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SEGUNDO TRATADO DO GOVERNO

Ensaio sobre a verdadeira origem,


alcance e finalidade do governo civil

John Locke

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


Serviço de Educação e Bolsas
Reservado todos os direitos de harmonia com a lei.
Edição e propriedade da
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Serviço de Educação e Bolsas
2007
INTRODUÇÃO

De entre as preocupações a que a filosofia política procura


dar resposta, duas há que sobressaem das demais. Por um lado,
compreender e explorar as opções que adoptamos em matéria de
organização social e política, submetendo-as a escrutínio e ao crivo
de uma avaliação crítica e racional. Enquanto ramo do saber
prático, ela disponibiliza-nos instrumentos através dos quais nos
podemos dotar das condições adequadas para o exercício de uma
cidadania activa, agindo a partir de convicções que, em vez de
arbitrárias ou irracionais, detêm um fundamento racional. Por
outro lado, mais prcifundo, ela procura desenvolver quadros con-
ceptuais através dos quais seja possível imprimir significado ao
mundo em que vivemos e pensar os lugares que nele queremos
ocupar e o tipo de vida que queremos viver. Trata-se de uma tarifa
essencial, pelo menos a partir do momento - simultaneamente
trágico e tão emancipador - em que, segundo a tradição judaico-
-cristã, por força do pecado original, o primeiro homem e a pri-
meira mulher foram expulsos do paraíso e, por isso, deixaram de
contar com a intervenção divina para a condução das suas vidas.
A partir de então, o género humano viu-se confrontado com a
necessidade, não só de "produzir o pão com o suor do seu rosto",
para se alimentar, mas também de moldar o mundo em que se
encontra e de forjar os seus próprios projectos de vida, tanto indi-
viduais como colectivos. Nesta vertente, utópica, afilosofia política
projecta-se para além do concreto, precisamente de modo a poder
apresentar modelos de organização social e política, visões da vida
boa, que merece ser vivida, e da boa sociedade. Desviando-se do
real, atende ao possível; afasta-se do "ser" para pensar e propor o
"dever ser".

[5]
É precisamente na medida em que se afastam do mundo
concreto ou de opções políticas concretas, eventualmente populares
num determinado período, para nos disponibilizarem paradigmas
de organização social e política capazes de nortear as nossas opções,
que as grandes obras adquirem uma dimensão que as projecta
para além do tempo e das circunstâncias em que foram redigidas,
e assumem um valor que resiste ao próprio tempo. Quando tal
acontece, os seus autores superam as contingências da conjuntura
histórica em que lhes é dado viver, libertando-se, assim, da "lei da
morte". Porém, e paradoxalmente, quanto maior é o fascínio de
uma obra, maiores, mais díspares e mais complexas são as leituras
a que dá origem . E quanto maior a estatura de um autor, maiores
as dificuldades que esperam quem o procure situar, muito em
particular tratando-se de alguém que, durante toda a sua vida,
primou pela privacidade e por permanecer para aquém do escrutí-
nio público e, após a morte, atraiu a atenção de um número sempre
crescente de comentaristas.
É o caso, manifestamente, do texto que agora se publica e do
seu autor.

John Locke. Vida e obra

John Locke nasceu em 1632 em Wrington, Somerset, no


sudoeste da Inglaterra, numa família com inclinações puritanas e
parlamentaristas. O pai, advogado e pequeno proprietário, inte-
grou as forças do Parlamento durante a guerra civil efoi através de
um Membro do Parlamento a quem prestava assessoria jurídica
que John Locke Sénior conseguiu o acesso do filho às melhores
escolas do tempo: Westminster Se/zoo/, de 164 7 a 1652, e, daí,
ao colégio de Christ Churclz, um dos mais reputados da Uni-
versidade de Oxford, onde acabaria por viver durante 14 anos,
primeiro como estudante, depois como assistente e, finalmente,
como prcifessor. Em Westminster, estuda os clássicos, o hebraico e
o árabe; em Oxford, centra-se na Filoscifia . Insatisfeito, porém,

[6]
com a perspectiva escolástica que, na altura, enformava os estudos
filosóficos, cultiva os novos saberes, então em emergência. Interessa-
-se em particular pela medicina, disciplina que viria a ter um
impacto directo sobre a sua vida, embora nunca tivesse exercido
a actividade. Foi professor de Grego, de Retórica, de Latim e de
Filosofia, cultivando ao mesmo tempo uma aproximação à inves-
tigação que se começava a desenvolver, na química e na medicina
em particular, o que lhe granjeia a eleição para a Real Sociedade,
em 1668.
Entre 1660 e 1662 redige os seus primeiros textos, os
Two Tracts on Government, bastante afastados das teses
liberais que viria a adoptar, nunca publicados durante a sua vida.
Um ano mais tarde, escreve os Essays on the Law of Nature,
provavelmente como sebenta para uma cadeira. Notáveis pelo seu
pendor empiricista, pela negação de ideias inatas, apresentam já o
gérmen do que viria a ser a filosofia do conhecimento do Essay
Concerning Human Understanding 1.
Ainda em 1663, recusa a carreira eclesiástica, contra-
riamente ao que se esperava de quem pretendia uma carreira
académica, e, no ano seguinte, experimenta uma actividade nova,
partindo numa missão diplomática junto do eleitor de Bran-
deburgo. A experiência não lhe deve ter sido particularmente grati-
ficante, uma vez que recusou dar-lhe continuidade, optando, antes,
por regressar a Oxford. É por esta altura que descobre Descartes,
que lê com gosto, vendo nele uma alternativa à escolástica, o que
o leva a dedicar-se à Filosofia.
Locke conheceu Lorde Ashley, mais tarde Conde de Slu:iftes-
bury, em Oxford, em 1662. E os dois travaram de imediato relações
de amizade. Quatro anos mais tarde, haveriam de voltar a encontrar-
-se, e desta vez os caminhos de ambos cruzar-se-iam diftnitivamente.

1 Pelo qual ficaria para sempre celebrizado como o grande vulto


do empirismo inglês. Este texto seria publicado entre nós em 1999, pela
Fundação Calouste Gulbenkian, em 2 vols., com o título E11saio sobre o
mtmdime11to huma11o.

[7]
Graças ao envolvimento directo de Sluiftesbury, Locke consegue
uma dispensa real que lhe assegura o lugar em Oxford, mesmo
sem ordenação sacerdotal. Em Julho de 1666, encontrando-se Lorde
Ashley gravemente doente, Locke aconselha uma delicada interven-
ção cirúrgica, que dirige pessoalmente, salvando-lhe a vida de forma
quase milagrosa. A partir de então passa a viver com ele, como
médico privado, como secretário pessoal e como assessor.
Exerceu, durante algum tempo, as funções de Secretário
do Conselho de Comércio e Plantações. E, se bem que não seja
possível distinguir com precisão as partes do texto que são da sua
autoria daquelas que lhe terão sido ditadas por Sluiftesbury, Locke
esteve envolvido na redacção da Constituição da colónia da
Carolina. São igualmente deste período dois textos de Locke. O
primeiro, é o An Essay concerning Tolerance, um pequeno
ensaio onde se começa a notar uma viragem liberal no seu pensa-
mento. O segundo tem por título Some of the Consequences
that are like to follow upon the Lessening of Interest to
4 Per Cent. E, embora não seja fácil datá-las com precisão, as suas
primeiras reflexões em matéria de filoscifia do conhecimento seguir-
-se-ão pouco depois. Reportamo-nos aos textos que ficariam
conhecidos como Drafts A e B, o último dos quais data de 1671 .
A associação a Shajtesbury marcou Locke indelevelmente,
começando a fazer-se sentir de imediato. Transportando-o para a
vida política do seu tempo, permitiu-lhe, simultaneamente, o
contacto com a actividade política - o que lhe ofereceu a oportuni-
dade de conhecer de perto os seus meandros concretos-, e o distan-
ciamento necessário para poder reflectir sobre ela. Shajtesbury era
uma das figuras mais influentes da época, e das mais controversas
também , e, para além disso, os tempos que corriam eram ainda
particularmente conturbados, caracterizados pela censura, pela
intolerância e pelo conflito pela sucessão dinástica . Eram tempos
em que as ideias políticas de um homem o podiam levar à desgraça
e, inclusivamente, ao cadafalso.
Entre 167 6 e 1675, Locke encontra-se embrenhado
nos negócios e na actividade política de Sluiftesbury. Em 1675,

[8]
Sluiftesbury é já líder da oposição ao absolutismo real. É nesta
altura que Locke parte para o continente europeu, onde perma-
neceu, viajando muito. Não se conhecem ao certo os motivos reais
da deslocação e, no dizer de David Wootton, não podemos ter
a certeza de qual a melhor maneira de o descrever durante este
período, se como 'filósofo convalescente", "exilado político", ou
"agente secreto" ao serviço de Shqftesbury2. Certo é, no entanto,
que Locke aproveitou esse período, para cultivar relações com as
principais figuras do seu tempo e aprofundar o estudo da filosofia
que se fazia no continente europeu, do cartesianismo, em parti-
cular. Durante a sua estadia em França tem oportunidade de
continuar a trabalhar a sua filoscifia do conhecimento e escreve
um ensaio intitulado De Intellectu.
Ao regressar a Londres, na primavera de 1679, encontra a
vida política inglesa em ebulição e o país profundamente dividido.
A liderar afacção Wig, liberal, Shajtesbury encontra-se no âmago
da luta política, e a ele junta-se Locke. Depois de passar um
ano preso na Torre de Londres por se opor ao rei, Shajtesbury
é nomeado para o governo, envolvendo-se nas conspirações maqui-
nadas para assegurar a exclusão do católico Jaime ao trono
protestante inglês, dentro e fora do Parlamento. A sua ligação a
Shajtesbury torna-o suspeito. Em 1681, Shqftesbury é novamente
preso, ficando os seus associados expostos. Um dos seus apoiantes,
Stephen College, é preso por apelar a que o Parlamento assuma o
controlo do poder e que o rei o respeite. E quando um júri lon-
drino o iliba, a coroa leva o julgamento para Oxford, onde ele é
condenado e executado. O próprio Shqftesbury é preso, acusado
de alta traição, e são enviados espiões para vigiar de perto os
movimentos de Locke.

2 Cf. a introdução, interessante e muito erudita , que preparou para a


edição das obras completas de John Locke publicadas em 1993 pela Mentor
Books. "lntrodu ction ", Politica/ Writi11gs ofJolm Locke, edited and with an
introduction by David Wootton, New York, 1993, p. 19.

[9]
Shajtesbury é entretanto absolvido e libertado - quando
deixa de constituir ameaça séria. No entanto, o período revolucio-
nário e conspiratório perdura . Em Julho de 1683, é descoberto o
conhecido "Rye House Plot'', visando prender e neutralizar o rei,
Carlos II, e o irmão, Jaime. Não é possível identificar com rigor
o grau de envolvimento de Locke na conspiração. Todavia, justi-
ficada ou injustificadamente, ele ter-se-á sentido em perigo. E
acabaria por ver os principais conspiradores pagarem a temeridade
com a vida. N o julgamento de um deles, Algernon Sidney, uma
das peças principais que haveriam de conduzir à pena de morte é
o livro, Discourses concerning Government, onde apresenta
princípios e ideais políticos não muito diferentes daqueles difen-
didos por Locke.
Nesse mesmo período, Locke terá testemunhado aquela que
acabaria por ser a última queima de livros na Inglaterra, no pátio
da sua Universidade, muitos deles títulos que ele próprio possuía
na sua biblioteca. Duas semanas mais tarde, abandona defini-
tivamente Oxford. Pouco depois, consegue fugir para a Holanda,
de forma completamente inesperada e com total secretismo, uma
semana antes da coroa começar a prender os conspiradores. Prender,
julgar e executar.
No prifácio que preparou para os Dois Tratados do
Governo, Locke manifesta a esperança de que a obra pudesse
contribuir para legitimar o poder do novo monarca inglês, o rei
Guilherme. Algumas passagens, curtas, terão sido adicionadas a
posteriori, no entanto, hoje é comummente aceite que o texto foi
escrito muito antes da "gloriosa revolução", e que a redacção do
Segundo tratado, que agora se publica, terá sido pelo menos
iniciada ainda em Londres.
Já no exílio, Locke vê o seu nome incluído na lista de
conspiradores. É banido de Oxford e, pior ainda, é emitido um
mandato de captura em seu nome. Nem no exílio está seguro,
sentindo necessidade de se esconder e de ocultar a sua identidade.
Em todo o caso, liberto de actividades políticas e administrativas,
estabelece contacto com outros exilados e com os prir1cipais vultos

[lO]
da sociedade holandesa do tempo, passando a dedicar-se aos seus
dois grandes interesses de sempre, a Medicina e a Filosifia. Nesta
última disciplina, são as áreas do Conhecimento e da Política que
centram a sua atenção. Continua a trabalhar no Ensaio, que em
1686 estará terminado. Por essa altura redige a Epistola de
Tolerantia, que seria publicada imediatamente após o regresso a
Inglaterra, em latim, com o pseudónimo curioso de PAPOILA.
Dois anos mais tarde, publica em francês na Bibliotheque
universelle et historique uma primeira versão, resumida, do
Ensaio, que faz circular em separata .
A ascensão ao poder de Guilherme de Orange, "o nosso
grande restaurador", como lhe chama Locke, e afuga para o exílio
de Jaime II marcam o encerramento do período revolucionário.
Locke pode regressar a Inglaterra, o que faz em Fevereiro de
1689. No entanto, não é uma Inglaterra totalmente pacificada
e estável que encontra, havendo sempre a possibilidade de um
regresso de Jaime II, o que significaria o retorno "de Morbo
Gallico ", da doença francesa, não só a sifilis, mas o absolutismo
monárquico3. É novamente tentado com a carreira diplomática:
oferecem-lhe o lugar de Embaixador em Brandeburgo, cargo que
rejeita. A sua saúde está a deteriorar-se, e opta por se dedicar à
in vestigação, revisão e publicação dos seus trabalhos.

3 Peter Laslett sublinha a existência de um manuscrito com este


nome, que constituiria a terceira parte dos Dois tratados do govemo, entre-
tanto perdida, ou destruída propositadamente. Locke não se terá atrevido a
levá-lo consigo para a Holanda, por medo de ser apanhado com ele,
deixando-o na Inglaterra ao cuidado de amigos, que, com o avançar da
repressão, das prisões, dos JUlgamentos e das execuções, o terão destruído.
O morbo gal/iro , que Locke põde observar de perto durante a sua estadia em
França, representava iguaJm ente um desafio geoestratégico fenomenal para
a própria Inglaterra. C f. a introdução preparada por Laslett para a edição
crítica dos Dois tratados do go11emo publicada pela Cambridge University
Press: John Locke, Tr110 Treatises of Gowmmmt, ed. Peter Laslett, Cambridge,
Cambridge University Press, 1988. A primeira edição é de 1960. Vejam-se,
em particular, as pp. 62 e seguintes.

[11]
Ao regressar a Inglaterra, não desenvolve grandes esforços
no sentido de recuperar o seu lugar em Oxford. Em vez disso,
estabelece-se temporariamente em Londres, e, a partir de 1691,
em Oates, no norte de Essex, como convidado permanente de
Sir Francis Masham, cuja mulher, Damaris, era uma amiga e
correspondente de longa data. A partir de então, passa o seu tempo
em Oates, com excepção dos períodos em que as suas actividades
prcifissionais o levam a Londres.
Em 1689 publica finalmente o Essay Concerning
Human Understanding, bem como os Two Treatises of
Government- estes últimos anonimamenté. Nesse mesmo ano,
publica a Letter concerning Toleration, tradução inglesa da
Epistola, que se esgota rapidamente, tal como a segunda edição.
No final do verão do mesmo ano publica uma Second Letter
concerning Toleration, que assina com o pseudónimo de
"Philanthropos", em difesa da primeira e em resposta às críticas
que entretanto lhe haviam sido dirigidas, de entre as quais
sobressai, pela sua vivacidade, a de Jonas Proast, um clérigo de
Oxford. Em Novembro do ano seguinte, faz publicar a Third
Letter for Toleration, bem mais circunstanciada do que a
anterior, nomeadamente em resposta a novo ataque de Proast,
que, desta feita, não reage. Paralelamente, volta-lhe o interesse
antigo por questões económicas, publicando, em 1691, um ensaio
intitulado Some Considerations of the Consequences of the
Lowering of Interest and Raising the Value of Money, em
que retoma muito do que havia escrito sobre a matéria para
Shajtesbury em 1668.
Em 1692 retoma outra vertente de que se havia ocupado
durante o exílio na Holanda: o ensino. A partir da correspon-

4 Até ao fim da sua vida, Locke Jamais reconheceria publicamente

a autoria deste e dos seus demais textos de filosofia política. A época


aconselhava prudência. Muitas vidas haviam sido ceifadas apenas pelas ideias
que defendiam. A revolução tinha terminado; no entanto, havia sempre
a possibilidade de um regresso de Jaime II e do retorno à instabilidade
revolucionária.

[12]
dência que havia trocado com um amigo a propósito da educação
do filho dele, publica Some Thoughts concerning Education.
É a segunda obra que publica com o seu nome, a seguir ao
Ensaio. Em Maio de 1694 aparece a segunda edição do Ensaio,
revista e alargada, em que procura responder à crítica que,
entretanto, havia originado. No ano seguinte, publica, anonima-
mente, o seu primeiro trabalho produzido inteiramente depois do
exílio, The Reasonableness of Christianity, uma obra bas-
tante controversa que haveria de ser alvo de violentos ataques
e que levaria Locke a publicar, sempre sob anonimato, duas
Vindications, uma em 1695 e a outra, bem mais aprofundada,
na primavera de 1697.
Para Locke, são tempos de intensa actividade, intelectual
e política também. A crise monetária trá-lo de novo para a vida
política, levando-o a publicar, no início de 169 5, um pequeno
trabalho intitulado Short Observations on a Printed Paper e,
no final do ano, um trabalho de maior fôlego, Further consi-
derations Concerning Raising the Value of Money. A
partir do ano seguinte, vê-se de novo envolvido na política comer-
cial e colonial inglesa, integrando o Conselho de Comércio e
Plantações, até se reformar, em 1700. O tempo que lhe sobra,
reserva-o para a defesa do Ensaio. Publicado em terceira edição em
169 5 e em quarta, em 1700, seria objecto de crítica por parte
do Bispo de Worcester, Edward Stillingfleet, com quem Locke
acabaria por se envolver em acesa polémica.
Locke passou os últimos anos de vida em Oates, empenhado
na redacção da sua última grande obra, Paraphrase and Notes
on the Epistles ofSaint Paul, publicada apenas postumamente,
e na elaboração de uma versão corrigida dos Dois tratados do
governo, considerando que as primeiras duas edições continua-
vam a apresentar muitas imprecisões.
Peter LAslett relata com pormenor a história das primeiras
edições desta obra5 . A primeira data de 1690 e apresenta erros

5 Cf. a Introdução que preparou, acima citada, pp. 7 e seguintes.

[13]
graves que a tornam de todo insatisfatória. Quando, cinco anos
mais tarde, é necessário proceder a uma segunda edição, Locke
apresenta um novo manuscrito, com uma série de alterações. Esta
segunda edição, no entanto, acaba por ser ainda pior do que a
primeira. Tanto assim que o editor acede em vender todos os
exemplares a baixo preço, de modo a que a edição "se espalhasse
por entre leitores comuns". Quatro anos depois, esta edição mais
barata encontra-se igualmente esgotada, procedendo-se, então, a
uma terceira edição, de maior qualidade, a partir de novo texto
corrigido por Locke. Mas nem esta terceira edição de 1698 o
satisfaz. É, portanto, à revisão desta edição que Locke se dedica,
primeiro pessoalmente, depois através do seu secretário, Pierre
Coste. Esta versão corrigida será utilizada para a quarta edição
dos Dois tratados, inserida na primeira edição, já póstuma, das
obras completas de Locke, que data de 1713 . A partir daí, os
Dois tratados foram reeditados, com regularidade quinquenal,
tendo-se assistido a uma degradação gradual da qualidade do
texto, na medida em que para cada nova edição se recorria ao texto
da edição imediatamente anterior, copiando e aumentando os seus
erros. Este processo apenas seria travado em 17 64, quando
Thomas Hollis adquire e publica o manuscrito com as correcções
iniciadas por Locke e concluídas por Pierre Coste ao texto da
terceira edição. E é a esta edição de 17 64 que Laslett recorre para
a sua edição crítica e que também nós utilizamos.
Em 1702, Locke redige ainda um pequeno opúsculo
intitulado Discourse of Miracles, publicado apenas postuma-
mente. Com o agravamento do seu estado de saúde, passa os
últimos anos de vida em casa, na companhia de Lady Masham,
saindo cada vez menos. Não chega a terminar a última obra de
que se ocupa, a Fourth Letter on Toleration, a degradação do
seu estado de saúde não o permite. Tem ainda oportunidade para
reconhecer a autoria dos Dois tratados do governo, no codicilo
que introduz, já em 1704, no seu testamento para "legar à
Biblioteca Pública da Ur!Íversidade de Oxford [. .. } Two
Treatises of Governement, do qual o Sr. Churchill publicou

[14)
várias edições, mas todas muito incorrectas". A autoria do texto
fica assim afirmada em definitivo. Finalmente John Locke, o
filósofo do Ensaio, corno gostava de ser conhecido, reconhece ser
também o autor dos Tratados, mas para a posteridade, já que
perante os seus conterrâneos, nunca a assumiu, nem jamais
permitiu que fosse divulgada6.
John Locke acabaria por falecer tranquilamente em Oates,
pelas 15 horas do dia 28 de Outubro de 1704, enquanto LAdy
Masham lhe lia os Salmos.
Para o seu túmulo adoptou o epitéifio, redigido em latim
"Aqui repousa John Locke. Se perguntares como viveu, res-
ponderá que viveu satiifeito com a mediania". Na verdade, teve
sempre uma vida simples, "unaffected", como diria LAdy Masham
para o descrever. Profundamente religioso, é em Deus e no Direito
natural que encontra o suporte último para o seu pensamento, bem
como para a sua vida. Meticuloso e peifeccionista, nada deixava
ao acaso e registava tudo, o que nos permite hoje um conhecimento
aprofundado dos seus passos e da sua vida, não obstante a priva-
cidade por que primou e o anonimato que insistiu em emprestar a
boa parte da sua obra. Porém, a mediania para Locke está longe,
bem longe, tanto da falsa modéstia, como da concepção que hoje
lhe atribuímos. A mediania que imprimiu à sua vida e que o
satiifez foi, antes, a aurea mediocritas clássica. Uma medio-
critas que, imediatamente após a sua morte, o catapultaria para
a ribalta do pensamento ocidental, destacando-se, de toda a sua
obra, dois textos, que continuam a ser utilizados nas Univer-
sidades e nas Academias, não só como referências, mas como livros
de base: o Ensaio sobre o entendimento humano, ao nível do
conhecimento, e o Segundo tratado do governo, ao nível da
política .
Reeditado centenas de vezes e traduzido em inúmeras
línguas, começando pelo fran cês e incluindo o russo, o hebraico, o

ú Apud Peter Laslett, op. cit. , p. 4.

[15]
árabe, o japonês, e o hindi, para além de praticamente todas as
línguas europeias, o Segundo tratado do governo depressa
se tornaria no "A B C da política", levando a que fosse univer-
salmente reconhecido como "pertencendo à mesma classe que a
Política de Aristóteles"7 . A sua influência é enorme, na
Inglaterra, nos Estados Un idos, em França ... , tanto em termos
intelectuais como em termos positivos concretos. Em termos
intelectuais, John Locke, "o apóstolo da liberdade", como lhe
chama Simone Goyard-Fabre8, haveria de ter um impacto
profundo sobre homens como Thomas ]ifferson, Voltaire,
Montesquieu, Jean:facques Rousseau ... Em termos positivos, está
bem presente tanto na Revolução Norte-americana como na
Revolução Francesa . E não será seguramente por acaso que o
primeiro tradutor português do Segundo tratado se apressou a
oferecer o texto de Locke que acabara de verter para a nossa língua
"aos constitucionais portugueses, como princípios fundamentais
para a consolidação da Carta Constitucional, datada de 29 de
Abril de 1826"9. Não obstante trazer a marca do espaço e do
tempo em que foi redigido, o Segundo tratado do governo
ultrapassou de imediato as fronteiras da Inglaterra, adquirindo
uma projecção europeia, ocidental e planetária. Paralelamente,
resiste ao tempo, transportando uma actualidade e uma urgência
que perduram.

7 Cf. Ibid.
8 Cf. a interessantíssima introdução, muito erudita, que preparou para
a tradução francesa do Segu11do tratado do govemo publicada em 1984, op. rir.
9 Como se pode ler na capa da edição publicada em Londres em
1833. Cf. John Locke, Ensáio sobre A Verdadeira Origem, Extemão e Fim do
Covêmo Civil, Escrito em l11glez por j o/111 Locke e Traduzido para Por/t4guez por
João Oliveira de Carl!alho, Eswdmlte do Terceiro Atll10 de Cât~o11es. Qffererido aos
Co11stiturionais Portuguezes como Pri11ripios Ftmdametttaes para a CoiiSolidação da
Carta Constitucio11al, datada de 29 de Abril de 1826. Londres, Impresso por
Ricardo Taylor, 1833.

[1 6]
O Segundo tratado do governo hoje

É certo que não foi para nós que Locke escreveu. Aquele
em que viveu, não foi o nosso mundo, e as suas preocupações não
são as nossas. John Locke é um homem de "muitas faces", muitas
"máscaras", tornando-se difícil reuni-las a todas de modo a pode-
rem espelhar o homem singular e concreto a que pertencem e que
enformam: pai do iluminismo britânico, para uns, ideólogo da
emergente burguesia, para outros, principal exponente do constitu-
cionalismo inglês, intelectual empenhado, livre-pensador, beato
e teólogo, introdutor do liberalismo, libertário, percursor do socia-
lismo e do comunitarismo... , consoante as interpretações ou os
aspectos do seu pensamento que se querem privilegiar. Por outro
lado, John Dunn sublinha ainda o que apelida de "am bi-
guidades " do Segundo tratado do governo, que conduzem às
leituras mais variadas e mais contraditórias e elevam o texto à
condição defundamento ideológico da R evolução Norte-americana
- se bem que tenha sido igualmente invocado como demonstração
da sua ilegitimidade-, modelo inspirador da Revolução Francesa
e da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, matriz do
liberalismo capitalista, ao mesmo tempo que é admirado por
revolucionários e socialistas, causa do colapso do Ancien Régime
na Europa, não obstante o conservadorismo e o apelo a Deus e à
ordem que permeiam toda a obra .. . E, paralelamente, denuncia a
dimensão teocêntrica da filosofia política lockeana, o que a tornaria
pouco mais do que inútil para os nossos dias10.
Acresce, e paradoxalmente até, que durante a sua vida
Locke não só nunca reconheceu ser o autor dos Dois tratados do
governo, como ainda, a acreditar no prifácio que preparou para
o segundo, o terá escrito com o objectivo, peifeitamente datado, de
"legitimar o poder do nosso grande restaurador". Como explicar,

l O Cf. John Dunn, T11e Politica/ 17wught <!f Johtr Locke. A11 historical
aaormt of the argume11t <![ the 'Ttvo Treatises of Govemment', Cambridge,
Cambridge University Press, 1969.

[17]
então, o interesse para os nossos dias deste texto, velho de já mais
de três séculos?
Ele reveste-se de um interesse que vai muito para além da
dimensão histórica. Não obstante o que se afirma no prefácio, não
descreve a Inglaterra do seu tempo, nem legitima o universo ou o
modelo de organiz ação social e política então em vigor: aqueles
subjacentes à "gloriosa revolução " de 1688. Pelo contrário, apre-
senta uma filosofia política que, alicerçada sobre um conhecimento
empírico muito próximo e muito directo dos meandros do poderll ,
se propõe compreender um universo, que é, simultaneamente,
novo, e de sempre. Um universo novo, em gestação no seu tempo
e que, não sendo ainda o dele, em boa parte é já o nosso: o
universo político da modernidade, dos direitos fundamentais, do
Estado de direito, do liberalismo, do socialismo, do comunita-
rismo.. . Um universo que é de sempre, na medida em que procura
responder à questão, ínsita à própria condição humana, de iden-
tificar "o primeiro e verdadeiro alcance e finalidade do governo
civil", conforme propõe o subtítulo do Segundo tratado do
governo . E, o Jacto de dar az o a tantas leituras, e tão díspares,
é bem a medida da prcifundidade e da amplitude do pensamento
lockeano, bem como da pluralidade de argumentos que desenvolve,
quer de natureza religiosa, quer de naturez a secular.
Não foi para nós que Locke escreveu. Porém, e na medida
em que não atingimos "o fim da história ", e "o último homem"
está ainda por descortinar, as preocupações que enformam as suas

11 É comum dizer-se que o interesse po r Locke varia na proporção


inversa daquele que se atribui a o utro dos grandes pilares do mundo
moderno, Maquiavel, como se a popularidade de um ofu scasse a do o utro.
C uriosamente ambos escreveram a partir da observação e do conheci-
mento concretos da política e do poder. N o entanto, com uma diferença
fundamental. Ao contrário de O Prí11cipe, os Dois tratados de go11err1o não
foram escritos com o objec tivo de co nquistar os favo res dos novos deten-
tores do poder, com vista à obtenção de cargos públicos . Maquiavel
ter-se-á dedicado a pensar a políti ca por necessidade, por não a poder
exercer; Loc ke fe-I o por vocação.

[1 8]
reflexões permanecem connosco, e, graças à sua dimensão filosófica,
as propostas que oferece, em vez de datadas, retêm todo o seu valor.
Se bem que o Segundo tratado do governo não seja do século
XXI, ele é importante para a compreensão, quer da realidade
política com que nos deparamos hoje, quer do processo que esteve
subjacente à sua criação e à sua consolidação. Para além disso,
abre-nos igualmente pistas de reflexão relativamente aos caminhos
de futuro que, nestes tempos de agora, tão ou mais conturbados
ainda do que aqueles em que ele viveu, teremos que forjar para nós
próprios. Tanto assim que, de algum modo, hoje nos encontraremos
mais próximos do quadro conceptual em que John Locke se move
e mais carenciados da reflexão que desenvolve do que em qualquer
outro período histórico - pelo menos no mundo Ocidental -,
conforme se procurou evidenciar ao longo desta introdução12.
Foi também para nós que Locke escreveu, isto é, para as
gerações que se seguiram, daí ter optado pela filosofia política e não
pela persuasão panjletária. E é por isso que, segundo a proposta
de A. John Simmons, o Segundo tratado do governo constitui
"um eiforço acabado e sistemático de produção de uma filosofia
política coerente", merecendo, por isso ser lido, não apenas como
um texto que ainda tem alguma coisa para nos dizer, mas como
um texto que foi escrito, também, para nós13 .
Parafraseando John Dunn e Ian Harris, na Introdução que
prepararam para uma colectânea em dois volumes sobre Locke,

!2 E nisto, conforme sublinha Peter Laslett, os Dois tratados de govemo


situam-se ao nivcl da Política de Aristóteles, constituindo um dos textos
fundamentais da filosofia política Ocidental, reproduzindo, aliás, o JUÍzo do
próprio Locke relativamente a este texto, que apenas no testamento assumiu
ser seu. Cf. o ensaio introdutório que preparou para a soberba edição crítica
dos Dois Tratados de Govemo publicada pela Cambridge University Press,
op. rit., p. 3.
!3 O mesmo já não poderá ser dito de alguns dos seus demais textos.
Cf. A. John Simmons, T11e Lockea11 T11eory of Rights, Princeton, Princeton
University Press, 1992. A citação é da p. 8.

[19]
reunindo mais de meia centena de ensaios sobre o nosso autor,
proceder, nesta introdução, a uma apresentação sumária do argu-
mento do Segundo tratado do governo, seria, no mínimo,
supéljluo, senão mesmo impertinente1 4 . Daí optarmos, em alter-
nativa, por procurar sublinhar as razões ~elas quais continua a
valer a pena, em pleno século XXI, estudar Locke e, no caso
concreto, o seu Segundo tratado do governo . Numa palavra,
diríamos que vale a pena fazê-lo na medida em que, em boa
parte, continuam a enformar o mundo em que vivemos e em que,
nele, continuamos a encontrar instrumentos que nos permitem
lidar com as preocupações suscitadas por este mundo que é o nosso,
e que Locke e o Segundo tratado do governo ajudaram a
forjar.
É comum ver-se os filósofos que se dedicam à política aproxi-
marem-se de agentes políticos, procurando, através deles, tradu-
z ir algum aspecto do seu pensamento para a prática concreta. O
exemplo mais dramático será, provavelmente, a ida de Platão
para a corte do tirano de Siracusa, na esperança de o converter à
filosqfia . Maquiavel, por outro lado, dedicou o seu Príncipe a
Lourenço de Médicis. Locke, por seu turno, desde que conheceu
Shaftesbury, esteve no coração da vida política do país e quando,
ao regressar do exílio na Holanda, publica finalmente os Dois
tratados do governo, no prifácio que preparou não deixa de
manifestar a esperança de que o seu trabalho possa servir para
legitimar e consolidar Guilherme de Orange no trono, "o nosso
grande restaurador", como o apelida. Guilherme é bem-vindo e
aplaudido na medida em que se apresenta como o restaurador das
liberdades do povo inglês, usurpadas pelos desvios absolutistas de
Carlos e de Jaime, os seus antecessores imediatos. E a liberdade,
enquan to 'fundamento de tudo o mais que um homem possa
ser ou ter" 15 constitui o bem político que Locke mais valoriza,

14 Cf. John Dunn and Ian Harris, Locke, 2 vols. , Cheltenham, UK e


Lyme, US, Edward Elgar publishing Limited, 1997, pp. J.,:v-xvii .
IS Scg•mdo tratado do govemo, capítulo III , parágrafo 17.

(20]
ao ponto de Simone Goyard-Fabre justamente o apelidar de
"Apóstolo da liberdade"16. Tanto assim que, visando desenvolver
uma teoria capaz de explicar a legitimidade do poder político e de
estabelecer as suas fronteiras, é a liberdade que sobressai como
grande tema do Segundo tratado do governo.
Locke, porém, não confunde liberdade com libertina-
gem, muito menos com a ausência de regras. Pelo contrário, é preci-
samente o respeito pela lei que, colocando-nos a salvo do arbítrio,
oferece à liberdade a possibilidade de florescer. Daí, igualmente
sublinhar o constitucionalismo e o ideal de Estado de direito.
Liberdade, Estado de direito, constitucionalismo, tolerância,
respeito pelos outros, direitos do homem, responsabilidade- por si
próprio e, até determinado nível, pelos outros - e solidariedade
social, governo representativo e governo responsivo, comunidade
política e personalidade, eis algumas das dimensões em relação
às quais continua a valer a pena recorrer a Locke e, em parti-
cular, ao seu Segundo tratado do governo. Assim acontece
na medida em que nos disponibiliza instrumentos que podem
auxiliar a desenvolver as nossas próprias perspectivas e a encontrar
as respostas que, hoje, somos chamados a forjar para os desa-
fios que se nos colocam, nas nossas comunidades locais e nacionais,
na União Europeia e até mesmo ao nível do sistema interna-
cional.
Daí igualmente termos optado, na presente tradução, por
apresentar o texto de Locke, não numa tradução literal, nem no
português do século XVII, mas em linguagem corrente- com um
esforço permanente de respeito e de fidelidade ao texto ori-
ginal1 7. Tudo isto para facultar que ele se dirij'a aos dias de hoje

16 Na introdução que preparou para a edição francesa de 1984

do Seg1mdo tratado do govemo, op. cit., p. 147.


17 Aliás, a única outra tradução portuguesa que conhecemos

deste texto, da responsabilidade de João Oliveira de Carvalho, datando


de 1833, está vertida numa linguagem que não facilita a sua compreensão
nos nossos dias. Cf. John Locke, E11Sáio sobre A Verdadeira Origem, Extensão

[21]
o mais directamente possível, e, correlativamente, para facilitar a
tarefa de todos aqueles que a ele recorrerem à procura de apoio
para a compreensão e a superação dos desafios da contempora-
neidade.

Nota sobre o texto

A acreditar no prefácio que Locke preparou para a edição


anónima dos Dois tratados do governo, a obra constaria origi-
nalmente de três partes distintas e autónomas: a primeira, que
viria a constituir O primeiro tratado, uma segunda, que se teria
perdido, ou sido destruída, nos tempos conturbados que antece-
deram a sua fuga para a Holanda, e a terceira, composta pelo
Segundo tratado. E é esta terceira parte que agora se publica.
Sobre a parte do texto lockeano que se perdeu ou que foi destruída
por imperativos de segurança, nada se sabe. O Primeiro tratado,
não sendo destituído de interesse, é um texto datado, centrado,
como está, na crítica a princípios tão afastados das nossas preo-
cupações actuais como sejam a legitimação do absolutismo e do
direito divino dos reis, ou a derivação da legitimidade das famílias
reais através da sua descendência de Adão e Eva . Assim, à velha
maneira socrática, o Primeiro tratado parece proceder a um
exercício de arroteamento conceptual, de limpeza do terreno,
permitindo ao autor, no Segundo, erguer o seu próprio pensa-
mento e estabelecer "a verdadeira origem, alcance e finalidade do
governo civil", como se pode ler na própria capa da edição de
169818 . Esse exercício, desenvolvido ao longo do Primeiro
tratado, terá, para os nossos dias, um interesse mais histórico do

e Fim do C ovêmo Ci11il, op. cit. Há muito esgotado, este texto foi recen-
temente reeditado pelas Edições 70, mantendo a linguagem do tradutor
do século XIX.
I S Reportamo-nos à edição anónima dos Dois tratados do go11emo,
publicada em Londres por Awnsham e John Churchill.

[22]
que filosófico - ao contrário do que se passa relativamente ao
Segundo tratado .
Acresce que o próprio John Locke não terá sido alheio a esta
diferente natureza, nem ao diferente destino dos seus dois textos.
Em 1691 surge a primeira tradução, em língua francesa, da
responsabilidade de um pastor huguenote radicado na Holanda. O
texto, de reconhecida qualidade, não é, porém, uma mera tradução.
Apenas o Segundo tratado é traduzido e publicado, e tanto o
prifácio como o primeiro capítulo, ligando-o ao Primeiro, são
suprimidos. O texto lockeano conhece, assim, uma nova versão,
publicada anonimamente com um título também ele novo: Ou
gouvernement civil. É esta nova versão que será reeditada mais
de uma dúzia de vezes ao longo do século XVIII e será através
dela que o Segundo tratado irá ser conhecido no continente
europeu e lido e admirado por Montesquieu, Voltaire, Jean-
:facques Rousseau .. .
Conforme Peter Laslett argumenta, esta publicação autó-
noma do Segundo tratado não só sugere que terá sido escrito
antes do Primeiro, como nos mostra Locke a sublinhar a "desco-
nexão" dos dois textos, ao ponto de pelo menos aceitar que se lhes
altere o título. O que o leva a concluir que não teria desagra-
dado a Locke saber que iria ser o Segundo tratado autónomo,
seguindo o modelo da tradução francesa, a "integrar o cânone da
teoria política".
Não deixa, aliás, de ser sintomático que a primeira edição
norte-americana, de 1773, tenha seguido o precedente francês. O
texto é o da 6" edição inglesa, de 1764, preparada por 77wmas
Hollis a partir das correcções introduz idas, primeiro pelo próprio
Locke e, depois, pelo seu secretário, Pierre Coste, sobre a terceira
edição de 1698 - e não o das primeiras edições, relativamente às
quais Locke demonstrou enormes reticências, considerando-as
manifestamente deficientes e insatiifatórias. No entanto, tal como
na tradução francesa, tanto o Primeiro tratado, como o primeiro
capítulo do Segundo são omitidos. A primeira tradução espanhola
data de 1821, e a primeira em língua portuguesa é publicada,

[23]
como se viu, em 1833, seguindo as opções francesa e norte-
-americana de publicação apenas do Segundo tratado .19
E é isto que explica a presente opção pela publicação apenas
do Segundo tratado do governo. Optámos pela manutenção
do título original fixado por Locke, em vez do título da pri-
meira tradução francesa, que ainda é seguido, aliás, por algu-
mas traduções20. Para a presente edição utilizámos o texto do
Segundo tratado tal como fixado por Peter Laslett na edição
monumental dos Dois tratados que preparou em 1960 para a
Cambridge University Press, a partir da edição de Thomas Hollis
de 1764, bem como a página de rosto e o prifácio preparado por
Locke para primeira edição dos Dois tratados2 1. Priferimos não
a sobrecarregar, nem com a longa e muito erudita introdução, nem
com o minucioso aparato crítico desenvolvidos por Peter Laslett22,
de modo a respeitar a natureza eminentemente didáctica e de
divulgação que se pretende para esta edição.

CARLOS E. PAC HECO AMARAL

19 Veja-se a introdu ção de Peter Laslett, op. cit., em particular


pp. 12 a IS .
2u Cf., por exemplo, a tradução espanhola de Angela Morales
Paraíso, publicada em 1987 nas Ediciones Alba, com o título E11Sayo sobre e/
gobiemo civil , ou a francesa, de David Mazel, publicada em 1984 em Paris
pela Flammarion com Cronologia , Introdução, Bibliografia e Notas de
Simone Gyard-Fabre, intitulada Traité du Couvemme11t Ci11il.
2l À imagem, aliás de muitas outras traduções, contemporâneas por
exemplo, francesas , espanholas e italianas, bem como de edições inglesas.
Para o texto integral dos dois tratados cf. a edição crítica magistral preparada
por Peter Laslett para a Cambridge University Press datada de 1960, já
citada.
22 Os leitores interessados no aprofundamento do estudo da obra

lockeana poderão, seguramente, reco rrer com facilidade aos textos originais,
amplamente reeditados e divulgados.

(24]
TWO

TREATISES
O F

Government: ln the Former,


7'he FalfePrinciples ànd Foundation
O F

Sir Rohert Ftlmer,


And His F o L Lo w E 1\. s ,
ARE
Deteéted and Overthrown.
The Lattcr is an

ESSA Y CONCERNING
The True Original, Excent, andEnd
O F

Civil- Government.
L ON DON: Printal for A•nfLmr anel John Cb11rcbill, at the
Bfacl(_s..,"" ia Pttttr-No.f/tr-1?.4•. 1 6 9 8.

[25]
DOIS

TRATADOS
DO

Governo:
No primeiro
São Detectados e Derrubados os Falsos Princípios e Fundamentos
DE
Sir Robert Filmer
e dos seus DISCÍPULOS.

O segundo, é um

ENSAIO
sobre
A Verdadeira Origem, Alcance e Finalidade
DO
Governo Civil.

LONDRES, impresso para Awnsham e John Curchill,


no Black Swan em Pater- Noster- Row. 1698

[26]
PREFACIO

Leitor, tens aqui o princípio e o fim de um tratado


sobre o governo. Os papéis que deveriam ter preenchido o
espaço intermédio, e eram mais do que todos os restantes,
não merecem que se perca tempo a relatar a sorte diferente
que tiveram. Espero que estes que restaram sejam sufi-
cientes para legitimar o poder do nosso grande restaurador,
o nosso actual rei Guilherme. Para validar o seu título
no consentimento do povo, único fundamento de todos os
governos legítimos, que possui mais inteiramente e de
forma mais clara do que qualquer outro príncipe na
Cristandade. E para justificar o povo da Inglaterra perante
o mundo. Foram o amor pelos seus legítimos direitos
naturais e a determinação na sua preservação que salvaram
a nação, quando esta se encontrava à beira da escravatura e
da ruína. Se as páginas que agora dou a lume possuírem a
evidência que me atrevo a atribuir-lhes, as que se perderam
não farão grande falta, e o meu leitor pode sentir-se satis-
feito sem elas. Não terei tempo, nem inclinação, para
repetir o trabalho de preencher a parte em falta da minha
resposta, voltando a seguir de perto Sir Robert, através de
todas as voltas e obscuridades que se encontram nos vários
ramos do seu admirável sistema. O rei e o corpo da nação
refutaram já esta teoria de forma tão cabal que, estou em
crer, de ora em diante ninguém terá a ousadia de se mani-
festar contra a nossa segurança comum e ser de novo advo-
gado da escravatura. Nem terá a fraqueza de se deixar iludir
pelas contradições enroupadas num estilo agradável de
frases bem torneadas. Quem , por si próprio, e em relação

[27]
àquelas partes aqui omitidas, se der ao trabalho de despir o
discurso de Sir Robert do floreado de expressões dúbias
que o caracteriza, de procurar reduzir as suas palavras a
frases directas, positivas e inteligíveis, e, de, por fim, as
considerar na sua totalidade, rapidamente se assegurará de
que nunca tanta verborreia disparatada foi apresentada em
linguagem tão bem sonante. Quem julgar não valer a pena
examinar o seu trabalho na íntegra, que analise a passagem
em que trata da usurpação. Que tente, com todo o seu
engenho, para ver se consegue tornar Sir Robert inteligível
e coerente com ele próprio, ou com o senso comum. Não
deveria falar com tanta franqueza de um cavalheiro de há
muito incapaz de me responder, se o clero não tivesse
adoptado a sua doutrina no púlpito, elevando-a à condição
de verdade divina dos nossos dias. Torna-se necessário
mostrar àqueles homens que, assumindo-se como pro-
fessores , têm desencaminhado outros de forma tão peri-
gosa, qual é, na realidade, a autoridade deste seu Patriarca,
a quem seguem tão cegamente. De modo a que se possam
retractar daquilo que têm espalhado a partir de funda-
mentos tão mal-avisados, e que não podem sustentar. Ou,
então, que justifiquem aqueles princípios que pregam
como se do evangelho se tratasse, apesar de não terem sido
capazes de seleccionar melhor autor do que um cortesão
inglês. Pela minha parte, não teria escrito contra Sir
Robert, nem me teria dado ao trabalho de demonstrar os
seus erros, inconsistências e falta de provas bíblicas
(precisamente daquilo de que faz tanto alarde, e a partir
do qual pretende desenvolver todo o seu pensamento), não
fosse existirem entre nós homens que, apregoando os seus
livros e abraçando a sua doutrina, me ilibam de censura
por escrever contra um adversário morto. Neste ponto
têm demonstrado tamanho zelo que, se tivesse procedido
mal para com ele, não teria qualquer esperança de me
pouparem. Espero que, onde procederam mal para com a

[28]
verdade e para com o povo, se encontrem tão prontos para
o repararem que possamos colocar esta reflexão no bom
caminho e deixar de ter razões de queixa do vozear
eclesiástico. Tudo isto na medida em que maior mal não
pode ser feito a um príncipe ou ao povo do que a
propagação de noções erradas sobre o governo. Por último,
se alguém, verdadeiramente preocupado com a verdade, se
propuser refutar a minha teoria, prometo-lhe uma de duas
alternativas : corrigir o meu erro, caso o venha a
demonstrar, ou responder às suas dificuldades. Mas terá de
ter presente duas coisas.
Primeiramente, que atacar de forma habilidosa, aqui
e ali, uma expressão, ou um pormenor do meu discurso,
não constitui resposta ao livro.
Em segundo lugar, que não aceitarei insultos como
argumentos, nem os reconhecerei, se bem que me sinta
obrigado a dar satisfação a quem se erguer contra mim de
forma objectiva, conscienciosa e escrupulosa, e apresentar
bases sólidas para as suas objecções.
Resta-me advertir o leitor de que, quando no texto
se faz referência a Observações, é sempre de Observações
sobre Hobbes, Milton , & que se trata; e quando surge uma
citação apenas com identificação de página, é à edição de
1680 do Patriarca de Sir Robert Filmer que me refiro.

