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Capítulo 7

A CENTRALIDADE DA SUPEREXPLORAÇÃO DA
FORÇA DE TRABALHO NO PADRÃO
DE REPRODUÇÃO DO CAPITAL
DAS ECONOMIAS DEPENDENTES

Wendell da Costa Magalhães


José Raimundo Trindade

1 INTRODUÇÃO

A Teoria da Dependência que surge em meados da década de 1960,


predominantemente pelas mãos de autores latino-americanos, pode ser
subdividida, conforme seu aspecto teórico-metodológico, em uma versão
weberiana, representada por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto82;
e uma versão marxista, com a qual nos filiamos, e que tem nos nomes de
Theotonio Dos Santos, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini, Orlando Caputo,
Adrián Sotelo Valência e Jaime Osorio seus principais representantes83.
No que toca à primeira destas versões, conforme se deu seu
desenvolvimento, no lugar de uma Teoria da Dependência, o que mais parece
comparecer é uma “apologia da dependência”, como bem assinala o professor
Nilson Araújo de Souza (2005). Ali, segundo Martins (2011), os autores
trabalham com um tipo ideal da dependência, coisa característica do aporte
teórico-metodológico weberiano, no qual o uso das categorias marxistas
torna-se simples fraseologia subordinada a este primeiro, perdendo seu vigor
crítico original.

82
Cf. CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo [1969]. Dependência e desenvolvimento
na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
83
Cf. Martins (2011) e Luce (2018).
182 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

Muito diferente disso, consideramos que a chamada Teoria da


Dependência Marxista (TDM), em perfeita linha com o pensamento de
Marx, nos fornece um aporte teórico-metodológico valioso para o estudo
da conformação da lei do valor capitalista em espaço e tempo determinado,
apontando, com a crítica que faz, a necessidade de superação não somente
do que estabelece como dependência, mas da própria sociabilidade pautada
pelo capital. Dos autores que elaboraram essa teoria, Ruy Mauro Marini, em
especial, ao empreender o exercício teórico que dá fruto a sua obra a respeito
do que podemos chamar de capitalismo dependente, nos lega categorias
fundamentais que aqui visamos resgatar para a compreensão da dialética
da dependência presente na América Latina. Destacamos aí nessa tarefa,
sobretudo, as categorias de dependência, superexploração da força de trabalho
e padrão de reprodução do capital.
Com estas, visamos esclarecer, com base na TDM, como o fenômeno
da superexploração da força de trabalho se evidencia como elemento central,
estruturante e definidor do padrão de reprodução do capital vigente nas
economias dependentes, em especial nas economias latino-americanas,
ao longo da sucessão dos diferentes ciclos do capital que aí se conformam.
Tal objetivo se mostra importante de ser atingido para que, convencidos
deste diagnóstico, possamos pensar estratégias de superação do nosso
subdesenvolvimento e dependência em relação às leis do capitalismo global,
levando em conta as formas particulares com que estas se afirmam em nosso
continente.
Para isso, para além desta introdução e das considerações finais,
estruturamos este trabalho em cinco seções. A primeira se detém em introduzir
as categorias de análise aí citadas e o respectivo fundamento de cada uma delas.
Na seção segunda, apresenta-se o surgimento da dita economia exportadora
a partir da plena integração da América Latina à divisão internacional do
trabalho (DIT), e sua caracterização por um padrão agromineiro exportador,
pautado pelo fenômeno da superexploração da força de trabalho.
Na terceira seção, convém demonstrar como a industrialização das
economias dependentes não encerra esse último fenômeno, mas o perpetua
com a configuração de um novo ciclo do capital que estabelece a lógica de
seu padrão industrial. Na quarta seção, tratamos do que Marini ([1973]
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 183

2011a) denomina como o novo anel da espiral, situação em que o padrão de


reprodução do capital na economia dependente já industrializada passa a
sofrer a intervenção direta do capital estrangeiro, elevando o desenvolvimento
das forças produtivas na região, mas não deixando de conferir centralidade à
superexploração da força de trabalho, o que eleva a dependência a um novo
patamar financeiro e tecnológico. Na seção quinta, apresentamos o caráter
geral do ciclo do capital na economia dependente e como ele estabelece
a lógica do padrão de reprodução do capital nessa economia pautado na
superexploração da força de trabalho, tendo a predominância, conforme nos
diz Osorio (2012), de um padrão de especialização produtiva no contexto da
mundialização. Por fim, se fazem as ditas considerações finais.

2 ACERCA DAS CATEGORIAS DE ANÁLISE: dependência, padrão de


reprodução do capital e superexploração da força de trabalho

As economias latino-americanas podem ser caracterizadas como


dependentes desde sua plena integração à divisão internacional do trabalho
(DIT) em meados do século XIX84, no que passam a serem marcadas pelo
fenômeno da superexploração de sua força de trabalho, que a estruturou e
ainda estrutura o ciclo do capital aí presente e, logo, o seu padrão de reprodução
do capital.
Nesse sentido, Theotonio Dos Santos nos fornece a compreensão da
dependência, em âmbito mais geral, como uma situação condicionante, que
é também histórica, na qual se “configura uma certa estrutura da economia
mundial que favorece o desenvolvimento econômico de alguns países em
detrimento de outros e que determina as possibilidades de desenvolvimento
das economias internamente, as constituindo como realidades econômico-
sociais”85. Ruy Mauro Marini, por sua vez, de forma mais específica, diz que

84
Ver o que afirma Marini ([1973] 2011a, p. 135-136), no que destaca que a situação
colonial não é a mesma que a situação de dependência, com esta última somente se dando
quando acontece a plena integração da América Latina na economia mundial após, mais
precisamente, 1840.
85
DOS SANTOS, T. [1978]. Imperialismo y Dependencia. Caracas: Fundación Biblioteca
Ayacucho, 2011, p. 364, tradução nossa.
184 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

a dependência é “uma relação de subordinação entre nações formalmente


independentes, em cujo marco as relações de produção das nações
subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução
ampliada da dependência”86.
Essa situação ou relação de dependência é marcada, em geral, por dois
estruturantes básicos que a pautam e assim a definem: i) os mecanismos de
transferência de valor; ii) e a superexploração da força de trabalho. Ambos tiveram
o seu desenvolvimento teórico inicial feito na obra Dialética da Dependência
(1973), de Marini. Mais precisamente, nessa obra, a superexploração aparece
como uma forma de “compensar” as transferências de (mais-)valor que
acontecem das economias dependentes para as ditas economias centrais ou
imperialistas. Em síntese, temos aí que as classes dominantes das economias
dependentes, percebendo-se assoladas pelos mecanismos de transferência de
valor vigentes nessas economias87 – cuja consequência mais direta disto é a
diminuição da massa de mais-valor de que podem se apropriar – acabam por
encontrar nos mecanismos de superexploração da força de trabalho os meios
de abrandarem tal perda.
Da obra de Marini (2011a), exclusivamente, se depreende que estes
mecanismos resumem-se a três: i) aumento da jornada de trabalho sem
compensação salarial; ii) aumento da intensidade do trabalho também sem
compensação salarial; iii) e apropriação de parte do fundo de consumo do
trabalhador pelo capital, a partir de pagamentos de salários abaixo do valor
real da força de trabalho. Todos os três mecanismos, deste modo, concorrem,
nas economias dependentes, para uma remuneração do trabalhador abaixo do
valor de sua força de trabalho de forma estrutural.
Dito isso, temos que, assim como a contradição fundamental do
capitalismo entre capital e trabalho ganha uma conotação especial no
capitalismo dependente através dos mecanismos de superexploração, o ciclo
do capital nesta economia também terá uma característica especial, levando

86
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência [1973]. In: TRASPADINI, Roberta;
STEDILE, João Pedro (Orgs.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. 2. ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2011a. p. 134-135.
87
Decorrentes, basicamente, da formação de monopólios internacionais de manufaturados; e
da maior produtividade das nações centrais, conforme expõe Marini ([1973] 2011a), o que
ainda detalharemos mais à frente neste trabalho.
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 185

