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“As imagens não são apenas coisas para representar”

Entrevista com Georges Didi-Huberman

20 Junho 2017

O filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman – um dos principais


pensadores do nosso tempo – está desde a semana passada trabalhando em tempo
integral em Buenos Aires na montagem da exposição Sublevações (Soulèvements),
da qual é curador, no Centro de Arte Contemporânea do Museu da Universidade
Nacional de Três de Fevereiro (Muntref). A exposição baseia-se em um trabalho
histórico e teórico que Didi-Huberman vem realizando há anos, e que se inspira em
uma série de livros intitulados L’oeil de l’histoire (O olho da história).

A entrevista é de Verónica Engler, publicada por Página/12, 19-06-2017. A


tradução é de André Langer.

Composta por mais de 200 obras (de Marcel Duchamp, Man Ray, Tina Modotti e
Henri Cartier-Bresson, entre outros, além dos locais Abraham Regino Vigo,
Adriana Lestido, León Ferrari e Eduardo Longoni), Sublevações – que já foi
exposto em Paris e Barcelona – provavelmente se transformará em um dos
fenômenos culturais do ano no país.

Há muitas décadas, este ensaísta de renome internacional vem refletindo sobre a


imagem e a sua dimensão política, a história, a arte, a memória e também sobre
esse campo fecundo de estudos que é a história da arte. Pertencente a uma
linhagem de pensadores disruptivos como o filósofo Walter Benjamin e os
historiadores da arte Aby Warburg e Carl Einstein, a proposta de Didi-Huberman,
assim como a de seus predecessores, também se dirige contra uma determinada
concepção de história, positivista, evolucionista e teleológica.

“Criar a história com os próprios detritos da história”, incitava Benjamin em seu


Livro das Passagens. Trata-se de uma proposta epistemológica que assume que a
história (como objeto da disciplina) não é uma coisa fixa, nem mesmo um simples
processo contínuo e que a história (como disciplina) não é um saber estático nem
um relato causal. Desta forma, o passado deixa de ser um fato objetivo e
transforma-se em um fato de memória. Então, para desmontar a continuidade das
coisas proposta pela construção epistêmica convencional, a alternativa é a
“montagem”, um conceito chave para entender o pensamento de Didi-Huberman.
Em seu artigo 'Quando as imagens tocam o real', ele explica isso da seguinte
maneira: “A montagem será precisamente uma das respostas fundamentais para
esse problema de construção da historicidade. Porque não está orientada
simplesmente, a montagem escapa das teleologias, torna visíveis as sobrevivências,
os anacronismos, os encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada
objeto, cada acontecimento, cada pessoa, cada gesto. Então, o historiador renuncia a
contar ‘uma história’, mas, ao fazê-lo, consegue mostrar que a história não é senão
todas as complexidades do tempo, todos os estratos da arqueologia, todos os
pontilhados do destino”.

Desta maneira, a montagem permite estabelecer uma relação crítica entre as


imagens que ajuda a fugir da cadeia dos estereótipos, dos clichês do olhar que
impedem ver muitas coisas. Para Didi-Huberman, o bom uso da imagem é,
simplesmente, uma boa montagem.

Sobre estas e outras questões conversará amavelmente na entrevista a seguir,


concedida durante um intervalo em sua ocupada jornada, enquanto almoça
empanadas antes de ir à inauguração da cátedra Políticas das Imagens, que
presidirá na Universidade Nacional de Três de Fevereiro.

Eis a entrevista.

Como concebe a questão das sublevações e como esta exposição foi pensada a
partir desse tópico?

Eu não comecei concebendo a sublevação; foi exatamente o movimento inverso.


Acredita-se que o filósofo primeiro tem uma ideia geral e depois a aplica a uma
exposição, mas não é isso que acontece. São as obras que se vai reunindo que dão
uma ideia do que pode ser, embora não seja exatamente uma ideia, seja, acima de
tudo, um caminho em uma série de problemas. Eu não tenho uma teoria ou uma
definição de sublevação, não é esse o problema. É uma fenomenologia ou uma
antropologia. Isso quer dizer que, de alguma maneira, é mais descritivo. Não é uma
ontologia; é apenas um caminho com alguns exemplos com vínculos que creio que
têm, mas resisto à ideia de qualquer definição.

