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OCTAVIO IA.NNI
—- autor de
Estado e Capitalism o,
Industrialização e D esenvolvim ento Social no
Brasil
e Raças e Classes Sociais no Brasil —
M a i s u m L a n ç a m e n t o d e C a t e g o r i a da
C I V I L I Z A Ç Ã O B R A S I L E I R A
RETRATOS DO BRASIL
Volume 70
OCTAVIO IANNI
O Colapso do Populismo
no Brasil
civilização
brasileira
Exemplar | | .”) 2 *
Desenho de capa:
M a r iu s L a u r it z e n B ern
1968
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
“Não é o caso inteirado em si,
mas a s ô b r e-coisa, a outra-
coisa” .
Jo À o G u im a r ã e s R osa.
à memória de
A ttilio
Vitorio
Atilio
Arturo
Antonio
meus irmãos.
índice
Prefácio 1
Primeira Parte — P o l ít ic a e D e se n v o l v im e n t o
Conclusão 217
Obras Citadas 227
índice dos Quadros
X IV . Sindicatos rurais (1 9 6 3 ) 92
1
sento tanto as hipótesbs principais como a descrição do con
junto dos acontecimentos políticos e econômicos, tomando-os a
partir da Guerra Mundial de 1914-18. Dêsse modo, examino
as mais importantes estratégias políticas de organização das
atividades produtivas. Na segunda parte, faço a apresentação
dos acontecimentos e ideologias desenvolvidos e debatidos no
período posterior a 1930; em especial entre 1945 e 1964.
Descrevo a natureza do nacionalismo, bem como o modo pelo
qual êste se combina com o socialismo reformista. A discussão
dos problemas políticos e econômicos dêsse período conduzem
a uma análise das razões do colapso do populismo, como
“modêlo” político de desenvolvimento. E na terceira parte,
examino o Golpe de Estado de 1964, tanto em sua estrutura
como em seus desdobramentos posteriores. Em particular,
analiso a estratégia política de organização das atividades pro
dutivas, configurada após a crise simultânea do populismo
e do socialismo reformista, como políticas de desenvolvimento.
Nas conclusões não apresento senão algumas considera
ções finais. Duas razões me levam a esta decisão. Primeiro,
procurei pôr em evidência, sempre que necessário, as impli
cações teóricas e práticas dos problemas analisados. Segundo,
a parte mais importante das conclusões é de natureza prática,
isto é, propriamente política; e estas podem ser imediatamente
compreendidas pelo leitor, ao longo da o b ra.
Esta obra foi escrita entre julho de 1966 e outubro de
1967. As reflexões fundamentais, bem como os dados aqui
reunidos, serviram de base para um curso sôbre a “crise bra
sileira”, nos cursos de pós-graduação promovidos pelo Insti-
tute of Latin American Studies, da Columbia University, em
New York, no período de fevereiro-maio de 1967. Por êsse
motivo, o exame das questões mais importantes está apoiado
em documentação exaustiva. Aliás, creio que todos os leitores
poderão beneficiar-se com a leitura de alguns documentos bá
sicos para a interpretação da realidade brasileira. Eu preferi
fazer com que algumas personalidades aparecessem segundo as
suas próprias palavras. Em muitas ocasiões, certos persona
gens exprimem de modo bastante claro as posições e atuações
dos grupos e classes sociais a que pertencem.
Seria impossível agradecer a todos aquêles que colabora
ram direta e indiretamente para a realização deste livro, Men-
2
ciono agora os meus amigos Gabriel Cohn, Sebastião Simões,
Charles Wagley, Emir Simão Sader e Constantino Ianni. A
Sra. Lília Guerra foi-me extremamente gentil, na preparação
dos originais. Quero também mencionar Éline Maria e Áurea
Maria, que já acompanharam de perto várias etapas do preparo
desta obra.
O c t a v io Ianni
3
O Sentido das Crises
8
armadas em direção diferente da tradicional; o aparecimento
de reivindicações de operários e setores sociais médios; o agra
vamento dos antagonismos nas camadas dominantes; a Guerra
Mundial de 1914-18; a crise do capitalismo mundial iniciada
com o crack de 1929; a Guerra Mundial de 1939-45; a substi
tuição da hegemonia da Inglaterra, da Alemanha e da França
pelos Estados Unidos da América do Norte; o aparecimento
da União Soviética (URSS), da China e de Cuba como nações
socialistas; a independência da índia e das nações da África;
o aparecimento do Egito e da Argélia, como nações indepen
dentes e líderes. É óbvio que êsses acontecimentos estão per
meados de marchas e contramarchas, realizados em agitações
revolucionárias e reformistas, bem como em golpes e contra
golpes. Tomando a referida época como um todo, no entanto,
é inegável que ela representa o período em que se realiza a
ruptura parcial e relativamente lenta das estruturas políticas e
econômicas internas e externas. Os desdobramentos e as ten
dências do desenvolvimento econômico, político e social bra
sileiro, bem como das crises que o acompanham, somente se
explicam pelo caráter e pelas condições da ruptura verificada
no período que medeia a Primeira Guerra Mundial e o Golpe
de Estado de 1964.
A época da transição para uma economia industrial no
Brasil, assinalando essa etapa crucial do desenvolvimento, pode
ser simbolizada pela política de massas, como padrão de orga
nização política e sustentação do nôvo estilo de poder. A po
lítica de massas — portanto, diferente da política de partidos
— é o fundamento da democracia populista, que se organizou
paulatinamente nas décadas que antecederam a mudança re
pentina ocorrida a partir do Golpe de Estado de l.° de abril
de 1964. Em consequência da nova composição do poder, ca
racterística do padrão getuliano de ação política, floresceram
as atividades políticas e culturais, criando-se uma cultura urba
na diferente e mais autênticamente nacional. Ao mesmo tem
po, desenvolveram-se contradições econômicas, políticas e so
ciais, criando-se as organizações políticas de esquerda.
A liquidação do padrão getuliano de desenvolvimento eco-
nômico-social iniciou-se no Govêrno de Juscelino Kubitschek
de Oliveira (1956-60), que associou de forma brilhante a po
lítica de massas e os compromissos crescentes com o capital
9
externo. Em conseqüência, instaurou-se, de modo agudo, o
antagonismo entre o padrão getuliano e nacionalista de desen
volvimento, por um lado, e o padrão de desenvolvimento asso
ciado e dependente, por outro. Portanto, é na época do Go
verno de Juscelino Kubitschek de Oliveira que se criam as
condições mais importantes para a futura liquidação do desen
volvimento nacionalista.
O desenvolvimento econômico-social no Brasil, baseado
no nacionalismo econômico, na luta por uma política externa
independente, na política de massas e, ao mesmo tempo, em
compromissos crescentes com o capitalismo internacional, foi
interrompido e conduzido para outra direção, por várias razões.
Em um plano econômico, o mecanismo básico de transição da
política de substituição de importações à política de associação
com capitais estrangeiros apoiou-se em processos tais como:
Primeiro, a deterioração das relações de intercâmbio ocorre ao
mesmo tempo que surge a necessidade de evoluir para uma
industrialização de alto nível técnico e organizatório, para com
petir com os outros centros de produção, em plano interna
cional. Segundo, a necessidade de exportar (ao mesmo tempo:
produtos agrícolas,, extrativos e manufaturados), inerente a essa
transição, exige a eliminação das defesas que permitiram a cria
ção e o funcionamento do setor industrial criado com a política
de substituição de importações. Terceiro — e em conseqüên
cia — a necessidade de alto nível técnico impõe a associação
crescente com os oligopólios multinacionais, que controlam a
produção (centros de pesquisa, laboratórios e tc .) e uso da
tecnologia indispensável aos empreendimentos de âmbito inter
nacional.
Em um plano mais político, o desenvolvimento econômico-
social, configurado na democracia populista, foi interrompido e
reorientado devido ao seguinte: Primeiro, o progresso eco
nômico estêve em vias de conduzir o Brasil à condição de uma
potência independente, com ascendência sôbre a América Lati
na e a África. Segundo, a política de massas e o nacionalismo
esquerdizante começavam a ameaçar o poder político burguês.
Terceiro, os Estados Unidos da América do Norte assumiram
plenamente a liderança do mundo capitalista e acertaram uma
espécie de “Tratado de Tordesilhas”, um compromisso tácito
10
com a União Soviética, ficando a América Latina sob sua
• égide.
Em síntese, tomados em conjunto e em seus desdobra
mentos históricos, os dilemas da sociedade brasileira podem ser
configurados teoricamente pelas tensões e conflitos gerados na
sucessão e coexistência de quatro modelos de desenvolvimento:
exportador, substituição, associado e socialista,
r O modêlo de exportação de produtos tropicais e maté
rias-primas e importação de manufaturas é o que caracteriza
a economia brasileira nas três primeiras décadas do século XX.
Esse padrão já começara a ser questionado na segunda metade
do século anterior. No entanto, é com a Guerra Mundial de
1914-18 e as crises da cafeicultura que êle sofre as mais drás
ticas flutuações. A Revolução de 1930 simboliza a liquidação
dêsse modêlo.
O modêlo de substituição de importações de produtos ma
nufaturados — baseado inclusive na manipulação de compo
nentes essenciais do anterior — desenvolve-se aceleradamente
de 1930 a 1962. Flutua em várias direções e exige a recom
posição das relações de produção e dos padrões de dominação.
Na forma em que foi pôsto em prática, isto é, com base na
ruptura parcial com as estruturas arcaicas internas e externas,
trouxe consigo os elementos da sua própria negação. A suces
são de crises políticas, nesse período, indica o conflito crescente
entre o nacionalismo desenvolvimentista e independente e a
preservação de vínculos e compromissos com a sociedade tra
dicional e o sistema político-econômico internacional.
O Golpe de Estado de l.° de abril de 1964 assinala a
transição efetiva para o modêlo de desenvolvimento econômico
associado. Implica na combinação e reagrupamento de emprê-
sas brasileiras e estrangeiras, com a formulação de uma nova
concepção de interdependência econômica, política, cultural e
militar, na América Latina e com os Estados Unidos.
O modêlo socialista foi durante algumas ocasiões uma pos
sibilidade real. Elaborou-se desde os primeiros anos do
século XX, mas adquiriu perfil e estrutura posteriormente à
Revolução de 1930. Entretanto, não foi levado à prática, de
vido à forma pela qual as organizações de esquerda interpre
tavam o caráter e o sentido da industrialização no Brasil. É
inegável que em algumas ocasiões críticas constituíram-se con-
11
dições de tipo revolucionário, que as esquerdas não souberam
ou não tiveram condições para aproveitar.
Finalmente, se passamos a outros aspectos do período,
verificamos que a época da industrialização acelerada ocorrida
no Brasil engendrou alguns padrões político-econômicos singu
lares. Cada um dêles envolve um modo especial de ruptura e
reintegração com a sociedade tradicional e os sistemas inter
nacionais. Assim, temos: (a) o nacionalismo reformista, com
base na democracia populista; e (b) a ditadura “tecnocrata”,
com base na associação ampla com os setores externos. Êsses
são os dois pólos do que poderiamos denominar a “revolução
brasileira” . As flutuações entre êsses dois padrões são alimen
tadas, por um lado, pelas lutas de esquerda; e, por outro, pelas
próprias contradições inerentes ao nacionalismo reformista.
Aliás, a combinação engenhosa da democracia populista com
uma política de internacionalização da economia brasileira exibe
claramente aquelas contradições.
12
n
Tensões e Conflitos
13
tar como categoria política. Por isso, pode-se verificar que a
“revolução brasileira”, em curso neste século, é um processo
que compreendera luta por uma participação cada vez maior
da população nacional no debate e nas decisões políticas e
econômicas. O florescimento da cultura nacional, ocorrido em
especial nas décadas de vinte a cinqüenta, indica a criação de
novas modalidades da consciência nacional. Nesse quadro é
que se inserem os golpes, as revoluções e os movimentos que
assinalam os fluxos e refluxos na vida política nacional.
Mas êsses acontecimentos não são apenas políticos nem
estritamente internos. Êles são, em geral, manifestações das
relações, tensões e conflitos que os setores novos ou nascentes
no país estabelecem com a sociedade brasileira tradicional e
com as nações mais poderosas, com as quais o Brasil está em
intercâmbio. Por essas razões, devemos tomar sempre em con
sideração que os golpes, as revoluções e os movimentos arma-
dos ocorridos no Brasil^ desde a Primeira Guerra Mudial pre
cisam ser tomados como manifestações de rompimentos polí
tico-econômicos. ao mesmo tempo internos e externos. Às vé-
zes essas relações não são imediatamente visíveis; isto é, não
podem ser comprovadas empiricamente de modo direto. Mas
geralmente elas guardam vinculações estruturais verificáveis em
plano histórico. Em última instância, êsses rompimentos são
manifestações da ruptura político-econômica que marca o in
gresso do Brasil na era da civilização urbano-industrial.
Vejamos, pois, como se desdobram internamente as crises
que assinalam os vários estágios da revolução brasileira. Em
seguida, veremos como se desenrolam os acontecimentos inter
nacionais, com os quais se vincula o processo civilizatório bra
sileiro.
O período que vai da Primeira Guerra Mundial a l.° de
abril de 1964 está repleto de movimentos armados, atos isola
dos de violência, greves, revoltas, golpes e revoluções. A se
quência dêsses acontecimentos cresce numèricamente, se se
acrescentam as situações tensas e os esquemas golpistas e revo
lucionários esboçados pelos diferentes grupos políticos civis e
militares. A relação apresentada, a seguir (Quadro I), oferece
uma imagem aproximada dos acontecimentos políticos e mili
tares registrados pela história das lutas sociais no país.
14
QUADRO I
1922-64
Composição
Data Centro de irradiação de forças Objetivo
16
A partir do final da Segunda Guerra Mundial, êsse quadro
se modifica, tornando-se mais complexo. Já estavam formadas,
então, as condições institucionais, econômicas e políticas para
o desenvolvimento do setor industrial. A própria derrubada
do Governo de Getúlio Dornelles Vargas reflete os conflitos
de interêsses e as lutas que transcendem o âmbito nacional.
Entre 1945 e 1964 entram em cena, em escala bem maior que
antes, as massas assalariadas em geral. A partir do Golpe de
Estado contra Getúlio Vargas e o Estado Nôvo, em 29 de ou
tubro de 1945, o processo político brasileiro abrange ampla
mente os operários, os setores médios da sociedade e grupos
de trabalhadores agrícolas. Isto significa que entram em jôgo
as aspirações de bem-estar social de um proletariado cada vez
mais numeroso, ao lado de uma classe-inédia numèricamente
crescente. Além disso, colocam-se de modo jamais conhecido
antes as reivindicações dos trabalhadores agrícolas, em várias
regiões do país. É ainda nesse período que se multiplicam os
grupos políticos de esquerda; e a juventude universitária impõe-
se ainda mais, como fôrça política ativa e organizada.
Essas são as linhas gerais das crises que assinalam as dife
rentes manifestações da ruptura político-econômica que acom
panha a formação do capitalismo industrial no Brasil. Os con
teúdos mais importantes dêsses acontecimentos reaparecem nos
capítulos posteriores.
Entretanto, êsse quadro de acontecimentos políticos não
se completa a não ser quando acompanhamos o desenrolar dos
fatos políticos internacionais. Êles afetam direta e indiretamen
te a história nacional. Correspondem às manifestações da
ruptura político-econômica ocorrida externamente. É impor
tante considerar, neste ponto, que a sociedade brasileira não
realizou senão operações tímidas e ambíguas, no sentido de
encaminhar e realizar as rupturas externas. O govêrno de Ge
túlio Vargas fêz tentativas nessa direção. E o Govêrno de
Jânio Quadros, que também compreendeu o dilema, não soube
conduzir as operações políticas que tomariam a política exter
na independente um fato. Por essa razão, a ruptura político-
econômica externa, que funciona positivamente no processo de
desenvolvimento econômico do Brasil, é principalmente o resul
tado das crises e flutuações do capitalismo mundial.
17
As crises do capitalismo internacional, tomadas em plano
político, estão simbolizadas nas duas Guerras Mundiais. Com
a Guerra Mundial de 1914-18, a crise econômica iniciada em
1929 e a Segunda Guerra Mundial de 1939-45, verificam-se
profundas e drásticas modificações na forma pela qual as nações
hegemônicas se relacionam com as colônias e os países depen
dentes, Assim, êsses acontecimentos são em maior ou menor
escala também responsáveis pelos fatos mencionados no Qua
dro II.
QUADRO II
1910-67
18
Aí estão algumas das manifestações das crises mundiais que
envolvem, no caso particular do Brasil, os rompimentos políti
cos e econômicos estruturais, abrindo novas perspectivas à so
ciedade brasileira. Note-se que êsses acontecimentos só se
tornam positivos porque compreendem as lutas entre as nações
hegemônicas e o enfraquecimento de umas em face das outras.
Assim é que, com relação ao Brasil, a hegemonia da Inglaterra
é questionada de fato pela Alemanha, a França e, depois, os
Estados Unidos da América do Norte. E é êste país que, ao
final, alcança a supremacia, em face daquelas nações e dos
países do “Terceiro Mundo” . Para os Estados Unidos, a Amé
rica Latina representa um interêsse especial no âmbito do
mundo subdesenvolvido.
Entretanto, enquanto não se decide a disputa entre as
grandes potências e enquanto os Estados Unidos não conso
lidam o seu predomínio, abrem-se perspectivas às colônias e às
nações dependentes. Nesse contexto é que ocorre uma etapa
importante, talvez decisiva, da industrialização do Brasil. A
transição para uma sociedade urbano-industrial, amplamente
dinamizada a partir da Primeira Guerra Mundial, dependeu
bastante das contradições e crises havidas no âmbito interna
cional. Em perspectiva histórica, essa tendência foi examinada
cuidadosamente por Alan K. Manchester, nos seguintes têrmos:
19
1914, os Estados Unidos nunca haviam sido um competidor
pelo predomínio econômico nos mercados, nos transportes
ou investimentos brasileiros. ( . . . )
A Inglaterra, todavia, nunca fêz questão de manter a
sua supremacia anterior na área das exportações brasileiras.
Ela estava fundamentalmente interessada no Brasil como um
mercado para manufaturas inglêsas, e não como país fornece
dor de matérias-primas. ( . . . )
Assim, a despeito dos alarmes ocasionais formulados
pelos cônsules britânicos, os Estados Unidos figuravam como
um competidor menor, para a Inglaterra, até a Guerra
M undial. Nesta ocasião suplantou a Grã-Bretanha como
principal fornecedor para a república sul-americana. A in
capacidade da Inglaterra para manter a sua posição tradicio
nal, nos anos posteriores a 1914, era simplesmente o resultado
natural das condições da guerra. Para os britânicos, êsse
eclipse temporário seria retificado em momento oportuno.
Em conseqüência, a luta real pela supremacia ocorreu depois
de 1918. ( . . . )
De fato, ao final de 1929 os Estados Unidos estavam
rivalizando com a Inglaterra com sucesso, nos mercados brasi
leiros de compra e venda. Por outro lado, na área dos trans
portes marítimos e investimentos, a preeminência britânica
ainda estava bàsicamente intocada. Em 1926 a tonelagem
dos navios com bandeira britânica era quase duas vêzes
maior do que a sua competidora mais próxima, a Alemanha.
Quanto aos investimentos, era britânica metade dos estimados
dois bilhões e quinhentos milhões de dólares do capital estran
geiro investido no Brasil até 1929. Em 1927 havia quatro
vêzes mais capitais britânicos do que americanos investidos
no Brasil. E uma vez e meia a mais que todo o capital ex
terno combinado. Em dois dos três tradicionais campos de ati
vidades dos interêsses britânicos na república sul-americana,
a Inglaterra era ainda predominante no fim dessa década1.
20
ricanos estiveram implicados na própria Revolução de 30. Se
gundo pesquisas realizadas por Jordan M. Young:
QUADRO III
1923 - 1949
21
programas econômicos brasileiros. Assim, a estabilidade finan
ceira e a participação de capitais estrangeiros na economia na
cional são pontos importantes nas recomendações apresentadas
nos relatórios finais das comissões mistas Brasil-Estados Uni
dos, em 1942 e em 1949.3 Aliás, em 1942, os norte-america
nos já ensaiavam uma política de negócios destinada a con
tornar o nacionalismo econômico florescente em alguns países
latino-americanos. Em 1938, o Govêrno de Cárdenas havia
nacionalizado a indústria petrolífera mexicana. E no mesmo
ano o Govêrno de Vargas criara o Conselho Nacional do Pe
tróleo, com óbvia inclinação nacionalista.4
22
Fases da Industrialização
23
Nesse sentido é que se pode reconstruir as etapas da for
mação do setor industrial, como núcleo dinâmico do desenvol
vimento econômico nacional. As fases de evolução dêsse setor
não se constróem senão como modos específicos de relaciona
mento entre a economia brasileira e os sistemas econômicos ex
ternos, com os quais o Brasil se acha ligado, em cada fase.
Assim, distinguem-se três estágios principais no desenvolvimento
industrial do País.
A primeira etapa da formação do setor industrial no Bra
sil desenvolve-se no interior de uma economia de tipo colonial.
Até 1930, a vida econômica em funcionamento no País está
organizada segundo o modêlo “exportador” . A cafeicultura pre
dominante nas atividades produtivas nacionais e definindo a
feição da estrutura econômica brasileira como uma função do
setor exportador, simboliza o padrão de desenvolvimento na
cional nesse estágio. São as crises e flutuações do setor cafeeiro
que abrem perspectivas diversas à economia do País, criando
incentivos à produção artesanal e fabril. Quando os recursos
produzidos no setor cafeeiro não são suficientes para atender à
procura de manufaturas tradicionalmente importadas, as unida
des artesanais e fabris instaladas dinamizam-se, para atender ao
menos parcialmente àquela procura. Em consequência, ocupam-
se melhor as empresas existentes e começam a criar-se novas.
Essa época excepcionalmente crucial para a formação do
setor industrial no Brasil foi examinada por Caio Prado Júnior,
Roberto C. Simonsen e Celso Furtado, além das contribuições
de historiadores, sociólogos e cientistas políticos. Trata-se de
uma explicação das condições e efeitos do mecanismo de socia
lização das perdas do setor cafeeiro. Uma interpretação bri
lhante dêsse processo de dinamização e, em boa parte, de cria
ção do setor industrial foi formulada por Celso Furtado.
Em síntese, o processo funciona do seguinte modo. A
crise da cafeicultura (a de 1929, por ex.) como as crises típicas
nas economias coloniais, vem de fora. Aparece como uma queda
nos lucros dos cafeicultores. Surge como uma redução do con
sumo ou uma baixa nos preços externos (o que dá no mesmo),
produzindo uma diminuição brusca nos lucros dos plantadores
de café. Para evitar que êles abandonem as culturas, o govêrno
rcaliz^ a depreciação da moeda nacional. Assim, em têrmos
de moeda brasileira, os cafeicultores continuam a receber apro-
24
ximadamente o mesmo volume de renda monetária. Dêsse
modo ameniza-se a queda nos seus lucros, o que lhes permite
manter as plantações. Ao mesmo tempo, como é óbvio, re-
duz-se a capacidade importadora do País, devido ao alto custo
relativo do câmbio. Em conseqüência, criam-se estímulos novos
para o incipiente setor secundário (indústrias de transformação)
da economia brasileira.
O fato de que a produção de café tenha continuado a
expandir-se depois da crise e a circunstância de que os ca-
feicultores se tivessem habituado aos planos de defesa di
rigidos pelo govêrno, respondem em boa parte pela manu
tenção da renda monetária do setor exportador. Ao pro
dutor de café pouco lhe interessava que a acumulação de
estoques fosse financiada com empréstimos externos ou com
expansão de crédito. A decisão de continuar financiando,
sem recursos externos, a acumulação de estoques, qualquer
que fôsse a repercussão sôbre a balança de pagamentos, foi
de conseqüências que na época não se podiam suspeitar.
Mantinha-se, assim, a procura monetária em nível relati
vamente elevado no setor exportador. Êsse fato, combinado
ao encarecimento brusco das importações (conseqüência da
depreciação cambial), à existência da capacidade ociosa em
algumas das indústrias que trabalhavam para o mercado in
terno e ao fato de que já existia no País um pequeno nú
cleo de indústrias de bens de capital, explica a rápida as
censão da produção industrial, que passa a ser o fator di
nâmico principal no processo de criação de renda1.
25
1
26
A C e p a l foi criada experimentalmente por três anos.
Em 1951, ao avizinhar-se o tèrmo do prazo, sobrevieram
forças muito poderosas, interessadas na sua eliminação da
América Latina. Eu o sabia muito bem, quando aceitei a
responsabilidade que me atribuíam. Um latino-americano
ilustre, perfeitamente a par das idéias ali predominantes
então, mo havia dito cruamente: — “Você perde o seu
tempo, pois a oea existe para realizar o que foi confiado à
C epal” .
Não creio que perdi. A batalha definitiva travou-se
durante o quarto período de sessões, realizado no México,
em meados de 1951. Quase se converteu numa derrota. O
Chile, que havia lutado com entusiasmo pela criação da c e p a l ,
estava quase isolado. Dois fatos foram decisivos nessa
ocasião: (a) A posição do Brasil, que, após algumas va-
cilações iniciais, tomou vigorosamente a defesa da C c p a l ,
depois que a sua delegação recebeu um telegrama pessoal
do Presidente Vargas; e (b) a atitude resoluta do M éxico.
Junto com o Chile, êsses dois países organizaram a resis
tência, até provocar uma virada completa.
Algumas semanas depois, acompanhado por Celso Fur
tado, fui saudar no Rio o Presidente Vargas. Poucas vêzes
na minha vida tive um diálogo tão preciso e categórico. Em
poucas palavras, o Presidente me transmitiu a razão da sua
atitude: a necessidade de um orgão independente nas mãos
dos latino-americanos.2
27
zam as direções em que se lança o poder público, na dinamiza-
ção da economia nacional.
É óbvio que as aplicações do modêlo “substituição de im
portações” não se verificaram segundo uma diretriz única, nem
com base numa consciência sempre clara e deliberada. Houve
nessa etapa uma série de crises e flutuações, devidas ao caráter
imediatista e improvisado das deliberações. Além do mais, o
modêlo exportador continuou a funcionar e apesar no jôgo da
política, em particular da política econômica. Mais ainda, a
própria maneira com a qual se pôs em prática a substituição
de importações criou as bases de um terceiro padrão de orga
nização das condições do desenvolvimento econômico.