[29]
SEGUNDO TRATADO DO GOVERNO

Ensaio sobre a verdadeira origem,


alcance e finalidade do governo civil
Capítulo I

§. 1. Ficou demonstrado no tratado anterior,


1. Que Adão não possuía, por direito natural de pa-
ternidade, ou por doação positiva divina, nem a autoridade
sobre os seus filhos, nem o domínio sobre a terra, que se
lhe atribui;
2. Que mesmo que assim fosse, os seus herdeiros não
possuiriam qualquer direito a eles;
3. Que, se os seus herdeiros os possuíssem, face à
inexistência de uma lei da natureza ou de uma lei positiva
divina que prescreva o verdadeiro herdeiro em todos os
casos que possam surgir, jamais se poderá determinar
com precisão, seja o direito de sucessão, seja, consequente-
mente, o direito de exercício de poder;
4. Que, ainda que tal fosse possível de determinar, há
muito tempo que já se perdeu completamente o conheci-
mento de qual é a mais antiga linha de sucessão dos descen-
dentes de Adão, de tal modo que, nas raças da humanidade
e nas famílias do mundo, não existe uma que seja superior às
demais, nem que possa ter a mais ligeira pretensão de ser a
mais antiga e, por isso mesmo, possuir o direito de herança.
Todas estas premissas ficaram, segundo creio, ampla-
mente demonstradas. De tal modo que não é possível que
os governantes que agora existem na terra possam retirar
qualquer beneficio ou derivar a mais ténue réstia de auto-
ridade daquela que é tida por alguns como sendo a fonte
de todo o poder, o domínio privado e a jurisdição paternal de
Adão. Tanto assim é que só há um caminho para quem não
se quiser ver atirado para os princípios de que todos os
governos deste mundo são apenas o produto da força e
da violência e não quiser ser forçado a defender que os

[33]
homens convivem em sociedade apenas segundo as leis
dos animais, nos termos das quais impera a lei do mais
forte. Aqueles que não pretenderem assentar os alicerces
da desordem e da injúria perpétuas, do tumulto, da sedição
e da rebelião (precisamente as características que os defen-
sores daquela teoria tanto denunciam) têm necessaria-
mente que identificar outra origem do governo, outro
protótipo do poder político, e outras vias para a identi-
ficação daqueles que o possuem, distintos daqueles que
Sir Robert F nos ensinou.

§. 2. Para tal , torna-se necessário estabelecer o que


entendo por poder político, de modo a identificar aquilo
em que o poder de um governante sobre os seus súbditos se
distingue dos poderes que são exercidos por um pai sobre
os seus filhos , por um senhor sobre o seu criado, por um
marido sobre a sua mulher, ou por um senhor sobre o seu
escravo. Ora, uma vez que todos estes poderes, apesar de
distintos, podem ser exercidos por um mesmo homem
quando considerado em cada uma destas relações, torna-se
necessário distingui-los uns dos outros, e mostrar as dife-
renças que existem entre o governante de uma comu-
nidade política, o pai de família e o capitão de uma galé.

§. 3. Poder político, é, pois, o direito de legislar coerci-


vamente, de ditar leis sancionadas com a pena de morte e,
consequentemente, com todas as penas menores, com vista
à regulamentação e à preservação da propriedade, e, bem
assim, o direito de utilizar a força da comunidade para a
execução da legislação desenvolvida e de defesa da comu-
nidade de injúrias estrangeiras - tudo isto exclusivamente
com vista ao bem público.

(34]
Capítulo II

SOBRE O ESTADO DE NATUREZA

§. 4. Para compreendermos devidamente o conceito


de poder politico, e para o derivarmos da sua raiz, temos
de considerar aquela condição em que todos os homens
naturalmente se encontram, e que é um estado de liberdade
peifeita de ordenarem as suas acções e de disporem como
entenderem, seja das suas propriedades, seja das suas pes-
soas, sem necessitarem da permissão ou dependerem da
vontade de qualquer outro homem, dentro dos limites da
lei da natureza.
É também um estado de igualdade. Nele, todo o
poder e toda a jurisdição são recíprocos, e nenhum homem
os possui mais do que os outros. Pelo facto de todas as
criaturas de uma mesma espécie e estatuto gozarem indis-
tintamente das mesmas vantagens da natureza e das
mesmas faculdades, todas são iguais, umas entre as demais,
e nenhuma delas se encontra numa posição de subor-
dinação ou de sujeição em relação a quem quer que seja.
A não ser que, através de uma qualquer declaração mani-
festa da sua vontade, o Amo e Senhor de todas tivesse
destacado uma delas, colocando-a acima das demais e
conferindo-lhe um direito inquestionável de domínio e de
soberania.

§. 5. Para Hooker esta igualdade natural entre os


homens é tão evidente e tão incontestável, que sabiamente
a adopta para alicerçar a obrigação de amor mútuo entre os
homens, a partir da qual constrói os deveres que têm uns

[35]
para com os outros, e ergue os seus grandes princípios de
justiça e de caridade. Eis as suas palavras:
A mesma inclinação natura/leva os homens ao conhecimento
de que o seu dever de amarem ao próximo não é menor do que o
de se amarem a si mesmos. Tudo isto pela razão muito simples de
que aquelas coisas que são iguais exigem uma mesma medida.
Não posso deixar de desejar ser bem tratado pelos outros, tanto
quanto qualquer homem pode desejar ser tratado. De igual modo,
corno posso esperar que uma qualquer parcela dos meus desejos se
venha a realizar, a não ser que esteja pronto para satiifazer os
desejos semelhantes que os outros seguramente sentirão, urna vez
que todos partilhamos de uma mesma natureza? Tratar os outros
de modo contrário a este princípio será seguramente tão ofensivo
para eles como seria para mim. Na verdade, se praticar o mal, devo
esperar vir a sofrê-lo também, já que não há qualquer razão que
me leve a esperar que os outros mostrem por mim um amor maior
do que aquele que lhes dedico. Destarte, o desejo que sinto de ser
tão amado quanto possível por aqueles que são por natureza os
meus iguais, impõe-me o dever natural de lhes prestar o mesmo
afecto. Por último, desta relação de igualdade entre os homens, nos
termos da qual os outros são como nós, decorrem inúmeras regras
e normas traçadas pela razão natural para a direcção da convi-
vência e que nenhum homem pode ignorar (Eccl. Pol. Lib. 1) .

§. 6. Porém, apesar de este ser um estado de liberdade,


não é um estado de licenciosidade. Ainda que nele cada
homem possua uma liberdade incontrolável para dispor da
sua pessoa e dos seus haveres, carece, contudo, de liberdade
para se destruir a si próprio ou a qualquer uma das criaturas
que lhe pertencem, salvo quando assim o exigir algum
fim mais nobre do que a sua mera conservação. O estado de
natureza é governado por uma lei da natureza que a todos
obriga. E aquela lei, que mais não é do que a razão, ensina
a todos aqueles que se derem ao trabalho de a consultar que
sendo todos os homens 1gua1s e independentes, nenhum

[36]
deve molestar qualquer outro na sua vida, na sua saúde,
na sua liberdade, ou nos seus haveres. Todos os homens
são obra de um mesmo criador omnipotente, e infinita-
mente sábio. Servos de um mesmo senhor soberano,
colocados neste mundo por sua ordem e para o seu serviço,
são propriedade dele, que os criou, para viverem enquanto
entender, e não enquanto os próprios quiserem. Dotados
de faculdades iguais e partilhando de uma natureza
comum, não é legítimo supor que exista entre nós uma
subordinação que nos autorize a que nos destruamos
mutuamente, como se tivéssemos sido criados para que nos
usássemos uns aos outros, tal como usamos as criaturas
inferiores. Para além disso, cada homem está obrigado
a preservar-se e a não abandonar o seu posto voluntaria-
mente. Assim também, pela mesma razão, e sempre que
a sua preservação não estiver em perigo, deve igualmente,
e na medida do possível, preservar o resto da humanidade,
não podendo retirar ou prejudicar, seja a vida dos outros,
seja tudo aquilo que conduza à preservação da vida,
da liberdade, da saúde, dos membros ou dos bens
alheios.

§. 7. Ora, a lei da natureza aspira à paz e à preservação


de toda a humanidade. Assim, para que seja respeitada e
para que os homens se coíbam de invadir os direitos uns
dos outros e de se molestarem mutuamente, no estado
de natureza a sua execução é da responsabilidade de cada
homem. É a cada um que cumpre a punição dos trans-
gressores daquela lei, tanto quanto for necessário para
obstar à sua violação. De outro modo, e tal como se veri-
fica em relação a todas as demais leis que obrigam os
homens neste mundo, a lei da natureza seria vã, caso não
existisse alguém que, naquele estado de natureza, possuísse
o poder de a executar, e, assim, proteger o inocente e refrear
os delinquentes. E se, no estado de natureza, alguém puder

[37]
castigar outro pelo mal que tiver praticado, então todos o
poderão fazer. Naquele estado de igualdade peifeita, por natu-
reza, não há superioridade nem jurisdição de uns sobre os
outros. E tudo aquilo que for permitido a um homem fazer
em prol do cumprimento dessa lei, terá necessariamente
que ser também permitido a todos os outros homens.

§. 8. É assim que, no estado de natureza, um homem


adquire poder sobre os outros. Não se trata, contudo, de um
poder absoluto ou arbitrário que lhe permita punir os
criminosos a que conseguir deitar as mãos seguindo o calor
das suas paixões ou deixando-se levar pelas extravagâncias,
sem limites, da sua vontade própria. O poder a que
acede apenas lhe permite fixar uma reparação proporcio-
nal aos danos causados pela transgressão, de tal modo que,
seguindo friamente os ditames da razão e da consciência,
sirva de reparação e de elemento de coibição. Porquanto
estes são os únicos motivos pelos quais um homem pode
legitimamente molestar outro, e que é precisamente aquilo
a que chamamos de castigo. Pelo próprio acto de trans-
gressão da lei da natureza, todo aquele que a perpetrar
declara estar a viver segundo outras regras que não as da
razão e da equidade, as quais mais não são do que a medida
estabelecida por Deus para a vida dos homens e para a sua
segurança mútua. E, assim, aquele que transgredir a lei da
natureza torna-se perigoso para a humanidade, na me-
dida em que, pela violação cometida, despreza e quebra
o vínculo que a todos guarda da injúria e da violência.
Tratar-se-á, então, de uma ofensa contra toda a espécie,
contra a sua paz e contra a sua segurança, tal como garan-
tidas pela lei da natureza. Por isso é que, pelo direito que
cada um possui de assegurar a preservação da humanidade,
em geral, qualquer homem poderá travar, ou, sempre que
necessário, destruir tudo aquilo que lhe for prejudicial.
Destarte, poderá trazer tanto dano a quem transgredir a lei

[38]
da natureza quanto for necessário para que o prevarica-
dor se arrependa da violação que tiver cometido, ou, então,
para que seja dissuadido de a cometer e para que o seu
exemplo seja instrumento de dissuasão para outros. Nestas
circunstâncias e pelas razões expostas, qualquer homem possui
o direito de punir o delinquente, e de ser o executor da lei da
natureza.

§. 9. Não duvido que esta doutrina possa parecer


muito estranha para alguns homens. Contudo, antes que
me condenem gostaria que me explicassem com que
direito um príncipe, ou um Estado, pode condenar à
morte, ou até mesmo castigar um estrangeiro que tenha
cometido qualquer crime nos países que governam. fu suas
leis não obrigam os estrangeiros, independentemente das
sanções que receberam da vontade promulgada pelo
legislativo. Não se dirigem a eles, e, mesmo que assim
fosse, os estrangeiros não teriam qualquer obrigação de
as respeitar. A autoridade legislativa que as impõe aos
membros da comunidade não possui qualquer poder sobre
os estrangeiros. Aqueles que têm a seu cargo o supremo
poder legislativo da Inglaterra, da França ou da Holanda estão
para os Índios como para quaisquer outros homens, de
qualquer parte da terra. Não possuem sobre eles qualquer
autoridade. Quer isto dizer que, não sendo pela lei da
natureza que todos os homens se encontram autorizados
a punir as ofensas que possam ser cometidas contra ela
(do modo como vierem, aliás, serenamente a julgar ser
apropriado), escapa-me por completo como poderão os
magistrados de uma comunidade castigar um forasteiro
proveniente de um país estrangeiro. Afinal, as autoridades
públicas de um país de modo algum poderão possuir
sobre um estrangeiro mais poder do que aquele que
todos os homens naturalmente possuem uns sobre os
outros.

[39]
§. 10. Para além do crime decorrente da violação
da lei e, consequentemente, do desvio da razão recta, em
virtude do qual aquele que a perpetrar se degenera e,
declarando afastar-se dos princípios da natureza humana,
se transforma num ser pernicioso, de uma tal violação
da lei da natureza decorre habitualmente um dano para
uma pessoa ou outra. A transgressão supõe um prejuízo
para alguém. Neste caso, e para além de possuir o direito
de castigar o transgressor, direito este que partilha com
todos os outros homens, a vítima possui ainda o direito de
exigir reparação por parte daquele que a prejudicou. E
qualquer outra pessoa que considerar este procedimento
justo poderá associar-se ao ofendido, ajudando-o a recupe-
rar do delinquente tanto quanto for necessário para asse-
gurar a indemnização pelos danos sofridos.

§. 11. Encontramo-nos, pois, perante dois direitos


distintos: o direito de punir o crime com vista à repressão e
à prevenção de ofensas semelhantes no futuro, e o direito
de exigir reparação. O primeiro é um direito que todos
possuem e que, por isso, poderá ser exercido por qualquer
um. Já o segundo compete apenas àquele que tiver sido
ofendido. Tanto assim é que o magistrado, pelo simples
facto de o ser, possui o direito comum de punir. Por vezes,
contudo, e na medida em que o bem público assim o
exigir, em vez de mandar executar a lei, tem autoridade
própria para perdoar os castigos que, de outro modo, deve-
riam corresponder aos delitos criminais; mas não pode
perdoar a satisfação que é devida a qualquer particular pelos
prejuízos que possa ter sofrido. Aquele que foi maltratado
tem o direito de exigir uma reparação em seu próprio
nome, e apenas ele poderá perdoar. A pessoa que tiver sido
prejudicada tem, pois, este poder de se apropriar dos bens
e dos serviços daquele que o prejudicou, por um direito
de autopreservação. Do mesmo modo, pelo direito que todos

[40]
possuímos de preservação de toda a humanidade, todos os
homens possuem o poder de punir, por forma a evitar a
repetição do crime. De punir e de desencadear todas as
medidas razoáveis conducentes àquele mesmo objectivo
que possam desenvolver. É assim que, no estado de
natureza, qualquer homem detém o poder de matar o
assassino. Seja para, através do exemplo do castigo que a
comunidade faz corresponder a tal crime, dissuadir outros
de perpetrarem o mesmo delito, que nenhuma reparação
poderá compensar. Seja ainda para assegurar a protecção
de todos os homens contra as acções dos criminosos.
No estado de natureza, a violência injusta e a carnificina
exprimem a renuncia à razão, a regra comum e medida
que Deus ofereceu aos homens. A sua prática constitui
uma autêntica declaração de guerra contra a própria
humanidade, razão pela qual aquele que a perpetrar pode
ser destruído como um leão ou um tigre, ou qualquer um
daqueles animais selvagens com os quais homem algum
pode formar sociedade ou viver em segurança. É sobre
estas bases que se ergue a grande lei da natureza, nos
termos da qual, Aquele que derramar o sangue do homem, pelo
homem será o seu sangue derramado. E Caim estava de tal
modo convencido que qualquer homem possuía o direito
de destruir um tal criminoso que logo após ter assassinado
o seu irmão exclama: Quem me encontrar matar-me-á. Tal
era a clareza com que tudo isto se encontrava escrito no
coração dos homens.

§. 12. Pelas mesmas razões, no estado de natureza,


qualquer homem pode punir as infracções menores daquela
lei. Com a pena de morte, poder-se-á perguntar? A minha
resposta é que a pena a ser aplicada a cada transgressão
deverá ser dqi11ida e deverá possuir a severidade suficiente
para assegurar ao delinquente que o crime não compensa,
para lhe fazer surgir o arrependimento, e para aterrorizar

[41]
os outros que possam ser tentados a fazer o mesmo.
Qualquer ofensa cometida no estado de natureza pode nele
ser punida, tanto quanto o poderia ser numa comunidade
politicamente organizada. Não é minha intenção entrar
aqui em considerações específicas sobre a lei da natureza,
a sua identificação ou os castigos que prescreve. Certo é,
contudo, que ela existe, e que para uma criatura racional
ou para um estudante de direito, é tão inteligível e tão clara
como as leis positivas das nossas comunidades políticas, se
não mais ainda. Tudo isto na precisa medida em que a
razão é mais fácil de entender do que os caprichos e as
artimanhas complexas dos homens, cujas palavras, muitas
vezes, escondem interesses obscuros e contraditórios. Isto
mesmo se pode verificar nas leis internas dos vários países,
cuja rectidão é directamente proporcional à sua funda-
mentação na lei da natureza, através da qual devem ser
reguladas e interpretadas.

§. 13. Perante esta doutrina singular, que defende


que no estado de natureza qualquer um possui o poder de executar
a lei natural, seguramente surgirá a objecção de que não é
razoável que os homens sejam juízes em causa própria,
que a auto-estima torna os homens parciais, para consigo
mesmos e para com os seus antigos. Por outro lado,
argumentar-se-á ainda que o mau carácter, as paixões e a
sede de vingança os levaram longe de mais quando chegar
a ocasião de punir os outros, o que conduzirá inevitavel-
mente à confusão e à desordem. Aliás, foi precisamente para
refrear a parcialidade e a violência entre os homens que
Deus estabeleceu os governos na terra. Concederei, com
toda a facilidade, que o governo civil é o remédio adequado
para os inúmeros e graves inconve-nientes do estado de
natureza, onde os homens são juízes em causa própria.
Facilmente se compreenderá que aquele que foi tão injusto
ao ponto de ofender o seu irmão, dificilmente será capaz de

[42]
fazer justiça e de se castigar a si próprio. Contudo, quem
adoptar esta objecção, deverá igualmente ter presente que
os reis absolutos são apenas humanos. O estado de natureza é
insuportável, na medida em que, nele, os homens são juízes
em causa própria. Portanto, para que o governo civil possa
constituir o remédio adequado para os males de que
enferma, torna-se necessário que me expliquem que tipo
de governo é esse, e que vantagens apresenta sobre o estado
de natureza, já que nele um só homem comanda um povo
inteiro? É juiz em causa própria, e pode tratar todos os seus
súbditos como lhe aprouver, sem que ninguém tenha a mais
pequena possibilidade de o questionar, ou de controlar
aqueles que são chamados para a execução dos seus
comandos. Todos têm de se submeter a este homem em
tudo o que vier a fazer, quer se guie pela razão, pelo erro,
ou pelas paixões? Ao fim e ao cabo, o Estado de natureza é
muito mais aprazível do que isto, já que, nele, os homens
não se encontram à mercê da vontade injusta de outros. E,
se aquele que julgar em causa própria, ou na de outro, o
fizer injustamente, terá de responder por isso perante toda a
humanidade.

§. 14. Deparamo-nos, frequentemente, com a


seguinte objecção: onde se encontram, ou onde alguma vez
se encontrou um homem num tal estado de natureza? Para já,
a resposta seguinte será suficiente. Todos os príncipes e
membros de governos independentes deste mundo
encontram-se num estado de natureza entre si. É evidente,
por isso, que a terra nunca esteve, nem nunca estará,
destituída de homens que vivam num tal estado. Invoquei
os governantes de comunidades independentes, quer estejam,
ou não coligados entre si. Não é um pacto qualquer que
põe fim ao estado de natureza entre os homens, mas aquele
através do qual os homens acordam mutuamente em cons-
tituir uma comunidade e constituir um corpo político. Os

[43]
homens poderão fazer outras promessas, ou celebrar outros
contratos entre si, sem contudo escaparem ao estado de
natureza. As promessas e os negócios de troca directa, por
exemplo, celebrados entre dois homens na ilha deserta
de que nos fala Garcilaso de la Vega, na sua História do
Perú, ou aqueles celebrados nas florestas americanas entre
um suíço e um índio, obviamente que os vinculam, se bem
que se encontrem num perfeito estado de natureza entre si.
A verdade e a boa fé são princípios próprios dos homens,
enquanto homens, e não apenas enquanto membros da
sociedade.

§. 15. Aos que dizem que os homens nunca se en-


contraram num estado de natureza, invocarei, em primeiro
lugar, a autoridade do judicioso Hooker, (Eccl. Pol., livro I,
secção 10) segundo o qual As leis mencionadas até agora, i.e.,
as leis da natureza, obrigam os homens de forma absoluta, pelo
simples Jacto da sua humanidade, mesmo que nunca tenham
estabelecido entre si relações firmes de camaradagem, ou celebrado
algum pacto solene sobre o que devem e o que não devem fazer.
Bastará sublinhar o Jacto de não sermos capazes de nos bastar
a nós próprios e de nos abastecermos de todas as coisas a que
aspiramos por natureza e que elevam a nossa vida aos patamares
que são exigidos pela própria dignidade humana . Somos assim
induz idos pela natureza a procurar a comunhão e a associação com
os outros, de modo a podermos preencher as lacunas e as imper-
feições que manifestamos individualmente. Eis o que motivou os
homens a unirem-se pela primeira vez em sociedades políticas.
E, para além disso, afirmo igualmente que todos os homens
se encontram naturalmente naquele estado, nele perma-
necendo, até que, pelo seu consentimento, se convertem
em membros de uma qualquer comunidade política. E
estou seguro de o poder demonstrar com clareza na parte
restante desta obra.

[44]
Capítulo III

DO ESTADO DE GUERRA

§. 16. O estado de guerra é um estado de hostilidade e


de destruição. Assim, aquele que, por palavras ou acções,
manifestar intenção de atentar contra a vida de outrem,
coloca-se automaticamente num estado de guerra em rela-
ção a ele. E, para o efeito, é apenas necessário que uma
tal declaração seja o produto de um desígnio pensado e
sereno, e não mero fruto de um qualquer arrebatamento
ou paixão momentânea. Quem o fizer, expõe a sua vida,
colocando-a ao alcance do poder de outro, ou de quem
se associar a ele e aderir à sua causa, já que é razoável e
justo que eu tenha o direito de destruir tudo aquilo que
ameaçar destruir-me. N a verdade, pela lei fundamental da
natureza, a vida humana deve ser preservada sempre que pos-
sível, e quando não for possível assegurar a preservação da
vida de todos, então a salvação dos inocentes é prioritária.
É, portanto, lícita a destruição de um homem que nos faça
guerra ou que nos mostre hostilidade, pela mesma razão
que é lícito matar um lobo ou um leão. Tais homens
encontram-se fora da alçada da lei comum da razão, e
não reconhecem outra legislação senão a da força e da
violência, motivo pelo qual podem ser tratados como pre-
dadores, criaturas perigosas e nocivas, que seguramente
destruirão todos aqueles que caírem em seu poder.

§. 17. Daqui decorre que aquele que procurar


submeter outros ao seu poder absoluto, coloca-se num estado
de guerra perante eles. Uma tal intenção só poderá ser

[45)
entendida como uma declaração evidente dos seus intentos
sobre a vida alheia. E tenho todas as razões para pensar
que aquele que me quiser submeter ao seu poder sem o
meu consentimento, logo que o conseguir, abusará de
mim como entender, e destruir-me-á quando lhe der na
gana. Ninguém desejará submeter-me ao seu poder absoluto, a
não ser para me forçar a agir de forma contrária àquela
que faria livremente, i.e., para me tornar no seu escravo.
A única via para escapar a tal condição e assegurar a mi-
nha preservação está em encontrar-me livre de tal poder.
A própria razão obriga-me a ver nele um inimigo da
minha existência, alguém que me roubaria a liberdade,
único escudo de protecção contra tal calamidade. De tal
modo que todo aquele que tentar traniformar-me no seu
escravo coloca-se automaticamente num estado de guerra
para comigo. Aquele que roubasse a alguém a liberdade que
possui no estado de natureza, tem necessariamente que ser
entendido como possuindo idêntico intento de lhe roubar
todo o resto, já que a liberdade é o fundamento de tudo o
mais que um homem possa ser ou ter. De igual modo, deve
supor-se que aquele que no estado civil roubasse a liberdade
dos membros dessa sociedade ou dessa comunidade,
tirar-lhes-ia igualmente tudo o mais, e por isso deve ser
considerado como encontrando-se num estado de guerra
contra todos nós.

§. 18. É isto que dá a um homem o direito de matar


um ladrão, mesmo que não o tenha prejudicado minima-
mente, nem demonstrado quaisquer intentos sobre a sua
vida , para além de o procurar submeter ao seu poder coer-
civamente, para o roubar, ou fazer dele como lhe aprouver.
Não tenho quaisquer razões para supor que aquele que
fosse capaz de me roubar a liberdade, recorrendo à força para
me ter sob a alçada do seu poder, sem qualquer direito, e
independentemente dos pretextos que possa invocar, nao

[46]
me retiraria tudo o mais, logo que me tivesse sob o seu
poder. Por isso, possuo toda a legitimidade para o tratar
como alguém que se colocou num estado de guerra contra mim.
Tenho todo o direito de o matar, se puder. É esta a sorte
a que se expõe todo aquele que se colocar num estado
de guerra e nele assumir o estatuto de agressor.

§. 19. Aqui se situa a diferença entre o estado de natu-


reza e o estado de guerra. Apesar de confundidos por alguns,
são tão distintos como podem ser o estado de paz, de
boa vontade e de assistência e defesa mútuas, e o estado
de hostilidade, de malícia, de violência e de destruição
mútua. Um grupo de homens vivendo em conjunto, de
acordo com a razão, sem qualquer superior comum na
terra com autoridade para julgar as suas acções, eis como
se caracteriza o estado de natureza, em sentido estrito. Porém,
onde quer que não exista um superior comum na terra
a cujo auxílio se possa recorrer, o recurso à força ou a in-
tenção declarada de o fazer sobre outras pessoas, atira os
homens para um estado de guerra. Para além disso, a falta
de uma tal autoridade superior comum a que se possa
recorrer, concede a um homem o direito de se situar num
estado de guerra contra um agressor, até mesmo quando um
e outro se encontram inseridos numa mesma sociedade e
são súbditos de um mesmo governo. É por isso que apenas
posso recorrer à lei contra um ladrão que me roube tudo o
que possua mas, a partir do momento em que recorrer à
força contra mim, posso matá-lo, mesmo que o faça apenas
com o intuito de me roubar o cavalo ou o casaco. A lei foi
elaborada para a minha preservação. Ora, sempre que não
for possível erguê-la como escudo para a preservação da
minha vida em face da violência com que estiver a ser
ameaçado, recai sobre mim o direito de autodefesa, já
que nada poderá reparar a sua perda. E, por outro lado, o
direito de guerra concede-me o privilégio de matar o meu

[47]
agressor, caso não me conceda qualquer oportunidade
de recurso ao nosso juiz comum, e, para além disso, uma
decisão judicial posterior de nada me serve, quando o
dano infligido é irremediável. A ausência de um juiz comum
com autoridade sobre as partes atira os homens para um estado de
natureza. Na ausência de um direito que a tal habilite, o recurso
à força sobre a pessoa de um homem conduz a um estado de
guerra; independentemente da existência de um juiz
comum.

§. 20. Porém, o estado de guerra termina logo que a


força deixar de ser utilizada por aqueles que vivem
em sociedade, encontrando-se, por essa via, igualmente
sujeitos às justas determinações da lei. A partir desse mo-
mento abre-se-lhes a possibilidade de recurso a um remé-
dio comum para a correcção, tanto de injúrias passadas,
como de males futuros. O estado de guerra, uma vez desen-
cadeado, prolonga-se até que o agressor se ofereça para fazer
as pazes e demonstre um interesse pela reconciliação em
termos que possam reparar quaisquer danos que tenha já
causado e garantir a segurança dos inocentes no futuro. Até
lá, onde não existir um corpo de direito e um aparelho
judicial com autoridade sobre todos a que se possa recor-
rer, como se verifica, por exemplo, no estado de natureza,
perdurará o estado de guerra, no qual o inocente detém
o direito de destruir o seu agressor, se puder. Mais do que
isso, a adulteração descarada da lei só poderá conduzir à
protecção ou à promoção da violência ou das injúrias de
um homem ou de uma associação de homens. É, portanto,
dificil imaginar não nos encontrarmos perante um estado de
guerra quando, existindo a possibilidade de recurso à lei e
ao sistema judicial, forem negados à vítima os remédios
judiciais a que tem direito, numa manifesta perversão da
justiça. Sempre que alguém recorrer à violência e perpetrar
a injustiça, até mesmo tratando-se daqueles que foram

[48]
encarregados da administração da justiça, será sempre
de violência e de injustiça que se tratará, por mais que as
suas acções sejam adornadas com o nome, o pretexto ou
a forma da lei, cujo único objectivo, aliás, se prende com
a protecção e a compensação dos inocentes através da
sua aplicação imparcial a todos aqueles que se encontram
unidos sob a sua alçada. Sempre que a lei não for admi-
nistrada bona .fi de, estar-se-á perante um acto de guerra para
com aqueles que são vítimas de uma aplicação iníqua da lei
os quais, não desfrutando de uma possibilidade de recurso
na terra, não possuem outra alternativa, se não apelar
aos Céus.

§. 21. Evitar este estado de guerra (em que não


existe apelo possível se não aos Céus, e onde, não existe
uma autoridade capaz de dirimir os conflitos que a cada
momento podem surgir), é uma das principais razões que
levam os homens a unir-se em sociedade e abandonar o estado
de natureza. Na verdade, onde existir uma autoridade,
um poder terrestre a que se possa recorrer para que se faça
justiça, desaparece o estado de guerra, e todas as contro-
vérsias são resolvidas por ele. Caso tivesse existido um tal
tribunal, uma tal jurisdição superior capaz de dirimir o
conflito entre Jifté e os amonitas, nunca teriam chegado
a um estado de guerra. Mas, como se sabe, Jifté viu-se
forçado a recorrer aos Céus. O Senhor que éJuiz, proclama,
julgue hoje entre Israel e os filho s de Amon Uuízes, 11 , 27),
para, de seguida, confiando e dando seguimento ao recurso
que acabara de estabelecer, conduzir os seus exércitos
para a batalha. Por conseguinte, sempre que nestas
contendas se coloca a questão de saber quem será o juiz, não
se trata da identificação de uma pessoa concreta que possa
desempenhar tal tarefa e decidir o litígio em causa; mas
de reconhecer, como Jifté, que o Senhor éJuiz e decidirá a
contenda. Onde não existir um juiz na terra, é a Deus,

[49]
no céu , que se poderá recorrer. A questão, portanto, não
se prende com a identificação de quem julgará, quando
alguém se colocar num estado de guerra comigo e quando,
como Jefté, eu recorrer ao Céu. Em tais circunstâncias, ao
entrar em guerra, apenas eu, em minha consciência, serei
juiz, sabendo que, no dia do juízo final , terei de prestar
contas ao Supremo Juiz de todos os homens.

[50]
Capítulo IV

DA ESCRAVIDÃO

§. 22. A liberdade natural de um homem consiste em


não estar submetido, na terra, à vontade ou à autoridade
legislativa de outros homens, não seguindo outra regra
para além daquela que lhe prescreve a lei da natureza. A
liberdade de um homem, em sociedade, decorre, em primeiro
lugar, da condição de não se encontrar sujeito a qualquer
outro poder legislativo, para além daquele que tenha sido
estabelecido na comunidade com o seu consentimento
e, em segundo lugar, da condição de não se encontrar sob
o domínio de qualquer outra vontade ou lei, a não ser
daquelas que vierem a ser adoptadas pelo poder legislativo
por ele estabelecido e de acordo com a confiança que lhe
foi atribuída. Assim, a liberdade não é o que o Sir Robert
Filmer imagina, (Observações A. 55) uma capacidade de
cada um fazer o que entender, de viver a seu bel-prazer, não se
encontrando sujeito a quaisquer leis. Pelo contrário, a liberdade
de um homem vivendo em sociedade sob um governo civil decorre
da existência de uma regra de conduta comum a todos os
seus membros; uma regra cuja elaboração esteve a cargo
do poder legislativo criado pela comunidade precisamente
para o efeito. Trata-se da liberdade de seguir a minha von-
tade própria em todas as coisas que não forem prescritas
pela norma e, bem assim, de não me encontrar sujeito à
vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de
outros homens. Do mesmo modo que a liberdade natural
consiste em não estar sob quaisquer restrições, para além
daquelas que decorrem da lei da natureza.

[51]
§. 23 . Esta liberdade face ao poder absoluto e arbi-
trário é tão necessária e encontra-se tão intimamente ligada
à própria preservação que ninguém pode renunciar a ela,
sem com isso perder a segurança e a vida. O homem não
detém poder sobre o seu próprio ser. Por esta razão, nem
por contrato, nem por consentimento se pode converter em
escravo de outrem, ou colocar-se de baixo do poder absoluto
e arbitrário de quem quer que seja, que lhe possa tirar a vida
quando entender. Ninguém pode conceder mais poder do
que aquele que possui. Nestes termos, quem não tem poder
sobre a sua própria vida, de modo algum o pode conceder
a outro. Com efeito, se alguém perder o direito à vida, por
quaisquer delitos merecedores da pena de morte que tenha
cometido, aquele para quem tal direito for transferido
poderá (quando o tiver no seu poder) recusar-se a matá-lo,
e, bem assim, usá-lo em seu proveito próprio, sem com
isso lhe prestar qualquer ofensa. E, para além disso, no
momento em que o criminoso considerar que a dureza
da sua escravidão é superior ao valor que atribui à sua
vida, pode sempre atrair sobre si a morte por que aspira,
negando-se a obedecer à vontade do seu senhor.

§. 24. Esta é a perfeita condição de escravatura, pois


mais não é do que o estado de guerra prolongado que se verifica
entre um conquistador legítimo e o seu cativo. Porém, caso cele-
brem um pacto entre si, nos termos do qual se proceda à
delimitação do poder de comando e do dever de obe-
diência de cada um deles, terminará o estado de guerra
que se verificava entre ambos e a escravidão do segundo
ao primeiro, enquanto durar o convénio acordado. Pois,
como já se disse, homem algum pode conceder a outro
aquilo que não possuir, no caso vertente, o poder sobre a
sua própria vida.
Confesso que entre os judeus, tal como noutras na-
ções, era comum os homens venderem-se a si mesmos . É

[52]
evidente, contudo, que era como trabalhadores forçados que
se vendiam, e não como escravos. Manifestamente, as pes-
soas que se vendiam não se encontravam sob um poder
absoluto, arbitrário e despótico, nem aqueles que as com-
pravam adquiriam o poder de as matar. Pelo contrário,
passado algum tempo, tinham a obrigação de as libertar do
seu serviço. E o senhor de tais servos estava tão longe de
possuir um poder arbitrário sobre as vidas deles que bastava
que lhes cegasse um olho ou arrancasse um dente para ter
de os libertar (Êxodo, 21) .

[53]
Capítulo V

DA PROPRIEDADE

§. 25. A razão natural explica-nos que, a partir do


seu nascimento, os homens possuem direito à sua pre-
servação, e, consequentemente, à comida e à bebida, e a
todas as outras coisas que a natureza lhes oferece para a
sua subsistência. E a revelação, que nos relata como Deus
deu a terra a Adão, e, depois, a Noé e a seus filhos, mostra
claramente, tal como o rei David nos diz no salmo 115, 16,
que o Omnipotente deu a terra aos filhos do homem, ou seja,
a toda a Humanidade em comum. Porém, mesmo assu-
mindo este princípio, algumas pessoas sentem grandes
dificuldades em compreender como pode alguém possuir
alguma coisa. Pela minha parte, não me limitarei a res-
ponder que, não sendo fácil entender a propriedade a partir
da conjectura que Deus deu a terra a Adão e aos seus des-
cendentes, em comum, é de todo impossível que um só
homem, a menos que se trate de um monarca universal,
possa vir a obter alguma propriedade, a partir da suposição
que Deus concedeu a terra a Adão, e aos herdeiros que lhe
sucederam, com total exclusão dos demais. Pelo contrário,
empenhar-me-ei em demonstrar como os homens podem
tornar-se proprietários de várias parcelas daquilo que Deus
concedeu a toda a humanidade, em comum, sem que, para
o efeito, seja necessária a celebração de qualquer pacto
entre os co-proprietários.

§. 26. Deus concedeu a terra em comum a todos os


homens, mas também lhes deu a razão, para se guiarem por

(55]
ela e a usarem da forma mais vantajosa e mais conveniente
para as suas vidas. A terra, e tudo o que ela contém, foi dada
aos homens para que dela retirassem o sustento e o con-
forto. Na medida em que são produtos da natureza, os
frutos que nela crescem espontaneamente, bem como
os animais que nela se alimentam, pertencem a todos os
homens, em comum. Para além disso, enquanto permane-
cerem no seu estado natural, ninguém possuirá sobre eles
um direito de domínio privado exclusivo de todos os outros
homens. Foram porém concedidos aos homens para que os
usassem. Por isso, tem necessariamente que existir um meio
de serem apropriados, de modo a poderem ser úteis ou bené-
ficos para qualquer homem particular. O Índio selvagem
não conhece marcos nem cercas, contudo, é um rendeiro
comunal. E o fruto, ou a caça, que lhe servem de sustento
têm de ser seus. De tal modo seus, que, mesmo antes
que lhe possam ser úteis e servir de sustento, mais ninguém
poderá continuar a possuir quaisquer direitos sobre eles.

§. 27. Apesar da terra e de todas as criaturas infe-


riores serem propriedade comum de toda a humanidade,
cada homem é proprietário da sua própria pessoa, sobre a
qual mais ninguém detém direito algum. O trabalho do seu
corpo e o labor das suas mãos são seus, há que o reconhe-
cer. Ora, para que um homem possa colher alguma coisa,
retirando-a daquele estado em que a natureza a havia
colocado, necessita de exercer sobre ela o seu eiforço, de lhe
adicionar algo de seu, nomeadamente o seu trabalho. E é
por esta via que a transforma em propriedade sua. Algo é
removido do estado comum em que a natureza o havia
colocado, na medida em que lhe é anexado o trabalho de
alguém e, destarte, é excluído do direito comum de todos
os outros homens. Uma vez que o trabalho é, inques-
tionavelmente, propriedade do trabalhador que o produz,
nenhum outro homem poderá possuir qualquer direito

(56]
sobre ele, nem sobre aquilo em que incidir, pelo menos
enquanto se deixar o suficiente e de igual qualidade para os
demais em comum.

§. 28 . Aquele que se alimenta das bolotas que apa-


nha debaixo de um carvalho, ou com as maçãs que apanha
das árvores na floresta, certamente que se apropriou delas.
Ninguém pode negar que aquele alimento lhe pertence.
Pergunto, agora: quando começaram a pertencer-lhe?
Quando as digeriu? Quando as comeu? Quando as cozi-
nhou? Quando as levou para casa? Quando as apanhou?
Certo é que, caso a colheita inicial não as tivesse tornado
suas, nada mais o podia fazer. Foi precisamente esse
trabalho que as separou daquilo que era propriedade
comum de todos. Através dele, foi-lhes adicionado algo
que não lhes havia sido atribuído pela natureza, a mãe
comum de todas as coisas. Foi assim que conquistou um
direito privado sobre elas. E poderá alguém dizer que ele
não tinha qualquer direito de se apropriar daquelas bolotas
ou daquelas maçãs na medida em que não contava com o
consentimento de toda a humanidade? Tê-las-á roubado,
quando tomou para si próprio algo que a todos pertencia
em comum? Caso um tal consentimento tivesse sido
necessário, os homens teriam morrido de fome, não obs-
tante a abundância que Deus lhes concedera . Conforme
podemos observar nos terrenos que, por contrato, perma-
necem propriedade comum de todos, o início da propriedade
situa-se precisamente neste acto de deitar a mão a alguma
parcela daquilo que é comum, retirando-a do estado em
que a natureza a colocara . De outro modo, permaneceria
inútil. E a tomada desta ou daquela parte, de modo algum
depende do consentimento de todos os cc-proprietários.
Assim, e em qualquer sítio sobre o qual eu partilhe um
direito com outros, a relva que o meu cavalo come, a erva
que o meu criado corta, ou os metais que eu conse-

(57]
guir extrair da terra, tornam-se propriedade minha, sem
precisar da anuência ou do consentimento de ninguém.
O trabalho que tive, e que era meu, para as retirar do estado
comum em que se encontravam fixou a minha proprie-
dade sobre elas.

§. 29. Caso se exigisse o consentimento explícito de


cada um dos co-proprietários para que alguém se pudesse
apropriar de uma parte do que a todos fora concedido em
comum, os filhos, ou os criados, jamais poderiam repartir
e comer a carne que o seu pai ou senhor lhes houvesse
deixado em comum para o seu sustento, a não ser que se
atribuísse também a cada homem a sua parte. A água que
jorra da fonte é incontestavelmente de todos. Quem,
contudo, duvidará que aquela que está num jarro pertence
àquele que o encheu? Através do seu trabalho arrebatou-a
das mãos da natureza, onde era propriedade comum e
pertencia igualmente a todos os seus filhos , apropriando-se
dela.

§. 30. PortantoJ esta lei da razão faz com que o


veado pertença ao Indio que o abateu. Dantes, todos
possuíam iguais direitos sobre ele. No momento em gue o
caça, e por força do trabalho que isso lhe custou, o Indio
apropria-se do animal. E continuamos a encontrar esta lei
da natureza original para a identificação do surgimento da
propriedade, até mesmo entre aqueles que se situam na parte
civilizada do género humano, e que adoptaram múltiplas
leis positivas para a sua determinação. Esta lei permanece
aplicável ao peixe que se pesca no oceano, que continua
a ser uma imensa propriedade comum da humanidade,
ou ao âmbar que ali se recolhe. É o trabalho que os retira
do estado em que a natureza os havia colocado à comum
disposição de todos. É ele, portanto, que faz com que se
transformem em propriedade daquele que o exerceu. E até

[58]
mesmo entre nós, a lebre que todos caçam pertence àquele
que a persegue no terreno. Sendo um animal que per-
manece propriedade de todos os homens e de nenhum
em particular, pertence àquele que lhe dedicar o trabalho
suficiente para o encontrar e para o perseguir. Retirando-
-o do estado de natureza em que pertencia a todos, teve
início a propriedade sobre ele.