Quais foram as questões que fizeram com que esse caminho fosse aceito na
exposição? Trata-se de iconografias das lutas populares que para você são
significativas?

O que me quer perguntar é por que não há sublevações fascistas? Há sublevações


fascistas. Mas em uma exposição que pode ser vista em 10 minutos ou em 10 horas
– suponhamos que se queira vê-la em 10 minutos –, se mostro um punho levantado
e ao lado um sinal fascista, quando se olha rapidamente se verá um sinal igual entre
as duas imagens. E eu não creio que haja um sinal igual entre as duas. Então evitei
as sublevações populares reacionárias que existem, como neste momento na
França, por exemplo.

O que significa, para você, refletir sobre a dimensão política das imagens?

Eu comecei como historiador da arte, ou seja, como um apaixonado pela beleza. E


um dia me dei conta de que toda análise de uma imagem tem uma dimensão
política, e toda imagem tem uma dimensão política. Então, tentei ser mais preciso,
porque a dimensão artística sempre está em dialética com algo mais temível, mais
perigoso.

Sua proposta como historiador da arte e filósofo das imagens baseia-se na ideia
de que não há fontes originárias na história, nem causas e consequências
lineares entre os acontecimentos. Seguindo o legado de Walter Benjamin, de
alguma maneira o que você propõe é ultrapassar o que seria um tempo
pacificado da narração ordenada, para o que propõe as noções de montagem e
anacronismo. Como funcionam estas questões entre as obras que compõem
Sublevações?

A princípio, funcionam por meio dos gestos. O fato de que quando se está alienado
e se protesta contra essa alienação, o protesto toma uma forma corporal: é o braço
que se levanta, o corpo que se movimenta, a boca que se abre, entre palavras e
cantos, tudo isso é corporal. O corpo humano é a coisa mais antiga que possuímos,
o corpo humano é mais antigo que um fóssil, que uma obra de arte grega; o corpo
humano é muito antigo, é nossa antiguidade. Tudo isso é anacrônico. Quando um
jovem do Maio de 68 se movimenta e pode se movimentar como Dionísio, é
anacrônico.

Você escreveu o livro Imagens, apesar de tudo. Memória visual do Holocausto


(2003) a partir de quatro fotos tomadas pelos Sonderkommandos (que eram os
judeus que tinham a tarefa de colocar na câmara de gás os seus congêneres e
depois enterrá-los; depois eles mesmos eram condenados), um texto no qual,
entre outras questões, propõe a necessidade de mostrar essas imagens sobre o
inimaginável, a Shoah. De que maneira estas fotos se inserem em Sublevações?

Estas quatro fotos fazem parte da exposição, mas se olharmos o que representam,
podemos nos perguntar: “por que elas estão nesta exposição?” À esquerda há um
grupo de mulheres que vão à câmara de gás para serem executadas, e na imagem
da direita há cadáveres que são queimados... Onde está a sublevação? Aí a resposta
é que não devemos ver nas imagens apenas o que elas representam. As imagens
não são apenas coisas para representar; elas mesmas são coisas que estão no
extremo de nossos corpos.

Quando estou com a minha máquina fotográfica e tiro uma foto (enquanto diz isso
tira uma foto da jornalista), pronto, já fiz uma foto sua, está no extremo do meu
corpo. Uma imagem é um gesto, e o gesto de fotografar essas pobres mulheres e
esses pobres cadáveres, o próprio gesto de fotografá-los, ao mesmo tempo em que
quem tira a foto sabia que iria morrer desse mesmo jeito, isso é um gesto de
sublevação. E qual é o resultado? O resultado é que nós podemos vê-lo hoje. O que
era terrível era que tudo isso era invisível para o mundo inteiro. Nós, graças a esse
homem que morreu, evidentemente, temos acesso a esta verdade histórica.