A_ terceira etapa do desenvolvimento industrial no Brasil
deve ser identificada com o modêlo de “desenvolvimento asso
ciado”, ou de “internacionalização” da economia brasileira. De
fato, internacionalização do setor industrial. Na prática, em
algum grau êsse padrão sempre estêve presente na estrutura
econômica brasileira. Já na época do predomínio do modêlo
exportador, capitais estrangeiros eram encaminhados para os
setores de transportes, comunicações, produção de energia elé
trica, mineração etc. Além disso, ainda antes de 1930, os em
préstimos externos eram imprescindíveis para o enfrentamento
das crises periódicas da cafeicultura e as dificuldades orçamen
tárias do poder público.3 Depois, na fase da política deliberada
de substituição de importações, os capitais externos aparecem
como financiamentos e investimentos cada vez mais freqüentes.
Todavia, a etapa em que as condições e perspectivas de
desenvolvimento econômico no Brasil passam a depender am
plamente da associação direta e indireta, visível e disfarçada
entre capitais nacionais e estrangeiros, começa politicamente
com o Golpe de Estado de l.° de abril de 1964. Na prática,
entretanto, o modêlo destinado a associar e internacionalizar a
economia brasileira já se havia implantado alguns anos antes,
com o Programa de Metas do Govêrno Juscelino Kubitschelc
de Oliveira (1956-60). Assim, êsse padrão entra em execução
28
em vários tempos. Por um lado, o seu teor econômico, que já
vinha sendo forçado antes, entra em execução plena com o
Programa de M etas. Por outro, o seu teor político, que também
vinha sendo forçado anteriormente, entra em completa execução
com o Govêrno do Marechal Humberto de Alencar Castello
Branco. Em seu nível econômico (que nos interessa neste pas
so ), a política de associação e internacionalização apresenta-se
como decisão governamental nos seguintes têrmos, segundo
mensagens presidenciais de Juscelino Kubitschek de Oliveira:
29
Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, o
Export-Imporl Bank of Washington, o Instituto Mobiliare
Italiano, o Assurance Crédit de France e várias outras —
mediante a abertura de créditos bancários a favor do Banco
Nacional do Desenvolvimento Econômico, ou por êle ga
rantidos . No levantamento de recursos estrangeiros, não
raro se apelou para o seller’s credit, ou seja, a concessão,
pelos fornecedores de maquinaria, de créditos a curto e mé
dio prazos, garantidos ou não pelo govêrno do país ex
portador.
Neste particular, os resultados têm sido satisfatórios,
em relação aos projetos em curso. Para 80 milhões de dó
lares registrados em 1955 na Superintendência da Moeda e
do Crédito, como capital de empréstimo, registram-se 302
e 261 milhões, em 1956 e 1957, respectivamente. Em 1958,
tais registros se elevaram ao nível de 397 milhões. Quanto
às inversões diretas, as cifras elevaram-se em 31 milhões de
dólares em 1955, a 56 em 1956, 109 em 1957 e 104 em
1958®.
30
QUADRO IV
Setor 1947 1949 1951 1953 1955 1957 1959 1961 1962
Agricul
tura 89,5 100,0 102,2 111,7 129,8 138,5 148,8 167,9 177,1
Indús-
tria 81,4 100,0 118,5 135,2 162,3 183,2 240,7 293,4 316,0
Comér-
cio 81,4 100,0 117.9 119.0 143,5 160,2 186.9 209,8 217,8
Govêmo 95,3 100,0 104.9 110.0 115,4 121,0 126.9 133,1 136,3
Trans-
portes e
Comuni-
cações 79,5 100,0 118,8 137,8 152,4 166,9 188,7 240,0 256,2
31
da produção e cria instrumentos de defesa de setores com
nível de renda ameaçado por desajustes ou crises geradas
interna ou externamente. Os Institutos do Café, do Sal, do
Pinho, do Cacau, do Mate, do Açúcar e do Álcool são todos
entidades criadas com o objetivo precípi1" de defender os
setores das oscilações bruscas da renda e do emprêgo pro
vocadas por distúrbios surgidos na área da produção ou da
comercialização. O caso mais notável, pela sua importância
no conjunto da economia nacional, é o do setor cafeeiro,
Neste, os instrumentos formulados pelos órgãos dos cafei-
cultores e postos em prática pelos governantes foram se re
finando continuamente, dada a alta importância do setor
para a preservação dos níveis de emprêgo e renda também
para a economia nacional como um todo. ( . . . )
Na segunda fase o Estado ingressa ativamente nas di
versas esferas da vida econômica, colaborando, incentivando
e realizando a criação da riqueza. Nesta classe, destacam-
se a Companhia Siderúrgica Nacional, a Superintendência
do Plano de Valorização da Amazônia, a Companhia H i
drelétrica do Vale do São Francisco, a Comissão do Vale
do São Francisco, o Banco do Nordeste do Brasil, a Petro-
brás, a Eletrobás, a Superintendência do Desenvolvimento
do Nordeste, o Banco Nacional do Desenvolvimento Eco
nômico, o Plano Salte, o Programa de Metas, o Plano Trie-
nal. Em graus variáveis de sucesso, todos esses empreen
dimentos foram postos em prática com objetivo diferente da
quele que inspirou a fase anterior. Agora os governantes
estão empenhados em programas setoriais, regionais ou mes
mo globais de desenvolvimento. Estimulado pelas tensões in
ternas e externas do sistema, o Estado assumiu funções mais
amplas, destinadas a dinamizar e orientar as expansões das
forças produtivase .
32
Cada fase corresponde ao predomínio de um ou outro
padrão de política econômica. Basicamente, na primeira o Es
tado desenvolve uma atuação eminentemente conservadora, ao
passo que na seguinte a sua atividade é reformista e dinami-
zadora. Todavia, a participação crescente do poder público na
economia, bem como a modernização das técnicas de diagnós
tico, formulação, execução e controle da economia não avan
çam a ponto de possibilitar o domínio e a eliminação das desi
gualdades e distorções estruturais. A forma pela qual se veri
fica o desenvolvimento econômico nacional pode ser eviden
ciada em vários planos. A inflação, por exemplo, como técnica
de poupança monetária forçada, abre uma pista à análise das
relações de classe e do caráter da reprodução do capital. O
êxodo rural-urbano, por outro lado, coloca outros problemas,
revelando dimensões sociais e humanas da industrialização e da
urbanização no Brasil.
Se observarmos o Quadro V, teremos uma idéia da evo
lução industrial, conforme as suas manifestações regionais. Ve
rificamos que o progresso econômico nem é homogêneo nem
tende necessariamente para a homogeneização da economia
nacional. Ao menos a tendência para a harmonização dos ín
dices de desenvolvimento não é visível nas etapas realizadas.
E note-se que os dados cobrem meio século de atividades eco
nômicas: 1907, 1920, 1938 e 1958. Em plano político, as
tendências indicadas por êsses dados econômicos permitem com
preender melhor o aparecimento e a sustentação de lideranças
“estaduais” bem marcadas. Esta observação pode ser verda
deira em particular nos casos dos líderes populistas Leonel
Brizola, com base no Rio Grande do Sul, e Miguel Arraes,
com base em Pernambuco.
Em verdade êsse quadro indica progressos e regressões,
quando tomamos o conjunto dos dados. Entretanto, se obser
varmos melhor as tendências expressas, verificamos o predo
mínio progressivo de um centro sôbre os outros centros. É evi
dente a hegemonia de São Paulo sôbre os outros Estados do
País. Como pólo de crescimento, São Paulo menos difunde
que atrai os benefícios da industrialização. Há uma espécie de
colonialismo interno que os programas nacionais e regionais
não puderam lim itar. As atividades da maioria das agências
regionais, criadas especialmente para estimular as economias
33
QUADRO V
Distribuição percentual
Fonte; J. Jobim, Brazil in the Making, The MacMillan Co., New York,
1943; IBGE, Produção Industrial Brasileira, 1958. Quadro orga
nizado por Juarez Rubens Brandão Lopes, Desenvolvimento e
Mudança Social (Formação da Sociedade Urbano Industrial no
Brasil), São Paulo, 1966, MS, l . a parte, pág. 19.
34
locais, não conseguiram diminuir os efeitos regressivos ineren
tes à concentração e centralização do capital. Talvez os pro
gramas tenham inclusive facilitado o predomínio do Centro-Sul,
com centro em São Paulo. Esta é uma das conseqiiêneias do
caráter do desenvolvimento industrial em curso no País. É
mesmo uma resultante inevitável da forma pela qual ocorre a
sucessão das etapas de expansão do setor industrial. Vejamos,
agora, numa síntese, o processo como um todo.
Examinada de uma perspectiva histórica, a industrializa
ção ocorrida no Brasil já permite algumas revelações muito
claras:
35
IV
Desenvolvimento Agrário
37
a circulação de trabalhadores no mercado de mão-de-obra, as
condições técnicas e organizatórias da produção, o acesso aos
instrumentos de poder — tôdas essas são implicações do rela
cionamento e dos antagonismos entre o setor agrário e o setor
industrial.
Entretanto, convém insistir na dependência recíproca e
crescente de ambos. Devido à própria dinâmica da vida eco
nômica, política e social, a cidade e o campo são levados a
empenhar-se na resolução ou na acomodação das suas contra
dições. Ê preciso ter em mente não somente os efeitos mul
tiplicadores de um setor sôbre o outro, mas a complementari
dade inerente à organização econômica. Segundo as palavras
de Pei-Kang Chang, que se dedicou ao estudo do desenvolvi
mento econômico tendo em vista as relações entre a agricultura
e a indústria:
38
apresentou sintomas de transformação ou desenvolvimento que
não podem ser menosprezados.
E verdade que nesse mesmo período o produto real do
setor industrial cresceu 216% . Entretanto, convém lembrar
que essa é a época de intensa mobilização de recursos e in
centivos — públicos e privados, internos e externos — para
a dinamização e diversificação do setor industrial. Nesse sen
tido, o “confisco cambial” foi um instrumento de transferência
para o setor industrial de parte dos recursos criados com a ex
portação cafeeira. Além disso, é importante considerar que o
ritmo e o vulto da reprodução do capital agrário são neccssària-
mente diversos do industrial. As condições naturais, as flu
tuações sazonais, são limites que nunca ou raramente afetam
o setor industrial. Por isso, o tempo de realização do circuito
do capital industrial é menor, E também o volume de capital
mobilizado pode ser maior, devido às condições organizatórias
das emprêsas. Em suma, o capital industrial dispõe de condi
ções melhores para reproduzir-se, o que o leva a adquirir van
tagens crescentes sobre o capital agrário. Essas condições es- \
truturais da reprodução do capital, nos dois setores básicos da
economia, não podem ser menosprezadas, quando queremos
compreender a situação brasileira.
Assim, o atraso relativo do setor agrário não deve ser
tomado como indicativo da ausência de progresso ou, sequer,
de transformações significativas. O êxodo rural, por exemplo,
não é um fato unilateral, decorrente da atração exercida pela
cidade e pela indústria. Ele está relacionado também com as
mudanças das condições técnicas e sociais da produção em al
gumas regiões agrícolas. Segundo análise realizada por José
Francisco de Camargo
39
atuariam positivamente no sentido de estimular o êxodo
rural em nosso País3 .
40
QUADRO VI
Dados numéricos
41
pitalista no campo rio-grandense. Pela primeira vez, foram
empregados grandes capitais, assalariados em grande escala,
máquinas agrícolas e modernos métodos de cultivo. Proces
sou-se verdadeiro rush, rumo ao campo, pois, como iria ve
rificar-se com o trigo, os lavoureiros de arroz, em sua gran
de maioria, não eram agricultores tradicionais, mas citadinos
de tôdas as profissões. ( . . . )
A produção de trigo do Estado, pràticamente estacio
nária, 140.000 toneladas em 1922 e 162.488, em 1946,
subiu, nos últimos dez anos, em ritmo acelerado, atingindo
992.230 t. em 1956 (tal cifra representa a produção total,
inclusive a retenção para semente, cêrca de 10%, e o con
sumo local das zonas produtoras, onde existem dezenas dc
pequenos moinhos não controlados pelo S .E .T .).
Como explicar essa progressão tão rápida, inédita no
Brasil, talvez no mundo? Como foi possível sextuplicar, em
apenas dez anos, a produção de trigo, enfrentando condi
ções de todo adversas, quer no terreno agronômico quer no
econômico?
Homens de espírito pioneiro, mais capital e crédito,
mais a ciência agronômica, mais dezenas de milhares de
máquinas agrícolas, mais a capacidade do nosso campesi
nato — ontem peão de fazenda, hoje tratorista e mecâni
co — fizeram êsse prodígio. Continuando a transformação
iniciada pelo arroz, o trigo revoluciona hoje o campo gaúcho.
A penetração capitalista no campo é uma realidade vitoriosa.
O capital aplicado na lavoura de trigo, entre máquinas,
instalações, lavouras feitas com recursos próprios (sem fi
nanciamento), terras próprias etc., deve andar pela cifra de
10 bilhões de cruzeiros. O parque de máquinas agrícolas,
tratores e ceifa-trilha automotrizes, é de cêrca de 10.000
unidades. O número de plantadores, segundo o censo rea
lizado pelo Ministério da Agricultura, em 1957, era de
131.000, 95% dos quais pequenos produtores. O número
de assalariados na lavoura mecanizada atinge também al
gumas dezenas de milhares4.
1 Paulo Schilling, Trigo, ISEB, Rio de Janeiro, 1959, págs. 23-4 e 26-7
do mesmo autor: Crise Econômica no Rio Grande do Sul, Difusão de
Cultura Técnica, Pôrto Alegre, 1961.
42
Naturalmente êsses dados precisam ser tomados como in
dicativos de tendências. Numa visão de conjunto da sociedade
agrária brasileira, quanto à organização da produção, devemos
considerar que coexistem técnicas e instituições tradicionais ao
lado de organizações modernas. Numa pesquisa exploratória
destinada a avaliar o desenvolvimento tecnológico da agricul
tura nacional, Ruy Miller Paiva e William H. Nichols chega
ram à conclusão de que o País pode ser dividido em três re- i
giões principais: a) região de agricultura extensiva e de mé
todos em geral primitivos; b) região de agricultura intensiva
e de métodos em geral primitivos; e c) região de agricultura
de caráter mais empresarial e de métodos mais racionais. Neste
último grupo incluem-se áreas do Centro-Sul do País, com os
seguintes característicos:
43
culos que estabelecem as condições de mudança tanto quanto
de estabilidade.
Aliás, a tenacidade das estruturas agrárias tradicionais —
tanto as econômicas como as políticas — decorrem muito mais
do fato de que o mundo rural está profundamente determinado
pelo padrão exportador, como padrão de organização da eco
nomia. Em outros termos, os atritos e desencontros entre o
funcionamento do setor agrário e o funcionamento do setor in
dustrial não dependem apenas das singularidades de cada um.
Em plano conjuntural, dependem do jôgo e conflito de inte-
rêsses relativos à apropriação e reprodução do capital. Em'*
plano estrutural (e, portanto, propriamente histórico) as con
tradições entre ambos são governadas pelo fato de que o setor
agrário ainda é profundamente determinado pelo modelo ex
portador. O segmento agrário da sociedade nacional continua
voltado para o exterior, como área mais importante de realiza
ção do capital. Além do mais, os centros de decisão — rela
tivamente ao mundo rural no Brasil — continuam a operar j
de fora para dentro; isto é, localizam-se no exterior.8 Em cer
to sentido, o setor agrário brasileiro ainda se encontra dominado .
pelo “padrão colonial”, ao passo que o setor industrial precisou
realizar o rompimento parcial dêsse padrão, para firmar-se.
Mais ainda, o setor secundário somente pôde criar-se em de-""
corrência do enfraquecimento transitório — devido a crises,
guerras, revoluções, etc. — do sistema colonial do capitalismo.
É nesse quadro que estão as razões do antagonismo entre a
cidade e o campo, Mas é nesse mesmo quadro que se encon
tram os fundamentos da conciliação e integração entre o mundo
rural e o mundo urbano-industrial. ^
Esses são os motivos principais por que a sociedade agrária
não se pioderniza na escala indispensável às exigências do de
senvolvimento industrial. Mas é importante constatar que o
desenvolvimento industrial, que depende e exige mudanças so
ciais no mundo agrário, é um determinado. Trata-se do desen
volvimento industrial que implica num “projeto” de desenvol
vimento econômico global, de tipo independente. Portanto,
44
trata-se do modelo de industrialização que se pôs em prática
entre 1930 e 1964. Em especial, do modelo getuliano, que
dependia de uma redefinição crescente das relações externas e
com a sociedade tradicional.
É nessa época que se manifestam os primeiros sinais de
organização política dos trabalhadores agrícolas. As tensões
e os conflitos inerentes às relações de produção espoliativa,
vigentes no campo, não puderam mais ser controlados pelas
técnicas tradicionais de favores, pressões e violências. Aí sur
gem as associações, ligas e sindicatos de trabalhadores agríco
las. Uma das primeiras organizações foi criada em Pernambu
co, em 1955. Em 1963, é promulgado o Estatuto do Traba
lhador Rural. Vinte anos antes, em 1943, havia sido promulga
da a Consolidação das Leis do Trabalho cujo alvo principal
é o setor industrial. Em ambos os casos, as relações de tra
balho são formalizadas em térmos conseqüentes com o mercado
de trabalho capitalista, no espírito do modêlo getuliano, com
base no populismo.
Entretanto, quando o modêlo de desenvolvimento autôno
mo começou a ser abandonado, em especial a partir da política
econômica posta em prática com o Govêrno de Juscelino
Kubitschek de Oliveira, o padrão colonial de organização do
setor agrário brasileiro passou a conjugar-se, em nôvo estilo,
com o padrão “internacionalista” de desenvolvimento econômi
co. De certo modo, reencontram-se a sociedade rural e a so
ciedade industrial, estabelecendo-se novos compromissos com
os setores externos. Nesse contexto, os antagonismos entre a
cidade e o campo são minimizados. Isto não significa que as
contradições são eliminadas. Significa somente que se reduz
a profundidade dos antagonismos entre a cidade e o campo,
já que a industrialização não está mais vinculada a um “pro
jeto” de desenvolvimento nacional e autônomo. Não se coloca
mais a necessidade de rompimentos externos e internos drás
ticos, pois que se redefine a dependência estrutural.
Esses fatos e as relações que êles revelam são importan
tes para uma discussão correta do problema crucial da refor
ma agrária. Inclusive, indicam porque êsse problema tem sido
colocado de modo ambíguo ou confuso. Em certos casos é um
falso problema. Se não, vejamos.
45
O balanço dos projetos apresentados no Congresso Na
cional e dos debates realizados ali e na imprensa, colocam
várias questões importantes. De um lado, e em plano mais
geral, o debate coloca em confronto e antagonismo duas posi
ções básicas:
46
problemas da modernização da agricultura, bem como as rela
ções desta com a indústria, do ponto de vista prático e teórico:
47
da Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco
(C H EV F), da Comissão do Vale do São Francisco, da Co
missão Mista da Bacia do Uruguai-Paraguai, o Departamento
Nacional de Obras Contra as Sêcas (DNOCS), o Plano de Va
lorização Econômica da Amazônia (SPVEA), o Banco do Nor
deste do Brasil (BNB), a construção de estradas como a Be-
lém-Brasília, etc.
Neste sentido é que o debate sôbre os problemas relacio
nados com a reforma agrária às vêzes foi confuso ou ambíguo.
Raramente o debate estève apoiado no exame objetivo do pro
cesso de reprodução do capital, das condições técnicas e insti
tucionais de funcionamento da sociedade e da economia agrá
rias, dos antagonismos e das continuidades entre o setor pri
mário e os setores secundário e terciário, etc. Em geral, a
“questão agrária” era colocada em têrmos fundamentalmente
políticos, sem a análise correlata dos fatores e condições eco
nômicas e sócio-culturais. Enfim, propunham-se rupturas mais
ou menos drásticas com a sociedade tradicional, essencialmente
colonial, sem as correspondentes rupturas necessárias e correla
tas no âmbito das relações externas. Tanto era assim que
Celso Furtado se viu obrigado a argumentar em detalhe, relati
vamente à questão da reforma agrária na mais importante
“região problema”, isto é, no Nordeste. Disse êle:
48
N o agreste, se os senhores o percorrerem, encontrarão
terras extremamente subdivididas. Qualquer reforma agrária
nessa região implicaria desde logo em aglutinar tais unidades.
O agreste é mais pobre, em certos aspectos técnicos, do que
o sertão. É outro ângulo do probelma, sôbre o qual não me
posso estender. Nesse agreste, um homem para sobreviver,
produzindo algodão, não pode ter menos de 10 hectares. Dez
hectares para algodão, e mais 10 hectares para manter o gado,
se quiser ter algum animal como fonte de tração. Uma uni
dade produtiva no agreste deve ter em média 20 hectares, o
que, no caso, corresponde a uma grande propriedade. ( . . . )
A reforma agrária, aí, não se fará pela divisão da terra,
mas, ao contrário, pela aglutinação dos pequenos sítios. Se a
operação se deve fazer pondo para fora o proprietário, la
tifundiário ou não, é um problema político — e a opção por
uma forma ou por outra não compete ao economista8.
49
O U RA S DO A U T O R
O C o lap so do P op u lism o
no B rasil
4? ediçào, revista
Getulismo
e Política de Massas
53
I aj Ç) mais antigo e ao mesmo tempo o mais conservador e o
modelo expoitador. Implica o predomínio do setor agrícola, se
gundo relações de produção e técnicas de acumulação tradicio
nais. Tem a sua contrapartida necessária na importação de manu
faturas. Envolve a dependência externa, devido à comercialização
internacional da parte principal do café. Portanto, os centros da
política econômica no Hrasil estão localizados no estrangeiro. Na
época do predomínio desse padrao de organização da economia
nacional, o poder político è exercido pela burguesia agrário-
comercial, cujos núcleos mais fortes e organizados situam-se nos
Estados de São Paulo e Minas Gerais. Os grupos interessados na
manutenção dessa política econômica, e da estrutura de poder
conveniente à mesma, sofreram uma derrota séria com a vitória
da Revolução de 1930; mas não foi uma derrota total.
.1>1 Em seguida, e em decorrência da inadequação do padrão
exportador para atender às exigências crescentes e multiplicadas
da economia e da sociedade nacionais, constitui-se o modelo subs
tituiçâo.dejmportações. Trata-se de encontrarTinuTcombinação
positiva e dinâmica com o setor agrário, encadeando as exigências
de divisas com as exigências de investimentos destinados a atender
ao mercado interno. Esse padrão envolve a reformulação dos
vínculos externos e com a sociedade tradicional. Com base na
política de massas e no dirigismo estatal, estabelece gradações nas
rupturas estruturais indispensáveis à sua execução, l-tindamenlaa
política externa independente e implica uma doutrina do Urasil
como potência autônoma. Os elementos fundamentais desse
padrão político-econômico estão consubstanciados na democra
cia populista desenvolvida depois de 1945. Esse ê o modelo getu-
lia n o ^
c) Em concomitância, e em decorrência do conlronto entre os
modelos exportador e de substituição, çunslitui-se o modelo de
desenvolvimento e organização da economia aue preconiza a_as-
sociação de capitais e interesses políticos e militares nacionais e
estrangeiros. Implica a internacionalização crescente do setor in
dustrial, ao lado do caráter fundamentalmente internacionalista
do setor agrário tradicional. Em cerra medida, o modelo inlerna-
cionalista — ou de associação ampla — é um dos resultados ine
vitáveis do confronto e das contradições entre os dois anteriores.
Em certo sentido, é a restauração du. loadírlQ inicial — como
padrão colonial — em termos navp>. Trata-se de um produto dos
54
desenvolvimentos políticos e econômicos internacionais e nacio
nais. No jogo e contradição dos interesses das classes e grupos so
ciais em luta pelo poder e pela formulação da política econômica,
surge necessariamente o padrão de desenvolvimento combinado.
E a sua implantação exige a liquidação da democracia populista,
como estrutura política nacional, tanto quanto a destruição da
ideologia e prática da doutrina de independência econômica e
politica É uma combinação nova entre os setores agrário e in
dustrial, no âmbito da reprodução ampliada do capital. Este mo
delo será examinado em seus aspectos mais importantes na tercei
ra par)e desta obra.
d) <b outro modelo de desenvolvimento nacional c o socialis
ta. Resulta dos confrontos e antagonismos entre as classes e gru
pos sociais. Em certo grau, esse padrão consliltii-se em concomi
tância com o modelo substituição. Em certas ocasições estiveram
mesmo confundidos, ou associados taticamente. Essa identifi
cação decorria do fato de que ambos eram, realmente, ainda que
em gradações diversas, negações possíveis dos outros dois; isto é.
implicavam a negação dos modelos tradicionais de exportação e
de associação internacional. Muitas vezes, o intervencionismo es
tatal, as tentativas de planificação econômica, as práticas da
politica de massas, o reformismo, o florescimento cultural e
político, etc, foram encarados como pré-requisitos ou mesmo
conquistas de tipo socialista
I Esse é o quadro ao mesmo tempo teórico e histórico em que
I devemos inserir e estudar a política de massas como componente
• fundamental do padrão getuliano de desenvolvimento econômi-
co. No processo da industrialização — em especial o estágio de
I 1945-61 — a politica de massas é um elemento crucial. Vejamos
agora como ela se caracteriza.
A combinação dos interesses econômicos e políticos do prole
tariado, classe média e burguesia industrial è um elemento impor
tante do período getuliano. Essa combinação efetiva e tática de
interesses destina-se a favorecer a criação e expansão do setor
industrial, tanto quanto do setor de serviços. Em concomitância,
criam-se instituições democráticas, destinadas a garantir o acesso
dos assalariados a uma parcela do poder. Na verdade, criam-se as
condições de luta para uma participação maior no produto. Em
plano mais largo, trata-se de uma combinação de forças destina
das a ampliar e acelerar os rompimentos cotn a “ sociedade tradi
55
cional” e os setores externos predominantes. Em verdade, foi
com base no nacionalismo desenvolvimenlisia. como núcleo
ideológico dajjolítica de massas — em que s£ envolvem civis e. mi
litares, liberais e esquerdistas, assalariados e estudantes univer-
sitárips.— que se verifica ãTinlgnõnzação de alguns centros de de
cisão importantes para a formulação e execução da política eco
nômica. A crescente participação do Estado na economia é, ao
mesmo tempo, uma exigência e uma consequência desse progra
ma de nacionalização das decisões
É nesse contexto que se situam as conquistas das classes assa
lariadas, em especial do proletariado. Em 1940 cria-se o regime de
salário mínimo. A partir de 1943, a Consolidação das Leis do Tra
balho aparece como o instrurrtento mais importante do intercâm
bio de interesses entre assalariados e empresários. Em 1963,
transforma se em lei o Estatuto do Trabalhador Rural, como ele
mento novo no desenvolvimento da política de massas, quando o
populismo vai ao campo.