Marini a falar em um ciclo do capital na economia dependente88. Este, em


nossa concepção, fornece a lógica do padrão de reprodução do capital das
economias deste tipo.
Por sua vez, por padrão de reprodução do capital, com base em Marini
(1982)89, que a criou, e Osorio (2012, 2014), que melhor a fundamentou,
entendemos como sendo uma categoria de mediação90 que reflete a dimensão
da realidade capitalista em que se encontram imbricadas a valorização do
capital e a produção de valores de uso. Dessa forma, ela está em um nível
de análise ou abstração que intermedeia os níveis mais gerais, nos quais se
encontram noções como modo de produção capitalista e sistema mundial, e
os níveis menos abstratos ou mais histórico-concretos, em que se encontram
noções como formação econômico-social e conjuntura.
Em síntese, portanto, temos por padrão de reprodução do capital a
mediação de como o todo, que é o modo de produção capitalista estruturado
pelo sistema mundial e sob a forma de uma economia-mundo91, se faz
presente e efetiva suas partes, de forma regular, através de uma lei do valor
mundializada92 que se processa em diferentes formações econômico-sociais e
conjunturas.
A dialética presente nos diferentes ciclos do capital da economia
dependente latino-americana ao longo da história, porém, conforma diferentes

88
Cf. Marini ([1973] 2011a, [1979] 2012).
89
A categoria padrão de reprodução do capital foi elaborada por Ruy Mauro Marini, aparecendo
pela primeira vez num artigo deste autor na publicação não periódica Cuadernos Cidamo,
intitulado Sobre el patrón de reproducción de capital en Chile (1982). Neste, dirá, numa
definição ainda muito genérica, que o padrão de reprodução do capital no Chile se refere à
“relação entre as estruturas de acumulação, produção, circulação e distribuição de bens”. Em:
MARINI, R. M. Sobre el patrón de reproduccíon de capital en Chile. Cuadernos de Cidamo.
México D. F., n. 7, 1982, tradução nossa. Disponível em: http://www.mariniescritos.unam.
mx/061_reproduccion_capital_chile.html. Acesso em: 3 nov. 2018.
90
Em Bottomore (1988), temos que a mediação é uma categoria central da dialética. Por ela,
se estabelecem conexões via algum intermediário. Indo além da posição ocupada por essa
categoria na epistemologia e na lógica em geral, na dialética materialista marxista, porém,
essa categoria assume um estatuto ontológico, ou seja, uma posição que diz respeito à
própria constituição do ser e, mais especificamente, do ser social. O estudo da totalidade
deste ser social, portanto, deve perpassar, obrigatoriamente, pelas mediações pelas quais os
complexos que constituem essa totalidade se efetivam, no que se inclui aí a maneira como as
leis gerais do modo de produção capitalista se conformam em espaço e tempo particular.
91
Sobre esse tema, em específico, ver Martins (2011).
92
Cf. AMIN, S. (2006).
186 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

padrões de reprodução do capital. Estes últimos, por sua vez, são determinados
não apenas pela característica do ciclo do capital que lhes corresponde, mas
pelas determinações do modo como está estruturado o sistema mundial
capitalista no qual estão inseridos93. A configuração particular deste sistema,
nesse sentido, estabelece a situação dos padrões de reprodução do capital em
termos da produção de valores de uso na DIT; e da dinâmica de acumulação e
transferência de valor produzida por cada um deles.
Temos, então, que o processo mundial de acumulação de capital se
apresenta sob a forma de diferentes padrões de reprodução do capital pelo
mundo, pertencentes a núcleos geográficos de acumulação de capital, que se
concentram nas economias centrais ou imperialistas; em contrapartida aos
padrões de amplas regiões dependentes e periféricas, nas quais predomina a
desacumulação de capital94.
Mais além disso, o desenvolvimento do sistema mundial capitalista,
ao longo da história, estabelece diversas DITs que determinam os padrões de
reprodução do capital que se sucedem na economia dependente, do ponto de
vista da sua produção de valores de uso95. Assim, temos um padrão agromineiro
exportador, que abarca desde o início das independências políticas formais
das economias dependentes, efetivadas na primeira metade do século XIX, até
a segunda década do século XX; um padrão industrial, iniciado na segunda
metade dos anos 1930, com uma primeira etapa internalizada e autônoma
que vai até os anos 1940, e tendo continuidade com uma etapa de integração
ao capital estrangeiro, iniciada nos anos de 1950; e um padrão exportador de
especialização produtiva, indo de meados dos anos 1980 e se prolongando até
os nossos dias atuais.96

93
Osorio (2012, p. 79), nesse sentido, nos alerta que, para cada padrão que se sucede na
economia dependente, é preciso “considerar que eles fazem parte de um movimento
mais geral, o do sistema mundial capitalista, de modo que sua análise deve integrar-se aos
processos que marcam o curso de tal sistema, das etapas que vão tendo curso e da lógica que
rege cada uma de suas periodizações”.
94
Tal realidade se conforma mediada pelos mecanismos de transferência de valor, já aqui
citados, que costumam privilegiar as primeiras dessas economias em detrimento destas
últimas regiões. Cf. Osorio (2012, 2014).
95
Os nomes que Osorio (2012) mesmo utiliza para diferenciar tais padrões destaca essa
dimensão material que os qualificam.
96
Se faz necessário lembrar ainda que cada padrão deste está entremeado por etapas de
transição, nas quais se designam “momentos em que um padrão não termina de se subordinar
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 187

Visamos esclarecer a lógica que preside cada padrão deste e de como


todos eles, por se referirem, no geral, aos padrões das economias dependentes
latino-americanas que se sucederam ao longo da história, conferem centralidade
ao fenômeno da superexploração da força de trabalho. Comecemos, nesse
sentido, pela dialética do padrão agromineiro exportador, apreendida, num
nível mais alto de abstração, pela categoria economia exportadora, formulada
por Marini (2011a).

3 A ECONOMIA EXPORTADORA E SEU CICLO: A DIALÉTICA DA


DEPENDÊNCIA FUNDAMENTADA NA SUPEREXPLORAÇÃO DA
FORÇA DE TRABALHO

O conceito de economia exportadora, presente em Dialética da


Dependência (1973), de Marini, explica como a economia latino-americana
originalmente se integra ao mercado mundial e assim desenvolve o fenômeno
da troca desigual. Detectado pela teoria cepalina a partir da concepção da
deterioração dos termos de intercâmbio, este tem seu segredo (ou essência)
explicado (a) na transferência de (mais-)valor que se opera entre economias
com diferentes graus de industrialização.
Nesse sentido, Marini se pauta na perspectiva marxista para explicar tal
fenômeno, nos deixando claro que é só a partir da visualização de como a lei
do valor – tal qual se encontra refletida teoricamente na obra de Marx – se faz
presente em economias dependentes, as subordinando à sua lógica, é que se
faz possível captar em sua inteireza o problema que se sugere.
Fazer isso envolve, automaticamente, descartar a visão da América
Latina como possuidora de um passado feudal para pôr no lugar, tal
como feito pela (s) Teoria (s) da (s) Dependência (s), a perspectiva de

e em que o padrão que emerge ainda não domina com clareza”.1 Temos então uma etapa de
transição do padrão agromineiro exportador para o padrão industrial na primeira metade
dos anos 1930; e uma segunda etapa de transição separando o padrão industrial do padrão
exportador de especialização produtiva que vai de meados dos anos 1970 até início dos anos
1980. Por sua vez, as características particulares, num menor nível de abstração, de cada um
destes padrões, podem ser vistas em LUCE, M. Teoria Marxista da Dependência: problemas
e categorias – uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
188 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

que a economia latino-americana é fruto do desenvolvimento do capital


comercial, que se funde posteriormente com o industrial europeu. A obra
de Marini (2011a), nesse sentido, vislumbra a América Latina surgindo,
primeiramente, como exportadora de metais preciosos e gêneros exóticos
devido à expansão comercial europeia promovida no séc. XVI. Desse
modo, tal região contribui com o aumento do fluxo de mercadorias e a
expansão dos meios de pagamento que promovem o desenvolvimento do
capital comercial e bancário na Europa; sustentam o sistema manufatureiro
europeu; e propiciam a criação da grande indústria.
A Revolução Industrial, que ocorre concomitantemente às
independências políticas ocorridas na América Latina no início do séc. XIX,
efetiva a criação dessa grande indústria na Inglaterra e, consequentemente,
faz com que a América Latina entre na DIT como produtora e exportadora
de bens primários, consumidora de manufaturas e fazedora de dívidas97. Por
sua vez, é dessa sua posição na DIT e das implicações daí decorrentes que se
configura a dependência no sentido do que aqui já foi exposto.
O sentido de ser desse fenômeno, no entanto, está para além do fato
de propiciar o crescimento quantitativo das economias desenvolvidas. Mais
precisamente, ele está em contribuir “para que o eixo da acumulação na
economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta para a
de mais-valia relativa”. De outro modo, “que a acumulação passe a depender
mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente
da exploração do trabalhador”98.
Essa última tarefa, em contrapartida, nesse primeiro momento, ficará a
cargo dos países dependentes que, por meio de suas típicas tarefas, se utilizam

