovada a cada doze meses. Sua
criação tornou muito mais presente e muito mais ampla a partici-
pação dos membros do jornal na definição de seu rumo político.
Exemplo disso foi a escolha dos delegados da convenção da so-
ciedade ao longo do mês de outubro passado: todos os membros
do jornal, dos contínuos aos editores, discutiram as diretrizes
mais gerais para o trabalho do jornal e elegeram, em quase todas
as seções por voto direto e secreto, seus delegados, num processo
onde não havia nenhuma restrição para votar e ser votado a não
ser a de pertencer ao jornal.
Um organograma publicado junto com esse documento detalhava a “es-
trutura de decisão de Edição S/A” e uma retranca separada, publicada nessa
mesma edição de 7 de novembro de 1977, explicava o funcionamento do
Conselho de Direção:
Trinta e cinco nomes, entre jornalistas, intelectuais, membros
da administração, de vendas e acionistas, integram o novo órgão
de decisão de Edição S/A. O Conselho de Direção de Edição S/A
eleito no último dia 28 substitui o antigo Conselho de Redação
de Movimento. A mudança de nome reflete a mudança ocorrida
nos dois últimos anos nas funções do Conselho de Redação de
Movimento que deixou de decidir somente sobre a política geral
do jornal para decidir também sobre a política geral de toda em-
presa editora e de todas suas publicações. O Conselho de Direção
recebe agora todos os poderes que o antigo Conselho de Redação
vinha acumulando inclusive o de aprovar ou não a indicação dos
editores de seção e chefes de departamento da empresa, confor-
me aprovou-se nas eleições de abril passado.
O novo Conselho de Direção tem uma representação por fun-
ções muito melhor do que o antigo Conselho de Redação no qual
o setor de vendas e os acionistas não estavam representados.
Além disso, as sucursais e os núcleos de apoio, que cresceram
muito em várias cidades do país, tinham apenas uma representa-
ção em um conselho de 13 pessoas. No atual Conselho de Direção
estão diretamente representadas as sucursais do Rio, Brasília,
Belo Horizonte e Salvador e os núcleos de apoio em Fortaleza
e Goiânia. Dois acionistas integram hoje o Conselho de Direção:
Kurt Mirow, empresário bastante conhecido por suas lutas contra
o capital estrangeiro e em particular contra o cartel da indústria
eletro-eletrônica; e Raimundo Teodoro de Oliveira, engenheiro,
professor da UFRJ, integrante do núcleo de acionistas cariocas
que tem sempre apoiado o jornal desde sua fundação.
Havia outros novos integrantes no Conselho de Direção, entre represen-
tantes dos funcionários do jornal, como Armando Sartori (editor gráfico),
Maria Leonor Viana (secretária), Paulo Barbosa (da administração), Murilo

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A luta continua

Carvalho (redação) e representantes de sucursais (entre eles Luiz Bernardes,


de BH, Márcio Bueno, do Rio, e José Crisóstomo, de Salvador) e do departa-
mento de vendas. Também os colaboradores aumentaram sua participação
com a eleição de Clóvis Moura, Eduardo Suplicy e Jair Borin, entre outros.
Do Conselho antigo restaram Raimundo Pereira (editor-chefe de Movimento
e diretor editorial de Edição S/A), Tonico Ferreira (diretor de Operações
de Edição S/A até o último dia 29; agora, editor executivo de Movimento),
Flávio de Carvalho (diretor de Operações de Edição S/A e editor de interna-
cional), Sérgio Buarque (agora editor de Cadernos), Marcos Gomes (editor de
Nacional) e ainda Teodomiro Braga, Chico Pinto, Elifas Andreato, Fernando
Peixoto, Aguinaldo Silva e Maurício Azedo.

“DISCUSSÃO ABERTA E COMANDO UNIFICADO”


A iniciativa de ampliar a participação de acionistas, funcionários e colabo-
radores em Movimento pode ser compreendida também como uma forma de
restaurar a rede de apoio do jornal. Paralelamente às mudanças internas, esse
foi o momento em que a questão da popularização do jornal, que iria se ma-
terializar no suplemento Assuntos, tornou-se central nas reuniões do Gruex
(Grupo Executivo do Conselho de Direção), uma comissão executiva do Con-
selho de Direção composta por 6 dos 35 conselheiros eleitos, que dirigiu o
jornal de 1978 a julho de 1980.
O documento “Nasce o Gruex”, apresentado na reunião de 10 de novembro
de 1977, explicava a criação da comissão:
A ideia surgiu da necessidade de diminuir a defasagem que ne-
cessariamente existe entre os objetivos editoriais e administrati-
vos que podem ser definidos em uma grande reunião, como são
as do Conselho, com a sua execução prática, que ficava a cargo da
diretoria da empresa e dos responsáveis diretos por cada um dos
setores de Edição S/A (...)4
A escolha dos membros do Gruex, segundo o documento, obedeceu aos cri-
térios de “praticidade”, todos deviam morar em São Paulo, e de “representati-
vidade dos diversos setores do jornal”.5 Eram eles: Raimundo Pereira, Tonico
Ferreira, Marcos Gomes (que acabava de se mudar do Rio para São Paulo, para
substituir Sérgio Buarque na editoria de Nacional), Antonio Neto Barbosa, chefe
do Departamento de Vendas, Armando Sartori e Maria Leonor Viana.
No que se refere à política editorial, o Gruex devia, por exemplo, “aprovar
os editoriais avaliando se estão de acordo com o programa editorial das pu-
blicações” e “a escolha de novos editores que será depois referendada ou não
pelo Conselho de Direção”; entre as tarefas administrativas constava: “estu-
dar e aprovar alterações de orçamento e de pessoal quando foram sensíveis”,
e “escolher os novos chefes de departamento que será depois referendada ou
não pelo Conselho de Direção”.6
4 AP 286.01.05 Fnd Mov APSP.
5 Idem.
6 AP 286.01.05 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Como os componentes da comissão representavam setores específicos do


jornal, o Gruex acabou conferindo muito poder a seus membros, trazendo
novas lideranças, como Barbosinha, para o comando do jornal, ainda que a
direção editorial se mantivesse nas mãos de Raimundo. A maior participa-
ção dos funcionários e das equipes de vendas teve uma contrapartida que
envolveu os salários, cortados mais uma vez durante a crise que se seguiu ao
“racha”. As condições de trabalho passaram a fazer parte da pauta de discus-
sões. A exaustão das pessoas submetidas a jornadas infindáveis de trabalho
e reuniões era quase palpável, e havia reclamações constantes de que apenas
alguns carregavam o jornal nas costas.

NAVEGANDO EM ÁGUAS AGITADAS


Deve-se notar que Movimento não era mais o mesmo. Tinha sido esvaziado
de diversas pessoas, que representavam, em ultima instância, correntes po-
líticas do movimento democrático, que buscavam outra saída para a crise
do País. Não acreditavam, por exemplo, na tese que se tornara quase que
uma bandeira central do jornal, da necessidade de convocação de uma As-
sembleia Nacional Constituinte, como forma de democratizar o País. O “ra-
cha” de Movimento fora o sinal de que correntes de mudança diversificadas
e profundas estavam presentes nas lutas populares. Eram as forças sociais
em demanda de afirmação política. A própria dissensão em Movimento fazia
parte dos choques entre essas correntes. No jornal, como em outras frentes de
luta contra a ditadura, estavam se gestando as propostas que iriam moldar o
futuro.
Nos anos seguintes, o semanário iria navegar, tentando manter um rumo
nessas águas agitadas em que o regime militar experimentava um recuo or-
ganizado, sob a pressão das oposições, que buscavam arrancar de suas mãos
a condução do processo. A cada semana era impositivo posicionar-se sobre
fatos nacionais e internacionais que se precipitavam em sucessão vertigino-
sa: a crise econômica, a violência da repressão, a candidatura de um general
de oposição à presidência da República, a irrupção das greves operárias que
alteraram definitivamente o cenário político; as campanhas pela anistia e as-
sembleia constituinte, a volta dos exilados, a reorganização partidária. No
plano internacional, as novas políticas de potência dos Estados Unidos, as di-
vergências no campo socialista, o conflito sino-soviético, a China no Vietnã,
a URSS no Afeganistão. Era imperativo tomar posição. Movimento noticiou
tudo e tomou posição sobre tudo. Provavelmente, não houve fórum em que
mais polêmicas se desencadearam, em que foram travados mais debates, de
maneira consciente, sob a máxima de acompanhar os fatos, interpretá-los,
não só informar, mas educar, procurar elevar a consciência política, promo-
ver a cidadania e a participação em favor da democratização. Porque não
bastava conhecer a realidade, mas transformá-la.
Por suas páginas iriam se desenrolar variadas polêmicas: desde aquelas
com líderes políticos dos vários setores da oposição, do MDB, do PCdoB,
PCB, brizolistas etc., àquelas com as novas lideranças operárias que planeja-

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A luta continua

vam formar um partido de trabalhadores, e até as que envolveram opiniões


de artistas, a exemplo do cineasta Glauber Rocha, do músico Caetano Veloso,
do militante político Fernando Gabeira. Naqueles anos não houve seção de
cartas dos leitores mais movimentada que a de Movimento.
É o que se verá nas próximas páginas, em que o jornal se atém a seu pro-
grama pela radicalização da democracia em defesa dos interesses populares.
Entretanto, no processo de democratização, o polo do movimento popular
não se desenvolveu suficientemente, nem muito menos concretizou uma
perspectiva revolucionária. Seu núcleo operário, centrado no movimento
sindical do ABC paulista, iria atrair tendências de esquerda, constituindo
um conglomerado de orientação social-democrata que daria origem à criação
do Partido dos Trabalhadores. Posições políticas partidárias específicas ga-
nharam relevo, a frente de oposições se dividiu.

BELO HORIZONTE, DE NOVO


Movimento se reorganizou rapidamente, demonstrando que continuava a
contar com uma base de sustentação política dinâmica e ainda ampla. As
sucursais que haviam tido grande participação daqueles que deixaram o jor-
nal com o “racha” foram logo reorganizadas, com pessoas mais próximas das
posições dos que ficaram. Em Belo Horizonte, com a saída de Alberto Duarte,
o chefe da sucursal, e de um grande número de intelectuais, vendedores e
colaboradores, a sucursal foi recomposta, sob o comando de Luiz Bernardes,
que rememora: “A ideia era tentar manter a sucursal aberta, porque como o
pessoal saiu em bloco a gente achava que ia desandar”. Segundo ele, não de-
sandou. A reorganização teve início com o apoio de Murilo Albernaz, que se
mantivera sempre na sucursal, apesar de marginalizado pelo grupo da Cen-
telha, e de Renato Godinho, ex-militante de Ação Popular. Vieram novos
colaboradores: Claudia Sampaio, Itamar Sardinha, Lucile Machado, Marilio
Malaguth Mendonça, Elisabete França.
“Nós refizemos a redação com o Aloísio Morais, Vilma Fazitto. E tinha um
esquema de vendas violento, pegava o pessoal que fazia trabalho operário,
pegava pessoal que fazia movimento estudantil... Era uma vida política mui-
to intensa”, comenta Bernardes.7

SALVADOR
Na sucursal de Salvador, onde estavam alguns líderes do “racha”, como
Tibério Canuto, as perdas também foram grandes. Mas, como a sala onde
ficava a sucursal estava alugada por Adelmo de Oliveira, do grupo de Chico
Pinto, que não deixou o jornal, a reorganização de Movimento na cidade foi
facilitada. Elementos fortes de apoio, como políticos do MDB e estudantes da
tendência Novação, preencheram os postos deixados pela equipe de Canuto.
Como em Belo Horizonte, o esforço para reconstruir a sucursal e ampliar o
apoio foi concentrado e se deu rapidamente. Três dias depois de uma carta

7 Entrevista de Luiz Bernardes em 30 de novembro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

em que o pessoal da Bahia pedia, mediante procuração a Bernardo Kucinski,


que seus nomes fossem retirados do expediente (27 de maio de 1977), o jor-
nal já apresentava a nova equipe: Admilson Carvalho, José Crisóstomo de
Souza, Jadson Oliveira e Paulo Jackson Vilas Boas – este, futuro deputado
estadual pelo PT.
Dentro do Departamento de Vendas do jornal, chefiado por Antonio Neto
Barbosa, experiente quadro do partido, no entanto, passou a haver uma for-
te presença do PCdoB. Ela era um problema? Para muitos, não, conforme
indica o comentário a seguir: “Havia uma hegemonia do PCdoB, mas que
não impedia uma ampla cooperação. Tínhamos um conjunto vasto e muito
diversificado de acionistas e uma preocupação grande em dar um caráter
jornalístico ao nosso trabalho acima de tudo”, lembra Crisóstomo de Souza8,
novo chefe da sucursal e que montou outra equipe. Formado em Filosofia,
Crisóstomo era filiado ao PCdoB e atuava no Centro de Estudos e Ação Social
(Ceas), grupo ligado à igreja católica que buscava fomentar e aprofundar dis-
cussões teóricas entre militantes e ativistas. “Leia-se, marxismo para ajudar
o movimento social”, resume. Além da atuação nas Comunidades Eclesiais
de Base, o Ceas editava cadernos com análises econômicas, sociais e con-
junturais. “Fiquei conhecido por essa dupla condição de ter uma militância
clandestina revolucionária e ao mesmo tempo ser uma personalidade públi-
ca democrática”. A ligação com o Ceas contribuiu para isso através da arti-
culação com associações de bairros da periferia que se formavam para a luta
pela posse da terra. Movimento também mantinha ligação com associações
de profissionais liberais e o movimento estudantil. “Fazíamos o debate com
setores médios, economistas desenvolvimentistas, estudantes. A gente fazia
uma política muito ampla e boa, a ditadura não tinha como botar a mão em
cima”, diz Crisóstomo.
Tal como nas outras sucursais, o momento de maior agitação era no sábado
de manhã. Mal Crisóstomo chegava do aeroporto, uns 15 jovens já estavam
apinhados na sala, esperando para enrolar cada exemplar, apertar com elásti-
co e enviar para os assinantes. “Era a nossa celebração, nossa eucaristia”, diz
o filósofo. Mas a espera, claro, não era pelo trabalho em si. “A gente esperava
em pleno fervor cívico-revolucionário, e se encantava com a capa, os dese-
nhos do Elifas Andreato, do Grilo...”
No fim de semana acontecia um mutirão pelas praias soteropolitanas. Anos
depois, muitos desses vendedores acabaram se tornando figuras políticas de
peso, como a futura vereadora Jane Vasconcelos, o futuro secretário estadual
do Trabalho Ilton Vasconcelos e Lídice da Mata, militante do PCdoB que foi
vereadora em Salvador, deputada federal constituinte e depois, pelo PSDB,
prefeita de Salvador e senadora da Bahia pelo PSB, eleita em 2010.
O ex-vendedor Washington Carlos Ferreira Oliveira9, que se tornaria diretor
de educação básica da Secretaria de Educação estadual, testemunha:

8 Entrevista de Crisóstomo de Souza em 23 de fevereiro de 2010.


9 Entrevista de Washington Carlos Ferreira Oliveira em 31 de janeiro de 2010.

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A luta continua

Me dediquei plenamente às vendas pela motivação de me sen-


tir contribuindo diretamente para a ampliação da frente demo-
crática de esquerda contra a ditadura. Os contatos com as mais
diversas lideranças de esquerda, com a finalidade de tentar aglu-
tiná-las em torno de metas jornalísticas e políticas comuns, mar-
caram para sempre minha formação política.
“Era uma escola de formação”, concorda Crisóstomo.
O chefe da sucursal chegou a ser detido algumas vezes quando houve
ordem de apreensão do jornal. “Quando eu sumia, o pessoal ligava para o
Ceas, o Ceas ligava para dom Avelar Brandão, um cardeal nada progressista,
mas que se sentia obrigado a defender os direitos humanos”. Ao ser libera-
do, Crisóstomo começava a sua própria via crucis: ia procurar dom Timóteo
Amoroso, o progressista abade do Mosteiro de São Bento, representantes da
OAB e o escritor Jorge Amado. “Ele era amigo de Antônio Carlos Magalhães,
mas me recebia na sua casa e dizia: ‘em se tratando de liberdade de imprensa
estou à disposição’”.
Salvador se tornou o principal polo de influência de Movimento para o
Nordeste, dando apoio a outros grupos na região; mantinha contatos próxi-
mos com outras capitais, passando informações e trocando experiências, e
ajudaria a organizar um encontro regional em Recife no início de 1978. Ali,
Salvador se propôs a ajudar uma sucursal em Recife a “deslanchar”. Também
se propôs a enviar alguém para Sergipe, Alagoas e até Belém. Crisóstomo
relatou também à diretoria que alguns colaboradores de Alagoas já haviam
escrito pedindo ajuda na estruturação de um grupo por lá, que tomaria força
no começo de 1979, quando o líder estudantil Aldo Rebelo, ligado ao PCdoB,
assumiria o posto de correspondente – um ano antes de se tornar presiden-
te na UNE. Mais tarde, Aldo viria a ser vereador em São Paulo, várias ve-
zes deputado federal, foi ministro no primeiro governo Lula e presidente da
Câmara de Deputados.
O respaldo regional, bem costurado pela sucursal, se refletia em uma for-
ça interna que acabou fazendo de Salvador um dos mais fortes aliados de
Raimundo e Tonico dentro da redação. A sucursal participava ativamente
dos debates e disputas internas, organizando discussões entre a equipe sote-
ropolitana e tirando posições que depois eram transmitidas à sede.
“São Paulo geralmente contava com a gente”, explica Crisóstomo.
Nós tínhamos uma convergência sobre a condução do jornal:
ele tinha que ser amplo e fazer a cobertura com critérios jornalís-
ticos. Chamávamos de “clube dos 50”, as pessoas que já sabem
das coisas. E dizíamos: o jornal não é só para o clube dos 50, tinha
que ser um jornal que você pudesse dar ao seu vizinho, à namora-
da, ao cara que você encontra no elevador do seu prédio.

RECIFE
Em Recife, esse trabalho de frente de apoio ao jornal, com grande ajuda do
PCdoB, se ampliaria também. Em outubro de 1978, a convite de Barbosinha,

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Jornal Movimento, uma reportagem

Luciano Siqueira foi convidado a fazer parte da sucursal de Movimento na


cidade. Com o tempo, graças ao seu grande poder de articulação, Siqueira
tornou-se chefe de redação. Foi só então que se pôde fundar uma sucursal de
fato. Figura conhecida na política local, Siqueira era militante desde a época
de secundarista. Ligado à Ação Popular participou da resistência ao golpe
de 1964, tendo depois passado quatro anos na clandestinidade, período em
que entrou para o PCdoB. Quando foi parar em Movimento, estava saindo da
prisão. Na ocasião, Raimundo Pereira viajou pessoalmente ao Recife para, em
um debate público, marcar a instalação da sucursal. “O jornal se converteu
aqui no Recife num polo de debates e de aglutinação de pessoas que partici-
param da resistência à ditadura militar”, diz Siqueira, que, além de coorde-
nar as colaborações e escrever matérias, enviava toda semana, por telex, um
resumo do que acontecia na região.
Em 1979, a sede mudou-se para uma sala mais ampla, na avenida da Boa
Vista, uma das principais da cidade. A partir de então, toda segunda-feira
havia um encontro para leitura e discussão da edição da vez, que reunia até
20 colaboradores. “A sucursal ficava aberta, mas funcionava mais ativamente
da boquinha da noite em diante, quando as pessoas saíam do seu trabalho e
marcavam encontro ali, porque sabiam que ia ter gente tratando de política”,
lembra Siqueira. A equipe também promovia debates mais amplos, com per-
sonalidades da cena política local, abordando temas relevantes da conjuntu-
ra nacional. Iam intelectuais, artistas, políticos do MDB. “Isso ajudava a nos
relacionarmos com o mundo político de Pernambuco, arrecadando apoio ao
projeto do jornal. Além disso, esse entrosamento ajudou a me reintroduzir na
cena política”.
Luciano usava sua influência para angariar assinaturas entre parlamentares
do MDB e até empresários progressistas.
Eu indicava uma lista de personalidades que deveriam ser visi-
tadas pelo vendedor e telefonava para a pessoa para ver se ela se
sensibilizava. Intelectuais, jornalistas, artistas, empresários que
colaboravam com o MDB, gente da academia e da universidade
sempre tinham interesse na leitura.
A relação com o setor progressista da Igreja Católica também era forte, mais
diretamente com a Comissão de Justiça e Paz e a Ação Católica Operária.
“Além deles, ex-presos políticos que estavam ‘soltos’, isto é, sem militância
organizada, encontravam no Movimento de alguma maneira uma oportuni-
dade de participar da resistência política”, explica.
Ao mesmo tempo, Luciano usava o trabalho em Movimento para rearticular
o PCdoB no estado, destroçado pela repressão em meados da década de 1970.
“Quando saí da cadeia, a direção nacional me deu a tarefa de reorganizar o
partido, eu fiz isso concluindo o curso de Medicina e trabalhando com o jor-
nal. Ali nós desenvolvemos um trabalho amplo e plural, mas paralelamente
isso ajudou também a reconstruir o PCdoB. Reiniciamos o partido com três
pessoas – eu, o jornalista Marco Aurélio Albertim e o economista Reginaldo
Muniz; todos do Movimento”, diz ele, que anos depois se tornaria vereador,

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A luta continua

deputado estadual e vice-prefeito de Recife pelo PCdoB. Assim, quando


Miguel Arraes retornou do exílio em 1979, compareceu à sede do semanário,
que lhe fez uma recepção.10

ACRE
Não foi só o PCdoB que ajudou na reestruturação de Movimento após o “ra-
cha”. No Acre, nesse período, o jornal desenvolveu um trabalho notável, ini-
ciado por um militante do PCB, o sociólogo Pedro Vicente Costa.
Costa foi assumir um posto de delegado regional do Sesc e Senac em Rio
Branco, em meados de 1978. Antes, já havia ajudado a formar o grupo de
apoio às vendas do jornal em Natal, no Rio Grande do Norte. Ex-estudante
de Sociologia, ele levara o núcleo de vendas para a sede da Associação dos
Sociólogos do Rio Grande do Norte, quando assumiu a presidência. Para ele,
o semanário foi fundamental para engajar os estudantes potiguares. “Antes,
a gente tinha um pequeno jornalzinho mimeografado que circulava no di-
retório acadêmico. Mas agora tínhamos um tabloide que veiculava matérias
relevantes, de fundo, sobre a conjuntura nacional”. Anos depois, essa mesma
vanguarda estudantil estaria na linha de frente da campanha pela eleição
direta para reitor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Ufrn).
“Foi uma projeção natural”, avalia.11 Desde então, a Ufrn elege seus reitores
de maneira direta.
Em Rio Branco, Movimento acabou colaborando com um dos mais impor-
tantes movimentos sociais do fim da década de 1970, o dos seringueiros,
tendo entre seus vendedores o próprio líder Chico Mendes. Pouco depois da
mudança, Costa mandou uma carta à redação propondo fundar um grupo de
apoio no município, então com cerca de 90 mil habitantes. Segundo o relato,
as bancas locais ainda ofereciam exemplares do mês anterior. “Os assinantes,
coitados!, quando recebem o jornal é com dois ou três meses de atraso”.12
Assim, havia uma “necessidade urgente” de fazer Movimento circular regu-
larmente, “superando o descrédito aqui reinante”. O núcleo de apoio, forma-
do por ele, José Moreira e Saulo Petean, se encarregaria de distribuir o jornal
nas bancas e encetar uma campanha de assinaturas, podendo também enviar
colaborações. Petean, um ex-militante do PCdoB em São Paulo que fora para
a Amazônia por orientação do partido, trabalhava então na Funai, e já havia
entrado em contato com o semanário ao escrever uma Cena Brasileira sobre
os índios kuikatejês e paracatejês do sul do Pará. “O pessoal do PCdoB dentro
do Movimento, o Barbosinha, já me conhecia e me recebeu bem”13, lembra ele,
que depois passaria também a tirar fotos para a agência F-4, parceira do jornal.
Embora estivesse longe de tudo (“Estamos aqui no Acre com relativo iso-
lamento do resto do país. A exemplo podemos citar o atraso até com relação
ao fuso horário”, dizia uma carta), o Acre vivia uma época de fortes mobiliza-
10 Entrevista de Luciano Siqueira em 10 de março de 2010.
11 Entrevista de Pedro Vicente Costa em 13 de janeiro de 2010.
12 AP 290.06.21 Fnd Mov APSP.
13 Entrevista de Saulo Petean em 11 de janeiro de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

ções sociais. De um lado, a aceleração da ocupação da Amazônia promovida


pela ditadura havia levado à organização os trabalhadores rurais, em especial
os seringueiros, que resistiam à ocupação predatória da terra, à exploração
dos trabalhadores e à violência patronal. De outro, a igreja, liderada pelo bis-
po progressista dom Moacir Grecchi, apostava nas comunidades eclesiais de
base, promovendo debates e cursos de formação que estiveram na raiz daque-
las organizações sociais.
Rio Branco tinha seus próprios jornais progressistas, como o Nós, irmãos,
um jornal mimeografado, ligado à teologia da libertação, lido nas missas ca-
tólicas; e o Varadouro, jornal mensal, voltado para as questões locais e para a
luta dos trabalhadores, que chegou a imprimir 7 mil exemplares.
Movimento, mesmo tendo chegado pelas mãos de um grupo de “forastei-
ros”, acabou conquistando uma parcela da classe média – em especial, pro-
fessores universitários e artistas teatrais ligadas ao Sesc –, frequentadores das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e trabalhadores rurais. Costa explica
que “enquanto o Varadouro era de denúncia, mais específico, Movimento
era mais bem elaborado do ponto de vista teórico, era um jornal orientador”.
Na época, havia duas bancas de revistas em Rio Branco. Saulo Petean bus-
cava de ônibus os exemplares, que a princípio eram estocados na salinha do
Sesc antes de irem às bancas. No começo eram enviados, além dos exempla-
res dos assinantes, 20 jornais a mais. Com o tempo, o número chegaria a 200.
Pouco depois, a sede da distribuição passou a ser a redação de Varadouro.
“Essa foi uma característica da imprensa alternativa, era um canal muito soli-
dário, todos estávamos ameaçados pela ditadura e fazer jornal sempre era um
risco. Então tanto Movimento como outros jornais a gente recebia e distribuía
para outros lugares”, lembra Elson Martins14, ex-editor de Varadouro.
Pedro Vicente Costa saiu do grupo, mas antes procurou um jovem profes-
sor universitário, Paschoal Muniz Torres, para assumir a coordenação. Vindo
de Recife, onde também ajudara nas vendas de Movimento, Paschoal era di-
rigente do PCdoB no Acre e coordenava a pastoral da periferia.
Eu tinha entrada em pastorais, circulava com as lideranças, ia
bastante para Xapuri... Tinha uma pessoa da igreja ali, o padre
Claudio Perani, que tinha uma relação muito próxima com o
Chico Mendes. Ele ajudava a distribuir em Brasileia e fazia essa
ponte com os trabalhadores.15
Junto com a esposa Sueli Freitas, a mesma que fora vendedora do jornal em
São Paulo e se transferira para Recife, Paschoal tentava ainda de modo inci-
piente organizar o PCdoB na cidade. A aproximação com Chico e seu irmão
Raimundo Mendes data dessa época. “Chico Mendes veio na minha casa
várias vezes”, lembra Paschoal, que na época promovia grupos de estudos
e articulação. “A ideia era compreender todo o processo político que estava
acontecendo naquele momento”, explica Sueli.

14 Entrevista de Elson Martins em 15 de janeiro de 2010.


15 Entrevista de Paschoal Muniz Torres em 2 de fevereiro de 2010.

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A luta continua

Durante os encontros, que incluíam ativistas e professores universitá-


rios, discutia-se textos teóricos, marxistas, mas também artigos retirados de
Movimento. Chico Mendes se tornaria vendedor de Movimento, buscando
exemplares cada vez que ia a Rio Branco para redistribuir em Xapuri. Quando
ele mesmo não ia, um pequeno pacote, com 20 a 30 jornais, era enviado de
ônibus para a sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade. Lembra
Elson Martins:
O Chico Mendes foi uma pessoa que sempre valorizou muito
a mídia para a luta dele. Ele se interessava por tudo que era de
esquerda, tinha uma formação de esquerda. Então se ofereceu pra
vender Varadouro, o Movimento e mais tarde também a Tribuna
da Luta Operária (jornal do PCdoB).
Saulo Petean lembra o entusiasmo com que Chico Mendes se apresentou
durante uma exibição de teatro no Sesc.
Ele disse: “sou eu que distribuo o jornal em Xapuri. Acho muito
bom o jornal, o que eu vejo ali são exemplos da luta dos trabalha-
dores de outros lugares. Isso dá uma sensação de fortalecimento
pra nós, a gente vê que não está sozinho...”
Um ano antes de ser assassinado (22 de dezembro de 1988), Chico Mendes
relembraria a importância de Movimento em uma carta enviada à Fundação
Ford:
Foi a partir do nosso conhecimento com o companheiro Saulo
Petean, já como jornalista e repórter-fotográfico da agência F-4 de
fotojornalismo, morando no Acre desde 1977, que a gente come-
çou a se entrosar mais na causa da organização dos seringueiros
para fazer frente ao jugo da escravidão e exploração impostas pe-
los patrões e a voracidade do capitalismo em destruir a Amazônia,
através do trabalho que fizemos juntos como correspondentes e
distribuidores do extinto semanário Movimento da imprensa al-
ternativa da década de 70. Se, por um lado, nós já tínhamos al-
gum nível de informação sobre a nossa região, ele foi ampliado a
partir dos levantamentos feitos pela equipe de Movimento sobre
a Amazônia, da qual a F-4 fazia parte e nós também, que come-
çamos a amadurecer mais essa luta do dia-a-dia e adquirir mais
conhecimentos.16

TENTATIVA DE “POPULARIZAR”
Logo depois do fim da censura, com o aumento das vendas, o jornal pode
contratar reforços: Hamilton Almeida Filho (HAF), Mylton Severiano e Sér-
gio Fujiwara, profissionais experimentados. O jornal mudou de cara, causou
polêmica e agradou uns, desagradou outros. A disposição inicial era que fos-
sem aprimorar sua forma, com mudança de títulos, paginação, texto. Assim,
Myltainho voltou a trabalhar ali, dessa vez de maneira fixa, como redator.

16 Arquivo pessoal de Saulo Petean.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Diz Sérgio Fujiwara:


Não tínhamos um projeto gráfico exatamente. Mudamos as fon-
tes dos títulos, passamos a valorizar as imagens e a edição final
principalmente. A páginas eram pensadas e trabalhadas em fun-
ção do conteúdo editorial, com a participação direta dos editores
de fechamento. Trabalhávamos muito na concepção de primeira
página do jornal.17
De acordo com Armando Sartori, essa foi a primeira tentativa “profissio-
nal” de dar um trato visual mais chamativo:
Trabalhar com um cara como Serginho, ver ele trabalhar e resol-
ver graficamente as coisas é um puta privilégio, é um senhor pro-
fissional, você vê como é que o cara faz, como ele pensa, começa
a resolver os problemas, você vai aprendendo.
Logo a influência se estenderia ao conteúdo, tornando o jornal mais im-
pactante, mais “popular”. “Penso que conseguimos o objetivo, as capas eram
vistosas nas bancas, mas como todo jornal em banca, o que vende não é só o
visual. As manchetes e as pautas eram muito boas”, comenta o editor de arte.
A primeira edição em que Sérgio Fujiwara aparece no expediente é a 168,
de 15 de setembro de 1978. A manchete da capa era “Escândalo no Planalto”,
denúncia de corrupção nos altos postos do governo. A edição 171, cuja
manchete foi “Geisel num mar de lama”, iria custar um processo a Tonico
Ferreira, diretor responsável. Nessa capa havia mais impacto: a metade in-
ferior dela estampava uma foto de HAF pendurado num pau de arara, para
mostrar como era esse instrumento de tortura.
Sérgio Fujiwara puxa pela memória:
A ideia pintou das conversas na redação, nos bares. Era sim-
ples: como é esse tal pau de arara, todo mundo fala, mas nunca
ninguém mostrou, a imprensa nunca deu uma foto. Por que a
gente não faz uma produção e fotografa? Quem? O HAF disse:
“é melhor que seja um repórter, pra ele descrever o que acon-
tece”. Bem, o melhor repórter que tínhamos era ele mesmo. E
assim foi feito. Marcamos o dia, ou melhor, a noite de seção de
pau de arara, ali mesmo na redação. Precisamos de uma barra
de ferro, cordas, dois cavaletes. Quem vai pendurar o repórter?
Já que é pra ser feito é melhor que sejam os amigos. Bem, nesse
dia eu e Myltainho penduramos o nosso amigo no pau de arara
e outro amigo, Amâncio Chiodi, fotografou. A Mônica Teixeira
também participou da cena. A seção foi bastante rápida, a vítima
não aguentou muito.
Foram cinco minutos, contados no relógio.
Seguiu-se uma sucessão de reportagens de impacto, como a da investigação
do sequestro de dois exilados uruguaios em Porto Alegre. A manchete de capa
da edição 186, de 22 a 28 de janeiro de 1979, era “Sequestro: descobrimos
17 Entrevista de Sérgio Fujiwara em 18 de julho de 2010.

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A luta continua

tudo!”. A matéria vinha assinada por HAF e Myltainho. Foi criticada pelos
exageros, a começar pelo fato de que não haviam descoberto tudo. Membros
da equipe, aliados e leitores, que já vinham reclamando dos excessos “sensa-
cionalistas”, tornaram-se ainda mais críticos. O argumento de defesa era de
que essa linha de matérias deveria promover o aumento das vendas do jornal.
Mas nem isso vinha ocorrendo, as vendas haviam voltado a cair.
Armando Sartori resume o sentimento de boa parte dos integrantes do jor-
nal. “No caso do pau de arara, de alguma maneira, acho até que é uma coisa
que valia a pena, é um tipo de escândalo que se justifica porque é uma de-
núncia muito clara”, diz ele, o primeiro cotado para subir no pau de arara.
“Mas aí, entra uma fase, que os escândalos do governo Geisel começam a
minguar, porque aquela dissidência militar vai se acertando”.
Para ele,
havia ali também um outro tipo de visão gráfica sobre o jornal,
era uma coisa mais escancarada, era diferente de Movimento. O
jornal era muito mais contido do que isso aí. Mas ficou uma coisa
mais parecida com o (jornal) Ex. E aí junta não só a parte gráfica
como a parte do texto para provocar as discussões. Era uma coisa
diferente do que o Movimento fazia.
O nome de Sérgio Fujiwara já não apareceu no expediente na edição 193,
de 4 a 11 de março de 1979. No fim de fevereiro, os três profissionais ha-
viam deixado a equipe, depois de 5 meses e meio de colaboração. Raimundo
Pereira lembra de HAF atravessando a rua, dizendo em voz alta: “não quero
saber de Gruex, Gumex, sei lá!...”18

18 Gruex: Grupo Executivo, que dirigia o jornal. Entrevista de Raimundo Pereira, citada.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição 226 de 29, outubro de 1979.


Desenho de Jayme Leão

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14
O sobe e desce
das finanças

E
m maio de 1977, depois de quatro meses com balancetes po-
sitivos, o jornal voltou ao vermelho, apresentando prejuízo de
quase 100 mil cruzeiros. O problema se agravou nos quatro me-
ses seguintes e, em setembro de 1977, o capital disponível –
que era de 250 mil cruzeiros em 30 de abril – estava novamente
negativo: menos Cr$ 194.423,20 segundo as anotações de Raimundo.1 O
“racha” havia repercutido nas contas do jornal.
No balanço geral de 1977, as vendas em banca caíram de uma média
de 10.244 exemplares por edição (1976) para cerca de 7 mil, atingindo
apenas 4.525 em setembro com a apreensão da edição 116 com a capa
“Constituinte com Liberdade e Anistia” . E permaneceram abaixo dos 5
mil exemplares até o fim da censura prévia, em junho de 1978. A venda
das assinaturas também caiu de uma média mensal de 1.000 no primei-
ro quadrimestre de 1977 para 738 no segundo, subindo ligeiramente no
terceiro trimestre, para 752 assinaturas vendidas. Com isso, o ano fechou
com um capital disponível negativo de 400 mil cruzeiros, atingindo o re-
corde negativo em fevereiro de 1978: menos 600 mil cruzeiros!2
Ainda assim, novamente Movimento resistiu. A explicação? Mais uma
vez a esferográfica de Raimundo aparece sob a curva que mostra a queda
de vendas entre maio de 1977 e junho de 1978: “sustentação política gran-
de! Mobilização”. O que abrangia diversos aspectos – do aprofundamento
da democracia interna, reforçando os laços dos que ficaram no jornal ,
inclusive dos acionistas, que, por sua vez, novamente aprovaram um au-
mento de capital de Edição S/A,3 à busca do apoio externo entre as forças
políticas que compreendiam Movimento como instrumento no enfrenta-
mento à ditadura.
1 Evolução do disponível – manuscrito de Raimundo Pereira – Arquivo Pessoal. Valor atualizado:
R$155.395,00.
2 Em valor atualizado: R$ 426.400,00.
3 ISM – Caderno de atas. Foi aprovado um aumento de capital de Edição S/A de 1,3 milhão para 2
milhões de cruzeiros na Assembleia Geral Extraordinária de 29 de outubro de 1977 e homologado
um mês depois em nova assembleia extraordinária de acionistas.

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Jornal Movimento, uma reportagem

A participação dos editores de Movimento em palestras e debates por


vários estados resultava em novos colaboradores e leitores, além de ser-
vir para denunciar a censura a que o jornal estava sujeito. Entre outras
iniciativas surgiu a ideia de realizar um grande show musical para arre-
cadar fundos. Chico Buarque, com sua sempre presente solidariedade e
prontidão, e que jamais recusou apoiar o jornal e receber com manifesta-
ções de amizade o seu pessoal, atendeu a um pedido de Raimundo. Não
só aceitou participar, como conseguiu reunir os artistas populares mais
expressivos do País, como Elis Regina, João Bosco, Fafá de Belém, César
Camargo Mariano, Gonzaguinha, Macalé, Ivan Lins, entre outros. O show
aconteceu no ginásio do Corinthians em São Paulo. Realizado em 13 de
dezembro de 1977, nono aniversário do AI-5, o espetáculo “Somos todos
iguais esta noite” foi apresentado como uma manifestação “em apoio a
Sombras (associação de músicos) e à imprensa independente”.4 A coorde-
nação era de Fernando Peixoto, editor de Cultura do jornal, e a produção
da Difusão, a empresa promotora de espetáculos de Sergio Motta. O show
trouxe grande emoção para o público, mas rendeu pouco dinheiro, pelo
menos é o que lembra Tonico Ferreira:
O Raimundo falou com o Chico Buarque, e o Chico armou
uma reunião para chamar os artistas. Aí, tudo foi organizado
pelo Serjão – porque a gente não tinha tempo, estava fechando
o jornal – ele alugou o ginásio, fez os bilhetes, a venda de bi-
lhete, o anúncio no jornal, tinha anúncio na rádio, organizou
o palco, a luz, o som... tudo isso foi o Serjão que arrumou, a
turma dele. E deu prejuízo. Aí, ele comeu o prejuízo, eu acho.
O Serjão acho que engoliu o prejuízo.5
A injeção de apoio e capital, no entanto, resolvia apenas a situação ime-
diata. Felizmente, para todos, 1978 acabaria sendo um ano muito melhor.
Em março a queda das vendas em bancas e assinaturas começou a ser
superada, tendência que se ampliaria com o fim de quase três anos de
censura prévia.
Se a censura prévia não tivesse sido retirada do jornal em junho de 1978,
interrompendo a queda das vendas e aliviando a exaustão dos seus in-
tegrantes – à aquela altura com salários atrasados e uma média de doze
horas de trabalho por dia –, provavelmente a história de Movimento teria
acabado ali.6
O gráfico desenhado por Raimundo mostra o crescimento contínuo das
vendas em banca de junho de 1978 ao início de 1979, com um salto inicial
de 5 mil para 10 mil exemplares em julho/agosto e uma curva ainda mais
acentuada depois – quando Raimundo anota “sustentação comercial”, sina-
lizando que finalmente o jornal atingira o ponto de equilíbrio, perseguido

4 Movimento 129, 19 de dezembro de 1977.


5 Entrevista de Antonio Carlos (Tonico) Ferreira em 22 de outubro de 2009.
6 AP 286.02.02. Ata de 5 de abril de 1978 – Fnd Mov APSP.

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O sobe e desce das f inanças

desde seu lançamento. Foi também nesse momento que Movimento – Sergio
Motta com ênfase – se engajou na campanha de seu colaborador, Fernando
Henrique Cardoso, que concorria por uma sublegenda do PMDB ao Senado.
Em outubro de 1978, as vendas subiram para 15 mil exemplares, alcançando
o patamar dos 20 mil exemplares no início de 1979, marca que só havia sido
atingida uma única vez na história de Movimento, na primeira edição.
Embora essa evolução nas vendas tenha garantido a sobrevida do jornal,
do ponto de vista financeiro a situação ainda estava longe de ser confortá-
vel, por três motivos: primeiro, a venda de assinaturas e as vendas diretas
não acompanharam a alta nas bancas, permanecendo estáveis; segundo, o
prejuízo acumulado entre fevereiro e junho de 1978 era maior do que a re-
cuperação econômica representada pelas vendas: as dívidas com bancos e
fornecedores, além dos salários atrasados em setembro, ainda superavam
as receitas acumuladas, como escreveu Motta na “Avaliação da execução
financeira de abril a setembro de 1978”:
Sob o ponto de vista econômico, somente começamos a ope-
rar no equilíbrio a partir de julho, com o aumento significativo
das receitas de vendas em banca; entretanto, esse aumento foi
absorvido pelo permanente estouro da despesa em todo o pe-
ríodo; assim, na execução financeira de 78, temos um prejuízo
acumulado de Cr$ 537.502,49, (R$306.000,00)7 o que explica
não só as dificuldades de caixa como o fato dos recursos que
entraram em integralização de capital não terem melhorado a
posição do disponível negativo”.8
O terceiro motivo foi a pressão para aumentar os salários – que desde
julho de 1975 perdiam valor real todo mês – bem como para aumentar o
investimento na qualidade do jornal.
Na comunicação do Gruex (Grupo Executivo do Conselho de Direção)
aos membros da Sociedade dos Colaboradores, de 29 de setembro de 1978,
propõe-se uma elevação de mais de 100% no teto salarial para os editores,
subeditores e chefes de departamentos de 6 mil cruzeiros (R$ 3.400,00)
para 15 mil cruzeiros (R$ 8.500,00), além de aumentos significativos para
repórteres e correspondentes (os funcionários que recebiam menores salá-
rios haviam sido poupados da deterioração salarial e, portanto, ganhariam
apenas a reposição da inflação). Também se sugeria contratações de pes-
soal para a redação e departamento de vendas e um reajuste do preço do
jornal de 33%, para cobrir a inflação.
A previsão orçamentária para outubro e novembro já levava em conta
esses aumentos – embora em escala menor do que o pretendido –, mas,
ainda assim, o Balanço de Edição S/A para outubro e novembro de 1978
abria com a informação: “Nós gastamos muito mais do que havíamos pre-
visto para nossas despesas operacionais. No bimestre, gastamos 300 mil
cruzeiros (R$ 162.000,00) a mais do que fixamos em outubro”. O interes-

7 Atualização pelo IGP-DI FGV.


8 ISM – Avaliação de Execução financeira de abril a setembro de 1978.

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Jornal Movimento, uma reportagem

sante é que boa parte dessa despesa se deu em função do salto de venda
em bancas, o que obrigou aumentar também a tiragem: “só nesse item,
gastamos no bimestre 160 mil cruzeiros a mais do que o previsto”. “Por
outro lado”, assinala o mesmo balanço, “o desempenho das receitas bási-
cas no bimestre foi melhor do que o previsto: vendemos 290 mil cruzeiros
a mais do que fixamos em outubro. Esse superávit deveu-se somente ao
aumento das vendas em banca, que superou as metas de 365 mil cruzeiros
(R$ 200.000,00), pois a venda de assinaturas ficou 74 mil cruzeiros abaixo
da meta e a venda direta ficou Cr$ 1 mil abaixo”.9
O comentário a seguir mostra também que, mesmo sem censura prévia,
Movimento continuava a perder dinheiro com apreensão de edições: “O
desempenho de venda em banca poderia ter sido bem melhor ainda se a
edição 177 não tivesse sido apreendida; somando a receita provável dessa
edição, nós poderíamos ter tido um superávit de 555 mil cruzeiros (R$
300.000,00) nas bancas”. Prejuízo que pretendiam recuperar com a venda
de bônus realizada para compensar a apreensão da edição 177, e que só
seria computado no mês de dezembro: “O resultado da venda de bônus
foi muito bom (…); o Paulo, que coordenou muito bem essa operação,
apresenta o total arrecadado: 140 mil cruzeiros”. Ainda assim, não havia
motivo para comemorar: “Esses números confirmam que no bimestre nem
ganhamos, nem perdemos. Isso é ruim, porque indica que, apesar dos sig-
nificativos aumentos na venda em banca, nós não conseguimos diminuir
o disponível negativo. Permanece, assim, a empresa em precária situação
financeira”, concluiu Tonico, que assinou o balanço com data de 15 de
dezembro de 1978.
Mas as vendas em bancas continuavam a crescer, e, com as despesas
controladas, o balancete de janeiro de 1979 apresentou lucro de Cr$
180.533,75. Se isso estava longe de cobrir o disponível negativo de 650
mil cruzeiros (R$ 341.000,00), acumulado até o final de 1978, era o su-
ficiente para prever um cenário alentador no restante do ano, que seria
animado pelas greves que se espalhavam pelo País e pela pressão popular
por liberdades democráticas, culminando com a promulgação da Lei da
Anistia, em agosto de 1979.
A situação econômica de Movimento, porém, era, como sempre, crítica.
As vendas em banca, que voltaram a cair em março, estavam novamente
no patamar dos 10 mil exemplares, provocando uma queda de receita
que novamente poria o jornal em risco. Apesar de inúmeras tentativas de
reverter esse quadro, incluindo a busca por financiamento de fundações
estrangeiras e novas chamadas de capital, Movimento fecharia 1979 com
um endividamento de mais de 2 milhões e meio de cruzeiros, algo como
785 mil reais em 2011.

9 ISM - Balanço de Edição S/A de 1978.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição especial “Constituinte”, agosto de 1977

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A campanha
pela constituinte

A
pós o “racha” de abril de 1977, ficou mais fácil direcionar
a pauta do jornal para ampliar a divulgação da bandeira da
Assembleia Constituinte. A necessidade de sua convocação
tinha uma história e era apoiada por muitas forças.
Depois do golpe militar de 1964, a primeira referência a
favor da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte havia
sido feita em 1966, pelo PCdoB, em documento do Comitê Central.1 Em
1967, na declaração do seu Sexto Congresso, o PCB também propôs uma
Assembleia Constituinte. Em 1971, numa reunião em Recife, os “autên-
ticos” do MDB encamparam uma proposta dos deputados Chico Pinto
e Jarbas Vasconcelos pela Constituinte, que acabou aprovada apesar da
resistência da cúpula do partido. A “Carta do Recife” foi em seguida tor-
nada pública em discurso do deputado Freitas Nobre na Câmara Federal,
propondo, pela primeira vez, legalmente, a Constituinte. Essa proposta
ficou esquecida num canto do programa do MDB apresentado ao público
nas eleições de 1974. Mas após o golpe contra o Congresso representado
pelo Pacote de Abril de 1977, a cúpula do MDB aceitou debater o tema
com suas bases. O próprio Tancredo Neves, um dos mais conservadores
dirigentes do MDB, quando Geisel decretou o recesso do Congresso, ad-
mitiu que não via outra saída para o partido “senão abraçar a bandeira da
Constituinte”.2
No jornal Movimento o tema da Constituinte apareceu pela primeira vez
na edição de nº 25, de 22 de dezembro de 1975, num Ensaio Popular in-
titulado: “A Constituinte é uma posição justa? Viável? Agora? Quando?”
Não era ainda uma proposta de ação, mas de um debate. Durante todo o
ano de 1976, o jornal praticamente não abordou o tema, provavelmente
porque naquele período não havia unidade na equipe para isso.

1 “União dos Brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça colonialista”, PCdoB, 1966.
2 “O MDB e a Constituinte”, artigo de Francisco Pinto e Teodomiro Braga no Caderno Especial da
Constituinte, agosto de 1977.