§. 31. Poder-se-á objectar que caso a apanha de


bolotas e dos demais frutos que crescem sobre a terra
forneça um direito sobre elas, então qualquer um poderá
aumentar a sua propriedade de forma ilimitada, amon-
toando o que lhe aprouver. Ao que respondo de forma
negativa. A mesma lei da natureza que nos concede a
propriedade define igualmente os seus limites. A voz da
razão, confirmada pela inspiração, diz-nos que Deus nos dá
abundantemente todas as coisas (Timóteo, 6, 12). Mas, até que
ponto nos foram todas as coisas dadas para nosso gozo?
Através do trabalho, uma pessoa poderá fixar a sua pro-
priedade em tudo aquilo de que puder retirar proveito,
antes de se deteriorar. Tudo o que for para além disso,
constituirá mais do que a sua parte, e pertence aos outros.
Nada do que Deus criou foi feito para o homem desper-
diçar ou destruir. Ora, a terra apresenta desde há muito
tempo uma grande abundância de provisões naturais
e, simultaneamente, uma escassez de consumidores. Por
outro lado, nenhum homem será capaz de exercer a sua
indústria sobre uma grande parcela das provisões que a
natureza a todos oferece e, por essa via, engrossar o seu
património a expensas dos outros. Deste modo, e parti-
cularmente se cada um for capaz de se manter dentro dos
limites estabelecidos pela razão, apropriando-se apenas
daquilo que lhe for útil, persistirá certamente pouco espaço
para disputas ou contendas acerca da propriedade assim
estabelecida.

[59]
§. 32. Porém, no momento presente, o objecto
principal da propriedade não se reporta aos frutos da terra,
nem aos animais que subsistem sobre ela, mas à própria terra,
na medida em que é dela que tudo o mais provém. E aqui
também, creio ser evidente que a propriedade se adquire da
mesma maneira que tem vindo a ser exposta. Tanto terreno
quanto um homem possa lavrar, plantar, arrotear, cultivar,
e usufruir dos seus frutos, aí se situará a medida da sua
propriedade. Através do seu trabalho, um homem identi-
fica um território, delimitando-o e retirando-o do espaço
comunitário. E de nenhum modo esse direito é invalidado
pelo argumento de que a terra a todos pertence e que, por
isso, qualquer apropriação carece do consentimento de
todos os co-proprietários, isto é, de toda a humanidade.
Deus, no próprio momento em que concedeu a terra
em comum a toda a humanidade, ordenou aos homens
que a trabalhassem, tal como o exigia, aliás, a penúria da
condição em que se encontravam. Tanto Deus como a
razão lhes mandavam dominar e submeter a terra, isto é,
melhorá-la para beneficio das suas vidas, utilizando para o
efeito aquilo que possuíam, designadamente o seu trabalho.
Aquele que em obediência a este mandamento divino
arroteou, lavrou e semeou terreno, anexou-lhe algo de que
era proprietário, e sobre o qual ninguém poderia apresentar
qualquer título e que, por isso, de modo algum lhe podia
ser retirado sem injúria.

§. 33. Esta apropriação de uma parcela de terreno atra-


vés do seu cultivo, de modo algum prejudicava os outros
homens, na medida em que restaria ainda uma grande
quantidade por cultivar, de qualidade tão boa como aquela
que havia sido apropriada e, em todo o caso, mais do que
aqueles que permaneciam destituídos seriam capazes de
aproveitar. De tal forma que, com efeito, da apropriação de
uma parcela de terreno jamais resultou uma dinünuição do

[60]
que ficou a sobrar para os demais. Aquele que deixar para
os demais tanto quanto possam utilizar prejudica-os outro
tanto como se nada houvesse retirado para si. Ninguém se
poderá considerar lesado pelo facto de outro beber da água
de um rio, mesmo que em abundância, quando lhe restar
água desse mesmo rio mais do que suficiente para matar a
sua sede. Ora, com a terra sucede exactamente o mesmo
que com a água. Sempre que nos deparemos com quan-
tidades suficientes de uma ou de outra, a situação será
sempre a mesma.

§. 34. Deus concedeu a terra a toda a humanidade


em comum. Porém, uma vez que o fez para beneficio
dos homens, e para que dela retirassem o maior número
possível de vantagens para as suas vidas, de modo algum se
poderá supor que pretendesse que a terra permanecesse em
comum e sem ser cultivada. Concedeu-a para ser usada
pelos homens industriosos e racionais (cujo trabalho seria
precisamente o título de que disporiam para a adquirirem).
Não para alimentar o capricho ou a cobiça dos conflituosos
e dos facínoras. Aquele que tiver disponível tanto quanto
tiver já sido apropriado, não tem que se lamentar, nem
que se intrometer no que já foi tomado e melhorado pelo
trabalho de outros. Se o fizer, torna-se evidente que mais
não deseja do que aproveitar-se do esforço alheio, sobre o
qual não possui qualquer direito, em vez de se ocupar do
terreno que Deus lhe concedeu em comum com os demais
para que o cultivasse, e do qual sobrava ainda uma boa
porção, muito maior, aliás, do que aquela que a sua indús-
tria poderia abranger.

§ 35. É verdade que na Inglaterra, tal como nos


outros países onde muitos cidadãos conhecem o dinheiro e
o comércio, ninguém se pode apropriar de qualquer uma
das partes de um baldio sem o consentimento expresso de

(61]
todos os cc-proprietários. Ora, isto é assim, na medida em
que o baldio é garantido por um pacto, isto é, pelo direito
positivo do país em causa, o qual não admite violações. E
apesar de se tratar de uma propriedade que é partilhada por
alguns homens, não é de toda a humanidade. É proprie-
dade conjunta apenas desse país, ou dessa aldeia. Para além
disso, o que restasse de uma eventual apropriação, de modo
algum seria tão útil para os restantes cc-proprietários como
o era o baldio no seu todo, quando todos o podiam uti-
lizar. Ao passo que, no início, aquando dos primórdios do
povoamento do grande baldio que era a Terra, as condi-
ções eram obviamente muito diferentes. Na realidade, a lei
a que os homens se encontravam vinculados apontava para
a apropriação. A vontade divina e as necessidades que se
faziam sentir forçaram o homem ao trabalho . Esse trabalho
era propriedade do homem, não lho podendo ser retirado,
onde quer que o fixasse. Por isso, a tomada e o cultivo
eram inseparáveis do domínio da terra e condição sua. De
tal modo que quando Deus ordenou aos homens que
dominassem a terra, deu-lhes igualmente autoridade para
se apropriarem dela. E, reclamando o labor e materiais para
trabalhar, são as próprias condições da vida humana que
introduzem necessariamente a propriedade privada.

§ 36. A natureza estabeleceu devidamente a medida


da propriedade, definindo-a pelo alcance do trabalho hu-
mano, bem como pelas comodidades da vida. Ora, nenhum
homem seria capaz, pelo seu trabalho, de dominar e de se
apropriar de toda a terra, nem de consumir mais do que
uma pequena parte. Desta forma, homem algum poderia
invadir os direitos dos demais, ou adquirir para si mesmo
uma propriedade em prejuízo do seu vizinho, já que lhe
restaria ainda espaço suficiente para se estabelecer e adqui-
rir para si uma propriedade tão boa e tão extensa como se
o tivesse feito antes da apropriação anterior. Esta medida

[62]
confina as possessões de um homem a uma proporção
bastante moderada, definida em termos daquilo de que se
pode apropriar sem danos para outros. Assim se verificava,
nos primórdios da terra, quando o perigo dos homens se
perderem e se afastarem uns dos outros na vastidão das
terras selvagens do planeta era manifestamente maior do
que a ameaça de se verem prejudicados por uma eventual
falta de espaço para cultivo. E, nos nossos dias, esta medida
permanece válida e sem prejuízo para ninguém, não obs-
tante o planeta estar tão povoado como parece. Imagi-
nemos a condição em que se teria encontrado um homem
ou uma família no momento em que os filhos de Adão e
de Noé primeiro povoaram a terra. Imaginemos ainda que
estabelecia uma plantação num qualquer espaço ainda por
ocupar das grandes planícies da América. Através da
aplicação das medidas que acabámos de fixar, facilmente
verificaríamos que as suas possessões não poderiam ser
muito extensas. Até mesmo nos nossos dias em que a
humanidade se alastrou pelos quatro cantos da terra e
excede infinitamente o pequeno número inicial, aquela
delimitação de propriedade de modo algum prejudicaria o
resto da humanidade, e ninguém teria razões de queixa,
nem se poderia considerar ofendido por ela. Mais do que
isso, a terra vale tão pouco quando não é trabalhada, que já
ouvi dizer que, até mesmo em Espanha, um homem pode
lavrar, semear e colher sem ser perturbado por quem quer
que seja, em terras em relação às quais não possui qualquer
outro título de propriedade para além do uso que delas
faz. Pelo contrário, os habitantes daquele país sentem-se
em dívida para com aqueles que, com o seu trabalho,
desbravam terrenos até então negligenciados ou baldios,
melhorando a sua produção de cereais, de que tanto
necessitam. Em qualquer caso, não insistirei nesta questão.
O que afirmo, sem qualquer hesitação, é que esta mesma
regra de propriedade que tenho vindo a apresentar, nos

[63]
termos da qual cada homem deve possuir tanto quanto
possa utilizar, permanece válida nos nossos dias, sem
prejuízo de quem quer que seja. A invenção do dinheiro, e o
acordo tácito celebrado entre os homens de atribuição de
um valor monetário à propriedade, conduziu à introdução,
por consentimento, de grandes propriedades, bem como
o direito a elas. Não fora esta circunstância, e as terras
existentes no planeta seriam mais do que suficientes
para o dobro dos seus habitantes actuais. Como tudo
isto se processou, teremos a oportunidade de ver mais
adiante.

§ 37. Uma coisa é certa . Foi o desejo de se possuir


mais do que o necessário que veio alterar o valor intrínseco
das coisas, que depende exclusivamente da sua utilidade
para a vida humana. No início dos tempos, antes que tal
se verificasse, e antes que os homens chegassem a acordo que
uma pequena moeda de metal amarelo, que não se desgasta
nem se altera, valeria o mesmo que um grande pedaço de
carne, ou uma grande porção de cereais, apesar de cada
homem ter o direito de se apropriar, através do seu traba-
lho, de todas as coisas oferecidas pela natureza que pudesse
utilizar, ninguém podia tomar para si grande coisa, muito
menos prejudicar os outros, já que, por mais que amea-
lhasse, sobrava sempre em abundância para quem quer que
estivesse disposto a esforçar-se e a trabalhar como ele havia
feito. Caso me seja permitido, acrescentarei ainda que
quem, pelo seu trabalho, se apropria de uma quantidade de
terreno, de modo algum diminui as reservas comuns da
humanidade, mas as aumenta. Um hectare de terreno arro-
teado e cultivado produz, num cálculo muito conservador,
dez vezes mais géneros alimentícios do que aqueles que
poderiam ser produzidos num terreno baldio da mesma
dimensão e da mesma qualidade. Deste modo, aquele que
desbravar e cultivar dez hectares de terreno retira maior

[64)
proveito deles do que seria possível obter de cem hec-
tares que permanecessem no seu estado natural. Por esta
razão, poder-se-á dizer que, quem assim agir, está a ofere-
cer noventa hectares de terreno à humanidade, já que o
seu trabalho lhe fornece provisões que, dantes, apenas
se poderiam obter de cem hectares de baldio. A avaliação
que aqui fiz da terra cultivada é manifestamente muito
baixa. Apresentei uma produção de dez para um. Ora, a
capacidade de produção de um terreno arroteado quando
comparado com igual terreno baldio aproxima-se de uma
relação de cem para um. Por isso pergunto se, porventura,
nos bosques selvagens e nos baldios da América, mil hec-
tares de terra no seu estado natural, sem amanho da
terra ou qualquer tipo de actividade agrícola, fornecem
aos míseros e desgraçados habitantes daquelas para-
gens tantos géneros e comodidades como dez hectares de
terra igualmente fértil do Devonshire devidamente culti-
vados?
Antes da apropriação da terra, apenas se abriam
ao homem as actividades de colher frutos silvestres, caçar
ou domesticar animais selvagens, tantos quantos pudesse.
Aquele que assim utilizasse as suas energias sobre qual-
quer um dos frutos espontâneos da natureza, por forma
a alterar de algum modo o estado em que a natureza os
havia colocado, adquiria, através do seu trabalho, um direito
de propriedade sobre eles. Contudo, caso deixasse que se estra-
gassem, na sua posse, sem serem devidamente utilizados,
caso os frutos apodrecessem ou o veado se putrefizesse
antes de consumidos, então aquele que deles se tivesse
apoderado teria cometido uma ofensa contra a lei comum
da natureza, susceptível de ser castigada. Agir assim mais
não é do que invadir o quinhão do vizinho, já que nin-
guém possui o direito de tomar para si mais do que pode usar
com vista à obtenção das comodidades da vida.

[65]
§ 38. A propriedade sobre a terra rege-se por idênticas
medidas. Cada homem possui um direito de propriedade
sobre aquilo que cultivar e colher, sobre o que armazenar
e utilizar, sem deixar que se estrague. Seu é ainda todo
o gado que recolher, alimentar e utilizar, tal como, aliás,
todos os produtos que dele obtiver. Contudo, se permitir
que a erva das suas pastagens se estrague no solo, ou que os
frutos do seu pomar apodreçam sem serem apanhados,
então este terreno de que se havia apropriado deverá ser
tido como sendo baldio, e, por isso mesmo, susceptível de
ser apropriado por qualquer outro que o queira traba-
lhar. Assim aconteceu no princípio dos tempos. Caim pôde
assenhorear-se de todo o terreno que foi capaz de cultivar,
contudo, deixou espaço suficiente para as ovelhas de Abel
pastarem . Uns poucos hectares bastavam para as neces-
sidades de ambos. Porém, à medida que as famílias cres-
ciam e, pela sua diligência, aumentavam os géneros que
conseguiam obter, cresciam igualmente as suas possessões,
enquanto as suas necessidades se desenvolviam. Inicial-
mente, porém, cultivavam a terra sem delimitarem com
precisão a propriedade de cada um, até que se constituíram
em sociedades, se estabeleceram em conjunto e fundaram
cidades. Foi então que, com o passar do tempo, definiram
consensualmente a extensão do território de cada um , e chega-
ram a acordo sobre os limites que os separavam. E adopta-
ram leis entre si, estabelecendo as propriedades de todos
aqueles que pertenciam à mesma sociedade. Isto mesmo
observamos naquela parte da terra que foi habitada
primeiro e que, por isso mesmo, é mais densamente
povoada. Já nos tempos de Abraão, os homens deambu-
lavam livremente por ali com os seus rebanhos e com as
suas manadas, que eram o seu sustento. Assim viveu Abraão
num país em que era um estrangeiro. Torna-se, portanto,
evidente que pelo menos uma grande parte da terra era
possuída em comum, que os seus habitantes não lhe atribuíam

[66]
grande valor, nem reclamavam para si qualquer direito de
propriedade, excepto sobre aquelas parcelas que de facto
utilizavam. Porém, quando naquele mesmo lugar deixou
de haver espaço suficiente para alimentar em conjunto
os seus rebanhos, então, por mútuo acordo separaram-se,
partindo cada um para onde entendeu, em busca de espaço
para aumentar as respectivas pastagens. Assim fizeram
Abraão e Lot, conforme nos relata o Livro do Génesis
(Gen . 13, 5) . E foi ainda por esta razão que Esaú deixou
o pai e o irmão para se estabelecer sobre a montanha de Seir
(Gen . 36, 6).

§ 39. E assim, não há qualquer necessidade de atribuir


a Adão um direito privado de domínio, ou propriedade
sobre a terra, com exclusão de todos os outros homens.
Esta é uma suposição que não é susceptível de ser provada,
e que não é capaz de explicar a origem da propriedade de
quem quer que seja. Mas, supondo que a terra tivesse sido
concedida aos filhos do homem, em comum, vemos imedia-
tamente que o trabalho de cada um deles lhes podia conce-
der o direito de se apropriarem, para seu uso privado, de
algumas das parcelas que a integram. Ali, então, nenhuma
dúvida de direito se poderia colocar, nem haveria lugar
para quaisquer disputas.

§ 40. Também não é tão estranho, como poderá


parecer à primeira vista, que a propriedade do trabalho seja
capaz de superar a comunidade da terra. Na realidade, é o
trabalho que exprime o valor de cada coisa. Quem procurar
identificar a diferença entre o valor de um hectare de terra
plantado de tabaco ou de açúcar, ou então semeado de
trigo ou de cevada, e um hectare da mesma terra que
permaneça baldio e sem qualquer cultivo, verificará de
imediato que, na sua maior parte, essa diferença decorre
das melhorias que são produzidas pelo trabalho. Estou em

[67]
crer que, numa abordagem bastante modesta, se pode
afirmar que noventa por cento do valor dos produtos da
terra úteis para a vida dos homens são imputáveis ao trabalho .
Mais do que isso, se avaliarmos devidamente as coisas tal
como nos são apresentadas para uso corrente e fizermos
um balanço das várias despesas que entram na sua
produção, o que nelas se deve exclusivamente à natureza, e
o que nelas decorre do trabalho, facilmente chegaremos à
conclusão de que, na maioria dos casos, noventa e nove por
cento do seu valor deve ser atribuído exclusivamente ao
trabalho do homem.

§ 41. Não pode haver demonstração mais clara disto


mesmo do que o facto de inúmeras nações americanas
serem simultaneamente ricas em terras e pobres em todas
as comodidades da vida. A natureza dotou-as de recursos
naturais tão liberalmente como a qualquer outro povo,
fornecendo-lhes um solo fértil , apto para produzir com
abundância tudo quanto nos possa servir de alimento, de
vestuário, ou ser objecto de deleite, em geral. Contudo, na
medida em que aqueles povos não foram capazes de me-
lhorar, através do seu trabalho, as condições que a natureza
lhes proporcionou, não dispõem da centésima parte das
comodidades de que gozamos. E, naquele continente, um
rei de um território amplo e fértil alimenta-se, veste-se e
vive pior do que um operário assalariado na Inglaterra.

§ 42 . Para clarificar isto um pouco mais, convirá


seguirmos o rasto de algumas das provisões necessárias
para a nossa vida, através das várias alterações que lhes são
impressas ao longo do seu processo de produção, até que
cheguem às nossas mãos para consumo, de modo a poder-
mos identificar que parcela do seu valor advém da indústria
humana. O pão, o vinho, os tecidos, são, todos eles, bens
de uso diário e que possuímos em abundância. Não obs-

[68]
tante, as bolotas, a água, as folhas e as peles teriam de ser o
nosso alimento, a nossa bebida e o nosso vestuário, não fora
a capacidade do trabalho nos fornecer estas comodidades
bem mais agradáveis. É inteiramente devido ao trabalho e à
indústria que o pão vale mais do que as bolotas, que o vinho
vale mais do que a água, e que o pano ou a seda valem
mais do que as folhas , as peles ou os musgos. As bolotas, as
folhas e as peles serão o alimento e o vestuário que a
natureza nos fornece por ela mesma. Já o pão, o vinho e o
pano serão as provisões que preparámos para nós próprios
através da nossa indústria e do nosso trabalho. A medida
com que o valor dos segundos ultrapassa o dos primeiros
bastará para nos apercebermos de quanto o trabalho é respon-
sável pela maior parte do valor das coisas de que desfrutamos
neste mundo. E o solo que produz estes materiais de modo
algum poderá ser considerado como desempenhando mais
do que um papel insignificante neste processo de aferi-
ção do valor das coisas. Tão insignificante que, até mesmo
entre nós, a terra que não é cultivada, que não conhece
qualquer exploração, seja para pastagem, seja para uma
qualquer actividade agrícola, é justamente designada de
baldio. A sua utilidade é pouco mais do que nula. Isto mostra
bem quanto uma população numerosa é preferível à exten-
são territorial, e, bem assim, que é na conquista de novas
terras e na aquisição do direito de as explorar que se situa a
grande arte de governar. E o príncipe, que for suficiente-
mente sábio e semelhante a Deus para assegurar a protecção
do povo contra a opressão do poder e estreiteza das facções
sociais e encorajar o trabalho honesto dos homens através
de leis justas, rapidamente se tornará demasiado forte para os
seus vizinhos. Mas disto trataremos adiante. Para já, regres-
semos à discussão do tema que agora nos ocupa.

§ 43. Um hectare de terra que no nosso país produz


vinte medidas de trigo e outro na América que, se lhe dedicás-

[69]
semos o mesmo cuidado produziria o mesmo, possuem, ma-
nifestamente, o mesmo valor natural intrínseco. Ora, do pri-
meiro, a humanidade recebe um beneficio anual de 5 libras;
já do segundo, nem um centavo sequer, caso pudésse-
mos avaliar e vender neste país todo o produto que um
índio dele retira. Mais do que isso, creio poder em verdade
afirmar que nem valerá uma milésima parte do primeiro.
É, portanto, o trabalho que é responsável pela maior parte do
valor que a terra possui, sem o qual pouco ou nada valeria. A
ele devemos igualmente a maior parte dos produtos úteis
que extraímos do solo. Ninguém duvidará que a palha, o
farelo e o pão que obtemos de um alqueire de trigo, valem
manifestamente mais do que aquilo que um hectare de
terra baldia de igual qualidade poderá produzir esponta-
neamente. E é obviamente ao trabalho do homem que
essa diferença se fica a dever. Não podemos esquecer que
o valor do pão que comemos não advém apenas do esforço
do lavrador, da faina do ceifeiro e do moleiro, ou do suor
do padeiro. Há igualmente que ter em conta o trabalho
daqueles que domaram os bois, habituando-os à canga,
que extraíram e fundiram o ferro e as pedras, que cortaram
e trabalharam a madeira com que se constrói o arado, o
moinho, o fogão e todos os inúmeros utensílios necessários
para que a semente possa crescer e ser transformada em
pão. Todos eles têm de ser atribuídos ao trabalho do homem,
dele decorrendo. A natureza e a terra apenas nos forne-
cem materiais que, por si sós, são pouco mais que inúteis.
Se os pudéssemos identificar a todos , seria um catálogo
estranho de instrumentos, aqueles que a indústria proporciona
e utiliza na produção de cada fatia de pão: ferro, madeira,
cabedal, cortiça, lenha, pedra, tijolos, carvão, cal, pano,
corantes, breu, alcatrão, mastros, cordas e todos os mate-
riais necessários nas embarcações de transporte de qualquer
uma das mercadorias utilizadas em todos os momentos
desta grande tarefa por cada um dos trabalhadores, cujo

[70]
elenco pormenorizado é demasiado complexo para aqm
o podermos fixar.

§ 44. Torna-se, portanto, evidente que não obstante


os produtos da natureza nos terem sido oferecidos em
comum, o homem, sendo senhor de si próprio e proprie-
tário da sua pessoa, dos seus actos e do seu trabalho, possui
em si mesmo o grande fundamento da propriedade. Tal como
são igualmente seus, não os partilhando com mais nin-
guém, os instrumentos que utiliza na obtenção do seu
sustento ou do seu conforto, pelo menos a maior parte
deles, e que desenvolveu a partir do momento em que a
sua criatividade e as artes lhe permitiram aperfeiçoar as
comodidades da vida.

§ 45. Assim, pois, no m1c10 dos tempos, o trabalho


produz iu um direito de propriedade, onde quer que alguém se
encontrasse disposto a aplicá-lo sobre aquilo que estivesse
em comum. Durante muito tempo, assim permaneceu a
maior parte do planeta e, ainda hoje, constitui mais do que
os homens são capazes de utilizar. No início, a maioria dos
homens contentou-se com aquilo que a natureza lhes
oferecia espontaneamente para satisfação das suas neces-
sidades. Com o passar do tempo, nalgumas partes da terra
a explosão demográfica e o aumento da produtividade,
aliados ao uso do dinheiro, fizeram com que as terras escas-
seassem, aumentando o seu valor. Foi então que as várias
comunidades estabeleceram os limites dos respectivos ter-
ritórios, e, através de leis que adoptaram entre si, regularam
as propriedades dos particulares de cada sociedade. Des-
tarte, mediante pactos e acordos, fixaram a propriedade que o
trabalho e a indústria haviam gerado. E as alianças que
estabeleceram entre os vários Estados e reinos consagraram
a abdicação, expressa ou tácita, de quaisquer pretensões
ou direitos sobre o território de cada um deles. Por

[71]
consentimento mútuo, renunciaram igualmente a qualquer
reivindicação do direito natural anterior que possuíam
sobre os países respectivos. Deste modo, estabeleceram a
propriedade nas várias partes e parcelas da terra, mediante
um acordo positivo entre si. Contudo, existem ainda grandes
quantidades de terreno por descobrir. Terras cujos habitantes
não se aliaram ao resto da humanidade na partilha do
consentimento sobre o uso do seu dinheiro comum e que,
por isso mesmo, permanecem baldios e em comum, já que a
sua extensão ultrapassa a capacidade dos seus habitantes as
trabalharem e as aproveitarem. Apesar de que dificilmente
se poderá dizer que isto ainda se verifica naquela parte da
terra cujos habitantes adoptaram consensualmente o uso
do dinheiro.

§ 46. A maior parte das coisas realmente úteis para a


nossa vida são, geralmente, de curta duração. Assim se veri-
ficava já entre os primeiros co-proprietários da terra, que
as procuravam levados pelas necessidades básicas de subsis-
tência, tal como ainda hoje fazem os índios americanos.
Estragam-se e apodrecem, quando não são usadas ou con-
sumidas rapidamente. Por outro lado, o ouro, a prata e os
diamantes são bens a que se convencionou atribuir um valor
bastante elevado, muito maior do que aquele que corres-
ponderia ao uso real que deles fazemos em termos da
satisfação das nossas necessidades reais. Ora, conforme se
disse, cada homem possui o direito de usufruir daquilo que
a natureza a todos oferece em comum, bem como de se
apropriar de tudo o que for capaz de modificar com o seu
trabalho. Aquilo que a indústria de um homem alcançar e
retirar do estado em que havia sido colocado pela natureza
será justamente propriedade de quem assim agir. Quem
apanhar cem medidas de bolotas ou de maçãs, adquire, por
essa via, um direito de propriedade sobre elas; pertencem-lhe
desde o momento em que as apanhou. Apenas se lhe exige

[72]
que as utilize antes que se estraguem. De outro modo ultra-
passará o seu quinhão; apanhando mais do que devia, estará
a roubar aos outros. E na verdade, açambarcar mais do
que se podia utilizar seria manifestamente uma estupidez,
para além de uma desonestidade. Se oferecesse a outros
uma parte do que havia adquirido, não permitindo que se
estragasse inutilmente na sua posse, estaria igualmente a agir
de forma legítima. Tal como não estaria a prejudicar quem
quer que fosse, caso conseguisse trocar as suas ameixas, que
se estragariam numa semana, por nozes que poderia guardar
para ir comendo durante um ano inteiro. A partir do
momento em que não permitisse que se estragassem nas
suas mãos, não estaria a dilapidar o património comum,
nem a destruir qualquer parcela dos bens dos outros. Além
disso, se trocasse as suas nozes por um pedaço de metal,
encantado com a sua cor, ou as suas ovelhas por conchas, lã
por pedra brilhante ou diamante, e os guardasse durante
toda a sua vida, de modo algum estaria a invadir o direito
dos demais. Nada o impedia de acumular a quantidade
que entendesse destes objectos imperecíveis, porquanto
não é por obter amplas propriedades que alguém ultrapassa
os limites da propriedade legítima, mas por permitir que se
estraguem inutilmente em seu poder.

§ 47. E assim se introduziu o uso do dinheiro, enquanto


elemento duradouro que os homens podiam guardar sem
que se estragasse, e que, por consentimento mútuo, po-
diam trocar por aqueles bens verdadeiramente úteis, se bem
que perecíveis, necessários para o seu sustento.

§ 48 . Ora, graus diferentes de engenho e de esforço


humano produzem níveis igualmente diferentes de pos-
sessões. De igual modo, a invenção do dinheiro forneceu ao
homem a oportunidade de continuar a aumentar aquelas
que podia legitimamente adquirir sem risco de se estra-

[73]
garem no seu donúnio. Neste contexto, imaginemos uma
ilha, impossibilitada de estabelecer relações comerciais com
o resto da terra. Uma ilha onde não existisse mais do que
uma centena de famílias, apesar de contar com carneiros,
cavalos, vacas e outros animais úteis para o homem, frutos
salutares e terra suficiente para produzir cereais que dariam
para abastecer uma população cem vezes maior. Contudo,
imaginemos ainda que nada naquela ilha podia ser utilizado
como dinheiro, seja por causa da sua abundância ou vulga-
ridade, seja pela sua natureza efémera. Que razões poderia
alguém ter naquela ilha para alargar as suas possessões para
além daquilo que a sua fanúlia fosse capaz de utilizar?
Para que quereria obter mais do que uma provisão gene-
rosa daquilo de que necessitaria, seja para consumo próprio
directo, seja para utilizar como moeda de troca com os
demais, para obtenção das mercadorias igualmente pere-
cíveis e úteis que não fosse capaz de produzir pelos seus
próprios meios? Onde não existir algo que seja simultanea-
mente duradouro e escasso, e tão valioso que justifique ser
amealhado, os homens não terão qualquer inclinação para
aumentar as terras que possuam, por melhores ou mais ricas
que sejam aquelas que se encontrem à sua volta, ou por
mais livres que sejam de se apropriarem delas. Pergunto,
pois, que valor terão para um homem dez mil ou cem mil
hectares de terra excelente, já cultivados e bem providos de
gado também, no coração do interior da Arnérica, se não
tiver qualquer esperança de comércio com as outras partes
da terra, de modo a poder obter dinheiro a partir da venda
dos seus produtos? Todos esses terrenos e o gado que neles
pastasse valeria menos do que a cerca necessária para o
vedar. Quem deles se apropriasse, seguramente que os
abandonaria de imediato, devolvendo ao estado natural
todas aquelas propriedades que excedessem o suprimento
das comodidades de vida que naquela parte da terra po-
diam ser asseguradas, para si e para a sua fanúlia.

[74]
§ 49. No prinop10 dos tempos, pois, toda a terra
era como a América. Aliás, era mais semelhante à América
daquele tempo do que à de agora. Naquela altura nenhuma
parte da terra conhecia o dinheiro. E a partir do momento
em que um homem descobrir entre os seus vizinhos algu-
ma coisa com o valor do dinheiro e que possa usar, começará
imediatamente a aumentar as suas possessões.

§ 50. Em comparação com a comida, com o ves-


tuário e os meios de transporte, o ouro e a prata pouca
utilidade possuem para a vida de um homem. O seu valor
decorre unicamente do consenso estabelecido entre todos.
Ora, apesar de o trabalho permanecer, em boa parte, a
medida do valor das coisas, é inquestionável que os homens
chegaram a acordo relativamente a uma apropriação desigual
e desproporcionada da terra, o que foi possível a partir do
momento em que, por um consentimento tácito e volun-
tário entre todos, se encontrou uma via através da qual um
homem pode legitimamente possuir mais terras do que
aquelas cujo produto pode utilizar. A partir desse momento,
a capacidade de apropriação e de produção deixaram de
conhecer limites, uma vez que qualquer um podia trocar os
seus excedentes por ouro e prata, os quais, sendo metais que
não se estragam nem apodrecem, podem ser amealhados sem
prejuízo de ninguém. Foi assim que os homens viabilizaram
uma repartição desigual de possessões particulares através da
atribuição de um valor ao ouro e à prata, chegando tacita-
mente a acordo sobre a utilização do dinheiro, ainda antes
de se unirem em sociedade e sem que tivessem celebrado
qualquer contrato social entre si. Pois, nas sociedades
políticas, o direito à propriedade é estabelecido pelas leis e
a posse da terra é determinada por constituições positivas.

§ 51 . Torna-se, portanto, muito fácil de entender,


sem qualquer dificuldade, que o trabalho deu origem a um

[75]
direito de propriedade sobre aquelas coisas que a natureza a
todos oferecia em comum, com a salvaguarda de que cada
um apenas se podia apropriar daquilo que fosse capaz de
consumir. De tal modo que, não podia haver qualquer
razão para disputas acerca deste direito, nem quaisquer
dúvidas sobre o tamanho das possessões que dele decorria.
O direito e a conveniência andavam de mãos dadas. Na
medida em que qualquer homem possuía um direito sobre
tudo aquilo que trabalhasse, ninguém ficaria exposto à
tentação de trabalhar para obter mais do que aquilo que
fosse capaz de utilizar. Ora, isto não deixava qualquer
espaço para controvérsias sobre o título de propriedade,
nem tão pouco para a usurpação do direito dos outros.
Estava à vista de todos a parcela de propriedade que cada
homem lavrava para si mesmo, e era tão inútil como deso-
nesto reclamar para si em excesso, ou apoderar-se de mais
do que era necessário.

[76]
Capítulo VI

DO PODER PATERNAL

§ 52. Num tratado desta natureza, questionar a


acepção commumente atribuída a palavras e a nomes am-
plamente utilizados entre nós, poderá parecer muito pouco
pertinente. Todavia, talvez não seja dispiciendo cunhar
termos novos, sempre que os já existentes forem suscep-
tíveis de induzir em erro. Será este o caso do conceito de
poder paternal, que parece consignar o poder dos pais sobre
os filhos exclusivamente ao pai, como se a mãe nada tivesse
a ver com o assunto. Ora, quem consultar a razão humana,
ou a revelação divina , chegará incontornavelmente à con-
clusão de que um e outro possuem iguais direitos e res-
ponsabilidades na matéria. O que nos leva a perguntar
se não seria mais apropriado apelidá-lo de poder parental.
Quaisquer que sejam as obrigações que a natureza e o
direito de progenitura impõem aos filhos, seguramente que
são obrigações para com as duas causas concorrentes que
estiveram na origem da sua geração. É assim que, para
exigir a obediência dos filhos , o direito positivo divino se
refere sempre a pai e a mãe, sem os distinguir: Honra o
teu pai e a tua mãe (Êxodo, 20, 12); Todo aquele que amaldiçoar
o seu pai ou a sua mãe (Levítico, 20, 9); Que cada um de vós
respeite a sua mãe, o seu pai (Levítico, 19, 3); Filhos, obedecei a
vossos pais ... (Ejésios, 6, 1) . Tal é a linguagem do Antigo e
do Novo Testamento.

§ 53. Não deveria ser necessano aprofundar o


assunto. Bastaria que se tivesse prestado a estes preceitos a

[77)
atenção que merecem, e talvez a humanidade tivesse
conseguido evitar os erros grosseiros que têm sido come-
tidos a propósito deste poder dos pais sobre os filhos . Num
certo sentido, e na medida em que pertencer exclusi-
vamente ao pai, este poder paternal poderá seguramente ser
qualificado de domínio absoluto e de poder régio. Con-
tudo, na medida em que falarmos de um poder parental,
seria estranho atribuí-lo apenas ao pai. O próprio conceito
utilizado é suficiente para demonstrar que é igualmente
atributo da mãe. Para além disso, em nada interessa ao
argumento daqueles que defendem vigorosamente o poder
absoluto e a autoridade de paternidade, como lhe chamam,
que a mãe tenha alguma coisa a ver com o assunto, parti-
lhando de tal poder. Muito menos serve esta constatação
de fundamento para a monarquia, como alguns tanto gos-
tam de sustentar. O próprio conceito a que recorrem torna
evidente que a autoridade fundamental, a partir da qual
se propõem derivar o seu governo de um só, não se situa
numa só pessoa, mas em duas , em conjunto. Não nos
detenhamos, porém, nesta discussão de nomes e passemos
adiante.

§ 54. Apesar de termos afirmado no capítulo II que


todos os homens são iguais por natureza, certamente que se
compreenderá que não nos reportávamos a todos os tipos
de igualdade. A idade ou a virtude podem legitimamente dar
a um homem precedência sobre os demais. Aqueles que
ap resentarem uma excelência de qualidades ou um mérito
superior merecem um lugar acima do nível médio da
sociedade. Pelas condições peculiares em que nasceram,
pelas aliar1ças que celebraram ou pelos beniftcios que rece-
beram, alguns homens podem ser levados a prestar um
especial tributo àqueles a quem a natureza, a gratidão, ou
qualquer outra consideração, os tornou devedores. E,
todavia, tudo isto é compatível com a condição de (ftual-

[78]
dade em que todos os homens se encontram relativamente
à jurisdição ou ao domínio mútuo. Era a esta igualdade que
me referi como sendo específica da matéria que agora nos
ocupa, e que se reporta ao igual direito que cada homem
tem à sua liberdade natural, em virtude da qual ninguém
se encontra sujeito à vontade ou à autoridade de qualquer
outro homem.

§ 55. As crianças, devo confessar, não nascem num tal


estado de igualdade perfeita, apesar de nascerem para ela.
Daí que os seus pais possuam uma espécie de poder e de
jurisdição sobre elas, desde o primeiro momento em que
vêm ao mundo, e durante algum tempo. Trata-se, contudo,
de uma jurisdição e de um poder estritamente delimitados
no tempo. Os laços desta sujeição dos filhos aos pais são
como as fraldas e os cueiros com que os envolvemos e os
amparamos na fragilidade da sua infância. À medida que
vão crescendo e que a idade e a razão vão aumentando,
esses mesmos laços vão-se desapertando, até que, com o
tempo, desaparecem por completo, deixando um homem
inteiramente livre e senhor de si mesmo.

§ 56. Adão foi criado como um homem perfeito,


com plena posse de todas as suas faculdades, físicas e men-
tais. Por esta razão, foi capaz, desde o primeiro instante
da sua vida, de procurar o seu sustento e de assegurar a sua
preservação, assim como de orientar as suas acções pelos
preceitos da lei racional que Deus nele havia impresso. A
partir dele, a terra foi povoada pelos seus descendentes,
que nasceram todos como bebés, débeis e indefesos, sem
conhecimento nem entendimento. Ora, para suprir estes
defeitos atinentes ao seu estado de imperfeição, e até
que desaparecessem com o aperfeiçoamento que vem com
o crescimento e a idade, Adão e Eva, e com eles todos os
país deste mundo, viram-se obrigados, pela lei da natureza, a

[79]
preservar, alimentar e educar os filhos que conceberam - não
como obra sua, mas como obra do seu criador, o Todo
Poderoso, perante o qual seriam chamados a dar contas
deles.

§ 57. A lei que governou Adão foi a mesma que


governou toda a sua posteridade, a lei da razão. A sua des-
cendência, porém, veio ao mundo de forma muito dife-
rente da dele, por nascimento natural, e, por isso mesmo,
sem qualquer conhecimento e sem o uso da razão. Por esse
motivo, enquanto que Adão teve a lei da razão para o guiar,
desde que foi criado, quando nascemos e durante toda a
infancia encontramo-nos temporariamente fora do âmbito
dessa lei. Ninguém pode ser vinculado por uma lei a que
não tem acesso. Ora, dado que a lei em causa apenas é
promulgada e apenas se dá a conhecer através da razão,
aquele que não se encontrar no seu uso, de modo algum se
pode encontrar sob a sua alçada. E posto que após o seu
nascimento, e durante algum tempo, os filhos de Adão não
se encontram sob a alçada desta lei da razão, tão pouco são
livres quando nascem e até que atinjam a idade da razão. Na
sua acepção mais pura, a lei não é tanto um instrumento
de limitação, mas de direcção de um agente livre e inteligente
para o seu interesse próprio, e nada prescreve que não
seja para o bem geral daqueles que lhe estão sujeitos. Se,
por acaso, pudessem ser mais felizes sem ela, a própria lei se
extinguiria, como coisa inútil. E de modo algum se pode
dar o nome de limitação àquilo que nos protege de
atoleiros e de precipícios. De maneira que, por mais que
possa ser mal entendida, a lei não tem por objectivo abolir,
nem restringir, mas preservar e aumentar a liberdade. Em todas
as sociedades de seres capazes de se organizarem juridica-
mente, onde não existir direito, tão pouco existirá liberdade, já
que ser livre é não estar sujeito à coacção ou à violência de
outros, o que não se pode verificar onde não existir lei.

[80]
Porém, a liberdade não é, como por vezes nos querem
fazer crer, uma licença para cada homem agir como entender.
Se assim fosse, quem poderia ser livre, caso se pudesse
encontrar sujeito aos caprichos de qualquer outro homem?
Pelo contrário, a liberdade reside na capacidade de dispor e
ordenar como entender a sua pessoa, as suas acções, os seus
haveres e toda a sua propriedade, dentro dos limites que
forem estabelecidos pelas leis a que estiver sujeito, e, neste
contexto, não estar subordinado à vontade arbitrária de
outros, mas seguir apenas a sua, sem quaisquer constran-
gimentos.

§ 58. Deste modo, o poder que os pais têm sobre os


filhos deriva deste dever de que são incumbidos, de cui-
darem deles enquanto permanecem no estado imperfeito
da infancia. Até que cheguem à idade da razão os filhos
menores, e por isso mesmo ainda ignorantes, necessitam
que se lhes esclareça o entendimento e dirija o comporta-
mento. É ao que os pais estão obrigados, até serem liber-
tados destas tarefas. Porquanto ao mesmo tempo que Deus
atribuiu ao homem o entendimento para dirigir as suas
acções, concedeu-lhe igualmente uma vontade livre, e a
possibilidade de a exercer, dentro dos limites prescritos pela
lei a que estiver sujeito. Porém, enquanto não usufruir
de um entendimento próprio capaz de dirigir a sua vontade,
de modo algum deve possuir uma vontade própria que
possa exercer. Aquele que entender por ele, deve igualmente
querer e decidir por ele. Deve ditar-lhe o que fazer e
regular as suas acções. Mas, quando atingir a idade que fez
do seu pai um homem livre, o filho terá de ser um homem livre
também.

§ 59. Isto aplica-se em relação a todas as leis a que


um homem estiver sujeito, sejam elas naturais ou civis. Está
um homem submetido à lei natural? O que o libertou dessa

[81]
lei? O que lhe permitiu dispor livremente da sua proprie-
dade, segundo a sua vontade própria, e dentro dos limites
dessa mesma lei? Respondo apontando para o estado de
maioridade, no qual se supõe que o homem é capaz de
conhecer esta lei , de modo a manter as suas acções dentro
dos limites por ela prescritos. Ao atingir aquela idade,
presume-se que saiba até que ponto se deve guiar por
aquela lei e até que ponto poderá fazer uso da sua liber-
dade, sendo certo que é deste modo que a poderá adquirir.
Até lá, necessita de alguém que o guie, alguém que se
presume conheça a justa medida em que a lei permite a
liberdade. Se atingir uma tal idade da razão e do discerni-
mento emancipa um homem, tornando-o livre, também o
pai emancipará o seu filho, logo que a ela aceder. Quando
é que um homem se encontra sujeito à lei da Inglaterra? O
que o torna livre perante essa lei? Quero dizer, o que lhe
concede o direito de dispor das suas acções e dos seus
haveres, de acordo com a sua vontade e dentro daquilo
que a lei lhe permite? Nada mais, nada menos, do que a
capacidade de conhecer essa mesma lei; o que, nos termos
por ela prescritos, surge aos vi nte e um anos de idade, e
nalguns casos antes ainda. Ora, isto que fez do pai um
homem livre, fará do filho um homem livre também. Até
lá, vemos que a lei não permite ao filho qualquer vontade,
devendo ser guiado pela vontade do seu pai ou do seu
guardião, a quem incumbe entender e decidir por ele. E se
o pai morrer sem indicar um substituto para esta sua tarefa,
caso não tenha providenciado um tutor para guiar o filho
durante a sua menoridade, então, enquanto carecer de
entendimento, a própria lei assumirá essa tarefa e indicará
alguém para o governar, para lhe dirigir a vontade, até que
atinja a idade de liberdade, e o seu entendimento se encontre
apto para assumir o governo da sua vontade. Depois disso,
contudo, pai e filho serão igualmente livres, tanto quanto o
são o tutor e o pupilo depois da menoridade. Um e outro

[82]
serão igualmente súbditos da mesma lei, não restando ao
pai qualquer donúnio sobre a vida, a liberdade ou a
propriedade do seu filho, quer se encontrem apenas sob a
alçada da lei da natureza, guer se encontrem sujeitos ao
direito positivo de um governo estabelecido.

§ 60. Certas pessoas, porém, sofrem de deficiências


graves que as atiram para fora do curso ordinário da natu-
reza. Aqueles que padecerem de uma de tais moléstias, não
conseguem atingir o nível da razão que os tornem capazes
de conhecer a lei e, por isso, de viverem dentro do con-
jun.to de regras que a mesma prescreve. Por isso mesmo,
jamais serão capazes de ser livres. Nunca se lhes permitirá
que disponham livremente da sua vontade, na medida em
que não lhe reconhecem limites, nem dispõem do enten-
dimento competente para a guiar devidamente. E, pelo
contrário, enquanto o seu entendimento não for capaz de
desempenhar aquela tarefa deverão continuar sob a tutela e
o governo de outros. Deste modo, por exemplo, os lunáticos
e os idiotas, nunca são libertados da tutela dos seus pais. E
tal como nos diz Hooker (Ecc/. Pol., Livro I, Secção 7), as
crianças que ainda não chegaram àqueles anos em que podem
fazer uso da razão para se guiarem, tal como os inocentes que, por
um difeito natural, dela sào excluídos, ou em terceiro lugar, os
loucos, que momentaneamente também o não podem fazer, todos
eles possuem como guia a razão que norteia outros homens, que são
os seus guardiões, encarregados de cuidar deles e de os proteger. E
tudo isto não é mais do que o dever atribuído por Deus e
pela natureza ao homem, bem como às outras criaturas, de
cuidar dos seus filhos, até que cada um deles seja capaz de
cuidar de si próprio, o que dificilmente poderá constituir
uma prerrogativa ou prova da autoridade régia dos pais.