Eu acrescentaria que essas fotos fazem parte de um conjunto de decisões tomadas


por essas pessoas, esses prisioneiros, enterrados na terra. São fotos que fizeram
explodir uma câmara de gás. É uma insurreição, essa imagem faz parte de um gesto
de insurreição, apesar do que ela representa. E a grande pergunta destas imagens
extremas seria essa: quando não há nada, quando não há nenhum meio para lutar,
quando se está totalmente em atitude de humilhação, como, de alguma maneira, se
subleva? Isso está claro.

As fotos têm, além do sinal dessa sublevação extrema, um valor testemunhal,


são um legado de memória.

Sim, testemunho e também esperança. Não esperança para ele, o fotógrafo, que
sabe perfeitamente que vai morrer, esperança para o futuro. Por isso, penso que o
gesto de sublevação vai sempre para o futuro, mas sempre também é uma questão
de memória. É o tema mais importante, é a relação entre o desejo, que vaio para o
futuro, e a memória.

Às vezes questiona-se a necessidade de mostrar imagens de horror, muitos se


perguntam se a exibição dessas imagens não pode alimentar o “morbo”, uma
espécie de gozo perverso, através de certa dinâmica de circulação de imagens
como a que predomina nos meios de comunicação de massa.

Já que falamos de perversão, poderíamos pensar que há pervertidos que gostam


muito dos sapatos ou do cabelo. Então vamos suprimir o cabelo e os sapatos? Não,
a perversão não está no objeto, está no olhar. Então, a imagem do horror, a imagem
da guerra, é inocente. O que é culpado, eventualmente, é o olhar, a utilização que se
faz da imagem. A perversão não está na imagem, está no olhar. Não acredito na
necessidade de censurar determinado tipo de objeto, mas em modificar a atitude
subjetiva sobre isso. Por exemplo, eu não tenho nenhuma vontade de ver vídeos do
Daesh (Estado Islâmico), mas se um dia tivesse que trabalhar com isso, teria que
assisti-los. O que posso fazer?

Você acredita que o olhar contemporâneo é determinado pelos meios de


comunicação de massa? Condicionado para produzir determinadas cegueiras e
determinadas visibilidades e determinados clichês do olhar.

Há um filósofo de que gosto muito, que se chama Gilles Deleuze, e ele disse uma
coisa que adoro: não vivemos numa civilização da imagem – isso não é verdade –,
vivemos numa civilização dos clichês. E nosso trabalho é olhar imagens ou criar
imagens que desconstruam os clichês. Por isso, interessa-me colocar em relação as
imagens entre si através de um recurso constante à ideia da montagem. O
importante é colocar em relação as imagens, porque elas não falam de forma
isolada.

E como se faz isso?

Com montagem. Por exemplo, na linguagem temos um clichê com a imagem “povo”.
Na França, Marine Le Pen utiliza o termo “povo”. Nesse caso, eu tenho que renunciar
à palavra “povo”? Não, eu vou fazer outra montagem, diferente daquela que faz
Marine Le Pen, e o mesmo acontece com as imagens.

Geralmente se costuma entender o ato de olhar como um fato dado pela


sensibilidade, simples, direto, sem mediações, algo que seria simples e imediato.
Mas você defende que, pelo contrário, devemos trabalhar muito para poder
olhar. Como é essa tarefa?

Sim, sim, temos que trabalhar para além da pura visão. Temos que trabalhar além
da simples informação imediata que pode chegar ao clichê. Porque olhamos
também com palavras, e, às vezes, olhamos muito mal. Precisamos tomar o tempo
para ver um pouquinho melhor.

É necessário desenvolver algum tipo de pedagogia destinada a gerar novos


espaços de visibilidade?

Sim, a pedagogia das pessoas que fizeram perguntas não consensuais sobre as
imagens, mas não há muita gente que faça isso. Há uma desproporção completa
entre a importância que se dá às imagens na vida cotidiana, na política, no
marketing, etc., e a ausência de reflexão sobre as imagens. Considera-se que
aqueles que refletem sobre as imagens são muito complicados, mas isso não é
verdade; não são mais complicados do que aqueles que trabalham na Bolsa (ri).

Que tipo de contribuição para a construção histórica você acha que este tipo de
conhecimento pela imagem é capaz de dar?