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Jornal Movimento, uma reportagem

A edição 83, em 31 de janeiro de 1977, trouxe uma entrevista do jurista


liberal Aliomar Baleeiro, ex-membro do Supremo Tribunal Federal, que
apoiara o golpe de 1964, mas havia se desencantado com o regime militar:
“Seria bom convocar uma Constituinte”, era o título da matéria em que
ele defendia também a revogação da legislação de exceção. Na edição se-
guinte, o jornal publicou um longo artigo sobre os 30 anos da Constituinte
de 1946.
Na edição 95, de 25 de abril de 1977, vésperas da reunião que levaria
ao “racha”, o jornal noticiava que, na reunião da Executiva do MDB, em
Brasília, “pela primeira vez em sua história, a direção do partido admi-
tia ‘em documento, abraçar a luta pela convocação de uma Assembléia
Nacional Constituinte, como saída para o atual impasse institucional’”.
Dizia ainda: “Segundo a nota oficial distribuída após a reunião, o MDB
deverá ‘consultar as bases partidárias e outras forças representativas da
sociedade nacional’” para a deflagração da campanha com esse propósito.
Em seguida, o jornal deu início a uma longa série de reportagens, artigos,
entrevistas sobre a Constituinte, que se estenderia por 39 matérias, publi-
cadas em sequência, no intervalo das 50 edições seguintes, isto é, ao longo
de um ano, até a edição de nº 145, de 10 de abril de 1978.
Em agosto de 1977, também foi lançado por Edição S/A, a editora do jor-
nal, um caderno especial, intitulado “Constituinte”, com 40 páginas, reche-
ado de depoimentos e artigos de 25 representantes da oposição, intelectu-
ais, deputados, jornalistas, religiosos e estudantes. Nomes como Aliomar
Baleeiro, Jorge Amado, Fernando Henrique Cardoso, Mario Schemberg,
Marilena Chauí, dom Angélico Bernardino, Therezinha Zerbini, Pedro
Simon, Jarbas Vasconcelos, Octavio Ianni, Florestan Fernandes e outros.
Esse caderno, que teve várias impressões e alcançou tiragem de 40 mil
exemplares, era vendido separadamente do jornal por todo o País, reper-
cutiu e deu bom resultado financeiro. Por ser vendido em separado, pôde
escapar da censura. E serviu de instrumento de divulgação da campanha
pela Constituinte que o jornal apoiava.
O tema da Constituinte chegou à grande imprensa e ao Congresso, pro-
vocando debates acalorados, como o do senador Marcos Freire com diri-
gentes da Arena, em abril de 1977.3 E logo foi assumido pela Ordem dos
Advogados do Brasil, OAB, então presidida por Raymundo Faoro. Em 11
de agosto de 1977, era lançada a “Carta aos Brasileiros”, redigida e enca-
beçada pelo professor Goffredo da Silva Telles e assinada por centenas
de personalidades dos meios jurídicos e acadêmicos do País. A carta, que
encontrou grande repercussão, advogava, entre outros, “o direito de ter
um Poder Executivo limitado pelas normas da Constituição soberana ela-
borada pela Assembleia Nacional Constituinte”. Um mês depois, 14 de se-
tembro de 1977, a primeira grande vitória da campanha: a convenção na-
cional do MDB, sob forte pressão de inúmeros diretórios regionais, consa-
3 Movimento 95, 25 de abril de 1977.

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A campanha pela constituinte

grava a Constituinte como sua principal bandeira para a democratização.


A edição 116, de 19 de setembro de 1977, trazia um título que ocupava a
capa inteira: “Constituinte com liberdade e anistia” e uma grande matéria
que registrava a convenção, divulgava a nota oficial e historiava a luta por
essas bandeiras dentro do MDB. Destacava o pioneirismo de Chico Pinto
e Jarbas Vasconcelos, e o resultado como “vitória da obstinação” dos dois.
Mas o público jamais iria conhecer essa edição. O jornal foi apreendido,
como já mostramos no capítulo sobre a censura.

PROPAGANDISTAS
Raimundo Pereira, Marcos Gomes, Sérgio Buarque de Gusmão e Tonico Fer-
reira estavam entre os diversos jornalistas de Movimento que se tornaram
divulgadores da Constituinte. Em campanha aberta, eles realizaram centenas
de palestras nesse período, a convite de faculdades, diretórios estudantis,
centros de debate populares, viajando por todo o País. Mesmo quem saiu do
jornal, mas não discordava da tese, como João Batista dos Mares Guia, da su-
cursal de Belo Horizonte, também refere que se tornou um conferencista da
Constituinte, fez inúmeras palestras em viagens por Minas Gerais.
Tonico Ferreira se refere a esse ativismo da equipe:
E tinha outra coisa muito interessante, também: nós nos me-
temos em todos os debates que você pode imaginar, na época.
Tudo tinha... Eu conheci o Brasil, porque eu debati no Brasil in-
teiro. (...) Anistia, Constituinte, todos os temas polêmicos... se a
anistia era restrita ou não, recíproca ou não; Se era a Constituinte
assim ou assado, se não era Constituinte, tudo isso era debate...
E, como já estava começando a surgir um certo movimento estu-
dantil (...) Então, como é que você fazia política naquela época?
O cara convidava: “vamos fazer um debate”. Então, sempre tinha:
“Vamos chamar alguém do jornal Movimento”, o Raimundo ia,
mas, quando ele não ia, ia eu...
Embora as vendas do jornal não estivessem indo bem entre o segundo se-
mestre de 1977 e o começo de 1978, o prestígio de Movimento entre os vários
setores da oposição era crescente. O jornal e seus integrantes eram respei-
tados nos meios oposicionistas e insistentemente procurados para debates.
Raimundo Pereira lembra que a campanha da Constituinte foi muito bem
recebida porque estava afinada com vários setores da sociedade:
Era o programa do grupo Autêntico, também. A questão
da Constituinte, que está por trás disso... O que é a ideia da
Constituinte? A gente precisa desmantelar os atos de exceção,
anistiar e formar uma assembleia, pra discutir o País, reformar
o País. Isso é que pode juntar todo mundo, né? E isso tinha
já discussão em 1972, já rolando uma oposição; não era uma
novidade. Então, é, tipo assim, propor isso ao Chico Pinto é
juntar o queijo com o macarrão. (...) E o Alencar Furtado, (que
foi para) o Conselho Editorial”.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Tonico ainda se diverte com as situações inesperadas que encontravam


nas viagens:
Pagavam as passagens. A gente ficava na casa de alguém que...
do cara que vendia o jornal, né? Tinha um cara interessante, na
Bahia, o Crisóstomo (...) (Ele era) duro, tão duro, que quando eu
cheguei lá em Salvador, ele foi me levar na casa dele, era num
bairro de periferia, quando nós chegamos, era uma casa total-
mente destruída, ainda tinha um bêbado na frente, tivemos que
afastar o bêbado para entrar... era umas coisas assim inacredi-
táveis, mas eu adorava isso, essa era uma parte boa, eu adorava
fazer parte disso.
A mudança de posição do grande empresariado frente ao regime já não
parecia fantasia de “analistas equivocados”, como havia escrito o eco-
nomista Guido Mantega poucos meses antes. A Folha de S.Paulo passa-
va a dar destaque a artigos de Luis Carlos Bresser Pereira, professor de
Economia da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getulio
Vargas (FGV). O economista falava em nome pessoal, mas era diretor dos
Supermercados Pão de Açúcar, uma empresa da grande burguesia, e iria
repisar a tese da democratização. Por exemplo, em 5 de julho de 1977, no
texto “Do que ter medo”, ele dizia:
A partir do momento em que, para a grande maioria da burgue-
sia brasileira, a aliança com a tecnoburocracia estatal em torno
de uma proposta autoritária de governo deixou de ser política e
economicamente justificada, acelerou-se o processo de perda de
legitimidade do sistema vigente. Para a classe empresarial torna-se
hoje cada vez mais urgente a restauração de um sistema democrá-
tico, em que se institucionalizem os sistemas de acesso ao poder e
de tomada de decisão (...) Não é difícil, portanto, prever que essa
classe, que não apenas detém o poder econômico, mas também a
hegemonia ideológica, tenda a se unir às demais forças democrá-
ticas do país para reconduzi-lo ao estado de direito (...) Há muitas
propostas e especulações a respeito, entre as quais a convocação
de uma Constituinte parece a única em princípio aceitável...”4
Pouco depois, Marcilio Marques Moreira, banqueiro, vice-presidente do
Unibanco e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj),
dava entrevista:
A democracia não é um objetivo longínquo e diáfano que so-
mente poderá ser alcançado depois de preenchidos requisitos
econômicos e sociais, ao contrário, é caminho que tem de ser
trilhado, desde agora, pois é na prática que se constrói dia a
dia o regime democrático.5
E a IV Conferência da Conclap – das chamadas Classes Produtoras, reu-
nindo a nata do grande e médio empresariado, realizada em São Paulo em
4 Folha de S.Paulo, 5 de julho de 1977, pág. 3, Seção Tendências e Debates.
5 O Estado de S. Paulo, 30 de outubro de 1977, pág. 4.

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A campanha pela constituinte

setembro de 1977, também invocou a necessidade de liberdades democrá-


ticas para a retomada do desenvolvimento.
No mesmo ano, o movimento estudantil se reorganizava e reerguia a
UNE e as entidades estaduais. No meio operário, os metalúrgicos do ABC
se levantavam contra a política de arrocho salarial, acompanhados por
outros trabalhadores.

GEISEL DERRUBA FROTA


Esse despertar para o debate político crescia, não por coincidência, enquanto
se avolumavam os sinais de dificuldades internas do regime militar. No se-
gundo semestre de 1977, o governo de Geisel se via envolvido em conspira-
ções que debilitavam suas bases. Dizia-se que os militares estariam divididos
em três tendências: os defensores do endurecimento do regime e da candida-
tura do general Sylvio Frota à presidência; os seguidores de Geisel, defenso-
res de uma institucionalização do regime com algumas concessões quanto às
leis de exceção, defensores da candidatura do general Figueiredo. E um ter-
ceiro grupo, que se dizia nacionalista e pró-democratização, à procura de um
candidato e, talvez, de uma aliança com setores civis. O senador Magalhães
Pinto insinuava sua candidatura à Presidência. Documento apócrifo circu-
lara no gabinete presidencial referindo-se às divergências no Alto Comando
do Exército: (...) “Há comentários generalizados de que o noticiário feito pela
imprensa, atingindo a oficialidade e mesmo os sargentos, poderá levar a um
divisionismo das Forças Armadas, em particular no seio do Exército.”6 O que
estava em questão era a sucessão presidencial. Parte da caserna não aceitava
Figueiredo, e Frota tentava se impor como alternativa.
A censura impediu que o jornal Movimento retratasse em suas páginas
essa evolução dos acontecimentos, mas sua equipe acompanhou de perto
os desdobramentos, notadamente Chico Pinto e Teodomiro Braga. Ainda
em 5 de setembro, na edição 114, Teodomiro, num jogo sutil de nega-
ças com o censor, repetia a velha frase de que “há mais coisas no ar do
que os aviões de carreira”, para falar da iminência de um golpe. Citava
as três candidaturas, de Frota, Figueiredo e Magalhães Pinto para afinal
apresentar o que chamou de “saídas mais arrojadas, como deixou claro o
deputado mineiro Sinval Boaventura: ‘Continuo preocupado, receoso do
que venhamos a ter de pagar, para manter o Brasil no rumo certo, preço
desnecessariamente elevado’”. Sinval era o porta-voz da extrema direita e
do frotismo no Congresso. Estava anunciando o golpe.
Um mês depois, em 12 de outubro, por meio de ação fulminante, arti-
culada com um dispositivo militar montado pelo general Hugo Abreu,
chefe da Casa Militar, Geisel trouxe para o lado do governo ou imobilizou
os principais comandantes do Exército. O presidente, adiantando-se ao
golpe de Frota, o demitiu.

6 Do arquivo do General Golbery, citado em A ditadura encurralada, de Elio Gaspari.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Em um longo documento dirigido a seus ex-comandados, e publicado


na íntegra na grande imprensa, Frota exibiu seu inconformismo. Mas so-
bretudo expôs suas ideias, um pensamento político retrógrado, raramen-
te visto em letras de forma, e que coincidia com os textos dos panfletos
anônimos dos grupos terroristas das Forças Armadas. Num exemplo de
irrealismo delirante, assim retratava o governo Geisel: “Já implantaram
o capitalismo de Estado, que é o tirano da economia; a continuarmos as-
sim, virá mais breve do que muitos esperam, o comunismo – o tirano das
liberdades”.7
Com mais de 50 anos de participação em golpes militares, o general
Geisel pusera em prática sua larga experiência e venceu. Mas os alicerces
do regime, tanto no plano civil como no militar, estavam irremediavel-
mente trincados. A equipe do jornal ainda aproveitou a crise para ampliar
contatos e conquistou preciosas fontes de informação entre os militares. O
que seria de grande valia nos episódios seguintes da luta política a partir
de junho de 1978, quando a censura prévia sobre o jornal seria suspensa.
Como balanço desse período ressalta o grande impulso que Movimento
dera ao tema da Constituinte, em matérias e debates, apontando a saída
possível para a democratização. Mas, como dissemos, a Constituinte não
era consenso dentro da oposição popular. E um dos que não apoiava tinha
muito futuro. Na edição 123, de 7 de novembro de 1977, o jornal publi-
cava uma entrevista de Luiz Inácio da Silva, o Lula, então presidente do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, a mais promisso-
ra nova liderança operária:
...tenho me manifestado meio contrário à Constituinte (...) já exis-
tiram três constituintes no Brasil. E a classe trabalhadora sempre
ficou do mesmo tamanho. Isso porque a Constituinte sempre é
formada pelas elites e pouquíssima gente está preocupada com a
classe trabalhadora (...) uma Constituinte de elite não tem valor
para a classe trabalhadora (...) Ela tem que impor o rumo e não im-
porem a ela esse rumo. E hoje, se abrem uma Constituinte, tenho
certeza absoluta que a classe trabalhadora não estaria preparada
para participar (...) Se depender de mim, a classe trabalhadora de
São Bernardo não será instrumento...

7 O Estado de S. Paulo, 13 de outubro de 1977 – pág. 4, “Demitido, Frota reage e acusa o governo”.
Íntegra da nota.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição 209, 2 de julho de 1979. Desenho de Jayme Leão

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A campanha
pela anistia

A
proposta da Constituinte sempre esteve associada, para mui-
tas correntes da oposição, com as da anistia. “Constituinte
com liberdade e anistia” era o grande lema oposicionista,
que defendia que a redemocratização do País só se poderia
fazer com liberdade, ou seja, com a revogação de todos os
atos e leis de exceção, a começar pelo AI-5, e com uma anistia ampla, geral
e irrestrita, para que, do processo político de convocação da Constituinte
pudessem participar todos os que tinham sido punidos pela ditadura.
Em Movimento, no entanto, o tema da anistia demorou a aparecer. Não
por descuido dos jornalistas. A luta pela anistia teve início praticamente
ao mesmo tempo em que surgia o jornal. Em março de 1975, oito mulhe-
res, reunidas ao redor de uma mesa, em um casarão do elegante bairro do
Pacaembu, em São Paulo, decidiam levantar a bandeira da anistia aos per-
seguidos pela ditadura. A reunião se deu na casa de Therezinha Zerbini,
esposa do general Euriale Zerbini, cassado e preso por ser leal ao governo
do presidente João Goulart, ela mesma também uma vítima, que passou
pelo inferno da Oban e cumpriu pena no presídio Tiradentes.
Therezinha tomou a iniciativa de lançar o Movimento Feminino pela
Anistia, coletando assinaturas de mulheres por todo o País. Ao fim de seis
meses, a campanha havia reunido 20 mil assinaturas de mulheres “insus-
peitas” – mães, religiosas, donas de casa – que afirmavam através de um
sucinto manifesto estar assumindo suas “responsabilidades de cidadãs
no quadro político nacional”. Naquele mesmo ano, Therezinha Zerbini
participaria da Conferência Mundial do Ano Internacional da Mulher, no
México, onde iria denunciar violações aos direitos humanos no Brasil. Se
a notícia não saiu nas páginas de Movimento (só escapou da censura um
breve parágrafo sobre o MFPA na edição 5), não foi porque a campanha
não interessasse aos seus leitores e jornalistas.
Estes, pelo contrário, eram em bom número candidatos à anistia. A
começar por Raimundo Pereira, que em 1965 fora expulso do ITA pela
sua participação em uma publicação “subversiva”. Até meados de 1979,

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Jornal Movimento, uma reportagem

quando foi promulgada a lei da anistia, Tonico Ferreira ainda respondia a


processo com base na Lei de Segurança Nacional pela denúncia do “mar
de lama” durante o governo Geisel – o processo só foi extinto depois da
anistia. Duarte Pereira, que escrevia os Ensaios Populares, estava, ainda,
na clandestinidade. Era a mesma situação de Carlos Azevedo, coautor
deste livro, obrigado a escrever sob os pseudônimos de Tiago Santiago e
Pedro Ferro. O colunista Chico Pinto, chefe da sucursal de Movimento em
Brasília, tivera seus direitos políticos cassados e perdera o mandato de de-
putado federal do MDB em 1974, assim como o deputado federal Alencar
Furtado, membro do Conselho Editorial do jornal – esse, em 1977.
Contudo, cobrir a campanha da anistia significava escrever sobre direi-
tos humanos, tema terminantemente proibido segundo as diretrizes da
censura: repressão, presos políticos, cassados, exilados. A censura vetou
matérias sobre o lançamento de comitês pela anistia, um artigo com a opi-
nião do jurista Dalmo Dallari sobre os exilados e até a opinião favorável
do general João Figueiredo sobre a anistia aos políticos cassados, quando
ele era candidato à sucessão.1 A primeira defesa da anistia, com destaque,
em Movimento, foi no caderno especial sobre a Constituinte, de 1977 (os
cadernos especiais não passavam pela censura). Um artigo de Therezinha
Zerbini defendia a anistia, afirmando que a Constituinte deveria ser pre-
cedida “de uma anistia ampla e geral a todos que foram atingidos pelos
atos de exceção”. Além dela, outros entrevistados também afirmaram que
a anistia seria um passo fundamental para a Constituinte e a redemocra-
tização, como o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Hermes Lima
e o jurista Dalmo de Abreu Dallari. Assim, aos poucos e combinada com
outros debates, a luta pela anistia foi ganhando as páginas do semanário.
No mês do “racha” do jornal, abril de 1977, acontecia em Porto Alegre
a primeira manifestação pública pró-anistia. A seguir, grupos de diversas
regiões abraçaram a causa, transformando a comemoração de 1º de maio
em um palco para levar às ruas a demanda. Os estudantes cariocas reali-
zaram uma Semana de Direitos Humanos, e diversos DCEs coordenaram
os “Dias nacionais de Protesto de Luta por Anistia”. Como no caso da
Constituinte, a anistia também passou a ser tema frequente nos debates,
geralmente organizados por estudantes, e dos quais participava a equipe
do jornal.

INTERLOCUTORES DE PESO
Em 1978, a demanda por anistia passou definitivamente a integrar a vida do
jornal, sendo até mesmo incorporada ao seu programa, que pedia “anistia
ampla, geral e irrestrita”.2 Além disso, quando as notícias sobre o assunto
na grande imprensa ainda eram esporádicas, a reboque dos acontecimentos,
Movimento adiantou a discussão, passando a ter um papel ativo ao infor-
1 Aquino, Maria Aparecida. Censura, imprensa, Estado autoritário (1968-1978). São Paulo, 1990.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP.
2 AP 286.02.02 – Fnd Mov APSP.

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A campanha pela anistia

mar e estimular o debate com entrevistas de peso, artigos de opinião e furos


noticiosos. A chamada de capa da edição de 9 de janeiro de 1978 anuncia-
va: “Anistia, o início de um debate”.3 A reportagem de Igor Fuser, de meia
página, detectava que a discussão ganhava espaço após declarações dos go-
vernadores de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, além do ministro
do Interior, Rangel Reis. A edição seguinte trazia um histórico das anistias
adotadas no passado.
Em fevereiro, quando já corria a notícia que o Ministério da Justiça es-
tava estudando a revogação do AI-5 e a reformulação da Lei de Segurança
Nacional, o semanário publicou uma contundente entrevista com
Raymundo Faoro, presidente da OAB, que chamava a lei de “draconiana”
e afirmava que reformá-la seria apenas “combater o arbítrio pelo arbítrio”.
Faoro delineou a estratégia da OAB para a abertura, com clareza. O pri-
meiro passo, dizia ele, seria revogar o artigo 185 da Constituição de 1969,
que tornava inelegíveis aqueles que tiveram seus direitos políticos sus-
pensos. “Uma vez removido tal artigo, partimos para a anistia”.4
No final de fevereiro de 1978, uma capa marcante anunciava o lançamen-
to do Comitê Brasileiro pela Anistia, no Rio. O CBA, entidade fundamental
na articulação da campanha, era formado por diversas organizações que já
defendiam a anistia como maneira de unificar e fortalecer a luta. A capa de
Movimento parecia exprimir esse mesmo esforço, ainda inicial: uma ilustra-
ção de duas mãos abrindo uma cerca de arame farpado.5 O evento de lan-
çamento do CBA inaugurava uma das polêmicas que iria merecer especial
atenção do jornal. No seu discurso, o general Pery Bevilacqua, atingido pelo
AI-5 quando era ministro da Justiça Militar, afirmava que
somente a anistia poderá conduzir ao restabelecimento da uni-
dade moral do povo brasileiro, hoje dividido em revolucio-
nários e não-revolucionários, vencedores e vencidos (...) Para
haver equidade, a anistia deverá abranger todos os crimes po-
líticos praticados por elementos de ambos os lados.
Em 3 de abril, quando chegou às bancas a edição 144, o leitor encontrou
um editorial na segunda página, sob o título “Anistia Recíproca?”. O texto
era categórico. Afirmava que a fala do general Pery Bevilacqua acendeu
um debate que podia se constituir numa fonte de divisão entre os defen-
sores da anistia. O jornal opinava, citando a advogada Eny Raymundo
Moreira, presidente do CBA, que “não podemos falar em anistia para os
acusados de práticas de torturas, porque tais crimes nunca foram punidos
e não se pode anistiar quem não chegou a ser punido”. E concluía o jornal:
“O objetivo da anistia não é o revanchismo, o que não significa devam ser
esquecidos os atentados perpetrados contra os direitos humanos. Depois
de apurados, se poderá decidir como proceder diante deles”.6
3 Movimento 132, 9 de janeiro de 1978.
4 Movimento 136, 6 de fevereiro de 1978.
5 Movimento 138, 20 de fevereiro de 1978.
6 Trinta e dois anos depois, essa questão ainda seria motivo de polêmica, uma reivindicação
democrática que o Estado brasileiro se recusava a atender, mesmo confrontando a Constituição,

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Jornal Movimento, uma reportagem

Desde abril de 1976, a viúva do jornalista Vladimir Herzog, Clarice, plei-


teava na justiça o reconhecimento da responsabilidade da União pela sua
morte; era a primeira vez que isso ocorria na ditadura. O desenrolar do
processo foi acompanhado pelo semanário, como pôde. Para uma publi-
cação que não pudera dar uma linha sequer à época da morte de Herzog,
foi possível dar cobertura aos novos fatos, e o jornal teve mais liberda-
de para noticiar a partir de maio de 1978 (quando os interrogadores de
Herzog não compareceram perante o juiz para prestar depoimento). Isso
prenunciava que a censura estava com seus dias contados.
O teor dos testemunhos levantados por Movimento era dramático. Na
edição 151, a segunda página era tomada por um relato do jornalista George
Duque Estrada sobre o que presenciou no DOI-Codi enquanto Herzog era
torturado na cela ao lado. Ele viu, entre outras coisas, uma cadeira de dra-
gão, um açoite e outros instrumentos de tortura, e ouviu gritos, ofensas e
sons de agressões. Poucos meses depois, em uma reportagem no semaná-
rio, o jurista Goffredo da Silva Telles chamaria o caso Herzog de “escanda-
loso”. O governo seria condenado oficialmente em outubro de 1978, uma
decisão celebrada nos meios de oposição e nas páginas do jornal.

DIREITOS HUMANOS
Essa condenação representou um avanço até então impensável na luta pelos
direitos humanos e pela responsabilização do regime. Pela primeira vez o go-
verno era chamado à Justiça comum para prestar esclarecimentos sobre uma
morte ocorrida nos seus aparelhos de repressão. A partir de então, o jornal
iniciava uma série de reportagens de denúncia que seria ampliada com o fim
da censura, em junho de 1978.
Movimento podia, a partir de então, relatar o que se passava nos porões
da ditadura e também a rotina de qualquer um que se opusesse ao regime.
Essas reportagens deram um fôlego importante para o debate da anistia e
da redemocratização. O jornal não perdeu tempo.
A edição 155, a primeira totalmente planejada sem censura, tinha na
capa um retrato falado do “Capitão Ubirajara”7, sob a manchete “Retrato
de um torturador”. Descrevia, através de relatos anônimos, diversas ses-
sões de tortura lideradas pelo capitão e mostrava pela primeira vez a foto
de Vladimir Herzog “enforcado” na cela do DOI-Codi. Na mesma linha,
a edição 157 trazia uma reportagem sobre as vítimas da invasão da PUC,
mostrando dramáticas fotos de três estudantes atingidas por bombas e que
tiveram parte de seus corpos queimados.
As edições posteriores continuaram na mesma batida. A 164, por exem-
plo, narrava o caso do comerciário Jerônimo de Souza, de Fortaleza, que
também fora “suicidado” no DOI-Codi e cuja esposa decidira buscar na

sentenças judiciais definitivas, sem mais recurso a apelação, e as recomendações das cortes
internacionais da ONU e da OEA de defesa dos direitos humanos.
7 Apelido de um policial de São Paulo, anos mais tarde identificado como Aparecido Santos
Calandra, um dos acusados pelo assassinato de Vladimir Herzog.

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A campanha pela anistia

Justiça a responsabilização do Estado. Outra matéria contava como o líder


camponês José Porfírio, herói da luta de Trombas do Formoso, em Goiás,
desapareceu em 1973, pouco depois de ser libertado da cadeia, quando
tomava um ônibus para Goiânia.

O CADERNO DA ANISTIA
Em abril de 1978, Movimento lançou uma edição especial sobre a Anistia,
com 48 páginas, um caderno à parte com tiragem de cerca de 5 mil exempla-
res. Um trabalho exaustivo, realizado por uma equipe especialmente contra-
tada, coordenada pelo jornalista Mario Fonseca. A ideia partira também de
Roberto Martins, ex-preso político, que se dedicava a pesquisar o tema para
seu livro Liberdade para os Brasileiros - Anistia Ontem e Hoje, que seria pu-
blicado naquele ano. Relata ele:
O caderno ia dar abrangência nacional à campanha, até então
só havia manifestações isoladas. E juntou desde a ação dos
comitês de anistia no exterior – em Portugal, Paris, Itália – até
depoimentos de cientistas famosos, de soldados, marinheiros,
estudantes afetados pelo regime. E havia também a minha pes-
quisa histórica, mostrando que a anistia não era uma especula-
ção fortuita, tinha raízes na história do Brasil.8
Distribuído em uma dezena de retrancas, o caderno especial trazia a his-
tória da anistia desde sua criação na Grécia antiga até as anistias anterio-
res concedidas no Brasil. Historiava os esforços pela anistia, iniciados em
1964 e desenvolvidos pelo Movimento Feminino pela Anistia, a formação
do CBA, Comitê Brasileiro pela Anistia. Trazia numerosos depoimentos
com alguns dos principais atores da campanha – e muitos possíveis anis-
tiados –, o marechal Teixeira Lott, Rômulo de Almeida, Alceu de Amoroso
Lima, Darcy Ribeiro, Thiago de Melo, Therezinha Zerbini, Augusto Boal,
Francisco Julião, Hélio Silva, Nelson Werneck Sodré, Antonio Callado, o
general Peri Bevilacqua, Raymundo Faoro, Mário Lago etc.
Depois estimava “os que deverão ser anistiados”em mais de 500 mil pes-
soas, entre presos, demitidos, processados, cassados, aposentados com-
pulsoriamente e outros. O caderno apresentava histórias pessoais de pes-
soas atingidas pelas leis de exceção, como o linguista Antonio Houaiss,
diplomata demitido do Itamarati, e o capitão Sérgio Miranda, do Para-Sar
da Aeronáutica, cassado por se recusar a cumprir ordens de promover
atentados terroristas.
Havia uma relação nominal de todos os presos políticos cumprindo
pena naquele momento no País, cerca de 200. E também uma relação de
desaparecidos. Uma reportagem sobre os ex-presos que haviam cumprido
pena, mas continuavam perseguidos. E outros textos sobre os exilados,
como Darcy Ribeiro e Almino Afonso, e, ainda, a luta dos exilados pela
obtenção de passaporte e o reconhecimento da nacionalidade de seus fi-
8 Entrevista com Roberto Martins em 20 de julho de 2010

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Jornal Movimento, uma reportagem

lhos, nascidos fora do País, em embaixadas hostis. Terminava com uma


matéria sobre os 128 opositores políticos banidos, que viviam em sua
maioria em Portugal.
Os colaboradores na Europa contribuíram bastante, como lembra o en-
tão correspondente do jornal em Paris, Alberto Villas. “Esse caderno de
anistia que o Movimento fez, eles encomendaram muita coisa para a gen-
te, tinha muita notícia. Foi quando tomamos consciência que tinha vira-
do algo grande: nossa, vai ter um caderno especial da anistia!...”, diz ele,
que recebia cerca de 200 exemplares do jornal por avião e os enviava para
exilados brasileiros em diferentes países europeus. “Era uma esperança
muito grande no ar, uma efervescência política enorme”.
No Brasil, as sucursais também se engajaram, conforma diz Roberto
Martins, que, do Rio, ajudou a coordenar os trabalhos. Ele diz:
Mobilizamos todas as sucursais, em especial as maiores, para
fazer entrevistas, reportagens sobre presos políticos, ex-presos,
exilados, ex-exilados que já tinham voltado, perseguidos e cas-
sados. Propusemos uma pauta bem ampla para as sucursais, e
elas fizeram uma trabalho muito grande, superior à nossa ca-
pacidade de imprimir até. Acho que só aproveitamos 10% do
material recolhido no Brasil e no exterior.
Lançada mais de um ano antes da lei da anistia, quando a campanha ain-
da se estruturava, a edição especial teve grande importância. “A repercus-
são foi muito boa. O caderno municiou os CBAs porque tinha um caráter
amplo, deu voz a todo mundo. Os cassados, por exemplo, gostaram muito
daquilo, porque começaram a aparecer mais e foram divulgadas as suas
dificuldades. Os políticos do MDB também tiveram um bom instrumento
para a discussão partidária”, diz Roberto Martins. “Foi um documento de
mobilização”.
Para Luiz Eduardo Greenhalgh, que era diretor da seção paulista do
Comitê Brasileiro de Anistia de São Paulo, a edição especial deu um im-
pulso para as articulações.
A gente levava, distribuía nos comitês de anistia, nas comu-
nidades de base, entendeu? E naquela época, a gente estudava.
Eu me lembro que eu pegava essa edição e a da Constituinte e
riscava, “isso aqui é importante”. Então, eu montava minhas
palestras muito em cima disso.
Para ele, o jornal tinha o papel de aprofundar e qualificar o debate, aju-
dando a democratizar as ideias e “preparar os militantes, guarnecendo-os
com argumentos”.
Assim, a defesa da anistia ampla foi sendo tecida nas páginas de
Movimento. Também em abril, um fato aparentemente fora do contexto –
a prisão em São Paulo do nazista Gustav Franz Wagner, conhecido como
A Besta Humana – deu subsídios para a publicação criticar a tese da reci-
procidade, ou seja, da anistia aos torturadores. Um mês depois, na edição

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A campanha pela anistia

154, o rabino Henry Sobel avisava que “não há anistia para homens como
Franz Wagner”. A chamada de capa é sugestiva: “Por que os nazistas não
merecem anistia”.
Duas semanas depois, um editorial explicitaria mais abertamente o ar-
gumento. O texto, sem assinatura, dizia ser “indispensável” apurar os cri-
mes contra os direitos humanos e punir seus responsáveis, uma vez que o
aparato repressor continuava intacto.
Não podem ser perdoados os que, a serviço do regime ou
em nome da oposição, se tais casos forem comprovados, tor-
turaram a prisioneiros indefesos. Desde os julgamentos de
Nuremberg que se fixou, no direito universal, a distinção entre
atos de guerra e crimes contra a humanidade, para os quais
não cabe invocar sequer a atenuante da disciplina militar e do
cumprimento de ordens superiores.9
A lógica implícita é a mesma que algumas organizações de direitos hu-
manos repetem hoje em dia: a impunidade aos torturadores permitiria a
perpetuação da violência policial como método.

9 Movimento 156, 20 de junho de 1978.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição 170, 2 de outubro de 1978

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17
O apoio aos militares
dissidentes

E
m 1977, membros do grupo autêntico do MDB liderados por
Chico Pinto, o chefe da sucursal de Movimento em Brasília,
amiudaram os contatos com aqueles setores militares que se
manifestavam em oposição ao governo e que se apresentavam
como favoráveis a uma política nacionalista e à democratização.
Na edição 101, de 6 de junho de 1977, um artigo assinado por Eduardo
Neto, um dos repórteres da sucursal de Brasília, com o título “O MDB e os
militares”, registrava esses contatos. Ouvia dois “autênticos” apoiadores
do jornal, os deputados gaúchos Odacir Klein e João Gilberto, contava
que uma reunião de mais de cem lideranças do MDB no Rio Grande do
Sul propusera que o partido enviasse seu programa não só para o público
tradicional de estudantes, intelectuais, religiosos progressistas e trabalha-
dores em geral, mas também para os militares. Dizia Klein, na reportagem:
Se o MDB se opõe ao modelo institucional e econômico vi-
gente, deve procurar os outros setores da nação interessados
na participação do povo nas decisões, como também na justa
distribuição das rendas e preservação das riquezas nacionais.
E se procura os setores civis, por que não procurar também os
militares que comungam do mesmo ponto de vista, ou seja, os
democratas e nacionalistas?
O artigo de Neto apoiava a proposta:
A curto prazo, não existe alternativa política para o país que
não envolva a participação dos militares. E na história recente
do mundo, mesmo na América Latina, não faltam exemplos de
intervenções militares democráticas e nacionalistas, ao lado
das antidemocráticas costumeiras.
Tentando evitar a interpretação de que estaria defendendo uma proposta
golpista e cupulista, o texto complementava: “No entanto, a busca desses
vínculos necessários com os militares não pode substituir a pregação opo-
sicionista e a organização independente dos trabalhadores, estudantes,
profissionais liberais etc.” Em especial, o artigo se opunha a que, para

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Jornal Movimento, uma reportagem

isso, se sacrificasse “as campanhas de mobilização popular, como a da


convocação de uma Constituinte”.
Após a demissão do ministro do Exército, general Sylvio Frota, as articu-
lações que se opunham à candidatura do general João Figueiredo, indicação
do presidente Geisel, tomaram força ainda maior. O general Hugo Abreu, no
comando da Casa Militar, mobilizara a tropa que em outubro de 1977 impe-
diu o golpe de Frota contra o presidente. Porém, inconformado com a impo-
sição de Figueiredo como sucessor de Geisel, demitiu-se do cargo. Na oca-
sião, apresentou ao presidente um documento, que iria ficar conhecido como
“Relatório Hugo Abreu”, em que denunciava corrupção no governo, dando
nomes de ministros como Mario Andreazza, dos Transportes, mas centrando
a denúncia em Golbery, Heitor de Aquino e Humberto Barreto. Abreu foi
somar com a oposição militar. Data desse momento sua aproximação com o
jornal por intermédio dos autênticos do MDB.
O semanário era um porta-voz dos autênticos, o propagador de suas po-
sições e um instrumento das articulações políticas que estes faziam bus-
cando ganhar poder dentro do MDB diante dos moderados e adesistas do
partido. Seus repórteres acompanharam de perto os entendimentos pelo
lançamento do general Euler Bentes Monteiro como candidato do MDB à
presidência da República. Considerado competente como administrador
– fora superintendente da Sudene –, nacionalista, que se mantivera à dis-
tância da política de repressão da ditadura, o general Euler havia ido para
a reserva pouco antes e despontava como alternativa.
Naqueles meses havia ocorrido uma romaria de políticos à sua casa.
Desde o senador arenista Magalhães Pinto, que, apoiado pelos america-
nos, insistia em ser candidato a presidente, ao ex-ministro Severo Gomes
e aos emedebistas Paulo Brossard, Roberto Saturnino, Franco Montoro
etc. A todos Euler afirmava estar “identificado” com as ideias básicas da
oposição, conforme contou Teodomiro Braga, driblando a censura, em ex-
tensa reportagem de Movimento.1
Fernando Henrique Cardoso acompanhou Severo Gomes numa dessas visitas:
Eu fui testemunha direta desse negócio (...) de repente, eu
estava no Rio, Severo estava no Rio também e me disse: “o
General Euler Bentes me convidou para ir à casa dele, você
não quer ir comigo?”, eu e Severo fomos à casa do Euler, que
morava em Copacabana, num apartamento relativamente sim-
ples, ele era um homem inteligente, simples. Era general da
ativa (N. do E. havia ido recentemente para a reserva), quatro
estrelas, ligado ao governo, ele disse que toparia ser candidato,
foi a primeira vez que ele falou em ser candidato.
(...) Nós saímos de lá, Severo dava pulos de alegria. Ele foi
para o hotel em que estava, eu vim para São Paulo, ele me
disse: “Vai lá e fala logo com Ulysses”, eu fiz isso. Ulysses re-
cebeu muito friamente a proposta, muito friamente...
1 Movimento 151, 22 de maio de 1978.

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O apoio dos militares dissidentes

Fernando Henrique lembra que o grupo dos autênticos do MDB estava


muito ativo: “Chico Pinto, que era também... (de Movimento) foi lá, fa-
lou com Euler Bentes e lançaram Euler Bentes. E arrebentaram tudo. Aí,
Ulysses ficou mais assustado ainda.”2
Chico Pinto sempre cuidara de cultivar boas relações com os militares
nacionalistas. Antonio Carlos Queiroz, o ACQ, lembra que ele era um po-
lítico de tempo integral:
estava sempre conversando, articulando, conspirando pela
democratização com políticos e militares (...) Certas coisas que
o jornal fazia em relação à oposição estava junto com Chico
Pinto. Por exemplo, o Chico era um dos principais articula-
dores da campanha do Euler. Então, uma coisa que eu acho
interessante é ver a história do jornal sendo conduzida pelos
eventos que vão acontecendo, porque era um negócio extrema-
mente rico: você estava ali, Constituinte, campanha da Anistia
(...) dentro das questões não só do País como do mundo...3
Pouco antes de seu falecimento, Chico Pinto lembrou o episódio da can-
didatura Euler, dando a entender que a iniciativa dessa aliança foi dos
militares:4
E aí uns militares, conversando comigo, disseram: “Por que
vocês não lançam a candidatura de Euler Bentes?”. Sempre
me queixava disso: “É preciso ouvir a voz de vocês”. Euler
era nacionalista, mesmo quando estava na ativa, na Sudene.
Esse oficial me disse (eu estava com Marcos Freire nesse dia):
“Você quer conversar com ele?”. Vambora! (...) Ele estava na
região dos Lagos (RJ), numa chácara. (...) Quando chegamos
lá, encontramos o general, que nos disse: “Não adianta, vocês
não podem me fazer candidato a presidente, vai depender da
maioria do partido. O partido não vai aceitar”.
Na saída, pra ir embora, um soldado que fazia a segurança do ge-
neral me avisou: “Tem gente aí fora, no portão, parecendo de jornal”.
Ninguém sabia do encontro, só o coronel que estava com a gente.
Quando íamos saindo, um flash: Jornal do Brasil! Furou. E publi-
cou. O que fizeram? Primeiro, o pessoal do governo: “taí o general
cercado de dois comunistas.” Ele no meio, e nós de um lado e de
outro. A notícia prejudicou um pouco. Mas era inevitável.
Fernando Henrique acrescenta:
O Severo estava louco porque Ulysses não tomava decisão.
Um dia Ulysses me chamou na casa dele, Campo Verde, aqui
(em São Paulo) (...) ele ainda tinha certa formalidade comigo,
falou: “Professor, quero saber a sua opinião. O que o senhor
acha mesmo dessa história desse Euler?”, eu disse: “Olha,
2 Entrevista de FHC em 10 de fevereiro de 2010.
3 Entrevista de Antonio Carlos Queiroz em 25 de fevereiro de 2010.
4 Entrevista de Chico Pinto à Terra Magazine em 3 de janeiro de 2008.

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Jornal Movimento, uma reportagem

doutor Ulysses, vou ser franco com o senhor, eu acho que nós
já atrasamos muito, devíamos ter lançado o Euler candidato há
muito tempo.” “Mas por quê?” “É a primeira vez que há uma
fratura dentro das forças armadas, isso é muito importante. Se
nós queremos mudar as coisas aqui, ou fratura lá dentro, ou
não muda. O bloco de poder é deles, nós não temos força”.
Ele não gostou. Respondeu: “São Paulo é civilista” (...)Bom,
aí sabe o que Ulysses me disse? Ele disse: “É, olha, vou dizer
uma coisa: uma decisão dessa natureza é muito importante, eu
tenho que tomar sozinho” (...) Ele mandava...
Para Teodomiro Braga, foi um grande momento do jornal:
Nessa candidatura do Euler Bentes, nós tínhamos, modéstia
à parte, uma bela cobertura. Nós conseguimos cobrir militares
dissidentes, da reserva ou da ativa em várias partes do Brasil.
São Paulo, Mato Grosso, Brasília e Rio de Janeiro. (...) Nessa
época, eu estive com vários militares em São Paulo, para fa-
zer matéria, entrevistar. Tinha um coronel, em Brasília, que eu
esqueço o nome (N.E. coronel Dickson Grael), da ativa, impor-
tante, que também deu muita informação (...)
A candidatura do Euler Bentes acabou com a hegemonia. (A
base do regime) rachou, nunca mais uniu de novo e, na hora
em que rachou, as pessoas passaram a não ter mais medo. Foi
decisivo, na minha opinião. Do regime militar, o divisor de
águas foi a candidatura do Euler Bentes.5
Teodomiro encara assim o papel de Movimento nesse processo:
Quando houve a dissidência do regime, nós acabamos vi-
rando um jornal preferencial (para os militares) (...) É, porque
eles não tinham um canal para expressar as opiniões deles.
Até me lembro que quando o general Hugo Abreu foi embora
de Brasília, deu uma recepção na casa dele, para despedida.
Nós estávamos fazendo uma entrevista com ele, eu e o Antonio
Carlos Queiroz. Estivemos umas três ou quatro vezes com ele
para fazer a entrevista, fizemos em várias etapas diferentes. A
última vez em que fomos entrevistá-lo era nesse dia. Estava
dando a entrevista para nós dois na antessala, e toda hora en-
trava um general fardado; eles foram à festa todos fardados. O
general Hugo Abreu era muito espirituoso, na hora em que en-
trou um general dos mais importantes, ele brincou: “esses aqui
são dois jornalistas subversivos”, e o Antônio Carlos devolveu
na hora: “e esse é um general subversivo”. Isso no final, quan-
do já estava nesse clima, no começo do fim do regime militar.
Antonio Carlos (Tonico) Ferreira também testemunhou esses aconte-
cimentos:
5 Entrevista de Teodomiro Braga em 1º de dezembro de 2009.

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O apoio dos militares dissidentes

É, eu conversei com o Hugo Abreu, você acredita? Eu, esse


moleque aqui, ia lá conversar com o Hugo Abreu. (...) O
Teodomiro conversava muito com o Dickson Grael (...) (que)
era um cara da Centelha Nativista (N.E. organização de mili-
tares nacionalistas) e que depois passou a ser contra o regime.
(...) Eles foram os primeiros a tentar retornar à democracia.
Tonico estava sendo processado na LSN pela edição “Geisel num Mar
de Lama”,6 que denunciou corrupção no governo. Ele conta que chegou a
haver uma cooperação entre esses militares e o jornal:
Quando eu estava sendo processado, e a gente queria saber
o que ia acontecer com meu processo, falaram assim: “Vai
procurar o tenente-coronel Fulano”. Aí, fui lá conversar com
um tenente-coronel da Centelha, ele falou assim: “Eu vou ver
quem é que está no conselho que vai julgar você” (na Justiça
Militar) (...) Ele disse que se fosse pelos caras, iam me absolver,
porque eles tinham três votos dos quatro. Era um juiz togado e
quatro militares. Eles tinham três deles, da oposição. Eram de
direita que tinham virado para o outro lado.7

6 Movimento 171, 9 de outubro de 1978.


7 Entrevista de Antonio Carlos (Tonico) Ferreira em 22 de outubro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição 154, 12 de junho de 1978. Desenho de Jayme Leão

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18
A censura caiu:
“Vencemos!”

A
queda da censura que era exercida contra Movimento ocor-
reu em junho de 1978. Para a equipe foi um grande aconte-
cimento, recebido com muita comemoração. Antonio Carlos
Queiroz (ACQ) estava na redação em Brasília e foi quem re-
cebeu a notícia por telefone:
Aí, nós ligamos para São Paulo, demos a informação lá e,
logo depois, os telefones ficaram mudos, entraram em pane. E
eu tentando avisar as pessoas, avisar o Chico Pinto, os depu-
tados, os amigos. Nós tínhamos um vizinho que era (de uma
sede) dos Alcoólicos Anônimos. Eu me lembro dele, porque
ele era completamente careca, e aí eu falei: “Olha, aconteceu
isso e nós estamos sem telefone, cortaram o telefone”, ele:
“Ah, usa aí, manda brasa”. Aí, usei o telefone dos Alcoólicos
Anônimos...
Posteriormente, estou andando no setor comercial Sul, tí-
nhamos saído para o almoço, e encontro as moças da censura
andando por lá. Eu falei assim: “Mas meninas, e agora? O que
vocês estão fazendo? Não tem mais trabalho?”, “Ah, manda-
ram a gente para outro canto”. Na verdade, a censura do jornal
acabou, mas tinha outras...
Houve fogos de artifício e até champanhe, na sede do jornal e em algu-
mas das sucursais. “Vencemos!”, dizia uma faixa na frente do escritório
de Campinas. A edição 154, de 12 de junho de 1978, anunciaria, em gran-
des letras, em vermelho, na capa: “SEM CENSURA!”.
A edição 155, de 19 de junho de 1978, seria histórica porque foi a segun-
da publicada depois da queda da censura ao semanário, e a primeira para
a qual houve tempo de ser bem preparada e que mostrava como o jornal
podia ser melhor livre dela. A capa ficou dividida por duas manchetes de
impacto: na metade de cima da página, “Retrato falado de um torturador”,
sobre o “capitão Ubirajara”. Na metade de baixo, a outra manchete: “Nós
vimos a greve por dentro”, reportagem de Raimundo Pereira, que conse-

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Jornal Movimento, uma reportagem

guira entrar na fábrica da Caterpillar durante a primeira grande greve dos


metalúrgicos de São Paulo.
Nessa mesma edição, Movimento abriu suas páginas para o debate
sobre a candidatura do general Euler Bentes e a Frente Nacional pela
Democratização. Em sua coluna, Chico Pinto defendia a Frente. Mas a
esquerda no início mostrava desconfiança. Olívio Dutra, então sindica-
lista em Porto Alegre; Aurélio Peres, metalúrgico, líder do Movimento
Custo de Vida e futuro deputado federal; Valdelio Santos Silva, estudante,
presidente do DCE da UFBa, deram entrevistas ao jornal avaliando a pro-
posta. O ex-deputado federal cassado e articulador político da oposição,
Almino Afonso, perguntava: “os trabalhadores estão sendo ouvidos?” Em
longo artigo, Raimundo Pereira reclamava pela explicitação do programa
da candidatura. Perguntava: “Frente de quem? Contra quem? Pra quê?
Para institucionalizar o atual regime ou para mudá-lo?”
Em convenção, realizada em junho, o MDB aceitava participar da Frente
e lançar candidato à eleição indireta à Presidência da República, mas ain-
da sem escolher o candidato.
Na edição nº 159, de 17 de julho de 1978, o jornal noticiava: “Euler
aceita a Constituinte”. O olho da matéria, assinada por Raimundo Pereira,
dizia: “Sob o fogo dos que o consideram um exacerbado nacionalista, o
general Euler Bentes Monteiro defende um governo de transição, o fim
dos atos e leis de arbítrio, a anistia e a Constituinte”. No final de agosto,
a convenção do MDB decidiu apoiar as candidaturas do general Euler
Bentes para presidente e do senador do MDB, Paulo Brossard, para vice.
O comício de lançamento da candidatura se deu em Olinda (PE) e reuniu
20 mil pessoas, segundo o jornal. Em seguida foram realizados comícios
em São Paulo, Recife, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia e outras capitais
reunindo milhares de pessoas, nos quais as palavras de ordem mais pro-
nunciadas eram “anistia” e “Constituinte”.
Entrevista do líder sindical Luiz Inácio da Silva, Lula, na edição 160, de
24 de julho de 1978, destoava desse clima de animação. Ele achava que
a Frente “foi criada de cima para baixo, ampla demais para o gosto dos
trabalhadores que, entrando numa frente dessas, só têm a perder”. Lula
propunha uma frente “com a participação de todos os trabalhadores e as-
salariados para que tomassem posição sobre o que seria uma democracia
para os trabalhadores”.
O jornal promoveu um outro debate: “A ditadura acabou?”. Chico de
Oliveira, que havia deixado o jornal no racha de abril de 1977, foi convi-
dado e deu sua contribuição na edição 161, de 31 de julho de 1978, com o
artigo “O regime se rearticula”, dizendo que “o calcanhar de Aquiles (da
Frente) é o comando das oposições pelos liberais (...) o general Euler está
aí para aparar uma tentativa de enfrentamento entre forças militares (...)
basta saber ler os noticiosos dos jornais”. E defendeu a “organização das
classes trabalhadoras para desmontar o regime autoritário...”

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A censura caiu: “Vencemos!”