§ 61. Nascemos livres, portanto, na medida em que


nascemos racionais. Não que tenhamos de imediato acesso

[83]
a qualquer uma destas condições. A idade que traz uma,
desencadeia a outra também. Assim vemos como é que a
liberdade natural e a submissão aos país são perfeitamente
compatíveis, decorrendo de um princípio único. Uma
criança é livre na medida em que o seu pai também o for, e
é pelo entendimento do pai que se deverá reger até que
desenvolva aquele que lhe é próprio. A liberdade de um
homem de idade adulta, e a submissão de uma criança aos
seus país enquanto for de menoridade, são dois princípios
simultaneamente tão compatíveis e tão distintos que nem
os mais cegos defensores da monarquia, por direito de
paternidade, se podem negar a reconhecê-lo. Nem os mais
obstinados podem negar a sua compatibilidade. Para o
sublinhar, admitamos a sua doutrina como verdadeira,
isto é, admitamos a possibilidade de se conhecer, hoje, o
herdeiro legítimo de Adão. Suponhamos ainda que, por
esse mesmo título, este homem se encontra devidamente
estabelecido no seu trono, investido do poder absoluto e
ilimitado de que Sir Robert Filmer nos fala. Caso morresse
por altura do nascimento do seu herdeiro, não deveria o
recém-nascido, por maior que fosse a sua liberdade ou o
seu poder, ser entregue à mãe, ou a uma ama, a tutores e a
guardiões, até que a idade e a educação o trouxessem à
idade da razão e o habilitassem a governar-se a si próprio
e aos outros? As necessidades da sua vida, a saúde do seu
corpo e a instrução da sua mente exigiriam que se orien-
tasse pela vontade de outros, e não pela sua. E, contudo,
quem considerará que tais restrições e uma tal submissão
sejam inconsistentes ou que lhe arruinem a liberdade e o
poder a que teria direito, ou que conduzam à perda do seu
império em favor daqueles que o governaram durante a sua
menoridade? Este dominio que teriam exercido sobre ele
apenas o teria preparado para, melhor e mais rapidamente,
aceder ao seu império. Se alguém me perguntar quando é
que o meu filho terá idade para ser livre, responderei : logo

[84]
que atinja a idade que o meu rei necessita de ter para poder
governar. Conforme nos diz o judicioso Hooker (Eccl.
Pol., Livro I, Secção 6): Identificar o momento preciso em que
se pode dizer que um homem atingiu a idade da razão, em que se
torna capaz de conhecer aquelas leis pelas quais deve nortear as
suas acções, não é tarefa simples. É muito mais fácil determiná-lo
empiricamente, discernido pelos sentidos quando emerge, do que
pela perícia ou pela erudição de quem quer que seja.

§ 62. As próprias comunidades políticas reconhe-


cem que existe um momento a partir do qual um homem deve
começar a agir como um homem livre, e assim o determinam.
Até lá, não exigem que preste juramentos de fidelidade,
nem quaisquer outros preitos públicos de submissão ao
governo do seu país.

§ 63 . Nestes termos, a liberdade de um homem, tal


como a sua capacidade para agir de acordo com a sua
vontade própria, decorrem do facto de ser racional e de se
encontrar na posse plena da razão, capaz de o informar do
conjunto de leis no âmbito das quais se deverá governar a
si mesmo, e, bem assim, de lhe dar a conhecer até que
ponto é livre de agir de acordo com a sua vontade. Deixá-
-lo solto, permitindo que conheça uma liberdade sem
limites antes que a razão o possa guiar, não seria conceder-
-lhe o privilégio de liberdade que a sua própria natureza
reclama, pelo contrário, equivaleria a atirá-lo para o nível
dos cafres e condená-lo a uma condição tão desprezível
e tão imprópria da condição humana como é a deles. É
por esta razão que os pais possuem a autoridade adequada
para governar os filhos durante a sua menoridade. Foi
Deus quem lhes atribuiu esta responsabilidade de cuida-
rem dos seus descendentes, inculcando-lhes, para o efeito,
as inclinações apropriadas de ternura e de cuidado, de
modo a que a possam exercer com moderação e com

[85)
inteligência, para o bem dos seus filhos, enquanto tal for
necessano.

§ 64. Os cuidados que os pais têm obrigação de


prestar aos seus filhos, de modo algum podem assumir
proporções tais que lhes confiram um domínio absoluto e
arbitrário sobre eles. Pelo contrário, o poder de que os pais
dispõem sobre os seus filhos não se estende para além do
dever de lhes impor a disciplina que for considerada mais
conveniente para que possam desenvolver, seja a robustez e
a saúde fisicas, seja o vigor e a rectidão intelectuais neces-
sários para serem úteis, para si próprios e para os outros.
Para além disso, os pais têm ainda a obrigação de pôr os
filhos a trabalhar, logo que forem capazes de procurar o seu
próprio sustento. Ora, este é um poder que o pai partilha
com a mãe.

§ 65. Mais do que isso, este poder não pertence ao


pai por um qualquer direito de natureza peculiar, mas
apenas na medida em que é o guardião dos seus filhos.
Deste modo, a partir do momento em que deixar de
cuidar deles perde igualmente todo o poder que sobre
eles detinha, o qual se encontra directamente associado ao
dever de os alimentar e de os educar. O poder de um pai
adoptivo sobre uma criança enjeitada não é inferior àquele
que um pai natural possui. Por si só , o acto estrito de con-
cepção atribui a um homem um poder manifestamente
reduzido. Se todos os seus cuidados terminarem aqui, e
se este for o único título que possui para a reivindicar, não
será grande a sua autoridade paterna. E o que será feito
deste poder paternal naquelas partes da terra em que uma
mulher tem mais do que um marido ao mesmo tempo?
O que lhe acontecerá naquelas partes da América onde,
sempre que marido e mulher se separam, o que acontece
com frequência , os filhos ficam ao cuidado da mãe? E se o

[86]
pai morre enquanto os filhos são ainda menores? Não
passam para a tutela da mãe, a quem ficam a dever a mesma
obediência que deveriam ao seu pai caso permanecesse
vivo? E, por acaso, alguém dirá que a mãe possui um
poder legislativo sobre os filhos, através do qual possa
estabelecer regras permanentes que os vinculem para todo
o sempre, nomeadamente no que respeita à regulamen-
tação da sua propriedade e à limitação da sua liberdade,
em todos os momentos das suas vidas? Ou que tenha
autoridade para as impor de forma coerciva, inclusiva-
mente através da aplicação da pena de morte? Este é o
poder específico do magistrado, que em nada se assemelha ao
poder que um pai detém sobre os seus filhos. O seu
domínio sobre os filhos é apenas temporário, não atin-
gindo, nem as suas vidas, nem as suas propriedades.
Pelo contrário, não é mais do que um auxílio que lhes é
prestado, em face das fraquezas e das imperfeições que são
próprias da infancia, bem como uma disciplina que lhes é
concedida, necessária para a sua educação. E ainda que um
pai possa dispor dos seus próprios bens como entender,
sempre que os seus filhos não se encontrarem em perigo
de vida por indigência, o seu poder não se estende, de
modo algum, às suas vidas ou aos beneficias que o seu
trabalho, ou a generosidade de outros, lhes tenha
proporcionado. Muito menos o poder de um pai toca a
liberdade dos filhos, a partir do momento em que obtive-
rem a alforria que decorre da transição para a maioridade.
Cessa, então, o império paterno. Daí em diante, um pai não
poderá dispor da liberdade do seu filho mais do que da de
qualquer outro homem. E aquela jurisdição a que um
homem se poderá subtrair, já que conta com a autorização
expressa da autoridade divina para deixar pai e mãe e unir-
-se à sua mulher, será forçosamente tudo menos absoluta
ou perpétua.

[87]
§ 66. Chega uma altura em que um filho se torna
livre relativamente à vontade e ao domínio do seu pai, tal
como o pai se encontra livre em relação à vontade de qual-
quer outro homem. A partir desse momento, pai e filho
permanecem igualmente livres de quaisquer constrangi-
mentos, a não ser aqueles que forem comuns a ambos,
decorrentes, seja da lei da natureza, seja do direito interno
do seu país. Contudo, esta liberdade de modo algum exime
o filho do dever de honrar pai e mãe, que lhe é imposto pela
lei de Deus e pela lei da natureza. Deus criou os pais para
que fossem instrumentos do seu grande desígnio de perpe-
tuação da humanidade e causa da vida dos seus filhos.
Por isso, ao mesmo tempo que atribuiu aos pais a obri-
gação de alimentarem, preservarem e educarem os seus
filhos, Deus atribuiu aos filhos a obrigação de perpetua-
mente honrarem os seus progenitores. Para além disso, esta é
uma obrigação que compreende um dever de demons-
tração pública de estima e de reverência para com os
pais, que assume duas facetas e compromete duplamente
os filhos. Por um lado, inviabilizando comportamentos
que possam ofender, afrontar, perturbar, ou pôr em perigo
a felicidade ou a vida daqueles de quem receberam as
suas. E, por outro, atribuindo-lhes a responsabilidade de
participarem em todas as acções de defesa, apoio, assis-
tência e conforto daqueles que os geraram e lhes permi-
tiram que pudessem desfrutar de todos os prazeres que a
vida nos traz. E nenhum Estado, nem nenhum privilégio,
podem libertar os filhos destas obrigações. Ora, tudo isto
está longe, contudo, de atribuir aos pais um poder de
comando sobre os seus filhos, ou uma autoridade de defi-
nirem leis e de disporem como entenderem das suas vidas
ou das suas liberdades. Uma coisa é ter a obrigação de hon-
rar, respeitar, mostrar gratidão e prestar assistência; outra,
muito diferente, é exigir obediência e submissão absolutas.
Um rei, no seu trono, tem o mesmo dever de honrar a mãe

[88]
que qualquer filho tem para com os seus pais, todavia, isto
não diminui a sua autoridade, nem o coloca sob o governo
materno.

§ 67. A sujeiçao de um menor atribui ao pai um


poder temporário, que termina com a menoridade do
filho. Por outro lado, o dever que o filho tem de honrar os
pais, atribui-lhes um direito perpétuo de respeito, reve-
rência, auxílio e condescendência, os quais, aliás, devem
ser maiores ou menores, variando de acordo com os cuida-
dos, as despesas, e o carinho com que se empenharam na
sua educação. Estas obrigações não terminam com a
menoridade, mas prolongam-se por todas as parcelas e
condições de vida de um homem. Muitos dos erros que
têm surgido a este propósito terão sido causados pela con-
fusão destes dois poderes - a saber, aqueles que são ine-
rentes aos direitos que o pai possui decorrentes da instrução
que presta aos filho s durante a sua menoridade, e aqueles
que derivam do direito que tem de ser honrado, durante
toda a sua vida. Em sentido estrito, mais do que uma
prerrogativa do poder paterno, o primeiro destes poderes é
um privilégio dos filhos e um dever dos pais. A alimen-
tação e a educação dos filhos é um encargo atribuído aos
pais para o bem dos filhos, de tal modo que nada os pode
dispensar do cumprimento desta obrigação. Tanto assim é
que apesar do poder de mandar neles e de os castigar se encon-
trar associado a este encargo, Deus introduziu na com-
posição da natureza humana um afecto pelos seus descen-
dentes de tal magnitude que não há razões para temer que
os pais o exerçam com demasiado rigor. Os excessos,
quando se verificam, raramente se cometem pelo lado da
severidade, já que a própria natureza humana nos atrai
fortemente para o lado contrário. Daí que, no relaciona-
mento amoroso que mantinha com o povo de Israel, Deus
todo poderoso tivesse sublinhado que, quando o castigava,

[89]
procedia como um pai, que castiga seu filho (Deuteronómio,
8, 5) , isto é, com ternura e afecto, não lhes impondo uma
disciplina mais severa do que a mais conveniente, sendo
certo que teria demonstrado menos amor por eles caso a
abrandasse. É a este poder que os filhos devem obediência,
de maneira a que os sacrificios e os cuidados que os pais
colocam na sua educação não aumentem, nem sejam mal
recompensados.

§ 68. Por outro lado, honra e assistência, são tudo o


que a gratidão exige em retorno, pelos beneficias rece-
bidos, de tal modo que constituem dever indispensável dos
filhos e privilégio característico dos pais. As primeiras são
desenvolvidas para proveito dos pais, do mesmo modo que
os segundos o haviam sido para os filhos. Ora, a educação,
dever dos pais, assume um maior poder, já que a ignorância
e as debilidades da infância reclamam o estabelecimento de
barreiras que as contenham a par de medidas que as possam
corrigir. E estas são tarefas que consubstanciam, manifes-
tamente, o exercício do poder e uma espécie de domínio.
Por outro lado, o dever consubstanciado no conceito de
honra exige aos filhos adultos uma obediência menor
do que aquela que é exigida aos mais jovens - se bem
que os primeiros tenham uma maior obrigação de assim
agir para com os seus pais . Ninguém, certamente, imagi-
nará que o mandamento, Filhos, obedecei a vossos pais, exige
de um homem adulto a mesma submissão ao seu pai que
ele próprio exige dos seus filhos menores, ou que este
preceito o obrigue a obedecer a todos os comandos do seu
pai, até mesmo quando, por uma presunção de autoridade,
este tiver a insensatez de o tratar como se fosse um garoto.

§ 69. Deste modo, a primeira parte do poder, melhor


dizendo, do dever paternal que é a educação, pertence ao pai
e termina num momento determinado. Cessa logo que a

[90]
instrução dos filhos ficar concluída. Esta é, aliás, uma tarefa
que poderá ser alienada ainda antes deste momento, já que
um homem poderá colocar a educação dos seus filhos
nas mãos de outros. Aquele que assim agir, coloca o filho
como aprendiz de outro, para quem transfere uma boa
parte da obediência que o filho lhe devia, a ele e à mãe. Ao
invés, e no que diz respeito à outra parte dos deveres
dos filhos para com os pais, o dever de honrar, esse perma-
nece sempre intacto, já que nada o pode cancelar. E de tal
modo inseparável de ambos, que a autoridade do pai não é
capaz de retirar este direito à mãe, nem poderá homem
algum libertar o filho do dever de honrar aquela que o deu
à luz. Contudo, quer a primeira, quer a segunda parte
destes deveres, estão longe de co nsubstanciar um poder
legislativo, capaz de ditar leis e de as fazer cumprir coerci-
vamente, através do recurso a penas que possam incidir
sobre a propriedade de um homem, a sua liberdade, o seu
corpo e a sua própria vida. O poder de domínio tennina
com a menoridade. Por outro lado, o dever que um filho
tem para com o pai, de o honrar, respeitar, auxiliar e defen-
der, e de lhe oferecer todos os seus préstimos que a gra-
tidão possa exigir, este é já um dever que se prolonga
durante toda a vida. Contudo, nada disto coloca um ceptro
real nas mãos de um pai , nem lhe confere um poder sobe-
rano sobre os filhos. Não possui qualquer donúnio sobre a
propriedade ou o comportamento dos filhos, nem o me-
nor direito de lhes impor a sua vontade em todas as coisas.
Se bem que ao filho de modo algum fique mal mostrar
deferência para com o pai em tudo aquilo que não acarre-
tar grandes inconveniências, para ele ou para a sua família.

§ 70. Um homem poderá estar obrigado a honrar e a


respeitar outro homem, mais velho ou mais sábio do que
ele, ou a defender os seus filhos ou os seus amigos. Poderá
igualmente ter uma dívida de gratidão para com um seu

[91]
benfeitor, de tal grandeza que nada do que possua ou do
que possa fazer será suficiente para a saldar. E, contudo,
nada disto concede a quem quer que seja uma autori-
dade ou um direito de legislar sobre aquele que assim se
encontrar obrigado ou endividado. E é evidente que, em
si mesmo, o mero título de paternidade não é suficiente
para desencadear tais obrigações. Não só porque, tal como
ficou dito acima, são igualmente devidas à mãe, mas tam-
bém porque estas obrigações para com os pais, e os níveis
daquilo que, em função delas, é exigido aos filhos, poderão
variar consoante os cuidados e a ternura, as moléstias e as
despesas que muitas vezes são dedicados a um filho mais do
que a outro.

§ 71. Isto mostra bem a razão pela qual os pais


que vivem numa sociedade civil em que são, também eles, súb-
ditos, mantêm um poder sobre os seus filhos e têm outro tanto
direito à sua submissão e obediência como aquele que
teriam se permanecessem num estado de natureza. O que
de modo algum se poderia verificar, caso o poder político
se resumisse ao poder paternal, e um e outro fossem, na
verdade, uma e a mesma coisa. Em tal circunstância e uma
vez que todo o poder paternal se encontraria concentrado
no príncipe, então, naturalmente, nenhum dos seus
súbditos o poderia possuir. No entanto, estes dois poderes,
político e paternal, são tão perfeitamente distintos e separados,
assentam em alicerces tão diferentes, e visam finalidades tão
diversas, que cada súbdito que também for pai possui outro
tanto poder paternal sobre os seus filhos como aquele que o
príncipe possui sobre os seus. E, correlativamente, cada
príncipe cujos pais estiverem vivos tem para com eles
outros tantos deveres filiais e de obediência como os mais
humildes dos seus súbditos têm para com os deles. Torna-
-se, assim, evidente que o poder paternal e o poder político
se situam em níveis distintos, e o primeiro não participa da

[92]
mais ténue parcela do tipo de domínio que um príncipe ou
um magistrado detém sobre os seus súbditos.

§ 72. Ainda que a obrigação dos pais de educar os


filhos e a obrigação dos filhos de honrar os pais encerre todo
o poder, por um lado, e toda a sujeição, por outro, que são
próprios da relação que se estabelece entre ambos, con-
tudo, o pai possui ainda outro poder, através do qual garante
a obediência dos seus filhos. Não se trata de um poder que
seja exclusivo dos pais, mas que surge também noutros
homens, embora o vejamos ser exercido quase constante-
mente pelos pais no âmbito privado das suas famílias, e
apenas muito raramente fora delas. Universalmente reco-
nhecido como integrando a jurisdição paternal, este é o
poder que os homens em geral possuem de legar os seus bens
a quem mais lhes agradar. É certo que, normalmente,
dentro de certas proporções e de acordo com o direito e o
costume de cada país, os filhos têm expectativas sobre as
posses dos seus pais, de quem se consideram ser os her-
deiros. Contudo, é uso corrente que o pai tenha o poder
de legar os seus bens, repartindo-os com uma mão mais ou
menos frugal ou liberal, consoante este ou aquele dos seus
filhos se tenha comportado mais ou menos segundo a sua
vontade e o seu temperamento.

§ 73. Este é um instrumento importante de que um


pai dispõe para controlar a obediência dos seus filhos. O
usufruto de uma propriedade encontra-se universalmente
ligado à submissão ao governo do país de que faz parte. De
tal modo que se assume normalmente que um pai pode
colocar os seus descendentes sob a alçada do governo do qual ele
próprio é súbdito e, bem assim, que o pacto estabelecido
para o efeito a isso os obriga. Na realidade, trata-se de uma
condição necessária, anexa à própria propriedade e ao seu
usufruto. Assim, uma propriedade apenas pode ser herdada

[93]
por quem a tomar naquelas condições, isto é, por quem
se mostrar disposto para aceitar a jurisdição do governo
em que se situa, e este não é um qualquer vínculo ou
compromisso natural, mas antes uma submissão voluntária.
Os filhos de cada homem são, por natureza, tão livres como
o próprio pai ou como o foi qualquer um dos seus ante-
passados. Deste modo, e enquanto permanecerem livres,
podem obviamente escolher a que sociedade querem
pertencer e a que comunidade política se submeterão.
Contudo, para poderem usufruir da herança dos seus ante-
passados, terão de a aceitar precisamente nos mesmos
termos em que os seus antepassados a possuíram, e de a
sujeitar a todas as condições a que a sua posse se encontrar
submetida. Trata-se, portanto, de um poder através do qual
os pais podem comandar a obediência dos filhos, mesmo
quando ultrapassam a menoridade, e, bem assim, submetê-
-los a este ou àquele poder político. Não o fazem, con-
tudo, por um qualquer direito peculiar de paternidade, mas
pela possibilidade que assim se lhes oferece de recompen-
sarem a adesão dos filhos. Ora, este não será um poder
maior do que aquele que um francês exercerá sobre um
inglês, quando o segundo, na expectativa de receber por
herança a propriedade do primeiro, tem seguramente um
forte motivo para lhe obedecer. E, para usufruir da herança
em causa, quando finalmente a receber, terá necessa-
riamente de se submeter às condições anexas à posse da
terra adoptadas pelo país em que se situa, seja a França ou a
Inglaterra.

§ 74. Em conclusão, podemos então dizer que o


poder de comando de um pai não se estende para além da
menoridade dos filhos, cingindo-se ao nível daquilo que
for necessário para os disciplinar e para os governar durante
essa idade. Daí que os filhos tenham para com os seus pais
um conjunto de deveres iniludíveis que os acompanham

[94]
durante toda a vida e em todas as circunstâncias, entre
os quais se incluem o auxílio e a defesa, a honra, o respeito,
e tudo aquilo que os romanos incluíam no conceito de
piedade. Contudo, nada disto confere aos pais um poder de
governo, isto é, de adoptar leis e de as fazer aplicar coerci-
vamente sobre os seus filhos. Apesar de tudo o que lhes é
devido, os pais não possuem qualquer poder de dorrúnio
sobre a propriedade ou sobre o comportamento dos seus
filhos . E, no entanto, é perfeitamente compreensível que,
em circunstâncias bem precisas, os pais de família se consti-
tuam como príncipes, tal como se verificou no início dos
tempos, e ainda hoje se pode testemunhar, naqueles lugares
onde a fraca densidade populacional decorrente da escassez
de habitantes fornece às fanúlias um amplo espaço de
manobra para se poderem dispersar e instalar em regiões
até então inabitadas I. Em tais circunstâncias, o pai teria
sido um governante para os seus filhos desde o início da sua

I Daqui resulta qu e não é de modo algum improvável a opinião do


grande fil ósofo, segundo a qual o principal membro de cada famíli a se
impõe, sempre, como uma espéc ie de rei. Por isso é que quando vá rias
famílias se uniram cm sociedades civis, os reis foram as primeiras auto ridades
que conheceram. E esta será também a razão, ao que parece, pela qual os
reis continuaram a utilizar o título de pais, já que foi como pais que se
tornaram reis. Terá sido nesta mesma ocasião qu e também se desenvolveu
o costume antigo de os governantes, sendo reis, exercerem as fun ções
sacerdotais, como o fez J'vfelq lú sedec, e como o faziam os pais no iní cio
dos tempos. Contudo, esta não é a única forma de govern o que o mundo
recebeu. O s inconvenientes que aprese nta deram o rigem ao dese nvol-
vimento de muitas o utras . Numa palavra , torna- se evidente que todas as
fo rmas de governo, das mais diversas espécies, surgiram intencio nalmente a
partir da reunião de vários homens e do co nselho e da consulta qu e
estabeleceram entre si com vista à identificação daquela que lhes pareceu
mais conve niente e mais pertinente. Tudo isto na medida em que a única
imp ossibilidade qu e a natureza nos aprese nta, quando cons1derada em si
mesma, é que os ho mens possam ter vivido fo ra de uma qualquer fo rma
de governo (C f. H ooker, Ecc. Pol. , livro I, secção 10).

[95]
infancia. Ora, uma vez que teria sido difícil para os homens
viverem em conjunto sem um qualquer governo, torna-
-se plausível que, ao atingirem a idade adulta, os filhos
elegessem o pai para o desempenho dessas funções , por um
consentimento tácito ou expresso, já que, deste modo,
estariam praticamente a dar continuidade ao poder que
havia exercido até então. Para o efeito, nada mais se exigia
do que a autorização para que o pai continuasse a exercer,
sozinho, na sua família, aquele poder da lei da natureza que
cada homem livre possui. Por via deste consentimento
cada membro adulto da família cedia o seu poder ao pai,
conferindo-lhe, assim, um poder monárquico enquanto a
família permanecesse unida. Torna-se, contudo, evidente
que este poder monárquico do pai não decorria de um
qualquer direito paternal, mas do consentimento dos filhos.
Disto ninguém poderá duvidar. Suponhamos que um
estrangeiro se introduzia na sua casa, por acaso ou em
virtude de uma relação comercial, e ali matava algum dos
seus filhos ou cometia outro delito qualquer; seguramente
que o poderia condenar à morte e executá-lo, e, bem
assim, aplicar-lhe outra sanção qualquer, exactamente do
mesmo modo como o faria caso o delito em causa tivesse
sido cometido por um dos seus filhos . Contudo, é im-
possível que o pudesse fazer em virtude de uma qualquer
autoridade paterna, já que o delinquente não era seu
filho. Nesta circunstância, a legitimidade da sua actuação
decorreria directamente da lei da natureza e do poder
executivo que lhe fora conferido enquanto homem livre.
E, por outro lado, apenas ele poderia punir crimes
cometidos no seio da sua família, uma vez que o res-
peito que os filhos tinham por ele havia levado a que
consentissem que tal poder continuasse a ser exercido pelo
pai , a quem deste modo reconheciam uma dignidade e
uma autoridade superiores às dos restantes membros da
família.

[96]
§ 75. Portanto, terá sido com facilidade e quase
naturalmente, que, através de um consentimento tácito e
praticamente inevitável, os filhos abriram caminho à auto-
ridade e ao governo do pai. Acostumados como estavam,
desde a infancia, a seguir as suas instruções e a submeter-
-lhe as suas pequenas disputas, uma vez atingida a idade
adulta, quem melhor do que o pai para os governar? O
facto de as suas propriedades serem de dimensões redu-
zidas e de a sua cobiça ser ainda menor, conduzia a que
raramente surgissem grandes controvérsias entre eles.
Por outro lado, quando alguma delas surgia, de facto, onde
poderiam encontrar um árbitro mais apropriado para a
dirimir do que aquele homem que os havia criado e
educado e que a todos tratava com grande ternura? Não
será, portanto, de espantar que não tivessem estabelecido
qualquer distinção entre menoridade e maioridade, nem
que não esperassem com ansiedade por atingir os vinte e
um anos, ou qualquer outra idade que lhes pudesse atribuir
o direito de dispor livremente de si próprios e das suas
fortunas, uma vez que tudo o que desejavam era poder
continuar sob a sua tutela. O governo a que se encon-
travam sujeitos continuava a visar a sua protecção, mais do
que a sua repressão. E em lado algum poderiam encontrar
maior segurança para as suas vidas, para as suas liberdades e
para as suas fortunas do que aquela que lhes era assegurada
pelo governo de um pai.

§ 76. E foi assim que, através de uma alteração in-


sensível, os pais de família começaram também a ser monar-
cas políticos. E, como ao longo de várias gerações sucedeu
terem vidas longas e deixarem herdeiros competentes e
dignos, assim se estabeleceram os alicerces das monarquias
hereditárias ou electivas, se bem que sob uma variedade
de constituições e de modalidades, moldadas, todas elas,
pelo azar, pelas estratégias e pelas circunstâncias em que

(97]
emergiram. Contudo, se os príncipes devem este título ao
seu direito de paternidade, e se isto bastar para provar o
direito natural dos pais de jàmília à autoridade política, na
medida em que eram eles quem geralmente exercia de
Jacto o poder, então, caso este argumento seja considerado
válido, afirmo que provará com igual força que todos os
príncipes, ou melhor dizendo, que apenas os príncipes,
devem ser sacerdotes, já que é certo que, no início, o pai de
família era sacerdote, ao mesmo tempo que era governante na sua
própria casa.

[98]
Capítulo VII

DA SOCIEDADE POLÍTICA OU CIVIL

§ 77. Deus criou o homem como um ser tal que, no


seu próprio entendimento, não era conveniente que esti-
vesse só. Por isso o forçou, pela necessidade, pela conve-
niência e pela inclinação, a viver em sociedade, dotando-o,
para o efeito, de uma razão e de uma linguagem capazes de
a constituir e de usufruir dela. A primeira sociedade foi aquela
que se estabeleceu entre marido e mulher, a qual, por sua
vez, deu origem à de pais e filhos, a que, com o passar do
tempo, se lhe adicionou aquela que reúne o senhor e o
criado. Todas estas sociedades podem encontrar-se reu-
nidas, como habitualmente se verifica, constituindo uma só
família, na qual o marido e a mulher possuem uma espé-
cie de poder que lhes é específico. Apesar disso, contudo,
nenhuma destas sociedades, individualmente, ou mesmo
no seu conjunto, se aproxima da sociedade política, tal como
veremos, ao considerarmos os fins , os laços e os limites de
cada uma delas.

§ 78. A sociedade conjugal decorre de um pacto


voluntário entre marido e mulher. Consiste principal-
mente na união entre os cônjuges, que confere a cada um
deles um direito sobre o corpo do outro, tal como exigido
pela sua finalidade principal , que é a procriação. Contudo,
acarreta ainda a ajuda e a assistência mútuas, para além de
uma comunhão de interesses, necessárias para a reunião das
suas preocupações e dos seus afectos, bem como para os
seus descendentes comuns, que têm direito a ser alimen-

[99]
tados e criados pelos pais até que sejam capazes de cuidar
de si próprios.

§ 79. A finalidade da união entre macho e fêmea não é


apenas a procriação, mas a perpetuação da espécie. Daí que
esta união entre macho e temea deva prolongar-se para
além da procriação e perdurar enquanto assim o exigir a
educação e o sustento dos filhos, que têm de ser criados
por aqueles que os trouxeram ao mundo, até que sejam
capazes de mudar de situação e assegurar o seu próprio
sustento. Esta é uma regra que foi imposta pelo Criador,
com sabedoria infinita, a todas as criaturas que saíram das
suas mãos, e à qual até os seres mais inferiores obedecem
fielmente. Nos animais vivíparos que se alimentam de erva,
a união entre macho e fêmea não se prolonga para além da
cópula, na medida em que a mama da mãe é suficiente para
alimentar as crias, até que sejam capazes de pastar sozinhas.
A intervenção do macho termina com a procriação; não
se preocupa com a temea, nem com os filhotes, para o
sustento dos quais nada pode contribuir. Já entre as feras , a
união prolonga-se por mais tempo. A temea não é capaz de
assegurar, ao mesmo tempo, a sua própria subsistência e a
dos seus numerosos filhotes apenas com aquilo que for
capaz de caçar. O modo de vida destes animais é muito
mais árduo e perigoso do que aquele que é próprio dos
seus congéneres que se alimentam de erva. Por isso é que
se torna necessária a assistência do macho para a manu-
tenção da família que constituiu com a temea, que não é
capaz de sobreviver sem a colaboração e os cuidados de
ambos, até que os filhotes possam caçar por si próprios.
Outro tanto se pode observar em todas as aves (se excep-
tuarmos algumas espécies domésticas, onde a abundância
de alimento dispensa o galo das tarefas de alimentação e de
cuidar dos pintos) . Uma vez que as crias necessitam de
comida nos ninhos, macho e temea permanecem juntos,

[100]
até que os filhotes sejam capazes de usar as asas, e procurar
o seu próprio sustento.

§ 80. E, em meu entender, aqui reside a razão prin-


cipal, senão mesmo a única, que leva a que, entre o género
humano, macho e fêmea permaneçam unidos, ligados por laços
mais duradouros do que aqueles que reúnem os seus con-
géneres entre as outras criaturas. A diferença está no facto,
que, aliás, se verifica com frequência, de uma mulher con-
ceber e dar à luz um segundo filho muito antes do pri-
meiro estar apto a cuidar de si pelos seus próprios meios,
deixando, assim, de depender do auxílio dos pais para a
sua subsistência, como tem direito. Ora, uma vez que o pai
tem o dever de cuidar daqueles que gerou, daqui decorre
que tem a obrigação de permanecer na sociedade conjugal
que estabeleceu com uma mulher, por muito mais tempo
do que se verifica em relação às outras criaturas. Entre os
animais, os filhotes adquirem a capacidade de procurar o
seu sustento pelos seus próprios meios, antes que se inicie
um novo período de procriação. No momento em que tal
se verificar, o laço de união entre fêmea e macho dissolve-
-se, ficando uma e outro livres, até à chegada da estação do
cio em que são convocados pela natureza para escolherem
novos pares. Daí que não se possa deixar de admirar a
grande sabedoria do Criador que, concedendo ao homem
as capacidades de antevisão e de preparação do futuro,
para além da faculdade de dar resposta às necessidades do
presente, assegurou que a sociedade estabelecida entre marido e
mulher fosse mais duradoura do que a de macho e fêmea nas
demais criaturas. Com isto, atingiu um duplo objectivo.
Por um lado, fomentou a sua aplicação ao trabalho, ao
mesmo tempo que tornou manifesto que unidos detinham
melhores condições para a salvaguarda dos seus interesses.
E, por outro, sublinhou com clareza que, caso o vínculo
entre marido e mulher fosse incerto, ou a sociedade con-

[101]
jugal pudesse ser dissolvida com facilidade ou com
frequência, a capacidade de ambos de agir com previdência
e de garantir os bens necessários para o sustento e a instru-
ção da sua descendência comum ficaria profundamente
perturbada.

§ 81. Estes vínculos impostos à humanidade fazem


com que os laços conjugais sejam mais fortes e duradoiros
entre os homens do que nas demais espécies animais.
Contudo, cabe perguntar por que razão este pacto estabe-
lecido entre marido e mulher não poderá terminar a partir
do momento em que a procriação e a educação dos filhos
ficarem asseguradas, e os termos da herança ficarem esta-
belecidos? Por que razão o pacto conjugal não pode ser
denunciado como qualquer outro pacto voluntário, seja
por consentimento, seja num qualquer momento predeter-
minado, seja de acordo com certas condições, uma vez que
nem a sua natureza, nem a sua finalidade exigem que seja
para toda a vida? Refiro-me, obviamente, àqueles que não
se encontram submetidos a uma qualquer lei positiva que
ordene que todos aqueles contratos sejam perpétuos.

§ 82. Embora marido e mulher tenham um só inte-


resse comum, uma vez que possuem entendimentos distin-
tos , possuirão, por vezes, vontades igualmente distintas
também. Por esta razão, torna-se necessário que um deles
detenha a última palavra, isto é, capacidade para deter-
minar a vontade do casal. Trata-se de uma competência
que é atribuída naturalmente ao homem, já que é mais
apto e mais forte do que a mulher. Não obstante, e uma
vez que apenas incide sobre as coisas que são do interesse
e da propriedade comum do casal, a mulher permanece
perfeitamente livre e na posse de tudo aquilo que nos
termos do contrato conjugal constituir um direito espe-
cífico seu, e o marido não possui mais poder sobre a vida

(102]
da mulher do que aquele que ela detém sobre a dele. Este
poder do marido está tão afastado do poder de um rei abso-
luto, que a mulher possui, em muitos casos, o privilégio de
se separar dele, sempre que o direito natural ou o con-
trato conjugal o permitir. Tudo isto independentemente
da questão de saber se o contrato foi celebrado por ambos
num estado de natureza, ou de acordo com os costumes e
as leis do país em que vivem. E, em caso de separação, os
filhos permanecerão com o pai ou com a mãe, conforme
o contrato em causa o determinar.

§ 83 . Todos os objectivos do matrimónio tanto


podem ser assegurados no âmbito de um governo político,
como num estado de natureza. Por esta razão, nenhum
magistrado civil poderá cercear os direitos ou o poder de
qualquer uma das partes naturais que são necessárias para
a sua consecução, a saber, a procriação, o apoio e o auxílio
mútuos enquanto permanecerem juntos, cumprindo-
-lhe apenas julgar as controvérsias que possam surgir entre
marido e mulher acerca destes objectivos. Se assim não
fosse, se por acaso o marido possuísse, por natureza, um
poder absoluto e soberano de vida e de morte, e se o esta-
belecimento de uma sociedade entre marido e mulher se
encontrasse dependente da atribuição ao marido deste
poder, então nenhum casamento poderia ser celebrado
nos países que lhe negam uma tal autoridade absoluta.
Contudo, uma vez que os objectivos do matrimónio de
modo algum exigem que o marido detenha um tal poder,
não é a circunstância de viver em sociedade conjugal que lho
confere, já que não é necessário para aquela condição. A
sociedade conjugal é capaz de subsistir e de cumprir os seus
obj ectivos sem ele. Mais do que isso, a comunidade de
bens e o poder sobre eles, a assistência e o auxílio mútuos,
bem como as demais tarefas específicas da sociedade con-
jugal, pode assumir várias formas , podendo ainda obedecer

(103)
ao regulamento próprio que for adoptado por ocasião da
celebração do contrato que reúne marido e mulher na
referida sociedade. De todas elas apenas se exige que sejam
compatíveis com a finalidade específica que as enforma,
designadamente a procriação e a instrução dos filhos, já
que nada se pode exigir de uma sociedade que não seja
necessário para a concretização dos fins para os quais ela
foi constituída.

§ 84. Já tratei no capítulo anterior da sociedade que se


forma entre os país e os filhos, bem como dos diversos direitos
e poderes que pertencem respectivamente a cada um deles.
Por esta razão, não necessito de voltar ao assunto. Creio
ter ficado claro que é perfeitamente distinta de uma socie-
dade política.

§ 85. Senhor e criado são nomes tão velhos como a


própria história, mas atribuídos a pessoas que se encon-
tram em condições muito díspares. Um homem livre, por
exemplo, pode tornar-se criado de outro através da venda
dos serviços que se propõe prestar-lhe durante um período
determinado, contra o pagamento de um salário. Por esta
via, o criado é habitualmente introduzido na farrúlia do
seu senhor e submetido à sua disciplina; contudo, o senhor
apenas adquire sobre ele um poder temporário, que nunca
poderá ultrapassar o que ficou estabelecido no contrato
celebrado entre ambos. Mas existe ainda outro tipo de
criados, a quem atribuímos o nome peculiar de escravos, os
quais, tendo sido capturados numa guerra justa, estão sub-
metidos pelo direito da natureza ao poder absoluto e à
vontade arbitrária dos seus senhores. Estes homens, como
digo, perderam o direito às suas vidas, e com ele a sua
liberdade e as suas propriedades. Para além disso, encon-
trando-se no estado de escravidão, não podem deter qualquer
propriedade, pelo que, enquanto permanecerem nesse

[104]
estado, de modo algum poderão ser considerados como
integrando a sociedade civil, cujo objectivo principal
é a preservação da propriedade.

§ 86. Consideremos, pois, o chife de família em


todas estas relações que mantém com os subordinados
que reúne debaixo do governo doméstico de uma família:
a mulher, os filhos, os criados e os escravos. Por maiores
semelhanças que apresente com uma pequena comuni-
dade política, pela ordem que assegura, pelos cargos que
comporta, e pelo número de elementos que integra, está
muito longe dela, tanto na sua constituição como nos seus
poderes e na sua finalidade. Caso a perspectivemos como
uma monarquia, e o pateifamilias como o seu rei abso-
luto, então seremos forçados a defender que a monarquia
absoluta não tem mais do que um poder francamente
fragmentado e curto, uma vez que, conforme já ficou
dito, o chife de família possui sobre as várias pessoas que
integram a família um poder que se encontra claramente
circunscrito, tanto no tempo como na sua amplitude.
Exceptuando os escravos (e a família de modo algum se
altera se não os tiver, do mesmo modo que a sua inexis-
tência de modo algum diminui o poder que detém), o
pateifamilias não possui qualquer poder legislativo de vida
e de morte sobre nenhum dos membros que a integra,
nem qualquer outro poder que não possa ser igualmente
exercido pela dona da casa, do mesmo modo que pelo
marido. E aquele que apenas detiver um poder fran-
camente delimitado sobre qualquer uma das pessoas que a
integram, seguramente que não poderá deter um poder
absoluto sobre a família, na sua totalidade. Mas, será a
partir da identificação do que constitui uma sociedade
política em si mesma, que melhor poderemos identificar
aquilo que a distingue de uma família ou de qualquer outra
sociedade humana .

(105]
§ 87. Tal como tivemos já a oportunidade de de-
monstrar, o homem nasce com um direito à liberdade
perfeita e ao gozo incontrolado de todos os direitos e de
todos os privilégios da lei da natureza, em igualdade de
circunstâncias com todos os outros homens ou grupos de
homens. Por isso, possui, por natureza, o poder, não ape-
nas de preservar a sua propriedade, isto é, a sua vida, a sua
liberdade e os seus bens, contra os danos e os ataques de
outros homens, mas também de julgar todos aqueles que
violarem aquela lei, aplicando-lhes as sanções que consi-
derar adequadas à natureza das ofensas cometidas, sem
excluir a pena de morte, nos casos em que a atrocidade
do crime assim o exigir. Porém, jamais poderá existir, ou
subsistir, uma sociedade política que não detiver o poder de
preservar a propriedade, e, para o efeito, punir todas as
ofensas que possam ser cometidas por qualquer um dos
seus membros. Nestes termos, só existirá uma sociedade
política quando cada um dos membros que a integra abdicar
deste seu poder natural, colocando-o nas mãos da
comunidade, em todos os casos em que não se encontrar
impedido de recorrer à protecção da lei por ela estabele-
cida. Deste modo, excluem-se todos os juízos privados de
qualquer um dos seus membros particulares, e a comu-
nidade emerge como árbitro, estabelecido mediante um
sistema de leis promulgadas e vigentes, imparciais e comuns
a todos os membros, que actua através de homens
autorizados pela comunidade para desempenharem três
grandes tarefas, a saber, executarem as leis por ela esta-
belecidas, dirimirem todos os diferendos que possam surgir
entre os membros dessa sociedade quanto a questões de
direito, e punirem todas as ofensas que um dos mem-
bros possa cometer contra a sociedade assim estabelecida,
aplicando as penalidades previstas na lei. Torna-se assim
fácil identificar quem está e quem não está reunido numa
sociedade política. Vi11em numa sociedade civil, uns com os

[106]
outros, todos aqueles que se encontrarem reunidos num
só corpo e possuírem um sistema jurídico e judicial a que
possam recorrer, com autoridade para resolver todas as
controvérsias que surjam entre eles, bem como para punir
os transgressores. Pelo contrário, quem não usufruir de
uma tal possibilidade de recurso comum, neste mundo,
entenda-se, permanecerá num estado de natureza, em que,
à falta de outro, cada um é juiz, intérprete e executor, em
tudo o que lhe disser respeito - o que, tal como já ficou
demonstrado, constitui um estado de natureza perfeito.

§ 88 . É assim que a comunidade adquire o poder de


estabelecer o castigo que deverá corresponder a cada uma
das várias transgressões que os membros dessa sociedade
cometerem entre si (poder de legislar), bem como o poder
de punir quaisquer danos ou ofensas que venham a ser
cometidas contra algum dos seus membros por estranhos
que dela não façam parte (poder de declarar a guerra e a paz).
Tudo isto com o objectivo de, na medida do possível, pre-
servar a propriedade de todos os membros dessa sociedade.
Todo aquele que entrar para uma sociedade civil e se fizer
membro de uma comunidade politica, renuncia ao poder
que detinha até então de punir os delitos cometidos contra
a lei da natureza, conforme lhe ditar o seu juízo privado.
Para além disso, com a renúncia ao direito que deti-
nha até então de julgar os delitos, que é concedido ao
legislativo em todos os casos em que é possível o recurso a
um magistrado, cada um cede igualmente à comunidade
o direito de utilizar, sempre que necessário, a sua força
para a execução das sentenças que a comunidade vier a
proferir. Aliás, estas serão as sentenças de cada membro
da comunidade, na medida em que serão proferidas pelo
próprio, ou por um representante seu. Tal é a origem
dos poderes legislativo e executivo da sociedade civil, que são
chamados a desempenhar duas grandes tarefas: julgar os

[107]
delitos que forem cometidos no seio da comunidade, de
acordo com as leis que tiverem sido promulgadas para o
efeito, e determinar, com base nos juízos que adoptar e a
partir das circunstâncias concretas de cada caso, o modo
como deverão ser punidas as ofensas cometidas a partir do
exterior. E , tanto num caso como no outro, utilizarão a
força de todos os membros da comunidade, sempre que
necessário.

§ 89. Por conseguinte, sempre que um conjunto de


homens se reúne em sociedade, momento em que cada um
abandona o poder executivo que lhe é outorgado pela lei
da natureza, transferindo-o para a comunidade, ali e só
ali existirá uma sociedade civil ou política. Isto tem lugar no
estado de natureza todas as vezes que qualquer grupo de
homens se reúne em sociedade de modo a constituir um só
povo e corpo político sob um governo supremo, ou, então,
quando alguém se junta e se incorpora a um governo já
constituído. Quem assim fizer, autoriza a sociedade, isto é,
o seu legislativo, a legislar por ele, tal como o exigir o bem
público da sociedade em que se integrou. E, para além
disso, compromete-se ainda com a execução da legislação
que vier a ser promulgada, assumindo a obrigação de lhe
prestar o seu auxílio, tal como se de decretos seus se tratasse.
É isto que retira os homens do estado de natureza, colocando-
-os numa comunidade política: o estabelecimento de um juiz
na terra, com autoridade para resolver todas as controvérsias
e reparar todos os danos que possam ser infligidos a qual-
quer um dos seus membros. Esse juiz é o poder legislativo,
ou os magistrados por ele nomeados. E, por outro lado,
sempre que qualquer número de homens, apesar de asso-
ciados, e independentemente da forma e das modalidades
de que a sua associação se revista, continuar a carecer de um
poder decisivo a que os seus membros possam recorrer,
então, é certo que permanecem num estado de natureza.