Esse intercâmbio entre as classes foi executado com eficácia,
em boa parte ao menos, devido aojpeleguismo. Trata-se de uma
prática inerente à estrutura da legislação trabalhista. Mantinham-
se os sindicatos operários e dos setores médios dependentes do
Ministério (inicialmente. Ministério do Trabalho, industria e
Comércio, depois, apenas Ministério do Trabalho) pelo controle
dos recursos financeiros exercidos por este, OJmposto sindical —
importância equivalente ao salário de um dia dèlrãHalho, em ca
da ano — criado pelo governo, depositado e controlado pelo Mi
nistério do Trabalho, é a fonte dos recursos financeiros do sindi
cato1' Ai está um dos elementos mais importantes do peleguismo.
Acresce que os dirigentes sindicais são eleitos, em geral, com base
na anuência e fiscalização do Ministério, isto é, do Governo. Nes
sas condições, os sindicatos e seus dirigentes reduzem-se a instru
méritos de manobras políticas às vezes totalmente alheias aos inte
resses dos assalariados. Ou então, as lideranças operárias e co
merciarias são obrigadas a formular uma linha de atuação política
congruente, de alguma forma, com os interesses governamentais.
Como vemos, a formalização das relações de trabalho, nos ter
mos em que é feita — tanto ha Consolidação das Leis do Tra-
56
balho como no Estatuto do Trabalhador Rural — implica a deli
mitação e controle das condições de atuação politica das classes
assalariadas.
Outro elemento importante para a compreensão da estrutura
da política de massas é a composição ruraUurbana do proletaria
do industrial. Aí está um dos fatores da inexperiência política des
sa parte do povo brasileiro. Com as migrações internas, no senti
do das cidades e dos centros industriais — particularmente inten
sas a partir de 1945 — aumenta bastante e rapidamente o con
tingente relativo dos trabalhadores sem qualquer tradição política.
O seu horizonte cultural está profundamente mareado pelos valo
res e padrões do mundo rural. Neste, predominam formas patrim
oniais ou comunitárias de organização do poder, de liderança e
submissão, etc. Em particular, o universo social e cultural do tra
balhador agrícola (sitiante, parceiro, colono, camarada,
agregado, peão, volante, etc.) está delimitado pela religião, a vic
lência e o conformismo, como soluções tradicionais. Esse hori
zonte cultural modifica-se na cidade, na indústria, mas de modo
lento, parcial e contraditório.
2. Octavio lanni. Estado e Capitalismo, citado pãg. 159. Também Octavio lanni,
Paulo Singer, Gabriel Cohn e Francisco C. WelTort, Política e Revntuçõa Social
no Brasil, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, r9fi5,esp Caps III e IV.
Luiz Pereira, Trabalho e Desenvolvimento na Brasil, Difusãu Européia do Livro,
Sao Paulo, 1965; Juarez Brandão I opes, Sociedade Industrial no Brasil, Difusão
Européia do Livro, São Paulo, 1964; Eunice Ribeiro Durham, Migração. Tra
balho e Família, São Paulo, 1966. MS; Geraldo Sarno, Viramundo, documentário
cinematográfico, São Pauto, 1965
57
despeito de serem as razões mais importantes du êxodo, paralela
mente a eles operam também as modificações que estão ocorren
do no ambiente rural. Em certa escala, expandem-se as técnicas
capitalistas no campo, o que produz desemprego e a expulsão de
uma parte dos trabalhadores.
Além disso, em virtude da multiplicação dos meios de comu
nicação — inclusive a circulação das pessoas e grupos — verifica-
se o confronto das condições de existência material Comparam-
se as possibilidades abertas aos assalariados no campo e na cida
de. Em outras termos, nesse contexto o “ efeito demonstração"
também surge como um elemento importante na movimentação
das pessoas3 Em consequência, as "luzes da cidade" tornam-se
um dado fundamental para a caracterização das condições e da
natureza da política de massas. São acentuadas as discrepàucias e
variações da renda que atuaram e continuam a atuar nas decisões
e expectativas dos trabalhadores em geral. No setor primário a
renda è sistematicamente menor que nos setores secundário e ter
ciário, geralmente concentrados em núcleos urbanos. Além disso,
entre os próprios centros urbanos verificam-se desníveis acentua
dos.
Por todas essas razões, predomina uma consciência singular,
no proletariado urbano e industrial. A composição heterogênea e
a formação recente, associadas às exigências da política de mas
sas conduzida por outros grupos sociais, favorecem a criação e a
persistência de uma consciência de mobilidade. Isto é, favorecem
a formação de um comportamento individual ou grupai voltado
principalmente para a conquista e consolidação de posições na es
cala social. Durante esse período e nessas condições, a atividade
politica do proletariado — como coletividade — está muito orga
nizada em termos de consciência de massa. Os interesses de classe,
em particular os antagonismos com as outras classes e grupos so
58
ciais, não se estruturam a não ser parcialmente. E não chegam a
fundamentar posições e diretrizes políticas auteniicamenle pio
letárias, isto é, de classe.
Além do mais, a política de massas teve no Urasil uma cono
tação essencialmente desenvolvímenlisLa. O propalado “ distrihu
tivisrop” do getulismo era irreal, dado que o custo de vida seinprc
absorveu amplamente o salário real.
O regime do salário mínimo, iniciado em 1940, e as conquis
tas consubstanciadas na Consolidação das 1 eis do Trabalho, pos
ta em vigência em 1945, tiveram o objetivo — entre outros — de
preservar a classe oneraria de uma pauperizacáü drástica. ,\o
mesmo tempo, destmavam-se_a iuaiue> as relações de produção
em conformidade com as exigências do desenvolvimento econô
mico. Convêm observar que a legislação trabalhista, formalizai)
do jurídica e politicamente as relações das classes assalariadas
entre si e com os empresários e o poder público foi consolidada
durante o período do Estuda Novo. isto é, da Ditadura Vargas.
Entretanto, essa legislação não impediu que os uiveis do salário
real continuassem a situar-se abaixo dos indices de custo de vida.
Deste modo, Leve continuidade o confisco salarial c, em conse
quência, o progresso da reprodução do capital.
Portanto, graças em parte á política de massas, foi possível
efetivar determinadas etapas do desenvolvimento industrial. Por
meio das técnicas jurídicas e políticas inerentes ao .populismo,
manteve-se em nível adequado ao progresso industrial a relação
entre custo de vida e salário real. Em âmbito mais largo, foj a r/c
mocracia populista que propiciou a conciliação de interesses em
beneficio da industrialização e em non^e do desenvolvimento na
cionalista. No Brasil, pois, o getulismo, em sentido lato, fornece
as bases políticas e ideológicas para a realização dos indices de
poupança adequados à manutenção dos níveis de investimentos
exigidos para acelerar a industrialização. Em particular, a
inflação — como técnica de poupança monetária forçada e disfar
çada — beneficiou-se amplamente da forma pela qual se formali
zaram as relações de produção, no ambiente ui bano-industrial.
Em suma, a política de massas funcionou como uma técnica
de organização, controle e utilização da força política das classes
assalariadas, particularmente o proletariado. De um lado, situam-
se as exigências de poupanças para investimentos destinados a de
senvolver o setor secundário. No outro, coloca-se a “ revolução
nas expectativas” dos trabalhadores. Essas duas tendências
conjugam-se no sentido de provocar e efetivar redefinições suces
sivas das relações dos segmentos urbano-industriais com os seg
mentos tradicionais e com os setores externos.
È nesse contexto que se coloca o problema dos encadeamen-
tos entre movimentos de massas e partidos políticos no Brasil.
Antes de 1930, os partidos políticos eram estaduais ou nominal
mente nacionais e atendiam aos interesses de oligarquias e grupos
sociais regionais. A Constituição de 1946 estabeleceu o regime dos
partidos nacionais. Entretanto, em larga escala, eles funcionaram
segundo os interesses locais e regionais Em muitos casos, as oli
garquias continuaram seu predomínio, ainda que formulando os
seus compromissos e criando novas técnicas de atuação. O exame
das coligações entre partidos, realizados nas várias eleições havi
das depois de 1945, revela a multiplicidade das combinações
possíveis. Os programas jamais são obstáculos intransponíveis.
Tanto assim que os partidos chegam a ser definidos como sendo
de direita ou esquerda, conforme a região ou estado do pais, e in
dependentemente da sua definição no plano federal. Além do
mais, segundo análise realizada por Orlando M. Carvalho:
O rracionamemo do eleitorado cm partidos da mesma composição so
cial facilitou a existência de crescente número de alianças e coligações; nas
eleições parlamentares.
Em 1945, não houve coligações: em 1950, alcançaram 20% do eleitora
do; em 1954, adiciona 53% dos votos4
«I
Essa situação inquieta os políticos interessados em exercer
uma liderança mais efetiva, em plano nacional. Mas suas preocu
pações e denúncias não chegam a perturbar o funcionamento ha
bitual das lideranças e organizações partidárias nos Estados, re
giões e localidades. Getúlio Vargas e Jânio Quadros preocupa
ram-se com o assunto e tentaram transformar a questão num
problema do Executivo, tanto quanto do Legislativo. Segundo as
suas palavras:
61
coDi os sistemas políticos e econômicos externos. Por isso, da rea
parece várias vezes na história dos últimos anos, como técnica de
reformulação das relações externas do País. O nacionalismo de
senvoivimentista está na base da Campanha do Petróleo, realiza
da principalmente entre 1947 e 1953. Assim, a política externa in
dependente è uma manifestação relacionada com o tipo de demo
cracia populista em funcionamento no Brasil.
Em certo sentido, existe uma “ doutrina da chantagem” sub
jacente â maneira pela qual o padrão getuliano de desenvolvimen
to econômico foi posto em prática no Brasil. Isto é, jogava-se com
as condições das outras nações, relativamente ao Brasil, procu
rando obter melhores condições econômicas e políticas, na defesa
de uma política econômica nacionalista. Já foi dito que o governo
de Getúlio Vargas conseguiu a instalação da Usina Siderúrgica de
Volta Redonda (iniciada em 1943) devido a um jogo hábil com os
Estados Unidos da América do Norte e a Alemanha. Enquanto os
Estados Unidos desejavam a adesão do Brasil contra as nações do
Lixo, a Alemanha pretendia a neutralidade da nação sul-
americana. Dc fato, foram os Estados Unidos que financiaram o
empreendimento e forneceram a assistência técnica inicial. Segtui
do alguns intérpretes desse acontecimento, teria sido esse o preço
do alinhamento do Brasil ao lado dessa nação e, portanto, dos
Aliados. Entretanto, alguns documentos tomados aos alemães e
publicados pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, re
velam que a usina se achava na pauta das conversações germano-
brasileiras em 1943. Segundo mensagem do Embaixador alemão
no Brasil, Kurt Max Pruller:
62
Estas coinuniuaçôrs seriam destinados ao mesmo lempo a robusleccr a
posição polilica do Conselho l-cderal, ante as tentativas de miná !o que es
tão fazendo, neste momento, os amerÍLanos e os aliados Hruffer1
63
cional. Sob muitos aspectos, a carta-testamento de Getúlio Var
gas é uma síntese do espírito do getulismo, enquanto movimento
de massas, política econômica, relações com os países dominan
tes, etc. Além disso, a morte de Vargas e o documento assinalam
o ápice do período histórico configurado na democracia populis
ta.
Mais uma vez, as forças c os interesses contra o povo coordenaram-se
novamente e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; nãn
me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufo
car a minha vnz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defen
der, como sempre defendí, o povo e principalmente os humildes. Sigo o
deslino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos
grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revo
lução e vencí. Iniciei n trabalho de libertação e instaurei o regime da liber
dade social. Tive de renunciar. Voltei ao Governo nos braços do povo. A
Campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou se às dos grupos
nacionais revoltados com o regime de garantia do trabalho A lei de lucros
extraordinários foi detida no Congresso Contra a justiça da revisão do
salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional
na polcncializaçãn das nossas riquezas através ria Petrobràs, mal cometa
esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Fletrobràs foi obstaeu
lada aié o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem
que o povo seja independente.
Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valo
res do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500%
ao ano. Nas declaraçócs de valores do que importàvamos existiam fraudes
constatadas de mais de 1<X) milhões de dólares por ano. Veio a crise do café,
valorizou se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a
resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de ser
mos obrigados a ceder.
Tenho lutado m!s a mês. dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pres
são constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo,
renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda de
samparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de
rapina querem □ sangue de alguém, querem continuar sugando o povo bra
sileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar
sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo
ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito
a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem,
sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos man
terá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu
sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração
sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pen
sam que me derrotam respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e
hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo, não
mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua al
ma e meu sangue será □ preço de seu resgate.
64
1 ulei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo.
lenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram
meu ânimo- Eu vos dei a minha vida Agora ofereço a minha morte. Nada
receio Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio
da vida para entrar na história9
65
Quadros: A siluaçao do nosso balanço de pagamentos não permite,
sem prejuízo da taxa de nosso crescimento econômico, dispensar a contri
buição do capital estrangeiro, sob forma de investimentos ou financiamen
tos, enquanto possa culaborar efica/.mente para intensificar o dinamismo
econômico do Pais, sob as garantias que a nossa legislação concede ás
empresas privadas Mas tal contribuição estará subordinada aos interesses
fundamentais do desenvolvimento brasileiro e da segurança nacional.
Impõe-se uma disciplina seletiva da entrada destes capitais, iiiceniivandu-a
em relação àqueles setores nus quais reputamos esta couperação convenien
te ou recomendável para a presente etapa da nossa vida econômica, e
desestimulando a naqueles em que as suas vantagens não compensam os
ônus que acarretem Nem poderá jamais ser admitida, sein a simultânea ga
ratuia ao einpresánu brasileiro, de condições eletivas de concorrência,
modificando-se as leis e regulamentos que o coloquem em situação de infe
rioridade. E u mesmo imperativo de subordinação do concurso do capitai
estrangeiro á economia naciunal como um lodo reclamara urgeme discipli
na de toda a remessa de rendimentos para o exterior, que se prucesse de lor
ma imoderada, uu se constitua num fator permanente de intolerável evasão
de recursos.101
66
A política exterior do Governo tem obedecido ao principio inalterável
de respeito pela sobciama dos outros povos e de salvaguarda da nossa
própria independência- Já vai longe o tempo cm que o Itiasil se podia con
siderar isento de responsabilidades nas grandes questões internacionais. So-
mus. hoje, uma das nações democráticas mais populosas c as .nossas ira
dicões jurídicas e puliiicas nos conterem autoridade pata levarmos uma
ação construtiva ao debuie dos grandes pioblemus do tnuitdo contemporâ
neo. piocurando sempre eoutribuir, com o mellioi dos nossos cstoi\-os, pa
ra a pieservavàoeo fortalecimento da p a/1-.
Política de Massas
no Cam po
r.K
dos seus empreendimentos, combinam-se ou desdobram-se um no
outro. Formam-se os grupos econômicos, simples e complexos,
nacionais ou associados com organizações estrangeiras. Assim,
entram em estágio cada vez mais complexos os processos de con
centração e centralização do capital, em planos nacional e inter
nacional, envolvendo agricultura e indústria. Não só reinvestem-
se capitais na mesma unidade produtiva como também aglutinam-
se capitais individuais diversos, isto é, situados em um mesmo se
tor ou setores diferentes. Por essa razão, os antagonismos se
enfraquecem ou adquirem outras conotações.
Posteriormente, no entanto, novas modalidades de antago
nismo instauram-se no seio da própria sociedade agrária. Ai co
meçam a confrontar-se os grandes proprietários e os trabalhado
res. Vejamos como se caracterizam estas duas categorias. (Deixa
mos de lado os pequenos e médios estabelecimentos agrícolas.)
Uns são empresários, fazendeiros, estancieiros ou latifun
diários. F as suas propriedades podem ser divididas nos seguintes
tipos polares: a empresa agrícola e o latifúndio. Uma é uni
empreendimento propriamente capitalista, como a usina dc
açúcar, a fazenda de café, de cana ou de cacau. O outro não tem a
categoria de empresa: é um estabelecimento agrícola baseado nu
ma organização dos fatores e em relações de trabalho tradicio
nais. Trata-se de uma grande unidade dispersa em subunidades
autônomas, organizadas em atividades produtivas de substância e
parcialmente mcrcantilizadas. Portanto, dependendo do grau de
utilização eficaz, isto è, adequadamente racional, dos elementos
da produção (inclusive e especialmente a força de trabalho), e da
vinculação com o mercado nacional e internacional, um estabele
cimento agrícola qualifica-se como empresa ou latifúndio.
Os outros possuem a própria força de trabalho e, às vezes,
um ou outro instrumento de trabalho. Ê óbvio que a forma pela
qual se insere o trabalhador no processo produtivo ê um dado
fundamental para a qualificação do empreendimento econômico
no mundo rural. Entretanto, não se deve confundir a definição
social do trabalhador com o significado do seu trabalho e, em
consequência, do produto de sua atividade produtiva. A depender
do modo de realização do produto do trabalho (no mercado, co
mo valor de troca, ou na comunidade, como valor de uso), o tra
balhador será ou não elemento de uma empresa ou de um la
tifúndio. A maior ou menor espoliação não é suficiente para defi-
69
nir o caráter pré-capiialista ou capitalista do empreendimento. Ao
contrário, pode ser útil para qualificar o grau de realização do ex
cedente, como lucro e renda. Ê neste contexto que devemos
compreender os trabalhadores agrícolas, seja qual for a sua defi
nição social local ou regional: colono, volante, empreiteiro, par
ceiro, rendeiro, meeiro, eiteiro, camarada, peão, morador, serin
gueiro, agregado, etc.
Cabe reconhecer que é grande o volume da mào-de-obra que
trabalha em terras alheias, para lermos unia ideia não só da
estrutura da força de trabalho, como também das condições de
mobilidade de elementos e grupos da camada dos trabalhadores
agrícolas. Além disso, verifica se uma presença significativa da
mulher e do menor, como contingentes importantes na compu
siçâo da força de trabalho no inundo rural. Essa composição (ho
mens, mulheres e menores, ou trabalhadores permanentes e tem
porários) è importante para caracterizar as condições das migra
ções rurais-urbanas. De um lado, torna-se fácil encontrar substi
tuto para o homem que vai para a cidade uu para a indústria. Por
outro, a saída do homem (como è a regra), mais que a da mulher
ou do jovem, alivia as tensões sociais motivadas pela participação
das pessoas mais experimentadas nas questões de trabalho e rei
vindicação. Muitas vezes, os migrantes são homens com atuação
ou com condições pessoais de liderança e organização. Dispõem
de horizonte cultural mais amplo que a média. For isso, sua
migração para os centros urbanos ou núcleos industriais, repres
enta uma perda de elementos virtuais de vanguarda. Mas este é
apenas um aspecto da questão.
Se passarmos ao nível da população presente, em cada ramo
de atividade, verificamos que diminui o contingente das pessoas
da sociedade agrária. Devido à atração exercida pelas condições
de vida nas cidades e nos centros industriais (ou por causa das mu
danças tecnológicas e organizatórias em andamento no campo),
descrescc pouco a pouco a população relativa presente nas ativi
dades primárias. Paralelamente, aumenta o contingente relativo
nos setores secundário e terciário.
No entanto, não são as condições de atraso, pauperismo e
exploração que alimentam diretamente as tensões políticas no
mundo agrário. As contradições inerentes às relações de pro
dução, na sociedade rural, somente adquirem pleno caráter
político quando aparecem os componentes próprios da situação
70
de classe. Enquanto o universo social e cultural esLá predoininan-
temente impregnado dos valores e padrões comunitários e patri
moniais, os trabalhadores não podem formular as suas reivindi
cações em termos propriamente políticos. Em condições, de exis
tência marcadas pela situação comunitária e patrimonial tradicio
nal, impera o voto dç cabresto, a política de campanário, o coro
nelismo, a tocaia, as técnicas do engano, o misticismo, o mutirão,
as relações de compadrio, inclusive com os proprietários das ter
ras e dos instrumentos de produção. Nesse universo, as tensões
sociais desdobram se no misticismo ou na violência individualiza
da e anárquica. Nessa situação, o trabalhador não dispõe de re
cursos culturais e intelectuais para definir o proprietário ou o ca
pataz como outro. Todos participam do mesmo nós. E quando ele
pensa o proprietário das terras como “outro” , não o toma como
categoria política, mas apenas como categoria social, bafejada pe
la tradição, a sorte e os laços de família.
Somente quando se modificam as condivues de produção é
que as relações de trabalho perdem conteúdos comunitários c
patrimoniais, adquirindo conteúdos políticos. Esse processo
verificou-se em Porecaiu, no Paraná, em Santa Fé do Sul, no Es
tado de São Paulo, tanto quanto na zona úmida, em Pernambu
co. No caso de Santa Fé do Sul. ocorrido em 1960. as tensões so
ciais adquiriram conotação política quando os agricultores senti
ram que estavam na iminência de transformar-se (com o término
do contrato assinado com os proprietários das terras) em Ira
balhadores sem trabalho; ou seja, trabalhadores em busca de ira
balho Em outros termos, percebiam de algum modo a situação
de mercado, enquanto vendedores virtuais e de fato de força de
trabalho. Não viam possibilidades de retomar o mecanismo de ar
rendamento, na base do qual viveram alé então. Daí as disputas
jurídicas e os seus desdobramentos políticos inevitáveis: conflitos
armados.
Esta era a situação dos trabalhadores, em lermos jurídicos.
Mediante um contraio válido por um ano, ou uma safra agrícola,
□s parceiros agricultores defrontavam-se com os seguintes proble
mas, ao fim do acordo:
Além dos referidos em ouiios itens, o parceiro agricultor lerá na vige»
cia deste contraio, os seguintes direitos e ubrigaçôes:
a) Construir, na área cedida, casa para sua habitarão e benfeitorias ne
cessárias à finalidade deste contraio, é seu direito, mas. findo o prazu
71
contratual, não terá direito a indenização nem a retenção das que fizer, po
dendo entretanto, retirar a telha e o arame que tiver ali empregado;
b) Construir poço ou sistema contígua à casa è seu direito, mas fica
obrigado a entupi-lo ou enterrá-lo no final do presente contrato;
c) Animais de custeio: — pode o parceiro agricultor manter ou apas
centar em piquete que fizer na área cedida os animais necessários ao custeio
de sua lavoura. Não poderá, entretanto, deixar animais soltos em qualquer
parte da fazenda, pois esta também não cede invernadas para estadia ou
apascentamentodos aludidos animais;
d) Deverá o parceiro agricultor deixar na divisa de sua lavoura com a
do vizinho o carreador necessário para a livre circulação dos agricultores,
dos empregados da proprietária e de veiculos necessários à lavoura. (...)
12. O parceiro agricultor deverá, na época própria de dezembro deste
ano ao riuat de Janeiro do ano próximo, efetuar, na área que lhe é cedida, a
plantação de capim colonião. Deverá ser feita observando a distância
máxima de 16 palmos entre covas e ruas, contendo, no mínimo, quatro ca
nas ou mudas cada cova.
13. A cessão, sublocação total ou parcial dos direitos deste contrato só
são permitidas com anuência expressa da primeira contratante.
14. Findo o presente contrato pela fluência de seu prazo, ou pela sua
rescisão por forma prevista em direito, deverá o parceiro agricultor retirar-
se do imóvel, independente de notificação ou interpelação. Considera-se
motivo justo para rescisão, além dos previstos em lei. a violação de obrigaçõ
es aqui estatuídas.
15. Cumprindo o parceiro agricultor á risca os lermos do presente
contrato e retirando-se da fazenda no seu término, terá perdoadas as dívi
das que tiver com a primeira contratante e oriundas do contrato anterior,
prorrogado por este, dividas estas referentes à plantação de capim e renda
do ano agrícola que se findou1.
Em conseqüência do caráter do contrato (leonino em seus
efeitos, particularmente ao findar-se), os arrendatários iniciaram
reivindicações jurídicas. Pouco a pouco, o conflito adquiriu co
notação política. Segundo relato publicado em jornal diário, exa
tamente nos dias em que se agravam as relações entre proprietário
arrendatário e os parceiros agricultores:
72
diários” e “ camponeses” espoliados, para usar o jargão comunista. Tudo
se resume no descontentamento de cerca de 50 famílias de arrendatários, di
retos ou indiretos, do invernisla Io sé de Carvalho Diniz, cujos contratos já
se venceram ou estão prestes a expirar e que, contra a vontade do arredan-
te. pretendem continuar nas terras arrendadas, alegando automática pror
rogação contratual, por força da lei do inquilinato. Desses SO, algyns não
cumpriram o contrato vencido, infringindo suas cláusulas; outros, cumpri
ram, mas se incompatibilizaram com os arrendantes2
73
cos em 1953-54. o consumo nacional passou ein 1962-63 para mais de 46
milhões. Por outro lado, condições extremamenle favoráveis no inercado
mundial permitiram ampla reiumada das exportações, o que deu lugar a
um crescimento da produção ainda mais imenso que o do consumo. O Nor
deste participou dessa nova prosperidade, crescendo a sua produção em
cerca de 50 por cento no último decênio. Ocorre, entretanto, que esse au
mento de produção se fez na forma costumeira de simples incorporação de
novas terras aos canaviais, terras essas quase sempre inferiores às anterior
mente sob cultivo. Como us rendimentos médios por hectare cultivado de
cana se mantiveram estacionários em torno de 40 toneladas, cabe inferir
que os esforços rcalizadus por alguns pouco proprietários, introduzindo
sistemas de irrigação e o uso de adubos, foram apenas suficientes pura com
pensar a incorporação de terras de inferior qualidade. Sendo assim,
também cabe deduzir que houve uma elevação nos custos médios de pro
dução e uma baixa de rentabilidade durante o recente período de expansão,
admitidos preços relaLivos constantes de insumos e produto.
O assunta da produção que vimos de considerar teve duas ordens de
consequências práticas: por um ladu, a pressão pata expandir os canaviais
levou à progressiva eliminação das áreas anteriormente dedicadas á pro
dução de alimentos; por outro, a tendência à elevação dos custos reais criou
uma forte pressão sobre os salários dos trabalhadores.