A capa da edição 163, de 14 de agosto de 1978, é um retrato do general


Euler, desenho do diretor de arte Jayme Leão, com a manchete: “Presidente
contra a ditadura?”. Na página 5, artigo de Raimundo Pereira afirmava: “a
ditadura não acabou (...) A principal causa política da melhoria da con-
juntura é exatamente o crescimento do movimento democrático, especial-
mente de sua ala popular. É preciso que prossiga”.
Os jornais da grande imprensa manifestavam sua ojeriza às propostas
nacionalistas do general Euler e questionavam sua candidatura. Na edição
164, de 21 de agosto de 1978, Movimento apresentava o quadro “Quem
está contra ou a favor da candidatura Euler Bentes”. Contra: Folha de
S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, o sociólogo Chico de
Oliveira, o deputado do MDB João Cunha, os jornalistas Mino Carta, Villas
Boas Correia e Tibério Canuto. A favor: o sociólogo Fernando Henrique
Cardoso, o ex-ministro Severo Gomes, o senador Teotônio Vilela, os po-
líticos Lysâneas Maciel, Chico Pinto e Almino Afonso, o historiador José
Honório Rodrigues, o jurista Goffredo da Silva Telles, os jornalistas Carlos
Castelo Branco e Raimundo Pereira.
Nos quartéis, a oficialidade se dividia em tendências e conspirações, o
fantasma do golpe estava no ar, reforçado por declarações do general João
Figueiredo, candidato à Presidência apoiado pelo presidente Geisel: “As
Forças Armadas, se necessário, podem voltar a servir a outros governos de
exceção”, disse ele. Outra frase corria os quartéis e respingava na impren-
sa: “Euler, se ganhar, não leva!”.
Nas semanas que antecederam a eleição indireta, a tensão política se
elevou. A candidatura do general Euler foi alvo de intrigas, ameaças e
boatos, urdidas no Palácio do Planalto. O resultado da votação no Colégio
Eleitoral, em 15 de outubro, porém, foi o previsível. Sustentado na maio-
ria arenista, o general Figueiredo ganhou com folga, 355 votos contra 226
dados ao general Euler. Esse resultado, porém, não reduziu e até aumen-
tou a inconformidade dentro das Forças Armadas, o que iria resultar num
início conturbado do governo Figueiredo, com muitas manifestações de
oposição por parte de setores militares. E até uma previsão, feita pelo ge-
neral Hugo Abreu no começo de 1979: “Figueiredo vai cair dentro de um
ano”, que jamais se confirmaria.
Movimento registrou essa situação incômoda para o governo, ressal-
tando seu isolamento político. Nas eleições diretas para a Câmara dos
Deputados, realizadas em novembro de 1978, um mês depois da eleição
indireta do general Figueiredo, a oposição da população se mostrou bem
clara, pois o MDB alcançou 17 milhões de votos contra 13 milhões para a
Arena. A oposição teve grandes vitórias nos principais estados e o MDB
elegeu 189 deputados contra 231 da Arena. Todos os autênticos se ree-
legeram e novos deputados com alinhamento político semelhante foram
eleitos, tornando mais combativa a bancada emedebista. A derrota do go-
verno foi particularmente dura em São Paulo, Rio, Minas Gerais e Rio
Grande do Sul, os maiores e mais importantes colégios eleitorais.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Em Movimento houve um motivo a mais de comemoração, a expressiva


votação dada a Fernando Henrique Cardoso, que havia se candidatado por
uma sublegenda do MDB ao Senado. Tinha sido uma candidatura mui-
to apoiada pelo jornal, que abriu suas páginas para artigos e entrevistas
de FHC. E também foi na gráfica de Movimento que foram preparados
os seus impressos de propaganda, pagos, segundo o ex-presidente, por
Sergio Motta. Este teve uma participação entusiasmada na campanha.
Arregimentava artistas e com eles ia às caminhadas do candidato a portas
de fábrica e bairros populares. FHC recebeu também apoio do dirigente
sindical Luiz Inácio da Silva. Na votação, ficou em segundo lugar, depois
de Franco Montoro, e na frente de Cláudio Lembo, candidato da Arena, o
que lhe permitiu assumir uma cadeira no Senado a partir de 1983, quando
Montoro renunciou para assumir o governo de São Paulo.

MAR DE LAMA
Com a liberdade recém-adquirida, a redação vivia um momento de entusias-
mo. De uma semana para a outra, pôde publicar o que sempre quis e investir
em reportagens que até então eram proibidas. Ao mesmo tempo, os escânda-
los de corrupção iam se avolumando.
Em Movimento, a enxurrada de denúncias era tratada com destaque, em
uma série de reportagens e várias capas por edições a fio sob a retranca
de “Mar de Lama”. As denúncias incomodaram, como mostra um informe
do SNI ao Ministério da Justiça, de 10 de outubro de 1978, intitulado “A
campanha de desmoralização do governo”.1 Segundo o informe, repetidas
declarações do general Hugo Abreu sobre corrupção no governo haviam
desencadeado tal campanha. Os exemplos mais “ilustrativos” seriam da
Tribuna da Imprensa e de Movimento, este, com a reportagem “O nosso
relatório Hugo Abreu, as acusações contra o Planalto”, da edição 170, de
2 de outubro. O documento listava em seguida uma série de instrumen-
tos legais que poderiam ser adotados contra os jornais tanto pela Lei de
Segurança Nacional quanto pela Lei de Imprensa. A pena mínima seria
detenção por um mês, e a máxima por cinco anos.
Mas, aos olhos do governo, a gota d’água foi mesmo a edição 171, que
trazia na capa a manchete: “Geisel num Mar de Lama”. Em 17 de outubro,
oito dias depois da publicação, o ministro do Exército, general Belfort
Betlhem, achou que já era demais. Enviou uma representação indignada
ao ministro da Justiça, dizendo que Movimento estava
intensificando uma campanha difamatória contra o Exército
Brasileiro, procurando denegrir sua imagem diante da opinião
pública, divulgando notícias falsas e tendenciosas, além de
estimular a discórdia e incentivar a indisciplina, tudo com o
ostensivo objetivo de provocar cisões nos nosso quadros.2
Citava a série de reportagens sobre o mar de lama, anexando alguns
exemplos, e requeria:
1 BR_AN_RIO_TT_0_MCP_PRO_1549.
2 Arquivo pessoal de Bernardo Kucinski.

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A censura caiu: “Vencemos!”

Por considerar que artigos dessa natureza são elaborados


com a intenção de abalar a inquebrantável coesão e unidade
existentes no Exército, e que se enquadram numa campanha
de descrédito do Regime e da Revolução, solicito que V. Sa.
tome as providências que bem determinar.
O ministro Falcão não perdeu tempo. No dia 19, enviou dois comunica-
dos ao procurador-geral junto à Justiça Militar, Milton Menezes da Costa
Filho, dizendo que o jornal estava agindo de maneira “irresponsável e
leviana”, culminando com a “manchete insultuosa” da edição 171, e soli-
citou as providências “cabíveis” para responsabilizar o jornal, já que
aquelas publicações extravasam o natural direito de crítica e
o exercício da liberdade para penetrar a esfera do ilícito con-
trário à Segurança Nacional, que do ponto de vista da forma
como são apresentados, quer sua substância intentar ferir o
Governo, como instituição numa acusação gratuita de existên-
cia de uma corrupção generalizada.
Acima dele, anotado à mão, lê-se a resposta do procurador-geral: “for-
mule-se o necessário expediente”.3
A acusação contra Tonico Ferreira alegava que ele, como diretor da pu-
blicação, infringira os artigos 16 e 36 da lei de Segurança Nacional, por
“reiteradamente” publicar “matéria altamente insultuosa” e “ofender a
honra” das autoridades, crimes com pena prevista de até cinco anos de
prisão. Argumentava que “a publicação Movimento fugiu aos parâmetros
de opinião – sagrado – desenvolvida (sic) pela imprensa salutar, visando,
apenas a desmoralização das autoridades governamentais”.4
“O Geisel levantou a censura e resolveu usar a Lei de Segurança
Nacional”, avalia Tonico, anos depois.
Eu fui ouvido lá na Auditoria Militar, na avenida Brigadeiro
Luís Antônio (em São Paulo), e, depois, a outra sessão foi a
das testemunhas de defesa. As minhas testemunhas foram o
senador Paulo Brossard, o presidente da ABI que era o jorna-
lista Barbosa Lima Sobrinho, e mais um jornalista especializa-
do em assuntos militares (Evandro Paranaguá, de O Estado de
S. Paulo). Me lembro até hoje da sessão e tudo, estava já pra
sair a sentença e eu ia ser condenado, por quê? Porque a Lei
de Segurança Nacional tem um negócio lá, tem um artigo lá
meio de lesa-majestade. Você não pode criticar o presidente do
País, presidente do Senado, presidente do Supremo Tribunal
Federal, independente de apresentar provas”.5
Tonico enfrentou uma batalha no tribunal, que foi detalhadamente re-
tratada nas páginas do semanário. No primeiro depoimento, em 13 de
novembro de 1978, o diretor do jornal defendeu valentemente o teor das
3 Idem.
4 Arquivo pessoal de Luiz Eduardo Greenhalgh.
5 Entrevista de Antonio Carlos Tonico Ferreira em 22 de outubro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

reportagens: “O governo insiste em continuar com a política de punir os


denunciantes e os jornalistas que reproduzem as denúncias, enquanto os
denunciados nada sofrem”.6
Pouco depois, o procurador Henrique Vaillati Filho juntou novas acu-
sações com base nas edições 176 e 177, aditando a acusação inicial. Uma
matéria criticava o aumento do número de juízes nos tribunais superiores:

Edição 177, 20 de novembro


de 1978. Corta Essa!
Charge que serviu como acusação
contra Tonico Ferreira na Justiça Militar.
Chico Caruso.

6 Movimento 178, 27 de novembro de 1978.

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A censura caiu: “Vencemos!”

Está diáfano que Movimento busca convencer seus leitores


que o aumento do número de ministros e juízes foi feito com
exclusiva finalidade de remendar uma situação de crise, trans-
formando as mais altas cortes da Justiça da Pátria em grupos de
títeres manejados com cordéis presos às mãos do Executivo.7
Sobre outra matéria, que chamava o pacote de abril de “roubo”, a acu-
sação seguia na mesma linha. Como o pacote foi um ato do presidente, a
defesa dizia que, no entender de Movimento, Geisel era um ladrão. “Não é
um insulto velado, mas claro, agressivo, tão violento que levaria qualquer
pessoa a chamar seu autor perante os tribunais”. Finalmente, a acusação
denunciava uma charge, na seção de humor da edição 177, em que uma
urna aparecia esmagando um cavalo, ao lado do qual havia um par de
óculos semelhantes aos usados pelo general Figueiredo, uma “ofensa à
dignidade” do presidente eleito.
Foi essa mesma charge que rendeu um dos momentos mais descontraí-
dos na audiência na 2ª Circunscrição da Justiça Militar em São Paulo, no
dia 6 de fevereiro de 1979. Segundo relatou o jornal,8 a seção de humor
chegou a arrancar sorrisos do Conselho Permanente de Justiça do Exército.
O procurador Vaillati inquiriu: “Se não é o general Figueiredo que está ali
embaixo dessa urna, quem é?” “O senhor procurador é um intérprete mor-
daz de nosso humor!”, respondeu Tonico. Para os chargistas que faziam
a seção de humor Corta Essa! foi uma glória, como se viu no capítulo 5.
Na audiência, que se seguiria por sete horas, o senador Paulo Brossard
defendeu a existência de corrupção no governo e o termo “roubo” para
definir o pacote de abril; Barbosa Lima Sobrinho deu uma “aula” sobre
imprensa livre, e Evandro Paranaguá reafirmou as cisões no Exército. No
final, relatou o jornal, alguns dos juízes “cordialmente solicitavam dedi-
catórias e autógrafos” ao jornalista do Estadão num livro que este acabara
de lançar.
O processo se arrastou e Tonico só se livrou dele com a anistia. Mas a
verdadeira pena já havia sido imposta ao jornal. A edição 177, de 20 de
novembro de 1978, a mesma que trazia a charge de Figueiredo sob um ca-
valo, fora apreendida, gerando um prejuízo de 190.300 cruzeiros (o equi-
valente a R$ 100.000,00 em 2011).
O tema não era a corrupção, mas as eleições parlamentares que deram
maioria de parlamentares à Arena, mesmo com 6 milhões de votos a mais
obtidos pelo MDB, por conta do sistema eleitoral que reserva mais va-
gas aos estados do Norte e Nordeste. Os votos a mais do MDB vinham
do centro-sul do País. A manchete era: “Urnas exigem fim da ditadura”.
Quando enviados à Editora Abril para serem distribuídos, todos os 26 mil
exemplares foram apreendidos.
O prejuízo demandou uma campanha emergencial, com a impressão de
5 mil bônus com valor em aberto e não nominal, “para que as pessoas
7 Movimento 185, 15 de janeiro de 1979.
8 Movimento 189, 12 de fevereiro de 1979.

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Jornal Movimento, uma reportagem

possam contribuir sem medo”. Um comunicado da redação orientava os


vendedores sobre como encaminhar a campanha:
O apelo básico para a venda dos bônus será o rombo que o
governo causou às nossas finanças. É preciso dizer que nós en-
caramos essa apreensão quase como um roubo. É como se um
grupo de pessoas tivesse entrado na sede do jornal e roubado
200 mil cruzeiros do caixa. O objetivo é esse: tirar dinheiro do
jornal. Na prática, eles roubaram os 26 mil jornais que estavam
na gráfica; e nós não pudemos chamar a polícia porque foi a
própria polícia que nos roubou”.9
Para a direção, a apreensão foi decidida sem que o Ministério da Justiça
tivesse sequer tomado conhecimento do conteúdo do jornal, que ainda
não tinha ido para as bancas. Na PF, em São Paulo, ninguém soube expli-
car o motivo – deram a Tonico Ferreira e Luiz Eduardo Greenhalgh um
“simples telex de uma linha e meia” com a ordem, sem qualquer justifica-
tiva. “O pessoal da Polícia Federal em São Paulo também não soube infor-
mar nada: ‘ordens superiores; nós só cumprimos ordens etc.’”, descreveu
Tonico em carta aos assinantes.10
Movimento resolveu impetrar um novo mandado de segurança no
Tribunal Federal de Recursos. A alegação do Ministério da Justiça de que
o jornal teria cometido “grave ofensa à honra e à dignidade do chefe de
governo” e “propaganda e apologia” de atividades subversivas com al-
guns artigos sobre a guerrilha do Araguaia não convenceu. O mandado de
segurança11 alegava que a “apreensão se deu sem o regular fornecimento
do auto de apreensão”, e assim “desprovida de motivação sequer pode a
impetrante adivinhar os motivos que a determinaram e o estatuto legal
que a legitimaria”. Mas o procurador-geral da República decidiu que a
ordem, apenas oral, “justificava-se, plenamente por se tratar de situação a
exigir prontas medidas”.12 O mandado de segurança não foi acatado.
Para a diretoria, estava claro que a apreensão era “uma espécie de repre-
sália ao jornal por ele não ter baixado a crista após a abertura do inquéri-
to”, segundo afirma Tonico na carta.
E, de fato, Movimento não se intimidou. Além de cobrir com detalhes
todo o processo contra Tonico, abraçou o rótulo da “imprensa salutar”,
usando o termo em inúmeros artigos.
Ora, por que o governo achava que Movimento não fazia parte da “im-
prensa salutar”? Foi o que perguntaram para o general dissidente Hugo
Abreu, em entrevista publicada na edição 194, de 19 de março de 79.
“Salutar não vem de saúde? Então, é porque não faz bem pra a saúde
dele”, respondeu o general.
9 AP 294.04.015 Fnd Mov APSP.
10 Idem
11 Mandado de Segurança 85942-DF – Arquivo pessoal de Luiz Eduardo Greenhalgh.
12 Decisão do Serviço Público Federal – Arquivo pessoal de Luiz Eduardo Greenhalgh.

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A censura caiu: “Vencemos!”

A frase ficaria marcada na história do jornal, sendo usada em peças de


propaganda ao lado da foto do general Hugo Abreu.13

O JORNAL ACOMPANHA DUAS FRENTES DE LUTA


Naquele momento, greves estalavam pelo País, 170 mil professores parados,
assim como bancários, e também os metalúrgicos de Minas Gerais. O Movi-
mento do Custo de Vida levantava 1 milhão e 200 mil assinaturas contra a ca-
restia e levava-as a Brasília para entregar ao governo. Geisel não quis receber
os militantes do MCV, recebeu-os o general Euler. Geisel baixou um decreto
limitando ainda mais o direito de greve. Os sindicatos uniram-se e se mani-
festaram contra o decreto do presidente e a favor da Constituinte. As mani-
festações populares, por sinal, eram a grande novidade no cenário político do
País. Entre maio e junho, alastravam-se greves dos trabalhadores nas fábricas,
a começar do ABC, mas se estendendo a outras oito cidades da Grande São
Paulo e do interior, delas participando mais de 40 mil operários. Ao mesmo
tempo, em torno da candidatura do general Euler, surgia a Frente Nacional
pela Democratização. O apoio dado por Movimento à Frente foi alvo de críti-
cas dentro do jornal. Um exemplo delas foi a de Luiz Bernardes, novo chefe
da sucursal de Belo Horizonte. Na entrevista para este livro, Bernardes disse
que o jornal, embora tenha assumido uma posição correta no geral quanto à
Frente e à candidatura, se comprometeu demais com a proposta pela via mi-
litar e com a posição dos autênticos, “por cima”, em detrimento da organiza-
ção dos trabalhadores. Bernardes acha que essa falta de foco contribuiu para
que o jornal fosse surpreendido pelo crescimento das lutas do movimento
operário, as greves do ABC e outras lutas populares, e subestimou o papel
estratégico delas para a democratização. Avaliação difícil de fazer. Os dois
próximos capítulos talvez possam contribuir para ela.

13 Movimento 202, 14 de maio de 1979.

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Jornal Movimento, uma reportagem

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Jornal Movimento à venda nas ruas de São Paulo, 1978. Foto de Juca Martins.

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Jornal Movimento, uma reportagem

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Equipe da redação em 1975. Da
esquerda para a direita, em pé: Elifas
Andreato, Izalco Sardenberg, Flavio
Aguiar, Ricardo Maranhão, Alcy Linares,
Paulo Barbosa, Maria das Graças
Rodrigues, Eduardo Mussi, Jota, Chico
Caruso, Juca Martins. Sentados:
Cecília Magalhães, Teresa Ferreira,
Raimundo Pereira, Sérgio Buarque de
Gusmão, Francisco Marsiglia, Flávio
de Carvalho. Estão reunidos ao lado do
“mesão” de trabalho do departamento
de arte e diagramação

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Jornal Movimento, uma reportagem

Hora de “fechamento”. Em pé: Raimundo Pereira e Armando Sartori.


Sentado, de barba, Alcy Linares.

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Parte da equipe de redação em 1976. Da esquerda para a direita: Marcio Bueno,
Izalco Sardenberg, Sérgio Buarque de Gusmão, Bittencourt, Flavio Carvalho, Silvia
Campolim, Luiz Bernardes, Cecília Magalhães (atrás de Bernardes), Chico Caruso,
Paulo Barbosa, Raimundo Pereira, Eduardo Macedo, Tonico Ferreira, Maria
das Graças Rodrigues, Flavio Aguiar, Maria Rita Khel, Teresa Ferreira.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Junho de 1978. Alegria na redação. A equipe prepara a primeira edição após a queda da
censura prévia. Da esquerda para a direita, Paulo César Rodrigues (diagramador), Marcos
Gomes, Armando Sartori, Raimundo Pereira, Roldão Arruda, Sérgio Buarque, Chico (ou
Paulo?) Caruso, Aurea Regina Sartori (revisora), Valdir Mengardo (revisor, encoberto), Sérgio
de Oliveira (diagramador), Cid Oliveira (diagramador) e Juca Martins (fotógrafo, agachado)

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Raimundo Pereira entrevista operários da comissão de fábrica da Caterpillar,
em São Bernardo do Campo. Outubro de 1978. Foto de Sandra Adams

Documento de
identificação
de vendedor
de Movimento.
Na foto,
Alvaro Antonio
Caropreso.
Validade: 1979

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Jornal Movimento, uma reportagem

Arquivo do jornal. Julio César Garcia (à esq.) e José Carlos Ruy. Foto de Amancio Chiodi

Reunião de Marcio Bueno e Flavio de Carvalho com Jaguar e Ziraldo, diretores de O Pasquim
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Assembleia de reorganização do jornal no seu aniversário de cinco anos.
O jornal na foto é a edição 264, de 21-27 de julho de 1980

Votação na assembleia de reorganização do jornal no seu aniversário de cinco anos, em julho de 1980.
Entre os presentes, ao centro, de caneta na mão e óculos, Duarte Pereira. Atrás dele, Perseu Abramo
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Jornal Movimento, uma reportagem

Julgamento de Tonico Ferreira, diretor de Movimento, na segunda auditoria da Justiça


Militar de São Paulo, em 6 de fevereiro de 1978. Foto de Sandra Adams

Promotor apresenta como prova contra Tonico Ferreira uma charge do jornal
(ver à pagina 208). Causou risos no tribunal. Foto de Sandra Adams

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Marcos Gomes e sua mulher, Elza, em viagem à Europa para negociar recursos
de apoio ao jornal Assuntos. Chartres, França, janeiro de 1979

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Jornal Movimento, uma reportagem

Cartaz de divulgação do jornal, colocado em bancas e outros pontos de venda, em 1978.


Desenho de Jayme Leão
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Jornal Movimento, uma reportagem

Marcos Gomes
na redação
de Movimento,
em São Paulo,
segundo
semestre
de 1977

O artista gráfico Alcy Linares prepara um desenho na redação


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O ex-deputado federal e membro do Conselho Editorial de Movimento, José Alencar Furtado,
durante a entrevista concedida em 25/02/2010. Foto de Antônio Carlos Queiroz

Ex-apoiador de Movimento, o ex-presidente da República,


Fernando Henrique Cardoso, em entrevista concedida em 10/02/2010.
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Foto de Clóvis Ferreira/Digna Imagem

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Jornal Movimento, uma reportagem

Movimento presente no protesto contra o assassinato do operário


Santo Dias. Ele foi morto em 30 de outubro de 1979. Foto de Nair
Benedicto. Reprodução do livro Santo Dias, quando o passado
se transforma em História

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19
Assuntos e o
movimento contra
a carestia

E
m meados de 1977, o movimento popular começava a se
articular, empurrado pelas vicissitudes resultantes de uma
inflação galopante e do arrocho salarial. Nascia, na zona sul de
São Paulo, o Movimento do Custo de Vida (MCV), um marco
na organização popular da época, a partir do trabalho de base
da Igreja Católica com as CEBs, a Juventude Operária Católica, os clubes
de mães, em frente com partidos políticos como PCdoB, PCB, MR-8 e
outros, questionando a alta nos preços, o achatamento dos salários e
participando da oposição sindical aos pelegos. Também na zona leste e na
zona norte (Freguesia do Ó), a organização comunitária se desenvolvia.
Os metalúrgicos do ABC se manifestavam, sob a liderança de Luiz Inácio
da Silva (Lula), que se tornaria conhecido nacionalmente ao liderar a
campanha de reposição salarial daquele ano.
A direção de Movimento tinha um projeto de produzir uma revista
de grandes temas e para essa publicação havia recuperado o nome de
Assuntos. Entretanto, na conjuntura de aquecimento das lutas populares,
e buscando maior aproximação com os trabalhadores, o projeto da equipe
evoluiu para o de um jornal destinado a eles. Assuntos começou por ser
uma seção, duas páginas centrais de Movimento compostas por notas e
matérias curtas de fácil leitura, a partir da edição 70, de 1º de novembro
de 1976. Tratava de lutas sociais e seus desdobramentos, perfis populares,
bastidores da política e notícias econômicas rápidas.1
“Não era fácil você pegar o jornal Movimento e distribuir em áreas
populares. Era uma coisa muito pesada para quem não estava acostumado
a uma leitura de jornal”, avalia Marcos Gomes.2 Além da busca de
popularização por parte dos jornalistas de Movimento, Assuntos foi
resultado do apoio de lideranças operárias ligadas à Igreja Católica, e de
militantes da base do PCdoB, em especial da zona sul de São Paulo.
1 Um bom exemplo da seção Assuntos está na edição 89 de 14 de março de 1977.
2 Entrevista de Marcos Gomes em 7 de abril de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

“Queríamos um jornal mais simples pra fazer um trabalho de massa”,


lembra Celeste Dantas3, ex-militante do PCdoB. Vinda da Bahia em
meados da década de 1970, ela empregou-se em indústrias, para trabalhar
na organização dos operários paulistas – primeiro em Santo Amaro e
depois no ABC – e ajudar a formar bases do partido dentro das fábricas.
“Achávamos que precisávamos de um jornal mais popular, na mesma linha
do Movimento, mas com uma linguagem mais focada nos movimentos
sociais”.
Segundo ela, duas pessoas foram importantes para a negociação que
culminaria no lançamento do tabloide, Duarte Pereira, que tinha muitas
relações com os católicos de esquerda, e Barbosinha, pelo PCdoB.
“Todos nós tínhamos uma cota para distribuir, para manter o jornal
financeiramente. Eu era responsável por três células partidárias que
tínhamos no ABC”.
Jô Azevedo, jornalista católica ligada ao MCV, relembra:
A gente levava o Movimento para a base, eu levava 10 ou 12
exemplares toda semana, aí o pessoal começou a reclamar que
era muito texto, as análises eram pesadas, a letra era muito
miúda, todas aquelas reclamações bem de base mesmo...
Começou um falatório desse tipo e aí o pessoal da redação –
Raimundo, Flávio de Carvalho – falou: “o negócio é fazer um
suplemento, o que vocês acham?” A gente topou na hora.4
Em fevereiro de 1977, Assuntos, o “suplemento de artigos do jornal
Movimento”, seria impresso pela primeira vez, com uma tiragem de 5
mil exemplares e pelo preço de 2 cruzeiros (R$ 1,95). Era um tabloide
de 8 páginas com um resumo de matérias publicadas no semanário. Na
sua pauta, a defasagem entre preços e salários, as condições de vida dos
trabalhadores, o movimento sindical. Mostrava, por exemplo, como o custo
de vida aumentava exorbitantemente a cada ano: de 1964 a 1977, o salário
mínimo passou de 42 para 1.106 cruzeiros, enquanto o índice de custo
de vida saltara de 54 para 2.542 cruzeiros.5 A situação ficou ainda pior
porque o governo manipulou propositalmente o cálculo do custo de vida,
que era tomado como base nos aumentos salariais anuais. Em 1973, a alta
real da inflação havia sido de 26,68%, mas os dados oficiais registraram
apenas 13,7%. Ou seja: os trabalhadores receberam um reajuste muito
menor do que era necessário para continuar comprando as mesmas coisas.
Lembra Jô Azevedo:
A inflação comendo solta. Era uma coisa horrorosa porque a
política de contenção salarial era muito bem orquestrada, eles
contraíam os salários e o capital rendia um horror. O que você
ganhava num dia, tinha que gastar tudo em seguida, senão
comprava só a metade das coisas na semana seguinte.
3 Entrevista de Celeste Dantas em 16 de abril de 2010.
4 Entrevista de Jô Azevedo em 17 de abril de 2010.
5 “O jogo do perde-perde”. In: Assuntos, setembro de 1977.

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Assuntos e o movimento contra a carestia

Dentro do MCV despontaram lideranças como o metalúrgico Santo Dias


da Silva e sua esposa Ana Maria do Carmo, moradores do Jardim Santa
Teresa, em Santo Amaro. Nascido no interior de São Paulo, Santo Dias
era inspetor de qualidade na fábrica Metal Leve, membro da comunidade
católica e desempenhou papel destacado na rearticulação do sindicalismo
na capital. Participaria, nos anos seguintes, da constituição da Oposição
Sindical Metalúrgica, grupo que faria frente à direção “pelega” do sindicato
paulistano. Assim, enquanto Ana discutia a questão do custo de vida nos
clubes de mães, Santo discutia nos grupos de fábricas.
Uma das principais estratégias do MCV era a realização de pesquisas
entre a população da periferia, feitas pelos voluntários de porta em porta.
Os resultados confirmavam aquilo que todos já sabiam: os salários não
acompanhavam a alta dos preços. Dizia a primeira carta do MCV às
autoridades:
Nós, as mães da periferia de São Paulo, que mais sentem
a realidade da vida, viemos pedir aos senhores que tomem
providências para baixar o custo de vida, porque o Brasil é
uma terra tão rica e as mães choram na hora de por a panela no
fogo para fazer a comida para os filhos.6
Em 1977, graças à persistência das lideranças, o tema havia caído na
boca do povo.
Assuntos dava uma contribuição, explicando os complexos temas
econômicos que as donas de casa tentavam enfrentar. “A gente se
propunha a fazer isso, sobretudo nessas matérias de economia, usar uma
linguagem que fosse mais acessível”, explica Marcos Gomes, então editor
de economia de Movimento. “Me liguei ao Movimento do Custo de Vida e
o meu contato com esse pessoal era devido ao fato de eu poder falar desses
assuntos de uma forma talvez menos fechada, sem esse linguajar todo”.
A primeira edição de Assuntos, de fevereiro/março de 1977, ilustrava
bem a proposta. Abaixo do nome, em azul, um grande desenho em preto
trazia um torniquete espremendo a palavra “salários”. Em baixo, a linha
fina: “O preço do feijão é alto. O salário do trabalhador é baixo. Saiba
por que o salário baixo faz o preço do feijão aumentar”. No centro da
página, uma charge de Chico Caruso mostrava um senhor, de boca e olhos
arregalados, diante de um balcão de armazém onde se lê “café: 44,00 o
quilo”. Atrás do balcão, um vendedor comenta para outro: “Não sei, ele
está aí parado desde o último aumento”.
Além da publicação de Assuntos, e de uma cobertura detalhada do
MCV no próprio semanário, a equipe de Movimento estabeleceu uma
forte relação com lideranças importantes da zona sul de São Paulo. Em
especial, com o próprio Santo Dias, que frequentava a redação, como
recorda sua esposa Ana Maria:7 “Eu fui algumas vezes na redação, mas
6 Dias, Luciana; Azevedo, Jô; Benedicto, Nair: Santo Dias. Quando o passado se transforma em
história. São Paulo Ed. Cortez, 2004.
7 Entrevista de Ana Maria do Carmo Dias em 13 de abril de 2010. As famílias de Santo Dias e de

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Jornal Movimento, uma reportagem

o Santo ia mais. O Santo era muito próximo do Raimundo...” Tal ligação


estendia-se à prática militante, segundo ela.
Pra nós, o Movimento tinha todas as informações que a gente
não tinha em outro jornal. Tínhamos um grupo pra estudar e
preparar a atividade nos bairros, e era muito importante ter
conhecimento, até pra nossa própria segurança.
Movimento chegou a fazer parte do dia a dia da família de Santo, segundo
depoimento da filha Luciana:
O Movimento foi uma coisa muito presente na minha infância.
Eu lia à noite, o meu pai pedia para ler alguns textos em casa
para saber como estava a leitura. Ele fazia acompanhamentos
esporádicos porque participava de muita reunião, articulação,
então às vezes chegava à noite e dizia: “lê o boletim do
sindicato, lê esse artigo do Movimento, e vamos ver o que você
entendeu”. E eu lia. Eu gostava de ver a capa, sempre tinha
uma caricatura com os fatos do momento.8
Ana Dias lembra:
O Assuntos vinha pra nossa casa e meu filho e minha filha
ficavam organizando, já que ele não vinha separado, pra gente
distribuir na periferia. Lembro que meu marido acordava
muito cedo e levava esse jornal preto, com a chamada em azul,
a todos os grupos possíveis e imagináveis.
Nelson Nakamoto, ex-metalúrgico e um dos dirigentes da Oposição
Metalúrgica junto com Santo Dias, se recorda das reuniões com Raimundo
Pereira: “Ele também fazia palestras para a gente em vários lugares, na
capela do Socorro, em igrejas, sobre análise de conjuntura, que davam
uma fundamentação melhor para o nosso trabalho. Ampliava a visão
política”, diz Nakamoto.9 E completa Maria Eunice Campanha,10 à época
coordenadora do MCV:
Vinha o Raimundo, o Duarte Pereira, o Marcos Gomes, vinha
um pessoal que era da USP, o Suplicy, vinha o Octavio Ianni...
Mudava o governo, mudavam os militares, e eles ajudavam
a entender de que linha que era, o que tava acontecendo nas
forças armadas, o papel do Delfim Netto no capitalismo...
Muitas das análises de conjuntura que a gente conseguiu fazer
na época vinham dali.
Em um jornal já sobrecarregado de tarefas e sem dinheiro, fazer Assuntos
significava mais um trabalho “extenuante”, nas palavras de Marcos Gomes.
Mesmo assim, durante o ano de 1977, a equipe lutou para torná-lo mensal,
sem sucesso. Havia entusiasmo nas sucursais – como a de Belo Horizonte, que
decidiu adotar a venda do tabloide como prioridade. Por decisão do Conselho

Raimundo Pereira se frequentavam amigavelmente.


8 Entrevista de Luciana Dias em 8 de abril de 2010.
9 Entrevista de Nelson Nakamoto em 15 de abril de 2010.
10 Entrevista de Maria Eunice Campanha em 15 de abril de 2010.

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Assuntos e o movimento contra a carestia

de Redação, Assuntos havia se tornado o segundo produto da Edição S/A, e


foram dedicadas a ele diversas reuniões internas. Em novembro, ficou decidido
que o suplemento seria registrado como uma publicação independente de
Movimento, sua distribuição seria ampliada em bancas, e ele ganharia uma
estrutura fixa de produção dentro da redação. Mas não foi assim.
“Assuntos passava um tempo sob responsabilidade de um, depois
de outro... Ia mudando”, lembra Jô Azevedo. Isso, dentro da estrutura
já superocupada de Movimento, que incluía dois outros dedicados
funcionários: Maria Leonor Viana, uma ex-freira também moradora
da zona sul; e Paulinho (Paulo Koza), que cuidava da administração.
Embora não pertencesse formalmente à equipe do jornal, Sizue Imanishi,
companheira de Raimundo Pereira, que já dava apoio ao Movimento do
Custo de Vida, na zona sul da capital, também participou constantemente
dos trabalhos de apoio a Assuntos. Por parte das organizações populares,
havia um “conselhinho de redação”, nas palavras da jornalista, um grupo
de lideranças que ia às reuniões de pauta para avaliar a edição anterior
e decidir a próxima. “Íamos eu, a Ana Batista, uma freira do vale do
Jequitinhonha, o Santo Dias, o Fernando do Ó, o Nakamoto. Tinha uma
turma que era habitual”, diz Jô. “A gente fazia uma pauta, levantava os
assuntos que achava interessantes, o que ia acontecer dali pra diante, fazia
uma análise de como estava o Movimento, e, de parte do jornal, o Roldão
também falava como estava a redação”.
Com 21 anos, vindo de Londrina, o jornalista Roldão Oliveira Arruda
assumiu Assuntos em meados de 1978. “Quando eu peguei estava meio
que morrendo, não tinha gente pra tocar, estava com dificuldade. Aí
me deslocaram para lá. Eu carregava muito o piano do jornal, era eu
que escrevia as matérias, editava, ia para a periferia”, lembra ele.11 Na
reunião de pauta, era também o Roldão que tinha que enfrentar a bronca
dos ativistas. “A gente reclamava muito. ‘Pô, você não conseguiu colocar
aquela história, não deu pra ver aquele tema?’”, lembra Jô Azevedo. Para
ela, havia um abismo entre o pessoal de Assuntos e o resto da redação.
No meio de campo, Roldão Arruda procurava casar duas visões distintas
– uma mais analítica e outra mais prática – na construção do jornal.
A questão essencial era isso: o pessoal da base participava da
seleção dos assuntos, então pegava o jornal Movimento e dizia
o que íamos fazer: “Olha, pra nós é interessante este assunto,
este aqui vai dar mais repercussão”. Eles pediam temas
de mais apelo popular, como o Patativa do Assaré, o Pelé...
Como também não tinha a mesma periodicidade do jornal
Movimento, às vezes você pegava várias edições para fazer
uma seleção que a gente procurava que fosse democrática, com
a participação do pessoal que vinha pra reuniões desse tipo.
Mas passava sempre por uma aprovação final do Raimundo.
11 Entrevista de Roldão Oliveira Arruda em 17 de abril de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Embora nunca tenha sido um sucesso comercial, o tabloide teve


importância, em especial na zona sul da capital.
Diz Maria Eunice Campanha:
Na época eu dava aula em grupos de mulheres, de
alfabetização. E esse era um material de leitura que a gente
tinha. Pra quem trabalhava com movimento popular o Assuntos
trazia numa linguagem mais acessível, e temas importantes que
não necessariamente estavam na mídia. Era uma ferramenta
para o trabalho de formação política. Nos grupos de clubes
de mães era muito importante pra abordar as pessoas. Porque
era uma coisa complicada na época, ninguém dava tanta
credibilidade a um panfleto sobre nosso movimento, mas era
diferente quando você estava com um jornal. Era mais aceito
pelas pessoas, muito melhor que um papelzinho.
No segundo semestre de 1977, o debate sobre os índices do custo de
vida ganhou um novo impulso quando se tornou público que o governo
havia falseado os dados de 1973. Movimento acompanhou de perto essa
discussão. Em 26 de setembro, publicou uma matéria reproduzindo o
depoimento de Eduardo Matarazzo Suplicy à Comissão de Economia do
Senado. A chamada na capa: “Os metalúrgicos têm razão”. “A subestimativa
dos índices de preços, nesse período, é uma mostra de como um poder
discricionário muitas vezes consegue submeter as melhores instituições
e indivíduos a seus objetivos, ainda que por métodos discutíveis, e
mesmo que as consequências destes atos sejam da maior gravidade sócio-
econômica”, afirmou Suplicy.12
No mesmo mês, Assuntos trazia na capa a manchete “A briga dos salários
contra o custo de vida”. Dentro, uma grande reportagem explicava por
que o governo tinha modificado propositadamente o cálculo em 1973 e
analisava quais as consequências para os trabalhadores. Outra matéria
dizia que os trabalhadores tinham que se organizar para não perderem
sempre com a inflação.
O Movimento do Custo de Vida teve seu ápice em 1978, ano em que
promoveu um abaixo-assinado que arrecadou nada menos do que
1,2 milhão de assinaturas. Mutirões foram organizados em todo o País,
com grupos de estudantes, intelectuais e operários levando a lista para
as fábricas. O que pedia o abaixo-assinado? Congelamento dos preços de
primeira necessidade, aumento do salário para recuperação das perdas
e abono salarial de 30% imediato e sem desconto. A campanha pelas
assinaturas, lançada em uma reunião no Colégio Arquidiocesano, na Vila
Mariana, em 12 de março de 1978, juntou cerca de 5 mil pessoas, sob forte
observação dos “arapongas” – informantes policiais.
A equipe de Movimento cobria tudo com destaque. “Quando teve os
lançamentos do MCV, quem estava lá na frente? O Movimento. Quando
12 Movimento 117, 26 de setembro de 1977.

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Assuntos e o movimento contra a carestia

quase fomos presos, vivíamos aquele inferno, o Movimento deu muita


cobertura para o MCV”, diz Ana Dias.
Em agosto, o abaixo-assinado foi encerrado com um grande ato oficial
na Praça da Sé. Vinte mil pessoas comparecem; no final da cerimônia,
policiais cercaram a praça e a tropa de choque invadiu a Igreja.
O confronto foi matéria de capa em jornais da grande imprensa, que
estamparam também a justificativa do comandante da PM, de que teria sido
obrigado a agir porque as lideranças do MCV já não conseguiam controlar
a multidão. Em Movimento, é claro, a descrição era bem diferente:
Em São Paulo, as autoridades não foram à catedral receber
1 milhão e 200 mil assinaturas contra a carestia. Mas receberam
o povo com a polícia, cachorros e bombas. Apesar disso,
20 mil pessoas se reuniram e decidiram enviar uma comissão
a Brasília para levar as assinaturas ao presidente.
Depois da entrega das assinaturas, sem uma demanda concreta e um
projeto mais definido, o MCV foi perdendo sua força ao mesmo tempo em
que ascendia a organização sindical do movimento operário.
E a curta vida de Assuntos ia chegando ao fim. A estrutura reduzida, a
falta de recursos e a sobrecarga de trabalho fizeram com que esse jornal
jamais alcançasse a meta de ser mensal, nem a de ser autossustentável. A
equipe tentou até mesmo obter recursos no exterior, particularmente na
Europa, junto a entidades religiosas. Marcos Gomes e sua companheira
Elza estiveram por 50 dias em vários países, fizeram contato com inúmeras
organizações. Foram muito bem recebidos, mas não obtiveram resultados
materiais significativos.
Esgotadas as possibilidades, em uma reunião em 22 de agosto de 1978,
o Gruex (Grupo Executivo do Conselho de Direção) reconheceu que
Assuntos
sofre imediatamente as consequências dos problemas de
Movimento, já que ele é na pratica um filho dependente do
Movimento. Sua produção é difícil, toma tempo e sobrecarrega
os redatores. Além disso, ao contrário do que se poderia esperar,
o crescimento do movimento popular dos últimos meses não se
refletiu em aumento de vendas e crescimento do jornal.
A discussão, relatada em uma carta aos colaboradores13, prosseguia:
Em São Paulo já é possível até pensar num jornal diário de
trabalhadores. Já existe um público para ele. Mas então por que
encontramos ainda grandes dificuldades com o Assuntos? É
que para o jornal crescer em São Paulo seria necessário contar
com a colaboração mais ativa das lideranças do movimento
popular, no entanto essas lideranças estão atulhadas de tarefas
e se, no início do jornal Assuntos, participavam ativamente do
projeto, hoje isso parece ser impossível. E, por outro lado, tanto

13 AP 286.02.02 Fnd Mov APSP.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Assuntos como qualquer outro jornal mais diretamente popular


ainda não tem condições de se manter independentemente em
termos econômicos.
Algumas propostas foram encaminhadas. Raimundo propôs fundir
Assuntos com Movimento, nas quatro páginas centrais que poderiam
ser vendidas depois em separado. Tonico Ferreira propôs que a equipe
incentivasse a criação de jornais independentes da base popular a partir
das sucursais. Raimundo chegou também a propor a simplificação do
Movimento, transformando-o em uma publicação mais opinativa, para
que fosse possível uma maior dedicação a Assuntos. Porém, prevaleceu a
decisão de focar as energias em Movimento.
Assuntos deixou de ser editado no fim de 1978.

MORTE DE SANTO DIAS


Cerca de um ano depois, no final de 1979, os movimentos popular e sindical
perderiam um grande amigo, Santo Dias. Foi uma grande perda também para
seus companheiros de Movimento. Ele foi assassinado no segundo dia da gre-
ve geral convocada pelos metalúrgicos de São Paulo. A greve fora organizada
pela Interfábricas, uma congregação de comitês de fábricas, apoiada pela opo-
sição metalúrgica de São Paulo, à revelia da diretoria “pelega” do sindicato.
E não conseguira até então uma adesão significativa. Em 30 de outubro, Santo
saiu com dois colegas da Capela do Socorro – sede da organização da greve
– para reforçar o trabalho na frente da fábrica da Sylvania, chamando os ope-
rários para uma assembleia. Por volta das duas da tarde, chegaram policiais,
que prenderam um manifestante e tentavam prender outros, Santo entre eles.
No tumulto, tiros para o ar. Um PM mirou nas costas dele e atirou. Santo Dias
morreu pouco depois. O assassinato causou um grande choque. Movimento
imediatamente fez uma edição especial sobre o líder, narrando com detalhe
os eventos antes e depois do crime, além de apresentar um perfil de Santo.
A capa foi desenhada por Elifas Andreato – deferência reservada às
edições sobre grandes personalidades ou acontecimentos – e a manchete
anunciava “O assassinato que revoltou São Paulo”. A reportagem
começava assim:
Quantos mortos já tombaram sob o disparo das armas ou
sob os instrumentos de tortura e de repressão dos governos
militares? Quanto sangue foi derramado? Quantas lágrimas?
Quantas vezes acompanhamos nossos mortos até a sepultura,
silenciosos ou entoando cânticos e refrões? Santo Dias da
Silva, 37 anos, casado, pai de dois filhos, líder metalúrgico
morto na terça-feira da semana passada após um choque entre
grevistas e policiais, não foi o primeiro, nem será o último.14
“Fizemos uma cobertura completa, mesmo porque conhecíamos Santo
Dias, sua família, seu trabalho. Ele era nosso amigo”, declarou Raimundo

14 Idem.

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Assuntos e o movimento contra a carestia

Pereira em entrevista a Jô Azevedo anos depois para o livro Santo Dias -


Quando o passado se transforma em história.
A morte do líder representou, também, um marco na ascensão dos
movimentos operários não só em São Paulo, mas no Brasil. No dia seguinte
ao assassinato, uma multidão indignada tomou a rua da Consolação até
a catedral da Sé. Os participantes cantavam “Pra não dizer que não falei
das flores”, de Geraldo Vandré, símbolo da luta contra a ditadura. O jornal
Movimento apontou 30 mil pessoas no cortejo; os demais jornais, 10 mil.15
“Passamos a madrugada fazendo panfleto”, lembra Jô Azevedo.
De manhã fomos para as portas das fábricas. Diz que o
pessoal ficou tão puto que as empresas tiveram que liberar os
trabalhadores com medo que fossem quebrar tudo. A praça
Roosevelt encheu de gente, a cidade virou um caos. Tinha
gente pra tudo quanto é lado. Nunca tinha visto aquilo.

Assuntos número 1, fevereiro/março de 1977

15 Dias, Luciana; Azevedo, Jô e Benedicto, Nair: Local Ed. Cortez, 2004.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição 252, 28 de abril de 1980.


Desenho de Elifas Andreato

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20
O movimento dos
metalúrgicos do ABC

A
foto dos operários na porta da fábrica e a manchete em le-
tras garrafais e vermelhas “As fábricas param” compunham
a primeira página da edição 151 de Movimento, que chegava
às bancas em 22 de maio de 1978. Dez dias antes, a Scania,
onde a fotógrafa Rosa Gauditano fez a foto da capa, havia
parado, tornando-se “a primeira de uma série que estourou no final de
semana retrasado em São Bernardo do Campo, um município da Grande
São Paulo, coração da indústria automobilística”, registrava a abertura da
matéria na página 3 da mesma edição, assinada por Sérgio Buarque, editor
de Nacional, e Paulo Barbosa.
Desde o ano anterior, o semanário vinha acompanhando de perto o mo-
vimento sindical que ressurgia no ABC – Santo André, São Bernardo do
Campo e São Caetano do Sul – entre os 250 mil metalúrgicos da região, a
segunda maior concentração da categoria no País, superada apenas pela
capital, com 300 mil metalúrgicos.1
Mesmo estando atento, o jornal foi surpreendido pela greve de 1978,
“que começou com 100 operários” e que no final de semana seguinte já
“envolvia 30 mil”,2 e pela capacidade de mobilização de seu líder, o pre-
sidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, Luiz
Inácio. Lula despontara como liderança sindical na campanha salarial de
1977, quando os metalúrgicos do ABC romperam o silêncio e criticaram
abertamente a política salarial do governo, denunciando a manipulação
dos índices de inflação e exigindo um reajuste referente a 1973, como se
viu antes. Até então, ele era um ilustre desconhecido, não apenas para a
imprensa, mas também para os que participavam dos movimentos que
compunham a frente pela redemocratização, das organizações de esquer-
da e dos grupos comunitários ligados à igreja.
Em 1978, além de criticar a política salarial do governo, reivindicando
o direito de negociar livremente com os empresários, os metalúrgicos do
1 Movimento 152, 29 de maio de 1978.
2 Idem.

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Jornal Movimento, uma reportagem

ABC desafiariam o decreto presidencial que proibia as greves, inflamando


também a Oposição Metalúrgica de São Paulo. As greves se alastraram
pela capital e outras cidades. Ao longo de nove semanas, entre 12 de maio
e 13 de julho de 1978, 245 mil trabalhadores paulistas sucessivamente
cruzaram os braços.3

ENTUSIASMO E DESCONFIANÇA
O entusiasmo com o ressurgimento do movimento sindical transparecia nas
páginas do semanário desde a primeira matéria feita com os metalúrgicos
de São Bernardo, ainda na edição 89 (14 de março de 1977), com o título “O
que querem os metalúrgicos”. Assinada por Rachel Moreno, a reportagem
destacava o número incomum de operários presentes na primeira assembleia
daquele ano – “cerca de 2.500 pessoas”, que, segundo ela, “se comprimiam
no salão do sindicato” de São Bernardo; e a liderança de Lula, transcrevendo
um trecho do discurso em que ele buscava acalmar os operários, preocupa-
dos com boatos de demissões coletivas no ABC:
Não há desemprego. É um jogo dos patrões, até prova em con-
trário. O governo tomou medidas quanto à gasolina, e as empre-
sas automobilísticas se sentem lesadas. Daí o jogo do capital mul-
tinacional para fazer o governo reconsiderar sua posição.
Ao lado desse entusiasmo do jornal com a movimentação dos trabalhado-
res, porém, se evidenciava certa dúvida quanto ao amadurecimento político
dos operários e, principalmente, a respeito das intenções de seu líder – sem
discurso de esquerda nem passado de enfrentamento da ditadura militar. Tal
dúvida não era privilégio de Movimento, como lembra Carlos Alberto Li-
bânio Christo, Frei Betto, frade dominicano, ex-militante da ALN, que foi
encarregado de integrar a Pastoral Operária do ABC em 1979:
Havia muita especulação a respeito de quem era esse cara cha-
mado Lula. Tanto do ponto de vista da direita como da esquerda.
Que o Lula era da CIA, que o Lula fez treinamento nos Estados
Unidos, que Lula isso... porque o Lula era um enigma, na medida
em que ele não se enquadrava em nenhum dos nossos precon-
ceitos. Isso irritava os partidos comunistas, o fato de um operário
ousar querer ser a vanguarda do proletariado (...).4,
opina Frei Betto, que logo, se tornaria próximo de Lula e posteriormente
participaria de seu primeiro governo, em 2003.
Essa dúvida transpareceu na edição 124, de 14 de novembro de 1977,
quando um artigo na seção Ensaios Populares comentou uma entrevista
pingue-pongue de Lula ao repórter Ascânio Jatobá, publicada na edição
123 do jornal. Sob o título “A Constituinte, o Partido, os intelectuais e
os trabalhadores”, o texto reafirmava a importância de uma Assembleia
Constituinte para a redemocratização do País – uma das principais ban-
3 Movimento 159, 17 de julho de 1978, quadro na pág. 15.Fontes: Folha de S.Paulo, O Estado de S.
Paulo, Jornal do Brasil, Isto É.
4 Entrevista com Frei Betto em 24 de abril de 2010.