(108]
§ 90. Torna-se assim evidente que a monarquia abso-
luta, tida por alguns como sendo a única forma de governo
possível na terra, é, na verdade, incompatível com a sociedade
civil, razão pela qual não pode sequer ser considerada como
uma forma de governo civil. O objectivo da sociedade civil é
evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza
que decorrem, precisamente, do facto de cada homem
se constituir como juiz em causa própria . Desiderato que
cumpre através do estabelecimento de uma autori-
dade comum reconhecida por todos, a que cada um dos
membros dessa sociedade poderá recorrer sempre que
for vítima de injúria ou se vir envolvido em qualquer
controvérsia que possa surgir, e à qual todos devem obe-
diência2. Onde quer que se encontrem quaisquer pessoas
que não disponham de uma autoridade a que possam
recorrer para a resolução das disputas que surjam entre elas,
essas pessoas permanecerão num estado de natureza, que é
precisamente a condição em que se encontram todos os
príncipes absolutos relativamente àqueles que se encontram
sob o seu domínio.

§ 91. Uma vez que se supõe que o rei absoluto


reúne na sua pessoa todo o poder, tanto legislativo, como
executivo, jamais se encontrará um juiz a quem se possa
recorrer, capaz de decidir com justiça, imparcialidade e
autoridade. Muito menos se encontrará um juiz de quem
se espere socorro e remédio por eventuais injúrias ou
incómodos que venham a ser cometidos pelo príncipe ou

2 O poder público de qualquer sociedade é superior a todas e


qualquer uma das almas que a integram . A sua fun ção principal prende-se
com a promulgação de leis a que todos estamos sujeitos, e a que todos
devemos obediência, a menos que a razão nos demonstre, com uma certeza
iniludível que as leis da razão o u as leis de Deus nos ordenam o contrário
(Hooker, Ea. Pol., livro I, secção 16).

[109)
às suas ordens. Um tal homem, seja qual for o título que
detiver, Czar, Grand Signior, ou como o quisermos chamar,
encontrar-se-á num estado de natureza, quer em relação
a todos aqueles que estejam sob o seu domínio, quer em
relação a todo o resto da humanidade. Onde quer que
encontremos dois homens, que não possuam uma regra
permanente nem um juiz comum a quem recorrer neste
mundo para dirimir as controvérsias de direito que surjam
entre ambos, diremos que permanecem no estado de natu-
reza e sujeitos a todos os seus inconvenientes3. Apenas esta
lastimável diferença os separa do súbdito, ou, melhor, do
escravo, de um príncipe absoluto. No estado de natureza
normal, um homem detém o privilégio de identificar os
seus direitos, bem como de os salvaguardar, na medida das

3 N ão existe outra maneira de acabar com estas ofen sas mútuas,


injúrias e males a que todos os ho mens estão SUJeitos no estado de natureza ,
a não ser através da reunião dos homens e do estabeleci mento de um acordo
entre todos com vista à instituição de uma espécie de governo público a que
se submetem , atribuindo-lhe autoridade para os dirigir e governar, de modo
a prop orciona r-lhes a paz, a tranqu ilidade e o sossego propiciadores da sua
felicidade. Os ho mens sempre perceberam que onde quer que impere a
fo rça c a injúria, cada um apenas se tem a si próprio para se defender.
Sempre estiveram cientes de que não obstante terem o direito de procurar
os seus pró prios conforto e bcm-estar, de modo algum se poderá permitir
que algu ém o faça o fendendo o u prejudicando outros, devendo quem o
intentar ser impedido de o faze r, po r todos os homens e por todos os meios
legítimos. Po r fim, c na medida cm que cada um é parcial para consigo
própri o e para com aqueles a quem dedica os seus afectos, sempre soubemos
que não é razoável qu e um homem determine por si só quais os direitos que
deverá possuir, muito menos que os proc ure defender e salvaguardar pel os
seus pró prios mei os. Por tudo isto é que as discórdias e as dificuldades
seriam sem fim, e apenas termin ariam no dia em que os homens conse n-
tissem , cm comum , em abandonar um tal estado, permitindo que um só de
entre eles, seleccionado de comum acordo, os gove rnasse, se ndo certo que,
sem esse consentimento, não se ria possível identificar qualquer razão para
que um ho mem se transformasse em senhor e JUiz dos demais (Hooker, Eal.
Pol , livro I, secção I O).

[110]
suas possibilidades. Já quando a propriedade de um homem
é invadida pela vontade ou pelas instruções do seu mo-
narca, não só lhe é negada qualquer possibilidade de
recurso, própria de todos aqueles que vivem em sociedade,
como também lhe é recusada qualquer possibilidade, seja
de julgar, seja de defender os seus direitos. Nestas circuns-
tâncias, um homem vê-se degradado da condição comum
a todos os seres racionais e exposto às misérias e aos
inconvenientes que são de esperar de quem, encontrando-
-se num estado de natureza em que não conhece quaisquer
constrangimentos, está corrompido pela lisonja e investido
de um poder imenso.

§ 92. Quem pensar que o poder absoluto purifica


o sangue de um homem e corrige a baixeza da natureza
humana, apenas precisa de estudar a história, contempo-
rânea ou de qualquer outro periodo, para ficar convencido
do contrário. Aquele que teria sido insolente e perigoso
nos bosques da América, provavelmente não seria muito
melhor sentado sobre um trono real, a partir do qual segu-
ramente que recorreria ao conhecimento disponível e à
religião para justificar tudo o que fizesse aos seus súbditos,
e à espada para silenciar todos aqueles que se atrevessem a
questionar o seu poder. Bastará que se atente ao que se tem
vindo a passar no Ceilão, onde esta forma de organização
política foi desenvolvida de modo perfeito, para se verificar
que tipo de protecção se pode esperar de um rei absoluto, ou em
que género de pais da nação é que a monarquia absoluta
transforma os principes, bem como qual a felicidade e a
segurança que oferecem à sociedade civil.

§ 93. De facto, nas monarquias absolutas, tal como


nas demais formas de governo deste mundo, os súbditos
podem recorrer à lei e aos juízes para a decisão de contro-
vérsias, como também para reprimir quaisquer comporta-

[111]
mentos violentos que possam ser adoptados pelos súbditos
no seu inter-relacionamento mútuo. Esta é uma prerro-
gativa reconhecida universalmente; e ninguém deixará de
considerar que quem a negar ou a tentar destruir, merece
ser considerado inimigo declarado da sociedade e da hu-
manidade. Existem, contudo, razões para duvidar se isto se
fica a dever a um verdadeiro amor pela sociedade e pelo
género humano e à caridade que todos devemos uns
aos outros. Nada separa esta atitude daquilo que seria de
esperar e de exigir, naturalmente, de todos os que aprecia-
rem verdadeiramente o seu poder, o seu lucro ou a sua
grandeza, na medida em que tratariam de evitar que qual-
quer um dos animais que se esforçam e trabalham como
escravos unicamente para o seu poder e para o seu proveito,
alguma vez se pudessem prejudicar ou destruir uns aos
outros. Os cuidados que lhes são prestados não decorrem
de um sentimento de amor do senhor para com eles, mas
do amor que tem para consigo próprio, bem como para
com os beneficias que deles possa receber. Que protecção,
que barreiras existem numa tal condição que possam trazer
segurança contra a violência e a opressão deste senhor absoluto?
Esta é uma questão que dificilmente se poderá colocar.
Dir-nos-ão que a simples procura de segurança merece a
morte. Por um lado, concederão prontamente que nas
relações entre súbditos deverão existir medidas, leis e juízes
capazes de garantir a paz e a segurança mútuas. Por outro
lado, porém, entendem que o governante deve ser absoluto e
encontrar-se acima de todas estas circunstâncias. Na
medida em que detém poder para infringir os maiores
prejuízos e os maiores males, é sempre com total justiça
que os comete. Por isso, perguntar como é que uma pessoa
se pode proteger dos males e das injúrias que lhe possam
ser provocados por quem detém todo o poder, é logo
considerado facciosismo e rebelião. Como se os homens,
ao deixarem o estado de natureza para se reumrem em

[112]
sociedade, tivessem chegado a acordo que todos estariam
submetidos aos constrangimentos das leis, excepto um, que
continuaria a gozar de todas as liberdades do estado de
natureza, acrescidas de um poder imenso e desregrado pela
impunidade. Isto equivaleria a pensar que os homens são
tão estúpidos ao ponto de se preocuparem com os pre-
juízos que lhes possam ser causados pelas doninhas ou pelas
raposas, procurando evitá-los; mas não só estão prontos para
serem devorados por leões, como ainda procuram segurança
entregando-se a eles.

§ 94. Porém, por mais que os aduladores possam


embelezar os seus discursos para distracção do entendi-
mento das pessoas, jamais as conseguirão impedir de sentir
a verdade. Todos nós percebemos que nos encontraremos
num estado de natureza em relação a todos aqueles que
viverem fora dos laços da sociedade civil a que pertence-
mos, na medida em que, independentemente da situação
em que se encontrarem, não dispomos de qualquer pos-
sibilidade de recurso na terra contra as ofensas e as injúrias
que possamos receber deles. Daí que todos nós procuremos
obter, logo que possível, a protecção e a segurança próprias da
sociedade civil, pois para isso foi instituída e mereceu a nossa
adesão. É possível que, no início, (tal como se demonstrará
em detalhe na parte seguinte deste tratado) algum homem
excepcional tenha adquirido uma preeminência em relação
aos demais. Neste caso, seria de esperar que a bondade e a
virtude deste homem se impusessem como uma espécie de
autoridade natural. E que, em deferência para com elas,
emergisse um consentimento tácito generalizado no sen-
tido de o elevar à condição de governante, com capaci-
dade para ouvir e arbitrar os diferendos que surgissem, sem
qualquer outra precaução que não fosse a garantia da sua
rectidão e sabedoria. Ter-se-ia ainda verificado que esta
prática desencadeada num período inicial, marcado pela

(113)
negligência e pela inocência dos primeiros homens,
acabaria por assumir uma certa autoridade, ou um hábito
de santidade, conforme alguns nos pretendem persuadir.
Nesta circunstância, porém, o próprio tempo se teria en-
carregado de demonstrar que os sucessores destes chefes
naturais primitivos eram homens de outra cepa, tornando-
-se, então, manifesto para todos os membros da comu-
nidade que as suas propriedades não encontravam qualquer
segurança sob o governo destes homens, contrariamente
ao que dantes se verificava. (E não podemos esquecer que
a única finalidade do governo se prende com a preservação
da propriedadé.) Tornava-se assim manifesto para todos
que ninguém poderia estar seguro, nem descansado, muito
menos considerar-se inserido numa sociedade civil, até que o
poder legislativo fosse atribuído a um corpo colectivo,
tal como um Senado ou Parlamento ou o que se quiser.
Assim, cada pessoa singular ficaria igualmente submetida
com as demais àquelas leis que elas mesmas tivessem
adoptado, enquanto parte integrante do legislativo. Nin-
guém escaparia, por autoridade própria, à força das leis
que viessem a ser adoptadas, nem poderia reivindicar

4 No início, quando pela primeira vez se instaurou um regime de


organização social entre os homens, é possível que nada tivesse ticado
estabelecido quanto ao modo como o poder dos governantes se iria exercer.
É provável que num primeiro momento tudo ficasse confiado à sabedo ria
e à discr ição dos gove rnantes. Até que a experiência demo nstrasse os
inúmeros inconvenientes que esta situação acarretava para todas as partes.
De tal modo que aquilo que tinha sido estabelecido como remédio, mais
não acabaria por fazer do que agravar o mal que deveria curar. Todos
compreenderiam, então, que 11iver submetido à vontade de 11m só homem
co11duzia à miséria de rodos os home11s. E esta é uma constatação qu e os teria
forçado a adoptar um conjunto de leis, através das quais todos os homens
se riam capazes de conhecer atempadamente os se us deveres, bem como as
penas cm que incorreriam todos aqueles que as transg redissem (Hookcr,
Eal. Pol., livro I, secção 10) .

[114]
qualquer estatuto de superioridade que lhe permitisse estar
acima das leis, ou justificar os seus atropelos, ou os dos seus
familiares ou protegidos. Nenhum membro de uma sociedade
civil pode estar isento das leis que essa sociedade adopta,S . Senão
vejamos. Um homem que se comportar como bem en-
tender, e em relação ao qual não existir qualquer instância
na terra a que se possa recorrer para obtenção de repa-
rações ou de segurança contra os danos que cometer,
permanecerá obviamente num estado de natureza e não será
parte de qualquer sociedade civil. A menos que se afirme que
o estado de natureza e o estado civil são uma e a mesma
coisa. E ainda estou para encontrar quem adopte a causa da
anarquia com entusiasmo suficiente para o afirmar.

5 A lei civil é um acto do corpo político, na sua totalidade. Por esta


razão, prima sobre qu alquer ac to de qualquer uma das partes individuais
desse mesmo co rpo (Hooker, Ibidem) .

[115]
Capítulo VIII

DA ORIGEM DAS SOCIEDADES POLÍTICAS

§ 95. Conforme ficou já estabelecido, todos os


homens são livres, iguais e independentes por natureza.
Deste modo, ninguém pode ser retirado de uma tal
condição natural e submetido ao poder politico de outro,
a não ser através do seu próprio consentimento. A única
via pela qual um homem poderá renunciar à sua liber-
dade natural e assumir os laços da sociedade civil prende-se
com a celebração de um acordo com outros homens,
através do qual todos se associam e se unem numa comu-
nidade, com vista a uma convivência social confor-
tável, pacífica e tranquila, capaz de propiciar a cada um o
usufruto das suas propriedades e uma maior segurança
contra aqueles que não fazem parte da comunidade assim
constituída. Isto é algo que pode ser feito por qualquer
número de homens, uma vez que em nada prejudica a
liberdade dos demais, que permanecerão como sempre se
encontraram, isto é, num estado de natureza. Sempre que
vários homens chegarem a acordo para a constituição de uma
comunidade ou de um governo, encorparam-se, formando
um corpo político, no qual a maioria possui o direito de agir
e de decidir pelo todo.

§ 96. Quando, pelo consentimento de cada um


dos indivíduos que o constituem, qualquer conjunto de
homens se organiza numa comunidade, transforma-se, por
essa via, num só corpo, com o poder de agir como tal, o
que apenas é possível através da vontade e da determinação

[117]
da mmona. Tudo aquilo que constitui um só corpo terá
necessariamente que se movimentar numa só direcção.
Nestes termos, uma comunidade apenas pode agir atra-
vés do consentimento dos membros individuais que a
integram. Para além disso, um corpo terá de se mover na
direcção em que o impulsionar a maior de todas as forças
a que estiver sujeito, a qual, no caso de uma comunidade
política, é indubitavelmente o consentimento da maioria. De
outro modo, jamais poderia agir ou até mesmo continuar
a existir como um corpo, uma comunidade, que é aquilo, ao
fim e ao cabo, que os membros individuais que a integram
acordaram construir com o seu consentimento. Daí que,
pelo consentimento que exprimiu, cada um dos mem-
bros de uma comunidade tenha o dever de se submeter à
vontade da maioria. E é por esta razão que, nas assembleias
parlamentares, encarregadas de accionar as comunidades a
que se reportam, através da adopção de normas de direito
positivo, sempre que não se estabelece um número mínimo
de votos para que uma decisão seja validamente adoptada,
uma lei decretada pela maioria constitui sempre uma norma
jurídica estatuída pelo todo, e é obviamente vinculativa,
tão vinculativa como se possuísse, pelas leis da natureza e
da razão, o poder de toda a comunidade.

§ 97. E, portanto, todo aquele que consentir asso-


ciar-se a outros e formar um corpo político sob a jurisdi-
ção de um governo, assume perante todos os membros da
sociedade assim constituída a obrigação de se submeter às
determinações da maioria e de ser governado por ela . De
outro modo, este pacto originário através do qual um homem
se incorpora com outros numa sociedade, de nada valeria.
Nem mereceria sequer o nome de contrato social, caso
aqueles que nele participassem permanecessem livres e sem
quaisquer obrigações para além daquelas que já tinham
no estado de natureza. Se não, pergunto eu, em que é que

[ 118)
uma tal atitude se assemelharia a um contrato? Que novos
compromissos traria, se cada um não tivesse qualquer
obrigação de obedecer aos decretos da sociedade assim
estabelecida, a não ser àqueles que, numa avaliação caso
a caso, julgasse convenientes e aos quais decidisse dar o
seu consentimento? Em tais circunstâncias, um indivíduo
continuaria a gozar exactamente da mesma liberdade que
detinha antes do pacto, e que todos os homens possuem
enquanto permanecem num estado de natureza: uma
liberdade de se submeter apenas àquilo que considerar ser
do seu interesse e da sua conveniência.

§ 98 . Se, por acaso, o consentimento da maioria não for


recebido racionalmente como um acto do todo, que a todos
vincula, nada mais será capaz de accionar a sociedade, a
não ser o consentimento individual de cada um dos seus
membros. Ora, é praticamente impossível que alguma vez
se obtenha um tal consentimento, desde logo na medida
em que as doenças e os negócios, por exemplo, afastarão
sempre um número significativo de pessoas das assembleias
públicas, se bem que este seja sempre muito inferior ao
total dos membros da comunidade. Se tivermos ainda em
consideração a variedade de opiniões e a multiplicidade de
interesses que, inevitavelmente, encontramos em todos
os agrupamentos humanos, torna-se manifesto que, nestas
circunstâncias, e em tais termos, a entrada de um homem
para uma sociedade teria de se assemelhar à entrada de
Catão num teatro - far-se-ia apenas para dela sair de
imediato. Uma constituição como esta tornaria o poderoso
leviatão mais efémero do que a mais débil das criaturas, e
incapaz de sobreviver para além do próprio dia em que
nasceu. O que só poderemos supor se aceitarmos que seres
racionais queiram constituir sociedades apenas para que as
possam dissolver. Porquanto onde a maioria não for capaz
de se impor à minoria e decidir pelo todo, a sociedade

[119]
jamais poderá agir como um corpo, e, consequentemente,
dissolver-se-á de novo imediatamente.

§ 99. Teremos de convir, portanto, que todo aquele


que abandonar o estado de natureza e se unir a uma comu-
nidade, não poderá deixar de ceder à maioria dos membros
dessa comunidade (a não ser que se chegue expressamente
a acordo quanto a um número superior) todos os poderes
necessários para a consecução dos objectivos que estiveram
na base da sua reunião numa sociedade civil. Ora, esta
cedência de poderes opera-se pela mera manifestação de
acordo dos homens em se unirem numa sociedade política. É a
isto que o contrato social se resume. Ou, melhor, é isto que
tem de se verificar entre os indivíduos que criam uma
comunidade política ou acedem a uma já existente. Assim,
aquilo que cria e que, na verdade, constitui uma qualquer
comunidade política não é mais do que o consentimento de
um conjunto de homens livres, em cujo seio se possa
constituir uma maioria para se unir ou para se incorporar a
essa sociedade. Eis o que deu, ou poderia ter dado, início a
um qualquer governo legítimo neste mundo; isto e apenas isto.

§. 100. São duas as objecções com que me deparo


neste contexto.
Em primeiro lugar, que não encontramos na história
registo de qualquer grupo de homens independentes e iguais entre
si que se tenham reunido para, deste modo, iniciarem e estabele-
cerem um governo.
Em segundo lugar, que não é possível, de direito, que,
alguma vez, a(euém tivesse agido assim, uma vez que todos os
homens nascem submetidos a um governo a que devem obediência,
e não dispõem de qualquer liberdade para iniciarem outro novo.

§. 101. Relativamente à primeira objecção, tenho a


responder o seguinte. Ninguém se deverá surpreender pelo

[120]
facto de a história não nos oferecer mais do que um
relato muito sumário dos homens que viveram em conjunto
num estado de natureza. Mal os inconvenientes de uma
tal condição, a par do amor e da necessidade que todos
sentiam pelo convívio com os outros, fizeram com que
os primeiros agrupamentos humanos se constituíssem, os
homens começaram logo a unir-se e a incorporar-se em
comunidades políticas, de modo a poderem permanecer
juntos. Para além disso, se, pelo facto de não ouvirmos falar
que tivessem vivido numa tal condição, não pudermos
supor que os homens alguma vez tenham vivido num estado
de natureza, poderemos igualmente concluir que os solda-
dos de Salmanasser ou de Xerxes nunca foram crianças,
já que a história nada nos diz deste período das suas
vidas, e só os refere como adultos incorporados nos seus
exércitos. Por toda a parte, o governo é anterior aos
registos históricos, e a escrita só surge depois de um longo
período de convivência em sociedade civil ter propor-
cionado aos homens, por outros meios mais necessários, a
segurança, o bem-estar e a abundância. Só quando estas
condições se encontraram devidamente asseguradas é que
os homens começaram a procurar a história, em busca
dos seus fundadores e das suas origens, e, nessa altura, já a
memória de tudo isto se havia perdido. Tal como as pessoas
particulares, também as comunidades políticas costumam
desconhecer o seu nascimento e a sua infância. É aos relatos aci-
dentais deixados por outros que ficam a dever o pouco que
conhecem das suas origens. E todas as indicações que pos-
suímos dos primeiros regimes políticos estabelecidos entre
os homens (excepto aquelas que se referem aos judeus, em
que se verifica uma interferência directa do próprio Deus,
o que em nada favorece o domínio paternal) constituem
exemplos claros desta origem das sociedades políticas que
tenho vindo a apresentar, ou, então, pelo menos, para isso
apontam.

[121]
§. 102. Para uma pessoa não aceitar que Roma e Véneza
tiveram a sua origem na associação de vários homens, livres
e independentes uns dos outros, entre os quais não exis-
tiam quaisquer relações naturais de superioridade ou de
subordinação, é preciso que possua uma inclinação bem
estranha para negar os factos palpáveis mais evidentes, sempre
que estes não estiverem de acordo com as suas teorias. Para
além disso, a acreditar no que nos diz José Acosta, muitas
partes da América não conheciam qualquer forma de governo.
É muito provável, escreve a propósito dos habitantes do
Peru, que estes homens durante muito tempo não tiveram reis nem
comunidades políticas, mas viviam em bandos, como ainda hoje
vivem os cheriquanas na Flórida, ou os índios no Brasil, ou muitas
outras nações que não têm reis fixos, escolhendo os seus chifes
consoante a ocasião, tanto na paz como na guerra, conforme melhor
lhes convém. (Livro I, capítulo 25 .) E ficou já provado que, em
tais circunstâncias, cada um destes homens se encontrava, por
nascimento, sujeito ao seu pai, ou ao chefe da sua família -
sendo certo, contudo, que o dever de submissão que cada
criança tem para com o seu progenitor em nada lhe retira a
liberdade de se unir à comunidade política que entender,
quando atingir a idade da razão. De qualquer modo, é
evidente que estes homens eram de facto livres. Os nossos
políticos podem atribuir a um ou outro destes homens uma
superioridade hierárquica sobre os demais. O certo, porém,
é que eles próprios não a reivindicavam; pelo contrário,
por consentimento consideravam-se todos iguais, até que,
também por consentimento, decidiram eleger alguém de
entre eles para os governar. Deste modo, todas as suas
sociedades políticas surgiram a partir da união voluntária e do
acordo mútuo entre homens que agiam livremente na
escolha dos seus governantes e das suas formas de governo.

§. 103. Por último, espero que ninguém tenha a


mais pequena dúvida de que aqueles que, segundo o relato

[122]
de Justino (Livro III, capítulo 4), saíram de Esparta com
Palanto para se organizarem politicamente sob um governo
estabelecido pelo seu consentimento mútuo, eram todos
homens livres e independentes uns dos outros. E creio ter
já apresentado vários exemplos, retirados da história, de
homens livres vivendo num estado de natureza, que, uma vez
juntos, se incorporaram numa comunidade política. Por outro
lado, se a falta de exemplos históricos constituísse prova de
que os governos não tiveram, nem podiam ter tido uma tal
origem, julgo que os defensores do império paternal não
podiam fazer melhor do que abandonar os seus intentos de
invocar uma tal circunstância como prova dos seus
argumentos contra a liberdade natural de todos os homens.
Em boa razão, não se pode atribuir grande força a um
argumento no qual se justifica aquilo que se propõe - o
dever ser, de direito - a partir da identificação daquilo
que, de facto, se verificar ou nos for proposto pelo registo
histórico. Apesar disso, caso fossem capazes de nos apre-
sentar outros tantos exemplos históricos de gor;ernos consti-
tuídos originalmente por direito paterno, como aqueles que
acabei de apresentar com origem contratual , então pode-
ríamos, sem grande perigo, aceitar a sua causa. Contudo, se
me fosse permitido dar-lhes um conselho sobre a matéria,
dir-lhes-ia que fariam melhor em não esquadrinhar tanto
o passado em busca da origem dos governos, como têm vindo,
de Jacto, a fazer ultimamente, uma vez que se arriscam a
encontrar na base da maior parte deles algo muito pouco
favorável aos intentos que procuram promover, ou ao tipo
de poder que preconizam.

§. 104. Em todo o caso, e para concluir, é manifesto


que a razão está do nosso lado, que os homens são natural-
mente livres, e que a história nos demonstra que é aqui que
reside o fundamento dos governos deste mundo consti-
tuídos em tempos de paz: todos eles foram estabelecidos pelo

[123]
consentimento do povo. Tanto assim é que não há margem
para dúvida, seja sobre onde está a razão, seja sobre qual
terá sido a opinião e o comportamento dos homens no
momento em que ergueram um governo pela primeira vez.

§. 105. Não negarei que se retrocedermos no tempo


até onde a história nos permite procurar a origem das
comunidades políticas, iremos encontrá-las geralmente sob o
governo e a administração de um só homem. De igual
modo, estou em crer que o governo, em regra, terá sido
atribuído ao pai, particularmente na medida em que uma
família fosse bastante numerosa para subsistir por si própria,
bem como para permanecer unida, sem se misturar com
outras, como acontece com frequência na presença de
muito terreno disponível e de poucas pessoas para o cul-
tivar. A própria lei da natureza habilita um pai, tal como
qualquer outro homem, a punir como entender mais con-
veniente todas e quaisquer ofensas que possam ser come-
tidas contra ela. Daí que o pai detenha o poder de punir
as transgressões dos seus filhos, até mesmo depois de estes
terem atingido a idade adulta e de se terem emancipado da
sua tutela. E é muito provável que os filhos se submetessem
aos seus castigos, e que todos se aliassem ao pai contra o
delinquente, outorgando-lhe deste modo o poder de exe-
cutar as sentenças que ditasse perante as transgressões
cometidas, e elevando-o, na prática, à condição de legis-
lador e de governante de todos aqueles que permaneces-
sem unidos em torno da sua fanúlia. Era nele que mais se
podia confiar. Por um lado, a afeição que tinha para com
os filhos era garantia de que, sob o seu cuidado, as pro-
priedades e os interesses de cada um deles se encontravam
devidamente salvaguardados . E, por outro, o hábito de lhe
obedecerem, desenvolvido desde a infancia, conduzia a
que fosse mais fácil submeterem-se a ele do que a qualquer
outro. Assim, na medida em que necessitavam de alguém

[124]
que os governasse, e uma vez que o governo dificilmente
se poderá evitar entre aqueles que vivem em conjunto,
quem melhor para ocupar o lugar do que o progenitor
comum de todos eles, excepto se uma especial negligência,
crueldade ou outro qualquer defeito, mental ou fisico, o
tornassem incapaz de o exercer? Mas, suponhamos que o
pai morre, deixando como herdeiro alguém menos capaz,
seja por falta de idade, sabedoria ou coragem, seja por
qualquer outra razão. Ou suponhamos ainda que várias
famílias se reúnem e, por comum acordo, decidem perma-
necer unidas. Em tais circunstâncias, não se poderá duvidar
que os membros da comunidade usarão a sua liberdade
natural para entregarem o poder àquele que considerarem
mais apto e mais capaz de os governar bem. Assim encon-
tramos os povos da América que, vivendo fora do alcance
das espadas e da dominação sempre crescente dos dois
grandes impérios, o do Peru e o do México, gozavam da sua
liberdade natural, se bem que, caeteris paribus, habitual-
mente preferiam ser governados pelo herdeiro do seu
falecido monarca. Contudo, caso vissem nele um fraco, ou
um incapaz, não hesitavam em pô-lo de lado e substituí-lo
pelo mais robusto e mais valente de entre todos.

§. 106. Deste modo, ao perscrutar o passado, até


onde os registos históricos nos dão conta do povoamento
da terra e da história dos povos, verificamos que o poder
político se encontra habitualmente nas mãos de um só
homem. Este facto, contudo, de modo algum contradiz o
que tenho vindo a afirmar, designadamente, que a origem
das sociedades políticas está no consentimento daqueles que a
ela aderem e a constituem. São eles que, uma vez reunidos,
seleccionam a forma de governo que consideram mais
conveniente. No entanto, uma vez que esta prática inicial
levou a que os homens se equivocassem, pensando que o
governo fosse monárquico por natureza, e pertença do pai,

[125]
não será despropositado considerar neste momento as
razões que levaram os homens, no início dos tempos, a
adoptar, na generalidade, esta forma de governo. No
momento da instituição de algumas comunidades políticas,
é possível que a preeminência do pai de familia tenha dado
origem à concentração do poder e à sua colocação nas
mãos de um só homem. Porém, é evidente que a sobre-
vivência desta forma de governo unipessoal de modo algum
se ficou a dever a qualquer respeito pela autoridade
paterna, já que, na sua origem, praticamente todas as pe-
quenas monarquias, em geral, eram electivas, se não habi-
tualmente, pelo menos de forma esporádica.

§. 107. Nestes termos, nos primórdios dos tempos,


o poder exercido pelo pai sobre os filhos durante a infancia
acostumou-os ao governo de um só homem, mostrando-lhes
que, quando exercido com cuidado e competência, com
afecto e amor para com aqueles que lhe estavam sujeitos,
era suficiente para assegurar e preservar, por inteiro, a
felicidade política que os homens procuram na sociedade.
Por esta razão, não é de espantar que se tenham entregue
naturalmente a uma tal forma de governo, a que todos
estavam acostumados desde a infancia, e que, pela expe-
riência própria de cada um, se apresentava universalmente
como sendo ao mesmo tempo suave e segura. E a tudo isto
dever-se-á ainda acrescentar que a monarquia é um regime
simples, perfeitamente óbvio para homens a quem a
experiência não havia ainda instruído sobre as formas de
governo, nem a ambição ou a insolência de império havia
ensinado a precaverem-se dos atropelos dos privilégios e
das prerrogativas, ou dos inconvenientes do poder abso-
luto, que a monarquia rapidamente haveria de reclamar e
impor sobre todos eles. Não é, portanto, de estranhar que,
naquele momento, ninguém se tivesse preocupado muito
em apresentar instrumentos capazes, seja de reprimir quais-

[126]
quer exorbitâncias daqueles a quem se havia concedido
autoridade sobre toda a sociedade, seja de equilibrar o po-
der do governo, organizando-o em partes distintas e atri-
buindo cada uma a pessoas também diferentes. Os homens
não haviam ainda sentido a opressão do domínio tirânico.
As modas da época, as suas possessões e formas de vida
davam azo a poucos motivos de cobiça ou de ambição.
Nem umas, nem outras, lhes forneciam quaisquer motivos
de apreensão ou de precaução contra um tal perigo. Por
isso, ninguém se deverá espantar pelo facto de os homens
se terem entregue a uma tal forma de governo que, aliás, e
como se viu, se apresentava como a mais óbvia e a mais
simples, e, para além disso, era a mais adequada ao estado e
à condição em que se encontravam nesse momento, já que,
naqueles dias, a defesa contra invasões e injúrias do exterior
era bem mais urgente do que poder contar, a nível interno,
com a protecção de numerosas leis. A igualdade decorrente
de um modo de vida pobre e simples confinava os desejos
de cada um aos limites estreitos das suas pequenas proprie-
dades , razão pela qual as controvérsias não abundavam.
Consequentemente, escasseando as transgressões e os de-
linquentes, não se fazia sentir qualquer necessidade de
muitas leis para dirimir as primeiras e punir os segu ndos,
nem de uma variedade de ministros, de juízes e de fun-
cionários para superintenderem os processos e fazerem
justiça. Para além disso, não se poderá deixar de supor que
entre aqueles que se estimam mutuamente ao ponto de se
unirem em sociedade existe, pelo menos, algum conhe-
cimento mútuo e alguma confiança. Assim, é inevitável
que aqueles que não integram a sociedade a que pertencem
lhes suscitem mais e maiores apreensões do que qualquer
um dos seus companheiros. Por isso, só podemos supor que
os primeiros cuidados e as primeiras preocupações destes
homens se tenham dirigido para a sua segurança colectiva
perante as ameaças do exterior. E, em face disto, é natural

[127]
que se tenham colocado sob uma forma de governo mais
capaz de corresponder a este desiderato, e seleccionado o
mais sábio e mais valente de entre eles para os chefiar
nas suas guerras, para os conduzir contra os seus inimigos,
numa palavra, para os governar, já que eram estas as prin-
cipais tarefas que era chamado a desempenhar.

§. 108. Isto mesmo podemos observar na América,


que ainda hoje nos oferece um modelo daquilo que terão
sido os primeiros tempos da Asia e da Europa, quando
os habitantes destes continentes eram pouco numerosos,
relativamente ao espaço disponível, e a escassez de pessoas
e de dinheiro fazia com que os homens não tivessem
qualquer tentação, quer fosse para alargarem as suas posse-
ssões de terra, quer fosse para lutarem por uma maior base
territorial da sociedade em que se integravam. Os seus
chifes pouco mais são do que generais responsáveis pela
condução dos exércitos. Na guerra, comandam com auto-
ridade absoluta. Apesar disso, a nível interno e em tempo
de paz, o domínio que exercem é muito escasso. Possuem
um poder muito moderado, e até mesmo a declaração de
guerra ou de paz é comummente da competência do povo,
ou de um conselho. Ainda que, em si mesma, a guerra não
admita uma pluralidade de comandos e exija a concen-
tração do poder na autoridade especifica do rei.

§. 109. É assim que, até mesmo em Israel, a ocupação


principal dos seus juízes e dos seus primeiros reis parece ter sido
a de capitães de guerra e comandantes dos seus exércitos.
Identificada com clareza na fórmula sair e entrar à frente do
povo, que mais não significa do que marchar para a guerra
e regressar a casa à cabeça dos exércitos, encontramo-la
bem expressa na história de Jejté. Tendo os Amonitas
declarado guerra a Israel, os Galaaditas, com medo, pro-
curaram jefté, um bastardo, filho de uma das suas famí-

[128]
lias que haviam expulsado, e propuseram-lhe o seguinte
acordo. Jifté ajudá-los-ia na guerra com os Amonítas e, em
contrapartida, o povo de Galaad faria dele o seu chefe. E
foi com estas palavras que o fizeram: O povo proclamou-o
seu chife e general (Juízes, 11, 11), o que, segundo parece, foi
equivalente a transformá-lo emjuiz. Aliás, segundo o texto
bíblico,Jifté morreu depois de ter julgado Israel (Juízes, 12, 7) ,
isto é, depois de ter sido o seu capitão general durante
seis anos. Assim, quando jotam repreendeu os habitantes de
Siquém a propósito das obrigações que tinham para com
Gedeão, que havia sido seu juiz e governante, diz-lhes o
seguinte: ele combateu por vós e livrou-vos dos madianitas, arris-
cando a sua própria vida (Juízes, 9, 17) . Os textos nada mais
nos dizem dele, a não ser dos seus feitos enquanto general,
e, na verdade, isso é tudo o que encontramos na sua histó-
ria, na de Gedeão, bem como na dos restantes Juízes. Para
além disso, Abimelec é particularizado, recebendo o trata-
mento de rei, se bem que, na melhor das hipóteses, mais
não terá sido do que um dos generais de Israel. E quando
os israelitas, cansados dos desmandos dos filhos de Samuel,
desejaram um rei, reivindicando, queremos ser como todas as
outras nações; o nosso rei administrará a justiça, marchará à nossa
frente e combaterá por nós em todas as guerras (1. Samuel, 8, 20),
Deus concedeu-lhes o pedido dizendo a Samuel: enviar-te-
-ei um homem, da terra de Benjamim, e tu o ungirás para chife
do Meu povo de Israel. Ele salvará o povo das mãos dos filis-
teus (1. Samuel, 9, 16). Como se a única ocupação de um
rei fosse comandar os exércitos e lutar em defesa do seu
povo. Tanto assim era que, por ocasião da unção de Saul,
enquanto derramava sobre ele um frasco de óleo, Samuel
declarou: O Senhor te ungiu príncipe sobre a sua herança
(1. Samuel, 10, 1). Por isso, também, depois de Saul ter sido
solenemente escolhido para rei e saudado como tal pelas
tribos em Mispá, a única objecção levantada por aqueles que
se mostraram relutantes em reconhecer a sua monarqma

[129]
foi perguntar: porventura poderá este salvar-nos (1. Samuel, 1O,
27)? Ora, com uma tal pergunta, mais não fizeram do que
mostrar que, em seu entender, aquele homem não podia
ser o rei deles, na medida em que não detinha as com-
petências nem as capacidades de liderança necessárias para
os defender na guerra. E quando Deus decidiu transferir
o poder para David, foi com estas palavras que o fez: Agora
o teu reinado não subsistirá. O Senhor escolheu para si um
homem segundo o Seu coração e fará dele chife do Seu povo
(1. Samuel, 13, 14). Como se a autoridade de um rei não fosse
além da de um general. Por esta razão, as tribos que, antes,
haviam permanecido fiéis a Saul e se haviam oposto ao
reinado de David, ao chegarem a Hebron com os termos da
sua submissão, expõem-lhe, entre outros argumentos que
lhe apresentaram como ao seu rei , o seguinte. Que já no
tempo de Saul, David era com efeito o seu rei, por isso não
viam qualquer razão para não o receberem como tal
naquele momento. Para além disso, argumentam ainda,
tempo atrás, quando Saul era nosso rei, eras tu que dirigias os
negócios de Israel e disse-te o Senhor: «tu apascentarás o meu povo
de Israel e serás o seu chife;> (II. Samuel, 5, 2).

§. 110. Nestes termos, quando uma família cresce


gradualmente até se transformar numa comunidade política e
a autoridade paterna se prolonga para o filho mais velho,
cada um dos seus membros se lhe submete tacitamente,
pelo simples facto de nela permanecer e nela continuar a
crescer e a desenvolver a sua vida. A leveza e a igualdade
deste tipo de poder a ninguém ofendia, razão pela qual
todos lhe ofereciam o seu consentimento. De tal modo que
o próprio tempo se encarregou de a confirmar e de pres-
crever um direito sucessório. De igual modo, quando
várias famílias, ou os seus descendentes, a quem o acaso, a
vizinhança, ou os negócios tenham posto em contacto,
se unirem em sociedade, far-se-á imediatamente sentir a

[130)
necessidade de um general que os lidere e os defenda
dos seus inimigos no campo de batalha. Para além disso, a
grande confiança que então imperava entre os homens, a
par da inocência e da sinceridade daqueles tempos, po-
bres mas virtuosos, (como terão sido quase todos aqueles
momentos em que se construíram governos duradouros)
conduziram a que os fundadores de comunidades políti-
cas, no geral, colocassem todo o poder nas mãos de um só
homem, sem quaisquer limitações ou restrições expressas,
para além daquelas que decorriam da própria natureza da
comunidade e eram exigidas pela finalidade do governo.
Independentemente de se saber quem, pela primeira vez,
colocou o poder nas mãos de um só homem, é indubitável
que a ninguém foi confiado, a não ser para o bem e para
a segurança públicas. Do mesmo modo que ninguém
duvidará ter sido precisamente para a concretização de tais
objectivos que o poder terá normalmente sido exercido
durante os primeiros anos de vida de qualquer comuni-
dade política. Se assim não tivesse acontecido, estas jovens
sociedades jamais teriam subsistido. Sem pais fundadores
bondosos e empenhados no bem público como estes, qual-
quer governo se afundaria sob o peso das fraquezas e
das enfermidades próprias da sua infancia, circunstância em
que tanto o príncipe como o povo rapidamente pereceriam
em conjunto.

§. 111. A idade de ouro (em que se terá vivido antes


que a ambição vã, o amor sceleratus habendi e a con-
cupiscência depravada tivessem corrompido as mentes dos
homens, conduzindo-as a uma concepção deturpada do
verdadeiro poder e da honra) terá conhecido uma maior
virtude, e, consequentemente, melhores governantes e súb-
ditos menos perversos. Naquela altura não existiam prer-
rogatillas crescentes, do lado dos governantes, para a opressão
do povo, nem, consequentemente, do lado oposto, sur-

[131]
giam disputas acerca da obtenção de privilégios capazes de
diminuir ou de travar o poder dos governantes6. Por isso,
não se criavam dissensões entre os dirigentes e o povo,
seja acerca de quem deveria exercer o poder, seja acerca da
forma de governo a ser adoptada. Contudo, em idades
futuras, a ambição e a luxúria haveriam de conduzir a uma
situação em que os governantes passaram a almejar a
retenção e o incremento do seu poder, sem contudo terem
de cumprir as funções para as quais haviam sido empos-
sados. A par disso, a lisonja levou os príncipes a desenvol-
ver um interesse privado, distinto e separado do interesse
do povo. Terá sido então que os homens começaram a
compreender a necessidade de examinarem mais de perto
a origem e as prerrogativas do governo, e, bem assim, de
procurarem desenvolver mecanismos que lhes permitissem
restringir os excessos e prevenir os abusos de um tal poder,
que havia sido confiado a outras mãos exclusivamente para
o seu próprio bem, mas que agora era utilizado para os
prejudicar.

§. 112. Assim se pode ver como é provável que,


pessoas livres por natureza, se tenham submetido ao poder
do seu pai, ou tenham procedido à reunião das suas famílias

6 N o início, quando se instauro u um certo ti po de regime político,


é bem possível qu e nada tivesse fi cado estabelecido quanto ao exe rcício
concreto do poder e tudo tivesse sido confiado à sabedo ria e à discrição dos
governantes, até que a experiência mostro u aos hom ens os grandes
inconvenientes que esta prática apresentava, tanto para os súbditos como
para os governantes. De tal modo que terá ficado manifesto que o remédio
desenvolvido mais não havia feito do que agravar o mal de que deveria ter
sido a cura. Todos terão compreendido que viver segundo a vontade de um
só hom em se havia transformado na miséria de todos os ho mens. O qu e
levou os hom ens a ado ptar um sistema jurídico através do qual cada um
pudesse conhecer de antemão os seus deveres, bem como as penas em que
incorreria quem os transgredisse (H ookcr, E((/ Pol., Livro I, Secção 10).

[132]
para, em conjunto, formarem um governo - e que o
tenham feito pelo seu próprio consentimento. Do mesmo
modo, podemos ainda verificar como é provável que,
num caso como no outro, tenham deposto o poder nas mãos
de um só homem, e optado por se colocar sob a alçada de
uma só pessoa, sem se preocuparem minimamente com o
estabelecimento de condições expressas, seja para a limi-
tação, seja para a regulamentação desse poder, já que, aos
olhos de todos, a honestidade e a prudência do governante
constituiriam as melhores garantias de segurança. Para além
disso, jamais terão sonhado sequer que a monarquia fosse
de jure divino, coisa que nunca ouvimos entre o género
humano até nos ser revelada pela teologia deste século.
Nem tão pouco terão permitido ao poder paternal um
direito de domínio que o pudesse elevar à condição de
alicerce do governo. E estou em crer que isto bastará para
demonstrar que, até onde a história nos pode esclarecer,
temos todas as razões para concluir que todos os governos
que tiveram origens pacíficas foram fundados no consenti-
mento do povo. Digo pacificas, na medida em que, noutro
lugar, teremos a oportunidade de tratar da conquista, con-
siderada por alguns como outra das suas origens.
A outra objecção que vejo ser levantada contra a origem da
política que tenho vindo a apresentar é a seguinte:

§. 113. Que todos os homens nascem já sob a alçada de


um governo, seja ele qual for. Por isso, é impossível que alguém,
alguma vez, seja livre, ou tenha a possibilidade de se unir a outros
e, assim, iniciar um novo governo, ou que alguma vez seja capaz
de constituir um governo legítimo.
Se, este fosse, por acaso, um bom argumento, então
caberia perguntar como é que tantas monarquias legítimas
se puderam formar neste mundo. Na verdade, e segundo
este raciocínio, se alguém for capaz de me mostrar, em
qualquer período histórico, um homem livre capaz de

[133]
iniciar uma monarquia legítima, pela minha parte, mostrar-
-lhe-ei outros dez homens igualmente livres e, simulta-
neamente, capazes de se unirem e de se organizarem sob
um governo político, seja ele monárquico ou de qualquer
outro tipo. Se, por acaso, se verificar que um homem,
tendo nascido sob o domínio de outro, se vier a encontrar
suficientemente livre para possuir um direito de comandar
outros num império novo que venha a estabelecer, então,
torna-se manifesto que qualquer homem que tenha nascido
sob o domínio de outro poderá encontrar-se igualmente livre
de o fazer e, destarte, de se estabelecer como senhor, ou
como súbdito, de uma comunidade distinta e separada
daquela em que havia nascido. Nestes termos, e segundo
o próprio argumento daqueles que invocam uma tal objec-
ção, de duas uma: ou se reconhece que todos os homens
são livres, independentemente da condição em que nas-
ceram, ou, então, não poderá existir mais do que um só
príncipe e um só governo legítimos em toda a terra. E,
neste caso, restar-lhes-ia apenas mostrar-nos quem são.
Logo que o fizerem, não tenho a menor dúvida de que
toda a humanidade aceitará de bom grado render-lhes a
obediência que merecem.