A expansão das áreas sob cultivo de cana teve consequências de pro
funda significação social e econômica. () morador, em período relativa
mente curto, foi transformado de pequeno sitiante, responsável pela pro
dução de parle daquilo que comia com sua família, cm um mero trabalha
dor assalariado. De seu coiilmamenio num casebre Isulado em cima de uma
colina, onde sua lamilta vivia sem consciência de vizinhança, foi “ empurra
do" para a beira da estrada, jã sem poder planiar “ um palmo de roça". Te
ria sido necessário um aumento substancial no salano munetario desse tra
balhador para que ele pudesse ahastecer-se comprando os alimentos que
aiUcriormenic produzia. Desta forma, a transformação do morador em
simples trabalhadur assalariado acarretava uma elevação do custo de mão-
de-obra sem qualquer correspondência em aumenlu de produtividade. O
morador era um trabalhadui semi-estacional que se recolhia parcialnieiite a
uma economia não monetária de subsistência durante aquele periodn em
que era menor a demanda de trabalho; isso transformava o em uma mão
de-obra exlremameme baraia. pois a terra que utilizava para sua roça de
quintal não tinha qualquer uso ecunõmico alternativo. Au surgir uin uso
para essa terra, □ mesmo trabalhador necessitaria de um salário bem mais
alio a fim de sobrevivei. A pressão no sentido dc elevação dos salários mo
iietários dos trabalhadores surgiu concomtlaiitemenie com a outra pressão
jã referida de elevação dus custos reais da produção, decorrência da incor
poração de terras dc inferior qualidade3
74
Essas transformações econômicas e sociais de profundidade
foram acompanhadas pelo aparecimento de vários tipos de lide
rança poiitica no mundo agrário. Entre os lideres surgidos no
Nordeste, simultaneamente às transformações das relações de
produção apontadas, destacam-se: Francisco Julião, deputado fe
deral do Partido Socialista Brasileiro, organizador e líder de Ligas
Camponesas; Miguel Arraes, Prefeito de Recife e, depois Gover
nador de Pernambuco (1961 4. quando foi deposto) como
membro do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB); Celso Furtado,
economista, sem partido, organizador da SUDENE, cujo prugra-
ma era a dinamização das forças produtivas e a modernização da
empresa industrial e agrícola em todo o Nordeste; Padre Melo, da
Igreja Católica, que teve ligações com o Instituiu Brasileiro de
Ação Democrática (IBAD), órgão que no Nordeste funcionava
abertamente contra Arraes e Julião. Além dessas lideranças, mais
evidentes na década que vai de 1955 a 64, encontram-se ein ativi
dade grupos e líderes ligados ao Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), à Igreja Católica (como a Ação Popular, AP), ao Partido
Comunista do Brasil, ao Partido Comunista Brasileiro, etc.
Devido à sua condição de Governador de um Estado-cliave
no Nordeste (o Estado de Pernambuco) e cm decorrência da sua
posição política trabalhista, Miguel Arraes desempenhou um pa
pel importante na região. Pode ser considerado um dos mais típi
cos representantes do populismo de esquerda. Em certo sentido,
foram Celso Furtado (com a SUDENE) e Miguel Arraes (com a
política trabalhista) que “ levaram” a Revolução de 30 ao Nordes
te. Como Governador, Arraes agiu no sentido de formalizar e
modernizar as relações de trabalho favorecendo a democratização
do poder político. Assim, colocava-se direta e decididamente na
linha de política de massas inerente ao modelo getuliano de desen
volvimento econômico. Vejamos alguns elementos indicativos das
suas preocupações predominantes:
antes das Ligas Camponesas e sindicatos rurais: Victor Nunes Leal. Coronelisnio.
Enxada e Voto. Rio de Janeiro, 1948, sem indicação do fcdilor.
75
meiro ano de mandato, uma de suas metas fundamentais. Fruto de uma
concepção de ordem e de liberdade que foge à costumeira tendência de
julgá-las conflitantes entre si, foi essa a primeira conquista alcançada e,
certamente, a mais importante.
Fsse conceito novo de poder de policia do Estado, ao lado do rápido
processo de organização da massa de trabalhadores do campo, permitiu
uma profunda transformação social na zona canavieira pernambucana.
As condições que ai prevaleciam de há muito tinham assumido um
caráter francamente incumpalivel com as exigências do desenvolvimento de
nosso Pais e de Pernambuco. Subsistindo ariificialmente às custas de uma
politica protecionista e de subvenções do Governo Federal, o sistema cana-
vieiro eternizava métodos de produção inteiramente ultrapassados. Na par
te agrícola, piincipalmente, o atraso assumia aspectos alarmantes,
traduzindo-se em rendimentos por hectare dos mais baixos do mundo. Não
havia incentivo para novos investimentos; ao contrário, a política açucarci-
ra do Governo Federal, administrada por intermédio do Instituto do
Açúcar e do Álcool estimulava a estagnação, com evidente prejuizo para a
Nação e o Estado.
Ao lado do protecionismo míope do Instituto do Açúcar e do Álcool,
um outro mecanismo contribuía consideravelmente para assegurar uma
precária rentabilidade à agro indústria açucaieira; a manutenção de níveis
salariais extremamente baixos, preço vil da labuta diária e estafante da
massa de trabalhadores rurais.
É bem verdade que se tornava inevitável a eclosão dc numerosos e po
tentes movimentos rcivindicatòrios. dado o estado de miséria e de opressão
em que viviam Os trabalhadores da zona canavieira. Graças, entretanto, â
mobilização de todo o aparelho do Estado na defesa intransigente dos pri
vilégios de uma minoria retrógrada, sufocava-see procurava-se desarticular
o processo de organização dos trabalhadores do campo, na vã tentativa de
bloquear o avanço, para o cenário político, de forças sociais que já não po
diam ser ignoradas.
Ê claro que essa situação não podería perdurar, baseada que era na
miséria de uma massa trabalhadora que aos poucos tomava consciência de
si própria e de seus problemas. Esse lento processo de tomada de consciên
cia, verdadeiramente inexorável em sua dinâmica interna e manifestando-se
de maneira esporádica e desordenada, apresentava-se aos olhos da minoria
beneficiada como eminentemente subversivo. A História está cheia de
exemplos semelhantes. Não foi considerada menos subversiva a Abolição
da Escravatura, em 1888.
Em decorrência das condições favoráveis criadas pelo Governo, o pro
cesso de organização e, consequentemente, de amadurecimento politico dos
trabalhadores das cidades e dos campos fez progessos rápidos e consi
deráveis em Pernambuco. Isso ê particularmente verdadeiro na zona cana
vieira do Estado.
Se a aprovação pelo Congresso Nacional de legislação trabalhista para
o campo criou condições legais favoráveis à ruptura das relações de tipo se-
mifeudal que ainda prevaleciam em amplos setores de nossa agricultura,
esse diploma legal, entetanto, levando-se em conta que resultou de um mo
vimento político com base mais nas cidades do que propriamente no cam-
76
po, tendería inevitavelmente a transformar-se em letra morta, a exemplo do
que ocorre com outras garantias legais, desde que não fossem criadas con
dições para sua imediata adoção. F.m Pernambuco, foi possível reunir as
duas condições mais favoráveis: um movimento dos trabalhadores do cam
po ascendente em grau de conscientização e organização, c um Governo
verdadeiramente democrático capaz de assegurar sua livre manifestação na
deresa de seus direitos ed e suas legitimas reivindicações.
Ao movimento organizado e democrático dos trabalhadores da zona
canavieira, em sua legitima aspiração por melhores niveis de vida, cabe o
inegável mérito de ter desnudado o clima de estufa em que vivia a agro
indústria canavieira. Foi necessário uma pressão de baixo para cima, gera
da pela ampla camada de trabalhadores rurais que não mais suportava as
condições em que vivia, para que se chegasse â tardia descoberta de que
cana-de-açúcar tem custo de produção E isso ocorreu porque uma parcela
expressiva que compunha aquele custo e que tinha, atè então, se mantido
invisível, explicitou sua existência de maneira clara c decidida4
77
substituem Francisco Julião (ou reduzem progressivamcnte sua
capacidade de liderança) na região. Aliás, já em 1962 o Padre Me
lo tranquilizava os setores mais conservadores em vários quadran-
tes:
78
dícal e políiiua e a reforma agrária. As lutas organizadas em torno
desss alvos estavam facilitando a mobilizarão crescente das “ mas
sas camponesas’’. Em grande parte, o / Congresso Nacional de
l avradores e Trabalhudores Agrícolas, reunido em lido Horizon
te em novembro de 1961. concentrou-se sobre esses lemas:
79
outros termos, mais uma vez a sociedade agrária e a sociedade
urbano-industrial encontram-se na politica de massas.
80
I
VII
A Esquerda e as Massas
82
A partir de 1945, no eiuanlo, o reformismo predomina, co
mo orientarão política interna. Em plano internacional, a prima
zia cabe à luta contra o imperialismo norte americano, cujo ponto
de apoio interno é considerado o latifúndio. Assim, a luta* pelas
reformas de base é encarada como caminho mais eficaz para atin
gir simultaneamente os interesses dos latifundiários, setores da
burguesia comercial e os imperialistas. Para desenvolver essa
campanha, o PC favorece e estabelece a aliança entre operários,
setores da classe média, estudantes universitários, intelectuais,
políticos populistas, militares e, pnncipalmeiue, setores da bur
guesia nacional. Essa interpretação do desenvoivimentismo nacio
nalista supunha que os interesses de setores ponderáveis da bur
guesia industrial pelo mercado interno a colocava em antagonis
mo com os grupos latifundiários, importadores e imperialistas.
Assim, a frente única, acertada entre esquerda e burguesia, pode
ría conduzir a luta pelo progesso econômico, a democratização
crescente e as conquistas da classe operária.
Em termos mais precisos, a esquerda adota taticamente o
modelo “ substituição de importações’’, como etapa necessária no
processo revolucionário brasileiro. Entretanto, essa posição ialica
a lev a a adotar e emaranhar se na política de massas. E lornase
um dus principais elementos da democracia populista. Aqui surge
o segundo dilema sério da esquerda brasileira: não pôde transfor
mar a política de massas em luta de classes.
Em verdade, a esquerda brasileira não escapou — a não ser
ocasionalmente — das coordenadas e da iniciativa estabelecidas
pelos setores de vanguarda da classe dominante. For um lado, as
lutas políticas estavam relacionadas às reformas institucionais
orientadas e conduzidas pela burguesia industrial, com apoio da
classe média. O tenentismo e, depois, u nacionalismo, consuhs
tanciam ideologicamente essas lutas. Tratava-se de redefinir as re
lações externas e com a sociedade tradicional, em beneficio da ex
pansão da sociedade urbano-industrial. O fulcro desse projeto era
acelerar a transição da eLapa da política de exportação para a da
política de substituição de importações. Ao mesmo tempo,
tornava-se urgente atender a algumas exigências de demucrati
zaçâo e ascensão social da classe média, civil e militar. Além dis
so, era premente a formalização das relações de trabalho no setor
industrial em desenvolvimento e no setor terciário. O Ciolpe de
Estado de 10 de novembro de 1937, instalando o Estado Novo,
83
destina-se fundamentalmente a controlar as tensões sociais cres
centes. Entretanto, o processo de reformulação das relações exter
nas e com a sociedade tradicional continuou. O próprio aparelho
estatal passou por uma reforma importante, modernizando-se em
vários setores. Em certo sentido, a criação da Companhia Si
derúrgica Nacional e a Consolidação das Leis do Trabalho simbo
lizam os primeiros resultados práticos e de significação estrutrural
das lutas reformistas começadas duas décadas antes. Em seguida,
vieram o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico
(BNDE), a Petrobrás, a SUDENE, etc. como desdobramentos do
mesmo processo geral de transformações institucionais e dinami-
zação das forças produtivas relacionadas com os setores se
cundário e terciário.
Por outro lado, a iniciativa e as coordenadas estabelecidas
pelos setores mais dinâmicos da burguesia industrial concretizam-
se na política de massas. Desde a sua posse como Presidente da
República, mediante a Revolução de 1930, Gelúlio Vargas refor
mula lenta mas totalmente as relações do poder público com as
classes assalariadas. Dedica atenção especial aos operários. Mas a
Consolidação das Leis do Trabalho não é o único elemento im
portante na estruturação e desenvolvimento da política de massas.
Vejamos como a ideologia da politica de massas se configura na
evolução das formulações de Vargas, Kubitschek e Goulart.
1938: O Estado não quer, nào reconhece luta de classes. As leis tra
balhistas são leislle harmonia social.
1940: A disciplina politica tem de ser baseada na justiça social, ampa
rando o trabalho e o trabalhador, para que este não se considere um valor
negativo, um pária à margem da vida pública, hostil ou indiferente à socie
dade em que vive. Só assim se poderá constituir um núcleo nacional coeso,
capaz de resistir aos agentes da desordem e aos fermentos de desagregação.
84
E preciso que o proletário participe de todas as atividades públicas, co
mo elemento indispensável de rolaboração social. A ordem criada pelas cir
cunstâncias novas que dirigem as naçòès STficompativel com o individualis
mo, pelo menos, quando este colida com o interesse coletivo. Ela não admi
te direitos que se sobreponham aos deveres para com a Pátria.
1940: Sempre tive em vista, ao resolver o problema das relações do ira
balho e do capital, unir, harmonizar e fortalecer todos os elementos dessas
duas poderosas forças do progresso social. E assim agtTnão apenas em obe
diência a princípios de ordem polilica, mas também guiado pelo sentimen
to, pela convicção de que só na paz e na compecnsâo fraternal podem os
homens realizar as suas aspirações de aperfeiçoamento materiale cultural.
1940: O preconceito de classe, tal como o concebem e exploram os re
formadores extremistas, nunca nos preocupou na elaboração das leis so
ciais. Numa sociedade onde os interesses individuais prevalecem sobre os
interesses coletivos, a luta de classes pode surgir com o caráter de uma
reação de consequências funestas Por.isso, as leis sociais, para serem boas
e adaptáveis, devem exprimir o equilíbrio dos interesses da coletividade, eli
minando os antagonismos, ajustando os fatores econômicos, transforman
do, enfim, o trabalho em denominador comum de todas as atividades úteis.
O trabalho è, assim, o primeiro dever social. Tanto o operário como o
industrial, n patrão como o empregado, realmente voltados ás suas tarefas,
não se diferenciam, perante a Nação, no esforço construtivo: são todos tra
balhadores. Diante deles e contra eles só há uma classe em antagonismo
permanente, cuja nocividade é preciso combater e reduzir ao minimo: a dos
homens que não contribuem para o engrandecimento do Pais, a dos ocio
sos, a dos parasitas.1
1947: Aos trabalhadores compele garantir o seu próprio futuro,
impondo-se como grande maioria nos quadros politicos do Pais e propug
nando pelo progresso e pela união da família brasileira.
O Partido Trabalhista Brasileiro é a arma política do prolciariadu.
Tenhamos a certeza de que a luta que hoje travamos não será vã, porque já
se fixou no espirito de nossa gente a influência decisiva da evolução que se
processa, configurando o sistema da igualdade social.
No futuro, a sociedade brasileira não se subdividirá mais entre ricos e
pobres, poderosos e humildes. Será um povo unido pela compreensão, pelo
senso da realidade para felicidade comum.
O Primeiro de Maio deverá ser, então, a data da confraternização de
todas as classes, exaltando o esforço coletivo12
1. Getúlio Vargas, As Diretrizes tia Nova Política do Brasil, José Olympio Edito
ra, Rio de Janeiro, 1942, págs. 209-10. 215 e 218-20. Trata sede uma coletânia de
discursos e pronunciamentos de Vargas.
2. Getúlio Vargas. A Política Trabalhista no Brasil, José Olympio Editora, Rio de
Janeiro, 1950, págs. 188-9.
85
produtividade, foi objeto de constante empenho do Uoverno, todas as ve
zes que se fez necessária a sua interferência nas reivindicações salariais.
Graças à compreensão enj,rg empregados c empregadores, puderam
levar-se a bom termo ós entendimentos, com soluções adequadas, mesmo
quando as greves chegaram a deflagrar. Estas de pouca duração, não pro
duziram sensíveis abalos na estrutura econômica ou na harmonia social.
(...)
Muito se interessou a Administração pelo maior congracam enLO dos
iiabalhadores, ao mesmo tempo que prucuruu sanear as instituições desti
nadas à sua defesa, afastando elementos nocivos.
Vè o Governo, eotn agrado, que as entidades de classes, de primeiro e
segundo graus, se multiplicam e, na maioria dos casos, têm à sua frente di
retorias cujo nível intelectual mostra o alto índice de politização das classes
trabalhistas e patronais brasileiras. Os cursos de formação sindical e de di
I vulgação da legislaçãu do trabalho, promovidos por vários órgãos do Po
der Público e por entidades privadas, contribuiram, em boa parte, para o
desenvolvimento daquelas entidades, que hoje cuoperain com o Poder
Público em vários setores administrativos3
86
da aplicarão da nova legislarão trabalhista, consubstanciada no Estatuto
recém-promulgado45.
1964: Os encargos da missão histórica de dotar o Brasil de uma econo
mia independente não podem nem devem recair, exclusivainente. sobre as
classes laboriosas, exatameme as que desempenham, nessa grande tarefa,
papel tão considerável e que, constituindo, precisamente, os grupos'econo
micamente mais fracos, não podem prescindir do amparo e da defesa em
que o Estado deve desvelar-se.
Esta, entre tantas outras, uma das funçóes principais du legislarão tra
balhista e da previdência social, de cuja melhor aplicarão e constante aper
feiçoamento dependerão, diretamente, os resultados da nossa política de
desenvolvimento econômico.
Portanto, a melhor compreensãu dos direitos e deveres nas relações de
emprego, 0 seu respeito e observância; um amparo tnais eficiente 1 1 a
doença, na invalidez e na velhice; a certeza de um nivel de vida condigno; a
proteção da assistência mèdico-social; a reeducação c a readaptação profis
sional é que proporcionarão aos trabalhadores c à sua tainiiia a segurança e
a tranquilidade indispensáveis ao labor fecundo e construtivo, mola funda
mental de qualquer empreendimento público ou privada c peça essencial de
qualquer programa de desenvolvimento econômico*.
87
formulou nem implantou uma interpretação alternativa que cor
respondesse às possibilidades histórico-estruturais e não sucum
bisse ao fascínio da ideologia getuliana6.
Entretanto, os desenvolvimentos da política de massas não
foram pacíficos, ao contrário, as “ concessões” consubstanciadas
na legislação trabalhista industrial e rural, por exemplo, eram o
resultado de reivindicações reais, conseqüentes de tensões e con
flitos repetidos e acumulados na experiência coletiva. Á medida
que se desenvolve e diversifica a economia nacional (em especial
com a industrialização), multiplicam-se as greves. No jogo entre
os empresários, os assalariados e as organizações políticas, as ten
sões agravam-se e conduzem a situações de impasse. A freqüência
das greves indica o esforço do proletariado e dos assalariados em
geral na defesa do poder aquisitivo do salário. Muitas vezes, as
organizações e lideranças de esquerda preparam e comandam as
greves.
Essa quantidade de greves, grevistas e empresas envolvidas é
indicativa da forma pela qual os operários resistem ao esvazia
mento do salário real. Aliás, dentre os motivos alegados na de
flagração e manutenção dos movimentos grevistas sobressaem as
razões econômicas. Alèm do mais, dentre os setores profissionais,
ressalta a participação dos operários texteis; exatamente o setor
mais “ arcaico” da indústria nacional.
As greves operárias no Brasil encontram-se em torno de mo-
tivos econômicos. Raramente estão relacionadas a razões poliii-
cas. Entretanto, muitas vezes as lideranças e organizações còm u~
nistas, socialistas, petebistas e outras procuram dar mesmo àque
las greves uma conotação política mais ampla. Aliás, todas as gre
ves adquirem, em algum grau, significações políticas, dependendo
das condições de sua eclosão e dos efeitos diretos e indiretos exer
cidos no ambiente sindical, na classe operária e em outros setores
da sociedade. Neste plano, aquelas lideranças e organizações mui
tas vezes exerceram um papel ativo e audacioso. Entretanto,
88
jcondições para uma mobilização maciça do conjunto da classe como instru-
•mento de pressão para a consecução dos objetivos propostos7.
89
produtividade, foi objeto de constante empenho do Governo, todas as ve
zes que se fez necessária a sua interferência nas reivindicações salariais.
Graças à compreensão entre empregados e empregadores, puderam
levar-sc a bom termo õs entendimentos, com soluções adequadas, mesmo
quando as greves chegaram a deflagrar. Estas de pouca duração, não pro
duziram sensíveis abalos na estrutura econômica ou na harmonia social.
(...)
Muito se interessou a Administração pelo maior congf açumeoio dos
Itabalhadores, ao mesmo tempo que procurou sanear as instituições desti
nadas á sua defesa, afastando elementos nocivos.
Vê o Governo, com agiado, que as entidades de classes, dc primeiro e
segundo graus, se multiplicam e, na maioria dos casos, têm á sua frente di
relorias cujo nível intelectual mostra o alto índice de polilizaçãu das classes
trabalhistas e patronais brasileiras. Os cursos dc formação sindical e de di
vulgação da legislação do trabalho, promovidos por vários órgãos do Eo
der Público e por entidades privadas, contribuiram, em boa parle, para o
desenvolvimento daquelas entidades, que huje cooperam com o Poder
Público cm vários setores adminisiiaiivus3
86
cia aplicarão cia nova legislação trabalhista, consubstanciada no Estatuto
recém-promulgado4.
1964: Os encargos da missão histórica de dotar O Brasil de uma econo
mia independente não podem nem devem recair, exclusivameiue, sobre as
classes laboriosas, exatameme as que desempenham, nessa grande tarefa,
papel tão considerável e que, constituindo, precisamente, os grupos econo
micamente mais fracos, não podem prescindir do amparo e da defesa em
que o Estado deve desvelar-se.
Esta, entre tantas outras, uma das funções principais da legislação tra
balhista e da previdência social, de cuja melhor aplicação e constante aper
feiçoamento dependerão, diretamente, os resultados da nossa política de
desenvolvimento econômico.
Portanto, a melhor compreensão dos direitos e deveres nas reiações de
emprego, o seu respeito e observância; um amparo mais eficiente na
doença, na invalidez e na velhice; a certeza de um nivel de vida condigno; a
proteção da assistência médico social; a reeducação e a readaptação profis
sional é que proporcionarão aos trabalhadores e à sua família a segurança e
a tranquilidade indispensáveis ao labor fecundo e construtivo, mola funda
mental de qualquer empreendimento público ou privado e peça essencial dc
qualquer programa de desenvolvimento econômico5.
87
formulou nem implantou uma interpretação alternativa que cor
respondesse às possibilidades histórico-estruturais e não sucum
bisse ao fascínio da ideologia getuliana6.
Entretanto, os desenvolvimentos da política de massas não
foram pacíficos, ao contrário, as “ concessões” consubstanciadas
na legislação trabalhista industrial e rural, por exemplo, eram o
resultado de reivindicações reais, consequentes de tensões e con
flitos repetidos e acumulados na experiência coletiva. À medida
que se desenvolve e diversifica a economia nacional (em especial
com a industrialização), multiplicam-se as greves. No jogo entre
□s empresários, os assalariados e as organizações políticas, as ten
sões agravam-se e conduzem a situações de impasse. A frequência
das greves indica o esforço do proletariado e dos assalariados em
geral na defesa do poder aquisitivo do salário. Muitas vezes, as
organizações e lideranças de esquerda preparam e comandam as
greves.
Essa quantidade de greves, grevistas e empresas envolvidas é
indicativa da forma pela qual os operários resistem ao esvazia
mento do salário real. Aliás, dentre os motivos alegados na de
flagração e manutenção dos movimentos grevistas sobressaen^as
razões econômicas. Além do mais, dentre os setores profissionais,
ressalta a participação dos operários texteis; exatamente o setor
mais “ arcaico” da indústria nacional.
As greves operárias no Ürasil encontram-se em torno de mo-
tivos econômicos. Raramente estão relacionadas ã razões políti
cas. Entretanto, muitas vezes as lideranças e organizações comu-
nistas, socialistas, petebistas e outras procuram dar mesmo àque
Ias greves uma conotação politica mais ampla. Aliás, todas as gre
ves adquirem, em algum grau, significações políticas, dependendo
das condições de sua eclosão e dos efeitos diretos e indiretos exer
cidos no ambiente sindical, na classe operária e em outros setores
da sociedade. Neste plano, aquelas lideranças e organizações mui
tas vezes exerceram um papel ativo e audacioso. Entretanto,
88
condições p ara um a mobilização maciça do conjunto da ciasse com o instru
)m ento de pressão p ara a consecução dos objetivos propostos7.
89
4) Ketorma bancaria, com a nacionalização dos depósitos;
5) Reforma eleitoral com direito de voto aos analfabetos, aos cabos e
soldados das forças Armadas e a instituição da cédula única pura as
eleições de 7 de uutubio;
6) Reforma universitária e a participação de 1/3 de cstndanies nas
Congregações, Conselhos Departamentais e Conselhos Universitários;
7) Ampliação da atual política externa do Brasil, pela conquista de
novos mercados, em delcsa da paz, do desarmamento talai e da autodetei -
imitação dos povos;
K) Repúdio e desmascaramento da política financeira do Fundo Mo
netítrio Internacional;
V) Aprovação da lei que assegura o direito de greve, nos termos do
projeto aprovado pela Câmara Federal, com as emendas propostas e já
aprovadas pelos trabalhadores em suas conferências e congressos;
10) Encampação, com toiiibainento, de todas as empresas estrangeiras
que exploram os serviços públicos;
11) Controle na inversão de capitais estrangeiros nn Pais e limitação de
remessa de lucros;
12) Participação de trabalhadores nus lucros das empresas;
13) Revogação de todo e qualquer acordo lesivo aos interesses naciu
liais;
14) Fortalecimento da Pctrobrás com o monopólio estatal da impur-
taçáo de óleo bruto, da distribuição de derivados a granel, da indústria
petroquímica e a encampação das refinarias particulares;
13) Medidas concretas e eficazes para o funcionamento da Fletrobrás;
16) Criação du Aerobrás, instituindo o monopólio estatal na aviação
comerciai;
17) Manutenção das atuais autarquias que exploram o transporte
inaritimo, assegurando-se-lhes o percentual de 5<>u/a das cargas transporta
das, na importação e exportação, às embarcações mercantis nacionais;
18) aprovação da Lei que institui o pagamento do 13" mês de
salários8.
8. Programa transcrito por Jorge Miglioli, Como São Feitas as Greves no Brasil,
Fditora Civilização Brasileira, Riu de Janeiro, 1963, pàgs. 117-8.