97
Em relação a esta última situação, tal coisa se dá de forma significativa, caracterizando
transferência de excedente, somente a partir do momento que a economia latino-americana
obtém um excedente comercial, por meio das exportações, suficiente para fazer e arcar com
somas cada vez maiores de tais dívidas. Marini, citando Sodré (1964), atesta isso mostrando
o caso do Brasil, que “a partir da década de 1860, quando os saldos da balança comercial
se tornam cada vez mais importantes, o serviço da dívida externa aumenta: dos 50% que
representava sobre esse saldo nos anos de 1960, se eleva para 99% na década seguinte”. E
citando Barboza-Carneiro (1920), mostra ainda que, entre 1902-1913, pari passu ao aumento
das exportações brasileiras em 79,6%, a dívida externa apresentou crescimento de 144,6%,
representando, em 1913, 60% do gasto público da nação (MARINI [1973], 2011a, p. 134).
98
MARINI, R. M. Dialética da dependência, op. cit., p 138.
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 189

dos mecanismos de aumento e/ou intensificação da jornada de trabalho; e de


remuneração do trabalhador abaixo do valor de sua força de trabalho99. Nisso
consiste uma maior exploração do trabalhador, a que Marini chamará de
superexploração do trabalho e que nós preferimos chamar de superexploração
da força de trabalho100.
Para Marini, cabe explicar, primeiro, com base na lei do valor, como
esse mecanismo que integra a economia dependente à divisão internacional do
trabalho opera mais exatamente, fazendo surgir o fenômeno da troca desigual.
Antes de tudo, cabe dizer que na medida que cresce o montante de mais-valor
apropriado pelas economias centrais através do mecanismo da mais-valia (ou
mais-valor) relativa (o), cresce também o montante de capital constante aí

99
Com isso, não se quer dizer, tal como faz a crítica de Fernando Henrique Cardoso a Marini
logo após a publicação inicial das ideias que conformaram o Dialética da Dependência
(1973), que a superexploração da força de trabalho se restrinja a ser mais-valia absoluta,
ou seja, um mero aumento da exploração em termos quantitativos, sendo superada com
o avanço das forças produtivas na região que geraria mais-valia relativa. O fenômeno
da superexploração da força de trabalho pode se identificar, através dos diferentes
mecanismos que a expressam, com a mais-valia absoluta, porém ele não implica o não
desenvolvimento das forças produtivas. Ver a respeito a resposta de Marini a essa crítica
em Sobre a Dialética da Dependência (1973). Num primeiro momento, no que se refere
à economia exportadora, os mecanismos de superexploração da força de trabalho se
identificam predominantemente, na aparência, com a mais-valia absoluta, o que pode
explicar o fato de Cardoso dizer que ela era somente isso, dado que, inicialmente, ele só
teve acesso à parte do Dialética da Dependência que versava sobre a economia exportadora
e não lidava com o avanço das forças produtivas na região advindo da industrialização.
Sobre isso, ver Memórias (1990), de Marini. Entretanto, a industrialização tem seus efeitos
analisados e relatados nos últimos capítulos de Dialética, tanto nos seus impactos causados
ao ciclo econômico do capital em uma economia dependente, como na própria estrutura
de produção dessa economia. Aqui, a superexploração da força de trabalho não se resumirá
mais a uma diferença quantitativa da exploração, mas a uma diferença de grau que convive
com o avanço das forças produtivas na região.
100
Esta precisão é imperiosa de ser feita para que não corra o risco de cair numa concepção
ricardiana que confunde trabalho e força de trabalho, e acaba por cair numa visão moralista
a respeito da exploração e da geração de mais-valor, que não é a de Marx e nem cremos
ser a de Marini. Contrariamente a isso, Marx deriva o mais-valor em sua teoria a partir
da troca de equivalentes, fornecendo uma visão científica da exploração no capitalismo.
Como diz Carcanholo, M. (2013a, p. 75-6), “tratar os dois [superexploração do trabalho e
superexploração da força de trabalho] como sinônimos equivale a tratar a força de trabalho
(mercadoria) como sinônimo de trabalho (o valor de uso da mercadoria) e, portanto, perder
de vista a dialética da mercadoria força de trabalho. […] o rigor teórico e metodológico exige
utilizar o termo superexploração da força de trabalho, uma vez que explorar – no sentido de
usar, utilizar, consumir, realizar – aquilo que já é o resultado desta exploração (utilização), o
trabalho, não parece fazer muito sentido”.
190 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

acumulado, decrescendo, em contrapartida, a taxa de lucro dessas economias


devido ao aumento da composição-valor do capital.101
Essas contradições vêm a ser contrapostas por diversos procedimentos
que, de um ponto de vista estritamente produtivo, “[...] se orientam tanto
no sentido de incrementar ainda mais a mais-valia, no intuito de compensar
a queda da taxa de lucro, quanto no sentido de induzir uma baixa paralela
no valor do capital constante, com o propósito de impedir que o declínio
se apresente”102. Por isso, o fornecimento de matérias-primas industriais
em larga escala por parte das economias dependentes, ao baratear o capital
constante que é composto, em parte, por essas matérias-primas, servirá como
contratendência à queda da taxa de lucro nas economias centrais.103
No entanto, a deterioração dos termos de intercâmbio em desfavor
das economias dependentes que daí se segue, conforme Marini (2011a), não
achava sua explicação na maior produtividade dessas economias, já que esta
caminhava aí a passos lentos; e ainda não desestimulava a incorporação da
América Latina na economia internacional. Sendo assim, se tentássemos
explicar tal fenômeno pela lei da demanda e da oferta, operando esta de forma
límpida, não haveria por que continuar a produzir tanto diante de uma baixa
generalizada de preços, como bem continuou a fazer esse continente.
Marini (2011a) prevê, nesse sentido, que poderia tentar se argumentar que
a explicação para isso estaria na força militar com que os países desenvolvidos
dispunham para forçar as economias dependentes a, depois de incorporadas
à DIT, continuarem produzindo para o benefício da expansão daqueles
primeiros. É certo, no entanto, que mecanismos de força se fazem cruciais num
primeiro momento em que a lógica das relações capitalistas devem começar

101
A lógica dessa dinâmica se encontra mais bem fundamentada n’O capital III, de Marx, em
que se prevê que, devido ao capital constante não gerar mais-valor na produção, transferindo
somente o seu custo de produção para o produto final, o aumento de seu montante na
economia provoca o decrescimento relativo do capital variável, que é a verdadeira fonte do
mais-valor, tendendo a causar, por fim, um decrescimento da taxa de lucro na economia.
102
MARINI, R. M. Dialética da dependência, op. cit., p. 141.
103
A vinculação que se estabelece, a partir daí, entre economias dependentes e economias
centrais, é uma vinculação, portanto, de cunho imperialista, explicada em suas leis mais
gerais, não sem divergências, pelas obras de Lenin, Hilferding, Bukharin e Rosa Luxemburgo.
A TDM, nesse sentido, é tributária das teorias do imperialismo, configurando-se como um
prolongamento necessário destas, no sentido de que confere centralidade às leis que regem
as economias dependentes. Sobre isso, ver Dos Santos (1978, p. 357).
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 191

a se impor a territórios livres dela, porém, posteriormente, isso se torna por


demais dispendioso, e é necessário que as nações subjugadas por essa lógica a
adotem como se fossem sempre suas e a façam funcionar da forma mais natural
possível, como bem mostra o desenrolar da história mundial.
Para Marini (2011a), portanto, essas explicações simplistas ocultavam
a verdadeira razão do processo que se encontrava na base econômica de suas
relações. As transferências de valor que daí advinham, segundo o autor, se
davam, em verdade, pela permissão que o desenvolvimento das relações
mercantis concede ao capital, aparentemente, de burlar a lei do valor, mesmo
que a partir da aplicação desta lei em sua dimensão essencial104.
As transferências de valor, desse modo, se dariam na fixação dos preços
de mercado e dos preços de produção das mercadorias. Naquilo que foi
descoberto por Marini, existiriam diferentes mecanismos que possibilitavam
tal coisa. Alguns destes operariam no interior de uma mesma esfera de
produção, seja essa esfera de manufaturados ou de matérias-primas, e outros
se dão em distintas esferas que se inter-relacionam.
No primeiro caso, temos o exemplo do mecanismo de transferência de
valor que opera pela obtenção de um lucro extraordinário por parte das nações
que ostentam maior produtividade e menores preços de produção, através
de mecanismo semelhante a como os capitais individuais mais produtivos
podem se apropriar de um mais-valor extraordinário em um mesmo setor
de produção105. Esse mecanismo, porém, pressupõe que as nações produzam
produtos semelhantes e disputem no mercado internacional, seja produzindo
matérias-primas, seja produzindo manufaturados.106
Quanto ao segundo caso, ilustram-se através dele a transgressão da
lei da troca de equivalentes, separando economias dependentes e economias
desenvolvidas. Segundo Marini (2011a, p. 145), nessa situação:

104
Para esclarecer a diferença entre a essência e a aparência das relações capitalistas, recomenda-
se a obra em dois volumes de Reinaldo Carcanholo: Capital: essência e aparência (2011,
2013), publicada pela editora Expressão Popular.
105
No caso, Marx explica esse mecanismo no capítulo 10 d’O Capital I, através da diferença
entre custos de produção envolvendo capitais mais e menos produtivos, e a possibilidade
dos primeiros em vender seus produtos abaixo do valor de mercado.
106
Ver mais sobre isso em CARCANHOLO, Marcelo Dias. O atual resgate crítico da Teoria
Marxista da Dependência. Em: Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p.
191-205, jan./abr. 2013a.
192 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

O mero fato de que umas produzam bens que as outras não produzem, ou não o
fazem com a mesma facilidade, permite que as primeiras iludam a lei do valor,
isto é, vendam seus produtos a preços superiores a seu valor, configurando assim
uma troca desigual. Isso implica que as nações desfavorecidas devem ceder
gratuitamente parte do valor que produzem, e que essa cessão ou transferência
seja acentuada em favor daquele país que lhes venda mercadorias a um preço
de produção mais baixo, em virtude de sua maior produtividade.

Dessa forma, temos o mecanismo do monopólio agindo isoladamente


como mecanismo de transferência de valor; e o mecanismo do monopólio
aliado à maior produtividade de certas empresas, fazendo com que a
transferência de valor ocorra duplamente. Segundo M. Carcanholo (2013a,
2013b), no entanto, Marini estaria, na verdade, se referindo a três mecanismos.
O primeiro, que diz respeito à maior produtividade das empresas, estaria em
maior nível de abstração e é explicado a partir da obtenção de um mais-valor
extraordinário. Concentrando-se tais empresas nos países centrais, os países
dependentes acabam por transferir valor para estes últimos.
O mecanismo de monopólio, por sua vez, num menor nível de
abstração, se dividiria em dois. Num primeiro, transferiria valor a partir
da obtenção de um lucro extraordinário por parte dos setores com maior
produtividade pertencentes aos países centrais. Esse lucro extraordinário está
calcado na concepção de Marx desenvolvida nos capítulos 9 e 10 d’O Capital
III, que tem nas trocas mercantis e na diferença da composição orgânica
entre setores da produção o fundamento deste lucro. Temos, então, para os
setores de maior produtividade, preços de produção de mercado acima dos
seus valores de mercado, permitindo com que eles se apropriem de um valor
maior do que o que efetivamente produziram. Como os setores de menor
produtividade concentram-se nas economias dependentes, enquanto os de
maior produtividade ficam nas economias centrais, ocorre transferência de
(mais-) valor, daquelas para essas últimas, que lhes propicia a obtenção de um
lucro extraordinário.107

Podemos obter a síntese do fundamento destes dois primeiros mecanismos de transferência


107

de valor na seguinte fala de Marx ([1894] 2017, p. 233): “A produtividade particular do


trabalho numa esfera particular ou num negócio particular no interior dessa esfera interessa
unicamente aos capitalistas que deles participam diretamente, na medida em que possibilita
a essa esfera particular a obtenção de um lucro extraordinário com relação ao capital total
ou ao capitalista individual um lucro extraordinário com relação a sua esfera”.
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 193

Num último nível de abstração (num nível mais concreto), o mecanismo


de monopólio aparece como simplesmente sendo a venda de mercadorias
com preços de mercado acima de seus preços de produção por parte das
empresas que detêm o monopólio de certos produtos, o que configura um
terceiro mecanismo de transferência de valor das nações dependentes àquelas
que detêm o monopólio de produtos manufaturados, dando-se isso na forma
de um lucro efetivo acima do médio novamente favorável a estas últimas.
É como forma de compensar tais mecanismos de transferência de
valor que, como nos esclarece a obra de Marini, a superexploração da força de
trabalho, nos seus diversos mecanismos, comparece como elemento central,
estruturante e definidor da dinâmica de desenvolvimento do capitalismo
dependente. Tal é a forma que as classes dominantes da economia dependente,
tendo de aceitar a perda de mais-valor para o exterior por meio das relações
de mercado como fato inevitável, buscam a solução do problema no âmbito
da produção interna.
Como já mencionamos, a exposição de Marini (2011a) desta categoria
redunda em apresentá-la como a junção de três mecanismos que, em síntese,
fazem com que a força de trabalho seja remunerada abaixo de seu valor, o
que significa que, para manter o afã por mais-valor desmedido108 das classes
dominantes dos territórios dependentes, a classe trabalhadora dos países
dependentes deve ter um múltiplo do tempo de suas vidas dedicado ao trabalho,
em comparação ao que é dedicado pela classe trabalhadora das economias
centrais109. Situação essa, por sua vez, reforçada pela menor produtividade
vigente nas economias dependentes.
Assim, podemos concluir, nesse primeiro momento, que a obra de
Marini analisa, antes de tudo, “[…] em que condições a América Latina havia-
se integrado ao mercado mundial e como essa integração: a) funcionara para a

108
Desmedido porque pautado no quanto as classes dominantes dos países centrais se
apropriam.
109
Os três mecanismos em questão, no entanto, não impedem que não haja tantos outros,
a depender da conformação específica do capitalismo em cada economia dependente,
como é o caso de um quarto mecanismo (não mencionado no Dialética da Dependência)
em que sobe o valor da força de trabalho, entretanto, o salário não acompanha tal subida.
Em toda pesquisa empírica e histórico-concreta de economias dependentes é necessário,
portanto, que se esteja aberto à possibilidade da existência de outros tantos mecanismos que
impliquem superexploração da força de trabalho.
194 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

economia capitalista mundial e b) alterara a economia latino-americana”110. Já


nesse período, a economia exportadora aparece como tendo as transferências
de valor não como uma anomalia ou estorvo, mas sim, como diz Marini, uma
“consequência da legalidade própria do mercado mundial e como um acicate
ao desenvolvimento da produção capitalista latino-americana, sobre a base
de duas premissas: a abundância de recursos naturais e superexploração do
trabalho (que pressupunha abundância de mão de obra)”111.