§. 114. Esta é uma resposta suficiente para demons-


trar que a objecção que nos levantam lhes traz as mesmas
dificuldades que nos são imputadas. Não obstante, tra-
tarei de expor um pouco mais as fraquezas deste argu-
mento.
Todos os homens, afirmam, nasceram sob um governo,
razão pela qual não são livres de começarem um novo. Toda a
gen te nasce sujeita a seu pai, ou aos seus governantes, encon-
trando-se, assim, submetida aos laços eternos da submissão e da
obediência. Ora, é evidente que os homens jamais reco-
nheceram, nem considerariam sequer, a possibilidade de se
encontrarem por nascimento, e sem o seu consentimento,

[134]
numa tal condição natural de sujeição, seja a seus pais, seja
aos seus governantes, a eles e aos seus herdeiros.

§. 115. A história, tanto sagrada como profana, está


repleta de exemplos de homens que se apartaram da juris-
dição em que nasceram, negando-lhe obediência, bem
como da família e da comunidade em que se haviam
criado, para formarem governos novos noutros lugares. Não
foi outra a origem da variedade de pequenas repúblicas que
emergiram nos primórdios dos tempos, as quais, aliás, se
foram multiplicando enquanto o espaço o permitiu e até
que as mais fortes, ou mais afortunadas, engoliram as mais
débeis. E estas, por sua vez, se voltaram a fragmentar e a
dissolver em domínios mais pequenos. Ora, estes exemplos
históricos constituem outros tantos testemunhos contra a
soberania paternal. Todos eles demonstram com clareza
que os governos não tiveram a sua origem num direito
natural do primeiro pai da humanidade, posteriormente
transmitido aos seus herdeiros, uma vez que dele jamais
se poderiam constituir tantos pequenos reinos. Apenas
poderia ter existido uma única monarquia universal sobre
a terra, se os homens não tivessem sido livres de se separarem
das suas famílias e dos seus governos, quaisquer que fossem
eles, e de partirem para estabelecerem as comunidades
políticas e os governos que bem entendessem.

§. 116. Tem sido esta a prática comum em toda a


terra, desde o princípio dos tempos até aos nossos dias.
Para além disso, o facto de nascermos no quadro de comu-
nidades políticas solidamente constituídas, com leis já promul-
gadas e governos já estabelecidos, de modo algum constitui
um empecilho à liberdade humana. E ninguém é menos
livre hoje do que quando os homens deambulavam pelos
bosques. Há quem nos queira persuadir de que, na medida
em que nascemos no seio de uma comunidade, estamos natural-

[135]
mente SU)Cttos ao seu governo, razão pela qual deixamos de
poder invocar qualquer direito ou pretensão de podermos
usufruir da liberdade do estado de natureza. Aqueles que
assim raciocinam (os defensores do poder paternal, a quem,
aliás, tivemos já a oportunidade de responder) mais não
têm para oferecer do que o argumento de que os nossos
pais, ou os nossos progenitores, cederam a sua liberdade
natural e, na medida em que o fizeram, comprometeram-
-se, a si próprios bem como a todos os seus descendentes,
a uma sujeição perpétua ao governo a que eles próprios se
haviam submetido. É bem verdade que um homem tem a
obrigação de cumprir as promessas que fizer e os compro-
missos que assumir pessoalmente. O que não pode é com-
prometer os seus filhos ou a sua posteridade, seja através de
que pacto for. Quando um filho atinge a maioridade, torna-
-se tão livre como o seu pai, daí que nenhum acto do pai
possa diminuir a liberdade do filho, tal como não o pode fazer
em relação a qualquer outra pessoa. O que um homem
poderá fazer, isso sim, é condicionar o usufruto das posses-
sões que mantém, enquanto súbdito de uma comuni-
dade política, às condições que entender. Nomeadamente,
poderá determinar que, para as herdar, o seu filho terá de
permanecer súbdito daquela comunidade. Uma vez que a
herança em causa é propriedade do pai, este poderá dispor
dela como melhor lhe aprouver.

§. 117. E, regra geral, é esta a origem dos equívocos


que têm surgido sobre esta matéria. As comunidades
políticas não permitem o desmembramento de qualquer
parcela dos seus domínios, nem que sejam propriedade de
quem não as integrar. Por isso é que um filho não acede
habitualmente à posse das propriedades de seu pai, a não
ser nos mesmos termos em que este o havia feito, isto é,
fazendo-se membro dessa mesma comunidade. Daí que se
submeta ao governo que ali encontrar estabelecido, tanto

[136]
como qualquer outro dos membros dessa comunidade
política. Assim, apenas o consentimento pode tornar homens
livres em súbditos do governo e membros da comunidade em que
nasceram; o que se opera, individualmente, quando cada um
atinge a maioridade, e não de forma colectiva. As pessoas
não costumam fazer caso deste facto, e, pensando que um
tal consentimento nunca é prestado ou, então, que é
desnecessário, concluem que são naturalmente súbditos da
comunidade em que nasceram.

§. 118. Porém, é evidente que não é assim que os


próprios governos o entendem. Nenhum deles reivindica
possuir o menor poder sobre ofilho, por causa do poder que detém
sobre o pai. Nem olham para as crianças como se fossem
seus súbditos, pelo simples facto de os seus pais o serem.
Se, por acaso, um súbdito da Inglaterra tiver um filho duma
mulher inglesa, em França, a que governo pertencerá essa
criança? Ao rei da Inglaterra seguramente que não será, na
medida em que necessita de autorização para adquirir esse
privilégio. Muito menos ao rei de França. De outro modo,
como poderia o pai dessa criança possuir o privilégio de
a retirar daquele país e de a educar como lhe aprouver? E,
acaso, alguma vez se julgou um homem por traição ou por
deserção , pelo facto de abandonar ou de tomar armas e lutar
co ntra o país ao qual se encontra ligado apenas pelo facto
de nele ter nascido, de pais estrangeiros? Assim, a pró-
pria prática dos governos, a que se alia a lei da recta razão,
demonstram-nos com clareza que nenhuma criança nasce
súbdita de um país ou de um governo. Qualquer criança está
sob a tutela e a autoridade dos pais até atingir a maio-
ridade. A partir daí, contudo, emancipa-se, ficando livre
para escolher o governo a que se quer submeter e o
co rpo político que deseja integrar. Na medida em que uma
criança nascida em França de pais ingleses goza da liberdade
de assim agir, torna-se evidente que não lhe são imputáveis

[137]
quaisquer obrigações pelo facto de o pai ser um súbdito
deste reino. Nem tão pouco estará vinculada a quaisquer
pactos celebrados pelos seus antepassados. Sendo assim, e
seguindo este raciocínio, que razões se poderão invocar
para negar idêntica liberdade a uma criança nascida em
qualquer outro lugar? Afinal, o poder que um pai possui
por natureza sobre os seus filhos é o mesmo, indepen-
dentemente do local onde estes possam ter nascido, e os
vínculos naturais que existem entre ambos não se encon-
tram delimitados pelas fronteiras concretas dos reinos e das
comunidades políticas.

§. 119. Conforme tivemos oportunidade de demons-


trar, todos os homens são livres por natureza, e nada os pode
submeter a qualquer poder terrestre, excepto o seu próprio
consentimento. Urge agora examinar o que devemos con-
siderar constituir uma declaração suficiente do consentimento
de um homem, capaz de o traniformar em súbdito, sujeito às
leis de um governo qualquer. Ora, é corrente apontar-se
para uma distinção entre consentimento expresso e
consentimento tácito, pertinente para a questão que temos
entre mãos. Ninguém duvida de que ao manifestar um
consentimento expresso de integrar uma sociedade, um
homem se transforma, por inteiro, em membro dessa
sociedade e em súbdito do respectivo governo. Difícil é
definir o que deve entender-se por consentimento tácito, e
saber até que ponto é que um tal consentimento é vin-
culativo. Ou seja: em que medida é que deve considerar-se
que alguém aceitou subordinar-se a determinado governo,
se não deu expressão concreta ao seu consentimento?
Em resposta a esta questão direi o seguinte. Um homem
manifesta o seu consentimento tácito a um governo, assu-
mindo a obrigação de a ele se submeter, pelo simples facto
de manter e fruir da posse de bens, em qualquer parcela
dos respectivos domínios. Enquanto isso se verificar, terá a

[138)
obrigação de se submeter às leis desse governo como
qualquer outro dos seus súbditos. E isso em qualquer caso,
quer detenha grandes propriedades, que deixe aos seus
herdeiros para todo o sempre, quer possua uma simples
residência temporária, que mantenha unicamente durante
uma semana, quer apenas se limite a viajar livremente pelas
estradas desse país. Com efeito, o simples facto de um
homem se encontrar num território, constitui, por si só,
manifestação de um tal consentimento tácito ao governo
respectivo.

§. 120. Para uma melhor compreensão do que


acabámos de apresentar, convirá ter presente o seguinte.
Quando um homem se integra pela primeira vez numa
comunidade política, anexa-lhe e submete-lhe, através
deste acto de união, todos os bens que possuir, bem como
todos aqueles que vier a adquirir, que não se encontrem
já sob a jurisdição de outro governo. De outro modo,
encontrar-nos-íamos, imediatamente, perante uma contra-
dição flagrante, uma vez que ninguém pode aderir, com
outros, a uma sociedade com vista à garantia da segurança
e da regulamentação da propriedade e, no entanto, assumir
que as suas herdades, cuja propriedade deverá ser definida
pelas leis da sociedade, possam ficar isentas da jurisdição
daquele governo ao qual, ele próprio, o seu proprietário,
está sujeito. Quer isto dizer que, na medida em que alguém
une a sua pessoa, que antes era livre, a uma qualquer co-
munidade política, pelo próprio acto com que o faz, nela
integra também todos os seus bens, que até então eram
igualmente livres. Assim, pessoa e bens tornam-se, respec-
tivamente, súbdito do governo e domínio da comunidade
política, enquanto esta existir como tal. E, a partir de um
tal momento, todo aquele que pretender, por herança,
compra, permissão, ou por qualquer outra via, usufruir de
alguma parcela de terreno assim integrado nos domínios dessa

[139]
comunidade política e sujeito ao seu governo, terá de ofazer na
condição em que ele se encontra; quero dizer, terá de se submeter
ao governo da comunidade política em aUa jurisdição aqueles bens
se encontram, nas mesmas condições que qualquer outro
súbdito.

§. 121. Porém, o governo apenas detém jurisdição


directa sobre o território. Assim, no caso de uma pessoa
não se ter ainda incorporado na sociedade respectiva, a
jurisdição daquele governo estende-se a quem o possuir,
apenas na medida em que nele habita ou que dele retira
proveito. Em virtude de um tal usufruto, qualquer um tem
a obrigação de se submeter ao governo que o tutela; obrigação
esta que começa e que termina com esse mesmo usufruto. Por esta
razão, quando um homem que mais não tenha oferecido
ao governo de uma sociedade do que este consentimento
tácito, se desfizer, por doação, venda, ou por qualquer outra
via, das propriedades que nela possuir, ficará livre para
partir e incorporar-se noutra comunidade política qual-
quer, ou, bem assim, para acordar com outros homens a
criação de uma sociedade nova, in vacuis locis, em qualquer
parte da terra que encontrem livre e sem dono. Porém,
todo aquele que tiver concedido o seu consentimento a uma
comunidade politica através de um acordo concreto e de
uma declaração expressa, encontra-se, perpétua e inilu-
divelmente, obrigado a dela permanecer súbdito, de forma
inalterável, e jamais poderá recuperar a liberdade do estado
de natureza . A não ser que alguma calamidade leve à
dissolução do governo a que se encontra sujeito, ou então,
que venha a ser formalmente excluído dessa comunidade
através de um acto público.

§. 122. Ora, não é por viver tranquilamente num


país , gozando dos privilégios e da protecção que decorrem
da subrnissão às suas leis, que um homem se traniforma em

[140)
membro dessa sociedade. Tudo isto mais não constitui do que
uma protecção local e a homenagem que é devida a todos
aqueles que, não se encontrando num estado de guerra,
entram nos territórios de um determinado governo que
estende a todas as partes desse território a força das suas
leis. Em todo o caso, não é isto que traniforma um homem
em membro daquela sociedade e súbdito perpétuo dessa comu-
nidade política. Do mesmo modo, aliás, que ninguém se
torna súbdito de outro pelo facto de residir durante algum
tempo na sua família , embora enquanto lá permanecesse
tivesse a obrigação de acatar as regras e obedecer ao go-
verno doméstico que encontrasse. Assim, vemos que os
estrangeiros que vivem toda a sua vida sob a jurisdição de
outro governo que não o seu, e usufruem dos privilégios e
da protecção que lhes são oferecidos, têm a obrigação, até
mesmo por consciência, de se submeter à respectiva admi-
nistração, tanto quanto qualquer cidadão naturalizado.
Porém, não é por nela viver que alguém se transforma em
súbdito ou membro de uma comunidade. Nada poderá operar
uma tal transformação num homem, a não ser que ingresse
nessa comunidade através de um compromisso concreto, e
de uma promessa e pacto expressos. Tal é a minha opinião
acerca do princípio das sociedades políticas, e daquele con-
sentimento capaz de traniformar qualquer homem em membro de
uma qualquer comunidade política.

[141]
Capítulo IX

DOS FINS DA SOCIEDADE POLÍTICA


E DO GOVERNO

§. 123. Se no estado de natureza o homem é tão


livre como se afirmou, perguntar-me-ão se é senhor abso-
luto da sua própria pessoa e dos seus bens, igual ao mais
insigne, e súbdito de ninguém, então por que razão renun-
ciará à sua liberdade? Por que razão cederá o seu império
e se submeterá ao domínio e ao controlo de outro poder
qualquer? A resposta a estas questões é óbvia. No estado
de natureza o homem possui , de facto, um tal direito, con-
tudo, o seu exercício é extremamente incerto, uma vez que
está constantemente exposto à invasão dos outros. Todos
são reis, tanto quanto ele, e cada homem é o seu igual.
Ora, a verdade é que, na sua maioria, os homens não são
exactamente cumpridores escrupulosos da equidade e da
justiça, daí que o usufruto da propriedade de que dispõem
num tal estado de natureza seja bastante perigoso e sem
garantia. É isto que os leva a abandonar aquela condição
que, apesar de marcada pela liberdade, está repleta de
medos e de perigos contínuos. E não é sem razão que um
hom em procura e deseja unir-se a outros em sociedade,
quer estes já se encontrem assim organizados, quer estejam
resolvidos a unirem-se com vista à preservação mútua das
suas vidas, das suas liberdades e dos seus bens, a que me
tenho vindo a referir com o nome genérico de propriedade.

§. 124. Portanto, o grande e principal fim que condu-


ziu à união dos homens em sociedade e à sua submissão a

[143]
um governo, foi a preservação das suas propriedades. Tarefa
para a qual o estado de natureza se apresentava profunda-
mente inadequado em muitos aspectos.
Em primeiro lugar, carece de um sistema de direito
estabelecido com firmeza e conhecido de todos, recebido e
aceite por consentimento comum para servir de padrão
do bem e do mal, medida comum para a decisão de
todas as controvérsias que possam surgir entre os homens.
A lei da natureza é clara e inteligível para todas as criaturas
racionais. Contudo, perante os seus interesses privados,
os homens tornam-se parciais, e ignorantes, por falta de
estudo dessa mesma lei. Daí não se encontrarem em
condições de a reconhecer como norma obrigatória para
todos eles, aplicável na resolução dos seus conflitos par-
ticulares.

§. 125. Em segundo lugar, no estado de natureza


não existe um juiz conhecido e imparcial, com autoridade para
dirimir todos os diferendos de acordo com a lei esta-
belecida. Nesse estado, cada homem é, simultaneamente,
intérprete e executor da lei da natureza. Ora, uma vez que
os homens são parciais para consigo próprios, a paixão e a
vingança são muito susceptíveis de os levar longe de mais
e de feição excessivamente acalorada , sempre que tiverem
de se pronunciar em causa própria. Do mesmo modo que
a negligência e o desinteresse os podem levar a neglicenciar
as causas e os interesses alheios.

§. 126. Em terceiro lugar, no estado de natureza


raramente existe um poder capaz de apoiar e de suster as
sentenças justas, bem como de as executar devidamente.
Aqueles que injustamente ofenderem alguém, seguramente
que não hesitarão em recorrer à força, se o puderem fazer,
para sustentarem a injustiça que perpetraram. Perante esta
resistência à lei natural , castigar os infractores acarreta

[144]
muitas vezes perigos graves, inclusivamente da própria
vida, para todo aquele que o intentar.

§. 127. Assim, e não obstante todos os privilégios que


o estado de natureza apresenta, enquanto os homens nele
permanecerem, encontrar-se-ão numa condição muito
má, razão pela qual se vêem rapidamente impelidos para se
organizarem em sociedade. Daí ser muito raro encon-
trar homens capazes de viver em conjunto num tal estado
durante algum tempo. As inconveniências a que nele se
encontram expostos, decorrentes do exercício irregular e
incerto do poder que cada homem possui para castigar as
transgressões dos outros, leva-os a procurar asilo debaixo da
alçada das leis estabelecidas pelos governos, e a nelas lograr
a preservação das suas propriedades. Eis a razão por que cada
um deles abdica voluntariamente do seu poder singular
de punição, que passará a ser exercido exclusivamente por
aquele que for eleito de entre todos com esta finalidade.
Tarefa que passará, então, a desempenhar de acordo com
as regras que vierem a ser estabelecidas para o efeito pela
comunidade, ou por aqueles que forem por ela indigitados
para as definir. Aqui temos o direito originário e o surgi-
mento inicial dos poderes legislativo e executivo, bem como dos
próprios governos e das sociedades.

§. 128. No estado de natureza, para além da liberdade


de desfrutar de certos prazeres inocentes, o homem possui
dois poderes.
O primeiro é o poder de fazer tudo aquilo que, no
seu entender, for conveniente para a sua própria preser-
vação, bem como para a dos demais, dentro dos limites
estabelecidos pela lei da natureza. Através desta lei, comum
a todos, cada homem integra, com o resto da humanidade,
uma só comunidade, constitui uma sociedade, distinta de
todas as restantes criaturas. E, não fora a corrupção e os

[145]
vícios de homens degenerados, não haveria necessidade de
qualquer outra, nem os homens teriam de se separar desta
grande comunidade natural, para se reorganizarem em
associações mais pequenas e divididas através de contratos
positivos.
O outro poder que um homem possui num estado de
natureza, é o poder de punir os crimes cometidos contra a lei
da natureza . Porém, prescinde destes dois poderes quando
se associa a uma sociedade política privada ou particular, se
assim a podemos chamar, e se incorpora numa comunidade
política destacada do resto da humanidade.

§. 129. O primeiro destes poderes, a saber, o defazer


tudo aquilo que considerar conveniente para a sua preservação,
bem como para a preservação do resto da humanidade, é
cedido, para que seja regulamentado pelas leis que a socie-
dade vier a adoptar, na medida, aliás, em que assim o exigir
a preservação de cada um, bem como a da sociedade
no seu todo. Em muitos aspectos, estas leis da socie-
dade limitam a liberdade que cada um usufrui pela lei da
natureza.

§. 130. Em segundo lugar, cada um cede, por inteiro, o


poder de punição, ao mesmo tempo que compromete a sua
força natural (que dantes poderia utilizar na execução da
lei da natureza, por sua única e exclusiva autoridade e tal
como considerasse mais conveniente) para prestar assis-
tência ao poder executivo da sociedade, sempre que a lei
assim o exigir. O homem encontra-se agora numa nova
situação, em que usufrui de muitas comodidades prove-
nientes do trabalho, da assistência e da sociedade que
estabeleceu com os outros numa só comunidade, bem
como da protecção que lhe é oferecida pela força conjunta
de toda a colectividade. Por isso, terá de renunciar a uma
parcela da liberdade natural de cuidar de si mesmo que

[146]
antes detinha, precisamente aquela parcela que vier a ser
exigida pelo bem, pela prosperidade e pela segurança da
sociedade. Tudo isto não só é necessário, como também é
justo, uma vez que todos os outros membros da sociedade
também o fazem.

§. 131. Os homens, quando entram em sociedade,


entregam nas mãos da sociedade a igualdade, a liberdade e
o poder executivo de que gozavam no estado de natureza,
para serem utilizados pelo legislativo, tal como o bem da
comunidade o possa exigir. Mas fazem-no apenas com a
intenção de cada um ser capaz de se preservar melhor a si
mesmo, bem como à sua liberdade e à sua propriedade. De
modo algum se poderá supor que um ser racional alterará
a condição em que se encontra com a intenção de piorar.
Por isso, jamais se poderá supor que o poder da sociedade, ou
do legislativo que ela venha a constituir, se possa estender para
além do bem comum. Pelo contrário, tem a obrigação de
garantir a propriedade de cada um dos seus membros,
providenciando contra os três defeitos do estado de natu-
reza acima mencionados, que o tornam tão incómodo e
inseguro. E assim, quem possuir o poder legislativo, poder
supremo de qualquer comunidade política, tem a obri-
gação de governar segundo leis vigentes estabelecidas,
promulgadas e conhecidas pelo povo, e não por decretos
improvisados. De dotar a comunidade de juízes rectos e
imparciais, que deverão dirimir todas as controvérsias à luz
daquelas leis. E, bem assim, de utilizar a força da comu-
nidade, no âmbito interno, exclusivamente para a execução
daquelas mesmas leis, e, no âmbito externo, para a prevenção
ou para a reparação de injúrias provenientes do estrangeiro,
bem como para garantir a segurança da comunidade
perante as incursões e as invasões de que vier a ser alvo. E
tudo isto jamais poderá ser encaminhado para outra finali-
dade que não seja a paz, a segurança e o bem público do povo.

[147]
Capítulo X

DAS FORMAS
DE UMA COMUNIDADE POLÍTICA

§. 132. A partir do momento em que os homens se


reuniram em sociedade pela primeira vez, a maioria pas-
sou naturalmente a deter todo o poder da comunidade, tal
como ficou demonstrado. Trata-se, aliás, de um poder que
pode utilizar de quando em quando para legislar em nome
da comunidade, bem como para executar as leis que vie-
rem a ser adoptadas, através dos oficiais que nomear para o
efeito. Neste caso, encontrar-nos-emos perante uma forma
de governo que é uma democracia perfeita. Ou então, a
maioria poderá colocar o poder legislativo nas mãos de
uma minoria selecta, e nas dos seus herdeiros e sucessores,
e tratar-se-á, então, de uma oligarquia. Por último, poderá
colocar este poder nas mãos de um só homem, e então
viver-se-á numa monarquia: hereditária, caso o poder do
monarca seja transmissível aos respectivos herdeiros, ou
electiva, no caso de o poder lhe ser atribuído apenas a ele, e
a maioria reassumir o poder de nomear o seu sucessor,
quando vier a perecer. E, a partir destas três formas de
governo, a comunidade poderá ainda desenvolver outras
novas, misturando e combinando características de uma
com características das outras, conforme melhor lhe aprou-
ver. Num primeiro momento, a maioria poderá atribuir o
poder legislativo a uma ou mais pessoas, para que o exer-
çam durante as suas vidas, ou durante um período limitado
de tempo, a partir do qual o poder lhe deverá ser devol-
vido. Neste caso, quando esta reversão do poder se tiver

[149]
verificado, a comunidade poderá dispor dele de novo e
colocá-lo nas mãos de quem entender, dando lugar a uma
nova forma de governo. A forma de governo depende da
atribuição do poder supremo, que é o poder legislativo. Não
se pode conceber que um poder inferior possa ditar o que
quer que seja a um poder superior, muito menos que outro
poder, que não o poder supremo, possa legislar. E é da
atribuição do poder legislativo que decorre a forma de uma
comunidade política.

§. 133. Ora, deverá ficar perfeitamente claro que, tal


como tenho vindo a utilizar o conceito ao longo desta
obra, comunidade política7 não é sinónimo de democracia,
nem de qualquer outra forma de governo. Antes, designa
qualquer comunidade política independente, aquilo que os
latinos denominavam de civitas, termo para o qual não
conheço outra tradução melhor. É o conceito de
comunidade política que melhor expressa uma tal sociedade
de homens, coisa a que, na nossa língua, os vocábulos co-
munidade ou cidade não traduzem de forma adequada .
Um governo poderá abarcar comunidades subordinadas, e,
entre nós, cidade possui uma concepção muito distinta de
comunidade política. Por isso, para evitar ambiguidades,
tomo a liberdade de utilizar o conceito de comunidade
política neste sentido, tal como foi utilizado pelo rei Jaime I.
Estou convencido, aliás, de que é este o seu significado
mais genuíno. Contudo, se desagradar a alguém, estou
disposto a substituí-lo por outro melhor.

7 Co mmoll-wcaltil , no original. N . T.

(150]
Capítulo XI

DO ALCANCE DO PODER LEGISLATIVO

§. 134. O grande objectivo da integração dos


homens em sociedade é o usufruto das suas propriedades,
em paz e em segurança, e os principais meios e instru-
mentos utilizados para o conseguir são as leis estabelecidas
nessa mesma sociedade. Assim sendo, a primeira e mais fun-
damental de todas as leis positivas de qualquer comunidade
política trata do estabelecimento do poder legislativo. De igual
modo, a primeira e mais fundamental de todas as leis naturais,
que deve nortear até mesmo o próprio legislativo, prende-se
com a preservação da sociedade e, tanto quanto o bem público
o permitir, de cada uma das pessoas que a integram. Este
legislativo, não só é o poder supremo da comunidade política,
como também é sagrado e inalterável, sempre que se
encontrar nas mãos em que a comunidade o depositou.
De igual modo, nenhum decreto, venha de quem vier, e
independentemente, da forma como for concebido, ou do
poder que o sustentar, poderá alguma vez possuir a força e
o carácter vinculativo de uma lei, caso não obtenha a
aprovação do legislador que tiver sido escolhido e nomeado
pelo povo. Sem este requisito, a lei jamais poderá contar
com algo que é absolutamente necessário para que seja
uma lei8, isto é, o consentimento da sociedade. Aliás, ninguém

X Em se11tido estrito, o poder legítimo de adoptar leis capazes de go11emar


sociedades políticas i11tciras pertmce às próprias sociedades 11 0 seu CO II}IIIltO. Por isso,
caso alg11m dos prí11cipes 011 dos potentados que existem sobre a terra 11ier a exercer
este poder por ele mesmo, c 11ào por ter recebido directa e pessoalmmte de Deus um

[151]
poderá deter uma capacidade de legislar sobre uma
sociedade, a não ser através do consentimento dessa mesma
sociedade e da autoridade que dela receber. Por isso, o
dever de obediência a que estamos obrigados pelos vínculos
mais solenes, desemboca por inteiro, em última instância,
neste poder supremo, e rege-se pelas leis que promulga. De
igual modo, nenhum juramento que se possa prestar a uma
potência estrangeira, ou a um poder interno subordinado,
poderá alguma vez desobrigar um membro da sociedade
do dever de obediência que tem para com o legislativo que
actue no âmbito do mandato que lhe foi concedido. Nada
poderá obrigar alguém a obedecer a quaisquer comandos
contrários às leis devidamente promulgadas, ou que ultra-
passem aquilo que elas permitem. Aliás, seria ridículo
imaginar alguém vinculado a obedecer, em última instância,
a qualquer poder na sociedade que não seja o poder supremo.

§. 135 . Quer se encontre atribuído a uma só pessoa,


ou a mais, quer esteja em sessão permanente, ou apenas
se reúna periodicamente, o legislativo constitui sempre o
poder supremo em qualquer comunidade política. Porém,
há-de ter-se em conta o seguinte:

ma11dato expresso para o fa z er, 011 c11tão por 11111a a11toridade assCIIte, 11a s11a origem,
sobre o commtimmto daq11clas pessoas para as quais se e11rorlfram a ~~~ is /ar, mtão
será da mais ger111Ítw tirarlia q11c se tratará. Não são leis, porta11to, aq11ilo q11e a
aprwação p1íhlira 11ão fez como tal (Hooker, Errl. Pol., /i 1m> / , secção I 0). A este
respeito, porta11to, ror111irá S11bli11har q11e t1m h11m l1omem poss11i por tJa t11reza 11111
poder ple11o e perfeito de roma11dar sociedades políticas i11teiras. Por isso, raso 11ão
oferecêssemos a rli11g11ém o 11osso COIISflltim e11to para q11e 11os govemasse, llilll'ríamos
li11res, sem q11e rli11g11ém ma11dasse em 11Ós. O ra, 11Ós ro11se11timos, de farto, em ser
.~<)l!ema dos, 11a medida em que a sociedade de q11e faze mos parte o ti11er fe ito, e até
q11e este COIISflltim e11to llfllha a ser rcr;ogado mediarlfe 11m acordo ig11almmte
1111iversa/.
É o ro11se11timmto q11e imprime 11alidade às leis lruma11as, sejam elas de que
espécie fo rem. lbidem.

[152]
Primeiro. Não é, nem pode ser, um poder arbitrário e
absoluto sobre as vidas e os bens do povo. Não represen-
tando mais do que o conjunto dos poderes que cada um
dos membros da sociedade entregou à pessoa ou à assem-
bleia que constitui o legislativo, um tal poder jamais se
poderá apresentar como algo superior àquilo que essas
mesmas pessoas possuíam enquanto viviam num estado de
natureza, antes de aderirem a uma sociedade, e que transfe-
riram para a comunidade. Nenhum homem pode transferir
para outro mais poder do que aquele que ele próprio
detém, e ninguém possui um poder absoluto e arbitrário
sobre si mesmo, ou sobre quem quer que seja, para destruir
a sua própria vida, ou para se apropriar da vida ou dos bens
de outro. Tal como se demonstrou, um homem não pode
submeter-se ao poder arbitrário de outro. No estado de
natureza, nenhum homem dispõe de um poder arbitrário
sobre a vida, a liberdade ou os bens de outro, mas apenas
do poder que lhe é concedido pela lei da natureza, para a
sua preservação e para a preservação do resto da huma-
nidade. Isto é tudo o que um homem cede, ou pode ceder,
a uma comunidade política, e, por seu intermédio, ao poder
legislativo. De tal modo que o legislativo de modo algum
poderá deter um poder superior a este. Na sua acepção
mais alargada, o poder do legislativo está limitado ao bem
público da sociedade. Trata-se de um poder que não tem
qualquer outra finalidade que não seja a preservação.
Portanto, jamais poderá deter o direito de destruir, escra-
vizar, ou de empobrecer deliberadamente os seus súb-
ditos9. As obrigações que nos são impostas pela lei da

9 São dois os alicerces que sustmtam as sociedades políticas. O primeiro, é


uma itrrlit~ação twtural através da qual todos os home11s desejam uma vida social e o
rompa11heirismo. O segu11do, é uma ordem , comtrr4 Ída a partir de um acordo, exp resso
ou tácito, relativo ao modo como se deverão 1m ir e como a 11ida em comum se deverá
11ortear. Este último é aquilo que dwomi11amos de lei do bem público. Autê11tiro

[153]
natureza não terminam com a constituição das sociedades.
Pelo contrário, em muitos casos, são trazidas para perto
de nós pelas leis humanas que adicionam sanções, devida-
mente conhecidas, à lei da natureza para assegurar o seu
cumprimento. Assim, a lei da natureza permanece como
regra eterna para todos os homens, para aqueles que são
legisladores, e para todos os demais. A exemplo das suas
próprias acções e das dos outros, as regras que os legisla-
dores estabelecem para a regulamentação do comporta-
mento dos outros homens têm de ser conformes à lei da
natureza, isto é, à vontade de Deus, da qual é uma manifes-
tação. E uma vez que a lei fundamental da natureza não
prescreve mais do que a preservação da humanidade, nenhuma
sanção humana que se erga contra ela pode ser útil ou
válida.

§. 136. Segundo. O legislativo, ou autoridade supre-


ma, não pode arrogar-se um poder de governar por meio
de decretos arbitrários improvisados. Pelo contrário, tem
a obrigação de prestar justiça e de decidir sobre os direitos dos
súbditos, de acordo com as leis vigentes promulgadas e através de
juízes devidamente conhecidos e autorizados. A lei da natureza
não está escrita, pelo qu e apenas a conseguimos encontrar
na mente dos homens. É por isso que, na ausência de

roração do rorpo políti<"O, é ele que a11ima as partes que o i11tegram , que as ma11tÍ!m
tmidas e que as põe em marrlta, 11a exemção das ta r~fas que possam ser exigidas pelo
bem romum . A s leis políticas adoptadas (otll flista à ordem extema e à ro11rórdia m tre
os ltometts só são det,idammte.forjadas qumtdo partem do pri11rípio de que a 11011tade
do !tomem é i11teriormmte ohsti11ada, rebelde e avessa a qualquer obediê11ria às leis
sagradas da sua ttat~<reza. N uma pala11ra, a 11ào ser pressupondo que, em.fare da sua
mmte depravada , o !tomem é apmas um pouro melhor do que os animais sel11agm s,
as leis 11ão poderão e11quadrar o romportammto dos ltomms de modo a assegurar q~< e
11ão roi!Stitttem obstámlo para o bem romum , para wja sal11aguarda se ro11stituíram
as sociedades. Se 11ão o .fizerem, as leis 11ão serão perfeitas. (Hooker, Errl. Pol.,
livro I, serçào 10).

(154]
um juiz estabelecido, não será fácil convencer do seu erro
todo aquele que, através das suas paixões ou dos seus
interesses, a interpretar incorrectamente ou a aplicar de
forma indevida. Deste modo, a lei da natureza não serve,
como deveria, para determinar os direitos, nem para
defender as propriedades daqueles que vivem sob a sua
alçada, particularmente quando cada um é chamado a agir
como juiz, intérprete e executor em causa própria. E,
quem tiver a razão pelo seu lado, não será capaz de se
defender das ofensas e dos prejuízos que sofrer, nem de
punir os delinquentes, na medida em que apenas possa
contar com a sua própria força. Para evitar estes inconve-
nientes que perturbam os bens de um homem no estado de
natureza, os homens uniram-se em sociedades, de modo a
poderem contar com a força colectiva de toda a sociedade
para a salvaguarda e para a defesa das suas propriedades, e,
bem assim, para poderem dispor de leis permanentes que as
delimitem, através das quais cada um possa saber o que lhe
pertence. É com este objectivo que os homens entregam
todo o seu poder natural à sociedade a que aderem, e a
comunidade coloca o poder legislativo nas mãos de quem
considerar mais capaz de o receber, com o encargo de ser
governada por leis declaradas. Caso contrário, a sua paz, o
seu sossego e a as suas propriedades permaneceriam tão
inseguras como quando os seus membros se encontravam
no estado de natureza.

§. 137. Exercer um poder absoluto e arbitrário, ou


governar sem leis permanentes, não é compatível com os fins
da sociedade e do governo. Os homens jamais abando-
nariam a liberdade do estado de natureza, nem aceitariam
ficar amarrados dentro de uma sociedade, se não fosse para
a preservação das suas vidas, das suas liberdades e dos seus
bens, e para a garantia da sua paz e do seu sossego, através
de regras permanentes capazes de fixar o direito e a proprie-

[155]
dade. Não se poderá supor que, mesmo sendo possível
fazê -lo, os homens alguma vez pretenderam colocar nas
mãos de outro, ou de vários, um poder arbitrário e absoluto
sobre as suas pessoas e sobre os seus bens, ou que alguma
vez atribuíram a um magistrado uma força que lhe permi-
tisse exercer a sua vontade sobre eles, de forma ilimitada
e arbitrária. A agirem assim, ter-se-iam colocado numa
situação pior do que aquela em se encontravam no estado
de natureza, onde possuíam a liberdade de defender os seus
direitos contra as agressões dos outros, e contavam todos
com igual poder para se defenderem uns dos outros, quer
fossem atacados por um só homem, ou por vários em
conjunto. Supor que os homens se entregaram à vontade e
ao poder arbitrário e absoluto de um legislador, é admitir que
se desarmaram a si próprios e o armaram a ele, para que os
atacasse e os devorasse quando entendesse. Aquele que se
encontrar exposto ao poder arbitrário de um homem que
comande cem mil homens encontra-se numa condição
manifestamente pior do que quem se encontrar exposto ao
poder arbitrário de cem mil homens isolados. E ninguém
poderá estar seguro de que a vontade de um tal homem,
que comande cem mil, seja superior à dos seus semelhan-
tes, apesar de ser cem mil vezes mais forte. Por isso,
qualquer que seja a forma que a comunidade política
adoptar, o poder deve ser exercido através de leis promul-
gadas e aceites, e não por ditames improvisados e resoluções
imprecisas. De outro modo, os homens ficariam numa
condição muito pior do que aquela em que se encon-
travam no estado de natureza, se, por acaso, armassem um
só de entre eles, ou um pequeno grupo, com o poder
conjunto de toda a comunidade, apenas para que esse
homem, ou esse pequeno grupo, os forçassem a todos a
obedecer a seu bel-prazer aos decretos exorbitantes e ilimi-
tados, quer dos seus pensamentos repentinos, quer das suas
vontades desenfreadas e até então desconhecidas, sem que

[156]
tivessem ficado estabelecidas quaisquer medidas orienta-
doras e justificativas das suas acções. Ora, todo o poder que
o governo possui destina-se, exclusivamente, para o bem
da sociedade, por isso, assim como não deve ser arbitrário
nem discricionário, também deve ser exercido segundo leis
estabelecidas e promulgadas. As pessoas devem conhecer os
seus deveres e encontrar segurança e tranquilidade dentro
dos limites da lei. Ao mesmo tempo, os governantes devem
manter-se dentro dos seus limites. Não se devem deixar
tentar pelo poder que detêm, muito menos utilizá-lo por
meios e para fins desconhecidos daqueles que lho conce-
deram, ou que nunca teriam aprovado, caso os viessem a
conhecer.

§. 138. Terceiro. O poder supremo não pode deitar a mão


a qualquer parcela da propriedade de um homem sem o
seu próprio consentimento. A preservação da propriedade
constitui a finalidade do governo e a razão pela qual os
homens se integram em sociedade, o que necessariamente
pressupõe e exige que tenham propriedade. De outro modo,
ter-se-ia de supor que, no momento em que se unem em
sociedade, perdem exactamente aquilo cuja preservação os
levou a aderir a ela, o que seria um absurdo grande demais
para ser aceite por quem quer que seja. Por isso, uma vez
que se reúnem em sociedade com as suas propriedades, os
homens adquirem um direito sobre os seus bens, tal como
definido pelas leis da comunidade. Um direito que
ninguém lhes poderá retirar, ainda que parcialmente, sem
o seu consentimento. Aliás, se tal não fosse o caso, não
teriam propriedade alguma. Em boa verdade, nunca posso
considerar como sendo meu aquilo que alguém tiver o
direito de tomar, quando entender, mesmo contra a minha
vontade. Daí ser um erro pensar que o poder le< l(islativo ou
supremo de uma comunidade política pode fazer o que
entender, dispor dos bens dos seus súbditos de forma

(157]
arbitrária, ou apropriar-se de qualquer parte deles a seu bel-
-prazer. Ora, não é muito de temer que isto venha a acon-
tecer em governos nos quais o poder legislativo está situado,
no todo ou em parte, em assembleias, cuja composição
varia com o tempo e que, quando são dissolvidas, os seus
membros cessam funções e regressam à condição de súb-
ditos iguais a todos os outros perante a lei comum do seu
país. Pelo contrário, no caso de governos onde o poder
legislativo se encontra atribuído a uma assembleia com-
posta sempre pelos mesmos membros, ou a um só homem,
como nas monarquias absolutas, por exemplo, persiste o
perigo real de que os membros permanentes dessa assem-
bleia, ou o homem singular que comandar um tal poder,
venham a considerar que possuem interesses privativos,
distintos daqueles que o resto da comunidade apresenta,
circunstância em que se sentirão inclinados a aumentar as
suas fortunas e o seu poder, a expensas do povo, extor-
quindo-lhe o que entenderem. Com efeito, a propriedade
de um homem jamais estará assegurada, mesmo naquelas
comunidades que contarem com leis boas e equitativas para
a sua delimitação se, por acaso, aquele que as governar
detiver o poder de se apoderar das parcelas que entender da
propriedade de qualquer súbito, e de dispor delas como
lhe aprouver.

§. 139. Todavia, tal como ficou demonstrado, esteja


em que mãos estiver, o _Roverno foi constituído co m esta
condição e com esta finalidade , designadamente, para que
os homens pudessem ter as suas propriedades e usufruir
delas em segurança. Por isso, apesar de deterem o poder
legislativo, de adoptarem leis para a regulamentação da
propriedade dos seus súbditos nas suas inter-relações mútuas,
o príncipe ou o senado jamais poderão deter o poder de
tomar para si , no todo ou em parte, a propriedade de qual-
quer um deles sem o seu co nsentimento. Defender o

[158]
contrário seria equivalente a destituí-los de toda a proprie-
dade e a deixá-los sem nada. E, para vermos que até mesmo
o poder absoluto, onde quer que se torne necessário, não é
arbitrário, uma vez que permanece delimitado por aquelas
razões e confinado àqueles objectivos que por vezes exi-
gem que tenha este carácter, não precisamos de olhar para
além da prática comum da disciplina marcial. A preser-
vação de um exército, e, nele, de toda a comunidade polí-
tica, exige uma obediência absoluta às instruções de cada
oficial superior; de tal modo que desobedecer ou questio-
nar até mesmo a mais perigosa ou a mais irracional destas
instruções acarreta com plena justiça a pena de morte.
Acontece, porém, que o sargento, que poderia mandar um
soldado marchar até à boca de um canhão, ou permanecer
no coração duma luta encarniçada, onde seguramente
acabaria por morrer, de modo algum o pode obrigar a dar-
-lhe um vintém do seu dinheiro. Tão pouco o general, que
pode condenar à morte o soldado que desertar do seu
posto, ou que não obedecer às suas ordens mais arriscadas,
apesar de todo o seu poder absoluto de vida e de morte, de
modo algum poderá dispor da menor parcela dos bens
desse soldado, nem apoderar-se da mais pequena parte das
suas propriedades. O general pode mandar o soldado fazer
o que entender, e mandá-lo enforcar pela mais pequena
desobediência, pois esta obediência cega é necessária para
que o comandante possa cumprir a finalidade para cujo
cumprimento o poder lhe foi confiado, ou seja, a preser-
vação do conjunto da sociedade. Contudo, dispor dos
bens dos subordinados nada tem a ver com o cumprimento
desta tarefa.

§. 140. É certo que nenhum governo se pode sus-


tentar sem grandes encargos, por isso, é justo que todos
aqueles que gozam da protecção que oferece, participem
também na sua manutenção, pagando cada um a sua parte

[159]
a partir dos bens que possui. Para isso, contudo, exige-se
sempre o seu consentimento, isto é, o consentimento da
maioria, dado pelos próprios, ou pelos representantes que
vierem a eleger. Todo aquele que se arrogar o poder de impor
e de cobrar impostos ao povo, exclusivamente por auto-
ridade própria e sem contar com um tal consentimento
popular, estará a violar a lei fundamental da propriedade e a
subverter o objectivo do governo. Pois, que propriedade
tenho eu sobre aquilo que outro pode tirar para si quando
entender?

§. 141. Quarto. O poder legislativo não pode traniferir


para as mãos de outros o poder de legislar que detém.
Tratando-se de um poder delegado pelo povo, aqueles que
o detiverem não o podem repassar a outros. O povo é o
único com capacidade para determinar a forma da comu-
nidade política, tarefa que desempenha quando constitui o
poder legislativo e decide quem o deverá deter. Então dirá:
submeter-nos-emos às regras e seremos governados pelas
leis que estes homens fizerem, de tal modo que mais nin-
guém possa legislar para nós. Assim sendo, de modo algum
o povo poderá ser sujeito a quaisquer leis, a não ser aquelas
que forem promulgadas por quem ele próprio tiver esco-
lhido e autorizado a legislar para si. O poder do legislativo
provém do povo. É-lhe outorgado mediante uma con-
cessão positiva e voluntária. Por esta razão, de modo algum
poderá deter mais poder do que aquele que lhe foi trans-
mitido pela concessão positiva que o constituiu. Deste
modo, uma vez que apenas lhe foi concedido o poder de
legislar, e não o de nomear legisladores, não é permitido ao
poder legislativo transferir para outros a autoridade que lhe
foi atribuída para fazer leis.