90
os fins, no âinbito do populismo. Ao esiudar e delinear a orien
tarão e as tarefas dos comunistas no movimento sindical, a es
querda estabelece os seguintes princípios:
yi
res. Os cursos organizados pelo Ministério do Trabalho, pelei 5ESI e outras
instituições, com o objetivo de difundir a Consolidação das L-eis do Tra
halho e alfabetizar os operários devem ser utilizados, lutando-sc simulta
neamente contra os seus aspectos negativos como pregação de “ paz so
cial", etc.9.
92
A coniradiçau antagônica entre o proletariado e a burguesia, inerente
ao capitalismo, è também uma contradição fundamental da sociedade bra
sileira. Mas esta contradição não exige solução radical e completa na aluai
etapa da revolução, uma vez que, na presente situação do Pais, não há con
dições para transformações socialistas imediatas.
Em sua atual etapa, a revolução brasileira é antiimperialista e antifeu-
dal, nacional e democrática. São suas tarefas essenciais:
— A completa libertação econômica e politica da dependência em re
lação ao imperialismo, o que exige medidas radicais para eliminar a ex
ploração dos monopólios estrangeiros que operam no Pais, principalmente
os norte-americanos.
— A transformação radical da estrutura agrária, com a eliminação do
monopólio da propriedade da terra, das relações pré-capitalistas de tra
balho c, consequentemente, dos latifundiários como classe.
— O desenvolvimento independente e progressista da economia nacio
nal. mediante a industrialização do Pais e a superação do atraso de nossa
agricultura.
— A elevação efetiva do nivel de vida material e cultural dos
operários, dos camponeses e de todo o povo.
— A garantia real das liberdades democráticas e a conquista de novos
direitos democráticos para as massas.
A realização dessas tarefas implica em transformações revolucionárias
na sociedade brasileira. Exige profunda mudança na correlação de forças
politicas e a passagem do Poder estatal ás mãos das forças antiimperialislas
e antifeudais — a classe operária, os camponeses, a pequena burguesia ç a
burguesia ligada aos interesses nacionais — entre as quais o proletariado,
como a força revolucionária mais consequente, deverá ter o papel
dirigente10.
93
(Confederação Geral dos Trabalhadores) e UNfc ((Jnião Nacional
dos Estudantes), colocam-se também o grupo mais radical do PC
(Partido Comunista do Brasil, linha chinesa) a POLOP (Política
Operária), a AP (Ação Popular, católica) e as Ligas Camponesas
sob a liderança de Francisco Julião. Também as figuras de Leonel
Brizola, Miguel Arraes, Almino Afonso, San Tiago Dantas e
outros situam se nesse contexto, mais à esquerda nu mais à direita
das diretrizes formuladas nos textos transcritos. Houve momen
tos em que o Clube Militar esteve engajado nessa corrente, em no
me do nacionalismo, da defesa nacional e do desenvolvimento
econômico.
Esse è o universo da democracia populista no Brasil, em luta
pela industrialização e em busca da realização do aparentemente
obscuro ideal de um Brasil potência. De um lado, alguns setores
burgueses pareciam ambicionar a transformação do Brasil numa
potência mundial, 11a área do “ Terceiro Mundo” . Por isso, acei
tavam taticamente o apoio e a colaboração aberta ou velada (con
forme a situação) das esquerdas. Precisavam ampliar e aprofun
dar as rupturas políticas e econômicas com a sociedade tradicio
nal e os setores externos. Houve um momento em que os Estados
Unidos da América do Norte, sob a liderança de John F. Kenne
dy, compreenderam essa situação Em vez de agir drasticamente,
resolveram adotar uma orientação hábil, favorável à moderni
zação, cam apoio na ordem democráiica. A Carla de Punia dei
Este (19hl) reflete essa orientação. Tratava-se de um desdobra
mento da Oood Neighbor Policy de Franklin D. Roosevelt, na
doutrina na Nova Fronteira, de Kennedy. Entretanto, essa orien
tação sofreu uma derrota dupla e grave, cá e lá, com a derrubada
do Presidente João Goulart e o abandono do “ imperialismo
esclarecido” .
Por outro lado, a luta no seio da democracia populista era
encarada pela esquerda como um momento tático para a conse
cução dos alvos socialistas. Acreditava-se que as massas trabalhis
tas e populistas precisavam ser conquistadas por dentro, a partir
dos objetos e técnicas da própria política de massas. Por isso, a
“ frente única” e os outros compromissos com militares, setores
da classe media etc. eram alianças táticas indispensáveis. Eram1
11. Nelson Weineck Sodrè, História Militar do Brasil, Editora Civilização Brasi
leira, Rio de Janeiro, JV65, esp. págs. 304 26.
94
uma decorrência do realismo político. Assim, sacrificava-se mo
mentaneamente a teoria marxista-leninista da revolução, com o
objetivo de ajuntar teoria e prática, condições e possibilidades, al
vos e táticas. E claro que nesse jogo confundem-se e invertem-se
meios e fins. Na prática, em decorrência do vigor, da proponde
rância e do realismo da política de massas, a esquerda nào conse
gue executar uma política de classe nova e eficaz. Os valores e as
técnicas políticas do populismo eram mais vigorosos que o talento
teórico e a pertinácia das esquerdas.
É verdade que houve grupos de esquerda que se colocaram
em posição mais radical. Procuravam evitar os inconvenientes ou
o fascínio da política de massas, lutando por preservar a pureza
ideológica, como teoria e prática. A POl.OP (Política Operária) e
a AP (Ação Popular) — cada uma a seu modo — tiveram essa in
tenção. O radicalismo marxista-leninista e o radicalismo cristão
entram em atividade para corrigir as confusões entre reformismo,
oportunismo e revolução. No conjunto, entretanto, não consegui
ram maiores sucessos, quando queriam exercei as funções de su-
perego do PC. Um documento da POLOP, publicado em 1963,
esclarece alguns aspectos importantes dos dilemas da esquerda no
Brasil.1
1. Há rcalrnente, no lerrilório nacional, três organizações revolu
cionàrias que, courdenandu suas forças, a atividade de seus quadros e sua
influência, estariam em condições dc contrabalançar os efeiios do refonnis-
mo e da política de colaboração de classes. A última crise política (referên
cia a crise gerada com a renúncia do Presidente Jânio (Juadrus e a posse de
João üuulau) demonstrou que elas lêm essa posição comum, l-orutando
urna Frente, um Movimento, o o que se julgar conveniente, estarão liabili
tadas para dirigir-se à massa com fisionomia própria, inaugurando um fa
tor novo na politica nacional;
2. Os Irês grupos consideram-se marxisias-lemmstas e, na medida que
aplicassem na prática suas posições teóricas, (criam, a longo prazo, dc
encontrar-se em um só Partido, representativo dos interesses do proletaria
do revolucionário e de seus aliados no campo. As divergências que ainda
mantêm — e que irão pretendemos negar — devem ser encaradas conto par
le do prucessu de formação do Partido e passíveis de superação em seu
próprio desenvolvimento;
3. Não estamos propondo a dissolução imediata dos organismos exis
tentes, o que seria abandonai o que já se obteve em troca de algo que ainda
não se definiu. Tal atitude não fortalecería o futuro Partido e, antes, o
enfraquecería, puis sua formaçãu não pude ser um alo mecânico, mas sim
um processo orgânico de crescimento e amadurecimento, bomente isso as
segurará sua sobrevivência;
yí
4 Uma coordenação das atividades dos três grupos seria o primeiro
passo para a criação de um núcleo consciente — marxista e leninista — de
uma ampla frente de massa, a ser criada na luta prática. Justamente porque
tal frente não será marxista, terá ela necessidade desse núcleo para existir e
aluar ativamente. Sem o núcleo marxista, a frente de massa não passará de
aglomerado imediatista e amorfo, incapaz de resistir às próprias contra
dições internas e passível de transviar-se na política diária pequcno-
burguesa. Ê esse o segredo da concepção leninista de uma vanguarda nas
lutas de massa;
5. A tarefa é imediata. Os dois aspectos da luta ■— o da formação do
Partido e o da luta de massa propriamente dita — têm que se encarados si
multaneamente. Não podemos esperar que se forme um partido para ir às
ruas. Não há esse “ antes e depois’’ na dialética da luta de classes. Sem a
coordenação dos três principais grupos existentes, em torno de objetivos
definidos, não haverá grandes possibilidades de se mobilizarem setores de
cisivos do proletariado. Isoladamente, nenhum dos três organismos está em
condições para isso. Sem a luta viva e a mobilização de massas, os organis
mos existentes não superarão suas divergências e não surgirá o Partido ne
cessàrio12.
12. Política Operária. Ano III, n? 5, Rio de Janeiro, 1963, pàgs. 51-2 (“ Pela
União dos Marxistas Revolucionários” ).
96
Dissolução do l'undn Sindical e da Comissão de Enquadramento; abo
lição do direito de intervenção, de reconhecimento e de dissolução dos sin
dicatos pelo Ministério do Trahalho. assim como do controle financeiro,
que o Ministério exerce através do Banco do Brasil; (...)
Expropriação dos latifúndios, sem indenização, e entrega da terra aos
camponeses: (...)
Bloqueio das remessas de capitais, royalties e juros; (...)
Denúncia dos tratados inleramericanos e do Acordo Militar Brasil-
euad.
97
A aliança com os operários, camponeses, intelectuais progressistas,
militares democratas e outras camadas de vida nacional deve ser incremen
tada na certeza de que, entrelaçando nossas reivindicações, torná-las-emos
infinitamente mais fortes. Esta aliança implica em fazer da reforma agrária
bandeira dos estudantes, do mesmo modo que as transformações em nosso
ensino possam ser objetiva e subjelivamente aspiração de operários e cam
poneses; c assim por diante14.
Essa interpretação difundiu-se amplamente pelas organi
zações estudantis no País. Tanto assim que a União Nacional dos
Estudantes (UNE) procurou sintetizar em seu programa os vários
objetivos das lutas dos universitários. Assim, dentre os fins da
UNE, destacam-se:
98
almejadas pelos estudantes, assim como as desejadas pelos outros
grupos sociais (inclusive aquelas coerentes com os interesses aber
tos e velados do proletariado urbano e rural) estão inseridas no
projeto de industrialização e desenvolvimento econômico global,
simbolizado no modelo getuliano. Nesse sentido, as lulas pela
transformação da sociedade são sempre ‘‘corrigidas’’ pelas téc
nicas e alvos do populismo.
Por todas essas razões, a esquerda brasileira flutuou sempre
entre dois pulos: o marxismo-leninismo e a democracia populista.
Todavia, entre o fascínio abstrato da teoria e o fascínio eletivo da
prática, esta sempre levou a vantagem. Neste sentido, a cultura
política de esquerda no Brasil não conseguiu libertar-se da cultura
da democracia populista. Em particular, esteve sempre balizada
pelas técnicas e pela ideologia da política de massas. Se e verdade
que o vigor da política populista impediu que a esquerda realizas
se conquistas notáveis, no sentido da formulação e implantação
de uma interpretação radical, é também verdade que o nível
teórico dos quadros da esquerda sempre foi insatisfatório. Salvo
expressões individuais, os quadros partidários não contaram ja
mais com uma formação teórica suficiente para interpretar corre
tamente a realidade nacional e internacional. Por isso, ela nunca
escapou do fascínio das fórmulas e do jargão dos clássicos du
marxismo-leninismo. Era o deslumbramento retórico, igual ao
das elites burguesas em relação aos ensinamentos dos pensadores
europeus ou norte-americanos. Assim, a esquerda . brasileira
emaranhou-se nos conceitos, antes de emaranhar-se na prática.
Lidou obsessivamente com: imperialismo, latifúndio, burguesia
nacional, camponês, massa, classe operária, reformas de base, re-
formismo, estatização, etc. Em estudo dedicado especialmente a
esse tema, Caio Prado Júnior acentua:
99
planando em boa parte na irrealidade, e em que as circunstâncias verdadei
ras da nossa economia e estrutura social e política aparecem com frequên
cia grosseiramente deformadas.
Resultaram disso as mais graves consequências no que respeita à con
dução da prãtica, isto é, da ação revolucionária, pois de uma teoria de tal
maneira alheada da realidade, como tinha de ser aquela que provém de tão
defeituosa elaboração, não è possível extrair as normas de uma politica
consequente e aplicável às situações concretas que se apresentam. Em con-
seqüência, a politica revolucionária ficou exposta ao sabor das circunstân
cias imediatas, oscilando continuamente entre os extremos do sectarismo e
do oportunismo, e sem uma linha precisa capar de orientar seguramente,
em cada momento ou situação, a ação revolucionária17.
17. Caio Prado Jr., A Revolução Brasileiro, Editora Brasilense, São Paulo, 1966,
pâgs. 33-4.
18. Antônio Gramsci, Concepção Dialética da História, trad de Carlos Nelson
Coutinho, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1966, pàg. 23.
100
bruscas, pelas oportunidades perdidas. Foi assim em 1945, com a
deposição de Getúlio Vargas; em 1954, com o suicídio deste; em
1956-60, em face da habilidosa combinação da política de massas
e do desenvolvimento internacionalista, conduzido por Juscelinu
Kubitschek de Oliveira; em 1961, ante a renúncia de Jânio Qua
dros e o empolgar das massas por Brizola; em 1964, ante o Golpe
de Estado. Isto é, diante dos desdobramentos das contradições
inerentes à democracia populista, a esquerda não formulou a sua
opção. Por isso, ela se condenou a assistir impotente à modifi
cação drástica do quadro histórico no Brasil.
VIII
Contradições
do Desenvolvimentismo
Populista
102
sileiras. Assim, depois da Primeira Guerra Mundial, o processo
civilizatório no Brasil aparece numa das suas configurações singu
lares e criadoras. Desde a Semana de Arte Moderna, realizada em
1922, em São Paulo, atè à criação da Universidade de Brasília, em
1960, sucedem-se as manifestações artísticas, científicas e políti
cas, as quais exprimem essa busca de novos horizontes para a cul
tura c a consciência nacionais.
Nu interior desse processo histórico está a transformação dos
quadros de referência sociais e políticos. Ao longo de cerca de cin
quenta anos, o povo brasileiro explorou de várias formas, às vezes
positivamente, as crises internacionais, os recessos da c a fe ic u liu
ra, o dirigismo estatal, o processo inflacionário, o desenvolvimen
to nacionalista, as experiências de planificaçào, a politizaçào cres
cente das classes assalariadas, a democracia populista. Nesse con
texto, a esquerda brasileira teve um papel importante e criador,
abrindo o debate público em torno de problemas que as outras
correntes politicas interessadas não tinham condições ou audácia
para formular. A política externa independente, por exemplo,
formulada e posta em prática por Vargas e desenvolvida por Já
nio Quadros, San Tiago Dantas e João Goulart beneficiou-se
amplamente da atuação de vanguarda e do respaldo popular ga
rantidos pela esquerda. Segundo uma observação de Fernando
Pedreira,
103
Em outro plano, mas na mesma direção, as lideranças bur
guesas comprometidas taticamente com a esquerda apelavam fre-
qüentemente para o “ povo” , as “ massas” , os “ trabalhadores” ,
as “ classes laboriosas” , os “ humildes” , etc. Reconhecem que o
projeto de desenvolvimento econômico nacional, associado com
uma política externa independente — como seu corolário ine
vitável — não pode realizar-se a não ser com o aprofundamento
das rupturas estruturais internas e externas. Mas pensam sempre e
só admitem os rompimentos parciais, isto é, propriamente refor
mistas. Esse è o sentido histórico e estrutural do apelo do Presi
dente .loão Goulart, em 1961, e do Ministro da Fazenda San Tia
go Dantas, em 1963:
104
—
Em concomitância com as transformações políticas, sociais e
culturais, verifica-se uma profunda transformação econômica.
Criam-se as bases da sociedade industrial. Acumulam-se experiên
cias e técnicas de manipulação das forças produtivas e das con
dições institucionais, em acordo com as exigências do desenvolvi
mento industrial. O progresso alcança tal grau, que alguns estu
diosos chegam a afirmar que o Brasil já atingira (ou estava prestes
a atingir) a etapa da autonomia. É o que afirmam Celso Furtado,
Henry Rijken van Olst e Antônio Dias Leite, apresentando uma
imagem nova das perspectivas nacionais antes de 1964.
uma política externa independente: Jânio Quadros, “ Hrazil's New Foreign Poli-
cy” , Foreign Affairs, Vol. 40, n“ I, New York, October, 1961, págs. 19-27.
105
mo na hipótese de que se realize o crescente esforça de poupança requerido.
Essa tendência somente poderia set contrabalançada com a expansão da ca
pacidade para importar e/ou com a elevação da eficiência dos investimen
tos, mediante planificação destes em função da substituição de
importações5.
Henry Rijken van Olst: O Brasil pode ser considerado como o pais que
mais avança na América Latina. Logo estará em condições de ajudar aos
outros paises menos desenvulvidos do Hemisfério Ocidental. Psicologica
mente, estâ em melhores condições para desempenhar esse papel que os
paises europeus e norte-americanos, de cujos motivos às vezes se desconfia.
O Brasil é o elo de união natural entre a buropa e a África, dado não pos
suir "passado colonialista", bin toda a América Latina já se acompanha de
perto, com muita atenção, a atuação do Brasil, cujas consequências podem
repercurtir em muitos países da região5.
Antônio Dias Leite: Não sendo o Brasil um Pais que viva do comércio
externo, pois que este representa apenas pequena parcela da sua prudução
total, tem ele, em princípio, relativa liberdade de escolher a méioda que se
coadune com o objetivo fundamental do desenvolvimento econômico inter
no5.
106
delo político de desenvolvimento, singuiarizado no populismo,
estrutura-se ao acaso dos acontecimentos, das vitórias e dos
obstáculos. Alguns grupos e lideres perceberam as suas virtualida-
des, mas não conseguiram formular um projeto globalizador. Era
uma mescla de empirismo e inteligência, audácia e manobra. Foi
o resultado histórico das ações e interesses de diferentes grupos e
classes sociais. Ele Se produziu no jogo dos antagonismos internos
e externas que singularizam essa etapa da história nacional.
Entretanto, o modelo getuliano só poderia ser negado sob
duas formas radicais: a revolução socialista ou a reintegração ple
na no capitalismo mundial. Como a democracia populista não foi
capaz de formular e implantar uma interpretação de conjunto, re
lativamente às exigências inerentes à sua dinâmica interna,
colocaram-se as alternativas. E essas alternativas apresentaram-se
como necessárias e inevitáveis, em decorrência do fato de que es
tavam inseridas internamente no padrão getuliano. Elas também
faziam parte dos elementos que entravam na caracterização do
contorno e da substância desse modelo. Como a política de ind
ustrialização realizou-se com base num jogo de conciliações com
o capitalismo internacional, a sociedade brasileira tradicional e as
classes assalariadas urbanas, o modelo socialista e o modelo inter
nacionalista estiveram sempre presentes, como possibilidades. E
tornaram-se, em algumas ocasiões, mais ou menos viáveis. Na
momento em que o próprio modelo getuliano esgotou uma das
suas etapas, sem conseguir ingressar na seguinte, torna-se pre
mente uma alternativa. O golpe de abril de 1964 è uma operação
político-militar inerente à opção adotada pela parte mais audacio
sa, e mais consciente, da classe dominante.
De fato, nos anos de 1961-64 o povo brasileiro defronta se de
modo cada vez mais premente com a necessidade de adotar uma
opção drástica. Por um lado, o modelo getuliano esgotava um
ciclo crucial de realizações. Impunha-se uma decisão corajosa, no
sentido de aprofundar as rupturas estruturais indispensáveis á
consecução dos alvos inerentes à sua lógica interna. Em certo sen
tido, as experiências da política externa independente, com Jânio
Quadros e San Tiago Dantas, bem como as exigências políticas
inerentes ao Plano Trienal (1963-5) denotam a compreensão do
dilema em que a sociedade se encontrava. Nesse quadro, a mobiii
zaçáo do povo para o comício do dia 13 de março de 1964 — pelas
reformas de base e em oposição às tendências conservadoras da
IÜ7
maioria do Congresso Nacional — simboliza a existência de con
dições políticas para uma ruptura que não se realizou. O comício,
em que se reuniram o Presidente da República, Ministros de Esta
do e lideres nacionalistas e de esquerda, é o clímax e o fim da
política de massas: como técnica de sustentação do poder político
e como expressão fundamental da democracia populista.
Por outro lado, no bojo do próprio modelo getuliano — ou
muito preso a este — constituíra se o modelo socialista. Ele estava
presente nas organizações políticas, nos estilos de liderança e nas
técnicas de ação que promoveram as campanhas do petróleo, pe
las reformas de base, pelo desenvolvimentismo nacionalista e
atuaram na formulação da política externa independente, na sin-
dicalização rural, na estatização crescente da economia, nos mo
vimentos de opinião pública, no florescimento cultural, etc.
Entretanto, como a esquerda se prende cada vez mais às técnicas,
estilos e aivos da democracia populista, não consegue libertar-se a
tempo, para propor e impor a sua alternativa. No convivio
contínuo, crescente e profundo com a política de massas, acaba
por inverter meios e fins, tática e estratégia, ideologia e realidade.
Por isso abismou-se com o golpe.
De outro lado, ainda, no interior do próprio modelo getulia
no constituíra-se o modelo internacionalista. A deposição de Var
gas, em 1945, a política cambial no Governo Eurico Gaspar
Dutra, em 1946-50, as pressões que conduzem o Presidente Var
gas ao suicídio, em 1954, são acontecimentos que denotam essa
tendência. O mesmo se pode dizer de uma outra sequência de fa
tos — tais como as análises e proposições das Missões Cooke
(1942) e Abbink (1949) — revelando o mesmo sentido geral. O
Programa de Metas do Governo Juscelino Kubitschek de Oliveira
(1956-60) demonstra perfeitamente a elaboração prática do mode
lo de associação internacionalista, como política de expansão da
economia brasileira. O modo pelo qual foi criado o setor automo
bilístico, nos anos 1956-60, indica uma alteração substancial no
quadro das relações da economia nacional com a internacional,
através do setor industrial. Lembre-se que outros vínculos já se
haviam estabelecido por várias formas, com o setor agrário-
exportador.
Esse quadro de possibilidades e dilemas — particularmente
nos anos 1961-64 — torna-se real quando encarado no plano dos
acontecimentos políticos. Assim, verificam-se os seguintes fatos
108
importantes: condecoração do Ministro da Indústria e Comércio
de Cuba Socialista, Ernesto “ Che” Guevara, pelo Presidente da
República Jânio Quadros; a crise política nacional provocada
com a renúncia de Jânio Quadros e a tentativa de impedir a posse
do então Vice-Presidente João Goulart; a atuação política cres
cente de órgãos como: Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
(IPES), Instituto Brasileiro de ação Democrática (IBAD), Liga
Democrática Radical (LlDER), Patrulha Auxiliar Brasileira
(PAB), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Confederação
Geral dos Trabalhadores (CGT), etc.; a difusão programada da
‘'doutrina da guerra revolucionária” , como se ela estivesse sendo
posta em prática pela esquerda brasileira; a manutenção obstina
da das relações do Brasil com Cuba Socialista, como ponto básico
desse estágio da política externa independente; as tentativas de
golpe de Estado e decretação de estado de sítio, pelo Presidente
João Goulart; o comício do dia 13 de março de 1964; a presença e
fala do Presidente João Goulart na cerimônia em sua homena
gem, promovida pela Associação dos Sargentos e Suboficiais da
Policia Militar, no mesmo ano; a presença crescente da esquerda
na vida política nacional.
Esse contexto de possibilidades abertas torna-se ainda mais
concreto quando focalizamos a situação econômica. A crise de
conjuntura, em que a economia se vS lançada, em particular a
partir de 1962, é um elemento básico do todo. Ela vem
acrescentar-se à crise estrutural inerente à forma pela qual se esta
va procurando conciliar o padrão agrário exportador com a
política de desenvolvimento nacionalista e a associação cada vez
mais ampla com empresas e organizações internacionais.
Se é verdade que o desenvolvimento econômico, as reformas
institucionais realizadas e o florescimento político e cultural veri
ficados até então colocavam o Brasil na iminência de assumir a fi
gura e os papéis de potência mundial de segunda classe, é inegável
que esse estágio dependia de operações políticas drásticas. E elas
,re impunham com urgência exatamente pelas manifestações e
agravamento da crise econômica. Segundo Celso Furtado, em
diagnóstico escrito em fins de 1963:
O esgotamento dos fatores que sustentaram o processo de industriali
zação ocorreu, aparentemente, antes que a formaçüo de capital alcançasse
a necessária autonomia com respeito ao setor externo, e este fato parecería
indicar que as dificuldades que vem enfrentando o Pais no período recente
109
mona hipótese dc que se realize □ crescente esforço de poupança requerido
Essa tendência somente poderia ser contrabalançada com a expansão da ca
pacidade para importar e/ou com a elevação da eficiência dos investimcn
tos, mediante planificação destes em função da substituição de
importações456
Hertry R ijken van Olsl: O Brasil pode ser considerado como o pais que
mais avança na América Latina. Logo estaià em condições de ajudar aos
outros países menos desenvolvidos do Hemisfério Ocidental. Psicologica
mente, esiâ cm melhores condições para desempenhar esse papel que os
países europeus e norte-americanas, de cujos motivas às vezes se desconfia.
O Brasil ê o cio de união natural entre a Europa e a África, dado não pos
suir “ passado colonialista” . Lm toda a América Latina jã se acompanha de
peno, com muna atenção, a atuação do Brasil, cujas consequências podem
repercurtir em muitos países da região’ .
106
delo político de desenvolvimento, singularizado no populismo,
estrutura-se ao acaso dos acontecimentos, das vitórias e dos
obstáculos. Alguns grupos e líderes perceberam as suas virtualida
des, mas não conseguiram formular um projeto globalizador. Era
uma mescla de empirismo e inteligência, audácia e manobra. Foi
o resultado histórico das ações e interesses de diferentes grupos e
classes sociais. Ele se produziu no jogo dos antagonismos internos
e externos que singularizam essa etapa da história nacional.
Entretanto, o modelo geluliano só poderia ser negado sob
duas formas radicais: a revolução socialista ou a reintegração ple
na no capitalismo mundial. Como a democracia populista não foi
capaz de formular e implantar uma interpretação de conjunto, re
lativamente às exigências inerentes à sua dinâmica interna,
colocaram-se as alternativas. E essas alternativas apresentaram-se
como necessárias e inevitáveis, em decorrência do fato de que es
tavam inseridas internamente no padrão geluliano. Elas também
faziam parte dos elementos que entravam 11a caracterização do
contorno e da substância desse modelo. Como a política de ind
ustrialização realizou-se com base num jogo de conciliações com
o capitalismo internacional, a sociedade brasileira tradicional e as
classes assalariadas urbanas, o modelo socialista e o modelo inter
nacionalista estiveram sempre presentes, como possibilidades. E
tornaram-se, em algumas ocasiões, mais ou menos viáveis. No
momento em que o próprio modelo geluliano esgotou uma das
suas etapas, sem conseguir ingressar na seguinte, torna-se pre
mente uma alternativa. O golpe de abril de 1964 é uma operação
político-militar inerente à opção adotada pela parte mais audacio
sa, e mais consciente, da classe dominante.