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O movimento dos metalúrgicos do ABC

deiras do jornal, e que veio a ser um dos pontos cardeais da frente política
que lutou pela democratização. E acrescentava:
É indiscutível, porém, que (a luta pela Constituinte) já pode-
ria ter andado mais rápido se não estivesse enfrentando além
dos obstáculos externos, incompreensões por parte de setores
do próprio movimento popular. A entrevista de Luiz Inácio da
Silva, combativo presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de
São Bernardo, é um exemplo. Indeciso, Luiz Inácio declarou:
“Eu tenho me manifestado meio contrário à Constituinte”.
O ensaio continuava:
Luiz Inácio manifestou outras opiniões discutíveis. Comen-
tando as articulações para a reorganização de um partido “tra-
balhista” (feitas pelo secretário do Trabalho do governador
paulista, Abreu Sodré, junto aos “pelegos” do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo), declarou: “Tenho uma visão meio
radical da coisa. Eu acho que resolver o problema da classe tra-
balhadora independe de partido trabalhista, de partido socia-
lista, de MDB ou Arena. Depende sim, primeiro, de o sindicato
ter liberdade para abertamente indicar seu candidato. Segun-
do, o sindicato levar à classe trabalhadora quem é realmente
candidato da classe”.
Sobre isso, comentava o texto:
Luiz Inácio está preocupado, possivelmente, com os falsos
“partidos trabalhistas”, com os falsos “partidos socialistas”,
(…) mas a solução que aponta é igualmente enganosa: na his-
tória do movimento operário, ela é conhecida como solução
“anarco-sindicalista” (…)
Em seguida, apresentava sua crítica central em relação ao discurso do
líder operário:
Luiz Inácio declarou ainda: “O trabalhador tem que votar em
trabalhador, em seu companheiro de fábrica, naquele que pas-
sou 12 horas produzindo”. É uma afirmativa ambígua que se
presta a uma interpretação “obreirista”. Por “obreirismo” se
entende, na história do movimento operário, o ponto de vista
de que só os operários podem defender os interesses dos ope-
rários. Ora, como é fácil observar, muitos operários não têm
consciência de sua posição na sociedade e de seus problemas;
não basta, portanto, ser operário para automaticamente encar-
nar e defender de fato os interesses dos operários...

PELEGO OU INGÊNUO?
A suspeita de que Lula não fosse mais do que um pelego, ou pelo menos um
líder sindical despolitizado que conviria ao regime militar, se expressou em
outro artigo, este do editor de Nacional, Sérgio Buarque, curiosamente escrito
sob o pseudônimo Roberto Suzedelo (que ele utilizara antes, em Opinião,

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Jornal Movimento, uma reportagem

por trabalhar no Estadão).5 Lula acabara de se reeleger presidente do sindi-


cato dos metalúrgicos do ABC com 97% dos votos, fato que é o “gancho” do
artigo publicado na página 2: “A vitória (e as ideias de Lula)”. Nele, Buarque
comentava o “prestígio” do líder sindical, que andava “merecendo amplas
reportagens da imprensa diária” e recebendo elogios do comandante do II
Exército, general Dilermando Monteiro (que declarara ao Jornal do Brasil que
a reeleição de Lula era “muito interessante” e “muito importante”); do gran-
de empresário Luiz Eulálio Vidigal, presidente do Sindipeças (“É um líder
sério, não tem nada de político, não vai querer faturar”); e até do ex-ministro
Delfim Netto (“O Lula é uma das coisas mais importantes que têm acontecido
neste país”). Buarque também relatava uma audiência exclusiva de Lula com
Petrônio Portella, assinalando que no dia anterior o senador arenista havia
recebido um “magote de dirigentes sindicais considerados pelegos”.6
O editor de Nacional também criticava o fato de Lula separar o movi-
mento sindical do movimento estudantil e dos intelectuais e de se negar
a assumir as bandeiras pela redemocratização do País. Na conclusão do
artigo, ao comentar a frase de Lula dizendo que “Arena e MDB são farinha
do mesmo saco”, Sérgio Buarque não perdoava:
Ao generalizar, Lula comete o erro que cometeria uma pes-
soa que desprezasse os sindicatos. (…) Seria como se alguém
dissesse: “Se a estrutura sindical fomenta o peleguismo, todos
os dirigentes sindicais são pelegos. Para mim, o Lula e o Ary
Campista (o pelego da Confederação dos Trabalhadores na In-
dústria) são farinha do mesmo saco”.7
“Com certeza minha intenção, ao publicar esses comentários, foi iro-
nizar o Lula”, rememora Sérgio Buarque. De acordo com o ex-editor de
Nacional:
Havia de parte a parte uma certa desconfiança: ele não tinha
ligação com a esquerda, e parecia não gostar dela. E isso não
era apenas um sentimento meu ou do Raimundo. Quando o
chamei de “líder popular”, em uma matéria, fui contestado na
reunião de crítica dessa edição: o pessoal das organizações de
esquerda que estava no jornal tinha um pé atrás danado com
ele, e ele conosco. Cansei de levar chá de cadeira tentando
entrevistá-lo sem conseguir.8

VIVA A GREVE!
As restrições a certas posições de Lula não impediram Movimento de fazer
uma cobertura completa, claramente a favor das lutas dos operários, de todas
as greves do ABC – de 1978 a 1980. Houve sempre o cuidado em separar o

5 Em entrevista de 24 de maio de 2010, Sérgio Buarque de Gusmão disse não lembrar o motivo de
ter usado um pseudônimo.
6 Transcrito do artigo “A vitória (e as ideias) de Lula”, da edição 140 de Movimento, 6 de fevereiro
de 1978.
7 Idem.
8 Entrevista de Sérgio Buarque de Gusmão em 24 de maio de 2010.

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O movimento dos metalúrgicos do ABC

material opinativo da reportagem, o que se percebe já no texto seguinte de


Sérgio Buarque, assinado com seu nome verdadeiro: a reportagem de capa da
edição 151 sobre a greve da Scania, que iniciou a onda de greves do fim da
década de 1970.
Detalhada, a reportagem contava que a greve fora articulada “em 48 ho-
ras a partir do momento em que os operários receberam os envelopes de
pagamento” (com o reajuste salarial bem abaixo do esperado e com o des-
conto de uma antecipação salarial concedida entre novembro e janeiro,
apesar da enorme defasagem entre salários e custo de vida) e relata: “No
mesmo dia, começou o cochicho, passado de boca em boca, de mão em
mão, de olho em olho: ‘vamos parar’”.
Buarque conseguiu entrar na Scania no dia 15 de maio, ainda em greve.9
Estava lá dentro quando os operários ficaram sabendo que seus colegas da
Ford também tinham parado, como conta na mesma reportagem: “Os ope-
rários mantêm a fábrica silenciosa (…) Um grupo está ouvindo no rádio
notícias da greve. De repente, alguns pulam, alegres, dão socos no ar. O
rádio está dizendo que a Ford parou”.
Em seguida, o repórter relatava todos os passos da negociação na Scania:
da recusa de Lula, “já nervoso com a notícia da morte do pai”, em compa-
recer à fábrica, como queria a direção da Scania, até a resposta dada ao de-
legado regional do Trabalho quando este pediu que os operários formas-
sem uma comissão para negociar: “Numa atitude que manteriam sempre,
os trabalhadores responderam que só dialogariam em assembléias, aquele
movimento não tinha líderes”. E comemorou quando Lula obteve da Sca-
nia, depois de quatro horas de negociação, a permissão para que os operá-
rios fizessem, no quarto dia de paralisação, uma assembleia, “a primeira
que se realizou numa fábrica – 1.600 operários gritando à vontade”.10
A trégua de 30 dias, concedida pelos operários à direção da Scania até que
atendesse às reivindicações dos grevistas (20% de aumento real, não des-
conto dos dias de greve e não perseguição aos grevistas), não enfraqueceu
o movimento, como mostraria Buarque na edição seguinte, a 152, de 29 de
maio de 1978. A essa altura, a greve já paralisava a produção, completa ou
parcialmente, em 28 fábricas do ABC e de Mauá e Ribeirão Pires, municípios
que também fazem parte da região metropolitana de São Paulo. Na repor-
tagem, bastante censurada, ele narrava a greve da Ford e a dos ferramentei-
ros da Volks. A diretoria desta se negou a negociar com os 5 mil operários
especializados, “os mais bem pagos da indústria automobilística”, segundo
a reportagem, que explicava: “eles dizem que lutam mais pelos peões, que
ganham Cr$ 2.500,00 por mês e ‘chegam a trocar cinco macacões por dia, de
tanto que suam’”. Para coibir a greve, dizia a matéria,
a direção da Volks encontrou um meio: selecionou 28 ferramen-
teiros, alguns com mais de dez anos de casa, chamou ao departa-
mento pessoal e avisou que seriam demitidos. O que fazer? A lei
9 Entrevista de Sérgio Buarque de Gusmão, citada.
10 Movimento 151, 22 de maio de 1978.

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Jornal Movimento, uma reportagem

permite a demissão por justa causa pois a greve (dos metalúrgi-


cos do ABC) já foi considerada ilegal pelo Tribunal de Justiça de
São Paulo. Os ferramenteiros, preocupados com o futuro de seus
companheiros, resolveram voltar ao trabalho.11
Além de se preocupar em cobrir a greve do ponto de vista dos operários,
Movimento se diferenciava também pela intenção, que seria mantida, de
cobrir o lado dos empresários, não apenas do ponto de vista de suas po-
sições políticas, como fazia a grande imprensa, mas de suas finanças e
negócios. A informação sobre o lucro das empresas era vital, porque o
governo dizia que não permitiria o repasse dos aumentos salariais para os
preços, e os empresários alegavam que não tinham condições financeiras
de melhorar os salários. Buarque já havia feito uma matéria sobre as pro-
priedades rurais da Volkswagen na edição 103, de 20 de junho de 1977, e
repetiu a dose na edição 156, de 26 de junho de 1978, uma das primeiras
depois da censura. Desta vez a reportagem trazia o título aberto em duas
páginas: “A Capitania da Volkswagen” – e o “olho”: “A empresa alemã
veio fabricar carros, mas hoje tem uma capitania no Pará: 140 mil hectares
para a criação de 110 mil bois. E tudo é financiado pelo governo com o
dinheiro de nosso imposto de renda”.

SEGUE A POLÊMICA
Nessa mesma edição 156, Raimundo Pereira assinava um longo artigo “Qua-
tro razões para as greves”, explicando “as razões políticas para a onda grevis-
ta”, que naquele momento atingia, segundo ele, “200 fábricas e quase 200 mil
trabalhadores”, incluindo os da capital. Os principais pontos da argumenta-
ção do editor-chefe de Movimento eram:
1) “As causas da greve devem ser buscadas principalmente na política
salarial do governo e nas condições de trabalho nas fábricas”; 2) “nas con-
dições subjetivas bastante favoráveis (...): é cada vez maior o número de
operários conscientes de que só com a participação ativa e organizada se
conseguirá para o proletariado e outras camadas populares as melhorias
nas condições políticas e materiais de vida”; 3) “O fato de o movimento
operário oposicionista ser amplo, de congregar várias correntes de opi-
nião, desde as de um Luiz Inácio, passando por alas democráticas que
antes de 64 estavam engajadas em movimentos de oposição aos dirigentes
sindicais” – ou seja, na sua visão, do “moderado” Lula, à esquerda (Opo-
sição Sindical de São Paulo). E continuava: “O caráter amplo do movi-
mento permitiu que ele mobilizasse a massa operária, nos seus diversos
e geralmente atrasados níveis de consciência política e atraiu simpatia de
outras camadas democráticas da sociedade”; 4) O “fato de os trabalhado-
res estarem completamente marginalizados dos objetivos gerais da produ-
ção e da política econômica do país.”

11 Idem.

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O movimento dos metalúrgicos do ABC

Diz Raimundo hoje sobre esse texto: “O pessoal estava se atribuindo


muita importância e escrevi isso aí contestando a leitura personalista que
se fazia das greves”.12
Alguém pode discordar dessa análise, mas não há como dizer que ela foi
feita da “torre de marfim”, longe dos acontecimentos e personagens reais.
Na edição imediatamente anterior a esta – a 155 –, Raimundo estava na
foto da capa do jornal, misturado aos grevistas dentro da fábrica da Cater-
pillar, com uma seta identificando-o em meio aos peões. Nesse período,
a imprensa não conseguia entrar nas fábricas, mas o editor-chefe de Mo-
vimento “foi confundido com um operário, passou cinco horas na Cater-
pillar e entrevistou 50 operários”, de acordo com o olho da matéria, com o
título “Nós vimos a greve por dentro”, publicada nas páginas 9 e 10.
Com depoimentos concretos, Raimundo mostrava a condição de traba-
lho nas fábricas – “o trabalho é exigente, pesado, extenuante”, dizia, dan-
do voz a um dos operários:
O padrão que eles estabelecem é o da Caterpillar dos Estados
Unidos, mas se esquecem que lá operário tem tudo, encontra
sempre sua máquina aparelhada. Aqui estou esperando um su-
porte inserido para o torno automático há um ano. Tenho que
segurar peças de 25 quilos com uma mão, enquanto ligo o ar
comprimido com a outra.
Além desse e de outros depoimentos, denunciando desde a manipula-
ção dos índices de acidentes de trabalho até os baixos salários, Raimundo
fez uma sondagem do pensamento político dos operários que deve ter
contribuído para qualificá-lo depois, em seu artigo, publicado na edição
seguinte, de “geralmente atrasado”. Recolheu opiniões do tipo: “Os traba-
lhadores não podem reclamar do governo, ao qual não têm acesso, devem
reclamar é dos patrões que estão perto deles e que podem ser atingidos
pela greve”, ou “O governo não está lá em cima para decidir as coisas por
nós, está lá para assinar as coisas”.
Nada muito diferente do que dizia Lula naquela entrevista concedida a
Movimento ainda em 1977, e criticada pelo jornal na edição seguinte. Per-
guntado por que preferia dialogar com os empresários “se é o governo que
detém todo o poder de decisão no que se refere à política salarial”, de acordo
com Movimento, o presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo
respondeu: “Sabemos que é muito mais difícil brigar com o governo do que
brigar com as empresas. Com as empresas temos muito mais condição de
pressionar, de forçá-las a ceder, do que forçar o governo”.

CLIMA DE OTIMISMO
Mais adiante Lula e seus companheiros perceberiam que era impossível fazer
uma greve no Brasil da ditadura militar sem acabar por se defrontar com o
governo. No dia 4 de agosto de 1978, o general Geisel baixou um decreto limi-
12 Entrevista de Raimundo Pereira em 15 de maio de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

tando ainda mais o direito de greve, o que sinalizava um endurecimento em


relação aos movimentos sindicais cujas duras consequências seriam percebi-
das nas paralisações dos metalúrgicos durante a campanha salarial de 1979.
Naquele segundo semestre de 1978, depois da onda de greves que re-
sultou em aumentos salariais efetivos de 10% a 15% para 500 mil traba-
lhadores, conforme levantamento da época da Gazeta Mercantil13, o clima
de otimismo transparecia na cobertura nacional de Movimento, que tinha
como principais assuntos de sua pauta as greves e a campanha presiden-
cial do general Euler Bentes.
Enquanto isso, os laços entre os metalúrgicos do ABC e da Oposição
Metalúrgica de São Paulo se fortaleciam, e uma greve de professores, no
final de agosto, “paralisou 80 mil professores de São Paulo e 20 mil do
Paraná”,14 no início de setembro houve a greve dos bancários em São Pau-
lo e o protesto do Movimento Custo de Vida na catedral da Sé, já referido.
Todos esses acontecimentos fizeram com que Movimento publicasse uma
capa otimista na edição 166, com uma manchete de 2/3 de página: “O
Povo na Ofensiva”.
Em outubro, a Oposição Metalúrgica havia liderado uma greve que para-
lisou “200 mil metalúrgicos de São Paulo, Osasco e Guarulhos”, segundo
a matéria “A Grande Greve e o Super Pelego”, publicada na edição 175 (4
de novembro de 1978); e foi realizado o I Congresso Nacional pela Anis-
tia. Mas logo se veria que não havia só motivos para comemorar: no mes-
mo mês os metalúrgicos de São Paulo foram obrigados a voltar ao trabalho
porque o presidente de seu sindicato, Joaquim Andrade, o Joaquinzão, fe-
chou arbitrariamente um acordo em nome deles; o diretor de Movimento,
Tonico Ferreira, foi processado, e a edição 177 foi apreendida.

ENFRENTANDO A DITADURA
Os patrões lançavam mão dos recursos de sempre tentando evitar a repeti-
ção da greve de 1978. Em duas edições de final de ano – 180 e 181 (11 de
dezembro e 18 de novembro de 1978) – Movimento trazia reportagens sobre
demissões em massa no ABC, em São Paulo e Guarulhos, com denúncias de
Lula de que “os patrões teriam uma ‘lista negra’ nas mãos com nomes daque-
les que não devem ser admitidos nas grandes empresas”, e os “elementos
com lideranças nas bases”15, como o dirigente sindical “Alemão”, demitido
da Villares. Também publicava a nota oficial do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo e Diadema, assinada por Lula, protestando contra as demis-
sões, qualificadas como “a mais cruel e retrógrada forma de repressão”.16
A edição seguinte, a 181, trazia na capa a manchete “Ditadura nas Fábricas”
e a chamada: “Movimento fala com centenas de operários em dezenas de fá-
bricas: muitos são controlados até quando vão ao banheiro!”. Também trazia
13 Dados extraídos do artigo “Uma influência:
influência: a luta dos operários”, Movimento 161,
30 de julho de 1978.
14 Movimento 165, 28 de agosto de 1978.
15 Movimento 180, 11 de dezembro de 1978.
16 Idem.

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O movimento dos metalúrgicos do ABC

uma reportagem sobre uma reunião para articular o protesto contra as de-
missões em massa, realizada no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André,
entre “as maiores forças do movimento sindical do país” (os sindicatos meta-
lúrgicos do ABC, Campinas e Santos, dos petroleiros do Rio de Janeiro, Mauá
e Campinas e dos jornalistas de São Paulo, Brasília e Rio) e representantes da
Oposição Sindical (metalúrgicos, bancários e trabalhadores do metrô de São
Paulo), da Frente Nacional do Trabalho e do Movimento Custo de Vida. As
principais consequências desse encontro foram o lançamento de
uma campanha em defesa da garantia do emprego e da volta
dos demitidos ao trabalho, a criação de um fundo de greve, a
formação de uma central executiva em cinco pontos diferentes
do Estado com objetivo de arrecadar e distribuir dinheiro e
alimentação para operários demitidos.
Também aprovaram “uma determinação de que as atividades de cada
empresa sejam paralisadas toda vez que um trabalhador for demitido por
sua participação em movimentos sindicais e outras formas de luta”.17
Estava dada a largada para as greves de 1979, e Movimento as acompanha-
ria de perto. No dia 10 de março de 1979, depois de quase um mês de nego-
ciações infrutíferas com os empresários da indústria automobilística, os me-
talúrgicos do ABC decidiram, em assembleias com milhares de operários,18
decretar uma greve geral no dia 13 de março (dois dias antes da posse do ge-
neral Figueiredo na Presidência da República), com a paralisação de 250 mil
operários do ABC, que chegariam a 500 mil se houvesse a adesão de todos os
metalúrgicos do interior.19 Os boletins distribuídos pelos sindicatos do ABC
depois da assembleia traziam a justificativa para a greve:
Companheiros e companheiras, chega de miséria! Abaixo o
custo de vida! Basta de exploração! Fim de perseguições e dis-
pensas arbitrárias! Depois de várias reuniões com os patrões,
verificamos que eles não querem conceder nada. Por isso nos-
sa assembleia decretou: greve geral a partir da zero hora de
terça-feira. Essa é a única linguagem que os patrões entendem.
As máquinas só voltarão a rodar quando conseguirmos: 34%
acima do aumento do governo, estabilidade no emprego, dele-
gado sindical com estabilidade, reajuste de salário a cada três
meses e piso salarial de três salários mínimos.
Na capa da edição 194 de Movimento, de 19 de março de 1979, o terço
superior seria dedicado à posse de Figueiredo com o título: “A Festa do
Herdeiro”. Os outros dois terços da capa eram ocupados por uma foto
enorme de Lula com os operários no Estádio de Vila Euclides trazendo em
vermelho o título: “Greve – A Assembleia dos 80 mil”.

17 Movimento 181, 18 de novembro de 1978.


18 Folha de S. Paulo, 11 de março de 1979: “Metalúrgicos do ABC decretam greve geral”.
19 Para dividir a força dos trabalhadores, a política trabalhista do regime havia estabelecido que os
metalúrgicos do ABC fossem agrupados com os metalúrgicos do interior, com dissídio na mesma
data-base (abril), diferente da data-base dos metalúrgicos da capital (outubro).

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Jornal Movimento, uma reportagem

PIQUETES E CASSETETES
Uma importante diferença da greve geral dos metalúrgicos de 1979 em rela-
ção à de 1978 foi que esta se deu “na rua”, enquanto na anterior os operários
cruzavam os braços dentro das fábricas. A recomendação dada aos grevis-
tas, já no boletim de convocação do sindicato, era de que não tomassem os
ônibus da empresa e nem entrassem na fábrica “para não sofrer pressões”, e
de que fossem ao sindicato: “estamos em assembleia permanente e pedimos
que os trabalhadores compareçam todos os dias no sindicato para receberem
instruções”.20 Essa orientação trouxe a volta dos piquetes para a porta das
fábricas reprimidos com uma violência policial que não havia ocorrido na
greve do ano anterior. Também resultou nas imensas assembleias “perma-
nentes” dos metalúrgicos no Estádio de Vila Euclides, cedido pela prefeitura
de São Bernardo, que reuniam 60 mil trabalhadores, segundo os jornais diá-
rios, 80 mil de acordo com Movimento: os repórteres da grande imprensa tra-
ziam os números da Polícia Militar, enquanto os de Movimento registravam
as contas dos grevistas.21
Esse detalhe revelava a postura que o jornal tomaria durante toda a greve:
ouvir os metalúrgicos, insistir na legitimidade dos piquetes, condenados
pelos diários, pelas rádios e pela televisão. Alguns veículos os apresenta-
vam como causa da violência policial.22 Movimento procurava explicar os
motivos dos grevistas, assumir o seu ponto de vista. Isso se percebia até na
linguagem – os empresários são chamados de “patrões”, acusados de “po-
sar de democratas” e “apelar para a polícia”.23 Suas matérias denunciavam
a aliança entre empresários e militares que estava por trás da repressão
sofrida pelos operários, das prisões e espancamentos às bombas de gás
lacrimogêneo lançadas pelos batalhões de choque na frente das fábricas.24
E davam grande destaque à greve e aos grevistas. Por exemplo, a edição
que anunciava a greve de 1979, a 194, trazia uma página dupla só de fotos
com cenas emocionantes, dos operários nas portentosas assembleias, da
ação da repressão e de humildes peões transmudados em combatentes.
O jornal também se preocupava em dar o contexto da greve e trazia ma-
térias bem apuradas sobre a categoria dos metalúrgicos, suas condições
de trabalho e salários, e dos negócios de seus patrões, levantando tudo
que podia sobre o setor automobilístico.25 O fato de ser publicado sema-
nalmente não prejudicava o calor da cobertura: o pessoal de Movimento
estava sempre por perto, e o jornal era bastante lido pelos operários, como
lembra o ex-metalúrgico Rommel Pinheiro, um dos muitos vendedores de
Movimento entre 1978 e 1980. Conta Rommel:
20 Folha de S.Paulo, 11 de março de 1979 “Metalúrgicos do ABC decretam greve geral”.
21 Folha de S.Paulo, 14 de março de 1979 “Estádio lotado para a assembleia”.
22 A matéria “Voltaram os piquetes, até mesmo com antigos excessos”, publicada em O Estado de
S. Paulo no dia 14 de março de 1979, afirma: “(o piquete) sempre foi considerado um expediente
ilegal, tanto pela legislação de antes como a de pós 64; a diferença é que nos anos 60 os chamados
governos populistas faziam vistas grossas, o que não ocorre agora”.
23 Movimento 194, 19 de março de 1979, “O grande confronto”.
24 Idem.
25 Ibidem.

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O movimento dos metalúrgicos do ABC

Eu conheci o pessoal do jornal porque eu era do PCdoB e


tinha muita gente do partido vendendo, e eu passei a vender
também, e vendia muito: era um jornal que a gente sabia que
estava do nosso lado, do lado dos trabalhadores. Tinha sempre
gente do jornal entrevistando a peãozada, o pessoal gostava,
ficava orgulhoso. O Raimundo mesmo vinha muito, às vezes
até com a mulher dele, a Sizue. Isso ajudava a vender.26
Dessa proximidade nasceu uma das reportagens mais comoventes so-
bre a greve de 1979 – “A Madrugada da Intervenção”, escrita pela re-
pórter Tânia Angarani, que estava dentro do sindicato de São Bernardo
quando ele foi cercado pela Polícia Militar, às 4 horas da manhã do dia
23 de março de 1979. A PM cumpria a ordem de deposição da diretoria
do sindicato, que seria substituída por interventores escolhidos pelo
governo (cinco dias antes a greve tinha sido considerada ilegal pelo
Tribunal Regional do Trabalho e ainda assim continuava a crescer).
Lula foi substituído pelo interventor. Ao sair, tinha os olhos verme-
lhos, fazia força para não chorar.27
Essa reportagem fazia parte de um bloco especial de cinco páginas sobre
a greve, publicado na edição 195, de 26 de março de 1979, com a chamada
de capa: “Ditadura depõe Lula e tira máscara”. Na página 7, sob a retran-
ca “Opinião”, um texto não assinado, mas escrito por Raimundo Pereira,
fazia a análise dos acontecimentos. Avaliava:
Qualquer que venha a ser o resultado do movimento grevista
do ABC, atingido no final da semana passada por uma verda-
deira fúria repressiva, as assembléias populares de São Ber-
nardo do Campo, a experiência da “democracia do Estádio de
futebol de Vila Euclides” já conquistaram seu lugar na história
da classe operária brasileira. É certo que o movimento revelou
as grandes debilidades e falhas da nossa organização operá-
ria. Após o fechamento do sindicato e com o desaparecimento
provisório do seu “Lula”, as massas vagaram pela cidade sem
rumo; ora iniciando vigorosas ações de força, como a tentativa
de retomar o sindicato das mãos da polícia; ora andando sem
destino pelas ruas, tentando até retomar o Estádio em busca
da democracia perdida (...) De qualquer forma, no entanto, o
estado de ânimo, de organização e de conhecimento dos ope-
rários do ABC se elevou por sua própria experiência. E nunca
será mais o mesmo.
Outra reportagem da mesma edição era “Do sindicato para as igrejas”,
que narrava os bastidores da greve, o trabalho de formiguinha dos que
participavam da rede de solidariedade aos operários, recolhendo alimen-
tos para os grevistas e suas famílias e o apoio da Igreja.

26 Entrevista de Rommel Pinheiro em 12 de maio de 2010.


27 Movimento 195, 26 de março de 1979.

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Jornal Movimento, uma reportagem

A DERROTA DE LULA
O governo esperava que com a intervenção no sindicato a greve chegaria ao
fim. Conta a reportagem, num relato que o restante da imprensa não fez:
Ao contrário, na sexta e no sábado, mesmo sem Lula e os
líderes, a greve se manteve, e o que é mais importante, ins-
taurou-se um clima de guerra entre os operários e a polícia.
Já na sexta-feira de tarde, apesar do grande aparato policial,
milhares de operários se concentraram no Paço Municipal de
São Bernardo, e enfrentaram a polícia que acabou tendo que
se retirar após a intervenção do prefeito Tito Costa, emedebis-
ta. Após os incidentes da praça, depois dos violentos choques
entre operários e a polícia, uma coluna de operários, em nú-
mero estimado de 3 mil, numa operação fulminante de cerca
de 30 minutos, pôs para correr algumas viaturas da polícia es-
tacionadas na frente do prédio do Sindicato dos Metalúrgicos,
ocupou o prédio aos gritos de “Queremos Lula, o sindicato é
nosso”, fazendo fugir o interventor Guaracy Horta.
No sábado, 24 de março, o Comando Geral da Greve estava reunido na Igre-
ja Matriz de São Bernardo, para discutir o que fazer. Enquanto isso, cerca de
20 mil metalúrgicos se concentravam no Paço Municipal, embaixo de chuva
forte, aguardando o pronunciamento de um dos líderes da greve.28
Chamado por telefone, Lula, que estava ausente desde a véspera, enviou
Djalma Bom para conversar com os operários, mas este não conseguiu
conter a massa.
A reportagem relatava:
Começaram então novos e violentos choques com a polícia
– o início de uma passeata, disparos de bombas e golpes de
cassetetes, respondidos por pedradas e tijolos e que terminam
com muitas prisões e duas peruas C-14 da polícia totalmente
depredadas.
Temendo o pior, um grupo de dirigentes sindicais de São Paulo se diri-
giu para a casa de Lula, extremamente preocupados com os rumos do mo-
vimento e convictos de que Lula deveria ser recolocado ostensivamente
à sua frente.
A edição 196 de Movimento descreveu a cena:
Lula estava na casa de um parente e os recebeu só de calção,
segundo alguns, em estado de visível abatimento. Esses lhe
relataram os acontecimentos da praça, destacando o ânimo da
massa e ao mesmo tempo o enorme risco de o movimento se
esvaziar devido à ausência de uma liderança reconhecida. Um
deles fez uma grave advertência afirmando que na luta do ABC
a classe operária estava dando um exemplo para o Brasil e que
todo mundo se identificava com a greve. Não se trataria, dizia,
28 Movimento 196, 2 de abril de 1979.

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O movimento dos metalúrgicos do ABC

de uma simples defesa do sindicato de São Bernardo, mas de


luta contra o arbítrio e a repressão e por isso considerava a
sua ausência “um erro trágico”. Outro sindicalista lhe falou
em tom mais persuasivo, mas também no sentido de que ele
reassumisse a liderança do movimento. Convencido, Lula os
acompanhou até a Assembleia Legislativa, onde se realizava
uma reunião da Comissão de Solidariedade da greve do ABC.
A matéria “Trégua no ABC”, capa da edição 196 de Movimento, era assi-
nada por cinco jornalistas, Raimundo Pereira, Marcos Gomes, Tânia An-
garani, Teodomiro Braga e Lia Straus. E deixava transparecer uma censura
ao comportamento de Lula, por este haver deixado a massa sem direção
após seu afastamento do sindicato.
A reportagem também revelava que, desde a intervenção, o líder sindi-
cal, sem dar conta dos entendimentos à comissão de salários nem a outros
líderes, estava negociando em segredo um acordo com os empresários e
o governo, que teria a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)
como fiadora. Lula conseguiu do governo a liberação do Estádio de Vila
Euclides, para, na terça-feira, 27 de março, realizar a assembleia que poria
fim à greve. Na assembleia, Lula pediu “um voto de confiança” dos operá-
rios: eles deveriam voltar ao trabalho no dia seguinte para que as negocia-
ções com o governo e os empresários fossem retomadas.
O desagrado dos grevistas com essa proposta foi registrado por Movimento:
“A assembleia do dia 27 foi tensa e para muitos decepcionante. Como nas
vezes anteriores, não houve debate das propostas: os trabalhadores tinham
apenas chance de votar contra e a favor da proposta da diretoria. E dessa vez,
a diretoria montou um pesado esquema de convencimento”, dizia o jornal
referindo-se aos oradores que antecederam Lula: o advogado do sindicato
dos metalúrgicos do ABC e os presidentes dos sindicatos dos jornalistas de
São Paulo e dos metalúrgicos de Santos, que insistiram na falta de condições
para a continuidade da greve. E prosseguia a reportagem:
A massa começou timidamente a acompanhar os gritos de
“queremos nosso aumento”, “não lutamos por sindicato, mas
por aumento”, “estamos com fome” (…). Finalmente Lula fa-
lou e a situação no meio da massa inverteu-se em pouco tem-
po. Como diria Lula depois, ele foi tendo que avançar nas suas
promessas ao ver que a massa estava desanimada, que preci-
sava de alento. O passo decisivo foi dado quando ele prome-
teu que a luta iria até o fim pelo pagamento dos dias parados,
pelos 11% e por um aumento melhor do que o oferecido antes
pelos empresários. Ali, no palanque, afirmou que obteria no
dia 10 de maio o estádio para reunir os trabalhadores e decre-
tar nova greve caso essas pretensões não fossem atendidas. E,
em confiança, os trabalhadores ergueram suas mãos e decreta-
ram o fim da longa greve dos metalúrgicos de São Bernardo,
ato logo seguido em Santo André e São Caetano.29
29 A greve de 1979 durou 15 dias, de 13 a 27 de março.
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Jornal Movimento, uma reportagem

E concluía o jornal:
No dia seguinte os trabalhadores retornavam ordeiramente
às fábricas. Nas portas das fábricas, muitos achavam que te-
ria sido possível levar mais longe o movimento. Porém todos
se mostravam animados e confiantes (…) Encaravam o acordo
como uma trégua na luta. E em São Bernardo havia também
a quase certeza de que nesta semana Lula estaria de volta à
direção do sindicato.
O Primeiro de Maio, porém, pegou Lula ainda fora do sindicato, como
relatou a cobertura-monstro que Movimento fez do Dia do Trabalho Uni-
ficado em São Bernardo do Campo. O acordo começou a ser descumprido
pelos empresários no dia seguinte ao fim da greve. Os trabalhadores da
Villares ameaçavam entrar em greve, protestando contra 300 demissões
feitas depois do acordo. A CNBB, que aceitara participar da intermediação
a pedido do general Figueiredo, começava a manifestar descontentamento
por ter sido envolvida no acordo que não estava sendo cumprido. En-
quanto isso, Lula continuava a negociar com os empresários e o governo.
A edição 202, de 14 de maio de 1979, trazia novamente Lula na capa
e duas matérias sobre a situação do ABC. Uma delas, “Muitos Lulas”,
assinada por Raimundo Pereira, contava a história do líder metalúrgico
e criticava sua atuação como líder dos trabalhadores, afirmando que ele
era levado “pela massa” e que “poderia ter contribuído mais para elevar
o nível de consciência política e aumentar o nível da organização dos tra-
balhadores”. Também dizia que Lula não compartilhava “nem com a dire-
toria do sindicato” do conteúdo das propostas que estava discutindo com
empresários e governo, afirmava que ele “inibiu a massa de se reunir li-
vremente ao propor que ela denunciasse ao sindicato todos os grupinhos,
obviamente de esquerda, que tentassem reunir os operários” e concluía:
À medida que cresce o movimento operário e procura trans-
formar o país, Lula está, portanto, sob esses dois fogos: de um
lado o governo e os patrões querendo pô-lo a seu serviço para
controlar o movimento operário, de outro, os próprios operá-
rios, a base de São Bernardo do Campo, que embora avançada,
não tem consciência clara do que fazer para resolver os graves
problemas que tem à frente. E para isso, ela não precisa apenas
de alguém que esteja à sua frente, mas de alguém que a ajude a
encontrar os caminhos que procura.30
Ao noticiar a suspensão da intervenção pelo governo, 54 dias depois –
e não 45, como Lula havia dito –, Raimundo fez um balanço da greve e
apontou os erros da direção durante a “trégua”. O principal deles, segun-
do o editor-chefe de Movimento, foi a desmobilização dos operários, que
estavam dispostos a lutar pela própria diretoria. Também considerou que
a conquista de aumento salarial ficou distante do que os grevistas queriam
30 Movimento 202, 14 de maio de 1979.

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O movimento dos metalúrgicos do ABC

(78%), foi menor do que Lula lhes havia prometido e, ainda sim, melhor
que o conseguido pelos metalúrgicos da capital: um aumento de 63% para
as faixas salariais de um a dez salários mínimos (70% dos operários) e
44% para os 5% que ganhavam mais que dez salários mínimos. Era bem
menos do que os grevistas queriam e mais do que os 57% para a faixa de
três a dez salários que os patrões queriam pagar. Também não consegui-
ram estabilidade de emprego nem delegado sindical.31
Ainda que derrotada, a greve dos metalúrgicos foi novamente seguida
por uma onda de greves que ocupou as páginas de Movimento durante o
segundo semestre de 1979 – entre elas a dos jornalistas de São Paulo –, ao
lado de temas candentes como a campanha pela anistia e a reorganização
partidária, o que novamente oporia o jornal ao líder de São Bernardo. Em
outubro, os metalúrgicos de São Paulo, liderados pela Oposição Sindical,
entraram em greve. Como ocorrera no ABC, a repressão policial os atin-
giu violentamente. Mas, desta vez, um policial militar que reprimia um
piquete, no segundo dia de greve, matou um líder operário, o metalúrgico
Santo Dias, como vimos. A repercussão foi enorme. Como havia ocorrido
por ocasião da morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, a indigna-
ção com o assassinato de Santo marcou uma nova etapa no movimento
pela redemocratização. Todas as forças de oposição se uniram, apesar da
disputa política provocada pelas propostas de criação de novos partidos.

“QUEM AÍ ESTÁ COM OS ALEMÃES?”


A frase de Lula no primeiro comício-surpresa da campanha salarial de 1980
em frente à fábrica da Volkswagen em São Bernardo abriu a cobertura de
Movimento daquela que seria a greve decisiva dos metalúrgicos do ABC. Está
na primeira matéria da edição 241 de 11 de fevereiro de 1980 e nela Lula já
sinalizava a disposição da categoria: “Não podemos ficar de cabeça baixa.
Temos que mostrar para os capitalistas a nossa união. Vamos exigir nossos
direitos, mesmo que para isso seja preciso parar um mês”.
Da pauta de reivindicações com 25 itens, o jornal destacava a redução da
jornada de 48 para 40 horas; o direito das diretorias de sindicato entrarem
nas fábricas (elas não passavam do portão) e a imunidade dos delegados
sindicais,32 demandas mais políticas do que econômicas, embora a pauta
citasse também a reivindicação de aumento salarial – 15% de produtivi-
dade além do INPC do mês. A edição 245, de 7 de março de 1980, veio
com a chamada “No ABC todos se preparam” e narrou um acontecimen-
to-chave que havia passado quase despercebido pelo resto da imprensa:
uma paralisação de meia hora na Ford na semana anterior para protestar
contra a insalubridade das condições de trabalho. Uma fonte do movi-
mento operário havia informado a Movimento que o protesto fora organi-
zado apenas para “testar a capacidade de mobilização” dos trabalhadores.
O jornal também havia conseguido obter uma comunicação interna da

31 Idem.
32 Movimento 241, 11 de fevereiro de 1980.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Ford pedindo “a formação de um estoque de cinco dias para a prevenção


contra a greve metalúrgica do ABC”.
Os operários estavam preparados: desde o primeiro comício, Lula vi-
nha pedindo que ninguém fizesse hora extra, exatamente para evitar os
estoques que dariam aos patrões um fôlego maior para aguentar a greve.
Movimento, sem recuar das críticas que havia feito à greve de 1979, reco-
nheceu o avanço do movimento do ABC nessa mesma matéria:
Ao contrário do que ocorreu em 1979, quando à grande mo-
bilização não correspondia um mesmo grau de organização, na
campanha deste ano os operários estão se organizando. A Co-
missão de Mobilização do Sindicato de São Bernardo, formada
por representantes de empresas ou setores de fábricas, conta com
425 membros que, juntamente com a diretoria, discute com os
operários os rumos da campanha. E essa organização não se dá
apenas nas fábricas. Ela está chegando aos bairros operários, com
a realização de reuniões para discutir a campanha.
A matéria também informava que a pauta de reivindicações fora cons-
truída “durante as 236 reuniões realizadas na fase preparatória” e que
ainda não havia sido mandada aos empresários, mas, “enquanto não se
iniciam as negociações formais, os dirigentes estão mantendo contato com
empresários que jogam importante papel no setor de metalurgia”.33
As negociações não prosperaram. No dia 30 de março, uma enorme as-
sembleia no estádio de Vila Euclides aprovou a greve geral dos metalúrgi-
cos do ABC. Na capa da edição 248 (31 de março de 1980) de Movimento,
a manchete: “A ditadura mostra a cara no ABC”, ainda mais contundente
pela data em que essa edição chegou às bancas, quando os militares co-
memoravam o 16º aniversário do golpe de 1964. Na verdade, ela se referia
a uma declaração do ministro do Trabalho, Murilo Macedo, dizendo que
interviria novamente nos sindicatos se a greve se concretizasse e afirman-
do de antemão que ela não seria “reivindicatória”.
Como a assembleia que decidiria a greve tinha acontecido já com essa
edição fechada, Movimento limitou-se a dizer que, caso fosse aprovada,
a greve estava “programada para zero hora do dia 1º de abril”. Mas na
edição seguinte deu ampla cobertura: além da capa, com o título “Vitórias
Operárias” sobre uma foto de um helicóptero da FAB dando um rasante
no estádio de Vila Euclides, completamente apinhado, também a contra-
capa era dedicada aos grevistas, com a publicação de suas 23 principais
reivindicações. A cobertura do evento, aberta por um texto de Raimundo
Pereira, registrava o clima de comoção e união das forças democráticas
do País:
Na assembléia geral dos metalúrgicos de São Bernardo do
Campo no último dia 30, a uma certa altura da reunião era
difícil olhar para algum canto do estádio que abrigava cerca
33 Movimento 245, 7 de março de 1980.

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O movimento dos metalúrgicos do ABC

de 80 mil metalúrgicos sem ver olhos vermelhos de lágrimas e


emoção. Fora uma assembleia dramática desde o início quan-
do todos se perfilaram para cantar o Hino Nacional. A greve se-
ria decretada logo a seguir. O clima emocional elevou-se com
o apelo de Ana Dias, viúva de Santo (Dias). Subiu mais ainda
quando d. Cláudio Hummes, bispo de São Bernardo, anunciou
a disposição da Igreja de ir até o fim junto com os trabalhado-
res – e citou o exemplo de D. Romero, bispo de Salvador as-
sassinado pela direita oligárquica por apoiar a rebelião armada
de seu povo. E o discurso final de Lula colocou no ambiente o
tom político e emocional que lhe faltava: falou da guerra que
os patrões e o regime estavam movendo contra a classe operá-
ria, falou do governo que entregava o país aos estrangeiros e
concluiu dizendo que ao trabalhador restava escolher “entre
morrer de cabeça baixa ou morrer de cabeça erguida”.34
Esta seria a primeira de uma série de oito edições consecutivas com
capas sobre a greve do ABC e sobre Lula – de 30 de março a 19 de maio
de 1980 (da edição 248 até a 255), exatamente no período em que o jornal
comemorava seu aniversário de cinco anos de existência.
No início da greve, o jornal estava otimista, e com motivos. Além do
avanço na organização dos operários, havia uma grande mobilização so-
cial em torno dela: no dia 31 de março, começara a funcionar, na Assem-
bleia Legislativa, o Comitê de Solidariedade aos Metalúrgicos, composto
por 150 entidades entre representantes dos partidos políticos (só o PDS
estava fora), de sindicatos e de entidades como o Movimento Contra a
Carestia, Ordem dos Advogados do Brasil, UEE (União Estadual dos Es-
tudantes) e movimentos de bairros. Os metalúrgicos do ABC também ti-
nham obtido uma rara vitória na Justiça do Trabalho: no dia 2 de abril,
o segundo da greve, o TRT declarou-se incompetente para julgar a sua
legalidade. Os empresários, porém, mantiveram as propostas rejeitadas
nas negociações preliminares – 5% além do INPC e piso salarial de Cr$
5.904,00 (equivalente a R$ 1.477,00 em 2011), sem representação sindical
dentro da fábrica nem estabilidade de emprego.
Até esse momento, a estratégia do governo era tentar intimidar os gre-
vistas – daí as ameaças do ministro do Trabalho e o sobrevoo dos heli-
cópteros da FAB –, mas isso não enfraqueceu o movimento dos operários,
ao contrário: a capa da edição 250 trazia a foto dos trabalhadores de bra-
ços erguidos e o título – “Os 400 Lulas de S. Bernardo” (referindo-se aos
480 membros da Comissão de Mobilização e Salários, 430 homens e 50
mulheres, que faziam a ponte entre a base e a diretoria). Na mesma edi-
ção, Raimundo Pereira fazia uma análise da atitude do governo diante do
movimento do ABC, intitulada “E a greve ganha força”, que abria com o
seguinte parágrafo:
34 Movimento 249, 7 de abril de 1980.

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Jornal Movimento, uma reportagem

O governo militar tem errado golpe após golpe em São Bernardo


do Campo. Com a intervenção de 1964, alimentou o assistencia-
lismo, conseguiu elevar razoavelmente o prestígio de um Paulo
Vidal (presidente do sindicato quando Lula entrou, em 1972,
como diretor de previdência social), dirigente do tipo que os pa-
trões imaginavam, que está hoje no PDS, mas teve Lula como sub-
produto. Com a irrupção das greves de 78 e especialmente na de
79, tentou puxar Lula para seu lado, julgando que ele permane-
ceria no campo das reivindicações econômicas e apolítico; mas
hoje repudia Lula, que ataca o governo militar e o grande capital
internacional em todos os seus pronunciamentos. (…) Lula disse
que o governo fez a greve tornar-se política; os empresários, disse
ele, reconhecem que é mais barato pagar o aumento e a recusa em
negociar reflete a disposição política do governo de esmagar o tipo
de sindicalismo que está nascendo. “Mas, aconteça o que aconte-
cer, a polícia invada o sindicato, eu seja morto, sejam mortos 3 ou
4 companheiros, a greve é a única garantia de vitória de nosso mo-
vimento”, completou Lula “num clima de enorme entusiasmo”.
Continuava Raimundo:
E o governo reluta diante de duas saídas difíceis para resol-
ver rapidamente o problema: 1) recuar, cedendo alguma garan-
tia de estabilidade aos operários, mas reconhecendo a derrota
econômica e política 2) tentar ir para frente a ferro e fogo, in-
tervindo, prendendo e mesmo usando força em larga escala
contra os grevistas, mas jogando por terra toda a estratégia de
abertura política.35
O impasse não durou muito. A edição seguinte, de 21 de abril de 1980,
trazia na capa a foto de Lula abatido, cercado de operários e a legenda:
“Lula sai da sede do sindicato após a chegada do interventor nomeado
pela ditadura militar”. O tom da matéria, publicada nas páginas 12 e 13,
revelava-se no título aberto em página dupla: “A firmeza dos metalúrgicos
diante das violências”. Começava assim:
Os metalúrgicos do ABC, que entram em sua quarta semana
de greve, poderão ser obrigados a usar agora o seu esquema,
cuidadosamente estudado, de comando alternativo. Com a in-
tervenção nos Sindicatos de São Bernardo e Santo André, de-
cretada na última quinta-feira (dia 17 de abril), três dias após
o TRT ter julgado a greve ilegal, as direções sindicais foram
afastadas. E já na sexta-feira, o diretor do Deops, Romeu Tuma,
afirmava que Lula poderia ser enquadrado na Lei de Segurança
Nacional. A hipótese de prisão – a exemplo do que ocorreu
com Olívio Dutra, o presidente destituído do Sindicato dos
Bancários de Porto Alegre – também não estava afastada.
35 Movimento 250, 14 de abril de 1980.

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O movimento dos metalúrgicos do ABC

Logo abaixo, a retranca “Foi uma batalha campal” descrevia os fatos


ocorridos após a deposição de Lula, quando 3 mil operários deixaram o
auditório do Sindicato cantando juntos “aquela música que fala ‘quem
sabe faz a hora’”, como disse Lula, ao puxar a canção de Geraldo Vandré.
No dia seguinte, quando os diretores receberam o decreto de seu afasta-
mento, os ânimos esquentaram. Um grupo de 4 mil operários ocupou as
ruas próximas ao sindicato, logo cercadas pelas viaturas da PM, e deu-se
o confronto. Nas palavras de Movimento:
Os grevistas não se intimidaram com o aparato policial e,
sem nenhum comando, começaram a gritar palavras de ordem
contra a repressão. A partir daí, as brigadas de choque avança-
ram sobre os grevistas e até o deputado Almir Pazzianoto foi
agredido (desde a greve de 1979, e ainda mais em 1980, de-
putados do MDB compareciam às manifestações do ABC para
tentar coibir a violência policial).

A PRISÃO DE LULA
A edição 252 de Movimento veio com o retrato de Lula desenhado na capa,
mais uma vez por Elifas Andreato, como acontecera nas edições com os as-
sassinatos de Herzog e Santo Dias. Felizmente, porém, o líder do ABC estava
bem vivo, embora trancado no Dops. Dois dias depois da intervenção – em 19
de abril –, 14 dirigentes sindicais foram presos com base na Lei de Segurança
Nacional, entre eles, Lula, Djalma Bom e Devanir Ribeiro.
A cobertura de Movimento – com oito jornalistas escalados – denuncia-
va as prisões e a violência da repressão em São Bernardo, e destacava a re-
sistência e a determinação dos operários em continuar a greve – a rede de
apoio dos grevistas, que distribuía diariamente 2,5 toneladas de alimentos
para 1.400 famílias, mereceu uma reportagem detalhada e entusiasma-
da, que mostrava a força da solidariedade na base, bem como o apoio da
igreja, dos sindicatos de outros setores, dos partidos democráticos e dos
movimentos de direitos humanos – nacionais e internacionais. Um show
de solidariedade aos grevistas, que teria a participação de Chico Buarque
e de outros grandes nomes da MPB (Música Popular Brasileira), foi proi-
bido pelo governo militar.
Na seção de opinião do jornal, o jornalista Perseu Abramo escrevia:
A prisão de Lula e dos demais dirigentes sindicais de São
Paulo certamente se explica pelo blandicioso direitismo do
poder central da ditadura, dedicado à causa de servir às mul-
tinacionais; mas a de José Carlos Dias e Dalmo Dallari, da
Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, só se
compreende pelo anticomunismo fascista, desabrido, feroz e
pouco inteligente do poder ditatorial local (Maluf, Tavares).36
36 Movimento 252, 28 de abril a 4 de maio de 1980. Referia-se ao governador Paulo Maluf e ao
comandante do II Exército, Milton Tavares.