3.1 O ciclo do capital na economia exportadora e o padrão agromineiro


exportador a que está atrelado

Tendo em vista a captação da lógica da economia exportadora e de


seu padrão agromineiro exportador à luz do seu ciclo, com base em Marini
([1973] 2011a), é preciso estabelecer a diferença que há entre tal ciclo e o
ciclo do capital nas economias industriais centrais. Para isso, é preciso deixar
clara a contradição do duplo caráter do trabalho que confere ao trabalhador,
concomitantemente, a posição de produtor e consumidor na economia,
posto que tal contradição se resolve na economia industrial central de forma
diferente da que se dá na economia exportadora dependente.
Assim, enquanto naquela primeira, a fratura entre produção e circulação
originada do duplo caráter do trabalho é remediada com o barateamento das
mercadorias destinadas aos trabalhadores112, nesta última, tal artifício não se
verifica devido a ela estar voltada para satisfazer o mercado externo e, com
isso, o consumo provindo de sua classe trabalhadora não ser essencial para a
realização das mercadorias aí produzidas.
Isso, por sua vez, impede a existência de possíveis barreiras na esfera da
circulação dessa economia ao uso indiscriminado da superexploração da força
de trabalho, no que colaboram fatores como a quantidade abundante de mão
de obra na região113. Nesse sentido, diz Marini (2011a, p. 157) que:

110
Cf. Marini (2011b, p. 86).
111
Cf. Marini (2011b, p. 86-87).
112
Fato este possibilitado pelo aumento da capacidade produtiva nessa economia que se orienta
pela busca do mais-valor relativo.
113
Quantidade esta propiciada, segundo Marini (2011a), dentre outras fontes, pela oferta de
mão de obra indígena do México e dos fluxos migratórios europeus, que eram produtos do
avançar tecnológico desse continente até o início do século XX.
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 195

A economia exportadora é, portanto, algo mais que o produto de uma


economia internacional fundada na especialização produtiva: é uma formação
social baseada no modo capitalista de produção, que acentua até o limite as
contradições que lhe são próprias. Ao fazê-lo, configura de maneira específica
as relações de exploração em que se baseia e cria um ciclo de capital que tende
a reproduzir em escala ampliada à dependência em que se encontra frente à
economia internacional.114

Como efeito de tal “maneira específica” das relações de exploração, a


economia dependente exportadora apresenta uma cisão no mercado interno,
no qual as classes altas satisfazem-se via produtos importados sofisticados,
possibilitados pela soma de lucros que acumulavam, frutos da superexploração;
enquanto as classes exploradas devem contentar-se com a produção interna
restringida e que não remunera sua força de trabalho pelo seu valor.115
Temos então que, em trabalhos como Dialética da Dependência (1973)
e O ciclo do capital na economia dependente (1979), em essência, como bem
fala Osorio, fica estabelecido que “entre centros e periferias não apenas existe
uma diferença de magnitude de alguns processos – como acontece com a
pobreza (mais na periferia do que no centro) –, mas há também, e isso é mais
importante, uma diferença qualitativa”. Essa diferença qualitativa se refere a
que, no capitalismo central, o padrão de reprodução do capital, em linhas gerais,
incorporou “massiva e ativamente sua população assalariada ao consumo,
integrando-a ao mercado interno”; enquanto no capitalismo dependente ou
periférico o mercado interno se fez um “elemento absolutamente secundário
em sua reprodução”116.

114
O que importa assinalar, portanto, é que a economia dependente, desde então, não segue
o percurso comum clássico do desenvolvimento capitalista da economia central. Na
situação de dependência, a fórmula de Gunder Frank (1965) do “desenvolvimento do
subdesenvolvimento” ganha amplo sentido, podendo-se dizer, para atualização dessa
expressão, que temos um desenvolvimento do capitalismo peculiar em economias nessa
situação. Um desenvolvimento, nesse sentido, dependente.
115
Nesse sentido, diz Marini (2011a, p. 158) que “A harmonia que se estabelece, no nível do
mercado mundial, entre a exploração de matérias-primas e alimentos, por parte da América
Latina, e a importação de bens de consumo manufaturados europeus, encobre a dilaceração
da economia latino-americana, expressa pela cisão do consumo individual total em duas
esferas contrapostas”.
116
OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização, op. cit., p. 184-185.
196 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

Com a industrialização, diferentemente do que era esperado, esta


situação persiste, e as economias dependentes, não deixando de se voltarem
para o âmbito externo, estabelecem como prioridade as camadas sociais
internas ligadas ao capital. A partir de então, havendo ficado para trás o tempo
em que tinha sentido para o sistema mundial capitalista o papel que a América
Latina desempenhara como “região produtora de metais preciosos, matérias-
primas e alimentos”, o que caracterizou a sua etapa colonial e o padrão
agromineiro exportador; agora, com a “crise do mercado mundial derivada da
longa etapa que vai da Primeira Guerra Mundial à Crise de 1929 e à Segunda
Guerra Mundial”, ganha maior sentido a existência de um padrão industrial
na América Latina117. Ambos os padrões, no entanto, conferiram centralidade
à superexploração da força de trabalho em sua reprodução. Vejamos, no
entanto, os fundamentos lógicos daquele último pela exposição de seu ciclo.

4 O PADRÃO INDUSTRIAL, SEU CICLO E A PERMANÊNCIA DA


SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO

Em Marini (2011a), a industrialização de economias dependentes


se mostra, substancialmente, produto da interrupção do antigo ciclo do
capital que caracterizava essas economias em sua fase exportadora e que se
limitava a refletir mais diretamente o ciclo do capital da economia mundial.
No novo momento, se engendra um novo ciclo, modificado e com relativo
grau de autonomia, que impacta na produção e, em seguida, volta a alterar
a circulação, conformando um padrão novo de reprodução do capital na
economia dependente118. O importante a assinalar, entretanto, é que esse novo

117
Ibid., p. 79. Ver, por sua vez, em Bambirra (2013) a explicação de como o processo de
industrialização na América Latina se valeu grandemente dos eventos de âmbito mundial aí
citados, não se podendo pensar tal processo sem eles.
118
A perspectiva dos ciclos econômicos latino-americanos na análise do processo histórico de
conformação das economias dependentes é, pioneiramente, introduzida por Theotônio Dos
Santos em sua obra O novo caráter da dependência (1967). Ali, se destaca que os ciclos
econômicos das economias dependentes, que antes refletiam os ciclos da economia mundial
e seus efeitos sobre a produção agrícola e mineira, após a interiorização de uma indústria
de maquinarias com dinâmica tecnológica própria, passam a ter um aspecto próprio
relativamente autônomo que lhes permitem possuir modalidades endógenas próprias que
duram de 4 a 10 anos.
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 197

padrão de reprodução do capital continua a se pautar na superexploração da


força de trabalho, significando que a passagem da economia exportadora para
a economia industrializada, nesse caso, não faz com que se abandone seu
caráter dependente, mesmo que a indústria siga agora como seu principal eixo
de acumulação.119
Dois pontos aqui merecem destaque para a compreensão do padrão
industrial na economia dependente: i) a separação que menciona Marini
(2011a) entre esfera alta e esfera baixa da circulação; ii) e os fatores que
atuam na economia capitalista clássica que, contrapondo-se a essa separação,
a limitam e fazem com que o seu processo de industrialização difira do da
economia dependente.
No que diz respeito à separação entre baixa e alta esfera, justamente por
na economia capitalista clássica ela estar calcada no aumento da capacidade
produtiva, este fenômeno se faz possível de ser contornável, cabendo pontuar
que ele primeiro se efetiva porque o aumento da capacidade produtiva é
produto do aumento do mais-valor relativo que faz o valor da força do trabalho
baixar pelo barateamento dos seus meios de reprodução120.
Esse mecanismo, da feita que aumenta a taxa de mais-valor, aumenta o
consumo das classes altas que vivem da apropriação desse mais-valor. Ou seja,
no terreno da circulação, percebe-se um aumento da alta esfera de consumo
em contraste com a redução proporcional, em relação à apropriação do total
do valor produzido, das esferas mais baixas. Eis, então, que se expõe a fratura,
a que se refere Marini, entre as diferentes esferas da circulação do capital, ao
menos no que se refere à economia capitalista clássica.
Entretanto, a própria lógica desse mecanismo acaba por possibilitar o
contorno dessa contradição. Primeiramente, o fato de que o aumento da alta
esfera de consumo se realize com o barateamento dos meios de reprodução
da força de trabalho significa não precisar diminuir o consumo das classes