De fato, nos anos de 1961-64 o povo brasileiro defronta-se de
modo cada vez mais premente com a necessidade de adotar uma
opção drástica. Por um lado, o modelo geluliano esgotava um
ciclo crucial de realizações, impunha-se uma decisão corajosa, no
sentido de aprofundar as rupturas estruturais indispensáveis à
consecução dos alvos inerentes à sua lógica interna. Em certo sen
tido, as experiências da política externa independente, com Jânio
Quadros e San Tiago Dantas, bem como as exigências políticas
inerentes ao Plano Trienal (1963-5) denotam a compreensão do
dilema em que a sociedade se encontrava. Nesse quadro, a mobili
zação do povo para o comício do dia 13 de março de 1964 — pelas
reformas de base e em oposição às tendências conservadoras da
107
têm maior profundidade do que inicialmeiitc se suspeitava. Existe ampla
evidência de que a industrializarão levou o Brasil muito perto daquela po
sição em que o desenvolvimento e um processo circular cumulativo que cria
os próprios meios de que necessita para seguir adiante. No caso do Brasil,
esse pomo seria alcançado quando fusse superada a barreira da capacidade
para importar. A economia icna enlãu atingido aquele grau de difercn
ciaçãu em que a orieniac.au dos investimentos passa a ser um problema de
opções econômicas, sem as limitações fisicas de uma capacidade para im
por racionada. Pode se mesmo admilir que, não fora a forle queda dos ter
mos de intercâmbio a panir de 1955, o Brasil viesse a alcançar esse ponto
decisivo no correr deste decênio dos sessenta Entretanto, essa oporlunida
de de ingressar no clube restrito das economias capitalistas de maior idade,
como um sistema nacional autônomo, foi aparentemente, perdida. E uma
vez perdida, puseram se em muvimento outras forças, cujos efeitos se farão
sentir cada vez mais. Assim, quebrado o impulso de crescimento,
eslerilizou-se o mecanismo que vinha sendo utilizado com êxito para autu
controlar o consumo e alimentar o processo acumulaiivo, conforme vimos.
Em consequência, os pioblemas sociais passaram a ler uma nuva dimensão,
escapando ao alcance dos instrumentos que vinham sendo usados com rela
tivo êxito7.
110
limpar o terreno para a execução mais ampla e eficaz — isto é. or
ipdoxa — do modelo iuiernacionalisia. A crise econômica e de
mocracia populista revelaram-se incompatíveis. Por essa razão,
forças políticas “ latentes” assumem primazia sobre aquelas pre
dominantes anleriormente. No primeiro instante, aparece o poder
militar. Uma das bases de manobra, no entanto, é a classe média.
Assim, mais uma vez, a solução política da crise brasileira resulta
da dependência estrutural.
111
—
—
IX
O Golpe de Estado
115
participação crescente desses setores no processo político brasilei
ro é um dado importante para explicar alguns aspectos do sucesso
“popular” das reações antidemocráticas e, em especial, do Golpç
de Estado de 1964.
Aliás, foi uma ampla campanha de opinião pública, dirigida
especialmente à classe média, que preparou as populações urba
nas de São Paulo, Kio de Janeiro, Belo Horizonte, etc. para acei
tarem antecipadamente a derrubada do governo de João Goulart,
a modificação drástica das instituições políticas e a reformulação
completa da política econômica. Todos esses objetivas foram al
cançados por meio de uma operação politico-militar organizada
para combater o comunismo e a corrupção, envolvendo ao mes
mo tempo os interesses econômicos e os processos políticos em jo
go. A “ Marcha da Pamília com Deus, pela Liberdade” , que ante
cede e prepara a opinião pública para o golpe, foi realizada dez
dias antes. E noticiada nos seguintes lermos:
116
ia. Esta preocupa-se com as tradições brasileiras (Deus, família e
tradição) e é uma manifestação orientada para o autoritarismo.
Essa participação dos setores médios na política está relacio
nada com o aumento progressivo do número dos seus membros
na sociedade nacional, devido à expansão do setor terciário. De
fato, a urbanização e a industrialização fazem multiplicar as
oportunidades de ocupação no setor de serviços, comércio, buro
cracia pública civil e militar, etc. Em consequência, esses grupos
sociais tornam-se importantes nas manobras políticas realizadas
por determinados setores da classe dominante. £111 boa parte, es
sas são as massas do ademarismo, janismo e lacerdismo. Ambi
cionam a ascensão social a qualquer preço. O seu universo cultu
ral e mental está impregnado dos valores e padrões da classe do
minante, os quais se difundem nos programas de televisão e cine
ma, nas revistas e jornais. Por isso, vê nas lutas e reivindicações
do proletariado um perigo para as suas ambições. A massa
operária atemoriza a massa da classe média. Em consequência, es
ta se apega mais facilmente às soluções autoritárias, que alguns
setores da classe dominante lhe apresentam. Para amplos segmen
tos da classe média, o jogo democrático (particularnieme a exis
tência e o funcionamento do Congresso Nacional, das As
sembléias Estaduais e mesmo das Câmaras Municipais) é encara
do em termos dos seus custos Financeiros. Ao menos, aceitam essa
argumentação. Por isso, também, anseiam por esquemas dilato*
riais. Por esse modo colocam-se freios às ambições da massa
operária, ou aos seus porta-vozes.
Em especial, esses setores desenvolvem ambições econômicas
e sociais cada vez maiores. £ exatamente na classe média que o
■‘efeito demonstração” çxerce os seus efeitos mais profundos, en
quanto mecanismo compulsivo de consumo. Esse fato pode ser
comprovado pelo rápido aparecimento de dezenas de agências de
propaganda, o consumo crescente de aparelhos de televisão e a di
fusão das vendas a crédito. Além disso, cresce a procura de esco
las, particuiamiente as de grau médio. A escoiarização, a urbani
zação e o crescimento do setor terciário são processos interliga
dos, fundamentais para explicar a importância da classe média no
processo político brasileiro.
Portanto, o papel da classe média no desenrolar das crises
políticas no Brasil resulta, em boa parte, da discrepância crescente
entre as suas ambições c as possibilidades reais de atendimento de-
117
(as. Essa politizaçâo progressiva decorre do fato de que o cresci
mento quantitativo dos setores médios, bem como a elevação dos
seus padrões de exigência (indicados pela escolarização média,
por exemplo), não foram acompanhados pela correspondente
participação no produto1
Aliás, esse fato simples foi compreendido e abertamente de
nunciado pelos vários setores de classe média, inclusive pela buro
cracia militar. Nesse sentido, o Memorial dos Coronéis dirigido
ao Ministro da Guerra, em fevereiro de 1954, contém alegações
importantes. Na época, foi preparada a nova tabela do salário
minimo, no Ministério do Trabalho, cujo titular era João Gou
lart. De fato, os mínimos salariais são elevados em 93,5%, com
relação ao anterior. Já antes, em 1951, foram elevados em
230,5%. Essas alterações na escala dos salários a vencimentos es
tavam colocando os setores médios em situação de “ inferiorida
de” , relativamente aos outros grupos assalariados As elevações
dos salários mínimos dos trabalhadores industriais estavam pro
vocando, indiretamente, a proletarização de amplos setores da
classe média. A inflação è outro fator atuando no mesmo sentido
e com maior vigor.
Diante dessa evolução do salário minimo, determinados seto
res militares sentiram o rebaixamento relativo das suas condições
de vida. A inflação e a redução das diferenças entre salários, ven
cimentos e soidos dos membros da classe operária e da classe
média estavam provocando a proletarização desta. Essa situação
alimentou, em escala cada vez maior, as inquietações políticas de
setores civis e militares. Em várias ocasiões essas inquietações
tornaram-se fatos politicos fundamentais, no equilíbrio do poder
civil. Um documento importante para o esclarecimento desse as
pecto da realidade nacional é o “ Memorial dos Coronéis” , cm
que se diz, entre outras afirmações:
118
Casas do Congresso, sem maior exame de todas as suas consequências, re
dundar em outra série de males e desníveis dentro da própria classe militar
E a elevação do salário mínimo a nivel que, nos grandes centros do Pais,
quase atingirá o dos vencimentos máximos de um graduado, resultará, por
certo, se não corrigida de alguma forma, em aberante subversão de todos
os valores profissionais, estacando qualquer possibilidade de recrutaipento,
para o Exército, de seus quadros inferiores4
119
poder; os do governo pum se conservarem nele. Os que esLão de baixo vão
aos quartéis para desalojar do puder os que estão de cima; estes apoiam-se
nos quartéis para não serem desalojados pelos que estão de baixo. E tem si
do esta — a de mero instrumento das ambições civis — a função propria
mente política do Exército em nossa história5.
I 21)
simboliza perleitamente o modo pelo qual as posições dos civis e
dos militares se correspondem, conjugam-se e complementam-se.
São faces do mesmo processo político.
121
documentos tanscritos em seguida, assinados por personalidades
das Forças Armadas.
122
Parece que nem uma coisa nem outra. E, sim. garantir a aplicação da
lei, que não permite, por ilegal, movimento de tamanha gravidade para a
vida da nação.
Tratei da situação política somente para caracterizar a nossa conduta
militar.
Os quadros das Forças Armadas têm tido um comportamento, além de
legal, de elevada compreensão Tace a dificuldade e desvio próprios do
estágio atual da evolução do Brasil. E mantidos, como é de seu dever, fiéis
à vida profissional, à sua deslinação e com continuado respeito a seus Che
fes e â autoridade do Presidente da República.
É preciso ai preservar, sempre “ dentro dos limites da lei” . Estar pron
to para a defesa da legalidade, a saber, peio funcionamento integral dos
três poderes constitucionais e pela aplicação das leis, inclusive as que asse
guram o processo eleitoral, e contra a revolução para a diladura e a Consti
tuinte, contra a calamidade pública a ser promovida pelo CGT e contra o
desvirluamento do papel histórico das Forças Armadas.
O Excelentíssimo Senhor Ministro da Guerra tem declarado que asse
gurará o respeito ao Congresso, às eleições e à posse do candidato eleito. E
já declarou também que não haverá documentos dos Ministros Militares de
pressão sobre o Congresso Nacional.
Ê o que eu tenho a dizer em consideração à intranquilidade e inda
gações oriundas da atual situação política e a respeito da decorrente condu
ta militar7.
123
graus de hierarquia, vêeni com crescente apreensão o desenvolvimento da
grave crise de autoridade que, nos dias que correm, forma, com a crise
inflacionária, um circulo vicioso, a um tempo causa e efeito dos males que
assoberbam a vida do nosso Povo.
A ignomínia de uma ditadura comuuo-sindical — é fora de dúvida —
paira sobre a Nação Brasileira; os seus audaciosos arquitetos, escancarada
mente, aprazaram o Congresso Nacional para que, dentro de trinta dias, a
contar da data do seu ultimato, atenda ao pedido de reforma da Consti
tuição contido na mensagem presidencial, sob a ameaça de tomarem “ me
didas concretas", segundo a expressão dos dirigentes do famigerado CUT,
não excluindo a hipótese de uma paralisação geral das atividades cm todo □
País. £ o mesmo que os malfeitores indiferentes ás Leis Uu Pais c em atitu
de de desafio às autoridades publicas se reunirem c proclamarem a decisão
de assaltar determinadas propriedades se não for atendida, dentro de certo
prazo, a intimação feita — "a bolsa ou a vida!"...
O sistema comuno-sindical-grevista, na medida em que se fortalece e
amplia, torna-se cada vez mais perigoso para a segurança do País.
Reafirmo a Vossa hxcelência o que já, de algum lempo, venho assegu
rando e estou certo de expressar a opinião dominante entre os chefes milita
res, de que as Forças Armadas não podem dividir com nenhuma oigani
zação as suas atribuições constitucionais; a segurança doCioverno edas ins
tituições democráticas sõ pode repousar nas Forças Armadas — na sua leal
dade e em sua honra militar. Não è possível, neste terreno, a coexistência
pacifica do Poder Militar com o “ poder sindical" subversivo c fora da ici,
(...)
Com a autoridade na maièria, que ninguém lhe pode negar, Lènin
proclamou ser a inflaçao monetária, nos países capitalistas, preciosa aliada
do comunismo, pois que trabalha, silenciosa e sistematicamente, em seu fa
vor E os dirigentes desse sindicalismo revolucionário que controlam vários
sindicatos de atividades essenciais e dominam órgãos espúrios e marcada
mente comunistas — CCiT, PU A, CPOS, PAC, Furum Sindical de Debaies
(Santas), etc., os quais, em Nula de Instrução n“ 7, de IS de setembro de
1963, ao II Exército, denominei de serpentários, de peçonhentos inimigos
da democracia, traidores da consciência democrática nacional — desvir
tuando as altas finalidades do sadio sindicalismo, conforme concebido pelo
Presidente Getúlio Vargas, parece adotarem, consciente e cavilosamenic,
duas linhas de ação convergentes: aprofundar o mais possível a intlação
monetária (que tantas desgraças tem trazido ao povo brasileiro, inclusive o
suicídio do Chefe de Estado de 1954) e o solapamento da hierarquia e da
disciplina nas Forças Armadas, mediante uma açãu insidosa que vêm exer
cendo sistematicamente junto a sargentos, cabos, soldadas, marinheiros e
fuzileiros navaiss.8
8. "Posição do Estado-Maior das Forças Armadas Face aos Recentes Aconteci
mentos Ocorridos no Pais", documento confidencial entregue pelo General-de-
Exército Pery Consiant Bevilàcqua, Chefe do EMFA, ao Exceleutissimu Senhor
Presidente da República, em 31 de março de 1964, transcrito por Bilac Pinto,
Guerra Revolucionária. Forense, Rio (julho, 1964) págs. 205-17; citação das págs.
208-II.
124
9-abril-I964: O Ato Institucional que è hoje editado pelos
Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em no
me da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua qua
se totalidade, se destina a assegurar ao novo Governo a ser instituído os
meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica financeira, política
e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imedia
to, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem
interna e do prestigio internacional da nossa Pátria9-
Como vemos, a derrubada do governo João Goulart està ins
pirada na interpretação de que o País estava sendo campo de uma
verdadeira guerra revolucionária. Segundo se afirainava,
destinava-se esta a instaurar a República Sindicalista. As relações
do Presidente Goulart com o sistema sindical e os grupos políticos
nacionalistas e de esquerda eram encaradas como manifestações
claras de um programa subversivo. Era a democracia populista
atingindo desenvolvimentos inesperados para a classe dominante.
Segundo Bilac Pinto:
Em janeiro de 1964, etn contatos que fiz com o Governador Ademar
de Barros e com militares e políticos, obtive informações acerca da subsli
tuição de armas a sindicatos rurais e da orla marítima
No dia 15 do mesmo mês, em conversa com os jornalistas acreditados
na Câmara dos Deputados, revelei as informações que colhera nesses
encontros e, depois dc salientar a gravidade desse fato novo, no quadro da
subversão governamental em marcha, preconizei a organização de um mu
vimenlo democrático contra o golpe em preparo e aconselhei a população
civil a se armar, para resistir10.
125
O golpe militar contra o Governo Goulart (no Brasil, em abril de 1964)
deixou Washington diante de um dilema semelhante ao que enfrentou na
Guatemala, um ano antes. Embora Tosse derrubado um governo constitu
cional no Brasil, tratava-se de um governo que havia demonstrado brandu-
ra no trato do problema comunista e que havia seguido políticas econômi
cas notoriamente inadequadas. Por conseguinte, a Administração Johnson
foi pressurosa em dar boas-vindas à mudança. Tornou-se claro que a nova
administração se convenceu de que as tentativas de Kennedy para impor a
democracia à América Latina provaram se infrutíferas. E que, no futuro,
Washington empenhar-se-ia menos apaixonadatnenle com o principio da li-
herdade política na América Latina11.
126
nâo só nos assegure os recursos necessários para concorrermos substancial
mente na segurança do Atlântico Sul e defendermos, se for o caso, aquelas
áreas brasileiras tão expostas a ameaças exlraconlineniais, contra um ata
que envolvente ao território norte americano via Dacar — Brasil — anti-
Ihas; mas uma aliança que, por outro lado, traduza o reconhecimento da
real estatura do Brasil nesta parte do Oceano Atlântico, posto um termo fi
nal a qualquer política hifronte e acomodaticia em relação a nosso lyais e à
Argentina, ambas nações, por exemplo, igualmente aquinhoadas, contra
todas as razóes e todas as evidâncias, em armas de guerra naval12.
127
Em verdade, o golpe é o fecho do longo processo de transição
do Brasil da estera da libra esterlina para a esfera do dólar. É fato
que esse processo já se havia desenvolvido bastante, como indi
cam as análises de Alan K. Manchester e J. F. Normano15 Entret
anto, as crises, tensões e conflitos internacionais (polarizados na
Guerra Mundial de 1914-18, na Grande Depressão iniciada com o
craque de 1929 e na Guerra Mundial de 1939-45, além de outros
acontecimentos) são acontecimentos que acompanham a rotação
do centro dominante do capitalismo da Europa para os Estados
Unidos. Ê a partir de 1945 que esse pais se vê colocado diante de
todas as tarefas inerentes à sua supremacia no mundo capitalista.
Nesse momento, no entanto, as missões econômicas, políticas,
militares e culturais que lhes cabem desempenhar exigem um
grande esforço de organização e mobilização de recursos. Por is
so, o novo estilo de sua hegemonia sobre a América Latina só se
formula ao acaso dos acontecimentos. Inclusive ao acaso das
surpresas, como ocorreu com a vitória de Fidel Castro e do sócia
lisino em Cuba. Segundo as palavras de Edwin Lieuwen:
128
Thomas C. Mann: Ja não podemos viver isolados do resio do mundo,
como se ele nào afetasse vilalmeme nosso bem-estar nacional e individual1s
129
político) é necessário reconhecer que se havia encerrado o ciclo de
industrialização baseado na substituição de importações. Em es
pecial, enquanto modelo de desenvolvimento econômico naciona
lista, apoiado amplamente em bases populares e implicando numa
política externa independente, o padrão getuliano havia entrado
numa encruzilhada.
Além do mais, na época do governo de Juscelino Kubitschek
de Oliveira (Programa de Metas, 1956-60), havia sido posto em
prática o padrão de associação de capitais nacionais e estrangei
ros, além das facilidades para investimentos externos independen
tes. Já durante a Segunda Guerra Mundial se reconhecia nos Esta
dos Unidos que o nacionalismo precisava ser contornado de modo
realista nas nações sul-americanas. Segundo W. Feuerlein e E.
Hannan, em obra especialmente dedicada às perspectivas ofereci
das então pela economia da América Latina:
130
com os interesses externos. Em outros termos, tornava-se ne
cessário corrigir o modo pelo qual o Brasil estava ingressando na
era industrial. Portanto, o golpe de 1964 destinou se a conterir
uma nova direção ao processo histórico nacional. Segundo as pa
lavras de Thomas C. Mann, citado anteriormente:
19. i homas C. Mann. "Mann Trata da Ajuda ao Brasil", O Estudo de São Paulo.
19-abril 1964» pág, I.
20. “ l.'Allcanza Rússia América", editorial de l.'Espresso, Ruma, 5 Dicccmhre,
1965, Ano XI, u? 49, pág. I. Ainda sobre as ambiguidades da União Soviética no
“Terceiro Mundo” : Isaac IJeutscher. "On the Israeli-Arab War” , em New Left
Review, n! 44, London. 1967, págs, 30-45, esp. pág, 35.
131
Em suma, o golpe de tsiado de 1964 foi uma operação
político-mililar destinada a elelivar os seguintes objetivos:
132
X
A D ep en d ên cia E strutural
133
h) Entretanto, a necessidade de exportar produtos industriais
exige a reformulação e eliminação das defesas que permitiram ou
favoreceram a criação e a expansão do setor industrial, na época
da política de substituição de importações.
c) Em consequência, impõe-se uma reformulação da maneira
pela qual a economia brasileira se insere na economia internacio
nal A necessidade de alto nivel técnico exige a associação crescen
te com as organizações que monopolizam a tecnologia mais mo
derna nas nações de industrialização mais avançada. E essas orga
nizações são as empresas multinacionais, que mantêm os labo
ratórios de pesquisa e monopolizam a tecnologia. A propósito
desta questão, Antônio Dias 1 eite faz observações importantes:
134
Assim, como o povo brasileiro não teve condições para levar
a ruptura político-econômica até ao fim — segundo as próprias
exigências do modelo getuliano ou conforme uma opção de tipo
socialista — o seu desenvolvimento econômico voltou a depender
cada vez mais dos vínculos e centros de decisão externos A
entrada no estágio da industrialização abriu perspectivas a um de
senvolvimento capitalista autônomo. Entretanto, para que esse
projeto se efetivasse, era necessária a reformulação drástica dos
vínculos estruturais internos e externos. E essa reformulação ter ia
sido possível em várias ocasiões críticas, no período entre 1914 e
1964. Os movimentos armados, os golpes e as revoluções ocorri
dos nessa época são indicativos da possibilidade de ampliar e con
solidar a autonomia. Aliás, os movimentos de massas, a democra
cia populista, o nacionalismo e o dirigismo estatal foram elemen
tos concretos e, às vezes, efetivos nessa direção. O modelo getulia
no de desenvolvimento envolvia o aprofundamento das rupturas
estruturais. Além disso, nesses anos os sistemr. ^uiiticos e econô
micos dominantes estavam em crise. As contradições internas do
capitalismo mundial levaram ao esfacelamento do predomínio da
Inglaterra, Alemanha e França. Passo a passo, cresceu e
consolidou-se a preponderância dos Estados Unidos, no campo
capitalista, e da União Soviética, no campo socialista. Essa conso
lidação só se verificou depois da Segunda Guerra Mundial. Em
verdade, a guerra foi um acontecimento importante para a efeti
vação da liderança econômica, política, militar e cultural dessas
duas potências
No caso da América Latina, como um todo, a influência dos
Estados Unidos é antiga e atravessa várias fases. Entretanto, até
1930, o Brasil se encontra profundamente vinculado à Inglaterra.
Ê a Grande Depressão iniciada em 1929, em combinação com a
crise cafeeira, os movimentos sociais internos e a Revolução Bra
sileira de 1930 que liquidarão os vínculos mais importantes com a
área da libra esterlina. Nessa ocasião, o Brasil dà um passo decisi
vo na direção da área do dólar. Como assinalou Alan K. Manch-
ester, antes de 1930 a estruturado intercâmbio externo do Brasil
já se vinha modificando de forma nítida, em favor dos Estados
Unidos. Da mesma maneira argumenta J. F. Normano, ao fazer
um apanhado da história econômica do Brasil, nas décadas que
antecedem à Segunda Guerra Mundial.
135
Os interesses britânicos perderam a sua posição no comércio do Brasil,
e estão perdendo a sua dominadora situação de fornecedores de capitais.
Paralelamente á mudança nos principais produtos. New York substituiu a
I.ondres quanto ã sua importância na economia brasileira e Wall Sireei to
mou o lugar de Lombard Street. Todo o processo de após guerra da pene
tração do capital dos Estados Unidos da América do Norte no Brasil foi um
contínuo processo de expulsão e ocupação das posições européias e, princi
palmente, britânicas2
136
Portanto, muitas vezes a importância da composição dos in
vestimentos, segundo a nacionalidade de procedência dos capitais
ou dos investidores, ê apenas formal. £ nesses termos que deve
mos compreender a natureza dos interesses estrangeiros na econo
mia brasileira, depois de 1945.
Aliás, a estrutura econômica do Brasil já vinha facilitando o
predomínio das organizações e técnicas monopolísticas, nacionais
e internacionais, mesmo antes daquela data. As heranças da eco
nomia de tipo colonial, sustentada no Século XX com base na ca
feicultura, facilitaram a formação de monopólio e oligopólios.
Muitas vezes, a situação de fato era monopulistica. Em 1942,
Corwin D. Edwards, membro da Missão Cooke no Brasil, obser
va o seguinte:
137
publicados por Desenvolvimento & Conjuntura, de maio de 1961,
Alberto Passos Guimarães assinala o seguinte:
138
pre era conveniente ao “ equilíbrio” e funcionamento da econo
mia brasileira. È nessa época que se concentram os investimentos
na indústria automobilística. Na forma em que se fizerem as in
versões nesse setor, criaram*se várias empresas “concorrentes” .
para um mercado disponível relativamente restrito. Entretanto,
ficaram esquecidos outros setores importantes para a integração e
o funcionamento gerai do sistema.
Os benefícios colhidos pelas organizações internacionais e as
empresas estrangeiras foram tão amplos e rápidos, que o diário O
Estado de São Paulo chegou a preocupar-se com a desnacionali
zação de empresas e setores industriais nacionais. Em 1961 já se
haviam evidenciado os efeitos internacionalizantes da política
econômica enfaixada no Programa de Metas, do governo de Jus-
celino Kubitschek de Oliveira.
Ê evidente que, quando um grupo estrangeiro pode importar bens de
equipamento à taxa do mercado livre, ele se vê em situarão privilegiada em
relação á indústria nacional, uma vez que esta tem de comprar Promessas
de Venda de Cambiais a uma taxa mais elevada. Dir-se-á que. no caso dc
grupos estrangeiros, se trata dc participação de capital novo c, portantn.
embora com desvantagens para a indústria nacional, de grande interesse
para a Nação. Devemos frisar, porém, que, cm muitos casos, esses investi
mentos estrangeiros não significam realmentc uma participação de capital
novo. mas apenas um reinvestimcilto de lucros realizados nn Brasil, produ
to, cm parte, de uma poupança forçada do povo brasileiro. Em outros ca
sos, os investimentos foram feitos sob a forma de bens de equipamentos an
tigos (a c acex oferec grande margem de tolerância à exigência dc matei ial7
140
lor üe investimentos. Na indústria de base, aproximam-se dos grupos es
trangeiros. Estão em franca desvantagem nos setores de distribuição (prin-
cipalmente petróleo), serviços industriais, Tabricação de bens de consumo
durável e mecânica pesada.
5) Os grupos multibilionários estrangeiros são, em sua maior, parte,
norte-americanos; em seguida vêm os alemães, os ingleses e os franceses,
justamente nessa ordem. Os norte-americanos têm preferência pela indús
tria de bens duráveis (principalmente automóveis).