§. 142. Em todas as comunidades políticas e em


qualquer forma de governo são estes os limites do poder

(160)
legislativo, decorrentes da missão que lhe foi confiada pela
sociedade e pelas leis de Deus e da natureza.
Em primeiro lugar, governar segundo leis votadas
e promulgadas, que não poderão ser alteradas em função dos
casos particulares, mas, antes, constituir uma só regra, para
o rico e para o pobre, para o favorito da corte e para o cam-
ponês no arado.
Em segundo lugar, estas leis não podem ser adoptadas
para qualquer outra finalidade que não seja, em última
instância, o bem do povo.
Em terceiro lugar, não deve lançar impostos sobre a
propriedade do povo sem o consentimento desse mesmo povo,
expresso directamente pelos membros da comunidade
política, ou indirectamente pelos seus representantes. E,
em sentido estrito, este é um limite que se aplica apenas
aos governos em que o legislativo é um poder permanente,
encontrando-se sempre em funções, ou, pelo menos,
àqueles em que o povo não reservou uma parcela deste
poder para deputados eleitos periodicamente.
E, em quarto lugar, o legislativo não deve, nem pode,
traniferir para quem quer que seja o poder de legislar que
possui, ou depositá-lo em quaisquer outras mãos que não
sejam aquelas que o povo elegeu para lho entregar.

(161]
Capítulo XII

DOS PODERES LEGISLATIVO, EXECUTIVO


E FEDERATIVO DA COMUNIDADE POLÍTICA

§. 143. O poder legislativo é aquele que tem o direito


de determinar o modo como aforça da comunidade política deverá
ser utilizada para a preservação da sociedade e de cada um
dos seus membros. No entanto, apesar das leis que pro-
mulga terem de ser executadas constantemente, a sua força
perdura, daí que as suas responsabilidades legislativas pos-
sam ser cabalmente asseguradas em muito pouco tempo.
Por isso, não há qualquer razão para que o legislativo se
encontre permanentemente reunido, tanto mais que, a
fragilidade humana é muito grande, e os homens estão
sempre prontos para deitar a mão ao poder que estiver
ao seu alcance. Seria uma tentação muito forte permitir
que as mesmas pessoas que detêm o poder de fazer as
leis, tivessem também o poder de as executar. Se assim
acontecesse, correr-se-ia o risco de essas pessoas se eximi-
rem do dever de obediência às leis que elas mesmas pro-
mulgassem, ou então de as ajustarem aos seus objectivos
privados, tratando de as adoptar e de as executar para
seu proveito próprio, circunstância em que os legisladores
desenvolveriam interesses próprios, distintos dos do resto
da comunidade e contrários aos objectivos da sociedade e
do governo. Nas comunidades políticas bem organizadas,
onde se tem em conta o bem do todo, como se deve, o
poder legislativo é atribuído a várias pessoas, que, encon-
trando-se devidamente reunidas em assembleia, possuem a
capacidade de legislar, por si sós ou conjuntamente com

[163]
outros poderes . Uma vez que as leis que em breve tempo
pode promulgar são de aplicação constante e continuada,
não há razão para que o legislativo permaneça reunido, pois
nem sempre terá que fazer. Terminada esta tarefa, os mem-
bros do legislativo deverão separar-se de novo, e cada um
deles tornar-se-á súbdito daquelas leis que ele mesmo
acabou de produzir. O que constitui uma garantia nova e
mais segura de que todos colocarão a sua actividade legis-
lativa exclusivamente ao serviço do bem público.

§. 144. Porém, apesar de serem elaboradas rapida-


mente e de uma só vez, as leis possuem uma força que é
constante e duradoura, e carecem de uma execução perpétua ,
isto é, de alguém que se encarregue de as fazer cumprir dia
após dia. Para o efeito, torna-se necessário que exista um
poder permanente capaz de garantir a execução das leis que
tiverem sido promulgadas e permanecerem em vigor. Daí
verificar-se, com frequência, a separação dos poderes legis-
lativo e execu tivo.

§. 145 . Em cada comunidade política existe ainda


outro poder, um poder natural, por assim dizer, na medida
em que corresponde àquele que cada homem possuía, por
natureza, antes de se organizar em sociedade. No seio
de uma comunidade política, aqueles que a integram são
pessoas distintas, umas em relação às outras. Contudo, em
relação ao resto da humanidade, todos eles constituem
um só corpo, que se apresenta perante o exterior com o
mesmo grau de unidade que, no estado de natureza, carac-
terizava cada um dos seus membros individuais perante o
resto da humanidade. Daí que as controvérsias que possam
surgir entre qualquer um dos membros da sociedade e
outros que estejam fora dela, sejam assumidas pela própria
comunidade. E uma ofensa perpetrada contra um dos
membros deste corpo colectivo, compromete toda a colec-

[164]
tividade na sua reparação. A comunidade inteira forma
um só corpo, que se encontra num estado de natureza em
relação aos outros Estados ou às pessoas que se encon-
trarem fora dela.

§. 146. A comunidade detém, portanto, o poder de


declarar a guerra e de assinar tratados de paz, de constituir
ligas e alianças com outras comunidades e, bem assim, de
conduzir todas as transacções com pessoas e entidades que
lhe forem alheias. Este é um poder que poderemos cha-
mar federativo, se mo permitirem. Contudo, desde que se
entenda o que aqui está em causa, o nome atribuído é-me
indiferente.

§. 147. Estes dois poderes, executivo e federativo, são


intrinsecamente distintos um do outro. O primeiro ocupa-
-se da execução do direito interno da sociedade, dentro do
âmbito territorial em que se situa e sobre todos aqueles que
dela fazem parte. O segundo é responsável pela gestão da
segurança e do interesse público face ao exterior, nos relacio-
namentos que a sociedade desenvolva com todos aqueles
de quem possa receber beneficias ou prejuízos. Contudo,
não obstante o carácter distinto de que se revestem, encon-
tramo-los quase sempre unidos. Ora, apesar deste poder
federativo ser de grande importância para a boa ou má
gestão da comunidade política, é muito menos passível
de ser dirigido por antecedentes, pelas leis positivas que
tiverem já sido promulgadas, do que o poder executivo. Por
isso, o seu exercício tem necessariamente de ser confiado à
prudência e à sabedoria daqueles a quem foi incumbida
a tarefa de o gerirem para o bem público. Reportando-se
aos súbditos e à regulamentação dos comportamentos
que adoptam no seu inter-relacionamento mútuo, as leis de
uma comunidade política podem perfeitamente ser adop-
tadas antes que os mesmos se desenvolvam em concreto. Já

[165)
as atitudes que devem ser adoptadas em relação a estrangeiros
dependem muito das suas acções, daí que a identificação
dos desígnios e dos interesses da sociedade perante elas
tenha, em grande parte, de ser confiada à prudência daqueles
a quem este poder tiver sido atribuído, para que o exerçam
da melhor forma que puderem, em proveito da comu-
nidade política.

§. 148. Embora, como se disse, os poderes executivo e


federativo de cada comunidade sejam verdadeiramente
distintos entre si, de modo algum devem ser separados e
depositados nas mãos de pessoas distintas. Para o seu
exercício, quer um quer outro, necessitam da força da
sociedade. E é praticamente impossível depositar a força
colectiva da comunidade política em mãos distintas, sem
que uma não se encontre subordinada à outra. Atribuir os
poderes executivo e federativo a pessoas com capacidade para
os exercerem separadamente, contexto em que a força
pública se encontraria subordinada a dois comandos dis-
tintos, constituiria, mais tarde ou mais cedo, um convite à
desordem e à ruína .

[166]
Capítulo XIII

DA SUBORDINAÇÃO DOS PODERES


DE UMA COMUNIDADE POLÍTICA

§. 149. Uma comunidade política independente,


erguida sobre os seus próprios fundamentos, e agindo
segundo a sua própria natureza, isto é, agindo para a pre-
servação da comunidade, não pode deter mais do que um
só poder supremo, que é o legislativo, ao qual todos os demais
se terão de subordinar. Ora, o legislativo é apenas um
poder fiduciário para agir em cumprimento de certos
objectivos. Por esta razão, o povo detém sempre um poder
supremo de dissolver o legislativo, ou de o alterar, quando
considerar que ele está a ser exercido ao arrepio da missão
que lhe foi confiada. Todo o poder que tiver sido confiado a
alguém para o cumprimento de um objectivo encontra-se
delimitado pelo próprio objectivo que esteve subjacente à
sua concessão. Por isso, a partir do momento em que tal
pessoa neglicenciar ou impedir a concretização desse objec-
tivo, perde o direito ao poder que lhe havia sido confiado, e
que poderá ser-lhe confiscado. Recairá, então, de novo,
sobre aqueles que lho haviam concedido em primeiro
lugar, podendo estes voltar a entregá-lo a quem entende-
rem que melhor o sabe exercer para a segurança e a salva-
guarda da comunidade. Nestes termos, a comunidade con-
serva para todo o sempre o poder supremo de se salvar das
tentativas e dos desígnios de todos aqueles, até mesmo
dos seus legisladores, que forem suficientemente tontos
ou malvados para conceberem e levarem a cabo propósi-
tos atentatórios das liberdades e das propriedades dos seus

[167]
súbditos. Nenhum homem, ou sociedade, possui o poder
de entregar a sua própria preservação, ou, consequente-
mente, os meios adequados para o efeito, à vontade abso-
luta e ao donúnio arbitrário de outrem. Por isso, todas as
vezes que alguém pretender submetê-los a uma tal con-
dição de escravatura, assistir-lhes-á sempre o direito de
preservar aquilo que jamais poderão ceder a quem quer
que seja, e, bem assim, o direito correlativo de se livrarem
de quem infringir esta lei de autopreservação que os levou
a organizarem-se em sociedade. E esta é uma lei funda-
mental, sagrada e inalterável. Daí poder dizer-se, a este
respeito, que a comunidade detém sempre o poder supremo, se
bem que apenas na medida em que não é perspectivada
enquanto organizada sob uma qualquer forma de governo,
uma vez que o povo só poderá assumir um tal poder
quando o governo se encontrar dissolvido.

§. 150. Enquanto o governo subsistir, o legislativo é o


poder supremo, em todos os casos. Aquele que tiver o poder
de ditar leis a outro, tem necessariamente de lhe ser
superior. Ora, uma vez que o legislativo de uma sociedade
apenas o é pelo direito que detém de legislar para todas as
parcelas e para cada membro dessa sociedade, prescrevendo
regras para a regulamentação das suas acções e outorgando
o poder de punir todos aqueles que as transgredirem, o
legislativo tem forçosamente que ser supremo, e todos os
demais poderes que quaisquer outros membros ou partes
da sociedade detenham, dele têm de derivar e de lhe estar
subordinados.

§. 151. Nalgumas comunidades políticas, o legislativo


não é um órgão permanente, e o executivo é atribuído a
uma só pessoa, que também faz parte do legislativo. Em
tais circunstâncias é legítimo dizer que, num certo sen-
tido, essa pessoa poderá ser apelidada de suprema. Não por

[16g]
possuir todo o poder supremo, que é o de legislar, mas na
medida em que nela recai a execução suprema, uma vez
que é dela que todos os magistrados inferiores derivam
os vários poderes subordinados que detêm ou, pelo menos,
a maior parte deles. Na medida em que esta pessoa não
conhece qualquer poder legislativo superior, nenhuma
lei poderá ser adoptada sem o seu consentimento. Por esta
razão, não é legítimo supor que alguma vez se possa en-
contrar subordinada à outra parte do legislativo. E, neste
sentido, aquele que detiver um tal poder é de facto supremo.
Porém, deverá observar-se que os juramentos de fidelidade e
de respeito que recebe não lhe são prestados na qualidade
de legislador supremo, mas na de executor supremo da lei,
dignidade para que foi elevada por um poder conjunto,
dela própria e de outros. Ora, a fidelidade não é mais do
que uma obediência nos termos da lei, daí que um tal executor
supremo não possua qualquer direito a ser obedecido
sempre que violar a lei. Aliás, jamais poderá reivindicar
um tal direito, a não ser na qualidade de pessoa pública
investida com o poder da lei, condição em que deverá ser
considerado como sendo a imagem, o símbolo ou o repre-
sentante da comunidade política, constituído pela vontade
da sociedade, tal como expressa nas suas leis. Por isso, não
possui outra vontade nem outro poder que não sejam os
da lei. Porém, na medida em que se afastar de uma tal
representação, de uma tal vontade pública, e agir de acordo
com a sua vontade particular, degrada-se a si própria, trans-
forma-se numa mera pessoa privada singular, sem poder,
sem vontade e sem qualquer direito a ser obedecida, já que
ninguém tem o dever de obediência, a não ser para com a
vontade pública da sociedade a que pertence.

§. 152. Sempre que o poder executivo estiver atribuído


a uma pessoa que não participe também do legislativo, fica
visivelmente subordinado a este poder, tem de lhe prestar

[169]
contas e pode ser por ele alterado ou afastado a seu bel-
-prazer. Neste caso, o poder executivo não é um poder supremo,
isento de subordinação, a não ser que tenha sido atribuído
a uma só pessoa que, fazendo parte do legislativo, não
conhece qualquer poder legislativo superior a que tenha de
se submeter e de prestar contas, para além daqueles a quem
se vier a associar e a oferecer o seu consentimento. De tal
modo que apenas estará subordinado a quem entender, na
medida em que o entender, o que levará qualquer um à
conclusão de que seguramente será bem ténue a subor-
dinação que uma tal pessoa alguma vez conhecerá. Não
será necessário tratar dos demais poderes ministeriais e subor-
dinados de uma comunidade política. Eles são tantos, e tão
diversos, variando consoante os diferentes costumes e as
constituições de cada comunidade política, que não é pos-
sível tratar de cada um deles individualmente. Lim.itar-nos-
-emos à seguinte constatação, suficiente para os nossos
propósitos actuais: nenhum deles possui qualquer auto-
ridade para além daquela que lhe é delegada através de uma
concessão positiva ou de um mandato, e todos têm de pres-
tar contas a algum outro poder da comunidade política.

§. 153. Não é preciso, nem conveniente sequer, que


o legislativo esteja sempre reunido, mas é imprescindível
que o poder executivo seja exercido de forma permanente.
Nem sempre há necessidade de leis novas, mas é sempre
necessário fazer cumprir aquelas que tiverem sido adop-
tadas. Quando o legislativo confia a outros a execução das
leis que promulga, mantém os poderes de lhes retirar este
encargo sempre que encontrar causas que o justifiquem, e
de os punir perante uma eventual má administração das
suas leis. E o mesmo se passa em relação ao poderfederativo.
Tanto o federativo como o executivo são poderes ministe-
riais subordinados ao legislativo, que, como temos vindo a
demonstrar, é o poder supremo de qualquer comunidade

[170]
política que se tiver constituído. Neste caso, assume-se
ainda que o legislativo integre várias pessoas. Se, por acaso,
fosse constituído por uma só, não poderia deixar de se
encontrar em actividade permanente, circunstância em
que, como poder supremo, acumularia com naturalidade
os poderes legislativo e executivo. Enquanto órgão colec-
tivo, poderá reunir e legislar nos períodos que tiverem sido
previstos para o efeito pela sua constituição original, ou
pelo seu regulamento interno - ou sempre que o entender,
caso nem aquela, nem este, tenha calendarizado as sessões,
ou então, quando não tiver sido estabelecido qualquer
outro meio de o convocar. Na medida em que ele lhe
foi confiado pelo povo, o legislativo detém sempre o poder
supremo. E porque o detém, pode-o exercer quando
entender, a não ser que a sua constituição original identi-
fique os períodos exactos em que poderá reunir, ou então,
que, recorrendo ao poder soberano de que dispõe, tenha
previamente fixado o período das suas sessões. E então,
sempre que se chegar a esse período, terá o direito de se
reunir e de actuar novamente.

§. 154. Por vezes, o legislativo, no todo ou em parte,


é constituído por representantes eleitos pelo povo para um
determinado mandato, findo o qual regressam à condição
normal de súbditos e deixam de ter actividade legislativa, a
não ser que sejam reeleitos. Quando assim é, este poder
de selecção dos representantes tem de ser exercido pelo
povo, seja em eleições regulares, seja quando for convo-
cado para o efeito. Neste último caso, é o executivo que
normalmente detém o poder de convocar o legislativo,
com uma das duas limitações temporais seguintes. Ou a
constituição original da comunidade política exige que o
legislativo reúna e funcione durante os períodos de legislatura
que estabelece, e nesta circunstância a intervenção do po-
der executivo resume-se à adopção das instruções minis-

[171]
teriais adequadas para assegurar que a eleição e a reunião
deste órgão têm lugar de acordo com as normas apropria-
das para o efeito. Ou então, a constituição e o funciona-
mento do legislativo terão de ficar ao critério do executivo,
que convocará as eleições e agendará as reuniões na medida
em que verificar que as condições ou as necessidades da
vida pública exigem a alteração das leis já existentes
ou a adopção de outras novas, ou então sempre que, em
seu entender, seja necessário corrigir ou prevenir quais-
quer inconvenientes susceptíveis de surgir ou ameaçar
o povo.

§. 155. Chegados a este ponto, poder-se-á perguntar


o seguinte. E se, uma vez na posse da força colectiva da
comunidade política, o poder executivo a utilizasse para
impedir a reunião e a actuação do legislativo, nos períodos em
que a respectiva constituição original, ou as necessidades da
comunidade o exigissem? A minha resposta é simples.
Aquele que usar da força sobre o povo, sem autoridade,
atraiçoa o ministério que lhe foi confiado. Coloca-se num
estado de guerra com o povo, que adquire, então, o direito
de reintegrar o legislativo no exercício do seu poder. O povo
instituiu o legislativo com a intenção de que exerça o
poder legislativo, seja em períodos previamente estabe-
lecidos, seja quando for necessário. Por isso, sempre que
este poder se encontrar bloqueado por alguma força que o
impeça de cumprir a missão que lhe foi confiada, tão
necessária para a sociedade, uma vez que dela dependem a
segurança e a preservação da comunidade, o povo tem o
direito de recorrer à força para o remover. Em todos os
estados e em todas as condições, o único remédio eficaz
contra a força utilizada sem autoridade é confrontá-la com
a força. Aquele que recorre à força sem autoridade é um
agressor e coloca-se sempre num estado de guerra, o que o
sujeita a ser tratado como tal.

[172]
§. 156. O facto de o executivo deter o poder de reunir
e de dissolver o legislativo, não lhe confere qualquer supe-
rioridade sobre ele. O poder que detém reveste-se de um
carácter fiduciário, tendo-lhe sido confiado para a segu-
rança do povo, para que o exerça quando a incerteza e a
mutabilidade das coisas humanas não forem compatíveis
com uma regra fixa e estável. De modo algum se pode
esperar que, aqueles que primeiro desenharam a estrutura
política de uma sociedade, possuíssem uma capacidade de
previsão capaz de lhes permitir adivinhar o futuro e de os
habilitar a determinar à partida, e para todo o sempre, os
períodos exactos em que a respectiva assembleia legislativa
deveria reunir, bem como a duração das legislaturas, que
lhe permitisse adoptar a legislação adequada para corres-
ponder com precisão a todas as exigências dessa comu-
nidade política. E então, o melhor remédio que se encon-
trou para este defeito foi, de facto, confiar a convocação do
legislativo e a fixação dos períodos de legislatura ao critério
e à prudência de quem estivesse sempre presente e que
tinha precisamente a incumbência de zelar pelo bem
público. R euniões constantes do legislativo, prolongando-se
desnecessariamente, não deixariam de constituir um fardo
para o povo, produzindo, com o passar do tempo, graves
inconvenientes para a comunidade. Por vezes, o desenrolar
dos acontecimentos é tão rápido e assume tais contor-
nos que se torna necessária a intervenção deste órgão, e
qualquer eventual atraso na sua convocação poderia ter
importantes repercussões ao nível da segurança pública. E,
por outro lado, os seus afazeres são por vezes de tal monta,
que o período ordinário de legislatura não será suficiente
para que possa desenvolver cabalmente o seu trabalho,
circunstância em que limitar as sessões aos períodos pre-
vistos seria equivalente a privar o público dos beneficias
decorrentes de uma deliberação amadurecida. Nestes casos,
que mais se poderia fazer para evitar que a comunidade

(173]
venha a estar exposta a perigos tão eminentes derivados
da marcação rígida das reuniões e dos períodos de legislatura, a
não ser confiar a convocação da assembleia legislativa e a
duração das sessões ao critério e à prudência de quem, es-
tando sempre activo e a par dos assuntos públicos, melhor
pode fazer uso de uma tal prerrogativa, em proveito do
bem público? E quem melhor para a exercer, do que
aquele a quem foi confiada a execução das leis, com vista a
este mesmo objectivo? Assumindo, pois, que a constituição
original de uma comunidade política não fixa os períodos
em que o legislativo deverá reunir para desempenhar as suas
actividades, caberá naturalmente ao executivo fazê-lo. Não
como poder arbitrário, dependente dos caprichos do
executivo, mas como encargo que lhe foi confiado, para
que o exerça sempre com vista ao bem-estar público, tal
como o possam exigir o curso dos tempos ou as alterações
da conjuntura. Por agora não me irei ocupar da questão
de saber o que apresenta menos inconvenientes : identi-
ficar períodos fixo s de legislatura, deixar ao príncipe a liber-
dade para convocar o legislativo quando entender oportuno,
ou, talvez, uma mistura destas duas possibilidades. Preo-
cupar-me-ei apenas com a demonstração de que, apesar
do poder executivo possuir a prerrogativa de convocar e
de dissolver as assembleias do legislativo, nem por isso lhe é
supenor.

§. 157. As coisas deste mundo encontram-se num


fluxo tão acentuado, que nada permanece muito tempo
na mesma condição. As pessoas mudam, tal como acontece
à riqueza, ao comércio e ao poder. Cidades prósperas e
poderosas conhecem a ruína , transformando-se, por vezes,
em recantos esquecidos e desolados, enquanto outros
lugares, dantes pouco frequentados , crescem, transfor-
mando-se em países populosos, repletos de riquezas e de
habitantes. Mas, as coisas não mudam sempre do mesmo

[174]
modo. O interesse privado mantém muitas vezes hábitos
e privilégios, mesmo depois de terem já desaparecido as
razões que os justificaram. Naqueles governos em que uma
parte do legislativo é constituída por representantes eleitos
pelo povo, acontece com frequência que, com o passar do
tempo, esta representação acaba por ser muito desigual e
desproporcionada, relativamente às razões que estiveram
na origem do seu estabelecimento. Permanecer agarrado
aos costumes antigos, quando desaparecem as razões que
estiveram na base da sua adopção, é um absurdo dos mais
grosseiros. É o que acontece, por exemplo, quando uma
cidade conhece uma tal degradação que se transforma num
amontoado de ruínas, um curral, onde apenas um pastor é
capaz de viver, e contudo continua a enviar para a grande
assembleia legislativa da comunidade a que pertence o
mesmo número de representantes que um condado inteiro, rico
e densamente povoado. Qualquer estrangeiro ficará espan-
tado com uma situação destas, e todos terão de reconhecer
que necessita de ser corrigida. Muitos pensarão que não
será fácil fazê-lo, uma vez que a constituição do legislativo
é o acto supremo e originário de uma sociedade e, por
isso mesmo, anterior a todas e quaisquer leis positivas que
possam ser adoptadas, e, para além disso, na medida em que
depende por inteiro do povo, nenhum poder inferior a
poderá alterar. Daí que, no contexto do quadro político
que temos vindo a apresentar, argumentar-se-á, uma vez
constituído o legislativo, o povo não detém qualquer poder para
agir, enquanto o governo permanecer de pé. E este será,
então, um inconveniente que não tem remédio.

§. 158. Salus populi suprema /ex. Eis uma norma que


é certamente tão justa e fundamental que quem a adoptar
com sinceridade não poderá errar de forma perigosa.
Como vimos, o executivo detém o poder de convocar o
legislativo. Se o fizer tendo em conta, não as modas, mas

[175]
uma representação verdadeiramente proporcional, estará a
guiar-se pela razão mais recta, em vez de seguir os velhos
costumes. Em todas as localidades que a ela tiverem direito,
nenhuma parcela da população poderá reivindicar uma
representação própria indiscriminada, independentemente
dos termos em que se tiver processado a sua incorporação
na comunidade. Pelo contrário, a representação deve ser
sempre proporcional àquilo com que se participa na
sociedade, razão pela qual, quem corrigir as distorções que
possam surgir com o passar dos tempos, não estará a estabe-
lecer um legislativo novo, mas a restaurar o legislativo
antigo e verdadeiro, rectificando as desordens que o tempo
lhe introduziu , de forma tão inconsciente quanto inevi-
tável. É do interesse do povo contar com uma representação
justa e equitativa, tendo esta sido a sua intenção. Por isso,
todo aquele que aproximar o sistema de organização polí-
tica de qualquer comunidade a este ideal será seguramente
um bom amigo e um bom governante, e não deixará com
certeza de angariar o consentimento e a aprovação popu-
lares. Ora, a prerrogativa não é mais do que o poder,
atribuído ao príncipe, de cuidar do bem público em todos
aqueles casos que não são susceptíveis de ser regula-
mentados com segurança por leis fixas e inalteráveis, na
precisa medida em que decorrem de circunstâncias incertas
e imprevisíveis . Tudo aquilo que for feito manifestamente
para o bem do povo e para o estabelecimento do governo
sobre estes seus alicerces, sólidos e autênticos, é e será
sempre uma prerrogativa justa. O poder de constituir novas
corporações, e, daí, novos representantes, decorre da supo-
sição de que, com o passar do tempo, as proporções da repre-
sentação podem alterar-se, e lugares que dantes não tinham
qualquer representante, poderão perfeitamente passar a
detê-los. De igual modo, outras localidades existirão que
dantes tinham representação parlamentar, mas que, com o
passar do tempo, deixam de ter direito a este privilégio que

[1 76]
dantes possuíam. Não é a introdução de alterações no
governo de uma comunidade, tendo em vista a correcção
de desequilíbrios provocados, talvez, pela corrupção ou
pela decadência sociais, que irá prejudicar o governo. Pre-
juízos existirão, isso sim, pela tendência que os governos
têm de prejudicar ou de oprimir o povo, ou de privilegiar
uma das suas partes ou um partido, outorgando-lhe uma
distinção especial ou colocando os demais membros da
sociedade à sua mercê. Tudo aquilo que não puder deixar
de ser identificado como vantajoso para a sociedade e para
o povo, em geral, e for concretizado através de medidas
justas e duradouras, jamais deixará de se justificar por si só .
E de modo algum se poderá negar que todo aquele que
permitir ou que induzir o povo a seleccionar os seus
representantes através de critérios justos e incontestavelmente
equitativos, adequados ao seu sistema de governo original,
mais não estará a fazer do que a accionar a vontade da
sociedade.

[177]
Capítulo XIV

DA PRERROGATIVA

§. 159. Onde quer que os poderes legislativo e exe-


cutivo estejam em mãos distintas (tal como se verifica em
todas as monarquias moderadas e em todos os governos
bem constituídos), o bem da sociedade exige que uma
pluralidade de matérias sejam confiadas à discrição de
quem detiver o poder executivo. Nenhum legislador pode
prever e providenciar através das leis tudo aquilo que será
útil para a comunidade. Ora, o responsável pela execução
concreta das leis promulgadas pelo legislativo detém, nas
suas mãos, o poder da comunidade. Por isso, pela lei
comum da natureza, possui o direito de o utilizar para o
bem da sociedade, em muitos casos, na ausência de direc-
trizes fornecidas pelo sistema jurídico, até que o legislativo
possa ser devidamente convocado e reunir para tratar do
assunto. São muitas as matérias que nunca poderão ser
devidamente acauteladas pela via legislativa. Todas elas
terão, pois, de ser submetidas à discrição daquele que
detiver o poder executivo, para as regulamentar de acordo
com as exigências e o proveito do bem público. Mais do
que isso, em determinadas circunstâncias é conveniente
que as próprias leis abram caminho e cedam o lugar ao
poder executivo, ou, melhor, à lei fundamental da natureza
e do governo que reclama a protecção de todos os membros
da sociedade, na medida do possível. Na verdade, em
muitas circunstâncias, uma aplicação rígida e estrita da lei
poderá provocar grandes danos (veja-se, por exemplo, o
que aconteceria se não se procedesse à demolição da casa

(179)
de um homem inocente para deter um incêndio que
estivesse já a consumir a do vizinho). Poderá dar-se o caso
de cair sob a alçada da lei, que não distingue entre pessoas,
um homem que tenha praticado actos merecedores de
prémio ou de perdão. Em tais circunstâncias, é justo que o
governante detenha o poder de mitigar a severidade da lei,
e de perdoar a alguns infractores. O fim do governo prende-
-se com a preservação de todos, tanto quanto possível, razão
pela qual até os criminosos devem ser poupados, sempre
que daí não resulte qualquer prejuízo para os inocentes.

§. 160. É este poder de agir de forma discricionária,


em prol do bem público, sem contar com aquilo que é
prescrito pela lei, e, por vezes, até mesmo contra ela, que
dá pelo nome de prerrogativa. Nalguns governos, o órgão
que detém o poder de legislar não se encontra sempre
em funções , e é normalmente muito numeroso e, por
isso, excessivamente lento para funcionar com a eficiência
exigida pelas circunstâncias . Por outro lado, não é possível
prever todas as necessidades do bem público, ou todos os
acidentes que sobre ele se possam repercutir, muito menos
prover a cada uma delas ou lidar cabalmente com cada
um deles por via legislativa. Do mesmo modo, o legislativo
jamais será capaz de promulgar um conjunto de leis que
não prejudiquem a sociedade se, por acaso, vierem a ser
aplicadas com um rigor inflexível, em todas as ocasiões e
sobre todas as pessoas que venham a cair sob a sua alçada.
Eis as razões pelas quais se deixa ao poder executivo uma
certa margem de manobra para que possa decidir como
entender em muitos casos não previstos nas leis.

§. 161. Utilizado para o beneficio da comunidade, e


de acordo com a finalidade e as tarefas que foram confiadas
ao governo, este poder é uma prerrogativa indubitável e in-
questionável. Aliás, as pessoas nunca, ou muito raramente,

[180]
alimentam escrúpulos ou melindres sobre esta matena.
Tanto assim é que não o questionam, na medida em que
é utilizada a um nível tolerável, para o fim subjacente à sua
adopção, isto é, para o bem do povo, e não manifestamente
contra ele. Contudo, qualquer conflito que possa surgir
entre o poder executivo e o povo a propósito de alguma
prática reclamada como constituindo uma prerrogativa,
facilmente se resolverá, consoante uma tal prática constitua,
de facto, um beneficio ou um prejuízo para o povo.

§. 162. É fácil compreender que na infância dos


governos, quando as comunidades políticas pouco se
distinguiam das famílias quanto ao número de pessoas que
as integravam, também pouco se distinguiam delas quanto
à extensão das suas leis. Naquele período, o governo
era quase todo prerrogativa. Os governantes agiam como
pais de toda a sociedade, cuidando de cada um dos seus
membros, para o seu bem. Um pequeno número de leis
era suficiente, uma vez que a discrição e os cuidados dos
governantes supriam o resto. Quando o erro ou a lisonja
prevaleceram junto de príncipes débeis, levando-os a exer-
cer este poder para beneficio dos seus objectivos privados
em vez de o utilizarem para o bem público, o povo não
teve alternativa senão proceder à definição, pela via legis-
lativa, da prerrogativa dos seus governantes, em todos
aqueles aspectos que lhes acarretavam inconvenientes e
desvantagens. Assim, e à medida que tal se veio a tornar
necessário, o povo estabeleceu limites à prerrogativa que até
então havia sido generosamente atribuída à sabedoria dos
príncipes, para que a usassem de forma correcta, isto é,
para o bem do seu povo.

§. 163. Por isso, é preciso que alguém tenha uma


noção muito errada do governo para defender que o povo
usurpa a prerrogativa quando delimita alguma das suas partes

[1 8 1]
por via legislativa. Agindo desta forma, o povo não retira
ao príncipe nada que lhe pertença por direito próprio. Pelo
contrário, limita-se a declarar que o poder atribuído a esse
príncipe, ou aos seus antepassados, de forma indefinida,
para ser exercido em proveito da sociedade, de modo
algum poderia ser utilizado para qualquer outra finalidade.
Uma vez que o objectivo do governo se prende com o
bem da comunidade, toda e qualquer alteração que lhe
venha a ser introduzida para melhor cumprir esta sua
finalidade, de modo algum deverá lesar quem quer que seja,
pela simples razão de que nenhum governante poderá
deter um direito que conduza a qualquer outro objectivo
que não aquele. E só há abuso de poder quando o bem
público sair prejudicado ou estorvado. Quem disser outra
coisa, fala como se o príncipe possuísse um interesse dis-
tinto e separado do bem da comunidade, em vez de ter
sido criado precisamente para o assegurar. E esta é a fonte
e a raiz de onde brotam quase todos os males e as desor-
dens que surgem nas monarquias. Na verdade, se assim
fosse, num tal governo em que os governantes possuíssem
um interesse privativo contrário ao bem da comunidade,
as pessoas jamais poderiam constituir uma sociedade de
criaturas racionais, integradas numa só comunidade para o
seu próprio bem mútuo. Os membros de uma tal comu-
nidade não teriam instituído governantes, a quem se sub-
metiam, para a protecção e a promoção desse bem, pelo
contrário comportar-se-iam como uma manada de cria-
turas inferiores entregues ao domínio do seu dono, que
as manteria e as obrigaria a trabalhar para o seu próprio
prazer ou proveito. Se, por acaso, os homens fossem de
tal modo desprovidos de razão e tão brutos ao ponto
de ingressarem numa sociedade naqueles termos, então a
prerrogatÍ11a poderia, de facto, ser aquilo em que alguns
homens a querem tornar, isto é, um poder arbitrário para
prejudicar o povo.

[182]
§. 164. Ora, de modo algum será lícito supor que
um ser racional, uma vez livre, se venha a submeter a outro
para se prejudicar, o que não quer dizer que quando
encontrar um governante bondoso e sábio, não considere,
talvez, desnecessário, ou inútil, delimitar com precisão o
seu poder em todos os âmbitos em que possa vir a ser
exercido. A prerrogativa não irá além de uma autorização do
povo para que os seus governantes desempenhem várias
tarefas como entenderem, seja perante o silêncio da lei,
seja, por vezes, expressamente contra a letra da lei, desde
que o façam para o bem público, e desde que contem com
o consentimento popular. Na medida em que um bom
príncipe se encontrar consciente do encargo que lhe foi
confiado, isto é, do seu poder para fazer o bem, e cuidar
do bem do seu povo, não será grande a sua prerrogativa. De
igual modo, ao exigir para si, como prerrogativa que lhe
pertence por direito de oficio, o poder exercido pelos
seus antepassados sem qualquer delimitação jurídica, para o
exercer como entender, inclusivamente para desenvolver
ou para promover um interesse privativo, distinto do
interesse público, um príncipe débil e iníquo mais não
estará a fazer do que oferecer ao povo a ocasião para reivin-
dicar um direito qu e lhe pertence, e limitar aquele poder
ao qual, no passado, se havia submetido tacitamente, na
medida em que era exercido para o seu beneficio.

§. 165 . Por isso, todo aquele que estudar a história da


Inglaterra verificará que a prerrogativa real foi sempre maior
nas mãos dos nossos príncipes melhores e mais sábios.
Observando que a tendência global do seu comporta-
mento se dirigia para o bem público, o povo não contes-
tava o que se fazia à margem da lei para o servir. E quando
alguma fragilidade ou erro humano emergia Uá que os
príncipes são homens como todos os outros) que os des-

(1 83]
viasse ligeiramente deste objectivo, permanecia manifesto,
contudo, que no essencial a sua conduta se encaminhava
por inteiro para o bem da comunidade. Assim, encon-
trando razões para estar satisfeito com estes príncipes,
mesmo quando agiam à margem ou ao arrepio da letra da
lei, o povo aceitava sem a menor queixa que alargassem a
sua prerrogativa como entendessem. O povo permitia que
assim acontecesse na medida em que considerava, acerta-
damente, que, com a prerrogativa que detinham, estes
monarcas nada fariam em prejuízo das leis da comunidade,
uma vez que governavam em conformidade com o
principal fundamento e a principal finalidade de todas as
leis, a saber, o bem público.

§. 166. Príncipes como estes assumiam um carácter


quase divino, razão pela qual detinham, de facto, um certo
direito a um poder arbitrário com base no argumento de
que a monarquia absoluta constitui a melhor forma de
governo, uma vez que é assim que até mesmo Deus governa
o universo. Desta forma , na medida em que partilhariam
da sabedoria e da bondade de Deus, estes reis deveriam
também possuir um poder semelhante ao divino. Daí o
ditado popular segundo o qual os reinados dos bons prín-
cipes são sempre aqueles que mais perigos trazem às
liberdades do povo. Assim acontece quando a estes prínci-
pes sucedem outros inferiores, que administram o governo
com pensamentos distintos, mas apontam para o raio de
acção dos bons governantes que os antecederam, invo-
cando-o como precedente, para o transformar em padrão
da sua prerrogativa. Como se o que havia sido feito exclusi-
vamente para o bem do povo, pudesse constituir para
eles um direito que lhes permitisse prejudicar esse mesmo
povo, se assim o entendessem. Por vezes, era só após muita
contestação e muita desordem pública que o povo conse-
guia reconquistar os seus direitos originais e estabelecer que

[184]
não podia constituir prerrogativa real aquilo que, na verdade,
nunca o fora. É muito possível, e razoável, que o povo
não deva preocupar-se com a delimitação da prerrogativa
daqueles reis ou governantes que não ultrapassem os limites
do bem público. Porém, é na verdade impossível que algum
membro da sociedade, quem quer que ele seja, tenha o
direito de molestar o povo. Pois a prerrogativa não é mais do
que o poder de promover o bem público à margem de uma regra.

§. 167. Na Inglaterra, o poder de convocar o parlamento


e de fixar a ocasião, o local e duração da sessão, é segu-
ramente uma prerrogativa do rei, mas com o encargo de a
exercer para o bem da nação, tendo em conta as neces-
sidades da época e as circunstâncias. É assim, na medida em
que não se pode prever, para todo o sempre, quais são o
local e o período mais apropriados para as reuniões do
legislativo. Por isso, a escolha de um e de outro, não poderá
deixar de recair sobre o poder executivo, de modo a que
se preste melhor serviço ao bem público e aos objectivos
dos parlamentos.

§. 168. Nesta matena da prerrogativa colocar-se-á,


sem dúvida, a velha questão de saber quem será o juiz?
Quem poderá julgar quando este poder é exercido correc-
tamente? A minha resposta é a seguinte. Não pode existir
na terra qualquer juiz entre um poder executivo em exer-
cício que possua uma tal prerrogativa e um legislativo que
dependa da vontade dele para que se possa reunir. Como
tão pouco se poderá erguer algum juiz entre o legislativo
e o povo, caso o executivo, ou o legislativo, sempre que
detiverem poder para tal, se proponham escravizar ou des-
truir o povo. Numa tal circunstância, tal como em todas as
outras, aliás, em que não puder recorrer a um juiz terrestre,
o povo não tem outra alternativa a não ser apelar aos céus. É
impossível supor que um homem, alguma vez, consinta em

[185]
ser governado por outro para ser prejudicado por ele. Por
isso, qualquer governante que tentar escravizar ou destruir
o seu povo estará manifestamente a ultrapassar os seus
direitos. E, quando o corpo social, ou qualquer homem
individual, for privado dos seus direitos, ou se encontre
submetido a um poder exercido por alguém que não tenha
legitimidade para o exercer, e não disponha de qualquer
possibilidade de recurso neste mundo, então, terá total
liberdade para recorrer aos céus, sempre que entender. É
certo que o povo não pode ser juiz, uma vez que a cons-
tituição da sociedade não lhe atribui um poder superior
que o habilite a dirimir aqueles casos e a passar sentença
sobre eles com eficácia. Porém, onde quer que não exista
uma possibilidade material de recurso, possui o poder de
decidir em última instância se a sua é ou não uma causa
justa, capaz de justificar o recurso aos céus. E este é um
poder que lhe é reservado por uma lei anterior e superior
a qualquer lei positiva que possa vir a ser adoptada. Os
homens, aliás, jamais poderão abdicar dele, na medida
em que ninguém se pode submeter a outro, de forma a
permitir que este o destrua. Nem Deus, nem a natureza
alguma vez permitiram que um homem se abandone a si
mesmo de modo a negligenciar a sua própria preservação.
E, assim como nenhum homem tem o direito de se
suicidar, tão pouco pode conceder a outros o poder de o
matarem. Por outro lado, não se pense que isto constitui
uma causa perpétua de desordem. Trata-se, antes, de um
mecanismo de recurso, que só deverá ser desencadeado
quando se fizerem sentir sobre o povo inconvenientes
de tal monta que recaiam sobre a maioria. O povo, então,
cansado de os sofrer, sentirá a necessidade de se libertar
deles. Em todo o caso, este perigo jamais ameaçará um
executivo ou um príncipe prudente, sendo certo que
constitui aquilo que mais devem evitar, na medida em
que, de todas as circunstâncias, é a mais arriscada de todas.

[186]
Capítulo XV

DOS PODERES PATERNAL, POLÍTICO E


DESPÓTICO, CONSIDERADOS EM CONJUNTO

§. 169. Estou convencido de que os principais erros


que têm surgido ultimamente acerca do governo decorrem
do modo como estes poderes distintos têm vindo a ser
confundidos uns com os outros. Por isso, apesar de já
termos tido a oportunidade de tratar de cada um deles
individualmente, não será descabido considerá-los agora
em conjunto.

§. 170. Em primeiro lugar, paternal ou parental, é,


exclusivamente, aquele poder que os pais detêm sobre os
filhos. O poder de os governar para o bem deles, até que
alcancem o uso da razão, ou um nível de conhecimentos
a partir do qual se possa legitimamente concluir que se
tornaram capazes de compreender as regras que devem
nortear o seu comportamento, quer decorram da lei da
natureza, quer integrem o corpo de direito interno do seu
país. Isto é, até que os filhos sejam capazes de as conhecer
tão bem como todos os outros que vivem como homens
livres sob essas mesmas leis. A afeição e a ternura para com
os filhos implantadas por Deus no coração dos pais tornam
evidente que jamais se terá pretendido que o poder exer-
cido sobre os seus filhos alguma vez pudesse consubstan-
ciar um governo severo e arbitrário, manifestando, pelo
contrário, que apenas deverá ser exercido como auxílio,
instrução e preservação da sua prole. Seja como for, e tal
como tive a oportunidade de demonstrar, não existem

[187]
razões que permitam supor que este poder paterno atinja,
em qualquer momento, a vida e a morte, e conceda ao pai
um direito sobre os filhos, maior do que aquele que de-
tém sobre a vida e a morte de qualquer outra pessoa. Tão
pouco se poderá pretender que este poder parental possa
manter um filho submetido à vontade dos seus pais, depois
de ter atingido a maturidade. A não ser na medida em
que tem a obrigação, durante toda a sua vida, de respeitar,
honrar, demonstrar gratidão e prestar auxílio e assistên-
cia ao seu pai e à sua mãe, que lhe deram a vida e que o
educaram. Deste modo, é certo que o governo paternal é um
governo natural, mas de modo algum atinge os objectivos e
a jurisdição do poder político. O poder de um pai não atinge,
de modo algum, a propriedade do seu filho, que é coisa de que
apenas ele poderá dispor.

§. 171. Em segundo lugar, o poder político é aquele


poder que cada homem possuía no estado de natureza, mas
que entregou à sociedade a que aderiu, depositando-o nas
mãos dos governantes por ela empossados, com o encargo,
expresso ou tácito, de o exercerem para o bem de todos os
seus membros e para a preservação das suas propriedades. É
o poder que todos os homens possuem enquanto permane-
cem num estado de natureza, e que cedem à sociedade em
todos os casos em que a sociedade é capaz de lhes oferecer
segurança. Trata-se, por um lado, do poder que todos os
homens têm de preservar as suas propriedades, recorrendo
aos meios que considerarem mais convenientes para o
efeito e que a natureza lhes possa facultar. E, por outro
lado, do poder de punir as transgressões à lei da natureza
que venham a ser cometidas por outros, tal como vier
a considerar, segundo o melhor da sua razão, mais con-
veniente à sua preservação e à do resto da humanidade.
Enquanto os homens permaneceram num estado de natu-
reza, este poder que detinham nas suas mãos, tinha uma

[188]
finalidade e uma medida pela qual o seu exerctcto era
aferido, a saber, a preservação da sociedade, isto é, de toda
a humanidade em geral. Por isso, não pode ter qualquer
outra finalidade, nem medida nas mãos dos governantes,
que não seja a preservação da vida, das liberdades e das
propriedades dos membros da sua sociedade. De modo
algum, portanto, se poderá constituir como um poder
absoluto ou arbitrário sobre as respectivas vidas e haveres,
que deverá, aliás, sempre preservar, na medida do pos-
sível. Trata-se, pelo contrário, do poder de adoptar leis, e de
determinar as pertas que deverão corresponder à sua vio-
lação, tanto quanto for necessário para a preservação do
todo, eliminando aquelas partes, e só elas, que estejam
de tal modo corrompidas ao ponto de constituírem uma
ameaça para as outras que se encontram sãs e de boa saúde.
Fora deste pressuposto, nenhuma severidade poderá ser
legal. Ora, este poder tem a sua origem apenas no Pacto, no
acordo e no consentimento mútuo prestado por todos
aqueles que integram a comunidade.