119
Tal situação implicou a necessidade do abandono das ilusões de que a industrialização
poderia converter os países “subdesenvolvidos” em “desenvolvidos”. Ilusões estas nutridas
pelas diversas correntes do pensamento desenvolvimentista que compunham desde a Cepal
até mesmo o PCB. Ver Dos Santos (2015).
120
A Produção do mais-valor relativo é o título da seção IV do Livro I d’O Capital, com seu
capítulo 10 revelando mais especificamente o significado da categoria mais-valor relativo
com que Marini (2011a) aí trabalha.
198 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

inferiores em termos absolutos, mas somente em termos relativos ao das classes


mais altas, indicando que a ligação entre essas duas esferas é distendida, mas
não se rompe. Em segundo lugar, ajuda na resolução das contradições geradas
por essa distensão a forma limitada com que se amplia o mercado mundial, no
qual se verifica certa dificuldade em comercializar bens de luxo ou supérfluos
entre nações industriais que competem no mercado internacional; e com
nações que têm deprimida a demanda por esses bens, já que possuem a renda
muito concentrada, fruto da superexploração da força de trabalho em seus
territórios. Tal limitação básica tem como resultado a necessidade de tornar
parte dos bens supérfluos (ou de luxo) das economias capitalistas centrais
em bens populares, resultando no aumento do salário real e na possibilidade
de os trabalhadores passarem a consumir maior soma e diversidade de bens
manufaturados.
Entretanto, no que se refere à economia dependente, a fratura das suas
esferas de consumo prossegue a partir da fratura que já se tinha engendrada
pelo ciclo do capital da economia exportadora. Nesse sentido, a industrialização
da América Latina, como economia dependente, se efetiva, diferentemente,
não preocupada com o consumo de seus trabalhadores, mas preocupada em
atender uma demanda existente provinda das classes altas que, no período do
entreguerras, se viu impossibilitada de importar como antes.
Aproveitando-se, então, das altas rendas acumuladas pela economia
exportadora, a industrialização é capaz, por um bom tempo, de contar
com uma demanda cativa que dispensa a preocupação com os salários dos
trabalhadores, posto que sua produção é independente desses salários de
dois modos: i) pelo fato de que, ao não compor o consumo do trabalhador, o
valor dessa produção não determina o valor da força de trabalho (v) e, logo,
não determina também a taxa de mais-valor relacionada a este último (m/v),
desestimulando o capitalista de investir na produtividade de trabalho com o
fim de reduzir o valor dos bens que compõem essa produção, sendo-lhe mais
atrativo seguir com o uso dos mecanismos de superexploração; ii) a produção
faz-se independente dos salários e conduz à superexploração, novamente,
devido a este mecanismo não se constituir em empecilho a sua circulação, posto
que a produção se destina às altas esferas de consumo e não aos trabalhadores.
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 199

Diante disso, podemos ver que o ciclo do capital na economia dependente


industrializada desestimula a mudança qualitativa desta economia com base na
maior capacidade produtiva do trabalho. Diferentemente do que se verificara
nas economias industrializadas centrais, o processo de industrialização
dependente, amparado na superexploração da força de trabalho, impedia
a superação do “subdesenvolvimento”. A industrialização, portanto, não se
mostrava como superação das mazelas da economia dependente, mas como
aprofundamento destas.
No momento, porém, que a oferta se iguala à demanda nas economias
dependentes, tem-se a oportunidade, tal qual nas economias capitalistas centrais,
de generalização do consumo de manufaturas para as classes populares121. No
entanto, essa opção foi adiada até o limite em que não se precisasse mais dela,
situação para que colaborou: i) a posição monopolista dos capitalistas que
aqui atuavam e que lhes permitia operar sem buscar novos mercados, fazendo
uso simplesmente do aumento arbitrário dos preços de mercado acima de
seus preços de produção; ii) os mecanismos de superexploração da força de
trabalho levados até o limite, para o que, como já vimos, o modo de circulação
do capital peculiar dessa economia colaborava ao não ter o trabalhador como
elemento de grande importância para sua realização.
Esgotadas essas alternativas, sobravam duas saídas para a economia
dependente ante a igualdade da oferta e da demanda em seus domínios: i) a
ampliação do consumo das camadas médias, provindo aí do mais-valor não
acumulado; ii) e o aumento da produtividade do trabalho com o fim de baratear
suas mercadorias e atender a novos mercados. Esse segundo mecanismo122
é, no entanto, neutralizado pelo primeiro, posto que o funcionamento deste
supunha uma compressão do nível salarial dos trabalhadores. Atravancada,
assim, a passagem das economias industriais dependentes para a acumulação
capitalista com base no mais-valor relativo, a necessidade que se requeria do

121
Cabe lembrar que, nas economias centrais, esse momento havia significado um marco, dada
a necessidade de novos mercados, o que levou a concentração por parte dos capitalistas em
obter lucros a partir do aumento do mais-valor relativo, logo, do aumento da capacidade
produtiva.
122
Se este atuasse sozinho, haveria a possibilidade de mudança qualitativa dessa economia
da feita que passasse a incorporar os trabalhadores à esfera de consumo de produtos
manufaturados.
200 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

aumento da produtividade a fim de baratear os produtos passa a ser satisfeita


por outro recurso: o da tecnologia estrangeira. Com ele, se dispensará a
necessidade de se generalizar o consumo de manufaturados à grande massa
da população e se elevará a dependência a um novo grau de complexidade,
denominada por Marini como o novo anel da espiral.

5 O CICLO DO CAPITAL NA ECONOMIA DEPENDENTE DIANTE DO


NOVO ANEL DA ESPIRAL

Cabe agora tecermos algumas palavras sobre essa nova fase da


dependência, denominada por Marini como o novo anel da espiral, e do
impacto que, com este, se tem no ciclo do capital da economia dependente,
sem deixar de conferir centralidade à presença da superexploração da força de
trabalho na região.
Como já antecipado na seção anterior, essa nova fase é produto da
interferência direta da tecnologia estrangeira nas economias latino-americanas
como forma de aumentar a capacidade produtiva do trabalho num momento
em que, nessas economias, a demanda igualava-se à oferta e surgia a necessidade
de popularizar o consumo das manufaturas para que a economia continuasse
ampliando-se. Os efeitos disso sobre o ciclo do capital e sobre a produção que
se calca na superexploração constituem a transição para o padrão vigente na
economia dependente até então.123
Tal recorrência ao capital estrangeiro, por sua vez, na impossibilidade
de se sustentar na mera troca comercial, se dará com base no financiamento
de investimentos diretos na indústria, facilitados pela grande concentração de
capital no exterior, fruto do reestabelecimento da economia mundial a partir
do pós-Segunda Guerra, e que procurava se reproduzir de alguma forma. Sua

Mencionamos aqui de passagem que, na periodização dos padrões de reprodução do capital


123

na América Latina feita por Osorio (2012), o chamado padrão industrial possui duas fases:
uma que se inicia na segunda metade dos anos 1930, internalizada e autônoma, que vai
até os anos 1940; e outra que constitui a de integração ao capital estrangeiro, iniciada nos
anos de 1950 e que se prolonga até o momento de transição (de meados dos anos 1970 até
início dos anos de 1980) para o padrão de exportador de especialização produtiva vigente
atualmente.
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 201

maior concentração encontrava-se nos Estados Unidos, deixando a Europa e


o Japão para trás em termos de produção de capital, sobretudo no que diz
respeito a máquinas e equipamentos.
Com a introdução nas economias dependentes desse capital estrangeiro
acumulado, dada sua constituição ser de um novo padrão tecnológico, tem-
se uma brutal economia de força de trabalho, que diminui a quantidade de
trabalhadores empregados na esfera produtiva e, em contrapartida, aumenta
as camadas sociais não produtivas124.
Somado a isso, Marini (2011a) destaca que, especificamente na
economia dependente, o progresso técnico intensifica o ritmo de trabalho do
trabalhador, eleva sua produtividade e, simultaneamente, sustenta a tendência
a remunerá-lo abaixo do valor de sua força de trabalho, ou seja, a continuar
superexplorando-o. Isso é possível porque os aumentos de produtividade
aí se concentram em bens que, mesmo já convertidos em bens de consumo
popular nas economias capitalistas centrais, continuam a serem destinados
exclusivamente para as esferas altas da circulação, não constituindo bens
que compõem o valor da força de trabalho. Logo, o aumento dos lucros
nessa economia se pauta não na elevação da taxa de mais-valor, para o qual a
diminuição do valor da força de trabalho é fundamental, mas na ampliação da
massa de mais-valor, no que o aumento da superexploração do trabalhador se
faz indispensável.
Eis que, diante dessa situação, o ciclo do capital na economia
dependente se vê com problemas de realizar-se internamente, posto que uma
massa cada vez maior de produtos, originária dos ganhos de produtividade
possibilitados pelo capital estrangeiro, não se volta para a grande massa
de trabalhadores que o produzem por serem bens supérfluos. A saída que
se apresentou para isso, segundo Marini (2011a), foi a intervenção do
Estado ampliando o aparato burocrático, as subvenções aos produtores
e o financiamento ao consumo supérfluo; assim como a intervenção em
mecanismos de inflação, com o propósito de transferir poder de compra da
esfera baixa para a esfera alta da circulação.
Portanto, em síntese, para Marini (2011a, p.170):

Como bem Marx (1867) já alertava sobre o sentido de ser do desenvolvimento tecnológico
124

numa sociedade, como a capitalista, que se fundamenta na exploração da força de trabalho.


