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its understanding on the part of the Christian faith and the difficulty to
export it to other religious traditions. However, in a final part, becau-
se religions are porous entities that mutually influence each other, the
notion of fraternity may be accepted even if after undergoing a certain
limitation in its sense. For this very reason, at the end, we propose a
more general notion of human dignity, fundamental at a time when the
human being is sacrificed to profit and productivity.
Keywords: Fraternity; Religions; Universal notion; Holy Spirit; Hu-
man dignity.
Introdução
A Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco termina com um capítulo
intitulado: “As religiões a serviço da fraternidade no mundo”. Diante da
evidente diversidade das religiões em nosso planeta, surge naturalmente
a questão: é possível a realização deste objetivo pretendido pelo Papa ou
se trata mais de um sonho, sem dúvida muito importante para o futuro
da humanidade que não pode prescindir da paz e da justiça? Já o que
denominamos “religião” recebe uma pluralidade de compreensões, de-
pendendo da ótica de leitura: filosófica, cultural, sociológica, histórica,
fenomenológica ou, mesmo, teológica. Não entraremos neste debate,
pois nos contentaremos com uma caracterização básica de religião, ao
afirmar que ela implica uma relação com uma realidade transcendente
que determina certa visão do mundo criado e o comportamento dela
decorrente, a saber, suas expressões e práticas.
Nela também está implicado o desejo de felicidade, de paz, de ple-
nitude, que liberte o ser humano de suas contingências, sofrimentos,
tensões, ameaças da natureza ou da sociedade, objetivo este que pode
ser caracterizado como “salvação”, embora apresentando conteúdos di-
versos.1 Daí a dificuldade de uma reflexão sobre o fenômeno religioso,
rebelde a se ver reduzido a um conceito genérico. Naturalmente, deve
ficar claro que nem o Papa em sua encíclica nem nós nesta reflexão
podemos prescindir da ótica proporcionada pela fé cristã, já que todo
conhecimento implica sempre um quadro interpretativo.
Portanto permanece aberta a possibilidade de outras tradições reli-
giosas que buscam igualmente a fraternidade universal fundamentarem
diversamente este objetivo comum. Importante também aqui é ressaltar
3. A noção de fraternidade
A noção de “fraternidade”, subjacente a toda a Encíclica Fratelli
Tutti e tal qual hoje a entendemos, não pode eliminar de seu conteúdo
semântico a presença da fé cristã. Teremos que examinar como se de-
senvolveu esta noção no cristianismo e, num segundo momento, se a
mesma pode gozar de tal universalidade que possa ser entendida e vivida
por adeptos de outras religiões.
Limitada a pessoas que viviam numa mesma cidade (Atenas) e numa
época anterior ao cristianismo, ganha maior amplitude já no Antigo
Testamento, quando atribuída aos da mesma raça ou do mesmo povo,
enquanto descendentes do mesmo casal Adão e Eva ou enquanto criatu-
ras do mesmo Deus. Já no Novo Testamento se atribui não só ao com-
patriota, mas também ao discípulo e até ao ser humano em necessidade
(Mt 25,31-46; Lc 10,30-37). Fundamento desta concepção: todos são
filhos do mesmo Pai. Já na época sofre mutação semântica, aparecendo
mais como uma meta a ser realizada, conforme os textos acima citados.
Posteriormente se enfraquece, sendo a noção de fraternidade utilizada
apenas para comunidades religiosas e para o clero, embora São Francis-
co de Assis, com sua ida ao Egito para se encontrar com o Sultão Ma-
lik-al-Kamil (FT 3), recupera seu sentido evangélico, como é próprio
dos santos.
Portanto, na perspectiva cristã, o termo “fraternidade” acentua o
que há de comum em todos os seres humanos: uma mesma vida que
termina com a morte, a dignidade e o valor da pessoa por ser única ao
ser querida por Deus e destinada a uma vida eternamente feliz com
Deus. Além disso, a noção cristã de fraternidade não constitui um dado
estático, mas um imperativo em busca de realização, a saber, reconhecer
o outro, o pobre, o inferior, como seu irmão. Trata-se, portanto, de al-
cançar o modo como alguém pessoalmente se relaciona com o outro.13
As cartas paulinas acentuam mais, a partir do batismo, que os cristãos
têm em Cristo seu primogênito, invocam a Deus como Pai e, conse-
quentemente, são irmãos entre si.14
Deste modo, podemos comprovar que a noção cristã de fraternidade
é bem determinada. Ela se caracteriza por abrigar verdades cristãs funda-
Considerações finais
Qualquer reflexão acontece sempre no interior de um horizonte de
compreensão, pois qualquer ato cognoscitivo é uma interpretação da
realidade. Conhecer é interpretar. Pois a realidade se deixa desvendar
conforme as perguntas que lhe dirigimos, fato que explica a pluralidade
das ciências, mesmo ao abordarem a mesma realidade. Consequente-
mente, não existe um ponto de vista neutro, que prescinda de uma
chave de leitura particular. Portanto, vamos considerar nossa questão na
perspectiva da fé cristã.
Não podemos negar que a noção de fraternidade apresenta raízes
cristãs que também moldaram a cultura ocidental. Perde ela então sua
pretensão de universalidade? Ou encontra-se ela na mesma situação de
qualquer noção ou conceito, que não pode se livrar do solo sociocultural
de onde nasceu, pois nada existe na inteligência que não tenha passado
pelos sentidos? Naturalmente, podem existir religiões que apresentem
um horizonte de compreensão mais amplo, capaz de receber e explicar
os desafios postos ao ser humano pela natureza, pela sociedade, pela
história, enfraquecendo, assim, ou mesmo eliminando, outras religiões
menores, incapazes de fazê-lo.19 Deste modo, conseguem apresentar no-
ções religiosas de maior amplitude semântica, mesmo que não alcancem
a característica de universais simplesmente.
Há ainda outro ponto a ser mencionado. A história nos demons-
tra que as religiões são grandezas “porosas”, pois, ao longo dos séculos,
se transformam pelo desafio de novas situações a serem explicadas e
afrontadas, ou mesmo pela proximidade com outras religiões e culturas
(causas endógenas ou exógenas). Embora mantenham sua identidade
original, podem se apresentar em configurações diversas com relação
às anteriores, pois nenhuma delas é uma ilha isolada no desenrolar his-
tórico da humanidade. Esta afirmação diminui bastante a dificuldade
com nossa noção de fraternidade. Pois, o contato com a cultura e com
a religião cristã tornou esta noção mais conhecida junto às demais re-
ligiões e culturas. Certamente, um ponto positivo para sua universa-
lidade. Entretanto, não nos enganemos. Esta noção cristã poderá ser
recebida e entendida num outro horizonte religioso de compreensão,
fato este que produzirá inevitavelmente certos matizes não encontrados
20. VON BRÜCK, Heil und Heilswege im Hinduismus und Buddhismus – eine Herausforde-
rung für christliches Erlösungsverständnis, p. 78.
21. VARILLON, Un chrétien devant les grandes religions, p. 63-65.
22. VON BRÜCK, op. cit., p. 62.
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