6) Entre os grupos multibilionários nacionais, os de origem local são
pouco mais numerosos (exatamente: 58,3%) que os de origem não local.
(ilaliana, israelita, alemã, francesa e sueca). Proporcionalmenle, esses úl
timos tendem mais á atividade industrial que aqueles.
7) Não há nenhuma relação entre o seior de atividade principal dos
grupos e sua atividade secundária. Quase todos os grupos nacionais têm pe
lo menos um setor de atividade secundária, enquanto ncrn todos os estran
geiros a têm.
8) Os grupos nacionais, em geral, são muito mais diversificados que os
estrangeiros. A extrema diversiTicação dc alguns grupos, embora irracional
quanto à sua organização, apresenta vantagens num mercado restrito e su
jeito a fortes flutuações setoriais.
9) Mais da metade dos grupos multibilionários, tem sede em São Pau-
lo, cerca de uma terça parte deles na Guanabara, e só uma pequena fração
em Minas Gerais.
10) Os multibilionários nacionais têm, em média. 21 firmas por grupo,
enquanto os estrangeiros tem apenas 8.
11) Via de regra, nos grupos estrangeiros a companhia è controlada em
99% pela matriz, mas existem exceções. No caso dos grupos nacionais, o
exemplo típico è do controle exercido por uma rede emaranhada de hol
dings puros e mistos, bem como vários indivíduos, mas através dessa rede
se atualiza o poder de decisão do patriarca da família empresarial.
12) Metade dos grupos analisados (50,9%) possui Holdings puros Mas
o papel destes é menor do que o das empresas operativas que atuam conto
holdings. Em grande número de grupos, a companhia-lider — embora ope
rativa - tem grande papel no controle acionário das demais firmas congre
gadas.
13) Todo grupo estrangeiro è por definição gerencial, enquanto, nos
grupos nacionais, a família do empresário e outras relacionadas com este
jogam papel de importância.
14) Apenas 37,5% dos grupos mulnbilíonârios nacionais não têm qual
quer ligação acionária como outro grupo ou empresa estrangeira
15) Mais frequentemente, nos grupas estrangeiras, os diretores, em sua
maioria, são estrangeiros, e os cargos mais importantes são tambetn ocupa
dos por estrangeiros. Há casos, entretanto, que diferem radicalnicnte desse
padrão''.9
141
Entretanto, o processo de internacionalização não ocorre de
modo harmônico e sistemático. Ele depende bastante das flu
tuações internacionais. Em particular, depende da reestruturação
do sistema capitalista mundial. Como persistiam as contradições e
crises internacionais, depois da Guerra Mundial de 1939-45, a pre
ponderância dos Estados Unidos não se estabelece fácil e total
mente. Ainda ocorrem muitos fatos, até que ela se estabeleça de
modo completo. Conforme relata Arthur M. Schlesinger, Jr.:
142
I
Conferência das Classes Produtoras do Brasil (reunida em Te-
resópolis, entre 1 a 6 de maio de 1945) sintetiza os alvos principais
desse projeto. Nesse documento faz-se um balanço completo das
principais medidas econômicas, financeiras, cambiais, fiscais, etc.
com as quais o governo e os setores mais novos da classe domi
nante esperavam fazer a economia brasileira ingressar em novo
estágio de expansão. Paralelamente a esses debates, o “ movimen
to queremista” ganhava as classes assalariadas, lançando as bases
populares do desenvolvimento com a democracia populista. O
queremismo preconizava uma Assembléia Nacional Constituinte,
com Vargas na Presidência da República. Diante do final da
Guerra e da iminente instauração da ordem democrática,
preparava-se o País para desenvolver as forças produtivas, au
mentar a renda nacional, combater o pauperismo, etc11.
Mas os interesses tradicionais internos e externos predomina
ram, frustrando largamente aquele projeto. Os setores mais con
servadores da classe dominante movimentaram-se com rapidez e
Vargas foi deposto no dia 29 de outubro de 1945. A conjugação
de interesses internos e externos foi sugerida também pelo histo
riador Arthur M. Schlesingcr, Jr., nos seguintes terinus:
Mais tio que ninguèn». Berle constituiu um elo entre a política de Boa
Vizinhança c a Aliança para o Progresso. Sua experiência no Brasil, onde
ajudou, em 1945, a desencadear a sucessão de acontecimentos que levaram
à derrubada da ditadura de Vargas, convenceu-o de que a Boa Vizinhança
não poderia sobreviver como uma política apenas diplom ática e jurídica 2
143
acumuladas durante a Guerra sejam desbaratadas improdutiva
mente. Elas são utilizadas na importação de artigos de consumo
ostentatório, quando era possivel e necessário um programa dc
aquisição de máquinas, equipamentos e tecnologia no exterior.
A despeito disso, no entanto, verificou se algum progresso
na industrialização do Pais. As bases políticas do modelo getulia-
no haviam sido lançadas e consolidavam-se. O Partido Social De
mocrático (PSD), o Partido Trabalhista Brasileiro (P I B) e o getu-
lismo permitiam a conjugação das forças políticas burguesas e
proletárias, constituindo-se, desse modo, as bases da democracia
populista. A Campanha do Petróleo, conduzida por militares e
estudantes, forças políticas nacionalistas e esquerdistas, elemen
tos da oposição e do governo, constituiu-se num êxito, fcm 1950
Vargas foi eleito, tomando posse em 1951. Em 1953 sanciona a
Lei que cria a Petrobrás, instituindo se o monopólio estatal na ex
ploração da indústria petrolífera. Em 24 de agosto de 1954
Getúlio Vargas suicida-se.
O governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira é uma etapa
diferente e importante. De novo conjugam-se interesses internos e
externos. Abandona-se o modelo getuliano (em sua política eco
nômica) e coloca-se em execução uma política de desenvolvimento
com associação internacional, L um estágio fundamental para a
internacionalização da economia brasileira.
Entretanto, essa evolução da economia, como modificação
na orientação da política econômica, foi realizada nos quadros da
democracia populista. Houve uma conciliação engenhosa da
política econômica internacionalista com a política de massas, de
base nacionalista. Por isso, os anos posteriores foram anos críti
cos. Como o governo Kubitschek não realizou a liquidação da de
mocracia populista, estabeleceu-se e cresceu o divórcio entre as
tendências da estrutura econômica e as tendências da estrutura de
poder. Em especial, a democracia populista tornou-se um
obstáculo cada vez mais insuportável ou inconveniente. A disso
ciação entre o poder político e o poder econômico acenluava-se.
Neste ponto entram em jogo motivos importantes, interferin
do na direção e na estrutura das relações econômicas e políticas
externas do Brasil. De um lado, coloca-se de modo claro o proble
ma da “ segurança” dos Estados Unidos, em face da União So
viética e, em anos recentes, da China Continental. Esse é um d e
mento básico para a compreensão da forma pela qual a doutrina
144
da diplomacia total desdobra-se na internacionalizarão da econo
mia brasileira. A propósito dessa questão, vejamos alguns docu
mentos ilustrativos. Eles nos ajudam a compreender os diferentes
encadeamentos entre as esferas econômicas, política e militar São
traduções de urna obra preparada pela Brookings Institution e de
uma obra de autoria de Adolf A. Berle, ex-Embaixador norte
americano no Brasil.
14 Major Problems o f United States Foreign Policy, 1954. Prepared by lhe Stafl
of lhe Uroulcings Instiluiion, Geurge Bania Publishing Company, Menasha, Wis-
consin, I y54, págs. 338 e 340 I. Alguns desdobramentos militaristas dessa
interpretação estão apresentados e discutidos nos seguintes trabalhos: Willard f .
Ilaiber and C. Nealc Konning, Internai Secunly and Military Power fCouillenn
surgency and Civic Actton in Latin America), Ohio State Universily Press, 1966
Irving Luuis Horuwitz, "lh e Military Elites” , em Seymour M Lipset and Aldu
Solari (Edilors), Elites in Latin America. Oxford Universily Press, New Vurk.
1967, chapier 5.
145
diferente ou estranha para nòs é lotalmente secundário, em importância,
comparado com o Tato de significar Um perigo para a nossa sobrevivência,
no contexto da atual luta mundial. Os Estados Unidos podem coexistir (e
durante a maior parte da sua existência têm coexistido) razoavelmente com
todos os tipos de sistemas sociais, governados por diferentes regimes
políticos. Por exemplo, é pcrfettamcnte possivel imaginar sistemas não ba
seados na propriedade privada (apesar de que devemos duvidar do seu su
cesso) com os quais os Estados Unidos podem trabalhar normalmcnte. Mas
isto desde que eles se comprometam a não juntar-se a outros, para conquis
tar os Estados Unidos; ou desde que não insistam (cumo o faz Castro) que
atacarão de algum modo o sistema político-econômico americano. Por um
periodo de cerca de vinte anos, a União Soviética tem convivido com a Fin
lândia, cujo sistema não guarda qualquer relação com o sistema comunista.
Isto é possivel desde que uma Finlândia nâo-comunista não r e p r e s e n t e um
perigo para a segurança da União Soviética. Mas esta não toleraria o in
gresso ou associação da Finlândia com a n a t o 1'1 .
14. Adolf A. Berle. Lalin America — Diptomacy and Reality, Published for lhe on
Foreign Relations by Harper & Row, Publishers, New York. 1962, págs. 23-4. A
maneira pela qual as nações da América l.atina (e esta como um todo) foram in
cluídas na Guerra Fria e nos “ jogos” políticos e militares entre os Estados Unidos
e a União Soviética encontra-se examinada em: John l.ucãcs. A New Hislory o f
lhe Cnld War. third edition, Doublcday & Company. New York. 1966. Amitai El-
zioni, Winning Without War, Doublcday & Company, New York, 1965. Quanto a
algumas falácias sobre o papel de forças militares na América I atina: Irving l ouis
Horowitz, “ United States Policy and the Latiu American Military Eslablish-
ment", The Correspondem, Autumm, n? 32, 1964, págs. 32, 1964, págs. 45-61
146
iiorie-americano à juma militar brasileira significativa que a formal opo
sição norte americana a um golpe na Argentina era pura aparência. Estão
certos. £ só pura aparência. Temos demonstrado através de nossas ações
nos últimos três anos que era pura aparência. Tetnos pouco interesse pelo
constitucionalismo. Seja o que for aquilo que nossas missões militares estão
ensinando aos latino americanos está alentando e não desalentando seus
golpes contra o constitucionalismo1516
14'
político, o econômico e o militar se tornam mais complexos, desa
fiando as interpretações convencionais. O próprio conceito de
nação entra em debate, quando os processos econômicos e políti
cos se encadeiam em âmbito continental.
Daí a necessidade de formular a doutrina de interdependên
cia, na qual se insere a doutrina de reversão de expectativas, que
fundamenta a política interna dos governantes a partir de março
de 1964. Em confronto com o modelo do desenvolvimento econô
mico autônomo e da política externa independente, o governo do
Marechal Humberto de Alencar Castello Branco põe em prática o
padrão da interdependência. Trata-se de negar o modelo getulia-
iio, em sua prática e como ideologia. Por essa razão o acordo so
bre a garantia de investimentos privados, assinado por rc
presentantes dos governos do Brasil e dos Estados Unidos, em fe
vereiro de 1965, é um documento fundamental e simbólico, Trata-
se de um desenvolvimento lógico do espirito da Aliança para o
Progresso. O sistema uniforme de garantias de investimentos, que
o acordo estabelece, destina-se, fundamentalmente:
17. "O Acordo” (Acordo Sobre a Ciarantia de Investimentos Privados Entre os Es
tados Unidos do Brasil e os Estados Unidos da América), publicado em Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 11-12-1965, pág. 2.
148
sa c ao grau de integrarão das economias nacionais, é perfeilaineme claro
que os centros de decisão representados pelos atuais Estados nacionais pas
sarão a plano cada vez mais secundário18.
149
Vemos nos Estados Unidos o líder inconteste do mundo livre e o prin
cipal guardião dos valores fundamentais de nossa civilização e neles temos
um aliado de mais de 140 anos, numa tradição de bom entendimento a que
não Faltou o batismo do sangue derramado em defesa de nosso sistema dc
vida. (...)
Quando se fala em soberania, nem sempre se Faz distinção entre sobe
rania ilimitada e soberania relativa, distinção que não tinha sentido há 20
ou 30 anos, mas que hoje é indispensável... (...)
Disse ser preciso pensar scriamente numa ordem internacional, que
não precisará eliminar o que as soheranias nacionais têm de essencial, mas
terá de promover um equilíbrio, objetivando de inicio a segurança coletiva,
a Fim de que, num regime de interdependência maior que a atual, todos os
Estados tenham menos soberania acessória e mais segurança efetiva.
Nn que tange á soberania nacional, não concebo, dentro desse quadro,
objeções essenciais à idéia da criação duma força interamericana dc paz.. ,2n
150
XI
A Ideologia dos
Governantes
151
mudança de orientação. Resume o sentido básico da nova política
econômica e social, no plano interno. Em âmbito mais largo, éji
ço.atrapartida interna üa doutrina da interdependência. Vejamos,
pois, como ela aparece.
O desenvolvimento político, econômico e cultural do Brasil
— conforme demonstramos nos capítulos da primeira e segunda
partes desta obra — baseou-se num conjunto heterogêneo de con
dições e fatores: a luta pela industrialização e a defesa dos setores
tradicionais da economia; nacionalismo e compromissos crescen
tes com o capitalismo mundial; politica externa independente e to
mada de posição na estratégia da “ futura terceira guerra mun
dial’’; luta pelas reformas de base e conciliação com os setores
tradicionais da classe dominante; redefinição e florescimento da
cultura e da consciência nacionais, de um lado, e preservação e
ampliação dos vínculos alienadores, por outro. Esse é o quadro
geral — complexo e muitas vezes contraditório — em que estava
ocorrendo a evolução da sociedade brasileira. Nesse contexto (e
dessa forma) verificava-se o desenvolvimento político, cultural e
econômico real. E ê nesse mesmo contexto que se dá o golpe e a
reorientação do processo civilizalório brasileiro, tm verdade, esse
processo foi interrompido e conduzido a outra direção quando:
a) O progresso econômico esteve em vias de conduzir o Brasil
à condição de nação independente, com ascendência sobre nações
da América Latina e da África. Neste caso, o “ modelo brasileiro”
de desenvolvimento seria um exemplo “ inconveniente” às outras
nações do “ Terceiro Mundo” , além de prejudicar diretamente o
exercício da liderança dos Estados Unidos no continente sul-
americano. Aliás, o comportamento do Brasil, com relação a Cu
ba Socialista, já estava "prejudicando” profundamente a harmo
nia de pontos de vista desejada pela Organização dos Estados
Unidos Americanos, OEA2.
b) A política de massas e o nacionalismo esquerdizante, no
âmbito da democracia populista, estavam começando a ameaçar
o poder da classe dominante. E a eventualidade das crises políti
cas, associadas às crises econômicas, abriría caminhus para o so-
152
cialismo. De fato, conjunturas revolucionárias surgiram em
várias ocasiões, como, por exemplo: em 1945, com a deposição de
Getúlio Vargas; em 1954, com o suicídio de Vargas; em 1961, com
a renúncia de Jânio Quadros; em 1964, com a deposição de João
Goulart.
c) Os Estados Unidos da América do Norte assumiram plena
mente a liderança política e econômica do mundo capitalista. E
no jogo da “ guerra fria” com a Uniào Soviética, definem-se as li
nhas mestras das áreas de influência e predomínio. Em conse
quência, a América Latina, como um todo, fica sob a influência
americana. Sobre esta questão, o estudo de Arthur M. Schlesin-
gei, Jr. (Sobre a administração Kennedy) faz revelações sugesti
vas:
De Gaulle reconhecia a América Latina coino responsabilidade pri
mordial dos Estados Unidos, mas aTirmou que os laços de uma culiura co
mum davam á França um acesso e uma função particulares naquela área.
Kennedy disse que saudava as contribuições francesas para o desenvolví
mento latino-americano3.
Tal como consideravamos a América Latina como nossa responsabili
dade, assim também consideravamos a África como, priinordialnicnte,
uma responsabilidade da Europa Ocidental4.5
(Kennedy) foi, na realidade, o primeiro Presidente norte-americano
para quem a totalidade do inundo era, num certo sentido, política interna3
153
salários nominais, superiores ás possibilidades reais da economia e que por
isso mesmo logo se esvaem na iràgica espiral de preços; precisamos evitar a
frustração do poupador, que vê sua moeda esvair-se e conclui ein favor do
consumo, da especulação ou da exportação de seu dinheiro, em Pais tão ne
cessitado de investimentos produtivos: precisamos denunciar a leviandade
do consumidor de luxo. que afronta com seu desperdício e frivolidade o de
sespero dos necessitados, e que em Pais pobre exibe uma riqueza incom
patível com o sentimento de solidariedade social c u urgência de concentrar
todos os recursos possíveis em investimentos produtivos Capd2es de acelerar
o desenvolvimento”9.
São os mitos, ainda mais que as mentiras, que afligem nosso compor
tamento econômico c destorcem nossa realidade política. Capitulemos os
mitos, alguns deles, na esperança de que sua Identificação seja o inicio do
urgente processo de ennauberunfi ttU vtjá a desencaniação pela volta à rea
lidade, a que se referia Mas Weber. Pois se os fins da sociedade podem es
tar envoltos em mística e magia os seus meios e métodos têm que ser racio
nais e eficazes10.
156
Mas a doutrina da “ reversão de expectativas’’ não é uma in
venção do Ministro. Nem diz respeito apenas à vida econômica.
Envolve os diferentes niveis da existência nacional. Trata-se de
uma verbalização procurando dar sentido à alteração drástica do
desenvolvimento político, cultural e econômico no Urasil. Se con
siderarmos que essa doutrina é formulada simultânea e congruen
temente com a luta contra as conquistas da democracia populista,
a forma pela qual estava ocorrendo o florescimento cultural, a
ebulição de teorias e correntes políticas, o desenvolvimento in
dustrial, a luta contra o pauperismo, a formulação de novas téc
nicas de alfabetização, a emancipação política de setores crescen
tes na população nacional, a execução de uma política externa in
dependente, a adoção de compromissos internacionais mullilaie-
(.rais — se levarmos em conta todas essas manifestações do proces-
[so civilizatório brasileiro — constatamos que a reversão de expec-
| tativas é um eufemismo. Em realidade, è a contrapartida, no pia
\no da política interna (como um todo) da doutrina da inlerdepen
Idência. O que de fato se pretende é a reorieiUaçãQ global do p r o
cesso político e do processo econômico, do pensamento e da'ação.
Essa reorientação destina-se a pôr em prática uma “ nova”
concepção da economia brasileira. Trata-se de fazer com que o
País se coloque (quanto às relações econômicas internacionais e,
em conseqüência, internas) nos mesmos lermos que as nações
mais industrializadas e dominantes [Segundo o governo inaugura
do em 1964, o País deve substituir õ "complexo de inferiorida
de’’, inerente ao nacionalismo, por um “ complexo de superiori
dade’’, inerente à formulação oficial da doutrina de inlerdepen
dência. Por isso, a cooperação e a competição externas passam a
ser variáveis naturais e desejadas na política econômica governa
mental. Em outros termos, o “ sacrifício” de empresas brasileiras
é encarado pelos governantes como um resultado inevitável do
confronto entre diferentes mentalidades empresariais e capacida
des técnicas das organizações. Essa é a perspectiva com a qual se
encara o crescimento dos índices de falências e concordatas de
empresas brasileiras; ou a associação destas com empresas estran
geiras.
157
presas obrigadas a fechar suas portas ou foi por incapacidade gerencial, ou
de não se ajustarem às condições econômicas que o Pais exige11.
158
dadeira independência provêm da energia dos que realizam o programa na
cional, e não dos demagogos que promovem a desunião dos patriotas e bus
cam descarregar sabre outrem a culpa de nossas naturais deficiências1V
159
A maioria dos economistas jovens que vão capacitar-se nos centros
universitários dos países industrializados volta ao seu meio com esquentas
teóricos dissociados, em maior ou menor grau, da realidade objetiva e da
problemática de sua naçãa de origem e, frequentemente, com um instru
mental de operação que não têm possibilidade de empregar fecundantente.
Não è raro, pois, que no regresso tenham de passar por um per iodo de
agonnizing reappraisal, de um desesperado esforço dc readaptação, Os
mais maduros e inteligentes separam o joio do trigo, estabelecendo a verda
deira colocação de suas abstrações teóricas e selecionando seu instrumental
segundo as possibilidades de aproveitamento. Outros, entretanto, ou caem
no poço das confusões e do desalento ou se transformam em repetidores de
clichês didáticos ou em artífices de acrobacias matemáticas, ao passo que se
revelam impotentes para interpretar a realidade nacional e menos ainda pa
ra ajudar a resolver os problemas econômicos14.
160
XII
Ditadura
161
defrontam aqueles que assumem o poder em 1964. A luta contra
as experiências e heranças da democracia populista — particular
mente o nacionalismo e a esquerda — exigem novas definições;
em particular, porque os líderes do golpe não têm "carisma” nem
penetração popular. Entretanto, como os motivos "revolu
cionãrios” são bastante “ racionais” , insistem na negação das li
deranças carismáticas e demagógicas. Preconizam a organização,
a responsabilidade, a eficácia, como se as razões coletivas fossem
imediatamente redutiveis a relações mecânicas. O princípio do
lucro precisa ser transformado na moral coletiva. Pretendem ins
taurar a racionalidade teoricamente possível, confundindo teoria
e prática, possibilidades abstratas e possibilidades concretas, Max
Weber e Benjamim Franklin. Em poucas palavras, essa con
cepção apresenta-se inicialmente nos seguintes termos, nas formu
lações de Roberto de Oliveira Campos, Marechal Humberto de
Alencar Castello Branco e Oliveiros S. Ferreira:
162
los Lacerda da Guanabara encarna, a lógica nos diz que ele é o último
representante do subdesenvolvimento politico brasileiro. Isso se traduz em
que o Estado, daqui por diante, tenderá a deixar de ser a escola risonha e
Franca em que os alunos cnlravam á hora que bem entendiam, a professora
recitava a lição que havia aprendido na véspera festiva e todos passavam de
ano e recebiam aumento de salários a cada dezembro. E isso significa,
também, que a personalidade dos lideres daqui por diante contará aquele
minimo (sumamente importante, porém) permitido pelas estruturas, e que
será a organização que terá a responsabilidade de gerir os negócios
públicos3.
163
Governador R oberto de A breu Sudre: Se os civis se absorverem nas
suas ocupações particulares, esquecidos dos seus deveres para com a Pátria,
como estranhar que os militares os substituam até mesmo na organização
da sociedade civil?
Ou os homens de empresa compreendem o seu verdadeiro papel, nos
tempos desafiadores de hoje, adaptando se à mentalidade desta nova eia,
às novas condiçúcs sociais e políticas, às novas exigências da economia da
segunda metade do Século XX, para a qual as “ necessidades humanas pre
valecem sobre o equilíbrio mecanicista do qual o homem havia sido quase
inteiramente banida" na judiciosa observação de François Pcrroux; ou os
empresários partem resolulamenie para cooperar na consirução da ordem
civil, intervindo na lula política, envolvendo-se pessualmenle nela e assu
mindo os riscos dai decorrentes, sem se deixarem monopolizar pelos seus
afazeres privados, como é do seu dever, ou entãu terão de lamentar que o
façam outros sem o seu dinamismo e incapazes de compreender a insubsti
tuível missão da economia privada, com □ que terão lavrado a sua sentença
de morte e sò lhes restará aguardar passivamente que se torne cada vez mais
brutal a invasão do Estado na vida econômica, atê a estatização total4.
164
Em 1962, a taxa de desenvolvimento per capita cai para 0,5% e
em 1963 vai a menos de 1%. Paralelamenle, os empresários
preocupam-se seriamente com os rumos do poder político. Essas
correspondências aparecem de modo claro nos textos transcritos
em seguida:
165
mente quando possível — uma barreira à democracia populista.
Buscava-se recompor as estruturas de dominação e apropriação,
parcialmente dissociadas na época da vigência do modelo getulia-
no9.
A criação do Grupo Permanente de Mobilização Industrial,
em 1964, é um fato importante na evolução desses encadeamentos
entre o poder político e o poder econômico, juntamente com o po
der militar. Segundo os empresários que participaram da soleni
dade oficial de instalação desse órgão:
166
Desse modo inicia-se a institucionalização do complexo
induslrial-miliíar no Brasil. A nova concepção de “ segurança na
cional" — redefinindo e ampliando a noção de “ defesa nacional"
- exige a reformulação das relações entre as Forças Armadas e a
Indústria. A eficácia do poder militar depende da forma pela qual
ele se relaciona ao setor industrial. Por esse motivo procura-se es
tabelecer um “ parque industrial-militar” adequado às perspecti
vas que se abrem ao Pais. Segundo informa o jornal Folha de São
Paulo:
12. “ Nossa Indústria Vai Reequipar o Exército’’, Folha de São Paulo, 3-8-1967,
pàg. I. Algumas obras importantes para a compreensão do conceito e das im
plicações econômicas e políticas da doutrina da “ segurança nacional” : Estudo
Sócio-Político da Vida Nacional, coleção de ensaios publicados pelo Instituto de
Sociologia e Política, da Federação do Comércio do Estado de Sào Paulo, SESC c
SENAC, 1958; Oliveiros S. Ferreira, A s Forças A rm adas e o Desafio da R evo
lução, Edições ORD, Rio dc Janeiro, 1964; A Segurança Nacional, número espe
ciai da Revista Brasileira de Estudos Políticos, n? 21, Belo Horizonte, 1966; A Re
voluçüo de 31 de Março, 2? Aniversário, coletânea de pronunciamentos e ensaios
sobre a colaboração do Exército, Biblioteca do Exército — Editora, Rio de Janei
ro, 1966; General Golbery do Couto e Silva, Geopolltica do Brasil, José Olympio
Editora, Rio de Janeiro, 1967.
167
(
realização do poder político nacional. A própria noção dc “gran
deza nacional’’ fundamenta-se no sistema de dominação inerente
às novas combinações das estruturas de poder Segundo sugere
Oliveiros S. Ferreira:
1 68
Posição d o s Assalariados: A repartição da renda interna, tomando por
base o conjunto de salários e ordenados, lucros, juros, aluguéis, ele., no
anu de 1960 (que é o último para o qual se dispõe de estatísticas), revela que
a participação da remuneração dos nossos trabálhadores, na Renda Interna
du setor urbano (avaliada em 64,9%) é das mais altas dc que se tem noticia
no cenário internacional, ultrapassando a registrada em várias nações de
scuvuividas, tais cumu a frança, Alemanha, Itália, Suiça, Bélgica, Holan
da. Dinamarca, Áustria, Austrália, Japão e Nova Zelândia. São poucos os
países, como os Estados Unidos, a Inglaterra, a Suécia e a Noruega, onde a
percentagem de Renda Interna absorvida pelos assalariados excede a que,
em 1960, se verificou no Brasil.