202 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

A produção baseada na superexploração do trabalho voltou a engendrar


assim o modo de circulação que lhe corresponde, ao mesmo tempo em que
divorciava o aparato produtivo das necessidades de consumo das massas. A
estratificação desse aparato no que se costuma chamar “indústrias dinâmicas”
(setores produtores de bens supérfluos e de bens de capital que se destinam
principalmente para estes) e “indústrias tradicionais” está refletindo a
adequação da estrutura de produção à estrutura de circulação própria do
capitalismo dependente.

A contradição básica que esse processo engendra só é limitada pelos


limites da superexploração da força de trabalho que, agravando o problema da
realização do ciclo do capital, não permite que este seja de todo solucionado
pelos mecanismos de transferência de renda que se fizera em favor das classes
médias. Isso cria a necessidade da economia voltar-se para o estrangeiro,
reconstruindo a velha economia exportadora, mas agora sob a base de um
capital intensivo. Como diz Marini (2011a), “a exportação de manufaturas, tanto
de bens essenciais quanto de produtos supérfluos, converte-se então na tábua
de salvação de uma economia incapaz de superar os fatores desarticuladores
que a afligem”.

6 O CICLO DO CAPITAL, A SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE


TRABALHO E O PADRÃO DE REPRODUÇÃO DO CAPITAL NA
ECONOMIA DEPENDENTE

Na apresentação formal presente no Livro II d’O Capital, de Marx, da


qual parte Marini ([1979] 2012), o ciclo do capital tem sua exposição na forma
do ciclo do capital monetário: D-M… P… M’-D’. Aqui se expressa a ideia
de que o capital representa um processo ininterrupto de circulação que tem
na expansão de seu valor o objetivo central de seu movimento. Desse ponto
de vista, tal formulação, nas suas sucessivas repetições como ciclo, constitui
também o processo de circulação do capital. Este tem como essencial o fato
da totalidade do modo de produção capitalista ser reproduzida, além do fato
de subsumir em seu processo a relação social entre capitalista e trabalhador
que obtém mais-valor, e que já havia sido exposta no Livro I d’O Capital pela
fórmula do capital em geral D-M-D’.
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 203

Em Marini, temos a concepção teórica de como este ciclo se faz presente


na economia dependente no artigo O ciclo do capital na economia dependente
(1979). Aqui, no entanto, pressupõe-se que a economia dependente não é mais
aquela caracterizada como economia exportadora, na qual seu ciclo estava
subordinado à dinâmica externa. Diferentemente disso, se parte do pressuposto
de que a indústria já é o eixo central de acumulação da economia dependente,
onde já se verifica um ciclo relativamente “autônomo” do capital. Como bem
aponta o autor a respeito desse marco temporal, “[…] se conformou um setor
de produção para o mercado interno que assumiu progressivamente o papel
hegemônico na dinâmica econômica”.125
Nesse sentido, cabe relembrar que o ciclo do capital a que nos referimos
inicialmente pode ser tido como contendo três fases: circulação, produção e
circulação. Na primeira fase da circulação (D-M), que Marini ([1979] 2012)
chama de C1, se estuda o capital sob a forma dinheiro que se troca por meios
de produção (Mp) e força de trabalho (Ft). Em sua segunda fase (...P...), que
corresponde à acumulação e à produção, o capital já se encontra na forma de
meios de produção e força de trabalho para realizar seu processo de valorização
por meio da exploração dessa força. Por fim, sua terceira fase (M’-D’), que é ao
mesmo tempo a segunda fase da circulação (ou C2), o capital já se encontra sob
a forma de mercadorias contendo seu valor inicial mais o mais-valor gerado
na fase da produção mediante a exploração, e precisa se realizar vendendo-se
e transformando-se na sua forma dinheiro, que representa uma magnitude
superior ao dinheiro investido no início do ciclo.
No trato teórico do ciclo do capital na economia dependente, feito por
Marini (2012), se expõe que esse ciclo sofre interferência direta e indireta do
Estado (através dos impostos, gastos e investimentos feitos por este), ao mesmo
tempo que articula-se diretamente com o exterior de maneira subordinada.
Nesse sentido, o capital estrangeiro está fora do controle da economia
dependente e dele esta economia se faz dependente no estabelecimento de sua
dinâmica de acumulação.
Desde a primeira fase da circulação (C1), através dos investimentos
diretos e indiretos feitos, esse capital se internaliza e se coloca como fator direto

MARINI, R. M. [1979]. O ciclo do capital na economia dependente, op. cit., p. 21.


125
204 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

do ciclo do capital na economia dependente. Parte dele compra meios de


produção e força de trabalho do próprio país dependente, mas outra parte sai
de imediato desta nação na medida que compra meios de produção do exterior.
Isso não acontece apenas na economia dependente, mas nela ocorre de forma
mais aguda, ao mesmo tempo em que responde, segundo Marini (2012, p. 27),
“[…] à própria estrutura de seu processo histórico de acumulação de capital”.
Como resultado de tal situação, a fase da acumulação e produção deste
tipo de economia segue grandemente determinada por esse capital estrangeiro,
conduzindo-a aos processos de concentração e/ou centralização, que resultam
na monopolização da economia dependente. Isso porque, da feita que adentra
o território dependente, a tecnologia mais sofisticada se dirige à empresa mais
bem alinhada com o capital externo (ou mesmo pertencente a ele), fazendo
com que os custos de produção dessa empresa baixem para além dos custos
de produção médio dessa economia, garantindo-lhe um lucro extraordinário.
Resta, diante dessa situação, às empresas pequenas e médias da
economia dependente recorrerem à superexploração da força de trabalho para
compensar a perda de mais-valor que aí sofrem. No entanto, o achatamento da
massa salarial que daí advém possibilita que se pague menores remunerações
à força de trabalho por parte dos setores monopolistas também, o que acaba
por, novamente, favorecê-los tanto na remuneração de seus funcionários,
quanto no fato de lidarem com custos menores de insumos e matérias-primas
oriundos da baixa salarial. A posição dos setores monopolistas em nada é
afetada, portanto. Ao contrário do que se poderia esperar, ela é fortalecida.
É nesse sentido que a análise do ciclo do capital na economia dependente
não pode prescindir, tal como nos aponta Osorio (2012), do processo de
compra e venda da força de trabalho (D-Ft), no que se destaca a diferença entre
o valor diário e o valor total dela126. Para o nível de análise da categoria padrão

O valor diário, naturalmente, é aquele montante diariamente necessário ao trabalhador para


126

que reproduza a si e a sua família como ofertantes de força de trabalho no mercado. O valor
total, em contrapartida, deve levar em conta o tempo de vida útil do trabalhador, ou seja,
o total de dias em que o trabalhador vende a mercadoria força de trabalho no mercado em
condições normais de produção, além do tempo em que ele estará aposentado e não poderá
mais fazer isso. Nesse sentido, o valor total determina o valor diário da mercadoria força de
trabalho, posto que este último está pautado no tempo de vida médio do trabalhador, assim
como no seu desgaste médio.
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 205

de reprodução do capital, ganham destaque a historicidade e particularidade


com que tal processo se dá em cada lugar e momento histórico em específico,
nos autorizando a falar em um padrão de reprodução do capital na economia
dependente caracterizado por diferentes mecanismos de violação do valor da
força de trabalho que conformam sua superexploração.127
Desse ponto de vista, diz Osorio (2012, p. 51) que “a ideia de remunerar a
força de trabalho por seu valor não pode ser reduzida a um assunto puramente
salarial”. Isso porque “O trabalhador deve encontrar o conjunto de condições
indispensáveis para produzir e reproduzir sua força de trabalho, e dentro delas
o salário é importante, mas não é o único elemento”. Frise-se, por exemplo, o
fato de não ter salário que pague as horas de descanso que o trabalhador deve
ter para reproduzir sua força de trabalho em condições normais.
Depois de concluída a análise da primeira fase da circulação, é preciso
partir para a análise da fase do capital produtivo (…P…). Aqui, para a apreensão
do padrão de reprodução do capital na economia dependente, ressaltam-se
as formas de que o capital se utiliza para aumentar a exploração da força de
trabalho no próprio processo de produção, como: o prolongamento da jornada
de trabalho como meio de aumentar mais-valia absoluta, até os limites físico-
mentais do trabalhador evidenciados, comumente, nos sucessivos acidentes
de trabalho que este sofre; o incremento da produtividade do trabalho, que
rebaixa o valor da força de trabalho por meio do investimento em tecnologia
e organização da produção, capaz de aumentar o montante de valor e mais-
valor produzido em um mesmo período de tempo, isto é, em uma mesma
jornada de trabalho128; e a intensificação do trabalho decorrente, geralmente,
do incremento de produtividade, que pode ser sintetizada como a otimização
do tempo de trabalho feita com fins capitalísticos de valorização.
Mais especificamente, nas “atuais condições de mundialização”129,