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Jornal Movimento, uma reportagem

E concluía: “Enfim, a repressão da ‘abertura’ mostrou sua face”.


Movimento continuaria ao lado dos grevistas do ABC até o último dos 41
dias de greve. Deu uma cobertura vibrante do 1º de maio, quando 100 mil
pessoas fizeram 8 mil policiais recuarem e foram em passeata da Igreja Matriz
de São Bernardo ao estádio de Vila Euclides. Noticiou o recrudescimento da
repressão em seguida – só no dia 5 de maio, em São Bernardo, a polícia lan-
çou 180 bombas de efeito moral na cidade e feriu 50 trabalhadores – e a ma-
nifestação do dia 8 de maio de 3 mil mulheres – entre elas Marisa, a mulher
de Lula –, seguida pela greve de fome dos sindicalistas presos.
A questão do apoio aos operários e também à continuidade da greve
mesmo após a intervenção no sindicato – quando a repressão se tornou
mais violenta – foi o foco do editorial de Raimundo na edição 255, que
chegou às bancas em 19 de maio, oito dias depois de encerrada a greve:
Está aberto o debate sobre o significado da grande greve dos me-
talúrgicos do ABC. (…) Nessa etapa da luta, de novo dividem-se
os campos. O grande patronato, reacionário e obscurantista, tenta
desmoralizar os dirigentes e ativistas do movimento. (…) Lula
perdeu a chance de vitória por não ter parado a greve após a pri-
meira decisão da Justiça do Trabalho, fez o jogo dos comunistas,
diz o arqui-reacionário general Milton Tavares.
“Minha opinião é oposta”, continuava Raimundo. “A greve foi justa e
acertada em suas decisões essenciais. A decisão de prossegui-la após a
decisão da DRT (Delegacia Regional do Trabalho) atendeu aos interesses
da maioria, especialmente aos de menores salários.” E dizia:
Nesta coluna, no entanto, atendendo uma espécie de pedido,
inicio hoje uma avaliação da greve e do papel desta coluna na
cobertura da greve. Reabrimos a questão: erramos ou acerta-
mos junto com os grevistas? Para David Capistrano Filho, do
jornal “Voz da Unidade”, dissemos ”tolices” e devemos uma
“autocrítica”.37 O artigo de David é arrogante e presunçoso.
Tem um ar de quem sempre soube que os grevistas seriam der-
rotados. Mas ele é um oposicionista de tradição e faz uma crí-
tica aberta, direta e política. Por isso publico seu texto integral
a seguir para abrir a polêmica.
O artigo de David – que o acusava de menosprezar os cautelosos co-
munistas (do PCB) apenas porque eles fizeram “uma análise rigorosa da
realidade” enquanto o editor-chefe de Movimento havia confundido “seus
desejos” com os fatos reais – foi respondido na edição seguinte por Rai-
mundo. Mas é no jornal do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo que está
a melhor resposta para os que criticaram a cobertura completa e mesmo
engajada de Movimento: um artigo/depoimento dramático do repórter Ri-
cardo Kotscho, assinado apenas com suas iniciais, com o título “Por que
não contam a verdade?”, também escrito logo depois da greve.

37 Voz da Unidade, jornal do PCB, edição de abril de 1980.

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O movimento dos metalúrgicos do ABC

O repórter da Folha de S.Paulo escreveu:


Uma estranha sensação de ter voltado no tempo, de assistir a
um sinistro video tape de alguns anos atrás – foi mais ou me-
nos isso que eu e outros repórteres sentimos durante a greve
dos metalúrgicos do ABC. Não me refiro apenas à ocupação
militar de São Bernardo do Campo, à brutal violência, a to-
das as arbitrariedades cometidas em nome da lei, às prisões
feitas de madrugada sem mandados judiciais por policiais em
peruas sem placas. Para nós, jornalistas, pior do que toda ira
policial, mais grave do que o permanente risco de vida, foi a
constatação de viver uma realidade à parte, como se estivés-
semos em outro mundo. À noite, ao chegar em casa, todos nós
sentíamos voltar àquele tempo em que até a família da gente
duvidava do que contávamos sobre o que víamos. Como? se a
televisão não mostrou, a rádio não deu, o jornal não publicou?
É evidente que o grau de pasteurização do noticiário variou
de um órgão para o outro. Mas, mesmo que os historiadores
do futuro consigam reunir todo o material divulgado sobre a
greve nos diferentes veículos, ainda assim terão insuperáveis
dificuldades para contar o que foi mesmo que aconteceu no
Brasil em abril/maio de 1980.38
Lendo hoje os jornais da época, não há como não dar razão a Kotscho.
A menos, claro, que se inclua Movimento entre os veículos examinados
por “futuros historiadores”, como os autores deste livro. Ao cumprir sua
função de informar corretamente o leitor, sem esconder do lado de quem
estava, o “jornal dos jornalistas” preservou a história desta que foi uma
das greves mais importantes do País, liderada por um futuro presidente
do Brasil. Preservou também a dignidade dos jornalistas pois, como dizia
Kotscho no final de seu artigo:
Fica muito fácil jogar a culpa mais para cima, culpando os
patrões, o governo, a CIA. Dizer “eu só estou cumprindo or-
dens” o coronel Braga também diz. Mas a verdade é que nós
jornalistas não cumprimos bem o nosso papel de informar so-
bre o massacre sofrido pelos operários do ABC – e boa parte
da culpa cabe a nós mesmos. Apesar de todas as limitações co-
nhecidas, um jornalista não pode nunca se conformar em não
levar a verdade até o leitor. Esta luta, muitas e muitas vezes,
pode significar até a perda do emprego, de um salário maior,
mas se não for assim é melhor vender pastéis na feira – dá mais
dinheiro e é mais digno.39

38 Jornal Unidade, maio/junho de 1980, pág. 11.


39 Idem.

243

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Jornal Movimento, uma reportagem

Edição 226, 29 de outubro de 1979.


Desenho de Agostinho Gisé

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O jornal e o PCdoB

O
jornal que tinha como programa apoiar a frente democrática
e fazer a denúncia da ação imperialista oferecia um campo
favorável para o exercício da política do PCdoB. Sua colabo-
ração com Movimento se deu a partir dessa plataforma e se
estendeu por onde quer que o partido tivesse bases.
Na sede, em São Paulo, desde 1976, como se viu, viera trabalhar um
dirigente intermediário do partido, Antonio Neto Barbosa. Começou na
coordenação de vendas diretas e assinaturas e em 1977 passou a ser o
chefe do departamento de vendas, fazendo parte do Conselho de Direção
e do Gruex.
Antonio Neto Barbosa exerceu considerável influência no jornal, cola-
borou com a ampliação da rede de apoio e do sistema de vendas. No epi-
sódio do “racha” apoiou a posição que saiu vencedora na votação.
Sua prática, entretanto, recebeu por vezes acusações de ser sectária. E
também de ter uma tendência “obreirista”, na medida em que tendia a
opor os “proletários” do departamento de vendas aos “intelectuais peque-
no-burgueses” da redação.
Suas relações com a direção tiveram altos e baixos. Os motivos mais
frequentes de discussão eram os resultados insuficientes das vendas e as
opiniões diferentes sobre a política desse setor e mesmo sobre a políti-
ca editorial. Por exemplo, em abril de 1978, Tonico Ferreira apresentou,
numa reunião do Gruex, indicações de que o departamento de vendas,
sob a iniciativa de Barbosinha, estava desenvolvendo discussões parale-
las. Estaria mantendo conversações com setores “descontentes” com a li-
nha editorial. A esse propósito, enviara a várias sucursais, sem informar a
direção, uma circular fazendo críticas à amplitude da frente democrática
proposta pelo jornal. Ele e outros “descontentes”estariam considerando
que se dava mais destaque à oposição liberal que a dos movimentos popu-
lares nas páginas de Movimento, ironicamente, crítica semelhante à que
haviam feito alguns dos dissidentes que se afastaram após o “racha” de
abril de 1977. Nessa ocasião, Barbosinha foi veementemente criticado por

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Jornal Movimento, uma reportagem

Raimundo Pereira por sua conduta “nos últimos tempos”. O editor-chefe


disse que críticas eram sempre bem-vindas, mas estranhou o método ado-
tado. Reclamou que, sendo Barbosinha do Gruex e chefe de um departa-
mento, fizesse um debate às escondidas, enviando relatório às sucursais
sem antes procurar debater através dos canais de que o jornal dispunha.1
Em dezembro de 1978, chegou-se a propor o afastamento de Barbosinha
da chefia do departamento. A venda de assinaturas estava estagnada, ele
admitiu que, ocupado com suas tarefas políticas extrajornal e problemas
pessoais, deixara de dar a contribuição devida ao seu trabalho. Mesmo re-
sistindo à crítica de que sua política de vendas era “estreita”, acabou por
entrar em acordo e se propôs a realizar uma campanha para vender a um
publico mais “amplo”.2
Em 1979, depois de haverem crescido muito, as vendas do jornal em
bancas começaram novamente a perder impulso; Barbosinha apresentou
justificativas que não foram bem recebidas. Seus métodos de trabalho fo-
ram novamente questionados. Ele respondia que a causa estava na linha
editorial do jornal e na mudança da conjuntura. A relação entre Barbosi-
nha e a diretoria foi se tornando conflituosa. Contra ele pesavam não ape-
nas críticas sobre o desempenho insatisfatório do departamento de ven-
das, mas, mais grave, uma acusação de que teria usado o cadastro de assi-
nantes para enviar material clandestino do PCdoB aos leitores, mais uma
vez confundindo as esferas de atuação do jornal com as do seu partido.
“Achamos que ele estava privilegiando muito a questão de organização
clandestina do partido”,3 lembra Raimundo. Tonico refere que havia uma
“forte suspeita” de que ele estava usando o jornal para fins do partido, fato
que teria desencadeado seu afastamento.
Tonico Ferreira queria a “expulsão” de Barbosinha. De acordo com Marcos
Gomes, essa proposta não tinha cabimento. Para ele, Barbosinha, “em que
pese seu voluntarismo, era um batalhador e tinha dado uma contribuição
importante para o jornal, e este não era um partido político do qual alguém
pudesse ser expulso”. Gomes foi encarregado de fazer uma mediação e ne-
gociou com Barbosinha a sua saída, que se deu em junho de 1979.4

JORNAL PARA REORGANIZAR O PARTIDO


Esses acontecimentos se davam num cenário de dificuldades para o PCdoB.
No início de 1979, uma parte do comitê central se encontrava na prisão, João
Amazonas, secretário-geral, e alguns outros dirigentes, como Renato Rabelo,
Diógenes Arruda e Dynéas Aguiar estavam exilados na Europa. Embora en-
frentando obstáculos, esses dirigentes fizeram com que outros representantes
do partido conseguissem sair clandestinamente do Brasil e participassem
da VII Conferência Nacional, que se realizou entre fins de 1978 e meados de

1 ISM – Relatório reunião CD, 22 de maio de 1978, Cx. 6 envelope 18 02.


2 AP 295.02.02 Fnd Mov APSP.
3 Entrevista de Raimundo Pereira, citada.
4 ISM – Ata reunião CD – Cx. 5, envelope 14 e 15.

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O jornal e o PCdoB

1979 na Albânia. A partir dessa reunião, os militantes se puseram a reorga-


nizar o PCdoB. A direção decidiu criar um jornal para buscar a inserção na
massa trabalhadora e dar orientação aos militantes, seguindo a tradição dos
partidos leninistas. Entre fevereiro e março de 1979, João Amazonas e Dió-
genes Arruda realizaram reunião em Paris com Bernardo Joffily e sua com-
panheira Olivia Rangel. Na ocasião, o casal recebeu a tarefa de implantar o
referido jornal. Conforme relato de Bernardo;
Dava para notar que já era um projeto bem esboçado em seus ele-
mentos básicos. O projeto era de um semanário legal e nacional de
massas, dirigido pelo PCdoB (...) seria um jornal do partido, e não
de uma frente bastante plural como era o Movimento (ainda que
uma parcela dos brasileiros enxergasse este como um jornal do
PCdoB, versão que o nascimento da Tribuna ajudaria a desmentir); e,
como indicava o nome, buscaria um público leitor mais proletário.
Entre outras orientações, o João indicou que deveríamos procurar Ro-
gério Lustosa, no Rio, para dirigir o futuro jornal, e Carlos Azevedo,
César e Amelinha Telles e José Genoino, em São Paulo, como possí-
veis colaboradores.5
Mas o casal de militantes iria encontrar uma situação complexa no Brasil.
Parte dos militantes continuava desarticulada desde o massacre da Lapa,
ocorrido dois anos antes. Essas bases estavam dispostas em duas estruturas
paralelas e, no geral, sem comunicação entre si. Era um resultado do pro-
cesso de unificação entre o partido e a AP, que não havia sido completado,
pois fora interrompido pela repressão. Permaneciam as duas estruturas, cada
uma com sua própria direção. Em São Paulo, uma delas (a chamada estrutura
2), sob a liderança do veterano membro do Comitê Central, o operário José
Duarte, e de Antonio Neto Barbosa, mantinha seus laços com o movimento
operário e havia se aproximado do jornal Movimento.
Componentes da chamada estrutura 1, entre eles Wladimir Pomar, mem-
bro do Comitê Central, Ozéas Duarte e José Genoino, todos recém-liberta-
dos do cárcere, também se aproximaram do semanário. Os três militantes
manifestaram a seguir divergências com as posições de José Duarte e, mais
ainda, com as da direção que estava no exílio. Contestavam as resoluções
tomadas pela VII Conferência Nacional do partido, que ocorrera pouco
antes na Albânia.
Apesar do clima conturbado, Bernardo e Olivia trataram de levar avante
a tarefa de fazer o jornal. Carlos Azevedo não havia aceitado a proposta de
organizar-se na estrutura dirigida por José Duarte, tinha preferido esperar
por orientação direta da direção nacional. Ela veio por meio de Rogério
Lustosa, em contato feito a partir de militantes no Rio de Janeiro, por vol-
ta de junho de 1979. A incumbência era fazer o jornal legal do partido.
Apesar da falta de recursos materiais, a pequena equipe conseguiu lançar
a Tribuna da Luta Operária no final de outubro de 1979, numa cerimônia
5 Depoimento de Bernardo Joffily, por e-mail, em 09 de maio de 2011.

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Jornal Movimento, uma reportagem

realizada no Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, como registrou


Movimento.6 Era um jornal legal, vendido em bancas. Mas vendia pouco.
A maior parte de sua circulação iria se dar por meio da distribuição de
mão em mão, realizada nos diversos estados pelos militantes do partido.
Alguns anos depois chegaria à tiragem de 30 mil exemplares. Serviu de
“fachada para as atividades do PCdoB”, naquele período vivendo ainda
em semiclandestinidade, e foi instrumento importante para sua reorgani-
zação de acordo com livro sobre o partido.7

DEBATE SOBRE O ARAGUAIA


Wladimir Pomar, Ozéas Duarte e José Genoino discordavam em particular
da avaliação feita na VII Conferência Nacional do partido sobre a guer-
rilha do Araguaia. Partiu deles a sugestão de publicação por Movimento
de um documento inédito, do dirigente morto Pedro Pomar, de avaliação
sobre os erros da guerrilha do Araguaia.
O texto atribuído a Pedro Pomar foi publicado em abril de 1979. Pomar,
o segundo principal dirigente do PCdoB, punha em discussão o acerto da
realização da guerrilha do Araguaia. Fora um dos documentos apreendi-
dos pelo Exército no Massacre da Lapa, em dezembro de 1976. Como esse
documento havia chegado à redação de Movimento? De acordo com o
livro Massacre na Lapa, escrito por Pedro Estevam Pomar, neto de Pedro
Pomar, uma cópia desse documento, que estava em posse do Exército,
teria sido encontrada por Wladimir Pomar na casa de sua mãe. Teria sido
Wladimir quem havia levado o documento para publicação em Movimen-
to.8
Há uma outra versão para a aparição desse documento: em entrevista para
este livro, Luiz Eduardo Greenhalgh, que na época daqueles fatos era advo-
gado não só dos presos políticos Haroldo Lima, Aldo Arantes e Wladimir
Pomar, mas também de Movimento, declarou que foi ele quem levou o do-
cumento de Pedro Pomar, que retirou dos autos do processo, para o jornal.9
Segundo conta Raimundo Pereira, as posições se dividiram dentro da
equipe sobre a conveniência de publicar o documento. A publicação foi
decidida numa reunião da direção. “Marcos Gomes se opôs e foi derrota-
do por 4 a 1, se não me engano”.10 A publicação do texto tornou publica a
luta que se travava no interior do partido.
A guerrilha do Araguaia foi uma tentativa do PCdoB de construir uma
“base de apoio” no sul do Pará, para resistir à ditadura militar e de onde se
pudesse propagar a “guerra popular”11 para promover a revolução democrá-
tica, antilatifundiária e anti-imperialista. Descoberta pelos militares, a base
6 Movimento 226 , 29 de outubro a 4 de novembro de 1979.
7 Ruy, José Carlos; Buonicore, Augusto. Contribuição à História do PCdoB. São Paulo Ed. Anita
Garibaldi, 2010, pág. 173.
8 Pomar,Pedro E.R. Massacre na Lapa. São Paulo: Busca Vida, 1987, pág. 122.
9 Entrevista de Luiz Eduardo Greenhalgh em 1º de junho de 2010.
10 Entrevista de Raimundo Rodrigues Pereira em 9 outubro de 2009.
11 “Guerra Popular – caminho da luta armada no Brasil”. Documento do PCdoB, 1969.

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O jornal e o PCdoB

guerrilheira foi cercada pelas Forças Armadas em 1972 e, ao longo de mais


de dois anos, combatida na floresta até sua derrota completa em 1974, com
a morte ou desaparecimento de cerca de 70 guerrilheiros, militantes do par-
tido que haviam sido deslocados para a região, e alguns camponeses que
aderiram a eles.
O documento de avaliação da guerrilha do Araguaia, aprovado pela direção
remanescente do partido, avaliava como correta a iniciativa, do ponto de
vista estratégico e dizia: “A resistência do Araguaia é uma ação concreta que
indica a viabilidade da guerra popular”,12 mas que cometera erros secundá-
rios, no aspecto militar, de mobilização de recursos e de apoio na população,
e que, por isso, a guerrilha tivera de recuar sem alcançar seus objetivos.
O documento de Pedro Pomar, apresentado na reunião do comitê central,
que veio a ser surpreendida pelos órgãos da repressão, discordava dessa ava-
liação. Divulgado na edição 199 de Movimento, o documento concluía:
Por conseguinte, se procurarmos tirar ensinamentos da luta
do Araguaia que sejam válidos, que nos ajudem a acelerar a
preparação e o desencadeamento da luta armada, não devemos
voltar ao passado oportunista de direita, de achar que as mas-
sas, por si mesmas, espontaneamente, devam, um dia, pegar
em armas e se defender da violência reacionária; nem adotar
o princípio “esquerdista”, blanquista, foquista, de que são os
comunistas que devem pegar em armas em lugar das massas.13
Em cartas ao jornal, simpatizantes do PCdoB reclamaram da publicação
do texto de Pedro Pomar e na própria equipe também houve quem discor-
dasse da sua divulgação. Em entrevista a Movimento, em Paris, onde se
encontrava exilado, João Amazonas, principal dirigente do PCdoB, pare-
ceu considerar imprópria a divulgação ao argumentar que era “um docu-
mento interno, elaborado para a discussão interna”.14
Entre abril e novembro de 1979, além do documento de Pomar, o jornal
publicou várias matérias sobre o mesmo assunto. Na edição 215, divulgou
a referida entrevista de João Amazonas; na edição 220, um depoimento de
José Genoino, de crítica à guerrilha15; na edição 222, o Relatório Arroyo, do-
cumento de Ângelo Arroyo, chefe da Comissão Militar da guerrilha, um dos
mais importantes registros históricos daquele movimento16; na edição 226, o
jornal divulgou a avaliação oficial do PCdoB sobre a guerrilha.17 Na mesma
edição, Raimundo Pereira explicava os motivos do jornal para fazer a di-
vulgação do documento de Pomar. No artigo “O que os leitores não podem
saber?”, Raimundo Pereira respondia às críticas feitas ao jornal argumen-
12 “Gloriosa Jornada de Luta”, em A Classe Operária, 5 de setembro de 1976.
13 “Intervenção no debate sobre o Araguaia”, de Pedro Pomar, publicado em Movimento 199, 23 a
29 de abril de 1979.
14 “O que está aí ainda é uma ditadura disfarçada” – Entrevista de João Amazonas em Movimento
215, 13 a 19 de agosto de 1979.
15 “Para a guerra não basta a vontade heróica” – Movimento 220, 17 a 23 de setembro de 1979.
16 “Aprende-se a nadar nadando” – Movimento 222, 1 a 7 de outubro de 1979.
17 “Gloriosa Jornada de Luta” – Movimento 226, 25 de outubro a 4 de novembro de 1979.

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Jornal Movimento, uma reportagem

tando que se o Exército conhecia o documento não havia motivo para que o
público não o conhecesse: “se a repressão os lê por que não os podem ler os
leitores de Movimento? (...) Se todas as questões fossem consideradas de eco-
nomia interna das correntes políticas o jornal ficaria sem assunto”, escreveu.
E finalizou: “Nosso papel é o de divulgar as informações relevantes; perse-
guir a verdade e os debates que sirvam ao povo para que ele, por seu próprio
esforço, entenda o que ocorre ao seu redor e possa libertar-se.”
E encerrava fazendo um duro paralelo entre as críticas dos militantes do
partido com a repressão da ditadura: “A censura do general Geisel não nos
afastou dele (do ‘nosso papel’). E o espírito de seita de alguns setores das
correntes oposicionistas também não terá sucesso nessa tarefa.”18
Não era assim, porém, que antigos companheiros viam a nova situação.
Marcos Gomes, por exemplo, desgastou-se com esses acontecimentos. Em
sua entrevista, comentou:
Quem puxou esse negócio todo foram Ozéas (Duarte), Wladi-
mir (Pomar) e tal. O que começou a me irritar é que achei que
o jornal começou a ser manipulado no sentido de interferir na
luta interna do PCdoB. Aí, falei: “Pô, uma matéria, duas, tudo
bem. Agora, ficar nisso não tem condição.”19
Luiz Bernardes, o chefe da sucursal de Belo Horizonte, que desde o final
de 1978 vinha manifestando críticas à linha editorial, também tinha outra
visão sobre aqueles fatos. Em uma carta para Tonico Ferreira, disse: “Não
concordo em hipótese alguma que se use o jornal para se intrometer em
questões internas de partidos clandestinos e, muito menos, ao fazer isso,
tomar claramente partido de um dos lados”. Criticava a publicação do
documento de Pedro Pomar e acrescentava: “acho uma política perigosa,
errada e estreita, longe de contribuir para unir, contribui para dividir”.20
Por alguns meses, a seção “Cartas Abertas” iria ser inundada por car-
tas de leitores, na maioria militantes políticos, levando a luta interna do
PCdoB para as páginas do jornal. Eram tantas que muitas deixaram de ser
publicadas, como relatou reportagem coordenada por Flávio de Carvalho:
“Comunistas: a batalha da legalidade”.21

TESTEMUNHA HISTÓRICA
Haroldo Lima, dirigente do PCdoB que foi preso no episódio da Lapa, e que
continuava no partido em 2010, conta que o documento de Pomar surgiu
no contexto da revisão que o Comitê Central estava fazendo da guerrilha do
Araguaia:
Fomos discutir os erros, o que aconteceu, quais foram os fa-
tores que levaram à derrota da guerrilha. Aí, começamos a

18 “O que os leitores não podem saber?” – Movimento 226, 25 de outubro a 4 de novembro de 1979.
19 Ozéas Duarte, jornalista e militante do PCdoB, foi indicado para trabalhar no jornal por
Barbosinha. Posteriormente, tornou-se dissidente da direção do partido, junto com Wladimir Pomar
e José Genoino Neto.
20 AP 285.02.031 Fnd Mov APSP.
21 Movimento 223, 8 a 14 de outubro de 1979.

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O jornal e o PCdoB

discutir questões mais de fundo. Qual foi a concepção geral


que a presidiu? Tinha sido a concepção da guerra popular, que
significa um trabalho amplo com as massas, ou tinha sido uma
concepção mais estreita, um trabalho mais restrito, mais clan-
destino? Por seguinte, a luta armada desencadeou-se por uma
questão voluntarista ou foi expressão do movimento, uma ne-
cessidade real? Essa questão terminou sendo bastante
discutida.
Haroldo lembra:
No meio dessa discussão, surge (uma proposta) por opinião do
Amazonas: “Vamos então fazer uma reunião mais organizada. Os
principais dirigentes que estão participando da discussão escre-
vam um texto sobre o assunto”. E cada um escreveu um texto
sobre o assunto, com base no texto de um dos dirigentes, que
acabara de chegar do Araguaia, que era o Ângelo Arroyo. Ângelo
Arroyo escapou de lá do Araguaia, apresentou um relatório mui-
to bem feito. E, com base naquele relatório, cada um resolveu
escrever o que achava daquilo. Eu mesmo escrevi um texto. E o
Pedro Pomar escreveu um texto. Ele era o crítico mais contun-
dente do que ele achava de certos erros da guerrilha. O Ângelo
Arroyo e o Amazonas lideravam a defesa maior daquilo. Mas era
um ambiente de discussão, sem dúvidas acalorada, mas era uma
discussão muito fraterna, nunca deixou de ser fraterna e nunca
deixou de ser uma discussão que exaltava o episódio do Ara-
guaia. Claro que quem o exaltava mais era o Amazonas, ele dizia:
“Olha, gente, percebam que nós estamos falando de um episódio
que deve ter tido seus erros, acertos, essa coisa toda, mas é um
episódio fadado a jogar um papel histórico na história do Brasil,
isso vai ficar para sempre, isso vai ser uma bandeira de glória. Foi
um ato de resistência enorme, de grande repercussão, de bravura,
isso vai nos enobrecer para o futuro”. E o Pedro Pomar também
aceitava isso. Pedro Pomar nunca foi de desqualificar a experiên-
cia do Araguaia.
Haroldo conclui:
Foi nesse contexto que houve a queda da Lapa. E na queda
da Lapa, esse documento do Pomar, assim como o meu e os
dos outros dirigentes foram apreendidos (...) Era tudo dentro
de um catálogo, encadernado certinho, e estava tudo acumu-
lado num só volume, e só tinha aquela cópia, não tinha mais
nenhuma cópia, e caiu tudo na mão do Exército. De sorte que
o Exército tem isso tudo até hoje... o partido não tem.
Haroldo recorda que em 1979 a publicação do documento de Pedro Po-
mar, por Movimento, causou estranheza ao partido.
Como o jornal havia conseguido aquele documento, que o
partido não tinha? Só havia uma cópia dele, a que havia “ca-

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Jornal Movimento, uma reportagem

ído” nas mãos do Exército. Portanto, só o Exército tinha. Se-


gundo, por que o jornal, que era amigo nosso, publicou de sur-
presa? (...) Na hora ficou um mal-estar, uma impressão de que a
publicação parecia querer desprestigiar o partido. Eu mesmo,
na ocasião, fiquei aborrecido... Hoje, olhando as coisas na pers-
pectiva da história, havendo chegado o documento às mãos do
jornal, e eles lá sabendo que já era do conhecimento do Exér-
cito, não havia mesmo motivo para que não fosse levado ao
conhecimento do público (...) na atmosfera abrasada da época
nós comentamos: “poxa! Logo o Movimento!”, mas hoje vejo
que não houve má-fé. Acho que talvez devesse ter havido um
melhor entrosamento entre o jornal e a direção do partido, um
aviso, para que a gente não fosse surpreendido como fomos,
ficamos sabendo pelas próprias páginas do jornal...22

QUAL É O PARTIDO DA CLASSE OPERÁRIA?


Em janeiro de 1980, Duarte Pereira, já com sua identidade verdadeira, pois
fora beneficiado pela anistia, decretada em agosto de 1979, abria nova polê-
mica com o artigo “Social-democracia de esquerda?” Nesse texto, ao discu-
tir a criação do Partido dos Trabalhadores, afirmava que o PT nascia
também da necessidade de preencher o vazio político (...) ao
mesmo tempo (a situação) representa uma condenação viva dos
partidos que se proclamam marxistas e pretendem representar
a classe operária. Por que, depois de tantos anos de fundados
e reorganizados, diversos partidos que se pretendem operários
e marxistas-leninistas – como o PC brasileiro, o PC do Brasil,
Ação Popular e outros –, a maioria dos operários, camponeses
e demais trabalhadores continua ignorando esses partidos e
sentindo a falta de liderança e representação política?
De fato, essas organizações eram ignoradas pelas amplas massas de tra-
balhadores. Mas essa era uma avaliação unilateral porque não levava em
conta a sangrenta repressão que havia se abatido sobre esses partidos,
obrigados a uma profunda clandestinidade, impedidos pela ditadura de
fazer propaganda e de organizar os trabalhadores.
Depois de afirmar que a situação era uma “crítica severa” ao PCB por sua
linha “nacional-reformista”, que colocava os trabalhadores a reboque de
setores da burguesia, dizia que era um “julgamento implacável também
de organizações como o PC do Brasil, AP e outras, em cuja prática, hoje é
possível perceber, têm predominado concepções e métodos revolucioná-
rios, mas de cunho pequeno-burguês”.23
22 Entrevista de Haroldo Lima em 31 de maio de 2010. Fundador da Ação Popular, foi um de
seus dirigentes principais até a unificação com o PCdoB, de cujo Comitê Central passou a fazer
parte. Preso no massacre da Lapa, foi libertado em 1979. Foi deputado federal por cinco mandatos
consecutivos entre 1982 e 2002. Em 2010 continuava no birô político do partido e era presidente da
ANP, Agência Nacional do Petróleo.
23 Movimento 238, 21 a 27 de janeiro de 1980.

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O jornal e o PCdoB

O debate, mais uma vez, teve continuidade na seção de cartas de


Movimento, portanto, numa tribuna livre, na qual as manifestações não
representavam necessariamente a opinião da direção do jornal. Na edição
244, um leitor reclamou do que chamou de “ataque” de Duarte Pereira ao
PCdoB. Este respondeu, na mesma página, aprofundando suas críticas:
Um partido cujo maior feito prático (...) foi uma guerrilha
blanquista pode afirmar que em sua prática têm predominado
concepções revolucionárias proletárias? (…) Em política inter-
nacional, a posição básica do PCdoB e AP foi, até recentemen-
te, o apoio à China e à Albânia (...) Mao Tse tung era consi-
derado o maior marxista-leninista da atualidade (...) Hoje, a
direção do PC do Brasil considera que Mao nunca passou de
um revolucionário pequeno-burguês e que a revolução chinesa
jamais foi socialista.
Duarte concluía dizendo que,
se a avaliação atual está correta, é forçoso concluir que nas
concepções de PC do B e AP predominavam ideias revolucio-
nárias pequeno-burguesas. Mas se a avaliação atual está erra-
da, então agora é que o PC do B está se afastando de importan-
tes posições proletárias...24

CONTRA-REVOLUCIONÁRIOS?
Algum tempo depois, o DCE da Universidade Católica do Rio de Janeiro ava-
liava que “de um tempo para cá Movimento vinha adotando uma atitude ne-
gativa em relação aos marxistas no Brasil e no mundo”. Em 1º de dezembro
de 1980, numa palestra na Casa do Estudante, no Rio de Janeiro, o dirigente
do PCdoB, João Amazonas, comentava que Movimento vinha realizando “re-
centemente, um excelente trabalho, sim, mas um excelente trabalho contra-
-revolucionário”. Os motivos de Amazonas não se limitavam às criticas de
Duarte Pereira, mas também porque o jornal, na sua opinião, em artigos e na
seção de cartas, estava dando espaço para manifestações da referida dissi-
dência, que rejeitava a direção existente e estava levando a público as diver-
gências internas. A propósito, essa tendência, liderada por Wladimir Pomar
e composta na maioria por militantes da antiga “Estrutura 1”, acabaria por
se afastar do partido levando parte de sua base de São Paulo, Bahia e Pará. E
resultou na criação do PRC, o Partido Revolucionário Comunista, que poste-
riormente tornou-se uma facção do PT, Partido dos Trabalhadores.
A resposta de Duarte Pereira veio no artigo “Quer dizer, Amazonas, que
somos excelentes contra-revolucionários?”, em que rejeitava as críticas:
“mesmo que João Amazonas esteja certo e que o PCdoB seja o partido de
vanguarda da classe operária, isso não significa que não cometa erros, que
não possa ser criticado...”.25
O partido não replicou a esse artigo de Duarte.
24 Movimento 244, 3 a 9 de março de 1980.
25 Movimento 286, 22 a 28 de dezembro de 1980.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da dição 63, 13 de setembro de 1976.


Desenho de Elifas Andreato

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22
O debate sobre
o campo socialista

U
m dos pontos fortes de Movimento ao longo de sua trajetória
foi a cobertura internacional, tanto pelo trabalho da editoria,
dirigida por Flávio de Carvalho como pela publicação sema-
nal de uma seleção de artigos do jornal francês Le Monde e,
eventualmente, de outros importantes jornais estrangeiros.
Era um período de grandes mudanças no chamado “campo socialista”,
que causavam perplexidade nos meios da esquerda. Movimento acompa-
nhou esses acontecimentos inicialmente fazendo reportagens, mas acabou
se envolvendo em mais uma acesa polêmica. Em junho de 1978, publicou
um artigo “especial” não assinado, de duas páginas, “Novas divergências
no mundo comunista”, em que descrevia a chamada “teoria dos três mun-
dos”, alicerce da nova política externa da China, que substituía a palavra
de ordem de luta do campo socialista contra o imperialismo e o campo ca-
pitalista e foi assim resumida pelo jornal: “o inimigo é a URSS e os EUA, o
Primeiro Mundo; o Terceiro Mundo deve se aliar com o Segundo Mundo
(Europa, Japão etc.) para combater o Primeiro Mundo”. Essa política, que
havia levado a China a promover entendimentos e relações diplomáticas
até mesmo com as ditaduras do Chile e do Brasil, estava repercutindo pe-
los países, provocando realinhamentos e confusão.
O mesmo artigo fazia referência à opinião do Partido do Trabalho da
Albânia, até pouco antes aliado da China, o qual passara a fazer duras crí-
ticas à posição chinesa: “A vitória não virá com a união com uma das su-
perpotências para combater a outra, nem com alianças com países impe-
rialistas como a França ou com regimes impopulares e pró-imperialistas
como o Chile, diziam os albaneses”.1
No inicio de 1979, a China invadiu o Vietnã, o heroico pequeno país asi-
ático que, poucos anos antes, inclusive com apoio chinês, havia derrotado
os Estados Unidos. Como entender isso? Na edição 191, de 26 de feverei-
ro a 4 de março de 1979, sob o título “China invade Vietnã para atingir
URSS”, o jornal dedicou duas páginas, assinadas por José Tadeu Arantes,
1 Movimento 156, 26 de junho de 1978.

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Jornal Movimento, uma reportagem

para tentar explicar o motivo daquela guerra no contexto de conflitos no


Sudeste Asiático, envolvendo Vietnã, Camboja e Laos, tendo por pano de
fundo a teoria dos três mundos e as divergências entre União Soviética e
China. A reportagem reunia informações que o restante da imprensa bra-
sileira ignorara ou se omitira de divulgar.
E foi mais adiante: para que o leitor entendesse os motivos remotos das
desavenças entre os dois grandes países socialistas, o jornal apresentou
em mais duas páginas, assinadas por Miguel C. Jimenez e José Carlos Ruy,
um detalhado histórico da longa série de desentendimentos entre o PC
da União Soviética e o PC da China, que começara na década de 1950,
quando, ao substituir Stalin, Kruschev mudou radicalmente a política so-
viética e que, no fim da década de 1970, levara os dois países à iminência
de uma guerra. Um conjunto de dados apurados com precisão, os quais o
resto da imprensa nem cogitara publicar.
Finalmente, em mais duas páginas, o editor-chefe, assinando com as ini-
ciais RP, apresentava um documento inédito. Tratava-se de um resumo do
livro O imperialismo e a Revolução, de Enver Hodja, dirigente do Partido do
Trabalho da Albânia. Hodja denunciava o revisionismo do Partido Comu-
nista da China e afirmava que Mao Zedong não fora um marxista-leninista,
mas um “revolucionário democrata burguês” e a revolução chinesa “não
passava de uma revolução democrático-burguesa, não chegou a se trans-
formar numa revolução socialista”. Na abertura desse texto, Raimundo
comentava:
As correntes democráticas que colocam como perspectiva
final de suas lutas a conquista de um regime socialista – no
qual seriam eliminados todos os tipos de opressão – encon-
tram-se diante de uma situação complexa e difícil: por toda
parte, partidos e governos que se proclamam mais “socialis-
ta” e “internacionalista” que o outro, discutem – e, agora se
guerreiam – com ferocidade cada vez maior (...) Movimento
vem procurando descrever estes acontecimentos com a maior
riqueza possível. Não é tarefa fácil...2
Foi um trabalho jornalístico de qualidade. Na edição seguinte, na coluna
Opinião, o editor-chefe Raimundo Pereira assinava artigo com o título:
“Imprensa: Movimento e a guerra sino-vietnamita”. O “olho” resumia a
matéria:
Movimento informa melhor que revistas do grande capital
internacional que têm recursos centenas de vezes superiores?
Time, Newsweek e Movimento tiram conclusões diferentes de
um mesmo acontecimento. E, a despeito de apresentarem de-
zenas de informações a mais que Movimento, as revistas ame-
ricanas não conseguem explicar as razões da guerra.3

2 Movimento, 191, 26 de fevereiro a 4 de março de 1979.


3 Movimento 192, 5 a 11 de março de 1979.

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O debate sobre o campo socialista

Duas semanas depois, artigo de Alfredo Pereira (pseudônimo de Duarte


Pereira antes da anistia), intitulado “Mao Tse-tung: marxista ou revisio-
nista?”, polemizava com as teses do livro do líder albanês Enver Hodja.
Na abertura do artigo, dizia:
até há pouco tempo, a Albânia era o país europeu que melho-
res relações mantinha com a China. Para o dirigente albanês,
Enver Hodja, Mao era um “eminente marxista-leninista” e a
Revolução Chinesa “marchava triunfante em direção ao socia-
lismo”. Agora, Hodja diz que Mao nunca foi marxista. Quem
mudou, afinal, Mao ou Hodja?.
O artigo contestava as acusações contidas no livro de Enver Hodja quan-
to às conquistas da revolução chinesa e defendia Mao Zedong, dizendo
que seus pontos de vista “correspondiam à mais genuína tradição do mar-
xismo e do leninismo”.4
Haroldo Lima, dirigente do PCdoB, escrevendo desde o presídio político
Barro Branco, em São Paulo, onde estava preso, seis semanas depois, pu-
blicava um longo artigo na seção de “Cartas Abertas” do jornal, com o títu-
lo de “A variante chinesa do revisionismo”, em que, no geral, apoiava as
posições de Enver Hodja. Em reforço à sua argumentação citava também
o livro A Teoria dos Três Mundos, versão Oportunista da Luta de Classes
do Proletariado, de João Amazonas.5
Na edição 205, o jornal publicava ainda “carta aberta” de Rogério Lusto-
sa, outro dirigente do PCdoB, com o título “Maoísmo e leninismo, rumos
diferentes”, em que sustentava os mesmos pontos de vista de Enver Hodja,
de Haroldo Lima e João Amazonas, caracterizando que essa era a posição
do PCdoB. Embora editorialmente o jornal não assumisse uma posição ex-
plícita, os artigos de Duarte Pereira indicavam afinidade com os pontos de
vista do PC da China e consideravam marxista-leninista o pensamento de
Mao Zedong. O único ponto em que os dirigentes do PCdoB e Movimento
estavam de acordo era quanto a Teng Hsiao-ping e às mudanças políticas
que estava liderando na China pós-Mao: era uma “política revisionista”
que estava conduzindo a China para a restauração do capitalismo.
Uma nova polêmica estava instalada em Movimento. E ocorria ao mes-
mo tempo em que lavravam por suas páginas o debate sobre a guerrilha do
Araguaia, a querela sobre a reorganização partidária e a cobertura das greves
operárias do ABC. Por algum tempo, a seção “Cartas Abertas” iria receber e
divulgar inúmeras cartas repercutindo o debate, trazendo opiniões dos dois
lados.

AFEGANISTÃO
No início de 1980, tropas da União Soviética invadiam o Afeganistão, am-
pliando as controvérsias, alegando “solidariedade proletária internacionalis-

4 Movimento 195, 26 de março a 1º de abril de 1979.


5 Movimento 201, 7 a 13 de maio de 1979.

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Jornal Movimento, uma reportagem

ta”. 6 Artigo de José Tadeu Arantes, “Soviéticos no pantanal afegão”, criticava


a invasão de 80 mil soldados da URSS no Afeganistão. Na ONU, 104 países
exigiram a “retirada imediata das tropas”.7 Na mesma edição do semanário,
um debate. De um lado, o jornalista Franklin Martins, ex-guerrilheiro urbano,
na época redator do jornal Hora do Povo, do partido MR-8, dizendo que o
“apoio soviético foi decisivo para a derrota da contra-revolução e da agressão
imperialista”. Criticava: “Movimento perguntou: ‘O Afeganistão será o Vietnã
da URSS?’ e inclinou-se pela resposta afirmativa. Um jornal sério pode come-
ter erros sérios, como se vê...”8
Debatendo com Martins, Raimundo Pereira opinava: “A União Soviética
usa sua fama de socialista para disfarçar uma ação imperialista de fato”.
E adiante:
A URSS de hoje (...) está muito distante das propostas do seu
primeiro dirigente político (Lênin) (...) a URSS de hoje quer
desenvolver em larga escala o seu poder armado e de interven-
ção para estar em operação permanente pelos quatro cantos da
Terra, pelos sete mares e no espaço exterior – como os Estados
Unidos.
E o debate seguiria pelas várias edições seguintes.

6 Movimento 236, 14 a 20 de janeiro de 1980.


7 Movimento 238, 21 a 27 de janeiro de 1980.
8 O ex-militante político e jornalista Franklin Martins, que participou do sequestro do embaixador
americano, em 1969, veio a ser ministro de Comunicação do segundo governo Lula a partir de 2007.

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Edição 184, 8 de janeiro de 1979. Corta Essa!

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23
Adeus ao AI-5 e
anistia restrita

N
o final de 1978, o AI-5 foi revogado pelo governo Geisel. Com a
reforma na Lei de Segurança Nacional, o habeas corpus foi res-
taurado, o artigo 185, que mantinha inelegíveis os cidadãos que
haviam tido suspensos seus direitos políticos, foi revogado, e o
instituto do banimento, extinto. A nova LSN permitia também
a revisão dos processos de diversos presos políticos, porque as penas haviam
sido reduzidas. Mas o senador Paulo Brossard, do MDB gaúcho, resumiu o
sentimento oposicionista ao afirmar que as medidas seriam apenas “paliati-
vas”. Ele disse mais: se um ano antes a notícia seria considerada um “grande
passo”, àquela altura já não satisfazia. O jornal também descrevia a intenção
do governo em manter longe do País alguns exilados de peso, como Leonel
Brizola, Miguel Arraes, Luîs Carlos Prestes e Francisco Julião. “Fundamen-
talmente, o que mais se destaca na nova lei é a preservação integral da dou-
trina de Segurança Nacional de inspiração antidemocrática, com toda sua
parafernália de conceitos esdrúxulos, como as ideias de guerra psicológica
adversa”, avaliava um artigo na edição 173.
Ao mesmo tempo, o jornal cobria a crescente movimentação pela anistia,
que ganhara novo fôlego no final de 1978. De 7 a 9 de setembro acontecia
em Salvador o I Encontro Nacional de Movimentos pela Anistia, que con-
cluiu pela necessidade de popularizar a luta. Dizia a “carta de Salvador”:
“a anistia deve ser ampla, para todos os atos de manifestação de oposição
ao regime; geral, para todas as vítimas dos atos de exceção e irrestrita, sem
discriminações ou restrições”. E, depois de pedir também a revogação da
legislação autoritária vigente, concluía que “a anistia não é uma dádiva e
sim uma conquista a ser feita por todos os brasileiros”.
Em novembro aconteceu no teatro da PUC, em São Paulo, o I Congresso
Nacional pela Anistia, que adotou importantes decisões, como uma alian-
ça com o Movimento do Custo de Vida para ajudar na divulgação, e a ida
de caravanas de entidades aos presídios políticos, que foi uma proposta
da União Estadual dos Estudantes visando romper o isolamento dos pri-
sioneiros. Além disso, os participantes decidiram entregar às autoridades

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Jornal Movimento, uma reportagem

um abaixo-assinado de todos os que foram torturados indicando período,


órgão e o nome dos torturadores.
Movimento deu uma comovente chamada de capa – “Protestos e lágri-
mas pela anistia” – e publicou uma reportagem com o mesmo tom: “Foi
a manifestação mais emocionante dos últimos tempos. Em alguns mo-
mentos foi possível localizar dezenas de pessoas chorando na platéia”.1
O testemunho da viúva de Manoel Fiel Filho, operário morto na sede do
DOI-Codi em 1976, causou comoção. Nas páginas de Movimento ela re-
lembrou com detalhes o dia em que dois homens à paisana o levaram para
a delegacia com o pretexto de reconhecer um preso.
Comecei a chorar. Eles falaram que se ele não viesse naquele
dia, voltava no dia seguinte. Eu falei: “pelo amor de deus, não
levem que eu tenho medo de ficar sozinha”. Então meu marido
beijou minha testa e disse: “Não chora, nega, eu volto logo”.

DO EXÍLIO
No começo de 1979, Movimento passou a dar mais destaque ao tema dos exi-
lados. Em razão do fim do AI-5 e mudanças na LSN, já não existia oficialmen-
te nenhum “banido” e muitos começavam a voltar ao País. Mas sob a nova lei
quem voltasse seria submetido à Justiça – o que, na prática, não mudava em
nada a situação deles.
Em janeiro o jornal publicou uma reportagem de três páginas sobre o
tema, adiantando que o governo aceitava de volta os exilados, com al-
gumas exceções. Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola e Francisco Julião
seguiam vetados. Outra reportagem mostrava as dificuldades dos filhos
de exilados, que não conseguiam obter documentos, além de listar alguns
casos de banidos que foram assassinados ao tentar retornar ao País no
passado recente. Movimento revelava que havia um pacto entre as forças
de segurança: todo banido que voltasse seria morto.2
Pouco depois, outra reportagem anunciava que “está chegando a hora de
voltar”. Além da biografia dos exilados, a matéria reproduzia uma alarman-
te carta em que o ex-banido Lúcio Flávio Uchoa Regueira contava que fora
preso ainda no aeroporto, ao retornar para o Brasil: “agora novamente encar-
cerado sofro a mesma violência que é perpetrada há anos, encoberta por uma
legislação autoritária contra todos os presos políticos”, dizia a carta.3
Também foram ouvidas, desde o exílio, lideranças políticas que, atra-
vés do jornal, influenciavam no debate sobre a anistia. Ainda no Natal
de 1978, Brizola dava entrevista: “O Brasil ingressará a partir de 1º de
janeiro numa espécie de estado de direito limitado, dada a suspensão da
legislação autoritária e a restauração do habeas corpus, da independência
do poder legislativo e as garantias do Judiciário”, avaliava, otimista.4 No
1 Movimento 175, 6 de novembro de 1978.
2 Movimento 183, 7 de janeiro de 1979.
3 Movimento 188, 5 de fevereiro de 1979.
4 Movimento 182, 25 de dezembro de 1978.

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Adeus ao AI-5 e anistia restrita

começo de 1979, Miguel Arraes previa, desde Paris, que “o regime vai
se isolar mais, é inevitável. Acho que o movimento deve ser reforçado
de modo a impedir que venha a ser esvaziado por medidas parciais que
venham a ser tomadas diluindo o problema da anistia”, opinava.5 Para
ele, a anistia seria um passo fundamental “no sentido em que permite
um reposicionamento de forças fazendo com que o movimento venha a
desembocar numa Assembleia Constituinte”.
Na edição 207, de 16 de junho de 1979, foi a vez de Luís Carlos Prestes,
que estava em Moscou, afirmar:
Sou de opinião de que todas as vítimas dos crimes cometidos
pelos órgãos de repressão policial e militar e seus familiares e
amigos têm o direito de reclamar a punição dos culpados, dos
torturadores e assassinos. Este, aliás, é um direito de toda a na-
ção. E isto não tem nada a ver com revanchismo. Creio, porém,
que a investigação de tais crimes, para que efetivamente se
realize e chegue a indicar os culpados, exige a prévia conquis-
ta de amplas liberdades democráticas e a destruição do atual
aparelho de repressão.
Em 13 de agosto, outra entrevista exclusiva, de repercussão. Ouvido em
um local desconhecido nos arredores de Paris pelos correspondentes Al-
berto Villas e Manoel Domingos Neto, o líder do PCdoB, João Amazonas,
anunciava que pretendia voltar ao Brasil até o fim daquele ano. Para ele,
a anistia era “um poderoso movimento de opinião pública que se tornou
incontido”, e a campanha “poderá conquistar novos sucessos, desde que
mobilize grandes setores da população, organizações, personalidades e
familiares, dos punidos e exilados políticos”.6
De grande importância para a discussão que já se alastrava na socie-
dade, essas entrevistas comprovavam na prática a visão de Raymundo
Faoro, que voltou a ser entrevistado em 1979. Ele disse que as tentativas
do governo de impedir a volta dos líderes exilados – com a retenção de
documentos nas embaixadas, por exemplo – estavam fadadas ao fracasso.
Esses líderes já retornaram. No momento que os jornais fa-
lam deles toda hora, eles já estão de volta, atuando politica-
mente. Por isso, estamos tratando de um falso problema. O que
é um líder político? Uma pessoa que atua politicamente. Se
está aqui ou está na Europa, no Japão, não interessa.7
Enquanto esquentava o debate, a última página de Movimento passava a
ser uma tribuna privilegiada. A seção de humor, bem a propósito chamada
“Corta Essa!”, contribuiu com charges políticas carregadas de ironia, critican-
do os esforços do governo para refrear o movimento pela anistia ampla, geral
e irrestrita. Um saboroso exemplo está na última página da edição 184, de 8
de agosto de 1979. A charge de página inteira mostrava um avião com alguns
5 Movimento 190, 19 de fevereiro de 1979.
6 Movimento 215, 13 de agosto de 1979.
7 Movimento 190, 19 de fevereiro de 1979.