Em todos os campos de conhecimento histórico, em todas as áreas, a imagem traz


questões específicas e interessantes.

O filósofo sublevado

Nascido em 1953, Georges Didi-Huberman é filósofo e historiador da arte.


Conferencista desde 1990, é professor na École des Hautes Études en Sciences
Sociales (França). Foi premiado em Hamburgo pela Fundação Aby Warburg e em
2015 recebeu o Prêmio Theodore W. Adorno, que recompensa as contribuições
excepcionais nos campos da filosofia, música, teatro e cinema.

É autor de cerca de 50 livros e ensaios nos quais combina filosofia e história da arte,
como L’oeil de l’histoire (O olho da história), composto por cinco volumes
publicados entre 2009 e 2015. Foi curador, entre outras, da exposição Atlas, como
carregar o mundo nas costas? (inspirada no historiador da arte Aby Warburg),
produzida pelo Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia de Madri, e
co-curador da exposição Nouvelles Histoires de Fantômes no Palais de Tokyo de
Paris em fevereiro de 2014 com o fotógrafo Arno Gisinger.

No Brasil, entre outros, foram editados os seus seguintes livros: O que vemos, o
que nos olha (São Paulo: Editora 34, 1998); A sobrevivência dos vaga-lumes (Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011); Diante da imagem (São Paulo: Editora 34, 2014);
A pintura encarnada (São Paulo: Editora 34, 2014); Diante do tempo. História da
arte e anacronismo das imagens (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015); Quando
as imagens tomam posição. O olho da história, I (Belo Horizonte: Editora UFMG,
2015); Que emoção! Que emoção! (São Paulo: Editora 34, 2016).

Didi-Huberman é o curador da exposição Sublevações (Soulèvements), que


permanecerá em exibição no Museu de Arte Universidade Nacional de Três de
Fevereiro (Muntref), na cidade de Buenos Aires, de 21 de junho a 27 de agosto.
Trata-se de uma exposição sobre os acontecimentos políticos e as emoções
coletivas de movimentos de massas em luta. A mesma trata sobre as desordens
sociais, a agitação política, a insubmissão, as revoltas e as revoluções de todo tipo, e
mostra como os artistas abordaram estes temas em diferentes momentos da
história. Reúne mais de 250 obras entre pinturas, desenhos e gravuras, fotografias,
filmes e documentos, de artistas como Marcel Duchamp, Man Ray, Tina Modotti e
Henri Cartier-Bresson, entre outros. Esta exibição foi organizada pelo Jeu de
Paume de Paris em colaboração com o Muntref para sua apresentação em Buenos
Aires e conta com a participação do Museu Nacional de Arte da Catalunha,
Barcelona; do MUAC (Museu Universitário de Arte Contemporânea) UNAM, México;
da Galerie de l’UQAM (Universidade de Québec, Montreal) e do SESC São Paulo.

Sublevações foi exposta pela primeira vez no final do ano passado em Paris e
depois chegou a Barcelona, antes de desembarcar em Buenos Aires. Depois
continuará seu périplo por São Paulo, México DF e Montreal. Pelo fato de este
projeto ser reeditado em cada lugar por onde passa, Didi-Huberman integrou nesta
exposição obras de artistas locais como Eduardo Longoni, Abraham Regino Vigo,
Adriana Lestido e León Ferrari.

Nesta quarta-feira, 21 de junho, às 10h30, Didi-Huberman fará a apresentação


acadêmica da exposição, ao lado de Marta Gili, diretora do Jeu de Paume; Eduardo
Jozami, diretor do Centro de Estudos da Memória e História do Tempo Presente da
Untref; Alberto Manguel, diretor da Biblioteca Nacional; e Diana Wechsler, diretora
da área de Arte e Cultura da Untref, com a coordenação do reitor Aníbal Jozami. O
evento acontecerá no Muntref Centro de Arte Contemporânea (Sede Hotel de
Imigrantes).

Link:

http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/568830-as-imagens-nao-sao-apenas-coisas-
para-representar-entrevista-com-georges-didi-huberman

Acesso em 27 de agosto de 2021

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