A Ilusão Trabalhista: Por ouiro lado, e segundo os mesmos dados, os
salários reais teriam crescido bastante até 1959, tendendo, porém, a decli
nar dai por diante — sobretudo nos dois últimos anos. A mais importante
evidência nesse sentido (na falta de outros dados mais conclusivos) é forne
cida pelas variações du salário-ininimo.
Purudoxalmente, p o n a n to , fo i precisam ente durante o período em que
a trabalhismo dom inou a cena nacional, que os assalariudos mais sofreram,
em lerm os de poder aquisitivo real, em virtude da inflação que anulou os
maciços reajustam entos d e salários nominais, e da queda da taxa de cresci
m ento do Pais. ocasionalm ente a dim inuição das oportunidades de ocu
pação e emprego. Paralelamente, agravou-se o desnível entre as classes as
salariadas, avançando mais aquelas dotadas de maior capacidade de pres
são política, conquanto nem sempre as mais produtivas, em detrimento da
grande massa de assalariados1415.
O processo costumeiro dc revisão salarial, em proporção supetiur ou
igual ao aumemo do custo de vida é incumpalivel coin o objetivo dc
dcsin Ilação com desenvol viinen to13.
Nada mais urgente do que repensar o papel do trabalhismo no cenário
nacional, seja pelas suas potencialidades dinâmicas, seja pelo alto grau de
intoxicação a que foi exposto no passado. Pode ser paternalista, desde a era
de Vargas, o trabalhismo se tornou inautêntico; por ser irrealista ele se tor
nou demagógico.
O prim eiro pecado do antigo trabalhismo era a preocupação obsessiva
com altas maciças de salários nominais. Estando estes muito além du
incremento de produtividade e du crescimento possível de produção, o re
sultado natural dessa ilusão era a aceleração do processo inflacionário.
O segundo vicio do antigo trabalhismo era o seu desinteresse por
outros aspectos da luta operária, no fundo mais significativos que a simples
reivindicação salarial. Pouco se cogitava das oportunidades de acessa á
169
educação, á casa própria, assim como da purificação e melhoria dos dis
pendiosos e ineficientes serviços de assistêcia e previdência social.
O terceiro vício do antigo trabalhismo estava na criação de uma aris
tocracia do peleguismo. Através de uma esquisita barganha, algumas clas
ses politicamente poderosas — como os marítimos, portuários e ferro
viários — avançaram em matéria de benefícios salariais muito mais rapída
mente que outros elementos das classes trabalhadoras, politicamente menos
influentes.
Se, em alguns casos, como nos dos metalúrgicos e dos operários na
indústria química, o avanço salarial refletiu melhoria de treinamento e pro
dutividade, em outros casos a melhoria salarial assentou na mera moti
vação política, enquanto decrescia a produtividade. Os Sindicatos deixa
ram de ser instrumentos de avanço dos trabalhadores, para se transform a
rem em veículos de política partidária.
O quarto pecado do antigo trabalhismo residia na sua relativa indife
rença ao nivel de investimentos e, portanto ás novas oportunidades de
emprego.
Essa atitude ê tão egoísta como cruel. Ao pretender níveis salariais des
vinculados da produtividade e da possível receita dos serviços, os operários
e trabalhadores das autarquias de transporte acabaram diminuindo a capa
cidade de investimento do Governo, e portanto a sua capacidade de criar
empregos produtivos para as novas gerações.
Similiarmente, ao pressionarem por aumentos irrealistas de salários no
setor privado, colocaram as empresas frente ao dilema de anularem rapida
mente o incremento de salários pela rcmarcação inflacionária de preços, ou
reduzirem o nivel de investimentos, anulando novas possibilidades de
emprego. Destarte, os já empregadas aumentavam ilusoriamente sua remu
neração, condenando ao desemprego as novas gerações que continuamente
a fluem ao mercado de trabalho.
O quinto, o mais grave pecado do amigo trabalhismo, residia na dis
solução dos padrões morais. Numa terrível vingança contra as indiscrimi
nadas acusações de Marx ao espirito predatório do capitalismo, que ex
plorava a mais-valia, o peleguismo operário passou a explorar egoistica-
mente os elementos mais indefesos da classe operária1*.16
170
Essa é a nova imagem do trabalhismo, em oposição a um su
posto distributivismo da política de massas vigente antes de 1964.
E é com base nessa interpretação das relações de classes — quanto
à participação no produto — que os governantes formulam as no
vas diretrizes da “ política social” . Os pontos centrais da política
“ operária” , inaugurada com a vitória sobre a democracia popu
lista, são os seguintes:
a) Acabar com a participação das classes assalariadas — par
ticularmente o proletariado — nas decisões políticas em geral.
Portanto, acabar ou reduzir bastante a interferência do “ sindica
lismo” nos acontecimentos políticos federais, estaduais e munici
pais.
b) Controlar (ou anular) a capacidade dos grupos burgueses
de oposição à política econômica inaugurada em 1964 (associação
aberta e ampla com capitais e organizações internacionais)
apoiarem-se nas classes assalariadas, ou funcionarem como as
seus porta-vozes. Em realidade, enfraquecer as bases políticas dos
setores nacionalistas identificados com o modelo nacionalista de
desenvolvimento.
c) Em conseqüência, restaurar o controle da classe dominan
te sobre o “ comportamento” do fator fundamental da produção,
manipulando-se tão completamente quanto possível o custo rela
tivo da força de trabalho, a sua eficácia produtiva, etc. For isso, o
princípio da “estabilidade” dos assalariados (após dez anos de
atividade na empresa) é transformado em “ seguro-desemprego” ,
libertando a empresa de um encargo fixo e permanénte. Em
outros termos, restaura-se o “ confisco salarial” , por meio do
controle rígido e centralizado da politica de salários e dos movi
mentos sindicais.
d) Em suma, liquidar com a politica de massas, enquanto
técnica de sustentação do poder político e enquanto manifestação
essencial da democracia populista. Com esta finalidade, altera-se
a lei sobre a greve, controlando-se rigorosamente as possibilida
des de sua utilização, como técnica de reivindicação econômica ou
política.
Como vemos, as relações de classe são reformuladas, jurídica
e politicamente, em termos bastante claros e diversos da definição
vigente antes de 1964. As modificações da legislação sobre parti
dos, sindicalização, greve, previdência social, etc. revelam a
estrutura básica da “ nova imagem do trabalhismo” no Brasil.
171
(
Não se tem havido a necessária uniformidade na apurarão e na
aplicação dos índices para a reconstituição do salário real médio nos últi
mos 24 meses, base da política salarial seguida pelo governo como instru
mento de combate à inflação;.,, dessa falta de uniformidade, tem resultado
a concessão de percentagens diferentes de aumento salarial, até mesmo
dentro da mesma categoria profissional;... a falta de uniformidade c de
precisão na apuração dos Índices e os critérios divergentes na aplicação da
legislação em vigor têm contribuidu, frequentemente, para a concessão de
aumentos salariais conflitantes com a orientação geral da politica econômi
ca e financeira do governo;... a paz social, requisito fundamental da segu
rança nacional, exige uma politica salarial equisitiva para a classe trabalha
dora em seu conjunto, não se coadunando com tratamentos discrimi
natórios em benefício ou detrimento de qualquer categoria prufissiunal1718.
A greve será reputada ilegal; 1) Se não atendidos as prazos e as con
dições estabelecidas nesta Lei; 2) Se tiver por objeto reivindicações julgadas
improcedentes pela Justiça do Irabalho, em decisão definitiva, há menus
de um ano; 3) Se deflagrada por motivos políticos, partidários, religiosos,
sociais, de apoio ou solidariedade sem qualquei reivindicação que interesse
direta e legitiinamente á categoria profissional; 4) Se liver por fim alterar
condição constante de acordo sindical, convenção coletiva de trabalho ou
decisão normativa da Justiça do Trabalho em vigor, salvo se tiverem sido
modificados substancíalmenleos fundamcnms em que se apoiam
17. Exposição de motivos que acompanha o decreto-lei que estabelece critérios pa
ra unificação dos reajustes salariais, "Decreto Estabelece Norinas Kígiüas para
Reajustes Salariais” Folha de São Paulo, 2-8-1966, pág. 9.
18. Lei que regulamenta o direito de greve (Capítulo 6? Da ilegalidade da greve),
sancionada pelo Presidente da República em I de junho de 1964. "A íntegra da
Lei Sobre Direiro de Greve” , reproduzida em O Estado de São Paulo. 2 6-1964,
pág. 5.
172
essenciais do modelo básico de modernização da sociedade nacio
nal; isto é, de consolidação do status quo , em termos ditatoriais.
Essas duas doutrinas destinam-se a realizar a reintegração dos po
deres político e econômico, consolidando a ditadura da classe do
minante. Segundo afirma Castello Branco:
173
nome da organização e da eficácia, instala-se a ditadura20. Assim,
a hipertrofia do Poder Executivo está na essência da politica eco
nômica adotada a partir de 1964. Além disso, essa politica econô
mica é uma exigência do programa de destruição da democracia
populista. É preciso uma vasta mobilização de recursos políticos e
ideológicos, quando se pretende liquidar com valores e padrões,
técnicas e ambições criados em décadas de lutas e acumuladas p o r
parcelas crescentes do povo brasileiro.
Nesse sentido, os Atos Institucionais, a Constituição imposta
por meio do Legislativo submisso em 1967, a reforma da legis
lação trabalhista, a depuração da estrutura partidária, a reforma
universitária, o controle das organizações sindicais e estudantis
são fatos encadeados. Correspondem à intenção de reaglutinar os
poderes políticos e econômicos em nova direção. Destinam se a
derrotar o modelo nacionalista de desenvolvimento, enquanto
estrutura de poder e politica econômica. Simultaneamente,
derrotam-se as classes assalariadas e parte do empresariado nacio
nal.
174
Conclusão
175
Conclusão
217
c a d a s. Q uisem os acom panhar os processos políticos e e co n ô
m icos, no quadro das contradições principais e secundárias.
C om o queríam os interpretar a sociedade brasileira a partir das
transform ações e crises ocorridas no âmbito das estruturas polí
ticas e econôm icas, exam inam os em primeiro !n gar o desenrolar
das rupturas estruturais verificadas nas últim as d écadas. A p o n
tam os a sucessão e os encadeam entos internos e externos dessas
rupturas. Sim ultâneam ente, analisam os as relações entre os pro
cessos políticos e os processos econôm icos, no âm bito das trans
form ações da estrutura social global.
Em consequência, o exam e dos acontecim entos colocou-
nos diante do problem a do im perialism o, tanto quanto diante
dos papéis da burguesia n acion al. A s relações de classes sur
giram em suas m anifestações concretas; obscuras ou claras, de
antagonism o ou a c o m o d a çã o . E o populism o, em suas diferen
tes m odalidades (getulism o, trabalhism o, populism o de esquer
da e t c . ) foi caracterizado e interpretado, no contexto social e
econ ôm ico em que realm ente surgiu. N a verdade, reconstruím os
a form ação, apogeu e colapso da política de m assas, conhecida
tam bém com o pop ulism o. V ejam os, pois, uma síntese dêsse
quadro histórico, em seus significados presentes.
O populism o brasileiro surge sob o com ando de Vargas e
os políticos a êle associad os. D esde 1930, p ou co a pouco, vai
se estruturando êsse nôvo m ovim ento p olítico. A o lado das
m edidas concretas, desenvolveu-se a ideologia e a linguagem do
p o p u lism o . A o m esm o tem po que os governantes atendem a
uma parte das reivindicações do proletariado urbano, vão se
elaborando as instituições e os sím bolos p o p u lista s. P ou co a
pouco, form aliza-se o m ercado de fôrça de trabalho, no m undo
urbano-industrial em exp an são. A o m esm o tem po, as m assas
passam a desem penhar papéis políticos reais, ainda que secun
dários . A ssim , pode-se afirmar que a entrada das massas no
quadro das estruturas de poder é legitimada por intermédio dos
movimentos populistas. Inicialm ente, êsse populism o é exclu si
vam ente getu lista. D ep ois, adquire outras conotações e, tam bém ,
denom inações. B orghism o, querem ism o, juscelinism o, janguism o
e trabalhism o são algumas das m odulações do populism o brasi
leiro. N o conjunto, entretanto, trata-se de um a política de m assas
específica de um a etapa das transform ações econ ôm ico-sociais
e políticas no B rasil. Tratai-se de um movimento político, antes
218
do que um partido político. Corresponde a uma parte funda
mentar !TaT~manííestações políticas que ocorrem numa fase de
terminada das transformações verificadas nos setores industrial
e, em menor escala, agrário. Além disto, está em relação dinâ
mica com a urbanização e os desenvolvimentos do setor terciá
rio da economia brasileira. Mais ainda, o populismo está rela
cionado tanto com o consumo em massa como com o apare
cimento da cultura de massa. Em poucas palavras, o populismo
brasileiro é a forma política assumida pela sociedade de massas
no país.
Vim os que a política de massas foi burguesa e esquerdista.
Às vêzes os seus líderes eram homens provenientes do povo,
ou mesmo de grupos políticos ou partidos de esquerda. Outras
vêzes, as lideranças eram propriamente burguesas. Na maioria
dos casos, os líderes burgueses dominavam o cenário populista;
controlavam os aparelhos burocráticos dos partidos e organiza
ções comprometidas com a política de m assas. Em geral, êles
eram os demagogos mais bem sucedidos junto às m assas. A l
guns alcançaram a categoria de personalidades carismáticas.
Entretanto, o populismo entrou em colapso após o G o
verno de Juscelino Kubitschek de Oliveira. A verdade é que
foi um movimento político em permanente crise. Numa socie
dade burguesa, é sempre muito difícil legitimar a participação
política das massas trabalhadoras. Os donos do poder político
e os grupos econôm icos dominantes sempre foram obrigados a
enfrentar duas ordens de pressões, quanto aos seus vínculos e
jogos com as m assas. D e um lado, os setores mais conservado
res e reacionários da sociedade brasileira sempre protestaram
com violência contra o jôgo político com as m assas. Êles viam
nesse jôgo o prenúncio da destruição do poder burguês e das
suas ligações externas. Além disso, êsses mesmos setores pro
testavam e lutavam contra a política de massas porque com
preendiam que estas eram utilizadas para reforçar a capacidade
de baganha (interna e externa) da burguesia industrial interes
sada no mercado brasileiro. Por outro lado, a própria burgue
sia comprometida com o populismo sempre foi ambígua e divi
dida, com relação aos limites do seu jôgo com as m assas. O
populismo sempre foi, malgrado as distorções político-ideoló-
gicas que lhe são inerentes, um mecanismo de politização das
massas. A participação dos trabalhadores dos centros urbanos
219
I
e industriais nas campanhas eleitorais (m unicipais, estaduais e
fed erais), nos m ovim entos nacionalistas, nas lutas antiimperia-
listas e nos debates pelas reformas de base (institucionais) fa
voreceu e desenvolveu a politização dos assalariados. Por êsses
m otivos, o populism o foi pontilhado de crises. A deposição e
suicídio de Vargas, em 1954, sim boliza m uito bem todo êsse
conjunto de pressões e am biguidades que caracterizam a histó
ria do populism o brasileiro.
A lém do mais, a esquerda sempre estêve, direta e indire
tam ente, relacionada com o pop ulism o. Em sua maioria, m es
m o em seus setores mais radicais, acreditava que se infiltrar nos
m ovim entos de massas era uma técnica viável de ação política
para a esquerda. A o m esm o tem po que os grupos e partidos
políticos de esquerda organizavam -se à parte, infiltravam -se ou
aliavam -se aos m ovim entos, campanhas, partidos e lideranças
populistas. Queriam conquistar as m assas por êsse m e io . Na
maioria dos casos, entretanto, transformaram-se êles próprios
em populistas; enredaram-se nas técnicas, na linguagem e nas
interpretações do populismo. D e qualquer maneira, todavia, as
ligações entre as esquerdas e o populism o foram mais uma fonte
de tensões e con flitos. N este sentido, tam bém , é que a política
de m assas populista foi um m ovim ento em perm anente crise.
E é nesse quadro que com eçam os a com preender as razões
do seu colapso, em 1 9 6 4 . Já no plano interno, o populism o é
um sistema de an tagon ism os. Com o política de aliança de clas
ses, é uma política de aliança de contrários. A o m esm o tem po,
a sua posição no contexto político de um a sociedade de tipo
capitalista criava novas condições de crise. Em épocas de “nor
m alidade” a aliança sempre funcionava, em algum grau. Mas
em ocasiões críticas, surgiam necessariam ente os antagonism os.
N esse plano de considerações, vejam os quais são as condições
que geram a crise e o colapso do populism o.
Em primeiro lugar, é importante mencionar que em 1962
pràticamente se encerra um longo período de expansão e co n ô
mica no B rasil. N esse ano já com eçam a fazer-se sentir os
indícios da queda na taxa de desenvolvim ento. Em 1963, a
crise econôm ica está em curso. A o m esm o tem po, a inflação
deixa de ser uma técnica de poupança monetária forçada A
inflação de lucros transforma-se em inflação de custos. Isto é
a espiral inflacionária adquire conotações “patológicas” para
220
o sistema. A reprodução capitalista com eça a entrar em
ponto m orto.
Em decorrência da aceleração do processo inflacionário, as
massas passam a reivindicar aumentos salariais cada vez mais
frequentes. Os trabalhadores entram numa luta reivindicatória
pràticamente ininterrupta, para evitar o excessivo rebaixamento
do poder aquisitivo do salário. A s campanhas salariais e as gre
ves são as manifestações da luta operária contra o confisco sala
rial inerente à inflação. N esse contexto de lutas, os operários de
senvolvem as suas organizações sindciais, fortalecem as confede
rações, ampliam as suas relações com os partidos populistas e de
esquerda; e ganham as praças públicas. A partir das reivindica
ções salariais, politizam-se de modo acelerado. A arregimen-
tação política necessàriamente está na base também das lutas
por conquistas econôm icas.
E politizam-se de modo acelerado numa época em que o
poder burguês enfrenta crises cada vez mais agudas. Êste é um
segundo ponto importante. Entre 1961 e 1964, o poder polí
tico brasileiro está em franca convulsão. A renúncia do Presi
dente Jânio Quadros foi seguida de um movimento de resistên
cia popular, comandado pelo Governador Leonel Brizola, a
partir do Estado do Rio Grande do Sul. Em poucos dias, após
a renúncia, acelera-se o processo de politização das camadas
populares no Brasil. Os golpistas que aplicaram um golpe sobre
o golpe de Jânio (êste sob o artifício da renúncia) não pude
ram resistir às pressões da opinião pública e aos indícios de
organização de milícias populares. Entregaram o govêrno do
país ao Vice-Presidente João Goulart.
Mas Goulart é um líder populista. Traz consigo todos os
compromissos e ambiguidades da política de m assas. Governa
sempre sob as várias pressões que caracterizam a história do
populism o. Agora essas pressões estão concentradas, em fôrça
e profundidade. Assim , os anos de 1962-64 são anos de crises
políticas sucessivas, no âmbito de uma crise geral do poder
burguês; tanto quanto da economia nacional. Essa situação de
crise se aprofunda ainda mais com os debates sôbre as reformas
de base. As campanhas pelas reformas institucionais são um
dos fatores que provocam a reaglutinação das forças políticas
burguesas. Aliás, setores conservadores e liberais, internos e
221
\
externos aliam-se para enfrentar e dar uma solução política à
crise.
A verdade é que a política de massas estava indo muito
longe, numa época de enfraquecimento do poder político da
burguesia. O jôgo com as massas, preconizado e realizado por
um setor da própria burguesia, já não era mais suportável para
a classe dominante. Os riscos se acumulavam. Além do mais,
o populismo começava a estender-se para a sociedade agrária.
As ligas camponesas e os sindicatos rurais estavam sendo mul
tiplicados e dinamizados pelo Partido Trabalhista Brasileiro
(P T B ), o Partido Comunista Brasileiro (P C B ) e a Igreja Ca
tólica, de acordo com as técnicas, os símbolos e a linguagem do
populism o. A própria luta pela reforma agrária funcionava
como um meio para fazer crescer a fôrça do “trabalhismo rural”.
Diante dessa situação, as burguesias agrária, industrial, comer
cial e financeira aliam -se. Elas compreendem que a crise traz
consigo várias possibilidades de resolução do im passe.
Por um lado, ampliavam-se as condições para uma solu
ção propriamente revolucionária. Constituíam-se as condições
para uma revolução socialista. A o lado da crise política, a crise
econômica adquiria certa profundidade. Combinavam-se as ten
sões econômicas e políticas, enfraquecendo o poder burguês.
Além disso, verificava-se uma rápida e ampla politização das
massas assalariadas. Também no campo crescia a participação
política dos trabalhadores.
Por outro Ido, as lideranças burguesas e de classe média
comprometidas com um projeto de capitalismo nacional pode
ríam vir a tirar vantagem da situação. O nacionalismo havia
preparado o ambiente para a redefinição das relações com os
Estados U nidos. Aliás, a ‘‘política externa independente” con
tinha vários indícios nesse sentido. A contrapartida da política
externa independente seria necessàriamente o capitalismo na
cional. Isto é, um sistema capitalista dispondo de centros polí
ticos de decisão efetivamente nacionais. Esta virtualidade estava
implícita no Plano Trienal, que Goulart não conseguiu pôr em
prática.
Mas a maioria dos setores burgueses (agrários, industriais,
comerciais e financeiros), nacionais e estrangeiros, não só com
preendeu com o atuou com maior rapidez. No conjunto das
opções amadurecidas durante o período crítico da democracia
222
p ■
223
lada pelo progresso acelerado da politização das m assas. O s
governantes norte-am ericanos sempre encararam com reservas,
ou hostilidade, o getulism o e algumas das suas variantes. Em
conseqüência, todos os progressos do m ovim ento de m assas no
Brasil eram m anipulados com o elem entos de alarma, junto aos
grupos conservadores e reacionários. N esse contexto é que são
aplicadas as n oções de “ditadura sindicalista” e “guerra revo
lucionária” , para alim entar ideologicam ente o m ovim ento gol
pista .
é nesse quadro de acontecim entos que o govêrno instala
do em 1964 volta-se para dois objetivos fundam entais. Por um
lado, reforça e amplia os vínculos externos de dependência, sob
a égide da “doutrina da interdependência” . Por outro lado,
desenvolve uma cam panha ideológica e policial contra tôdas as
m anifestações da política de m assas. Procura destruir as orga
nizações, técnicas, lideranças e id eologias criadas durante a
vigência do pop u lism o. N este plano, as atuações dos governan
tes destinam -se a elim inar, sim ultâneam ente, tanto as possibili
dades do socialism o com o do capitalism o de tip o n acion al. E m
nom e da “purificação” (o u m odernização) d o sistem a político-
econôm ico brasileiro, cria-se um a cultu ra d o fa scism o . V ítim as
do m aniqueísm o inerente à sua concep ção do processo político,
os governantes e os grupos econôm icos que êles servem estão
criando instituições, sím bolos e atitudes fascistas. Ê sse é o
preço que o povo brasileiro está pagando à aberta m ilitarização
do poder p olítico. A liás, a tendência para o fascism o é outra
característica essencial da dependência estrutural.
A verdade é que desde 1964 está em curso a radicalização
de direita, na esfera do poder político n acion al. A m ilitariza
ção da política é apenas um sintom a dêsse p ro cesso . A dita
dura da burguesia desenvolve-se e consolida-se, em nom e de
um a concepção arbitrária de estabilidade social e segurança in
terna. N o quadro de uma econom ia estagnada, desenvolve-se
tam bém a estagnação p o lític a . M ais do que isso, os governan
tes põem em prática uma concepção de poder que produz a
decadência política. M as essa decadência não atinge necessària-
m ente a tôda a sociedade brasileira. Ela atinge, em prim eiro
lugar, os próprios setores burgueses; e, em segundo lugar, tam
bém as suas bases na classe m éd ia. Enquanto isso, é ób vio,
criam -se novas condições revolucion árias. É que, na base da
224
política de estabilidade e segurança está o d ivó rcio entre o p o
der esta b elecido e as m assas assalariadas. O poder político é
exercido arbitràriamente, por um grupo com prom etido apenas
com os setores mais poderosos da classe dom inante. C om pro
m etido com esta tanto em seus interêsses econôm icos com o em
sua ideologia, sendo que essa ideologia inspira-se nos princípios
geopolíticos convenientes aos interêsses das corporações m ulti
nacionais .
Em outros têrmos, ao opor-se às prováveis ou imaginárias
possibilidades para a form ação de um capitalism o de tipo na
cional, os donos do poder estão favorecendo, ao m esm o tem po,
a produção de novas condições para o socialism o. Sim ultânea
mente, ao opor-se de m odo violento a tôda e qualquer m ani
festação de vida sindical e partidária realmente independente e
livre, êles estão criando mais algumas condições políticas indis
pensáveis à atividade revolucionária. Prisioneiros dos interêsses
econôm icos e políticos da classe dom inante — particularmente
aqueles organizados no âmbito das corporações m ultinacionais
— não conseguem resolver os problem as mais importantes da
sociedade brasileira. O bsecados pela estabilidade e a seguran
ça, para com bater qualquer m anifestação de vida democrática,
perm anecem no plano das aparências, insensíveis aos reais pro
blem as so c ia is. Por essas razões é que os problem as operário,
cam ponês, universitário (entre outros) são encarados, antes de
mais nada, com o problem as relacionados à estabilidade sócio-
política, ou às conveniências da segurança interna. Por essas
razões, ainda, é que às relações tradicionais de dependência
externa estão se acrescentando novas instituições e maior en
genho id eológico. C om o resultado geral, perm anece submersa,
ou em segundo plano, a verdadeira essência dos problem as.
A ssim , as relações entre as classes sociais adquirem contor
nos cada vez mais nítidos. À m edida que se asfixiam os m ovi
m entos das m assas (n o proletariado urbano e rural), criam-se
condições ainda mais propícias para a luta de classes. O p o -
pulism o terá sid o apenas um a etapa na história das relações
entre as classes sociais. N esse sentido é que se pode dizer que
no limite do populism o está a luta de classes, D a mesma forma,
no limite da ditadura de vocação fascista pode estar a socieda
de socialista.
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