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Jornal Movimento, uma reportagem

exilados, bandeiras do Brasil em punho, olhando apreensivos para a escada


de saída, que dá direto em um camburão da polícia. Ao redor do veículo,
quatro soldados com metralhadoras os recebem: “Vamos chegando, gente
boa”. Acima do desenho lê-se: “Minha terra tem palmeiras... mas eu hein?!”.

O GOVERNO PROPÕE SUA ANISTIA


Logo que o general João Baptista Figueiredo assumiu a Presidência, em 15
de março de 1979, começaram especulações a respeito da promulgação da
anistia. Dizia-se, inclusive, que este podia ser um dos primeiros atos do novo
governo. O benefício seria óbvio: o general – cujo pai fora anistiado duas
vezes – se adiantaria à pressão popular, levando os louros pela cartada defi-
nitiva rumo à democratização.
Movimento acompanhava a temperatura nas ruas. Até a torcida corin-
tiana entrou na briga. A edição 190, de 2 de fevereiro, trazia uma foto da
torcida organizada Gaviões da Fiel, dentro de um estádio, segurando uma
faixa que exigia “anistia ampla geral e irrestrita”. Zico também. Numa en-
trevista, o atacante do Flamengo declarava ser a favor da anistia. “A gente
sente que esse é um tema generalizado e o governo deveria ver o que o
povo deseja”.8 A demanda já chegava até à arena do futebol!
Na reta final da campanha, o jornal mostrava sua capacidade de cobrir
com detalhes os bastidores do poder. Com diversas fontes dentro dos meios
políticos e militares, as reportagens de Vera Lúcia Manzolillo, que depois
se tornaria chefe da redação de Brasília, revelavam as disputas dentro do
governo. Em 19 de junho, na mesma edição da entrevista com Prestes, ela
contava que nenhum militar, mesmo entre os dissidentes, aceitava a ideia
de anistiar aqueles que participaram da luta armada. A resistência era
ainda maior entre os que faziam parte da chamada “comunidade de infor-
mações”, em especial o grupo frotista e os responsáveis pelo combate à
guerrilha. Além da oposição aos chamados “crimes de sangue” – classifi-
cação que, segundo a matéria, não tinha fundamento jurídico –, estaria em
jogo a sua própria segurança. Ao mesmo tempo, o grupo militar dissidente
já aceitava a volta de todos os exilados, até mesmo dos líderes comunistas.
A reportagem também adiantava em primeira mão a possibilidade de o
governo fazer um projeto de anistia que contemplasse também os próprios
militares – mas não explicitamente, já que o governo jamais admitiria ter
cometido crime algum. Em resumo, concluía a reportagem, “a fórmula da
anistia será a síntese do projeto político do governo”.
Para muitos, o projeto apresentado pelo governo no final de junho, em
meio às famosas lágrimas do general Figueiredo (“lágrimas que não con-
venceram ponderáveis setores da opinião pública”, escreveu Raimundo
Pereira), fora calculado para dividir as oposições e acabar com a frente
parlamentar, dando ao regime novo fôlego. O projeto previa a anistia a
todos que, entre 2 de setembro de 1961 e 31 de dezembro de 1978, hou-
8 Movimento 193, 12 de março de 1979.

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Adeus ao AI-5 e anistia restrita

vessem cometido crimes políticos ou conexos, tivessem sofrido suspen-


são dos seus direitos políticos ou demissão da administração pública e
fundações vinculadas ao poder público através de Atos Institucionais e
complementares. Excluía os condenados – apenas os condenados – pela
prática de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Parte desses,
já era sabido, deveria receber um indulto até o final do ano.
As manifestações de repúdio ao projeto aumentaram e ganharam apoio in-
ternacional. No começo de julho de 1979, aconteceu em Roma o Encontro
Internacional pela Anistia no Brasil, realizado numa das salas do Parlamento
italiano com a presença de exilados, parlamentares do MDB e de deputados
italianos, num total de 300 pessoas. O encontro, nas palavras da representan-
te do Comitê Brasileiro pela Anistia, denunciava “qualquer medida discrimi-
natória, qualquer arremedo de anistia que se deseje impingir”.
No final de julho, a campanha ganhou novo fôlego com uma greve de
fome feita pelos presos políticos do presídio da rua Frei Caneca, no Rio de
Janeiro. A greve foi calculada para impactar na votação no Congresso, que
ocorreria mais de um mês depois. Protestavam contra a discriminação –
os condenados não seriam anistiados – e rejeitavam a ideia de um indulto,
visto como uma espécie de “favor” do governo. A greve durou 32 dias e
acabou tomando dimensão nacional com a adesão dos presos políticos em
São Paulo, na ilha de Itamaracá (Pernambuco), em Fortaleza, Salvador e
Natal. Com a iniciativa, os presos do Rio furaram o cerco da mídia, rece-
bendo a visita de importantes figuras políticas, como Ulysses Guimarães
e o senador Teotônio Vilela, além de dezenas de personalidades, como
Chico Buarque, Paulinho da Viola, Nelson Rodrigues e Mário Lago.
Teotônio Vilela, que se transferira da Arena para o MDB em abril, assu-
mira a presidência da comissão mista do Senado que avaliava o projeto
do governo, tornando-se, na reta final, uma das figuras mais importantes
na luta pela anistia ampla, geral e irrestrita. Durante um mês ele percorreu
o País visitando dezenas de presos políticos do regime, conversou com
atingidos pela repressão, parentes de desaparecidos, políticos de todas as
vertentes, decidido a apoiar essa bandeira.
No começo de agosto, Vilela deu uma entrevista exclusiva a Movimento9 na
qual teceu elogios à postura dos presos. Para ele, não havia diferença entre o
que eles pediam e o que a maioria do povo brasileiro queria. “Essa identifica-
ção é importante que se faça para eliminar de uma vez por todas essa imagem
de que os presos políticos são terroristas”. Teotônio também deixava clara a
sua rejeição à anistia aos torturadores, pois, “na medida que o cidadão é pre-
so, ele está rigorosamente sob a guarda do Estado e não está mais no campo
da beligerância”, e vaticinava: “O projeto de anistia vai determinar, de acordo
com a sua aprovação, todo um roteiro político para a vida do país”.
O 14 de agosto de 1979 ficou marcado como um dia nacional de luta,
com nada menos do que 20 mil pessoas no Rio de Janeiro – a maior pas-

9 Movimento 214, 6 de agosto de 1979.

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Jornal Movimento, uma reportagem

seata no estado desde a dos 100 mil, em 1968. Milhares de pessoas com-
pareceram a atos públicos em São Luís, Maceió, Porto Alegre, São Paulo
e São Bernardo do Campo. No plano parlamentar, uma outra batalha ia se
desenrolando. No total, o projeto de Figueiredo recebeu 305 emendas de
134 parlamentares, nem todos da oposição. Além disso, foram apresenta-
dos nove projetos substitutivos, inclusive o do MDB, assinado por Ulysses
Guimarães. A maior parte das modificações dizia respeito ao artigo pri-
meiro, que estabelecia quem receberia afinal a anistia.
Dentre as milhares de cartas recebidas por Teotônio Vilela, aquela que
fora enviada por presos de Salvador quantificava: dos 55 presos políticos,
apenas 13 seriam anistiados, segundo o projeto do governo; 15 banidos
não teriam como voltar ao País e cerca de 150 condenados continuariam
sujeitos a “penas espúrias”.10 Além disso, milhares de trabalhadores de-
mitidos pela sua atuação política, mas com base em outros dispositivos
que não as leis de exceção, também ficariam de fora.
A sessão oficial no Congresso teve início no dia 21 de agosto, mas só
terminaria na tarde do dia 22. No primeiro dia, mais de mil manifestantes,
que ocupavam a rampa do Congresso, foram dispersados por bombas de
gás lacrimogêneo. No dia 22, durante toda a manhã a galeria foi tomada
por cerca de 800 recrutas da polícia da Aeronáutica e agentes do SNI à
paisana. Era essa a disposição democrática do regime.
Somente depois de muita insistência dos deputados emedebistas, os re-
crutas foram retirados, abrindo espaço para os manifestantes, que lotaram
as galerias na parte da tarde e obrigaram o governo a encarar de frente
o “bicho da democracia”. Carregando faixas e cartazes, vaiaram maciça-
mente os arenistas ligados à repressão, como o ex-delegado Cantídio Sam-
paio – que, em troca, fazia gestos obscenos para a multidão. O coronel
Erasmo Dias teve que aguentar calado, enquanto pronunciava seu voto, o
coro que gritava “assassino, terrorista”.
Após longas horas de debate, o substitutivo do MDB foi a plenário, sen-
do rejeitado por apenas 15 votos, 209 contra e 194 a favor. Acabou sendo
aprovado o substitutivo do relator arenista, o deputado Ernani Satyro,
que ampliava o prazo de concessão da anistia até 15 de agosto de 1979 e
estendia os direitos aos dependentes de anistiados falecidos. A votação
foi apertada. O projeto venceu, apesar da enorme pressão das galerias e
da multidão que se reunia nas principais capitais (7 mil manifestantes no
Rio, 7 mil em São Paulo), por magros 5 votos: 206 votos a 201. Na saída,
ouvia-se os manifestantes, em coro: “a luta continua, agora é na rua”. 11
A decisão foi descrita como uma “vitória de Pirro” por Vera Manzolillo,
em reportagem analítica na mesma edição. Mais adiante, Roberto Martins
avaliava que, “ao contrário do previsto, a unidade da oposição se forta-
leceu, enquanto a Arena se desmoralizava. E a mobilização popular, com
10 Mezarobba, Glenda. Um acerto de contas com o futuro - a anistia e suas consequências: um
estudo do caso brasileiro. São Paulo, Humanitas/Fapesp, 2006.
11 Movimento 217, 27 de agosto de 1979.

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Adeus ao AI-5 e anistia restrita

um conteúdo nitidamente político, colocou um novo elemento na con-


juntura”. Para ele, as oposições passaram por uma “rica experiência”: “Os
setores mais combativos da oposição saíram fortalecidos inclusive para
enfrentar a questão da reforma partidária”.
Uma charge encerrava a edição 217, de 27 de agosto. Nela, Jesus caminha
carregando sua cruz, enquanto ouve de um legionário romano: “ânimo rapaz,
você não entrou nessa anistia, mas lá pelo Natal você pega um indulto”.

RETORNO DOS EXILADOS


Uma semana depois de promulgada a lei de anistia, 19 presos políticos ha-
viam sido libertados. Foi o resultado de uma ação a toque de caixa do Supre-
mo Tribunal Militar, que analisou 47 processos pendentes e elaborou uma re-
lação oficial de 374 anistiados, entre eles Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes,
Francisco Julião e Gregório Bezerra. Em Porto Alegre, Glênio Perez e Marcos
Klassmann, este colaborador de Movimento, reassumiram seus mandatos de
vereador na Câmara Municipal.12
Movimento estava presente em várias cidades no momento de libertação
dos presos. Foi o primeiro veículo a entrevistar Aldo Arantes, dirigente
do PCdoB preso e torturado depois do massacre da Lapa, em 1976. As en-
trevistas seguiam o tom que iria marcar a cobertura pós-anistia no jornal.
Em geral, as lideranças faziam uma avaliação da luta das esquerdas nos
últimos anos e opinavam sobre os passos a seguir. Arantes se mostrava
entusiasmado com a campanha pela anistia, dizendo que se sentiu “tirado
da prisão pelo movimento popular”.13
Nas edições seguintes, o jornal deu grande espaço às lideranças importan-
tes que iam ressurgindo na cena política nacional. A edição 219 já anunciava:
“Brizola chegou!” Segundo a reportagem de Antonio Carlos Queiroz, o líder
trabalhista chegava “moderado, muito moderado”, buscando evitar o con-
fronto com os governantes ao entrar por Foz do Iguaçu e evitar Porto Alegre.
“O propósito é esfriar os ânimos e evitar o triunfalismo”. Nesta mesma edição
e nas seguintes, o contraponto seria a volta de Miguel Arraes.
Arraes chegaria no dia 16 de setembro de 1979, já com um enorme comí-
cio em Recife, contando com a presença de figurões do MDB como Teotô-
nio Vilela, Freitas Nobre e Jarbas Vasconcelos. Relatava o jornal:
Enquanto em Porto Alegre há um clima de apatia e expec-
tativa distante em relação ao comício de Brizola, em Recife,
desde a semana passada, o clima de agitação política já era
bem intenso, com comícios-relâmpago nos principais pontos
da cidade e carros de som tocando música alusiva à chegada.
A edição seguinte, a 220, trazia na capa um retrato de Arraes feito por Eli-
fas Andreato e a manchete “uma estrela que sobe”. A principal demanda
do líder nordestino era a Constituinte livre e soberana – mas apenas após a
supressão de todo o aparato repressivo que ainda se mantinha de pé. Logo
12 Mezarobba, Glenda, op cit.
13 Movimento 218, 3 de setembro de 1979.

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depois da volta, Arraes deu um giro pelo País, passando por encontros com
operários, representantes da igreja progressista e movimentos comunitários
na zona sul de São Paulo e no ABC. A reportagem de Movimento o qualificou
como “um dos exilados sobre o qual o movimento popular concentra grandes
esperanças e o regime, os maiores temores”.14
Outros anistiados, à medida que voltavam do exílio ou ressurgiam da
clandestinidade, também iam dando as caras nas páginas do jornal. Apolo
Heringer Lisboa, vice-presidente da UNE de 1965 a 1966, voltou no dia
1º de outubro. Sete dias depois, foi a vez de Diógenes Arruda Câmara, di-
rigente do PCdoB. Os líderes do movimento camponês, Francisco Julião
e José Novais, também apareceram em Movimento, prometendo atuar por
uma reforma agrária “pra valer”. E a volta de José Dirceu mereceu uma
matéria, na edição 234, em que ele reafirmava o movimento estudantil
como “uma força política no país” importante para a união das forças ne-
cessárias para acabar de vez com a ditadura.
A chegada de Luís Carlos Prestes, no final de outubro, mereceu atenção
especial porque deu realce a uma crise interna no PCB, dividido entre o
poder das antigas lideranças e os dirigentes mais jovens. Prestes marcou
sua posição e rechaçou a ideia de uma Assembleia Constituinte com Fi-
gueiredo no poder, alimentada por setores do seu partido. Ele exigia a re-
vogação da legislação repressiva como pré-condição. Senão a Constituinte
seria “ilegítima, falsa e não poderia decidir sobre o destino da nação”.15
O líder comunista Apolônio de Carvalho concedeu uma coletiva de im-
prensa logo após sua chegada no dia 29 de outubro. Disse de cara que
não pretendia se filiar ao MDB, embora este tenha sido um instrumento
político importante para mostrar a insatisfação popular com o regime,
porque ele “não representa as forças populares de forma homogênea”.
Ele também reavaliou a trajetória da esquerda, dizendo que “foi um erro
tentar fazer uma tentativa de luta armada desligada das lutas de massas”.
Já o líder do PCdoB, João Amazonas, que dera uma entrevista exclusiva
quando ainda estava no exílio, falou a Movimento antes mesmo do seu
retorno no sábado, 24 de novembro de 1979. Através do correspondente
Alberto Villas, Amazonas garantia, desde Paris, que o partido iria se juntar
ao esforço comum de todos aqueles que se opunham ao regime arbitrário.
“É para contribuir na luta de nosso povo pela conquista da plena liberda-
de política e pela liquidação do sistema opressivo antinacional e antipo-
pular como tarefa imediata que retorno ao Brasil”, disse.
Foi assim, cobrindo a volta dos exilados, que Movimento continuou ser-
vindo como arena de articulação política das esquerdas. O País vivia um
momento de entusiasmo: depois da anistia, mesmo que restrita, não havia
mais “meia volta” no caminho para a redemocratização. O passo seguin-
te – como bem assinalava a cobertura do jornal – seria inevitavelmente a
construção dos novos partidos políticos.

14 Movimento 220, 17 de setembro de 1979.


15 Movimento 226, 29 de outubro de 1979.

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Capa da edição 206, 11 de junho de 1979. Desenho de Jayme Leão

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24
O debate sobre
os novos partidos

N
os anos 1979 e 1980, a crise financeira de Movimento se agra-
vava, mas foi também o período em que a pauta de matérias
do semanário foi mais variada e complexa. É difícil imaginar
como uma equipe então bem mais resumida e com tão pou-
cos recursos conseguiu tantos resultados. O País despertava,
o protagonismo político ia escapando do governo e dos políticos dos dois
partidos legais e passava a ser exercido também pelos movimentos popu-
lares e por segmentos da classe média. Tudo acontecia ao mesmo tempo.
Nesse período, Movimento cobriu desde o princípio os debates e articu-
lações para a reorganização partidária, contribuindo para esclarecer o con-
teúdo dos vários projetos de partido. O jornal fez a mais completa e lúcida
cobertura do movimento grevista, deu atenção ao movimento estudantil e
à reorganização da UNE. O leitor também pôde acompanhar as denúncias
dos avanços do capital estrangeiro na economia local, a corrupção no go-
verno e o fracasso da política econômica, as lutas pela terra, a polêmica
dentro do PCdoB sobre a guerrilha do Araguaia e as novas divergências no
mundo socialista, entre China, Albânia e União Soviética. Viu o desenro-
lar da campanha pela anistia, assistiu ao retorno das lideranças políticas
que estavam no exílio e conheceu suas opiniões e propostas políticas.
O jornal estava mais bonito, com melhor disposição gráfica e paginação,
ilustrado por fotografias jornalísticas de qualidade e impacto.

OS NOVOS PARTIDOS
Desde as derrotas eleitorais de 1974 e 1976, o sistema dominante se conven-
cera de que ia perdendo a hegemonia e começou a trabalhar em um projeto
de reforma partidária que permitisse reorganizar sua base política e dividir a
oposição.
Ainda em fins de 19771, Movimento registrava entrevista do senador
Magalhães Pinto, da Arena, defendendo a extinção do bipartidarismo e
a criação de quatro partidos. Já no início de 1978, o general Figueiredo,
1 Movimento 118, 3 de outubro de 1977.

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Jornal Movimento, uma reportagem

candidato oficial à Presidência, dizia que “as reformas abrem caminho


para a formação de novos partidos (...) cinco é um bom número”, anotava
o jornal.2 O projeto, comandado pelo general Golbery, era, em resumo,
criar um sucedâneo da Arena – o partido oficial –, mais coeso, formar um
segundo partido, o da “oposição confiável”, com dissidentes da Arena e
adesistas e moderados do MDB, e isolar os setores mais combativos do
partido de oposição, estimulando a recriação do partido trabalhista var-
guista, o PTB. Não por acaso, na mesma edição, Movimento registrava:
“Nos bastidores renasce o PTB” articulado por antigos membros dos anti-
gos PSD, PTB e PSB que fazem referência a um partido de centro-esquerda
“democrático e socialista, mas não extremista”.3
Na esteira do movimento sindical dos trabalhadores da indústria auto-
mobilística, concentrada no ABC paulista, e das primeiras grandes greves
do período, novas lideranças como Luiz Inácio da Silva, o Lula, articula-
vam outra proposta de partido, um Partido dos Trabalhadores, de perfil
ainda impreciso, ora se definindo como classista, “só de trabalhadores”,
ora sendo visto como uma federação de sindicalistas e outros trabalhado-
res, intelectuais e organizações e tendências políticas de esquerda.
Os “autênticos” do MDB, políticos nacionalistas, liberais ou de corren-
tes de esquerda próximas do PCB e do PCdoB, os quais até a emergência
das greves operárias haviam sido os opositores mais ferrenhos do regi-
me militar, anteviram o isolamento. Viram em todo o projeto, inclusive
na proposta do PT, uma tentativa de dividir a oposição e, em particular,
torná-la irrelevante.
Movimento passou a dar guarida a esse debate, tratando nas reportagens
do tema objetivamente. Ao mesmo tempo, editorialmente assumiu uma
posição próxima da dos seus tradicionais aliados autênticos, pela preser-
vação do MDB enxugado de adesistas e moderados, e como uma frente
mais avançada, sustentada nos movimentos populares, com vistas a levar
até o fim a luta por democratização, Assembleia Constituinte e estabele-
cimento de um regime democrático e popular. Ou a união desses setores
ditos mais avançados num novo partido, o Partido Popular, que represen-
tasse essa frente democrático-popular.
Em janeiro de 1979, a proposta de criação do PT foi apresentada durante
o Congresso dos Metalúrgicos realizado em Lins (SP). Segundo Benedi-
to Marcilio, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André,
deputado federal e autor da proposta, o partido só não admitiria patrões.
Seria um partido de assalariados, incluindo a massa marginalizada, não
assalariada, do campo e das cidades.4
Sintomaticamente, na mesma edição, o jornal anunciava uma primeira vi-
tória da luta pela reposição salarial para correção da manipulação dos índi-
ces do custo de vida, feita em 1973 pelo ministro Delfim Netto. O TRT de
2 Movimento 135, 13 de fevereiro de 1978.
3 PSD – Partido Social Democrático; PTB _ Partido Trabalhista Brasileiro; PSB – Partido Socialista
Brasileiro, extintos em 1964 pela ditadura militar.
4 Movimento 187, 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 1979.

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O debate sobre os novos partidos

Curitiba havia dado ganho de causa aos trabalhadores. Era o começo de uma
sequência de lutas operárias que iria fortalecer politicamente o movimento
sindical e dar consistência à proposta do Partido dos Trabalhadores.
O embate dessas lutas com a agressiva repressão que elas sofreram, co-
mandada em São Paulo pelo general Milton Tavares, comandante do II
Exército, e pelo governador Paulo Maluf, com intervenção nos sindicatos,
no caso do ABC, e até o assassinato do líder operário católico Santo Dias,
na capital, trouxe várias repercussões importantes. Por exemplo, as novas
lideranças sindicais, principalmente do ABC, que até então pensavam que
podiam travar apenas a luta econômica por aumento de salários tendo
como adversários os patrões e “deixando o governo fora disso”, compre-
enderam na prática que o governo estava por trás e defendia os interesses
dos patrões. Diante da repressão, viram que não tinham escolha senão
defrontar-se com o governo, travar a luta política. Daí a necessidade de
um partido para dirigir e unificar o movimento dos trabalhadores, diziam.
Em junho, ocorreu uma grande reunião em São Bernardo do Campo, ar-
ticulada, entre outros, por Fernando Henrique Cardoso e Almino Afonso e
as lideranças operárias locais. Movimento relatou que participaram dezenas
de sindicalistas, 60 parlamentares do MDB, políticos cassados, intelectuais.
Saíram todos entusiasmados da reunião. O deputado Fernando Coelho, se-
guidor de Miguel Arraes, declarava ao jornal: “É a primeira iniciativa con-
sequente do MDB para se transformar num partido popular de vanguarda.”
Ainda no “espírito de São Bernardo”, 400 lideranças reuniram-se no Colé-
gio Sion, em São Paulo, em 17 de agosto. Segundo o jornal, três correntes se
manifestaram, a da popularização do MDB, a do Partido dos Trabalhadores
e uma ainda sem nome, que defendia um partido do movimento popular e
democrático, mais avançado. Na ocasião, Fernando Henrique Cardoso decla-
rou: “Não estamos em condições de fechar questão, mas de abrir o debate...”5
Em meados de outubro, chegava ao Congresso o projeto do governo de re-
organização partidária. Ao mesmo tempo, em uma reunião em São Bernar-
do do Campo, o Movimento Pró-PT já não assumia a perspectiva de formar
uma frente afastando-se do chamado “espírito de São Bernardo” da reunião
de junho. Voltava a defender o partido de trabalhadores e divulgava a sua
carta política.6 Presentes lideranças sindicais de seis estados; intelectuais de
esquerda, como o trotskista histórico Mario Pedrosa; sociólogos, como Fran-
cisco Weffort; e só um parlamentar, Edson Khair, do MDB-RJ. Declaração de
Lula: “O PT deixou de ser entendido como um partido de operários de ma-
cacão para ser uma agremiação mais ampla, ainda que não perca seu conte-
údo de classe”. Uma Comissão Nacional Provisória foi criada, formada pelos
líderes sindicais e Lula, Jacó Bittar, Henos Amorina, Paulo Skromov, Olívio
Dutra, Wagner Benevides, Arnóbio Silva, os cassados José Ibrahim (ex- líder
sindical) e Manoel da Conceição (ex-líder camponês), e o deputado federal
Edson Khair (MDB-RJ). Certas lideranças sindicais, como Jacó Bittar e Pau-
5 Movimento 217, 27 de agosto a 2 de setembro de 1979.
6 Movimento 225, 13 de outubro de 1979.

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Jornal Movimento, uma reportagem

lo Skromov, se manifestaram nessa ocasião contra o risco da hegemonia de


parlamentares no futuro PT e entraram em divergência com a proposta do
ex-ministro Almino Afonso, que, em sua opinião, era ampla demais, “abar-
cando também setores liberais”.
Movimento noticiou que, naqueles mesmos dias, uma articulação coor-
denada por Aurélio Peres, militante do PCdoB e deputado federal pelo
MDB-SP, que viria a se chamar “Tendência Popular do MDB”, reunia cer-
ca de 20 deputados autênticos e lideranças populares (duas por estado)
para formar o que chamavam de Partido Popular, pretendendo um partido
mais à esquerda e mais coeso que o MDB. Seria o tal partido de frente para
levar o processo de democratização até o seu final.
Tanto o PCB como o PCdoB, ambos considerando-se o verdadeiro par-
tido da classe operária, de concepção marxista-leninista, fundados em
1922, não apoiavam a proposta do PT, que viam como mais um concorren-
te a disputar a condição de vanguarda da classe operária.7 Davam apoio à
proposta do Partido Popular, agremiação de frente, articulada, entre ou-
tros, por Chico Pinto, Airton Soares e Aurélio Peres. PCB e PCdoB, que
continuavam perseguidos pela ditadura, eram obrigados a manter-se na
clandestinidade, com reduzidas condições de acesso e de mobilização dos
movimentos populares.
Após a decretação da anistia, o debate sobre os novos partidos ficou
mais animado. Porque, a partir de então, foi possível o retorno ao País
dos líderes políticos que estavam exilados: Leonel Brizola, Luís Carlos
Prestes, Miguel Arraes, João Amazonas e muitos outros. Ao voltar ao Bra-
sil, Arraes pôs mais fogo no debate: “O único partido de oposição real é o
PMDB, porque pretende fazer oposição ao regime, e não só ao governo, e
porque se livrou de colaboracionistas e adesistas”, disse.
No final de novembro, o Congresso aprovou o projeto do governo que
determinava a extinção da Arena e do MDB e fixava as regras para a cria-
ção dos novos partidos. Nas semanas seguintes, de acordo com Movimento, se-
riam anunciados o PDS, partido do governo, “depurado” de setores di-
vergentes. Estes últimos foram formar com Magalhães Pinto, Tancredo
Neves, moderados e adesistas do MDB um partido de oposição “confiá-
vel”, que viria a ser o PPB, e que acabou sendo registrado como PFL. O
restante do MDB foi constituir o PMDB, com os autênticos e uma parte
dos moderados, somando cerca de cem parlamentares à frente e abrindo
as portas para a inscrição de militantes vindos dos movimentos popula-
res. Fernando Henrique, Almino Afonso e outras lideranças, que começa-
ram tentando organizar um partido social-democrata e participaram das
articulações do PT, acabaram por considerá-lo “estreito” e não entraram
no PT, acomodando-se no PMDB. Também ficaram no PMDB o deputado
Aurelio Peres e o advogado Tarso Genro, entre outros. Este, aliás, escre-
7 Movimento 215, 13 a 19 de agosto de 1979 – Entrevista de João Amazonas: “Acontece, no
entanto, que o partido dos trabalhadores, verdadeiramente de classe, verdadeiramente proletário,
verdadeiramente socialista, já existe. É o PC do Brasil.”

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O debate sobre os novos partidos

veu na ocasião um artigo em Movimento no qual se opunha ao PTB e ao


PT, argumentando que “o PMDB leva menos ilusões aos trabalhadores em
geral e ao proletariado em particular, já que não se apresenta como instru-
mento – falso – de hegemonia da classe trabalhadora e do proletariado na
vida política”.8
Na edição 236, de 7 a 13 de janeiro de 1980, a manchete de capa era
“Escolha seu partido”. Em cinco páginas sob a retranca “Propostas par-
tidárias”, o jornal apresentava um panorama geral da rearticulação parti-
dária, assinado por Perseu Abramo. Artigo de Duarte Pereira opinava que
a oposição popular havia ficado dividida. E havia entrevistas de diversas
lideranças políticas. Num texto à parte eram resumidas as propostas pro-
gramáticas dos vários partidos. Uma cobertura completa.
Em 10 de fevereiro de 1980, de novo no Colégio Sion, em São Paulo, deu-
-se a reunião nacional de fundação do Partido dos Trabalhadores PT 9 O jor-
nal avaliou em 1,2 mil as pessoas que estiveram presentes, representando 18
estados. O partido nascia com uma composição social majoritária de clas-
se média (intelectuais, professores, jornalistas, religiosos de esquerda, mili-
tantes de pequenas organizações de toda a esquerda, à exceção de PCdoB e
PCB, e apenas um terço de operários). Primeiros signatários do manifesto de
fundação: Mario Pedrosa, Manoel da Conceição, Sérgio Buarque de Holan-
da, Lelia Abramo e Apolônio de Carvalho. Outros intelectuais davam apoio,
como Antonio Cândido, Chico de Oliveira e Eduardo Suplicy. Aderiram ao
PT diversas organizações de esquerda “socialistas”, trotskistas como a Demo-
cracia Socialista, o Movimento de Emancipação do Proletariado, MEP, o Par-
tido Operário Revolucionário Trotskista, PORT, outras micro-organizações,
o Partido Revolucionário Comunista, PRC, dissidência do PCdoB, e grupos
remanescentes da Ação Popular.
O quadro partidário, definido pela nova lei do governo, ficou assim, con-
forme a edição 245 de Movimento: PDS, PPB (futuro PFL), PMDB, PT e
PTB. Esta última sigla, por decisão da Justiça Eleitoral, acabaria depois
nas mãos do grupo adesista da deputada federal Ivete Vargas. Leonel Bri-
zola não teve remédio senão registrar outra sigla, PDT, Partido Democrá-
tico Trabalhista, que seria o sexto partido. Enquanto isso, a proposta da
“Tendência Popular” perdia substância e não se concretizou.10 PCdoB e
PCB só voltariam à vida legal em 1985, no governo de José Sarney.

OS CATÓLICOS NO PT
As reportagens de Movimento mostravam que os setores progressistas da
igreja católica, afinados com a teologia da libertação, vinham mobilizando
os trabalhadores por meio das pastorais operárias e das CEBs, Comunidades
Eclesiais de Base.11 Em 1979, na greve do ABC, com a repressão violenta e a

8 Movimento 239, 28 de janeiro a 3 de fevereiro de 1979.


9 Movimento 242, 20 a 27 de fevereiro de 1980.
10 Movimento 245, 10 a 16 de março de 1979.
11 Movimento 243, 25 de fevereiro a 2 de março de 1980, e Movimento 244, 3 a 9 de março de 1980.

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Jornal Movimento, uma reportagem

interdição dos sindicatos, a igreja saiu dos bastidores. O bispo dom Cláudio
Hummes abriu as portas da matriz de São Bernardo do Campo para que os
grevistas pudessem reunir-se. Ali também se organizou a comissão do fundo
de greve, com a notável contribuição das Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) e Pastorais Operárias.
Na greve dos metalúrgicos da capital, em outubro, a Igreja sentiu-se direta-
mente atingida pela repressão. O assassinato de Santo Dias, líder metalúrgico
e membro da Pastoral Operária, produziu um clima de comoção. Em seguida,
refletindo a revolta geral, a greve recrudesceu. E a repressão foi ao paroxismo,
com espancamentos e inúmeras prisões. As sedes sindicais foram fechadas
pela polícia. Em resposta, a igreja abriu as portas de 13 templos nos bairros
operários, nas cinco regiões da cidade, para que os grevistas pudessem se
reunir e receber apoio. Em represália, pela primeira vez a ditadura atacou um
templo católico. A Igreja da Capela de Socorro, onde se reunia o comando de
greve, foi invadida e atingida com cerca de 20 bombas, causando inúmeros
feridos e um incêndio parcial.
O título da matéria de Movimento foi “O manto protetor da igreja”, cuja
abertura era:
As igrejas – grandes e pequenas – abriram suas portas. Os re-
ligiosos – padres, freiras e bispos – deram suas mãos e cederam
seus púlpitos e acomodações. As CEBs buscaram na periferia
pão e assistência aos grevistas. E assim os metalúrgicos pau-
listas puderam resistir muito tempo diante da fúria da polícia.
O bispo dom Angélico Bernardino decretou: “Quando o governo pisa
em cima do povo, está em conflito com a igreja”.12
Essa postura da igreja católica no Brasil tinha a ver com a reformulação de
sua doutrina, sob influência do papa João XXIII, no sentido de uma maior
preocupação com a realidade social dos povos. Linha pastoral que se iniciou
com a encíclica Mater et Magistra, de 1961, e o Concílio Vaticano II, de 1962.
E iria repercutir na igreja da América Latina, cristalizando-se na Conferência
do Episcopado Latino-Americano de Medellín, em 1968. Assim, a mesma
igreja que mobilizara um movimento de massas e, agitando a bandeira do
anticomunismo, dera apoio ao golpe militar de 1964, para derrubar o governo
legal de João Goulart, assumiu, nos anos seguintes, uma postura que levou
largos segmentos da própria hierarquia e de leigos a tomar posição em favor
dos “oprimidos” e contra a ditadura militar.
É verdade que, ainda no início dos anos 1960, alguns setores da igreja
se antecipavam e buscavam essa linha de participação social, de tal forma
que da juventude católica iria surgir a organização política Ação Popular,
com forte vocação para a ação de massas e que, nascida no movimento
estudantil, em 1961, logo se voltaria também para os camponeses, traba-
lhadores rurais e urbanos. De acordo com Carlos Alberto Libânio Christo,
o Frei Betto, frade dominicano, a Ação Popular surgira questionando o
12 Movimento 228, 12 a 18 de novembro de 1979.

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O debate sobre os novos partidos

conservadorismo da igreja, mas era muito bem-vista por vários setores


dela, representados, por exemplo, por dom Helder Câmara, arcebispo de
Olinda e Recife, e dom Carlos Carmelo Mota, arcebispo de São Paulo.
Ao derivar para o marxismo-leninismo e o maoismo, a Ação Popular
como que escapuliu da influência da igreja católica. Mas esta continuou a
buscar contato com os movimentos populares, edificando com eles a cha-
mada teologia da libertação. Os religiosos se integravam à vida e aos pro-
blemas das populações mais pobres e organizavam as CEBs para exercer
os rituais católicos e, ao mesmo tempo, discutir os problemas das comu-
nidades. Em poucos anos espalharam-se pelo País, numa rede de grande
capilaridade. Frei Betto diz que as CEBs chegaram ao número de
80 mil a 100 mil. Era uma coisa impressionante. (...) Movi-
mento massivo e com uma vantagem que é um processo de
conscientização política muito rápido, porque você faz analo-
gia, você pega o fato da Bíblia, que é o método utilizado lá, e
compara com um fato da vida. (...) Porque você, quando chega
no povão com uma linguagem religiosa, você fala algo familiar
a ele. Por isso que a esquerda tradicional, dos partidos comu-
nistas, tinha dificuldades de arregimentar a massa, porque é
uma linguagem racional, conceitos estranhos...13
Frei Betto conta que um grande número de lideranças sindicais que se des-
tacaram a partir da década de 1970 veio das CEBs. O movimento sindical do
ABC, que era um movimento novo, praticamente sem ter vivido a influência
dos partidos comunistas, esteve desde o início próximo da igreja. O bispo
dom Jorge Marcos dedicou-se à organização operária desde os anos 1960.
Depois dele, o bispo dom Cláudio Hummes continuou o trabalho na mesma
direção, mantendo vínculos com os operários. E deu importante apoio às
suas lutas quando ocorreram as greves. Por isso, no decorrer das articulações
para a formação do PT e da Central Única dos Trabalhadores, CUT, muitos
militantes das CEBs estavam presentes não só em São Paulo, mas nos outros
estados, porque as CEBs estavam disseminadas por todo o País.
De acordo com Frei Betto, “o próprio Lula já, várias vezes, em público,
reconheceu que a capilaridade das CEBs foi mais importante para a im-
plantação nacional do PT do que o sindicalismo”.
Frei Betto, depois de sair da prisão, em 1973, passou a ser animador de
CEBs. Em 1979, foi transferido para trabalhar com as CEBs da região do
ABC. E em 1980, por orientação do bispo dom Cláudio Hummes, passou a
ser interlocutor de Lula e de outras lideranças. Lembra que se empenhou
em mobilizar inúmeros trabalhadores organizados nas CEBs para se tor-
narem militantes do PT.
E a esquerda, como se aproximou para fazer parte do PT? Frei Betto
lembra que, “afora a esquerda que se mantinha organizada (o PCdoB e o
PCB)”, a chamada “esquerda esfacelada”, remanescente da guerrilha urba-
na, em parte chegou ao Lula por intermédio dele:
13 Entrevista de Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, em 27 de abril de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Os sindicalistas tinham preconceito com os comunistas, mas


eram cristãos. Então, eu me lembro assim, não fui a única, mas
eu fui uma importante ponte entre a esquerda tradicional, que
inclusive tinha passado ou pela prisão ou pelo exílio, e o mo-
vimento sindical. Havia uma rejeição. Mas havia uma confian-
ça em mim, negócio de ser frade, cristão, e eu vinha da esquer-
da tradicional, armada, né? Então, assim, eu apresentei para o
Lula o Zé Dirceu, Rubem Alves, Paulo Vannucchi e mais um
bando de gente, porque todo mundo tinha o pé atrás, sabe?
Agora, se eu dava aval...
Tonico Ferreira confirma que no início a rejeição era grande:
Então, (a redação de Movimento) era frequentada por operá-
rios do ABC, mas principalmente de São Paulo, da dissidência
de São Paulo, porque lá no ABC era o Lula que dominava e o
Lula não queria saber da gente de jeito nenhum. (...) Ah, o Lula
não queria saber de ninguém de esquerda.14
Lula rejeitava a influência dos partidos comunistas, de linha leninista.
Deixou clara sua posição ao discursar na 1ª Convenção Nacional do PT, no
auditório do Senado Federal, em setembro de 1981. Esse discurso foi redigi-
do por ele em conjunto com Frei Betto e o sociólogo Francisco Weffort, numa
sala do Convento dos Dominicanos, nas Perdizes, São Paulo. Segundo
ele, o PT nascia “da consciência que os trabalhadores conquistaram, após
muitas décadas, de servirem de massa de manobra dos políticos da bur-
guesia e de terem ouvido cantilenas de pretensos partidos de vanguarda
da classe operária”.
Quanto às relações com a igreja, Lula repudiou
a prática partidária que pretenda reduzir as Comunidades de
Base a núcleos partidários (...) não seremos jamais um parti-
do de crentes ou de ateus. Para nós, a divisão é outra, é entre
os que estão do lado da libertação e os que estão do lado da
opressão. O Partido dos Trabalhadores jamais representará os
interesses do capital.
No discurso, Lula se perguntou: “Qual a ideologia do PT? O que pensa
o PT sobre a sociedade futura? (...) Não seria o PT apenas um partido
social-democrata, interessado em buscar paliativos para as desigualda-
des do capitalismo?”.
Ele anunciou objetivos revolucionários:
Nós do PT sabemos que o mundo caminha para o socialismo
(...) queremos, com todas as forças, uma sociedade que, como
diz o nosso programa, terá que ser uma sociedade sem explo-
radores (...) queremos mudar a relação entre capital e trabalho.
Queremos que os trabalhadores sejam donos dos meios de pro-
dução e dos frutos do seu trabalho. Que sociedade é esta senão
uma sociedade socialista?15
14 Entrevista de Antonio Carlos Ferreira, o Tonico, em 22 de outubro de 2009.
15 A Mosca azul, livro de Frei Betto, págs. 94-95. Editora Rocco, 2006.

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O debate sobre os novos partidos

No livro citado, de 2006, Frei Betto revelou-se surpreso pelo fato de


Lula, quando na Presidência da República, haver declarado “em público
que nunca fora de esquerda”. E também reputou como “de ocasião o so-
cialismo” de Francisco Weffort, corredator do discurso, que, tão logo se
delineou a derrota de Lula para FHC em 1994, “migrou para o PSDB, que
o premiou com o cargo de ministro da Cultura”.

DUARTE PEREIRA VERSUS CHICO DE OLIVEIRA


Dez dias depois da fundação do PT, Movimento divulgava dois artigos sob a
retranca “Debate: O Partido dos Trabalhadores”, um de Duarte Pereira, outro
de Chico de Oliveira.
Duarte Pereira, no artigo já citado, “Social-democracia de esquerda?”, refe-
ria-se a trechos do manifesto de criação do partido para reconhecer que
o PT nasce, portanto, de uma necessidade real. Mas isso não
basta para que seja capaz de atendê-la (...) Todo partido se for-
ma a partir de determinada base social, por um lado, e a partir
de determinadas idéias políticas, por outro. Da interação entre
esses dois fatores é que resultam a orientação e a prática do
partido, a maneira como ele formula e articula seus objetivos
finais, estratégicos e táticos. Ora, os operários não têm espon-
taneamente as idéias de sua classe, mas sim as da burguesia
dominante. Não basta, portanto, que um partido seja consti-
tuído por operários, para que ele formule um programa e uma
tática que correspondam realmente aos interesses dos traba-
lhadores. Pode existir um partido operário pela sua base social
que seja burguês ou pequeno-burguês por sua política.
E continuava:
Um partido verdadeiramente operário só se constrói, portan-
to, em ligação estreita com o movimento operário de massas e
em particular com sua camada avançada. Mas ele só se cons-
trói também no esforço de assimilar e aplicar à nossa época e à
realidade de cada país, com a ajuda de intelectuais de vanguar-
da, a teoria própria da classe operária – o socialismo científico,
fundado por Marx e Engels e desenvolvido por Lênin e outros
dirigentes e partidos operários. Não bastam, por conseguinte, a
luta econômica e luta política; é indispensável também a luta
teórica sem quartel contra todas as idéias conservadoras, refor-
mistas, burguesas e revolucionárias pequeno-burguesas. Sem
essa união, sempre renovada, entre o movimento operário de
massas e o socialismo científico, a classe operária continuará
sem independência e sem rumo e o PT falhará, como malogra-
ram antes os PCs e outras organizações.16
Na página seguinte, Chico de Oliveira assinava o artigo “O PT já está
revolucionando”.
16 Movimento 238, 21 a 27 de janeiro de 1980.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Ele começava por considerar “previsível” que o movimento pelo PT


venha enfrentar as bizantinices de Bizâncio, fórmula sempre
hábil com que as ‘patrulhas ideológicas’ de variadas tendên-
cias costumam cobrar nos outros a coerência que não têm...
(...) A relação de bizantinices é longa demais para esgotar-se.
Do interior da própria esquerda, as que se pretendem ortodo-
xas e as que se pretendem amplas, é possível esperar-se longas
e às vezes bem articuladas inquisições sobre o caráter tático ou
estratégico do PT, sobre se o PT é um partido revolucionário,
ou reformista, sobre o caráter classista ou “geléia geral”... (...)
Em primeiro lugar, a questão posta sorrateiramente de se o PT
é revolucionário, eu respondo: é. Sua simples existência já re-
voluciona a política brasileira, porque significa a inclusão das
massas exploradas na política em seu próprio nome. Desde
quando a posição de um líder sindical interessou às classes
dominantes e ao Estado, se esse líder não estivesse submeti-
do a eles? Nunca. Agora, à pergunta também sorrateira, ines-
crupulosa, de se o PT fará a revolução brasileira, eu respondo
também sem titubear: não, sozinho não. Porque em nenhum
caso partido algum fez uma revolução sozinho: essa concep-
ção decorre de leituras ideologizadas das grandes revoluções.
Cito todas, as do ciclo socialista: a grande revolução de ou-
tubro, a revolução chinesa, a revolução cubana, a revolução
vietnamita e agora a mais recente, a revolução nicaragüense.
Em nenhuma delas houve a atuação de um só partido. E o PT
não tem essa pretensão. Uma revolução social é um amplo
movimento de massas, de ruptura, e nenhum partido pode se
arrogar essa tarefa...
E concluía:
(...) A proposta do PT não é exclusivista; não pensa que a
classe operária é patrimônio, propriedade, do PT; ao contrário,
o PT põe-se como instrumento dela (...) Nossa proposta é plu-
ralista (...) Sabemos, e essa lição a história nos ensinou muito
bem, que nenhum partido é capaz de cobrir a ampla, rica e
diferenciada estrutura social e de interesses de uma sociedade
complexa como a brasileira. Por isso, não queremos represen-
tar a todos, nem supor que somos o único representante dessas
classes e setores sociais...17

NOVO CENÁRIO
O debate sobre o PT e suas propostas iria se estender pelas páginas do jornal
e, nos anos seguintes, dentro das esquerdas e em toda a sociedade. Os textos
de Movimento continuam atuais e à disposição dos que desejem “fazer o re-
17 Idem.

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O debate sobre os novos partidos

corrido dos fatos” (expressão de Chico de Oliveira) e avaliar os acontecimen-


tos das três últimas décadas. São ricos em particular como referência para o
estudo da evolução dos partidos, do PT, do PCdoB, do PMDB e de outros, que
se extinguiram ou surgiram nesse intervalo de tempo.
Aquele momento, porém, trazia novos desafios para o jornal Movimento.
Seu futuro estava imbricado com a reorganização partidária. Na medida
que as diversas tendências políticas iam encontrando espaço para se apre-
sentar com a sua fisionomia perante a sociedade, tinham como prioridade
centrar seus esforços na própria organização. Menos espaços e recursos
humanos e materiais iam restando para Movimento e para os outros jor-
nais semelhantes, de frente. O PCdoB lançou seu próprio jornal legal, o
Tribuna da Luta Operária, em outubro de 1979. Pela mesma época, o PCB
lançava o jornal A Voz da Unidade. O MR-8 lançou o Hora do Povo. É
sintomático que entre 1979 e 1980 a maior parte dos jornais alternativos,
de frente, que se contavam às dezenas, deixou de existir.
Em particular, a proposta de criação do Partido dos Trabalhadores atraiu
os esforços desses setores até então empenhados na imprensa alternativa.
No dizer de Frei Betto, era o “resultado da confluência de várias tradi-
ções de esquerda, desde o marxismo-leninismo ortodoxo ao trotskismo,
das Comunidades Eclesiais de Base ao sindicalismo combativo”18, ou seja,
uma federação de tendências, de organizações e frações políticas e religio-
sas. A proposta do PT foi objeto da concorrida afluência de grande parte
das forças sociais progressistas. Era uma novidade no cenário político do
País, uma proposta ainda mais atrativa porque estava ancorada no movi-
mento sindical e tinha um líder operário de prestígio a encabeçá-la.

18 Frei Betto . A Mosca Azul, op. cit.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Edição 265, 28 de julho de 1980, página 2

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Aos cinco anos,
nova mobilização

G
randes e rápidas mudanças estavam ocorrendo no cenário po-
lítico. E Movimento encontrava dificuldades para se ajustar à
nova conjuntura. Estava ameaçado de isolamento por não ser
representante de nenhuma das forças políticas emergentes e, iro-
nicamente, por ter sua imagem fortemente vinculada ao PCdoB.
A equipe planejou aproveitar o quinto aniversário do jornal, que se daria em
julho de 1980, para se renovar e ampliar sua base de sustentação política fa-
zendo uma forte mobilização de esforços. Para isso, ainda em 1979, a reunião
do Conselho de Direção autorizara Raimundo Pereira a manter contatos com
outros setores políticos e da imprensa alternativa em busca de um projeto de
um jornal unificado.
Paralelamente, a discussão interna sobre o futuro do jornal era iniciada com
o documento “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”1, para a prepara-
ção de reunião de 3 de setembro de 1979. Esse texto mostrava as oportunida-
des que a conjuntura oferecia, quando a ditadura recuava, mas buscando no
essencial manter seu regime político e econômico, e ressalvava que isso só
não aconteceria na medida da mobilização e participação popular consciente
rumo à ampliação da democratização. Avaliava que, apesar de seus avanços,
a imprensa popular precisava dar um salto qualitativo para melhor servir às
forças democráticas. Deixava entrever sua contrariedade com a dispersão de
esforços que começava a acontecer na imprensa alternativa. Dizia que, em-
bora fosse
estimulante e positivo o reaparecimento e a caracterização de jor-
nais de tendências e partidos, torna-se cada vez mais evidente
a necessidade e a oportunidade de um jornal que congregue es-
forços amplos e as correntes de opinião variadas que existem no
seio do movimento popular.
O texto lembrava que os semanários existentes tinham
enorme insuficiência de recursos humanos, financeiros e ma-
1 “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, 3 de setembro de 1979, mimeo. Arquivo pessoal de
Flávio Carvalho.