127
Os mecanismos aqui já foram citados e encontram-se mais bem desdobrados no nível de
abstração que pede a categoria padrão de reprodução do capital em Osorio (2012).
128
Como vimos, este mecanismo é mais difícil de se suceder na economia dependente, devido
às barreiras do monopólio tecnológico impostas pelas economias centrais.
129
Condições estas caracterizadas por “revoluções na microeletrônica, que multiplicam e
aceleram as comunicações, redução nos preços dos transportes de mercadorias e um novo
estágio do capital financeiro” que, por sua vez, propiciam “integrações mais intensas do
mercado mundial, […] novas possibilidades de segmentação dos processos produtivos,
de relocalização de indústrias e serviços, bem como uma elevada mobilidade do capital”
206 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

como diz Osorio (2012), o prolongamento da jornada de trabalho, ou seja,


o expediente da obtenção de mais-valor absoluto passa a constituir um
mecanismo regular das economias dependentes junto a salários muito
inferiores ao valor da força de trabalho130. Tendo como premissa altas taxas de
desemprego impulsionadas justamente pelo aumento da jornada de trabalho
– que dispensa força de trabalho do processo de produção –, os salários nessas
economias se mantêm em baixa ajudando a constituir os mecanismos que
geram o fenômeno da superexploração da força de trabalho.131
Por fim, na segunda fase da circulação (M’-D’), na chamada realização
das mercadorias na economia dependente, a superexploração da força de
trabalho generalizada reduz a capacidade de consumo dos trabalhadores,
dificultando tal fase do ciclo. Também uma parte dos lucros/mais-valor é
transferida para o exterior, não atuando na realização das mercadorias nas
economias dependentes, o que também reduz o mercado interno e dificulta,
mais uma vez, a execução dessa fase. Assim, a parte do mais-valor que fica
no país se divide em duas partes. Uma se transforma em investimento/
acumulação; e a outra se destina a gastos improdutivos (consumo individual
dos capitalistas e setores de classes vinculados a eles).
Resta, com essa situação, que a estrutura do consumo individual reflita
a distribuição de renda (produto do mais-valor não acumulado e do capital
variável). Com a superexploração da força de trabalho ocorre uma elevação

(OSORIO, 2012, p. 79). Para ver em mais detalhes as características da mundialização, cf.
OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização, op. cit., p. 169-173.
130
O que não significa, como já pontuamos, que as economias dependentes não possam
conviver com aumento de produtividade e inclusive com a produção de mais-valor relativo
ao mesmo tempo em que fazem uso regular da superexploração. Como Osorio (2012, p. 57)
mesmo sinaliza: “O capitalismo [...] não existe para oferecer melhores condições de vida.
Seu objetivo é a valorização, fazendo dos novos avanços na tecnologia e na organização do
trabalho formas não de liberação, mas de maior submissão e exploração”. A isso se soma o
expediente da maior intensidade do trabalho que não deixa de constituir um mecanismo
que pode ser usado para violar o valor da força de trabalho, ajudando a compor o fenômeno
da superexploração.
131
Tal situação também sofre contribuição direta da introdução do capital estrangeiro que
se insere na economia dependente sempre em busca de lucros extraordinários. Ao fazer
isso, como fora projetado para uma realidade exterior, costuma desempregar trabalhadores
em massa, aumentando o exército industrial de reserva e aprofundando as mazelas da
economia dependente, gerando uma situação favorável para superexplorar mais ainda os
trabalhadores.
AGENDA DE DEBATES E DESAFIOS TEÓRICOS 207

do mais-valor em relação ao salário. Em função disso, a distribuição de renda


se mostra enormemente concentrada. Marini (2012) então conclui que o
setor dinâmico da economia dependente se constitui por aqueles voltados a
satisfazer o consumo dos que têm rendimentos decorrentes de mais-valor não
acumulado, lucros e proventos. Nesses termos, a estrutura de produção tende
a voltar-se para este setor, secundarizando ainda mais a maior parcela dos
trabalhadores, expondo uma realidade em que a produção da economia está
grandemente dissociada do consumo básico de sua população.132
A dificuldade de realização das mercadorias daí advinda, por sua vez,
obriga a economia dependente a buscar tal realização no exterior, voltando-a
para o mercado mundial. Com isso, segundo Marini (2012, p. 35), “se fecha o
círculo da dependência do ciclo do capital com relação ao exterior”, e reafirma
o velho caráter exportador com que essa economia nascera, o que nos dá o
chamado padrão exportador de especialização produtiva133.
Conclui-se, portanto, que entender o padrão de reprodução do capital
na economia dependente implica assumir a superexploração da força de
trabalho como elemento central. O que, por sua vez, só se faz possível de ser
feito com uma perspectiva integradora que perpassa pela consideração do
ciclo do capital na economia dependente em sua totalidade.
Como diz Marini (2012, p. 35), “é, pois, o conjunto das fases consideradas
que nos permite entender o ciclo do capital com as características particulares
que assume na economia dependente”. E nessa tarefa, a categoria de padrão
de reprodução do capital, ao abarcar o modo como a lei do valor mundializada
se conforma em espaço e tempo particular, junto à categoria superexploração
da força de trabalho, que confere qualidade especial à contradição capital-
trabalho no seio do capitalismo dependente, se fazem cruciais.

132
A este fenômeno é que Marini se refere quando aponta o divórcio da estrutura de produção
da necessidade de consumo do consumo das massas na economia dependente.
133
Tal padrão, segundo Osorio (2012, p. 85), é caracterizado “pelo regresso a produções
seletivas, seja de bens secundários e/ou primários, seja de relocalização de segmentos
produtivos, novas organizações da produção, em geral qualificadas como ‘toyotismo’,
flexibilidade laboral e precariedade, economias voltadas à exportação, drásticas reduções e
segmentação do mercado interno, fortes polarizações sociais, aumento da exploração e da
superexploração e níveis elevados de pobreza e indigência”.
208 JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE • (Org.)

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao fim deste trabalho crendo termos deixado clara a razão


de o fenômeno da superexploração da força de trabalho assumir um lugar
central no padrão de reprodução do capital da economia dependente latino-
americana, não somente hoje, mas desde sua plena integração à DIT. Fizemos
isso a partir da exposição da descoberta da Teoria Marxista da Dependência
de como as leis gerais do modo de produção capitalista, na forma de uma lei do
valor mundializada, aqui se conformam de modo particular, originando uma
dialética da dependência, que se expressa na configuração especial dos ciclos
do capital na economia dependente e nos seus distintos padrões de reprodução
do capital que se sucedem ao longo da história.
Temos assim, na base de formação da economia dependente, uma
economia exportadora que nos dá o padrão agromineiro exportador; um
padrão industrial, com a industrialização dessa economia; e, com o fenômeno
da mundialização do capital mais recentemente, um padrão exportador de
especialização produtiva. Todos esses padrões têm em comum, conforme
vimos neste trabalho, o fato de serem pautados pela superexploração da força de
trabalho, dado que todos aí se referem a padrões de reprodução da economia
dependente, cuja realidade incômoda inclui tentarem constantemente
compensar as transferências de valor que sofrem em benefício da dinâmica de
acumulação dos países imperialistas centrais.
O reconhecimento dessa realidade, no entanto, só foi possível pelo
método materialista histórico e dialético legado por Marx e Engels; e pela
Teoria Marxista da Dependência, que, através da aplicação deste método,
descobriu as legalidades próprias do capitalismo dependente, nos revelando
como, tendencialmente, a lei do valor opera na periferia do sistema mundial
capitalista. Portanto, consideramos imprescindível a apropriação desse acervo
teórico para que, tomando conhecimento de nossa situação e defronte das leis
do capitalismo dependente vigentes em nossos territórios, possamos forjar as
armas que garantam nossa emancipação futura.
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