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Jornal Movimento, uma reportagem

teriais; com recursos mensais da ordem de 1 milhão e 100 mil


cruzeiros (R$ 413 mil de 2011), Movimento, “o maior dos peque-
nos”, não tem sequer editorias específicas de economia, cultu-
ra e geral; paga o máximo de Cr$ 20 mil por mês2; deve perto
de Cr$ 500 mil; e continua vivendo sob crises financeiras, de
produção gráfica, de distribuição, jornalísticas e políticas.
Entre outros percalços, o jornal enfrentava inflação galopante. Evidência: o
dólar valia Cr$ 7,55 em julho de 1975. Em setembro de 1979 seu valor era de
Cr$ 29,20. Valorização de 386% em quatro anos.
Em consequência dessas limitações, o relatório opinava, a imprensa popu-
lar não estaria conseguindo cobrir as manifestações do movimento popular
que se espalhavam pelo País, gerando insatisfação em muitas áreas. Além
da insuficiência de recursos, apontava que “a dispersão de esforços e a di-
visão reinantes na imprensa popular dificultam uma unificação maior dos
esforços de centenas de jornalistas, intelectuais e políticos cujos trabalhos
são indispensáveis ao conhecimento mais profundo da realidade”. E sugeria
a unificação de esforços para a criação de um jornal “semanário político de
informação, análises e opinião” que buscasse dar apoio ao movimento de-
mocrático e popular em torno das bandeiras, sempre repisadas, constantes
do programa de Movimento. O documento adiantava algumas características
desse jornal, muito parecidas com as de Movimento, só que ampliadas pelo
reforço de aliados e recursos.
Outro relatório, de 20 de setembro de 1979, registrava alguns resultados dos
contatos feitos para discutir o novo jornal, relatados na nova reunião do Con-
selho de Direção. Basicamente, haviam ocorrido contatos com pessoas saídas
do jornal Em Tempo, como Tibério Canuto, o deputado estadual (SP) Geraldo
Siqueira (Geraldinho) e jornalistas como Perseu Abramo e Hamilton Almeida
Filho.3 Outros contatos iriam ser feitos nos meses seguintes com numerosos
jornalistas e intelectuais, como Marcos Faerman, ex-editor de Versus, o histo-
riador Clovis Moura, o advogado Edgar da Mata Machado, Wladimir Pomar
(dissidente do PCdoB, organizava o PRC) e João Batista dos Mares Guia, na
ocasião animador da organização do PT. E houve debates concorridos em
Salvador e Belo Horizonte, incluindo o pessoal das sucursais locais.4

A GRANDE IMPRENSA NÃO COBRE


Um texto de Raimundo Pereira, datado de 31 de janeiro de 1980, endereçado
aos companheiros de jornal e aos grupos de discussão e apoio, tinha o obje-
tivo de preparar a reunião do Conselho Editorial, que iria se realizar em mar-
ço.5 Ele polemizava com várias correntes de opinião então disseminadas na
esquerda, tais como a de que a consolidação dos órgãos da grande imprensa
estaria “esfacelando” a imprensa alternativa, ou a de que “não há mais cam-

2 Equivalente a R$ 7,5 mil de 2011, cerca de 30% do salário médio na imprensa da época.
3 AP 285.06.02 – Fnd. Mov APSP.
4 AP 286.03.03 – Fnd. Mov APSP.
5 Texto de Raimundo Pereira, de 31 de janeiro de 1980, mimeo. Arquivo pessoal de Flávio Carvalho.

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Aos cinco anos, nova mobilização

po para a imprensa alternativa tal como ela é hoje – radical, intransigente; a


ordem é (...) reformular totalmente a imprensa alternativa, tornando-a mais
alegre, menos ranzinza...”, registrava o documento.
Raimundo contestava os dois argumentos, dizendo que a grande imprensa não
prestava um serviço equivalente ao que jornais como Opinião e Movimento ha-
viam prestado, porque a informação não tinha a mesma qualidade e posicio-
namento crítico.
Pegue-se a tradição informativa de Opinião e Movimento (...)
Tome-se a seguir um conjunto de temas mais relevantes e can-
dentes do Brasil e do mundo, no campo social e na área mais
restrita ao indivíduo: a dívida externa e a dependência do país,
a alta do custo de vida e a completa inadequação do nosso atual
sistema de posse e uso da terra, os abusos e a persistência do sis-
tema anti-democrático militar instalado no país, o processo de li-
bertação da mulher, a questão sexual, as grandes divergências no
mundo socialista. Compare-se, finalmente, o que fizeram nesse
campo Opinião-Movimento contra Veja, O Globo, e O Estado de
São Paulo. Não se deve ter qualquer dúvida em afirmar e não se
terá qualquer dificuldade em demonstrar que os dois semanários
da imprensa alternativa prestaram um serviço muito mais rele-
vante na informação e esclarecimento sobre esses temas.
Portanto, a grande imprensa não cobre o que interessa aos setores progres-
sistas da sociedade e nem ao povo em geral. Sem dúvida, um argumento
irrefutável, válido para aquele momento e para os dias que correm.
E, quanto à “caretice”, lembrava que muito antes da “explosão de libertação
sexual” que as “publicações da burguesia” insistiam em atribuir ao “clima
de abertura patrocinado pelo governo”(...) já no segundo semestre de 1978,
Movimento via proibida, de antemão, a “divulgação de suas pesquisas sobre
o comportamento sexual da mulher brasileira (“O nosso relatório Hite”)6 por
uma comunicação da Polícia Federal”.
Para o documento, o que “embaralhou” o campo da imprensa alternativa não
foi que a grande imprensa deixou “a subserviência à ditadura e agora publica
tudo e, por isso, esvaziou a imprensa independente”. Ela continuava a não pu-
blicar tudo. “E, sem censura, a imprensa alternativa está publicando até o que
não podia publicar antes”. Atribuía as dificuldades ao fato de que o crescimento
da imprensa alternativa não foi “automático ao crescimento das dificuldades do
regime, nem ao crescimento geral do movimento popular”. E também a que
está abalada a ditadura militar, mas não está tão abalada a di-
tadura do grande capital (...) Assim, não existirá uma imprensa
popular de largas tiragens sem uma mudança sócio-econômica
profunda, que eleve o poder aquisitivo dos trabalhadores (...) que
lhes dê tempo e condições mínimas para uma participação inte-
lectual mais ampla na vida do país.
6 Movimento 184, 8 a 14 de janeiro de 1979.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Aqui o texto parecia admitir que, enquanto não acontecesse uma demo-
cratização radical do País, a imprensa independente estaria condenada ao
gueto das pequenas tiragens. A seguir, Raimundo afirmava que “a elevação
de nossas vendas (...) depende das lutas políticas gerais do país e do destino
das forças sociais e políticas da oposição a que estamos ligados; e da política
mais ou menos justa que temos seguido”. Essa afirmação parece contraditória
com essa outra afirmação:
Movimento teve suas vendas globais aumentadas em cerca de
50% imediatamente após o fim da censura prévia (...) em segui-
da, teve uma elevação brutal de suas vendas em bancas com a
cobertura das dissidências militares, das denúncias de corrupção
e das atividades da Frente Nacional de Redemocratização – fo-
mos de 10 mil exemplares em bancas para mais de 20 mil; depois
disso, mesmo com o crescimento do movimento grevista de 79
– as greves de SP, do ABC, de Minas e outros estados – as vendas
foram minguando até voltarmos, hoje, quase ao mesmo patamar
que atingimos com o fim da censura...7
E aí estava o centro da questão, o enigma que Movimento não decifrou. Afi-
nal, o movimento popular cresceria ainda mais em 1980 e nos anos seguin-
tes, e, no entanto, nesse período o jornal tornou-se inviável, teve de fechar
as portas. E mais: ao longo de 30 anos nenhum jornal de perfil semelhante
conseguiu sobreviver.

NEGOCIADOR INCANSÁVEL
Raimundo Pereira costuma contar uma passagem de sua adolescência que
parece reveladora de uma capacidade inesgotável de buscar soluções para si-
tuações complicadas. Na sua cidade de Pacaembu (SP), ele jogava num time
de futebol cujo técnico repentinamente converteu-se a uma seita evangélica
que via esse esporte como instrumento do diabo. Temendo a danação no in-
ferno, o técnico deixou de dirigir o time, não sem antes arrebanhar o jovem
Raimundo para a seita, o qual, influenciado, parou de jogar. Aconteceu que
um time de uma cidade mais importante, de Presidente Prudente, veio jogar
contra o time local. Raimundo queria muito jogar, mas temia o castigo infer-
nal. Quebrou a cabeça até chegar a uma solução “negociada”. Deixaria a seita
religiosa provisoriamente para participar do jogo. Se o castigo divino não se
abatesse sobre ele, em seguida poderia voltar à seita. Foi jogar futebol. Como
nada lhe aconteceu, ficou em dúvida sobre o poder daquela religião, e não
voltou a ela.
No final daquele texto de janeiro de 1980, Raimundo Pereira afirmava que
Movimento “é uma realização admirável que não se ampliará, nem mesmo se
manterá nos níveis atuais sem uma efetiva participação das inúmeras forças
que, de uma forma ou de outra, a ajudaram a efetivar-se”. Era um chamamen-
to àqueles setores que anteriormente haviam dado apoio ao jornal e haviam

7 Texto de Raimundo Pereira, mimeo, 31 de janeiro de 1980. Arquivo pessoal de Flávio Carvalho.

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Aos cinco anos, nova mobilização

se afastado. Em um documento divulgado logo depois, Duarte Pereira critica-


va essa passagem do texto, dizendo:
acho que o critério não pode ser a prática passada, mas sim a
prática presente e futura (...) do contrário, seria envolver-nos num
critério passadista ou num processo de incorporação sem critérios,
ou com a política de cabeça para baixo. Ou seja: incorporam-se pes-
soas e tendências de opinião e em função delas define-se a linh a
editorial do jornal.
E não o contrário, vale dizer, define-se a linha editorial e agre-
gam-se as pessoas e correntes de opinião que concordem com
essa linha.8
Qual era o sentido dessa crítica? Raimundo Pereira, fazendo jus à sua tra-
dição de negociador, incansável na busca de soluções, estaria propondo que
se incorporassem ao jornal representantes das diversas forças políticas de
esquerda – PCB, PCdoB, PT e outras – para dar sustentação à recuperação
do jornal. Duarte Pereira repeliu essa proposta. Bem de acordo com o clima
“abrasado” da época, ele teria dito a Raimundo: “Ou eu ou eles”.
Em sua entrevista em 2010, Duarte Pereira procurou explicar sua posição:
Disse a Raimundo: Eu não concordo com a vinda desses com-
panheiros, não concordo se a vinda deles for caracterizada como
a vinda de representantes do PCB e do PCdoB, porque signifi-
ca que nós vamos ser um jornal formalmente patrocinado por
alguns partidos e por alguns outros setores (...) Seria um ótimo
reforço, mas sou contra virem como representantes de partidos...9

MARÇO DE 1980: SOB NOVA DIREÇÃO


A reunião de 1º e 2 de março de 1980, que abriu os debates preparatórios do
quinto aniversário de Movimento, registrou acirradas divergências. Ao final,
permaneceram as várias posições sobre as causas da crise do jornal, desde as
que atribuíam as dificuldades às mudanças no cenário político às que lista-
vam no centro as debilidades internas, como a falta de recursos, os erros de
linha editorial, a luta interna, os reflexos da polêmica sobre o Araguaia “que
afastou muitos colaboradores” etc.
Naquela reunião, a direção do jornal começou a ser recomposta, absorven-
do jornalistas e intelectuais que vinham de outras tendências, como Perseu
Abramo, respeitado jornalista, trotskista histórico, demitido da Folha de
S.Paulo depois da greve dos jornalistas de abril de 1979 e que havia aderi-
do ao Partido dos Trabalhadores. Também foram incluídos no Conselho de
Direção jornalistas e funcionários que estavam tendo grande participação na
rotina da redação: Roldão Arruda, José Tadeu Arantes, Antonio Carlos Quei-
roz, Flavio Dieguez, Luis Felipe Novaes (Administração) e Célia de Souza
(Vendas).

8 Documento de Duarte Pereira, fevereiro de 1980.


9 Entrevista de Duarte Pereira em 5 de julho de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

O novo Gruex ficou assim: Raimundo, Perseu, Tadeu, Armando Sartori,


Leonor, Célia de Souza, Luiz Bernardes (BH) e Márcio Bueno (RJ).
A comissão de encaminhamento de debates e preparação da reestruturação
do jornal no aniversário de cinco anos ficou constituída por Raimundo Perei-
ra, Duarte Pereira, Perseu Abramo, Marcos Gomes, Tibério Canuto, Eduardo
Suplicy, José Crisóstomo, Antonio Carlos Queiroz, Márcio Bueno, Luiz Ber-
nardes e Álvaro Caropreso, representando um variado leque de tendências.
A partir da edição 249, de 7 a 13 de abril de 1980, o logotipo do jornal pas-
sou a incluir uma vinheta com o número 5 e o slogan, em letra manuscrita,
“Cinco anos contra a opressão”.
Os esforços para buscar apoio para o jornal teriam prosseguimento, ouvin-
do mais pessoas, promovendo o debate. Semanalmente, novos apoiadores,
como Armando Boito e Decio Saez, ou membros da redação, como José Car-
los Ruy, publicaram textos discutindo os rumos do jornal. Ao lado eram di-
vulgadas manifestações de intelectuais e cientistas, como Fernando Henrique
Cardoso, Carlos Estevam Martins, Jacob Gorender, Octavio Ianni e outros,
ressaltando a importância de publicar textos na imprensa alternativa e dar-
-lhe apoio. Duarte Pereira foi um dos principais responsáveis por esse esforço
bem-sucedido de atrair intelectuais e ampliar o jornal, lembra Raimundo.
Na edição 25310, Flaminio Fantini, que havia trocado Movimento por Em
Tempo no racha de abril de 1977, também estava colaborando com o jornal.
Trouxe para o debate dois jornalistas da imprensa alternativa, Narciso Kalili
e Hamilton Almeida Filho, este último até pouco antes colaborador do jornal.
Os dois haviam sido da revista Realidade, e feito Bondinho e Ex.11 Numa
entrevista sob o título de “Chega de caretice!”, os dois reclamavam novos
rumos para a imprensa alternativa. Kalili negava ser “porra-louca”, dizia que
seu grupo apenas não era “religioso” e trabalhava sempre “com liberdade”.
Hamiltinho até admitia ser “um pouco porra-louca mesmo”. Para ele,
basicamente, a imprensa alternativa já cumpriu seu papel, está
num momento de transição e ainda não sacou. O negócio de im-
prensa é ser necessária e encontrar o maior número de leitores. A
imprensa alternativa devia, nesse momento, estar repensando a
sua necessidade, a necessidade da informação que ela está dando
e para quem. Na medida em que há um monopólio da imprensa
em sete grandes empresas, o papel da imprensa alternativa mu-
dou fundamentalmente – ela tem que tentar atingir a maioria,
não tem mais condições de ficar falando para 18 pessoas ou ficar
representando facçõezinhas. Ela se pulverizou e neste momento
atinge cada vez menos...
Narciso Kalili não fez por menos:
A imprensa alternativa não está conseguindo ser alternativa! O
país mudou, pelo menos numa coisa (...) É possível hoje você ver
jornais alternativos de várias agremiações políticas circulando li-

10 Movimento 253,5 a 11 de maio de 1980.


11 Narciso Kalili faleceu em 1992 e Hamilton Almeida Filho, em 1993.

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Aos cinco anos, nova mobilização

vremente na rua, sem censura (...) Para aquela parcela da popula-


ção brasileira que lê, compra, nós podíamos estar dizendo coisas
realmente importantes, mas não estamos fazendo isso.
Sobre Movimento:
O Raimundo é um puta profissional do jornalismo, mas não sei
se é um líder político necessário e indispensável. Acho que ele
seria indispensável para o jornalismo (...) Hoje é um belo líder
político e faz jornalismo por acaso. Daí Movimento ser o que é –
ter muito pouca ligação com o leitor...
Nenhum dos dois, porém, apresentava sugestões concretas sobre o cami-
nho que a imprensa alternativa deveria seguir. E estavam voltando à grande
imprensa, agora na nova área de jornalismo televisivo: Kalili para a TV Tupi,
Hamiltinho para a TV Bandeirantes. Também era o caso de Tonico Ferreira,
como vimos.12
Enquanto o debate sobre os novos rumos de Movimento prosseguiam, a
redação insistiu na mesma linha de cobertura, com destaque em suas su-
cessivas edições para as lutas pela terra, as greves operárias, a reorganização
partidária, a denúncia dos avanços do capital estrangeiro e da corrupção. E
assumiu o compromisso de oferecer espaço para a polêmica entre as forças
de esquerda, como, por exemplo, a intervenção de tropas da União Soviéti-
ca no Afeganistão, ou a luta interna dos partidos ainda na clandestinidade,
como a que levou à demissão de Luís Carlos Prestes da direção do PCB13, ou
a carta do dirigente camponês José Novais criticando a linha política de seu
partido, o PCdoB (“mistura de maoismo com foquismo”, disse ele).14 Além
disso, foi feito um balanço crítico dos 16 anos da ditadura militar (repisando
o tema de que a ditadura recua, manobra, “mas continua”).

JULHO DE 1980: 2ª CONVENÇÃO


A convenção nacional dos cinco anos de Movimento, realizada em 19 de
julho de 1980, foi mais uma demonstração da grande capacidade de mobi-
lização da sua equipe. Contou com a participação de 350 membros efetivos
da Sociedade dos Trabalhadores de Edição S/A. Entre estes, 75 foram eleitos
delegados com direito a voto, sob o critério de “trabalho efetivo e atual”. A
reunião, que teve duração de 12 horas e foi relatada em detalhes nas páginas
do jornal, reafirmou o programa “Um jornal democrático-popular com inde-
pendência e pluralismo”, dando destaque à denúncia da ditadura militar e às
lutas pela democratização, revogação dos atos de exceção, anistia irrestrita e
Constituinte livremente eleita; às lutas do movimento popular e, em particu-
lar, do movimento operário “em ascensão”; ao combate a todas as agressões
imperialistas e à defesa da autodeterminação dos povos, análise das experi-
ências de construção do socialismo “sem assumir uma posição precipitada
12 Não eram os únicos. Carlos Azevedo desligava-se em maio de 1980 do PCdoB e deixava a
militância política e a Tribuna da Luta Operária, voltando a trabalhar na imprensa capitalista.
13 Movimento 256, 26 de maio a 1º de junho de 1980.
14 Movimento 265, 28 de julho a 3 de agosto de 1980.

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Jornal Movimento, uma reportagem

ou apologética em relação a nenhuma delas(...) Movimento deve continuar


sendo, como sempre, um jornal de frente, sem vinculação partidária...”15
Uma decisão surpreendente: “Corta Essa!”, a seção de humor, após votação
apertada, foi extinta.
O documento aprovado pela maioria dos presentes (36 votos contra 14 e
3) propunha também que o jornal “deve partir dos fatos tais como eles são,
deve retratá-los da maneira mais fiel possível (...) o jornal deve partir da rea-
lidade e não de seus desejos”. Portanto, o modelo de jornal proposto deveria
caminhar, dentro das limitações de recursos, no rumo de realizar mais repor-
tagens, de colocar o maior número de profissionais nas ruas em contato com
a população e, em particular, retratando a vida e as lutas populares.
A reunião criou nova estrutura organizativa e elegeu novos dirigentes. O
Grupo Executivo (Gruex) foi extinto para reduzir o número de instâncias,
criando-se uma nova diretoria para a qual foram eleitos Raimundo Pereira,
Paulo Koza, Antonio Carlos Ferreira, Perseu Abramo, Duarte Pereira, Célia de
Souza e Roldão Oliveira.
O Conselho de Direção foi reorganizado, foi afastada a maior parte de seus
42 dirigentes, muitos dos quais haviam se distanciado da prática do jornal.
O CD ficou com 31 diretores, 15 antigos e 16 novos, todos participantes efeti-
vos do trabalho nos seis meses anteriores. Abandonou-se, portanto, a prática
de abrigar no CD personalidades representativas. Estas deveriam, a partir de
então, fazer parte do Conselho Editorial, que seria ampliado, estando em pro-
cesso de consulta cerca de 200 pessoas.16
A Comissão da “Campanha dos 5 anos de Movimento” havia organizado
debates preparatórios dentro do jornal e fora dele. Também era sua tarefa
procurar recursos com acionistas e apoiadores para enfrentar uma dívida
de Cr$ 1,6 milhão (R$ 333 mil de 2011). Após três meses, conseguiu arreca-
dar em ações e doações Cr$ 1,5 milhão, vendeu assinaturas (Cr$ 264 mil), re-
alizou uma exposição e produziu material de propaganda. Ganhou 380 peças
de arte e conseguiu alguma recuperação das vendas diretas do jornal em São
Paulo (Cr$ 40 mil por mês, R$ 8,3 mil de 2011).17
Havia-se alcançado um ajuste nos rumos do trabalho e uma nova unidade
de ação, em que pesasse a saída de alguns antigos companheiros que, aliás, já
vinham há algum tempo se afastando.

A SUCURSAL DE BELO HORIZONTE SE DEMITE


Desde o final de 1978, Luiz Bernardes, chefe da sucursal de Belo Horizonte,
em sucessivos documentos vinha fazendo críticas, primeiro localizadas, de-
pois generalizadas, à linha editorial. Em 1978, avaliava, por exemplo, que o
jornal perdera o pé da cobertura das eleições parlamentares daquele ano, su-
bestimara sua importância política. Em 1980, vaticinava seu fracasso porque
caminhava “contra os fatos”, era elitista quando devia se popularizar, via o
15 Relatório da convenção em Movimento 265, 28 de julho a 3 de agosto de 1980.
16 Idem.
17 Idem.

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Aos cinco anos, nova mobilização

movimento de massas em refluxo quando ele estava avançando. E perdia seu


caráter de jornal de frente para converter-se em porta-voz de uma tendência.
Uma semana antes da convenção de julho, Bernardes havia publicado no
jornal uma “carta aberta” com o título “Movimento traiu seu projeto”.18 A
carta, entre outras duras críticas, dizia que o jornal deixara de ser um jornal
de frente e se tornara partidário de uma tendência, “guarida de dissidentes
do PCdoB”.19
Na convenção, as posições de Bernardes foram derrotadas. Ele se retirou
antes do final da reunião, mas, num sinal de que havia grandes diferenças
também entre os vitoriosos, foi reconduzido, à sua revelia, ao Conselho de
Direção. Decorreram três meses em que, segundo Bernardes, esperou por mu-
danças no posicionamento da direção do jornal. Entretanto, em comunicado
ao público, de 25 de outubro, ele apresentou sua demissão, que foi seguida
da demissão coletiva dos outros membros da sucursal de Belo Horizonte. O
texto dizia:
Da convenção até agora, a prática da direção de Movimento, ex-
pressa em suas páginas e em sua conduta interna, revelou exa-
tamente o contrário: a sua disposição de continuar estreitando
o jornal, em transformá-lo definitivamente e cada vez mais num
jornal de pequeno grupo e em briga constante com os fatos e os
interesses da oposição democrática e popular; nem que para isso
precise “expulsar” das fileiras do jornal todos aqueles que pen-
sem diferente e se opõem a seus intentos.
Depois de denunciar uma política de represálias contra a sucursal, como
corte de salários e suspensão do aluguel de salas e telefones sem comunica-
ção prévia dessa decisão, indicando o intento de afastar seu pessoal, o co-
municado reafirmava suas posições em quatro pontos. 1: “A adoção de uma
conduta editorial que colocou o jornal em choque frontal com o curso dos
acontecimentos no país e com as necessidades da oposição democrática, na-
cional e popular. Uma conduta no geral atrasada em relação ao nível efetivo
alcançado pela luta popular”; 2: “Promoção de uma mudança no caráter do
jornal que vai deixando de ser um jornal frentista...”; 3: Direção exercida “de
forma autocrática esvaziando os mecanismos democráticos de decisão inter-
na e cortando os vínculos com a oposição de fora do jornal...”; 4: “Manuten-
ção e o reforçamento de um jornal que, do ponto de vista formal, é elitista,
num contexto em que o grande ator da cena política são as massas”.20
Em entrevista em 2010, Luiz Bernardes disse manter seus pontos de vista,
que, segundo ele, foram confirmados pelos fatos que ocorreram depois.

18 O título original do documento era “Por um jornal de oposição frentista de conteúdo


democrático, nacional e popular”. Bernardes escreveria a seguir que a mudança de título pela
redação fora uma deturpação de sua posição, e que seu texto havia sofrido 35 cortes.
19 Movimento 262, 7 a 13 de julho de 1980.
20 Comunicado de demissão coletiva da sucursal de Belo Horizonte em 25 de outubro de 1980.
Arquivo pessoal de Luiz Bernardes.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Capa da edição 264, 21 de julho de 1980

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26
Queda nas vendas
e o terrorismo

E
m 1980, um novo obstáculo surgiu para dificultar o esforço de
recuperação de Movimento. Bancas de jornais estavam sendo
incendiadas ou ameaçadas. Em poucos dias, atentados ocorre-
ram em São Paulo, Londrina, Rio de Janeiro, Goiânia e Salva-
dor. Pânico entre os jornaleiros. Os terroristas deixavam men-
sagens acusando-os de fazerem “propaganda do comunismo” por vende-
rem jornais da imprensa alternativa; doze jornais chegaram a ser citados
na lista negra, Movimento entre eles. Uma banca atacada no Itaim Bibi,
em São Paulo, teve Cr$ 400 mil cruzeiros de prejuízos (R$ 83 mil de
2011). A arrendatária da banca havia recebido um bilhete com ameaças
e apresentou-o ao Deops, mas nenhuma providência foi tomada. Em se-
guida, a banca sofreu o atentado. Em consequência, muitos jornaleiros
da capital paulista deixaram de vender aqueles jornais. No Rio, em Belo
Horizonte e em outras cidades acontecia situação semelhante. Márcio
Bueno, diretor da sucursal carioca, conta que “apenas um jornaleiro se
disse disposto a continuar vendendo Movimento no Rio”. De acordo com
Álvaro Caropreso, em Campinas (SP) somente José Magalhães Teixeira,
que era radiologista e dono de uma revistaria, se dispôs a enfrentar o ter-
ror. Caropreso lembra:
Ele se colocou na frente da porta da revistaria e disse: “Eu vou
vender esses jornais aqui na minha revistaria e se quiserem jogar
bomba que joguem comigo aqui na frente”. E avisou a imprensa
local de que ia ficar na frente da revistaria esperando quem ia jo-
gar uma bomba lá. E continuou vendendo os jornais alternativos.1
Não havia como evitar a redução das vendas, diz Caropreso:
Mandaram bomba para a sede da OAB, carta-bomba, e então
as bancas passaram a ser o alvo. Houve queda das vendas e das
assinaturas também. Veja a situação do leitor. Claro, eu recebo
na minha casa, o carteiro que vai entregar o jornal, ele vê:

1 José Magalhães Teixeira, ex-PCB, MDB, PMDB, PSDB, viria a ser prefeito de Campinas por duas
vezes e deputado federal. Faleceu em 29 de fevereiro de 1996.

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Jornal Movimento, uma reportagem

“Pô, esse aqui é o jornal da bomba...” É como se você estives-


se entregando um cartão de identificação: “Por favor, atire em
mim”.
Em resumo, apenas uns poucos jornaleiros se dispuseram a continuar a
vender jornais alternativos, apesar dos apelos da Comissão da Imprensa
Alternativa, formada por todos esses jornais para organizar os protestos,
pedir providências às autoridades e tentar convencer os donos de bancas
a resistir.2 As vendas de Movimento em bancas, que já vinham caindo,
caíram ainda mais. O jornal denunciou o crescimento do terrorismo da
direita, mostrou gráficos indicando que, enquanto durante todo o ano de
1979 haviam ocorrido dez atentados, só em seis meses de 1980 já haviam
se dado 20. Na mesma edição publicou matéria de Clovis Rossi, jornalista
da Folha de S.Paulo, sob o título “A polícia sabe quem fez”, mostrando a
conivência policial com os crimes.3
Esses fatos só complicavam a situação do jornal. Conforme o relatório de
desempenho orçamentário, apresentado na convenção de julho de 1980,
sobre os resultados operacionais da editora de novembro de 1979 a julho
de 1980, as “metas das vendas em bancas haviam sido reduzidas extrema-
mente”, e as vendas de assinaturas haviam se tornado “a receita essencial
e básica para a sobrevivência de Edição S/A”. O departamento financeiro
refazia então a projeção rebaixando a meta para uma venda em bancas de
6 mil exemplares por semana, e de 750 assinaturas por mês, para o pró-
ximo período. Era o mínimo para se alcançar uma condição sustentável.
Porém, as vendas em bancas, que foram de 6.850 exemplares por semana
em média, em julho, caíram para 5.750 em agosto, 5.940 em setembro,
4.350 em outubro, 4.900 em novembro. As assinaturas também ficaram
abaixo da previsão de 750 em todos aqueles meses.
Cinco meses depois, em avaliação de novembro de 1980, a situação era
considerada “crítica”. A meta de vendas em bancas passava a ser reduzi-
da para 4.500 exemplares por semana. Para compensar, era proposto “o
aumento imediato do preço de capa”, ou, adiando o aumento para 31 de
janeiro de 1981, vender no período novembro-dezembro-janeiro 450 assi-
naturas a mais por mês. O resultado era considerado pelo Departamento
Financeiro “tanto pior” porque, se não houvesse ocorrido uma doação de
Cr$ 832 mil, o déficit operacional teria alcançado Cr$ 894 mil em 31 de
novembro de 1980, o equivalente a R$ 142 mil de 2011.
Diante da situação difícil e que se esperava que piorasse no final do
ano, período de férias, o Departamento Financeiro propunha, a partir de
janeiro de 1981, a projeção de vendas em banca para 4.500 exemplares
semanais, as assinaturas, para 600 mensais, o aumento do preço de capa
para alcançar o equilíbrio e um esforço interno para redução de despesas.

2 Movimento 265, 28 de julho a 3 de agosto de 1980.


3 Movimento 266, 4 de agosto a 10 de agosto de 1980.

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Queda nas vendas e o terrorismo

A REUNIÃO DE FEVEREIRO DE 1981


Sete meses depois da convenção, a reunião do Conselho de Direção de 7 de
fevereiro de 1981 ocorreu em clima de preocupação diante da grave situação
financeira e comercial e de tensão por motivo de divergências. Perseu Abra-
mo havia se afastado sob a alegação de estar sobrecarregado de tarefas no PT.
Duas semanas antes da reunião, em 26 de janeiro, Duarte Pereira envia-
ra carta à direção comunicando seu afastamento do jornal.4 Ainda assim,
concordou em tomar parte na reunião. Participaram apenas 18 dos 31
membros do CD, numa reunião, como de costume, de 12 horas. Raimundo
Pereira abriu as discussões fazendo um relato da evolução do jornal no
período vencido, considerada otimista. Tibério Canuto e Duarte Pereira
criticaram a avaliação de Raimundo e a linha editorial do jornal. O pri-
meiro, reclamando que o jornal não tinha uma linha editorial definida,
e o segundo, criticando as deficiências no apoio à frente democrática e
popular e uma tendência do jornal à “neutralidade” em assuntos sobre
os quais deveria se definir, crítica, aliás, que foi generalizada na reunião.
Marcos Gomes, cuja participação no jornal já era bem reduzida, e que parti-
cipava da reunião por insistência de Raimundo, viu questões mais de fundo,
segundo a ata: “Que jornal é esse? É um jornal democrático e popular ou
a serviço das divergências do movimento popular?” Para ele, o que vinha
marcando a linha do jornal era a insistência em destacar problemas que não
tinham importância para o momento político. Completou afirmando que o
próprio caráter do jornal estava em jogo e que se não houvesse uma definição
ele se retiraria do projeto.5 O que realmente fez ao final da reunião.
Em nova intervenção, Raimundo Pereira respondeu às críticas, afirmando
que nos seis meses passados “demos 20 capas contra o regime militar e foi
isso que marcou o jornal, foi estar a serviço da frente democrática e popular”.
Tanto ele, quanto Tibério Canuto defenderam a necessidade de aperfeiçoar a
pauta, fazendo mais reportagens, precisando mais, nas reuniões de pauta, os
objetivos das matérias propostas. E de corrigir as deficiências na cobertura
dos debates sobre as divergências dentro da oposição. Deveriam reforçar a
seção de debates. Essa acabou sendo a proposta vitoriosa na votação.
Em seguida, Duarte Pereira confirmou seu afastamento. “Não via clima
para permanecer na diretoria”. Ficaria apenas no CD, mas afastado dos
trabalhos no jornal. Entre as várias críticas que fazia, destacava o método
de direção de Raimundo, que em negociações em Belo Horizonte “ten-
deu para a conciliação, deixando de cumprir resoluções da Diretoria e da
convenção, de uma maneira que é própria de Raimundo, de tratar o jornal
como algo dele”. Tratava-se ainda da decisão de Luiz Bernardes e de todos
os funcionários da sucursal de Belo Horizonte de deixarem o jornal. O CD
havia decidido enviar Raimundo Pereira a Minas para aceitar a demissão
e reorganizar a sucursal. Porém, buscando negociar, ele retornou com uma
proposta de um acordo com os que haviam se excluído.

4 Carta de Duarte Pereira, de 26 de janeiro de 1980, mimeo. Arquivo pessoal de Flávio de Carvalho.
5 Ata da reunião do Conselho de Direção, de 7 de fevereiro de 1981. Arquivo pessoal de Flávio de
Carvalho.
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Jornal Movimento, uma reportagem

Raimundo respondeu à crítica dizendo que não fez “acordo pessoal”,


mas que havia pedido que Bernardes reconsiderasse sua decisão de sair
do jornal. De acordo com a ata, disse que
foi flexível, que tinha uma certa margem para negociar e sim-
plesmente prometeu a Bernardes levar suas sugestões à dire-
toria (...) que lhe abriu a possibilidade de convencer o novo
Conselho Editorial da necessidade de rediscutir as decisões
de julho (de 1980), porque não acha que uma vez decididos os
rumos não se possa mexer mais.
A reunião do CD deu razão a Duarte e votou desautorizando as negocia-
ções “conciliatórias” de Raimundo com Luiz Bernardes. Entretanto, mes-
mo tendo ganhado a votação, Duarte decidiu deixar o jornal. Em sua carta
de demissão explicava:
Minha experiência no jornal tem mostrado que, em face de
uma “crise” e às vésperas de alguma reunião importante, sem-
pre se fazem “acordos” e se propõem “compromissos” que,
passada a “crise”, logo são “esquecidos”, ou “reinterpretados”,
ou simplesmente anulados por soluções de fato, tomadas em
nome da “tradição” do jornal, dos “poderes especiais” do “edi-
tor-geral e diretor-presidente...”6
Raimundo, em 2010, disse nunca haver compreendido por que Duarte
saiu num momento em que sua posição tinha sido vitoriosa, em que “ele
havia me derrotado” naquela famosa votação no Conselho de Redação.
“Ele saiu de fato por ter se arrependido de seguir em frente pelo caminho
que tinha escolhido e pelo qual havia liderado a equipe”, opinou.7
A reunião também debateu a questão das vendas e das dificuldades do
jornal. E a conclusão mais relevante a que chegou foi a de que era neces-
sária a contratação de um gerente de vendas para tornar mais profissio-
nal a sua comercialização. Em defesa dessa proposta, Raimundo Pereira
argumentou: “Queda de qualidade não foi; o preço da capa também não,
porque os reajustes não foram acima da inflação; a distribuição também
não é o problema porque a Abril nunca foi muito bem na distribuição”.
Lembrou como limitações para alcançar os objetivos o efeito dos atenta-
dos às bancas, a escolha de não fazer capas sensacionalistas e a falta de
recursos para desencavar grandes denúncias.8
O jornal, que sobreviveu à censura, repressão, boicote, e, durante anos,
acalentou a esperança de tantos e que, por isso mesmo, recebia permanen-
temente um retorno de solidariedade que lhe permitia continuar sobrevi-
vendo (naquele momento ainda contava com cerca de 5 mil assinantes),
estava agora preso num sistema intrincado de contradições. A abertura,
por insuficiente que fosse, e o era, estilhaçava a frente democrática e po-
6 Carta de demissão de Duarte Pereira, de 4 de fevereiro de 1981, mimeo. Arquivo pessoal de Flávio
de Carvalho.
7 E-mail de Raimundo Pereira a Carlos Azevedo, 5 de agosto de 2010.
8 Ata da reunião do Conselho de Direção, de 7 de fevereiro de 1981.

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Queda nas vendas e o terrorismo

pular em tendências diversas, voltadas para suas próprias aspirações, pro-


jetos e problemas de implantação e crescimento. Diante dessa conjuntura,
Raimundo e equipe tinham posições diferenciadas quanto ao posiciona-
mento da linha editorial do jornal, portanto, a unidade mínima para levar
o jornal adiante estava perdida. Trinta anos depois, Duarte Pereira opinou
que Raimundo
queria manter Movimento como uma aglutinação de todos. E a
gente dizia: Não dá, isso é um processo absolutamente irrever-
sível, é um avanço, a democratização vai fazer isso. Nós temos
é que começar a buscar o nosso nicho. Se queremos manter isso
aqui uma coisa mais ampla, mais independente, com aquela ideia
do jornal dos jornalistas, nós temos que trabalhar nisso.9

Do outro lado, a ditadura recuava, mas continuava a ser ditadura e, por


meios transversos e obscuros – os atentados às bancas de jornal, a intimi-
dação e prisão de jornaleiros –, atingia Movimento no seu ponto mais di-
nâmico, a venda de jornais em bancas. Como não contava com subsídios
de empresas nem partidos, nem crédito bancário, e como sofria o boicote
permanente do sistema publicitário capitalista, era talvez o único jornal
que sobrevivia da fidelidade do leitor comprando toda semana nas bancas
ou fazendo uma assinatura. Além disso, a crise da economia da ditadura,
ao mesmo tempo, produzia desemprego, arrocho salarial e, mais ainda,
uma brutal elevação do ritmo inflacionário. Os potenciais compradores
do jornal passavam a ter menos dinheiro no bolso. E a rolagem das dívidas
inflacionadas passava a produzir um buraco insanável nas finanças do
jornal. Eram muitos problemas ao mesmo tempo.

CRISE GRAVE
Em 1º de março de 1981, três semanas depois da conturbada reunião do Con-
selho de Direção, o Departamento Financeiro avaliava
a extrema gravidade da situação econômico-financeira de Edi-
ção S/A, original e inusitada nesses quase 6 anos de operação,
que nos leva à adoção imediata (destaque no original) de uma
solução extremada, viável e realista para o impasse atual (...)
Da mesma forma, indicamos as soluções extremas, as únicas
viáveis, uma, relativa à continuidade da empresa, e outra indi-
cando o significado econômico-financeiro do seu fechamento.
Trechos do relatório:
Assim, o prejuízo contábil acumulado em janeiro-fevereiro
de 81 é de Cr$ 1.971.463,65 (ou R$ 257 mil de 2011). Mesmo
que descontássemos as quantias acima relativas a períodos an-
teriores, teríamos um prejuízo real em janeiro-fevereiro de 81
da ordem de Cr$ 944.334,00 (R$ 123 mil de 2011), o que revela
9 Entrevista de Duarte Pereira em 5 de julho de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

a tendência extremamente grave do período inicial de 81. Esse


prejuízo é decorrente da baixa venda de assinaturas e da baixa
venda em bancas em períodos anteriores.
Esses dados permitem prever que, continuando a tendência,
teremos um prejuízo contábil médio em 1981 de Cr$ 500 mil/
mês (R$ 65 mil de 2011).10
Somando tudo, o jornal tinha, então, um prejuízo acumulado, estimado
em fevereiro de 1981, de Cr$ 7.752.842,00 (cerca de R$ 1 milhão de 2011 de
2011).
Em 4 de abril de 1981, uma reunião extraordinária do Conselho de Di-
reção discutiu o fechamento do semanário. Entretanto, conforme relatório
do Departamento Financeiro,
após uma avaliação rigorosa da situação do jornal, entre a al-
ternativa de optar-se pelo fechamento do jornal, através de um
processo a médio prazo, decidiu-se desenvolver uma ampla
campanha de mobilização de recursos, em função da situação
econômica, financeira e operacional extremamente grave.11
O desejo de continuar a fazer o jornal, o apreço por ele e pelo que repre-
sentava, superou a análise objetiva da crise. O jornal noticiou a decisão no
editorial “A campanha para obter Cr$ 6 milhões para Movimento”, algo
como R$ 672 mil de 2011.12 Era um esforço desesperado. Raimundo Perei-
ra e Tonico Ferreira achavam melhor parar naquele momento, antes que a
situação financeira se deteriorasse mais. Haviam votado pelo fechamento
do jornal, mas foram votos vencidos.
A decisão da maioria foi tentar mudar a pauta do jornal, “melhorar” sua
forma e conteúdo para aumentar as vendas. Mas esse último capítulo da
vida do jornal não contaria com a participação de um de seus mais de-
dicados protagonistas, Tonico Ferreira. Extenuado e decepcionado, após
oito anos de trabalho duro (dois em Opinião e seis em Movimento) ele se
afastou definitivamente. Nunca mais falou de Movimento nas raras vezes
em que se encontrou com os antigos companheiros. Sua primeira entre-
vista sobre o jornal foi a que deu à equipe que elaborou este livro: “Virei
a página”13, justificou.

10 ISM – Arq. Movimento, Caixa 2, Envelope 06_02_04.


11 ISM – Arq. Movimento, Caixa 3, Envelope 07_01_03.
12 Movimento 302, 13 a 19 de abril de 1981.
13 Entrevista de Tonico Ferreira em 22 de outubro de 2009.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Edição 334, 23 de novembro de 1981

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27
Os últimos esforços

C
omo se comportou o jornal nos meses seguintes? Do ponto de
vista editorial, procurou-se tornar a pauta mais variada, deu-se
grande cobertura ao movimento de mulheres, a matérias espe-
ciais sobre os trabalhadores rurais e camponeses. Semanalmen-
te, passaram a ser publicados cadernos intitulados “Movimento
Popular”, com matérias sobre o movimento sindical, como a cobertura da 1ª
Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras, Conclat. Mas havia grande
distância entre as disposições subjetivas e o resultado concreto.
No fundamental, o jornal permaneceu muito semelhante ao seu padrão
tradicional, paginação e matérias que pareciam uma cansativa repetição,
já não mantinham o interesse de seus leitores costumeiros e também não
atraíam os novos. Além disso, o jornal estava mais indefinido politica-
mente, oscilando em suas matérias e opiniões. E, nas últimas edições,
também ficou mais empobrecido quanto à pauta e acabamento do texto. A
fórmula parecia esgotada.
Entretanto, por um instante, restaurou-se alguma esperança, no plano fi-
nanceiro houve uma grande vitória. A campanha pela arrecadação de Cr$
6 milhões para pagar as dívidas foi bem-sucedida, demonstrando o prestí-
gio de que o jornal ainda gozava nos meios democráticos e progressistas.
Chegou-se aos Cr$ 6 milhões, mas a dívida continuava se ampliando a
cada dia na medida em que as despesas se mantinham, a inflação dispara-
va e as vendas não reagiam, iam até se reduzindo ainda mais.
Logo após o sexto aniversário do jornal, em agosto de 1981, Raimundo
Pereira escrevia o artigo “Dinheiro não é o problema nº 1”, que dizia:
a superação da crise financeira não significou a superação das
outras dificuldades: o apoio político ao jornal é pequeno – as
correntes nacionalistas e liberais o consideram muito à esquer-
da e correntes populares o têm acusado até de contra-revolu-
cionário.
Avaliava, além disso, que o jornal não tinha e podia não conseguir ter
quadros jornalísticos e experiência para, em curto prazo, aumentar suas
vendas e promover a recuperação necessária para sua consolidação.

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Jornal Movimento, uma reportagem

E pior: registrava que havia na equipe um entendimento insuficiente


e até equivocado sobre a conjuntura recente e sobre as forças políticas
presentes, o que prejudicava a definição da pauta e das matérias a serem
realizadas. Por exemplo, citava haver pouco interesse pelo acompanha-
mento das divergências entre os setores do regime e sobre as diversas for-
ças da oposição. Apontava concepções estreitas (esquerdistas) de alguns
e conciliadoras (direitistas) de outros, e esperava que até a convenção que
se realizaria em outubro a equipe pudesse dar respostas a tais questões.1
O jornal abriu espaço para uma “Tribuna de Debates”, que esteve ani-
mada nas edições que antecederam à convenção, nela se apresentaram as
várias tendências presentes no jornal, o que permitia perceber as diver-
gências existentes que se manifestariam na última reunião.
Mas a situação era de falência, conforme o Relatório do Departamento
Financeiro de 12 de novembro de 1981:
...A execução econômica e financeira da programação foi um
enorme fracasso no período por não se ter obtido nem as recei-
tas previstas, quanto mais aumentá-las, e se ter tido um violento
aumento nas despesas, provavelmente provocado por uma libe-
ralidade gerada por uma situação enganosa de dinheiro em caixa.
A situação econômica e financeira da Edição é extremamente
grave, quase falimentar. Os dados apurados através da audi-
toria realizada até 12/11/81 deverão ser melhor apurados e,
inclusive, poderão ainda alterar (pouco) a situação, já que com
a saída do responsável da área administrativa e financeira, está
se procedendo a uma consolidação de todas as contas.
Essa situação é decorrente de não termos cumprido nenhu-
ma das metas previstas para o período. Assim, além do inves-
timento assumido em julho referente ao prejuízo mensal orça-
do, tivemos um acréscimo violento desse prejuízo decorrente
do não cumprimento das metas de vendas de jornais e assina-
turas, como do acréscimo das despesas. Para esse fato, cabe
uma profunda avaliação política das razões do jornal numa
fase financeira mais favorável não ter conseguido avançar.
O relatório fazia referência a uma importante doação que Movimento
havia recebido de organizações europeias de defesa dos direitos humanos:
Com esse quadro, os recursos de contribuição externa, espe-
cialmente da Holanda, mal conseguiram equilibrar as despesas
do período. Pelo Anexo 6 se verifica que tivemos no período,
mesmo considerando a entrada de Cr$ 5.103.179,00 (R$397 mil
em 2011) da Holanda, um prejuízo real de Cr$ 1.823.233,00
que deverá chegar a Cr$ 3.000.000 (R$ 234 mil em 2011) apro-
ximadamente, se considerarmos a data 12/11/81, data base do
levantamento de informações desse relatório.2

1 Movimento 321, 24 a 30 de agosto de 1981.


2 Dólar em novembro de 1981: Cr$ 117,00.

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Os últimos esforços

E continuava:
Assim, não conseguimos pagar grande parte do passivo ava-
liado em 30/05/81 tendo o mesmo se agravado em decorrência
do prejuízo apresentado no período e do agravamento da cor-
reção monetária sobre os débitos fiscais. Cabe uma intervenção
imediata no sentido de, a qualquer instante, a empresa implo-
dir ou pararmos de imprimir o jornal bruscamente.3
O relatório, como sempre, muito detalhado, apresentava planos para a
cobertura da dívida que iria restar após o fechamento do jornal, algo em
torno de Cr$ 10 milhões (R$ 778 mil em 2011). Pagamento que seria feito
escalonadamente em 1982 e 1983. Movimento saiu de cena tendo pago, ao
final, todas as dívidas.
Tonico Ferreira conta que, em 1981, recém-contratado pela TV Globo,
foi abrir conta no Bradesco para receber o salário. O gerente disse que não
podia dar-lhe cheque especial porque havia, nos dez cartórios da capital,
49 títulos protestados contra ele. Movimento havia acabado de fechar, não
deixara dívidas trabalhistas, mas muitas com fornecedores de papel, tinta,
transporte etc. Tempos depois, Tonico se encontrou com Sergio Motta,
que o tranquilizou: “aquilo lá, tá tudo resolvido, tudo pago”.4

A ÚLTIMA EDIÇÃO
O jornal Movimento está fechado. No ar, uns restos nervosos
de palmas misturam-se ao choro impossível de disfarçar. A ba-
rulhenta sala de aula do (cursinho) Politécnico, onde os dele-
gados à Convenção de Movimento estão reunidos há dois dias,
ficou de repente em silêncio. São quase dez horas da noite. O
domingo fora um dia muito difícil.
Dessa forma, com um texto emotivo, começava a matéria “A última Con-
venção”, da derradeira edição, a de nº 334 do jornal Movimento, que foi a
público na segunda-feira, 23 de novembro de 1981. A convenção extraordi-
nária realizou-se em 14 e 15 de novembro, num clima de inconformidade e
emoção. Ao final, ao votar pelo fechamento, ninguém conseguiria conter as
lágrimas. Márcio Bueno, que era chefe da sucursal do Rio de Janeiro, relem-
bra vivamente: “chorei como uma criança. Movimento era minha vida”.5 E
Álvaro Caropreso: “a maior porrada que eu levei na vida foi o fechamento do
jornal Movimento. Você se sente uma barata, dá uma sensação de humilha-
ção, os caras conseguiram fechar o jornal, pô, os caras derrotaram a gente!”
A edição nº 334 tinha 24 páginas. Na seção de Opinião trazia um artigo
não assinado, de duas páginas, letras grandes, com o título: “Movimento
morreu. Viva Movimento!”. O texto tinha dois destaques. O primeiro mos-
trava o desejo de continuidade:
3 ISM – Arq. Movimento, Caixa 3, Envelope 07_01_03. Relatório do departamento financeiro em 12
de novembro de 1981.
4 Entrevista de Antonio Carlos (Tonico) Ferreira em 22 de outubro de 2009.
5 Entrevista de Marcio Bueno em 25 de fevereiro de 2010.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Uma derrota provisória e uma grande perda. Mas quanto


mais combativa e decidida for a retirada, quanto melhor ava-
liarmos os resultados e tirarmos deles as consequências práti-
cas necessárias, mais próximo estará um novo passo à frente.
O outro destaque:
Reafirmamos o nosso programa político editorial e a necessida-
de de um jornal de frente, democrático e popular, independente e
pluralista. A educação política do povo se dará dentro do proces-
so de luta contra o regime militar e não doutrinariamente.
Seguiam-se nove páginas com um índice registrando as principais ma-
térias publicadas ao longo dos seis anos, selecionadas por grandes temas.
As manifestações do plenário da convenção vinham em seguida. E, de-
pois, um resumo da vida do jornal, as lutas contra a censura, entre outras
coisas. Em duas páginas vinham manifestações individuais, de Washing-
ton Oliveira (da Bahia), Roberto Martins (do Rio de Janeiro) e Raimundo
Pereira, apresentando avaliações diferentes sobre os problemas políticos
que contribuíram para o fechamento do jornal. Divergências até o fim.
Afinal, era um jornal democrático...
Meia página foi dedicada às manifestações de solidariedade. Uma romaria
composta por leitores, colaboradores, jornalistas, parlamentares compareceu
durante a semana à sede do jornal. Foram inúmeros os telefonemas, telegra-
mas. A Associação Brasileira de Imprensa, sindicatos de jornalistas do Rio,
Alagoas e Bahia etc., lideranças populares manifestaram-se solidários.
Em novembro de 1981, poucos dias depois de Movimento deixar de cir-
cular, Raimundo Pereira deu uma entrevista à revista ISTOÉ reafirmando
sua convicção de que continuava a haver espaço para um jornal que repre-
sentasse a frente pela democratização. O entrevistador perguntou: “Se há
espaço para os jornais partidários, por que seria necessário um de frente?”
E Raimundo respondeu:
Porque reúne esforços mais variados, maior capacidade in-
telectual de análise e debate. E porque atinge um grupo mais
amplo de leitores, aqueles que estão em busca de definições e
precisam do debate, de ouvir as diversas opiniões. Os leitores
sem partido, que querem um jornal mais plural.6
O ex-editor-chefe de Movimento também publicou um artigo na Folha
de S.Paulo em que reafirmava sua opinião de que
a causa essencial do fim de Movimento foram os atentados ter-
roristas contra as bancas de jornal. Os atentados criaram um
desequilíbrio súbito e profundo nas receitas da empresa. Im-
pediram que ela tivesse tempo para adequar-se à nova situa-
ção, já que não se poderia esperar que superasse todos os seus
outros problemas instantaneamente.7
Veja a íntegra desse artigo no Anexo 1, página 317.

6 Entrevista a ISTOÉ, de 25 de novembro de 1981.


7 “Um convite para debater Movimento” – Folha de S.Paulo, 27 de novembro de 1981, pág. 3.

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Capa da edição 334, 23 de novembro de 1981

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28
“Até amanhã
de manhã”

D
uas páginas da última edição de Movimento foram reserva-
das a manifestações de membros do Conselho Editorial, que,
por sinal, no último ano havia sido ampliado, contando então
com 32 membros. A seguir, algumas delas:

Dom Adriano Hypolito: “equipe intrépida”


Um desses conselheiros, dom Adriano Hypolito, bispo de Nova Iguaçu
(RJ), que havia sido violentamente sequestrado por militares terroristas, se
mostrava agradecido “à intrépida equipe” pela
cobertura que Movimento sempre deu à pastoral da Igreja Ca-
tólica e à cobertura do sequestro ocorrido em 1976 e da bom-
ba que explodiu na Catedral em 1979 (...) Lamento profunda-
mente que Movimento encerre suas atividades ininterruptas
de mais de seis anos. Foi órgão da imprensa alternativa que
contribuiu para conservar viva a consciência da democracia
no Brasil e a esperança de suplantarmos mais cedo ou mais
tarde a fase dolorosa dos governos militares.

Aguinaldo Silva: “a única janela”


O jornalista e escritor Aguinaldo Silva, que participou de Opinião, e de
Movimento do início até o fechamento, e que, mais tarde, tornou-se co-
nhecido roteirista de novelas para a televisão, disse:
O jornal foi durante muito tempo, do ponto de vista dos
leitores ou dos jornalistas, a única janela que se tinha para
respirar. Os jornalistas não tinham outro veículo onde pudes-
sem mostrar a situação em que o país estava vivendo. O jornal
perdeu o pé em algumas ocasiões, mas em nenhum momento
perdeu a importância como porta-voz dos que lutavam e lutam
pelas liberdades democráticas. Houve momentos em que dis-
cordei da linha do jornal, mas estive sempre solidário com ele.
Considero o fechamento de Movimento uma perda.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Clarice Herzog: “fonte indispensável de informação”


A publicitária e viúva do jornalista Vladimir Herzog, Clarice Herzog,
disse:
Movimento teve um papel importante na minha vida; foi fon-
te indispensável de informação durante muito tempo, porque
a imprensa continuou muito tímida, mesmo depois da queda
da censura. O jornal era uma leitura necessária e eu estabeleci
uma ligação emocional com Movimento (...) Respeito muito o
Raimundo, seu despojamento, os prejuízos pessoais que en-
frentou para fazer um jornal que, na imprensa alternativa, foi
o que conseguiu se posicionar melhor.

Jacob Gorender: “com o melhor nível jornalístico”


O intelectual e dirigente político Jacob Gorender lembrou que nem sem-
pre esteve de acordo com Movimento:
Um jornal semanal, que é obrigado a tomar posição em cima
dos fatos, está sempre sujeito a erros (...) apesar disso, pen-
so que o balanço geral é altamente positivo porque Movimen-
to foi sempre um porta-voz das reivindicações e das lutas da
classe operária, dos camponeses, das camadas populares, dos
intelectuais, das minorias discriminadas. E foi um porta-voz
– gostaria de frisar – com o melhor nível jornalístico dentro
da imprensa alternativa, apesar de trabalhar com recursos es-
cassos e dentro de um ambiente de repressão como o que exis-
te até hoje no Brasil. A equipe de Movimento, chefiada por
Raimundo Pereira, conseguiu fazer um jornal inteligente, ágil,
bem redigido, agradável de ser lido. Nesse particular, é uma
lição para os jornais que sobrevivem.

Fernando Henrique Cardoso: “digno”


O sociólogo, então suplente de senador, eleito com apoio de Movimento
e futuro presidente da República, opinou:
No geral, apesar de tudo, Movimento conseguiu – dentro
de uma esquerda fragmentada – navegar razoavelmente bem.
Manteve-se digno estes anos todos, permitiu o debate interno,
o que é importante. Se não vingou, é porque mudou o Brasil.
Uma parte da função que foi cumprida pela imprensa alterna-
tiva passou a ser cumprida parcialmente por outra imprensa,
ou pelos partidos. Não é que as funções da imprensa alterna-
tiva tenham se esgotado. Embora a outra imprensa tenha con-
quistado um espaço maior com a abertura, ela não tem o inte-
resse de discutir problemas políticos e ideológicos (...) Outro
aspecto da experiência de jornais como Opinião e Movimento,

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“Até amanhã de manhã”

é que formaram muitos jornalistas e abriram um espaço não só


de trabalho, mas também de expressão.

Lysâneas Maciel: “permanente credibilidade”


O intelectual, deputado federal “autêntico” do MDB, cujo mandato foi
cassado, e que foi aliado de Movimento do começo ao fim, comentou:
Hoje, quando há uma relativa liberdade para a imprensa al-
ternativa, talvez não se possa aquilatar o papel que Movimento
desempenhou dentro de normas rígidas de repressão, quando
a tentativa de transmitir informações e análises corretas da si-
tuação política e econômica era considerada atentatória à se-
gurança nacional. Movimento teve a coragem de ser sereno e
objetivo quando a situação se impunha. Daí sua permanente
credibilidade, não permitindo que objetividade fosse ultrapas-
sada pelo sectarismo. Agora que Movimento encerra suas ativi-
dades – todos nós esperamos, provisoriamente –, é necessário
destacar a figura de Raimundo Pereira. Jornalista sério, com-
petente, engajado e presente. Ao findar esta etapa, podemos
dizer que foi boa e positiva para os interesses nacionais e para
o povo brasileiro a existência do jornal.

Miguel Arraes: “exemplo de resistência”


O respeitado político socialista, governador cassado, exilado por mais
de dez anos, e que seria governador de Pernambuco por mais duas vezes
nos anos seguintes, lamentava:
Cala-se uma voz que durante sete anos divulgou e interpre-
tou com fidelidade os problemas e a luta do povo brasileiro.
Resistiu ao arbítrio e à censura, não podendo contudo fazer
frente às pressões de ordem financeira. Os que lutam por uma
real democracia no país perdem assim uma importante tribu-
na. Estamos certos, porém, de que a contribuição maior dada
por Movimento à luta do nosso povo permanece: este exemplo
de resistência para a implantação de uma imprensa livre no
Brasil frutificará.

Luiz Inácio da Silva: “altamente importante”


Para o então principal líder operário do País e futuro presidente da Re-
pública,
Movimento teve papel altamente importante no processo de
democratização do país. Houve momentos em que Movimento
foi o único respiradouro da sociedade civil na luta contra a
censura, contra a tortura, contra o arbítrio, contra a corrup-
ção do regime. Como consequência dessa e de outras lutas,
o regime foi obrigado a recuar em algumas de suas atitudes

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Jornal Movimento, uma reportagem

arbitrárias, embora ainda estejamos muito longe de uma real


abertura que contemple as reivindicações dos trabalhadores.
Isso gerou circunstâncias novas, e surgiram novos canais – jor-
nalísticos e políticos – de expressão dos interesses populares.
A repressão da direita, as dificuldades econômicas, o grau ain-
da insuficiente das lutas populares, levaram, lamentavelmen-
te, ao fim de Movimento. É uma lacuna que dificilmente será
preenchida.

D. Pedro Casaldáliga: “é mais digno tombar na luta”


O bispo de São Félix do Araguaia (MT), defensor dos camponeses e ín-
dios, que, durante anos, teve uma forte parceria com o jornal, não era
conselheiro, mas amigo próximo, disse:
Movimento não fecha por falta de competência, fecha por
sobra de sinceridade. Se se vendesse à impostura, teria verbas
oficiais, não seria perseguido. Sempre é mais digno tombar na
luta (...) Enquanto isso, vamos sentir a falta dessa mesa-redon-
da semanal, já familiar, de uma larga oposição sem exclusivis-
mos nacionais e internacionais, que nos davam, com justeza,
quase sempre e, por vezes, de primeira mão, a real atualidade
do Brasil e do exterior. Sem medo, sem intervenções. Essas
viventes cenas do nosso povo e de seus heróis, que a “grande”
imprensa sistematicamente ignora e persegue. Movimento fe-
cha, até amanhã de manhã, ainda é noite no Brasil.1

1 Movimento 334, 23 a 30 de novembro de 1981.

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Fac – símile do livreto de cordel de Crispiniano Neto, de Mossoró, RN.

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CORDEL DE HOMENAGEM A MOVIMENTO

A independência e
a morte de um jornal
democrático
Por Crispiniano Neto
Casa do Cantador do Oeste Potiguar
Mossoró – RN

(Trechos)

Acorda Brasil e junta


Teus cacos de anistia
Que o jornal Movimento
Fechou sua editoria
E nós temos que lutar
Pra o capital não calar
A voz da democracia

A 23 de novembro
Deste 81 corrente
Vi o Brasil boquiaberto
Como alguém que – de repente
Pensando em ter o perdão
Recebe a condenação
De um crime que é inocente

Quem deseja imprensa livre


Com justiça e igualdade
Quem pensava que a abertura
Existia de verdade
Viu Movimento fechando
Como um punhal penetrando
Nas carnes da liberdade

(...)

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Jornal Movimento, uma reportagem

Quando os jornais só serviam Num Brasil onde a miséria


Para mentira e embrulho Convive com a prepotência
Surgiu em setenta e cinco Quem fundou este jornal
Este Movimento em julho Sabia com antecedência
Como uma garça que voa Que dele vinha primeiro
Limpa sobre a lagoa Prejuízo financeiro,
Cheia de lama e vasculho Depois lucro em consciência

E desde o primeiro número (...)


O Movimento adotou
A voz de quem não tem vez E com tanto prejuízo
E assim cascaviou Desde o número de estreia
Miséria, tortura e trama Neste 15 de novembro
E o fundo do mar de lama Decidiu-se em assembleia
Onde o Brasil mergulhou Paralisar Movimento
Entre espanto e lamento
E não houve um movimento Como no fim de Pompeia
Que ao povo pertencesse
Que parasse na tortura (...)
Que ganhasse ou que perdesse
Que a sucursal ou matriz Finalmente estavam juntos
Não escavasse a raiz Dirigentes, redatores,
E ao povo esclarecesse Jornaleiros e repórteres
Gráficos, colaboradores,
Enquanto os outros jornais Pra dividir indecisos
Defendiam a opressão As migalhas de sorrisos
Doiravam a pílula de Geisel E as montanhas de dores
Mostravam os dentes de João
O Movimento estampava Na decisão de fechar
A ferida que inflamava Chorou Raimundo Pereira
Na barriga do povão Roberto Martins e Washington
Zarif, Milton e Filgueira
A ditadura ferida Falou Murilo Carvalho
Também não se conformava E as lágrimas viraram orvalho
Qualquer corte de gilete Na morte da sementeira
Com um canhão revidava
Mas o Movimento vinha Perseu Abramo chorou
Dizendo em cada entrelinha Perto de Lia Furtado
O que a censura cortava Antonio Carlos Queiroz
Ana Maria Machado
(...) Carlos Ruy e Léa Vargas
Prevendo as horas amargas
De um Movimento parado

(...)

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Distante também choraram
Um estudante carente
Uma mulher oprimida
Um operário valente
Um jornalista sensato
Um líder de sindicato
Um camponês consciente

Enquanto isso sorriram


As multinacionais
Os políticos trambiqueiros
Os babões de generais
Os ditadores fascistas
E todos os entreguistas
Das riquezas nacionais

Na morte de Movimento
Seu crânio diz: eu me movo
Movimentando os espaços
Buscando um espaço novo
Pra se mover com virtude
Noutro jornal que ajude
Aos movimentos do povo

No tombo de Movimento
Carece que todos tracem
Novos caminhos qual Hidra
Que se as cabeças tombassem
Em vez de exterminada
Duma cabeça cortada
Mais sete hidras renascem.

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Jornal Movimento, uma reportagem

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Anexos
Anexo 1:

Folha de S.Paulo, 27 de novembro de 1981.


Tendências/Debates
Um convite para debater “Movimento”
Raimundo Pereira

O
jornal “Movimento” prestou relevantes serviços à
oposição brasileira. Na imprensa legal, foi quem pri-
meiro levantou a tese de convocação de uma Assem-
bléia Nacional Constituinte livre e soberana – e quem
mais fez campanha por ela, mesmo quando o governo
a considerava propaganda dos comunistas.
Na campanha por uma anistia ampla, geral e irrestrita, foi quem
primeiro desafiou e driblou a censura, editando um caderno de his-
tória e depoimentos a respeito desse tema.
Em relação à divida externa, acompanhou todos os passos de seu
agravamento, tem capas e artigos especiais sobre todos os lamentá-
veis recordes que a dívida bateu; e fez isso mesmo quando setores
da oposição ao regime militar aceitavam a tese governista de que a
dívida era um problema dos credores, não brasileiro.
Para a oposição, foi quem restabeleceu de forma prática o hábito do
debate franco e documentado sobre as questões em aberto; tornou tal
hábito uma questão de princípio, um ponto de seu programa editorial,
mesmo sob fogo de forte contestação de setores oposicionistas.
Hoje, “Movimento” está fechado. Amanhã, às 20 horas, no Sindi-
cato dos Jornalistas, em São Paulo, uma assembléia geral de seus
acionistas e colaboradores muito provavelmente endossará a tese
do fechamento aprovada pela Convenção Nacional dos funcioná-
rios do jornal no último dia 15. Mas, entrando para a história da
imprensa política brasileira, o que restará do seu projeto?
A importância de “Movimento” para o futuro da oposição demo-
crática e popular dependerá das conclusões práticas que tirarmos a
respeito de seu passado. E é por esse motivo que o debate sobre as
causas do fechamento do jornal tem importância decisiva.
No curto espaço deste artigo, procurarei adiantar alguns argumentos
para responder a duas avaliações públicas do fim de “Movimento”:

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Jornal Movimento, uma reportagem

uma de Luis Carlos Bresser Pereira, feita aqui na “Folha de S. Paulo”


(24.11.81, página 2) e outra da “Tribuna da Luta Operária”, que está
circulando nesta semana (edição de 21.11 a 4.12.81, página 3). As duas
avaliam no geral positivamente a experiência do jornal e têm em co-
mum o fato de contestarem a afirmação da direção de “Movimento” de
que a causa fundamental do fechamento foram os atentados da ultradi-
reita às bancas. Para Bresser, o fechamento “não foi (...) devido à perda
de venda avulsa causada pelo terrorismo de direita sobre as bancas,
embora este fato tenha prejudicado efetivamente o jornal. “Movimen-
to” fechou – diz ele – porque a esquerda radical está dividida e porque
a esquerda democrática não soube usá-lo como instrumento de luta e
de debates”. Para a “Tribuna”, “a partir de 1979, o jornal começou a
enfrentar dificuldades internas e entrou em crise. Passou a fugir de seu
projeto inicial, de um semanário amplo, de frente, centrado no com-
bate ao regime militar. Estreitou-se. Refletindo esse quadro e também
os atentados terroristas contra as bancas de jornais, as vendas caíram”.
Acredito que a esquerda em geral poderia ter feito mais por
Movimento. Acho também, como já disse em voto vencido na
última Convenção do jornal, que a partir de 1980, vários de nos-
sos redatores e colaboradores empenharam-se por realizar alte-
rações prejudiciais no programa editorial de Movimento – um
bom número pretendendo estreitá-lo, excluindo os liberais, e,
uns poucos, visando descaracterizá-lo de sua linha intransigente
de combate à ditadura, ao peleguismo e à política de intimidação
das superpotências.
Houve, também, erros graves na aplicação dos planos orçamentários
aprovados na diretoria e no corpo de assessores financeiros da empre-
sa; fundamentalmente, deixou-se de aplicar o plano de saneamento
decidido em julho de 81 após a campanha de levantamento de fundos
para o jornal.
Acontece, porém, que todos os erros políticos citados existiram
em outros períodos, ou mesmo sempre, na história do jornal e não o
inviabilizaram. Exemplo: em 1977, setores da esquerda se retiraram
de “Movimento” por falsas razões: alegavam que queriam um jornal
mais democrático e foram fundar jornais como o “Em Tempo”, hoje
porta-voz de uma corrente esquerdista. Em 1978 setores da esquer-
da atacaram o jornal como “burguês”, por ele apoiar decididamente
a campanha de denúncias do general Hugo Abreu contra a “gang do
Planalto” e a campanha do general Euler Bentes à eleição indireta
para a Presidência da República.

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Anexos

E, ao longo de todo o tempo, setores liberais alimentaram ou tole-


raram a verdadeira “guerra psicológica adversa” que o regime e seus
órgãos de repressão moveram contra a direção do jornal, acusando-a
de ser manipulada por um partido clandestino, uma mentira desla-
vada que nem o Centro de Informações do Exército teve coragem de
sustentar publicamente.
E, quanto ao erro de não aplicação do plano orçamentário no pe-
ríodo final do jornal: é certo que ele parece dramático nas contas da
empresa – pela primeira vez na sua história houve erros de mais de
30% no cumprimento da previsão de despesas, quando no passado
tais erros foram sempre inferiores a 10%. Mas é preciso não esque-
cer que nunca na vida recente do País houve inflação tão galopante.
E que ela é, inevitavelmente, no regime atual, descarregada sobre os
pequenos e médios como “Movimento”.
Por essas razões, é muito mais coerente com os fatos considerar
que a causa essencial do fim de “Movimento” foram os atentados
terroristas contra as bancas de jornal. Os atentados criaram um de-
sequilíbrio súbito e profundo nas receitas da empresa. Impediram
que ela tivesse tempo para adequar-se à nova situação, já que não
se poderia esperar que superasse todos os seus outros problemas
instantaneamente.
Nos meses seguintes aos atentados e até o fechamento, “Movimen-
to” perdeu das bancas mais de 1 milhão de cruzeiros líquidos por
mês; o acréscimo de assinaturas no período apenas atenuou leve-
mente essa perda. Além disso, o jornal não poderia reduzir drastica-
mente suas despesas porque sempre foi um semanário de informa-
ção e análise nacional, cuja estrutura mínima não pode ser reduzida
além de certo ponto. E mais: o jornal fez enormes esforços para ele-
var substancialmente suas vendas de assinaturas, mas só conseguiu
médias mais altas em campanhas intensíssimas (agosto-outubro 80,
época da reação democrática e popular aos atentados; abril-junho
81, última campanha dramática pela sustentação de “Movimento”).
E estas campanhas não poderiam ser mantidas permanentemente,
como sabe qualquer pessoa que participou de projetos desse tipo.
Este artigo não pretende encerrar um debate que espero seja pro-
fundo e proveitoso. Por ora, gostaria de terminar convidando a to-
dos os acionistas, leitores, amigos e interessados na imprensa de-
mocrática e popular a comparecerem ao auditório do Sindicato dos
Jornalistas de São Paulo, amanhã, às 20 horas, para o início do de-
bate da experiência de “Movimento”.

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Anexo 2:
Equipe e folha de pagamento em 1975

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Anexos

Arquivo Instituto Sergio Motta, caixa 03 - envelope 08.04-06. Pg. 68 a 71.

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Jornal Movimento, uma reportagem

Anexo 3:
Lista de acionistas em 1976

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Anexos

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Anexos

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Anexos

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Anexos

Arquivo Instituto Sérgio Motta, caixa 03 - envelope 08.04-06. Pg. 11 a 18.

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Jornal Movimento, uma reportagem

ÍNDICE
ONOMÁSTICO

A Arruda, Roldão Oliveira – 51, 113, 217, 287, 290


Abramo, Lelia – 275 Azedo, Maurício – 28, 32, 40, 100, 113, 163
Abramo, Perseu – 241, 275, 284, 287, 288, 290, Azeredo, Zenaide – 39
295, 314 Azevedo, Carlos – 1, 3, 6, 55, 84, 119, 124, 126,
Abreu, Hugo – 185, 198, 200, 201, 205, 206, 210, 190, 247, 289, 296
211, 318 Azevedo, Jô – 214, 215, 217, 221
ACQ – cf. Queiroz, Antonio Carlos Azevedo, Nilson – cf. Nilson
Afonso, Almino – 154, 193, 204, 205, 273, 274
Aguiar, Dynéas – 246 B
Aguiar, Flávio – 11, 32, 67, 100, 115, 138, 140, Bahiana, Ana Maria – 92
151, 154 Balduíno, Tomás – 50
Albernaz, Murilo – 42, 44, 103, 104, 107, 108, 109, Baleeiro, Aliomar – 149, 182
165 Bandeira, Luis – 50
Albertim, Marco Aurélio – 168 Bandeira, Moniz – 32, 41
Alcy – 55, 56, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65 Barbosa, Antonio Neto – 36, 37, 38, 163, 164, 166,
Almeida Filho, Hamilton – 171, 172, 173, 284, 288 167, 169, 214, 245, 246, 247, 250
Almeida, Carlos Alberto de – 38, 39 Barbosa, Paulo – 36, 76, 77, 152, 162, 223
Almeida, Rômulo de – 193 Barbosinha – cf. Barbosa, Antonio Neto
Alves, Rubem – 278 Barcellos, Caco – 64, 113
Amado, Jorge – 167, 182 Barreto, Humberto – 198
Amazonas, João – 74, 119, 246, 247, 249, 251, 253, Barreto, José Guimarães – 12, 76
257, 263, 268, 274 Barros, Luis Carlos Mendonça de – 113
Amorina, Henos – 273 Bastos, Trajano – 48
Amoroso, Timóteo – 167 Belém, Fafá de – 176
Andrade, Eurico – 18 Benedicto, Nair – 212
Andrade, Flávio – 42, 43, 113, 147, 153, 155 Benevides, Wagner – 273
Andrade, Joaquim – 230 Bernardes, Luiz – 6, 21, 31, 36, 37, 42, 45, 92, 113,
Andrade, Silvio Correia de – 70 130, 163, 165, 211, 250, 288, 290, 291, 295, 296
Andreato, Elifas – 3, 18, 28, 32, 55, 57, 58, 60, 61, Bernardet, Jean-Claude – 28, 67, 69, 100, 109, 154
66, 82, 89, 92, 100, 163, 166, 220, 222, 241, 267 Bernardino, Angélico – 182, 276
Andreazza, Mario – 198 Betlhem, Belfort – 206
Angarani, Tânia – 233, 235 Betto, Frei – cf. Christo, Carlos Alberto Libânio
Angeli – 55, 60, 62 Bevilacqua, Pery – 191, 193
Antonio, João – 67 Bezerra, Gregório – 267
Aparecido, José – 21 Bicudo, Hélio – 78
Aquino, Heitor de – 198 Bittar, Jacó – 273
Arantes, Aldo – 123, 125, 133, 248, 267 Bittar, João – 112
Arantes, José Tadeu – 255, 258, 287 Bittencourt, Luiz – 91
Arnaldo – 55, 62 Blanc, Aldir – 61
Arns, Paulo Evaristo – 82 Boal, Augusto – 193
Arraes, Miguel – 69, 169, 261, 263, 267, 273, 274, Boaventura, Sinval – 185
309 Boito, Armando – 288
Arroyo, Ângelo – 249, 251 Bom, Djalma – 234, 241
Arruda, Diógenes – 246, 247, 268 Bones, Elmar – 32

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Borba Filho, Hermilo – 14, 29, 101, 103 Carvalho, Luiz Maklouf – 48
Borges, Adélia – 82 Carvalho, Murilo – 12, 32, 35, 37, 52, 61, 67, 68,
Borin, Jair – 147, 163 105, 106, 130, 314
Bosco, João – 61, 176 Casaldáliga, Pedro – 35, 50, 310
Botelho, Virginia – 47 Cezar, Genilson – 40
Braga, Teodomiro – 28, 32, 38, 39, 40, 67, 77, 78, Chagas, Carlos – 39, 78
85, 100, 106, 113, 130, 163, 181, 185, 198, 200, Chateaubriand, Assis – 69
201, 235 Chauí, Marilena – 182
Branco, Carlos Castelo – 77, 205 Cheida, Luís – 51
Brandão, Avelar – 167 Chiodi, Amâncio – 172
Brito, Fausto – 42, 113, 147, 155 Christo, Carlos Alberto Libânio – 224, 276, 277,
Brito, Ronaldo – 28 278, 279, 281
Brizola, Dirceu – 32, 72 Church, Frank – 85
Brossard, Paulo – 149, 198, 204, 207, 209, 261 Cirano, Marcos – 47
Buarque, Chico – 22, 29, 93, 94, 101, 103, 176, Civita, Robert – 126
241, 265 Coelho, Fernando – 273
Buarque, Sérgio – cf. Gusmão, Sérgio Buarque de Coelho, Moacyr – 79
Bueno, Márcio – 41, 42, 163, 288, 293, 303 Coelho, Tania – 41
Bueno, Ricardo – 40 Conceição, Manoel da – 273, 275
Buzaid, Alfredo – 71, 72 Correia, Villas Boas – 205
Costa Filho, Milton Menezes da – 207
C Costa, Pedro Vicente – 169, 170
Calandra, Aparecido Santos – 192 Coutinho, Laerte – cf. Laerte
Callado, Antonio – 82, 193 Cunha, João – 93, 205
Câmara, Diógenes Arruda – cf. Arruda, Diógenes
Câmara, Helder – 277 D
Campanha, Maria Eunice – 216, 218 Dallari, Dalmo de Abreu – 190, 241
Campolin, Silvia – 140, 154 Damy, Marcelo – 67
Campos, Wilson – 13 Danielli, Carlos – 124
Candido, Antonio – 275 Dantas, Audálio – 29, 101, 103
Canuto, Tibério – 45, 46, 113, 155, 165, 205, 284, Dantas, Celeste – 214
288, 295 Dias, Ana – 216, 219, 239
Capistrano Filho, David – 242 Dias, Erasmo – 266
Cardoso, Fernando Henrique – 22, 23, 29, 32, 44, Dias, Ezequiel – 27
87, 101, 113, 127, 134, 154, 177, 182, 198, 199, Dias, José Carlos – 241
205, 206, 273, 274, 279, 288, 308 Dieguez, Flavio – 287
Carmo, Ana Maria do – 215 Dirceu, José – 268, 278
Carmo, Maria Lúcia de Morais – 119 Dirceu, Zé – Cf. Dirceu, José
Caropreso, Álvaro – 3, 44, 45, 288, 293, 303 Domingos Neto, Manoel – 263
Carreiro, Tônia – 82 Duá – 62
Carta, Mino – 18, 71, 72, 205 Duarte, Alberto Dias – 42, 43, 100, 140, 155, 165
Carter, Jimmy – 106, 133, 134, 135, 136, 137, Duarte, Betinho – cf. Duarte, Alberto
145 Duarte, José – 247
Caruso, Chico – 56, 57, 58, 60, 62, 63, 65, 120, Duarte, Ozéas – 247, 248, 250
208, 215 Dutra, Olívio – 204, 240, 273
Caruso, Paulo – 55, 65
Carvalho, Admilson – 166 E
Carvalho, Apolônio de – 268, 275 Elias, José – 90
Carvalho, Flávio de – 6, 23, 32, 62, 63, 64, 100, 102, Esmeraldo, Humberto – 85
106, 130, 163, 214, 250, 255, 284, 286, 295, 296 Estrada, George Duque – 192
Carvalho, Lilibeth Monteiro de – 40 Eustáquio, José – 42

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Jornal Movimento, uma reportagem Índice onomástico

F 25, 27, 28, 29, 31, 46, 69, 71, 93, 117
Fabiano, Nelson – 94 Gatto, Marcelo – 94
Faerman, Marcos – 284 Gauditano, Rosa – 223
Falcão, Armando – 11, 79, 81, 207 Gê, Luiz – 55
Fantini, Flaminio – 42, 113 Geisel, Ernesto – 5, 7, 10, 12, 13, 20, 22, 24, 64, 68,
Faoro, Raymundo – 182, 191, 193, 263 71, 72, 73, 75, 80, 85, 92, 118, 133, 134, 159, 172,
Faria, Paulo César Batista de – cf. Viola, Paulinho 173, 181, 185, 186, 190, 198, 201, 205, 206, 207, 209,
da 211, 229, 250, 261, 314
Fazitto, Vilma – 165 Genoino, José – 247, 248, 249, 250
Fedalto, Pedro – 49, 50 Genro Filho, Adelmo – 52
Felismino, José Antonio Tadeu – 51 Genro, Tarso – 52, 274
Fernandes, Florestan – 110, 182 Gilberto, João – 197
Fernandes, Hélio – 71 Glauco – 55, 62
Fernandes, Jurandir – 45 Godinho, Renato – 165
Ferreira, Antonio Carlos – 12, 13, 18, 24, 27, 28, Gomes, Frederico Magalhães – 27
30, 31, 32, 50, 56, 57, 63, 76, 79, 80, 82, 83, 89, 91, Gomes, Luis Marcos Magalhães – cf. Gomes,
92, 96, 100, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 110, 113, Marcos
118, 119, 128, 129, 130, 134, 135, 152, 163, 167, Gomes, Marcos – 23, 24, 25, 27, 29, 30, 31, 32, 40,
172, 176, 178, 183, 184, 190, 200, 201, 207, 208, 41, 42, 87, 89, 92, 100, 106, 113, 127, 129, 130,
209, 210, 220, 230, 245, 246, 250, 278, 289, 290, 138, 152, 163, 183, 213, 215, 216, 219, 235, 246,
298, 303 248, 250, 288, 295
Ferreira, Argemiro – 25 Gomes, Maria Stella Magalhães – 92
Ferreira, Tonico – cf. Ferreira, Antonio Carlos Gomes, Paulo Emilio Sales – 69
FHC – cf. Cardoso, Fernando Henrique Gomes, Severo – 106, 145, 146, 198, 205
Fiel Filho, Manoel – 94, 262 Gonzaga, Luiz – cf. Gonzaguinha
Figueiredo, João – cf. Figueiredo, João Baptista Gonzaguinha – 176
Figueiredo, João Baptista – 190, 198, 205, 264 Gorender, Jacob – 288, 308
Figueiredo, Maria de Fátima Palha de – cf. Belém, Goulart, João – 69, 106, 123, 189, 276
Fafá Grael, Dickson – 200, 201
Fonseca, Mario – 193 Grecchi, Moacir – 35, 170
Fonteles, Paulo – 47 Greenhalgh, Luiz Eduardo – 79, 81, 83, 84, 119,
Fontoura, Carlos Alberto – 133 133, 194, 207, 210, 248
Forster, André – 101, 103 Grilo, Rubem – 7, 55, 56, 60, 86, 144, 166
França, Elisabete – 165 Guéhenno, Jean – 121
Francis, Paulo – 69, 85 Guia, João Batista dos Mares – 42, 113, 127, 141,
Freire, Marcos – 126, 182, 199 147, 148, 152, 153, 183, 284
Freire, Maria das Dores – 42 Guido, Antonio – 88, 91
Freitas, Jânio de – 69 Guimarães Neto, José Genoino – cf. Genoino,
Freitas, Sueli – 37, 47, 170 José
Frota, Sylvio – 185, 198 Guimarães, Ulysses – 82, 265, 266
Fujiwara, Celio – 122 Gusmão, Sérgio Buarque de – 6, 11, 12, 13, 32, 50,
Fujiwara, Sérgio – 171, 172, 173 61, 75, 76, 81, 83, 100, 101, 104, 105, 107, 109,
Furtado, Alencar – 40, 48, 82, 101, 134, 183, 190 100, 113, 145, 151, 152, 155, 156, 159, 163, 183,
Furtado, Lia – 341 223, 225, 226, 227
Fuser, Igor – 191 Gutemberg, Luiz – 72

G H
Gabeira, Fernando – 165 HAF – cf. Filho, Hamilton Almeida
Gajardoni, Almir – 72 Harazin, Dorrit – 18
Gaspari, Elio – 72, 73, 85, 185 Harz, Barbara – 38
Gasparian, Fernando – 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, Henfil – 11, 62, 70

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Herzog, Clarice – 82, 308 Lembo, Cláudio - 206
Herzog, Vladimir – 81, 82, 192, 237, 241, 308 Leminski, Paulo – 48
Hodja, Enver – 256, 257 Lima, Albuquerque – 68, 72
Holanda, Chico Buarque de – cf. Buarque, Chico Lima, Alceu de Amoroso – 193
Holanda, Sergio Buarque de – 275 Lima, Haroldo – 123, 125, 248, 250, 251, 252, 257
Horta, Guaracy – 234 Lima, Hermes – 190
Houaiss, Antonio – 193 Linares, Alcy – cf. Alcy
Hsiao-ping, Teng – 257 Lins, Ivan – 176
Hummes, Cláudio – 239, 276, 277 Lisboa, Apolo Heringer – 268
Hypolito, Adriano – 118, 307 Lizardo, João – 27
LOR – 62
I Loredano, Cássio – 55, 60
Ianni, Octavio – 182, 216, 288 Loss, Guilherme – 51
Ibanez, Antonio – 39 Lott, Teixeira – 193
Ibrahim, José – 273 Lula – cf. Silva, Luiz Inácio Lula da
Imanishi, Sizue – 92, 119, 217, 233 Luscar – 62
Lustosa, Rogério – 247, 257
J
Jaccoud, D’Alembert – 78 M
Jango – cf. Goulart, João Macalé – 176
Jatobá, Ascânio – 224 Machado, Alberto de Paula – 51
Jesus Soares – 41 Machado, Ana Maria – 314
Jimenez, Miguel C. – 256 Machado, Edgar da Mata – 29, 101, 103, 284
Joffily, Bernardo – 247 Machado, João – 43, 113
José, Emiliano – 46, 113, 155 Machado, Lucile – 165
Jota – 55, 59, 60, 62, 63 Maciel, Lysâneas – 94, 205, 309
Julião, Francisco – 193, 261, 262, 267, 268 Magalhães, Antonio – 47
Júnior, Luiz Gonzaga do Nascimento – cf. Magalhães, Antonio Carlos – 167
Gonzaguinha Magalhães, Cecília – 32
Maluf, Paulo – 59, 241, 273
K Mamizuka, Alcides – 44
Kalili, Narciso – 124, 288, 289 Mandel, Ernest – 140
Kennedy, Robert – 20 Mantega, Guido – 115, 140, 146, 147, 154, 184
Kertész, Mario – 41 Manzolillo, Vera Lúcia – 38, 264, 266
Khair, Edson – 273 Maranhão, Ricardo – 140, 154, 155
Khel, Maria Rita – 154 Marcelin, Walmor – 49
Klassmann, Marcos – 51, 267 Marcilio, Benedito – 272
Klein, Odacir – 83, 197 Marcos, Jorge – 277
Kotscho, Ricardo – 32, 92, 95, 242 Mariano, César Camargo – 176
Koza, Paulo – 217, 290 Maringoni – 62
Kucinski, Bernardo – 6, 14, 18, 21, 28, 29, 32, 68, Marinho, Roberto – 118
72, 89, 100, 113, 114, 115, 116, 117, 119, 126, 129, Marques, Aloisio – 42, 113, 127, 140, 141, 147,
131, 135, 136, 137, 138, 140, 145, 146, 148, 149, 152, 153, 154
150, 151, 152, 153, 154, 166, 206 Márquez, Gabriel García – 67
Marsiglia, Chico – cf. Marsiglia, Francisco
L Marsiglia, Francisco – 88, 89, 91, 96, 99, 100, 102,
Laerte – 55, 62 103, 105, 114, 121, 122, 129, 131, 156
Lago, Mário – 193, 265 Martin, Gilberto Berguio – 51
Leão, Jayme – 3, 16, 34, 55, 59, 60, 92, 132, 174, Martins, Carlos Estevam – 288
188, 202, 205, 270 Martins, Elson – 170, 171
Leite, Paulo – 78 Martins, Franklin – 258

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Jornal Movimento, uma reportagem Índice onomástico

Martins, Gilcio – 27 Nassar, Raduan – 89


Martins, Juca – 57, 61, 100 Neto, Crispiniano – 313
Martins, Roberto – 193, 194, 266, 304, 314 Neto, Eduardo – 38, 197
Mata, Lídice da – 166 Netto, Delfim – 216, 226, 272
Maurício, Ivan – 46 Neves, Tancredo – 181, 274
Médici, Emílio – 72 Nilson – 55, 62, 63
Mello, Ednardo D’Avila – 94 Nobre, Freitas – 181, 267
Melo, Carlos Gentile de – 41 Novaes, Luis Felipe – 287
Melo, Thiago de – 193 Novais, Israel Dias – 81
Mendes, Chico – 169, 170, 171 Novais, José – 268, 289
Mendes, Dellinger – 91
Mendes, Toninho – 57, 61 O
Mendonça, Marilio Malaguth – 165 Ohi – 62
Mesquita Neto, Julio – 73 Oikawa, Marcelo – 50, 51
Miranda, Fernando – 42, 155 Oliveira, Adelmo de – 46, 155, 165
Miranda, Nilmário – 43 Oliveira, Cid – 57
Miranda, Oldack – 46, 155 Oliveira, Francisco de – 100, 113, 140, 154, 155
Miranda, Sérgio – 3, 193 Oliveira, Jadson – 166
Mirow, Kurt – 162 Oliveira, Paulo Santos – 47
Moissman, Carlos – 51 Oliveira, Pedro de – 58
Molina, Matias – 18 Oliveira, Raymundo Theodoro de – 27
Monteiro, Dilermando – 226 Oliveira, Sérgio de – 57
Monteiro, Euler Bentes – 198, 199, 200, 204, 205, Oliveira, Teodoro de – 162
230, 318 Oliveira, Washington Carlos Ferreira – 166, 304,
Montenegro, Júlio César – 28 314
Montiel, Rosane – 102
Montoro, Franco – 198, 206 P
Moraes Neto, Prudente de – 82 Pacheco, Mario Victor de Assis – 41
Moraes, Maria – 115, 140, 147, 154 Paiva, Rubens – 18, 69
Morais, José Ermírio de – 69 Paranaguá, Evandro – 207, 209
Moreira, Eny Raymundo – 191 Passarinho, Jarbas – 38, 39
Moreira, José – 169 Passos, Edésio Franco – 48, 49
Moreira, Marcilio Marques – 184 Patarra, Paulo – 124
Moreno, Rachel – 224 Pazzianoto, Almir – 241
Morgenthau, Hans – 85 Pedrosa, Mario – 273, 275
Mota, Carlos Carmelo – 277 Peixoto, Fernando – 28, 32, 100, 163, 176
Motta, Sergio – 6, 30, 32, 79, 87, 88, 91, 92, 93, 94, Perani, Claudio – 170
96, 99, 104, 113, 121, 122, 129, 155, 156, 157, 176, Pereira, Duarte – 6, 113, 121, 122, 123, 124, 125,
177, 206, 303, 321, 329 126, 127, 129, 130, 137, 138, 190, 214, 216, 252,
Motta, Sergio Roberto Vieira da – cf. Motta, Sergio 253, 257, 275, 279, 287, 288, 290, 295, 296, 297
Motta, Vilma – 88 Pereira, Duarte Lago Brasil Pacheco Pereira – cf.
Moura, Antônio Jorge – 46 Pereira, Duarte
Moura, Clóvis – 163, 284 Pereira, Luis Carlos Bresser – 184, 318
Mourão, Nilson – 51 Pereira, Raimundo – cf. Pereira, Raimundo
Muller, Amaury – 94 Rodrigues
Mungioli, Arlindo – 32 Pereira, Raimundo Rodrigues – 3, 6, 11, 12, 17, 18,
Muniz, Reginaldo – 168 20, 21, 22, 24, 28, 37, 40, 41, 42, 44, 48, 50, 52, 72,
Murad, Fátima – 38, 39, 48, 49 75, 85, 87, 88, 92, 95, 96, 99, 102, 103, 109, 113,
114, 119, 126, 127, 128, 137, 139, 140, 148, 156,
N 159, 163, 168, 173, 175, 183, 189, 203, 204, 205,
Nakamoto, Nelson – 216, 217 216, 217, 228, 229, 233, 235, 236, 238, 239, 246,

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248, 249, 256, 258, 264, 283, 284, 286, 287, 288, Sampaio, Cantídio – 266
290, 295, 296, 298, 301, 304, 308, 309, 314, 317 Sampaio, Claudia – 165
Peres, Aurélio – 204, 274 Santos, Lélio Fabiano dos – 42
Perez, Glênio – 267 Santos, Paulo de Tarso – 123
Petean, Saulo – 169, 170, 171 Sardenberg, Carlos Alberto – 32
Pimentel, Fernando – 42, 43 Sardinha, Itamar – 165
Pinheiro, Paulo Sérgio – 14 Sarney, José – 275
Pinheiro, Rommel – 232, 233 Sartori, Armando – 3, 55, 57, 59, 78, 83, 113, 152,
Pinto, Francisco – 11, 181 162, 163, 172, 173, 288
Pinto, Magalhães – 21, 185, 198, 271, 274 Sartre, Jean-Paul – 83, 94
Pio, Dirceu Martins – 49, Saturnino, Roberto – 198
Pomar, Pedro – 124, 248, 249, 250, 251 Satyro, Ernani – 266
Pomar, Pedro Estevam – cf. Pomar, Pedro Sautchuk, Jaime – 38
Pomar, Wladimir – 247, 248, 250, 253, 284 Scalco, Euclides – 48, 49
Popovic, Pedro Paulo – 22, 124 Schemberg, Mario – 182
Porfírio, José – 193 Schwartz, Deni – 48
Portella, Petrônio – 226 Scliar, Moacyr – 14
Porto, Sérgio – 69 Segall, Mauricio – 124
Posada, J. – 39 Serpa, Flávio de Carvalho – cf. Carvalho, Flávio de
Prestes, Luís Carlos – 261, 262, 263, 267, 268, 274, Serra, José – 121, 123
289 Severiano, Mylton – 64, 171
Silva, Aguinaldo – 9, 13, 28, 32, 40, 67, 68, 79,
Q 100, 163, 307
Queiroz, Antonio Carlos – 38, 39, 40, 77, 78, 199, Silva, Arnóbio – 273
200, 203, 267, 287, 288, 314 Silva, Golbery do Couto e – 5, 7, 10, 68, 71, 81, 85,
Quércia, Orestes – 44 118, 185, 198, 272
Silva, Hélio – 14, 193
R Silva, Jards Anet da – cf. Macalé
Rabelo, Renato – 125, 246 Silva, Luiz Inácio Lula da – 43, 52, 146, 167, 186,
Raimundo – cf. Pereira, Raimundo Rodrigues 204, 206, 213, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229,
Rangel, Olivia – 247 230, 231, 233, 234, 235, 236, 237, 238, 239, 240,
Rebelo, Aldo – 167 241, 242, 258, 272, 273, 277, 278, 279, 309
Regina, Elis – 176 Silva, Santo Dias da – 215, 220
Regueira, Lúcio Flávio Uchoa – 262 Silva, Valdelio Santos – 204
Reis, Rangel – 191 Simon, Pedro – 182
Ribeiro, Darcy – 193 Simonsen, Mario Henrique – 68
Ribeiro, Devanir – 241 Singer, Paul – 147
Rios, Jefferson – 32 Siqueira, Geraldo – 284
Rocha, Glauber – 165 Siqueira, Luciano – 168, 169
Rodrigues, José Honório – 205 Skromov, Paulo – 273, 274
Rodrigues, Luiz Oswaldo Carneiro – cf. LOR Soares, Airton – 134, 274
Rodrigues, Nelson – 265 Sobel, Henry – 195
Rodrigues, Sebastião – 48 Sobreira, Geraldo – 46
Rossetti, Nadyr – 94 Sobrinho, Barbosa Lima – 207, 209
Rossi, Clovis – 294 Sodré, Abreu – 225
Ruy, José Carlos – 248, 256, 288 Sodré, Nelson Werneck – 28, 32, 41, 113, 193
Sousa Filho, Henrique de – cf. Henfil
S Souza, Célia de – 51, 287, 288, 290
Sá, Jair Ferreira de – 124 Souza, Herbert de – 123
Saez, Decio – 288 Souza, Jerônimo de – 192
Salgado, Bety – 47 Souza, José Crisóstomo de – 163, 166, 167, 184, 288

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Jornal Movimento, uma reportagem Índice onomástico

Souza, Márcia Ramos de – 133 Vidal, Gore – 85


Souza, Maurício Maia de – 70 Vidal, Paulo – 240
Souza, Paulo Renato de – 44 Vidigal, Luiz Eulálio – 226
Souza, Percival de – 32 Vieira, Emanuel Medeiros – 67
Souza, Pompeu de – 39, 78 Vilas Boas, Paulo Jackson – 166
Souza, Sérgio de – 124 Vilela, Teotônio – 205, 265, 266, 267
Souza, Tárik de – 92 Villas Boas, Glauco – cf. Glauco
Straus, Lia – 235 Villas, Alberto – 194, 263, 268
Suplicy, Eduardo Matarazzo – 163, 216, 218, 275, Villas-Boas, Orlando – 29, 101
288 Viola, Paulinho da – 265
Vlado – cf. Herzog, Vladimir
T
Tapajós, Laís – 154 W
Tavares, Hermano – 45 Wagner, Gustav Franz – 194
Tavares, Milton – 241, 242, 273 Wainer, Samuel – 69
Teia - Gomes, Maria Stella Magalhães – 92 Weffort, Francisco – 273, 278, 279
Teixeira, Hélio – 49 Wisnik, José Miguel – 32, 67, 154
Teixeira, José Roberto Magalhães – 44 Wright, Paulo – 124
Teixeira, Mônica – 172
Telles, Amelinha – 37, 247 Z
Telles, Goffredo da Silva – 182, 192, 205 Zamith, José Ribamar – 74
Timm, Paulo – 39 Zerbini, Euriale – 189
Tito, Marcos – 21, 234 Zerbini, Therezinha – 182, 189, 190, 193
Tonico – cf. Ferreira, Antonio Carlos Zero, João – 55, 62
Torelli, Aparício – 69
Torres, Paschoal Muniz – 170
Torrijos, Omar – 67
Trotsky, Leon – 140

U
Ueki, Shigeaki – 79

V
Vacarezza, Candido – 46,
Vaillati Filho, Henrique – 208
Vale, Marco Antonio – 42
Vandré, Geraldo – 221, 241
Vannucchi, Paulo – 278
Vargas, Getulio – 69, 106
Vargas, Ivete – 337
Vasconcellos, Jarbas – 83
Vasconcelos, Ilton – 166
Vasconcelos, Jane – 166
Vasconcelos, Jarbas – 181, 182, 183, 267
Vasqs – 62
Vasques, Edgar – cf. Vasqs
Veiga, Hecilda – 47
Veiga, Juracilda – 49
Veloso, Caetano – 22, 67, 165
Viana Filho, Luis – 14
Viana, Maria Leonor – 162, 163, 217

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