§. 172. Em terceiro lugar, despótico é o poder arbitrário


e absoluto que um homem tem sobre outros, inclusiva-
mente o de lhes tirar a vida quando entender. Ora, um tal
poder de modo algum tem a sua origem na natureza, nem
poderá decorrer de um pacto, qualquer que ele seja. A
natureza não estabelece este género de distinções entre os
homens, que, por sua vez, não detêm um poder arbitrário
deste tipo sobre as suas próprias vidas, daí não poderem
conceder a outros um poder que nem eles próprios
possuem . Pelo contrário, o poder despótico emerge a par-
tir do momento em que, pela agressão que comete, um
homem se coloca num estado de guerra relativamente a
outro, perder1do, por este acto de agressão que comete, o
direito à vida que detinha até então. Deus concedeu-nos a
razão, simultaneamente como regra das relações entre os

[189]
homens e como laço comum de união de toda a huma-
nidade numa só sociedade. Todo aquele que a abandonar
abdica dos caminhos da paz que ela nos abre, optando pela
força e pela guerra para alcançar os seus objectivos injustos
e à margem de todo o direito. Ao fazê-lo, renuncia à
sua própria espécie e degrada-se para o nível dos animais
selvagens. Adoptando a força que os caracteriza como
pauta de todo o direito, sujeita-se a ser destruído por
aquele que tiver prejudicado ou pelo resto da humanidade,
que seguramente se aliará para fazer justiça, tal como se
verificaria perante a ameaça de um animal selvagem ou de
uma fera nociva lO, com os quais a humanidade jamais se
poderá relacionar, estabelecer uma sociedade, ou encontrar
segurança. Quem assim agir e vier a ser capturado numa
guerra justa e legal, ficará sujeito a um poder despótico que,
não tendo surgido de qualquer contrato, nem podendo a
ele conduzir, mais não representa do que o prolongamento
do estado de guerra. Pois, que contrato se poderá esta-
belecer com um homem que nem sequer é dono da sua
própria vida? Que obrigações poderá ele assumir? Por
outro lado, se lhe for permitido ser dono da sua própria
vida, mesmo que por alguns instantes, o poder arbitrário
e despótico do seu senhor terminará. Todo aquele que
for senhor de si próprio e da sua vida possui, correlativa-
mente, o direito de a preservar. Tanto assim é que, a partir
do momento em que se estabelece um pacto, a escravidão termina,
e todo aquele que aceitar negociar com aquele que tiver
cativado, abandona o poder absoluto que até então detinha
sobre ele e põe um fim ao estado de guerra em que ambos
se encontravam, um relativamente ao outro.

10 Numa cóp ia que corri gi u, Locke acrescentou que é destruti"a do


seu ser. N. T.

[190)
§. 173. A natureza concedeu o primeiro destes pode-
res, o poder paternal, aos país, para o exercerem em proveito
dos filhos durante a sua menoridade, de modo a suprirem
a falta de capacidade e de entendimento que neles se faz
sentir para a gestão das suas propriedades (entendendo por
propriedade, aqui, como em todos os outros contextos em
que o conceito é utilizado, a propriedade que cada homem
detém sobre a sua pessoa e sobre os seus bens) . Por outro
lado, é um acordo voluntário que estabelece o segundo destes
poderes, o poder político dos governantes, para o beneficio dos
súbditos, oferecendo-lhes segurança nas suas possessões e
no usufruto das suas propriedades. Por último, é da perda de
direitos que emerge o terceiro destes poderes, o poder despótico
do senhor, que o exerce para o seu beneficio próprio, sobre
aqueles que se viram privados de toda e qualquer pro-
priedade.

§. 174. Todos aqueles que considerarem a origem, a


finalidade e o alcance específicos de cada um destes três
poderes diferentes, verão com clareza que o poder paternal
está tão aquém do poder de um governante, quanto o poder
despótico o excede. E que, onde quer que se encontre, o
domínio absoluto está tão longe de constituir um tipo de
sociedade civil, com a qual, aliás, é incompatível , quanto a
escravatura o está da propriedade. O poder paternal existe
apenas enquanto a menoridade do filho o torna incapaz
de gerir as suas propriedades. O poder político reclama a
existência de homens que, dispondo de propriedade, dela
usufruem como entendem. E o poder despótico é aquele
que se exerce sobre os que não detêm qualquer proprie-
dade.

[191]
Capítulo XVI

DA CONQUISTA

§. 175. Na sua origem, os governos não podem ter


surgido de outra forma distinta daquela que tem vindo a
ser apresentada, nem as comunidades políticas podem ter tido
qualquer outro fundamento que não seja o consentimento
do povo. Não obstante, a ambição encheu a terra com tais
desordens que, no fragor da guerra, que constitui uma
parte tão significativa da história da humanidade, mal nos
apercebemos deste consentimento. Daí que muitos tenham
confundido a força das armas com o consentimento po-
pular e vejam na conquista uma das origens do governo.
Contudo, a conquista está longe de estabelecer qualquer
governo, tanto quanto a demolição de uma casa está longe
da construção de uma nova, nesse mesmo sítio. Muitas
vezes, destruindo a comunidade que existia até então, a
conquista abre, na verdade, o caminho para a constituição
de uma nova, o que, no entanto, nunca se verificará sem
o consentimento do povo.

§. 176. Qualquer pessoa que não considere que la-


drões e piratas possuem um direito de império sobre quem
quer que seja que tenham força suficiente para domi-
nar, facilmente concordará que um agressor se coloca num
estado de guerra relativamente àqueles cujos direitos violar
injustamente. Para além disso, não deixará de verificar que,
de uma tal guerra injusta, o agressor não poderá retirar
quaisquer direitos sobre aqueles que vier a conquistar. Nem
jamais aceitará que os vencidos tenham a obrigação de

[193]
cumprir as promessas que lhes forem extorquidas
através do recurso ilegítimo à força . Se um ladrão assaltasse
a minha casa e, encostando-me um punhal à garganta, me
obrigasse a assinar uma escritura cedendo-lhe todos os
meus bens, passaria por isso a deter um direito sobre eles?
Tal é o direito pela espada que detém um conquistador
injusto que me força à submissão. A ofensa e o crime são
idênticos, sejam eles perpetrados por uma cabeça coroada
ou por um canalha mesquinho. O título do criminoso e o
número dos seus seguidores são irrelevantes para a natureza
da ofensa cometida, a não ser para a agravar. A única dife-
rença que se verifica entre ambos é a seguinte. Os grandes
ladrões castigam os mais fracos de modo a poderem asse-
gurar a sua obediência, mas reclamam para si os louros e os
triunfos. Grandes demais para as mãos frágeis da justiça
terrestre, guardam para si todo o poder de modo a serem
eles próprios a castigar os criminosos. Que remédio, então,
terei eu face ao ladrão que assaltou a minha casa? Apelar à
lei, para que se faça justiça. Mas talvez a justiça me seja
negada, ou eu me encontre aleijado, e não me possa mexer,
ou tenha ficado sem recursos que mo permitam. Se Deus
me tiver retirado todos os meios de procurar remédio,
então, nada mais me restará para além da paciência. Mas o
meu filho, quando for capaz, poderá procurar a reparação
jurídica que me foi negada. E este recurso poderá ser reno-
vado, pelo meu filho e pelo filho do meu filho, até à recupe-
ração dos direitos que haviam sido sonegados. Contudo,
nem aqueles que forem conquistados, nem os seus filhos ,
dispõem de um tribunal ou de um árbitro na terra a que
possam interpor recurso. Restar-lhes-á fazer como jifté,
recorrer aos céus, e repetir o recurso, até recuperarem o direito
original dos seus antepassados, a saber, o direito de se
organizarem sob um poder legislativo livremente aprovado
e aceite pela maioria. E se me for apresentada a objecção
que isto conduziria a calamidades infindáveis, respon-

(194]
derei lembrando que estas jamais seriam maiores do que as
que decorrem da própria justiça, a qual se encontra aberta
a todos os que a ela quiserem recorrer. Todo aquele que
perturbar o seu vizinho injustificadamente, será punido
pela justiça do tribunal a que o seu vizinho recorrer. E
todo aquele que recorrer aos céus deverá estar seguro de ter
o direito do seu lado e de que esse direito é superior ao
incómodo do recurso, uma vez que terá de se apresentar
perante um tribunal que não se deixará enganar e que,
seguramente, retribuirá a todos de acordo com os incó-
modos que causarem aos seus concidadãos, isto é, a qual-
quer ser humano. Daí se deduzir com clareza que ninguém
poderá adquirir qualquer direito à sujeição e obediência daqueles
que tiver conquistado numa guerra injusta.

§. 177. Supondo, porém, que a vitória sorri para o


lado em que se encontra a justiça, convirá agora considerar
qual o poder que uma guerra legítima confere ao conquis-
tador, e sobre quem é que este poder se exerce.
Em primeiro lugar, é evidente que nenhum conquis-
tador ganha poder sobre aqueles que o acompanharam na sua
conquista . Os que lutaram ao lado dele de modo algum
poderão ser prejudicados pela conquista, devendo, pelo
menos, permanecer tão livres como dantes. O mais habi-
tual, aliás, é oferecerem os seus serviços mediante cláusulas
e condições predeterminadas, nomeadamente de partilha
do saque com o seu chefe, bem como das demais vanta-
gens que vierem a ser conquistadas pela espada - ou, pelo
menos, da entrega de uma parte do país por eles subjugado.
Por outro lado, é de esperar que os conquistadores não se
vejam atirados para a condição de escravos por direito de conquista,
nem tenham que ostentar os seus louros apenas em de-
monstração de sacrifício pelo triunfo dos seus chefes.
Aqueles que fundamentam a monarquia absoluta no direito
da espada, equiparam os seus heróis, os fundadores dessas

[195]
monarquias, àqueles personagens que, no campo de bata-
lha, se atiram aos combatentes de ambas as partes, esque-
cendo que oficiais e soldados lutaram a seu lado nas bata-
lhas que ganharam, os auxiliaram na subjugação dos países
que conquistaram e que compartilham. Dizem-nos alguns
que o fundamento da monarquia inglesa se encontra na
conquista normanda e que, por isso, os nossos príncipes
detêm um direito de domínio absoluto. Nem que isso fosse
verdade (e não parece que seja, já que é outra a direcção
para que aponta o registo histórico), e o tal Guilherme
tivesse tido o direito de invadir esta ilha, a legitimidade de
dominação que teria adquirido pela sua conquista só se
poderia aplicar aos saxões e aos bretões, os únicos habitantes
deste país na altura. Qualquer que seja o direito de domí-
nio da conquista, o facto é que os normandos que o acom-
panharam e o auxiliaram na guerra permaneceram homens
livres, e com eles todos os seus descendentes, e não súbdi-
tos por direito de conquista. E se eu, ou qualquer outra
pessoa , reivindicar a condição de homem livre invocando
para o efeito o facto de ser descendente destes conquis-
tadores, muito dificilmente alguém poderá demonstrar que
este argumento não é procedente. Para além disso, é óbvio
que, não tendo a lei estabelecido qualquer diferença entre
descendentes de saxões e bretões, por um lado, e descen-
dentes de normandos, por outro, de modo algum poderá
pretender-se que a uns e a outros correspondam liberdades
e privilégios distintos.

§. 178. Suponhamos, porém, que os conquistadores


não se unem aos conquistados num só povo e no quadro
de um único regime jurídico, desfrutando dos mesmos
direitos e das mesmas liberdades - o que raramente acon-
tece. Vejamos então que poder possui um conquistador sobre
aqueles que venceu no campo de batalha. Em meu entender,
trata-se de um poder absoluto, estritamente despótico.

[196]
O conquistador apodera-se das vidas dos que lutaram
contra ele numa guerra injusta, mas não das vidas, nem das
fazendas de todos os outros que não se envolveram nesse
conflito, nem dos bens daqueles que de facto participaram
activamente nele.

§. 179. Em segundo lugar, afirmo, pois, que um con-


quistador apenas adquire poder sobre aqueles que, de facto,
participaram, colaboraram ou consentiram no uso injusto
de força contra ele. O povo que não concedeu aos seus
governantes qualquer poder para agirem injustamente, tal
como empreender uma guerra injusta (desde logo na me-
dida em que nunca deteve um tal poder), de modo algum
deverá ser considerado culpado da violência e da injustiça
perpetradas numa guerra injusta, a não ser que a tenha
incitado, ou dela tenha sido cúmplice. Do mesmo modo
que não poderá ser culpado de qualquer violência ou
opressão que os seus governantes venham a exercer sobre o
seu próprio povo, ou sobre qualquer um dos seus súbditos.
A autoridade que o povo concedeu aos seus governantes
no primeiro destes casos é perfeitamente igual à que lhes
concedeu no segundo. Os conquistadores, é certo, rara-
mente se dão ao trabalho de estabelecer este tipo de distin-
ções, permitindo de bom grado que o fragor da guerra as
varra por inteiro. Tal, porém, não altera o direito. O poder
dos conquistadores sobre as vidas daqueles que conquistam
decorre exclusivamente do facto de estes terem recorrido
à força para perpetrarem um injustiça. Por esta razão, ape-
nas atinge aqueles que nela colaboraram e todos os demais
permanecem inocentes. Um conquistador não possui mais
direitos sobre os cidadãos desse país que em nada o ofen-
deram, e que, por isso mesmo, não perderam o direito às
suas vidas, que não lhes pode ser confiscado, do que aque-
les que detém sobre os de qualquer outro com quem tenha
mantido relações amigáveis.

[197]
§. 180. Em terceiro lugar, um conquistador adquire
um poder perfeitamente despótico sobre aqueles que subjuga
numa guerra justa. Obtém um poder absoluto sobre as vidas
dos que se colocaram num estado de guerra perante ele, as
quais, por isso, lhes foram confiscadas. No entanto, daí não
lhe advém qualquer direito sobre os seus haveres. Não
duvido que à primeira vista isto possa parecer uma dou-
trina muito estranha, já que é tão contrária à prática do
mundo. Não existe nada mais comum quando se fala do
domínio de algum país do que dizer que é consequência
de ter sido conquistado, como se a conquista, de per si,
conferisse um direito de posse. Contudo, de modo algum
podemos esquecer que a conduta dos fortes e dos pode-
rosos, por mais universal que seja, raramente constitui
norma legal, embora faça parte da sujeição dos vencidos
não protestar contra as condições que lhe são impostas pela
espada conquistadora.

§. 181. É habitual que na guerra se produza uma


combinação de força e de danos. Aliás, são raros os casos
em que o agressor não prejudica as propriedades daqueles
contra os quais luta. Anote-se, todavia, que não é apenas
o uso da força que leva a um estado de guerra. Quer a
actividade danosa tenha sido iniciada pela força, quer,
tenha sido perpetrada discretamente ou por meios frau-
dulentos, e os seus responsáveis se neguem a oferecer
reparações e a prolonguem violentamente, igualmente se
verificará o uso injustificado da força que faz com que de
uma guerra se trate. Se alguém arrombar a minha casa, e
dela me expulsar, recorrendo à violência, ou então, tendo
nela penetrado pacificamente, me impedir pela força a
entrada, estará, na verdade, a proceder da mesma maneira.
Suponhamos que nos encontramos naquele estado em
que não existe um juiz comum na terra a quem eu possa
recorrer e a quem ambos nos tenhamos que submeter, pois

[198]
é de uma tal circunstância que nos ocupamos neste mo-
mento. É o recurso injusto à força que coloca um homem num
estado de guerra perante outros, daí que o culpado de uma
tal situação perca o direito à sua vida, que lhe pode ser
confiscado. Abandonando a razão, que é a norma própria
para a regulamentação das relações humanas, e adoptando
a força, que constitui a maneira de proceder dos animais,
fica sujeito a ser destruído por aquele contra quem usou da
força, como qualquer animal selvagem e voraz que ameace
a sua vida.

§. 182. Porém, os filhos não têm culpa dos desman-


dos dos pais, e podem perfeitamente ser razoáveis e pací-
ficos, não obstante a brutalidade e as injustiças que tenham
sido cometidas pelos seus progenitores. Os desmandos e a
violência de um pai podem conduzir à confiscação da sua
vida, mas de modo algum envolvem os filhos na sua culpa
ou na sua destruição. Com vista a assegurar a preservação
de toda a humanidade na medida do possível, a natureza
determinou que os bens de um homem também perten-
cessem aos seus filhos, de modo a impedir que pudessem
vir a perecer. Por isso, apesar dos desmandos que possa
cometer, os bens de um homem continuam a pertencer
aos seus filhos. Supondo, por isso, que os filhos não se
associaram ao pai na guerra que desencadeou, por opção
própria, por causa da sua menoridade, ou por se encon-
trarem ausentes. Numa tal circunstância, nada fizeram para
que os seus bens lhes fossem retirados. Tão pouco o simples
facto de ter vencido aqueles que o tentaram destruir pela
força confere ao conquistador qualquer direito de lhes confis-
car os seus bens, não obstante possuir algum direito sobre
eles, a título de reparação pelos prejuízos sofridos por causa
da guerra, bem como pela necessidade de defesa dos seus
próprios direitos. Restará, isso sim, averiguar até onde um
tal direito se prolonga, e até que ponto permite ao con-

[199]
quistador tocar nas possessões daqueles que conquistou.
Uma coisa é certa. Aquele que, pela sua vitória na guerra,
conquistou o direito de destruir outro, se assim o entender, não
adquire, por essa razão, qualquer direito de confiscar ou de
usufruir dos seus bens. É o recurso do agressor à força
bruta que confere ao seu adversário o direito de o matar e
de o destruir, se assim o entender, como se tratasse de um
animal nocivo qualquer. Mas apenas os prejuízos que
porventura tenha sofrido poderão conceder a um homem
um direito sobre os bens de outro. Apesar de ser legítimo
matar o ladrão que investir contra mim na estrada para me
assaltar, não tenho qualquer direito de, numa atitude bem
menos grave, o deixar partir tranquilamente, sob condição
de me apoderar do seu dinheiro. Isso constituiria roubo da
minha parte. O ladrão perdeu o direito à vida no momento
em que recorreu à força e provocou um estado de guerra.
O facto de o ter feito, contudo, não me atribui qualquer
título sobre os seus bens. O direito de conquista incide apenas
sobre as vidas dos que participaram na guerra, e não sobre as
suas propriedades, a não ser na medida em que se torna
necessário proceder a reparações pelos prejuízos sofridos,
bem como pelas despesas incorridas com a guerra, sempre
sob reserva de salvaguarda dos direitos de esposas e filhos,
quando inocentes.

§. 183. Toda a justiça possível e imaginária poderá


estar do lado do conquistador. Mesmo assim, não terá qual-
quer direito de se apropriar de mais do que aquilo que o
vencido podia perder. A vida do derrotado fica à mercê do
vitorioso, que pode igualmente apropriar-se dos seus bens
e dos seus serviços, a título de reparações. Mas de modo
algum pode deitar a mão aos bens da mulher e dos filhos
desse homem. Uma e outros também tinham direito aos
bens de que ele gozava, tal como à fazenda que possuía.
Estando eu num estado de natureza, por exemplo (e todas

[200]
as comunidades políticas se encontram num estado de
natureza, umas relativamente às outras), provocarei um
estado de guerra se prejudicar alguém e me recusar a com-
pensá-lo, e o facto de recorrer à força para defender aquilo
que obtive de forma injusta, transforma-me num agres-
sor. Supondo que sou derrotado, a minha vida, é verdade,
ficará à mercê do meu vencedor, mas não a de minha
mulher, nem a de meus filhos. Nem uma, nem outros,
participaram na guerra, nem contribuíram para ela. O meu
comportamento não pode atribuir a outrem o direito de
confiscar as suas vidas, desde logo porque elas não me
pertencem. Para além disso, a minha mulher é dona de
uma parte dos meus bens, que não lhe pode ser retirada,
por mim, ou por quem quer que seja. E o mesmo se passa
com os meus filhos que, por terem sido gerados por mim,
têm o direito de ser sustentados através do meu trabalho ou
dos meus bens. É este, então, o meu argumento. O con-
quistador tem o direito de ser indemnizado pelos danos
que lhe foram infligidos; e os filhos têm direito aos bens do
pai, para deles assegurarem a sua subsistência. Por outro
lado, tendo a mulher o direito a um quinhão dos bens do
marido, seja em função do seu próprio trabalho, seja em
função do pacto nupcial, torna-se evidente que o marido
não pode perder aquilo que não lhe pertence. O que deve
ser feito, então, em tais circunstâncias? A minha resposta é
a seguinte. A lei fundamental da natureza aponta para a
preservação de todos, tanto quanto possível. Daqui decorre
que na eventualidade de os bens do vencido não serem
suficientes para satisfazer integralmente os direitos de
ambas as partes, a saber, compensar as perdas sofridas pelo
vencedor e assegurar o sustento dos filhos, aquele que já tem
os seus bens, que lhe chegam, e sobram, terá de abdicar de
uma indemnização plena e dar prioridade à salvaguarda dos
direitos mais urgentes daqueles que, sem eles, ficarão com
a sua própria vida em perigo.

[201]
§. 184. Suponhamos, porém, que o vencedor se faz
ressarcir de todas as despesas e de todos os gastos incorridos
durante a guerra, até ao último cêntimo, e que, despojados
de todos os bens paternos, os filhos do vencido se vêem
atirados para a miséria e acabam por morrer de fome. Nem
pela satisfação de todos estes direitos, o vencedor adquirirá
qualquer título de propriedade sobre o país que tiver conquistado.
Em qualquer parte do planeta em que todo o terreno
disponível pertence a alguém e nenhum permanece in-
culto, os prejuízos de uma guerra dificilmente poderão
ser equivalentes ao valor de qualquer parcela considerável de
território. E, não me tendo eu apoderado das terras do
vencedor, o que nunca poderia ter feito na minha quali-
dade de vencido, quaisquer outros prejuízos que porven-
tura lhe tenha causado, dificilmente poderão assumir um
valor equivalente ao das minhas propriedades, assumindo
que se encontram igualmente cultivadas como as dele e
que são aproximadamente tão extensas quanto as que eu
tiver prejudicado. Em regra, o pior dos estragos que podem
ser feitos por um invasor é a destruição de um ou dois anos
de colheitas (pois raramente atingirão os quatro ou cinco
anos). Quanto ao dinheiro e às demais riquezas e tesouros
que possa ter levado, não são bens naturais, nem possuem
mais valor do que aquele que lhes é outorgado conven-
cionalmente, pela fantasia ou pela imaginação. O valor
que detêm não foi a natureza que lho concedeu. Merido
pela bitola da natureza, o valor destes bens não é supe-
rior àquele que um colar de contas de búzios dos índios
americanos possui para um príncipe europeu, ou àquele que
as moedas de prata europeias detinham para os índios. E
onde todo o terreno disponível estiver já na posse de alguém
e nenhum permanecer baldio, de modo a ser tomado
por quem dele se quiser apropriar, cinco anos de colheitas
não valem a herança perpétua de uma propriedade. A não
ser assim, e abstraindo do valor convencional do dinheiro,

(202]
todos concordarão corrúgo em que a desproporção seria
maior do que a que existe entre cinco e quinhentos. Sem-
pre que existirem mais terrenos para além daqueles que
tiverem sido apropriados e estiverem cultivados, eles en-
contrar-se-ão disponíveis para serem tomados por quem os
quiser. Em tais circunstâncias, as colheitas de seis meses
terão um valor superior ao direito de herança da proprie-
dade que as produziu. Mas, quando assim acontece, os
conquistadores não se costumam preocupar com a expro-
priação das terras dos vencidos. Assim, no estado de natureza
(que é, convenhamos, a condição em que os príncipes e os
governantes deste mundo se encontram nas suas inter-
-relações mútuas), nenhum dano que um homem possa
infligir a outro outorgará ao vencedor o direito de destituir
os herdeiros dos vencidos da sua herança, que deveria estar
na sua posse, deles e dos seus descendentes, para toda a
posteridade. O vencedor poderá, de facto, ser tentado a
sentir-se como se fosse senhor, e, dada a condição em que
se encontra, os vencidos não serão capazes de o contestar.
Porém, esta condição de vencedor não lhe concede quais-
quer outros direitos para além daqueles que a força bruta
confere aos mais fortes sobre os mais fracos. E, por este
raciocínio, o mais forte deveria ter o direito de se apropriar
do que bem entendesse.

§. 185. Resumindo, o vencedor, até mesmo de uma


guerra justa, não adquire pela sua conquista qualquer direito
e domínio , seja sobre aqueles que o acompanharam na
guerra, seja sobre os povos do país que tiver subjugado
que não se lhe tiverem oposto, seja ainda sobre os
descendentes dos que o tiverem combatido. Todos eles
permanecem livres de qualquer tipo de sujeição ao con-
quistador. E se por acaso o seu governo anterior vier a ser
dissolvido, são livres de se reorganizarem sob um novo
governo.

[203]
§. 186. Pela força da espada que lhes aponta ao
peito, o conquistador tem habitualmente, é verdade, o
poder de compelir aqueles que tiver vencido a curvarem-
-se às condições que houver por bem impor-lhes, e a
submeterem-se ao governo que entender estabelecer para
eles. No entanto, cabe perguntar com que direito é que o
faz? Pois, argumentar que os vencidos se submetem por
vontade própria, equivale a afirmar que o seu consentimento
é necessário para conferir ao conquistador o direito de os governar.
Resta agora indagar se promessas extorquídas pela força, na
ausência de qualquer direito, constituirão expressão de
consentimento, e até que ponto é que comprometem aqueles
que as proferem? Na minha perspectiva, estas promessas em
nada obrigam os que as proferem. Tudo aquilo que alguém
me extorquir através do recurso à força permanece meu
de direito, e essa pessoa tem a obrigação de mo devolver
prontamente. Aquele que tomar o meu cavalo pela força,
tem a obrigação de mo devolver quanto antes, e eu tenho
o direito de o reaver. Pela mesma razão, quem me forçar
a fazer uma promessa, tem a obrigação de ma devolver de
imediato, isto é, tem a obrigação de me libertar das obri-
gações que dela possam decorrer. Ou então, em alter-
nativa, eu mesmo a posso reaver, isto é, escolher se as
cumpro ou não. A lei da natureza impõe-me obrigações
apenas através das regras que prescreve, razão pela qual
nenhuma obrigação me pode ser imposta através da
violação dessas mesmas regras, tal como se verifica quando
alguém recorre à força para tomar algo que é meu.
Para além disso, dizer que eu fiz uma promessa, em nada
altera o que aqui se encontra em causa, do mesmo modo
que o facto de ser eu a pôr a mão no meu bolso e entregar
pessoalmente a minha carteira ao ladrão que a reclama
com uma pistola encostada ao meu peito, de modo algum
desculpa a força que é exercida sobre mim, nem atribui ao
ladrão qualquer direito.

[204]
§. 187. De tudo isto decorre que, nem aqueles que
tiverem sido derrotados numa guerra injusta, nem os que,
numa guerra justa, não tiverem participado nas hostili-
dades, têm qualquer obrigação de se submeter ao governo
de um conquistador que os subjugue pela força.

§. 188. Suponhamos agora, porém, que, enquanto


membros do mesmo corpo político, todos os homens que
integram uma comunidade se associaram numa guerra
injusta, e que foram vencidos, ficando as suas vidas à mercê
do seu conquistador.

§. 189. Nada disto poderá afectar as crianças


menores. Uma vez que o pai não detém qualquer poder
sobre a vida ou a liberdade dos seus filhos, nenhum dos
seus actos as poderá comprometer. Tanto assim é que, inde-
pendentemente do que possa suceder aos pais, os filhos
permanecem livres, e o poder absoluto do conquistador não
se estende para além da pessoa daqueles que foram por ele
subjugados, acabando neles. E se tratar esses homens como
escravos, e os sujeitar ao seu poder absoluto e arbitrário, o
facto é que não detém, por isso, qualquer direito de domínio
semelhante sobre os seus filhos. Independentemente daquilo
que os possa levar a dizer ou a fazer, não possuirá nenhum
poder sobre eles, a não ser através do seu consentimento.
E não deterá qualquer autoridade legítima sobre eles
enquanto a força, e não a vontade, os obrigar à submissão.

§. 190. Todos os homens nascem com um duplo


direito. Em primeiro lugar, com um direito à liberdade, que
não é lícito a outro homem infringir, cabendo, por isso, a
cada um dispor de si próprio como entender. Em segundo
lugar, com um direito, prioritário face a eventuais direitos de
outros homens, de herdar com seus irmãos os bens de seus
pa1s.

[205]
§. 191 . Pelo primeiro destes direitos, o homem en-
contra-se naturalmente livre de sujeição a qualquer governo,
mesmo nascendo num local que se encontre sob uma juris-
dição politica concreta. Porém, se um homem repudiar o
governo legítimo do país em que nasceu, terá igualmente
que abdicar dos direitos que lhe são consignados pelas leis
desse país, bem como dos bens que nele tenha herdado
dos seus antepassados, assumindo que esse governo contou
com o consentimento deles.

§. 192. Pelo segundo, os habitantes de qualquer


país, que sejam descendentes e tenham herdado o direito
às suas propriedades de pessoas que tenham sido derrotadas
e forçadas a viver sob um governo a que de modo algum
deram o seu consentimento, conservam um direito às pos-
sessões dos seus antepassados, apesar de não aceitarem livre-
mente o governo que, através do recurso à força , mantém
os terratenentes daquele país sob o jugo das suas duras con-
dições. O primeiro conquistador nunca possuiu um título sobre
o território do país que conquistou. Por isso, as pessoas
desse país que são, ou alegam ser, os descendentes dos seus
primeiros habitantes e que foram forçadas a submeter-se
ao jugo do governo que lhes foi imposto, retêm sempre o
direito de se desembaraçarem dele, e de se libertarem da
usurpação ou da tirania que lhes foi imposta pela espada,
até que os seus governantes lhes concedam uma forma
de governo que aceitem de livre vontade. Quem duvida
que os cristãos gregos, descendentes dos antigos habitantes
do seu país, podem, logo que as circunstâncias o permi-
tam, desembaraçar-se com toda a justiça do jugo turco de
que se lamentam há tanto tempo? Na verdade, nenhum
governo se pode reclamar do direito de se fazer obedecer
por um povo que nele não consentiu livremente. E de
modo algum é lícito supor que uma tal expressão de con-
sentimento se verifique, até se encontrar numa condição

[206]
de total liberdade para escolher o seu governo e os seus
governantes. Ou, pelo menos, até que lhe sejam promul-
gadas leis a que tenha concedido o seu livre consentiento,
seja directamente, seja indirectamente, através dos seus
representantes. E, bem assim, até que a cada um seja
permitido usufruir das suas propriedades, isto é, até que
cada um seja de facto proprietário daquilo que é seu, de tal
modo que nenhuma parcela lhe possa ser retirada sem
o seu consentimento. De outro modo, nenhum homem
poderá ser livre, seja qual for o governo em que viver, e
não passará manifestamente de um escravo, subjugado por
força da guerra.

§. 193. Admitamos porém que, para além de deter


poder sobre as pessoas dos vencidos, o vencedor de uma
guerra justa tem ainda o direito de se apropriar das suas
fazendas , o que manifestamente não é o caso. Nem assim
assistimos ao surgimento do poder absoluto, nem à sua eleva-
ção à condição de forma de governo. Os descendentes dos
vencidos serão homens livres, apenas na medida em que o
conquistador dos seus antepassados lhes conceder fazendas
e possessões para poderem habitar no seu país. Não poderá
ser de outro modo. E cada um deles passará a ser proprietário
de tudo aquilo que lhe tiver sido concedido. Fica assim
mais uma vez comprovado que nada pode ser arrebatado a um
homem sem o seu consentimento.

§. 194. As pessoas dos vencidos permanecem livres


por um direito natural, e as suas propriedades, sejam elas
grandes ou pequenas, pertencem-lhes, e permanecem à sua dis-
posição, e não à do seu conquistador. De outro modo, aliás,
não as poderíamos apelidar de propriedades. Suponhamos
que um conquistador concede mil acres a um homem e aos
seus herdeiros, por todo o sempre, e que a outro arrenda
outros mil acres, para que os explore durante a sua vida,

[207]
mediante uma renda anual de cinquenta ou de quinhentas
libras. Não possuirá o primeiro um direito aos seus mil
acres para sempre, e o segundo, igual direito, durante a sua
vida e mediante o pagamento da renda acordada? E não
será o arrendatário proprietário de tudo aquilo que, en-
quanto for vivo, com o seu esforço e a sua indústria con-
seguir extrair desses mil acres de valor superior à renda
fixada, supondo que consegue extrair o dobro, por exem-
plo? Poderá alguém dizer que, efectuada uma tal conces-
são, o rei ou o conquistador pode invocar o seu direito de
conquista para deitar a mão a todas ou a parte das terras do
primeiro destes homens, ou dos seus herdeiros, ou das do
segu ndo, enquanto for vivo e pagar a renda estipulada? Ou
que se possa apropriar, sempre que assim o entenda, dos
bens ou do dinheiro obtidos a partir dessas propriedades?
Se fosse permitido a um rei ou a um conquistador agir
assim, então todos os contratos livres e voluntários deste
mundo ficariam nulos e sem efeito, já que para os anular
bastaria dispor de poder suficiente para o efeito. E todas
as concessões e promessas de quem detiver o poder não passa-
rão de escárnio e de conluio. Que haverá de mais ridículo
do que dizer que dou isto a alguém e aos seus herdeiros
para sempre, fazer revestir este acto das maiores solenidades
e atribuir a esta concessão as maiores garantias, só para
acrescentar, de imediato, que o faço no pressuposto de
que tenho o direito de o retirar amanhã, se assim me
aprouver.

§. 195. Não discutirei agora se os príncipes se en-


contram isentos do cumprimento das leis do seu país. Em
todo o caso, não tenho qualquer dúvida de que devem
obediência às leis de Deus e às leis da natureza . Ninguém,
nem nenhum poder será capaz de os isentar das obrigações
destas leis eternas. E, no caso das promessas, essas obriga-
ções são tão grandes e tão fortes que até mesmo o Omni-

[208]
potente se vê comprometido com elas. Concessões, promessas
e juramentos são compromissos que obrigam o Todo poderoso.
Independentemente daquilo que afirmem certos adula-
dores, todos os príncipes deste mundo, com todos os seus
povos, não passam de gotas de água ou de grãos de areia,
puras nulidades, quando comparados com Deus, todo po-
deroso.

§. 196. Em poucas palavras, o argumento do direito de


conquista resume-se ao seguinte. Se a causa do conquistador
for justa, ele terá direito a um poder despótico sobre os
que o combateram e sobre aqueles que os ajudaram. Para
além disso, possui ainda o direito de ser indemnizado pelos
prejuízos sofridos, bem como pelas despesas em que teve
de incorrer, a partir do trabalho e das fazendas dos ven-
cidos, na medida em que seja possível fazê-lo sem preju-
dicar os direitos de terceiros. Não possui, no entanto,
qualquer poder, seja sobre a restante população que não
concordou com a guerra, seja sobre os filhos dos vencidos,
seja sobre os bens de uns e de outros. Por esta razão, a sua
vitória não lhe confere qualquer título legítimo de domínio sobre
eles, nem sobre os seus descendentes. Deste modo, trans-
formar-se-á num agressor se, por acaso, atentar co ntra
as respectivas propriedades e colocar-se-á num estado
de guerra perante eles. O direito destes conquistadores à
coroa, deles e dos seus sucesso res , não é melhor do que
aquele que os dinamarqueses Hingar e Huba conheceram
aqui na Inglaterra . Ou daquele que teria tido Espártaco, se
tivesse conquistado a Itália . Isto é, equivaleria a verem o
seu jugo ser repelido, logo que Deus concedesse àqueles
que haviam conquistado a coragem e a oportunidade de o
fazerem. Assim , independentemente do título que os
reis da Assíria alcançaram sobre a Judeia através da espada,
Deus ajudou Ezequias a libertar-se do domínio do império
conquistador. Por isso o Senhor estew com ele e Ezequias era

[209]
bem sucedido em todas as suas empresas. Sacudiu o jugo do rei da
Assíria e livrou-se do seu domínio (II Reis, 18, 7). Torna-se,
portanto, evidente que recorrer à força para derrubar
um poder imposto de forma ilegítima, embora seja
considerado rebelião, não constitui qualquer ofensa a Deus.
Pelo contrário, esta é uma atitude que Deus não só permite
como também encoraja, mesmo que entretanto tenham
sido proferidas promessas e assinados pactos entre ambas
as partes, caso tenham sido extorquidos pela força . Isto
mesmo poderá ser comprovado por todos aqueles que
lerem com atenção o relato de Acaz e de Ezequias e
analisarem o modo como os assírios derrotaram Acaz e o
depuseram, e fizeram Ezequias rei, encontrando-se o pai
ainda vivo, não restando a Ezequias mais do que concordar
em prestar-lhes homenagem e em pagar-lhes tributo
durante todo o seu reinado.

[210]
Capítulo XVII

DA USURPAÇÃO

§. 197. Tal como a conquista pode ser considerada


uma usurpação estrangeira, também a usurpação é uma es-
pécie de conquista interna. Com esta diferença. O usur-
pador jamais tem o direito do seu lado, uma vez que só
existe usurpação quando alguém se apodera daquilo que legiti-
mamente pertence a outro. Em sentido estrito, a usurpação
apenas implica uma alteração de pessoas, não afectando as
formas de governo nem as regras regulamentadoras do
exercício do poder. E se o usurpador estender o seu poder
para além dos limites do poder que até então era exercido
pelo príncipe legítimo ou pelos governantes da comuni-
dade política, estará já a adicionar tirania à usurpação.

§. 198. Em todos os governos legítimos, é tão neces-


sário e natural proceder à designação das pessoas que
devem exercer o poder, como fixar a própria forma de
governo. E é nesta designação que encontramos a inter-
venção originária do povo. É esta a razão pela qual todas as
comunidades políticas que contam com uma forma de
governo definida, estabelecem também as regras que vão
nortear os processos de nomeação de todos os que parti-
cipam no exercício da autoridade pública, bem como os
métodos segundo os quais o poder lhes deverá ser trans-
ferido. Tanto assim é que a ausência de uma forma de go-
verno, qualquer que ela seja, acarreta uma anarquia em
tudo semelhante àquela em que nos encontraríamos, caso
concordássemos, todos , no estabelecimento de uma

[211]
monarquia, sem, contudo, nos preocuparmos com a defi-
nição do modo como se deveria conhecer ou seleccionar
aquele a quem se entregaria o poder, passando assim a ser
rei. Todo aquele que alcançar o poder por outras vias, que
não as prescritas pelas leis, não tem qualquer direito de ser
obedecido, ainda que respeite a forma de governo dessa
comunidade política. Não tendo sido designada pelas leis,
esta pessoa não conta com o consentimento do povo. De
igual modo, nem um usurpador, nem os seus descendentes,
jamais deterão um tal direito, até que o povo esteja em
condições de lho conceder ou confirmar, consentindo
livremente que exerçam o poder que até então haviam
usurpado.

[212]
Capítulo XVIII

DA TIRANIA

§. 199. Do mesmo modo que a usurpação é o exer-


cício do poder, que, de direito, pertence a outro, também
a tirania é o exercício do poder à margem do direito, o que
ninguém tem legitimidade para fazer. É o que se verifica
quando alguém utiliza o poder que detém, não para bene-
ficio daqueles que governa, mas para o seu próprio bene-
ficio privado, ou ainda quando, independentemente da
legitimidade com que detém o poder, o governante subs-
tituir a lei pela sua vontade, enquanto norma de conduta,
e as suas ordens e as suas acções se dirigirem para a satis-
fação das suas próprias ambições, vinganças, cupidez, ou
quaisquer outras paixões condenáveis, em vez de se cen-
trarem na preservação das propriedades do seu povo.

§. 200. Se houver quem duvide da veracidade destes


princípios, por serem apresentados pela mão obscura de
um mero súbdito, espero que a autoridade de um rei possa
ser capaz de o convencer. No discurso que proferiu no
Parlamento em 1603, o Rei Jaime I afirma o seguinte: Para
a adopção de boas leis e constituições, colocarei sempre o bem
público de toda a comunidade, acima dos meus próprios interesses
particulares e privados. Assumirei sempre que a riqueza e o bem-
-estar da comunidade são a minha maior riqueza e a minha mais
completa felicidade. E este é, aliás, o ponto em que um monarca,
legítimo, se demarca por inteiro de um tirano. Reconheço que a
principal característica que separa um rei legítimo de um tirano
usurpador é esta. Enquanto que o tirano orgulhoso e ambicioso

[213]
pensa que o seu rei1w e o seu povo existem para a satisfação dos
seus desejos e dos seus apetites irracionais, o monarca recto e justo,
pelo contrário, reconhece ter sido ele que foi instituído para assegurar
a prosperidade e as propriedades dos seus súbditos. E, de novo,
no seu discurso de 1609 recorre a estas palavras: O rei obriga-
-se a si mesmo ao respeito pelas leis fundamentais do seu reino
através de um juramento duplo. Tacitamente, na medida em que é
rei, e, nesta condição, tem a obrigação de proteger o povo e as leis
do seu reino. E expressamente, nos termos do juramento prestado
por ocasião da sua coroação. Em consequência, todos os reis justos
que estão à freme de reinos bem organizados têm a obrigação de
respeitar os pactos que celebraram com os seus povos em todas as leis
que adoptarem, desenvolvendo os seus governos de modo a serem
agradáveis aos súbditos, à imagem do convénio que Deus celebrou
com Noé a seguir ao dilúvio ao proclamar: daqui em diante, os
períodos de semmteira e de colheita, de frio e de calor, de verão e
de inverno, de noite e de dia, jamais terminarão enquanto a terra
existir. Assim, a partir do momento em que um rei que, sendo res-
ponsável por um reino bem organizado, abandonar este princípio e
as leis da sua comunidade, deixa de ser rei e degenera 11um tirano.
E um pouco mais adiante continua. Por isso, todos os reis que
não são tiranos, nem cometerem perjúrio, sentir-se-ão felizes por se
verem obrigados a exercer o seu poder dentro dos limites das suas
próprias leis. E todos aqueles que os persuadirem do contrário não
passarão de víboras e de pragas, tanto para os próprios monarcas
como para as suas comunidades. É deste modo que aquele rei
sábio, que tinha tão boa noção destas matérias, distinguia
um rei de um tira110, afirmando que o primeiro adopta as
leis como fronteiras do seu poder, e o bem público como
objectivo do seu governo, enquanto o segundo não reco-
nhece quaisquer limites à satisfação da sua vontade e dos
seus apetites.

§. 201. É um erro crer que esta falha seja exclusiva das


monarquias. Na verdade, ela pode verificar-se noutras for-

[214)
mas de governo, tanto quanto nestas. O poder, atribuído
para o governo dos súbditos e para a preservação das suas
propriedades, torna-se tirânico a partir do momento em que
for exercido para outros fins e for utilizado para empo-
brecer, molestar ou submeter o povo ao domínio arbitrário
e irregular daqueles que o detiverem, quer se trate de uma
só pessoa, ou de muitas. É assim que a história nos fala dos
trinta tiranos de Atenas e do tirano de Siracusa. E o jugo dos
Decemviri de Roma não foi melhor.

§. 202 . Onde quer que a lei termine, começa a tirania,


sempre que a lei for transgredida em prejuízo de outro. E
todo aquele que, no exercício da sua autoridade, exceder
o poder que lhe foi conferido pela lei e recorrer à força
de que dispõe para conseguir os seus intentos e impor aos
súbditos aquilo que a lei não lhe permite, perde, por essa
via, a sua dignidade de governante e, na medida em que
estará a agir sem autoridade, pode, por isso, ser desobe-
decido, tal como qualquer outro homem que recorra à
força para violar os direitos de outro. Trata-se, aliás, de um
facto que é devidamente reconhecido no que diz respeito
aos agentes administrativos. Um polícia possui autoridade
para me prender na rua . Contudo, se tentar invadir a minha
casa, nem que seja para executar um mandato judicial, eu
tenho o direito de lhe oferecer resistência, como se de um
gatuno ou um bandido se tratasse, mesmo sabendo-o
portador de uma tal citação e de uma autoridade legal que
o habilitaria a prender-me, se me encontrasse fora de casa.
Ora, teria muito gosto em que me explicassem por que
razão é que, aplicando-se este princípio aos governantes
subalternos, o mesmo não se deveria aplicar igualmente ao
primeiro e mais importante de todos eles. Será razoável
que, por possuir a maior parte da fazenda de seu pai, o
irmão mais velho tenha , por isso, o direito de se apropriar
do quinhão de um dos seus irmãos mais novos? Ou então,

(215]
que um homem rico, proprietano de toda uma reg1ao,
possa retirar desse facto o direito de se apropriar da casa de
campo e do jardim do seu vizinho pobre? O facto de al-
guém possuir legitimamente grande poder e riquezas enor-
mes, muito para além dos que sobram para a maior parte
dos filhos de Adão, está longe de constituir uma desculpa,
muito menos uma razão, para a rapina e a opressão. E é
ainda mais do que rapina e opressão que se trata, quando
um homem prejudica outro sem ter autoridade para o
fazer. Um superior hierárquico não tem maiores direitos
de ultrapassar os limites da autoridade do que o seu subal-
terno. Fazê-lo, não é mais justificável num rei do que num
polícia. Pelo contrário, a violação da lei pelo monarca é
muito mais grave. Na medida em que possui já um qui-
nhão de poder muito maior do que os restantes membros
da comunidade, as suas responsabilidades são também
maiores. Por fim, temos que assumir que, a sua educação,
o cargo que exerce, e os conselheiros de que dispõe, lhe
conferem uma vantagem significativa, concedendo-lhe um
maior conhecimento das medidas do bem e do mal.

§. 203. Podem, portanto, as directivas de um príncipe


ser impugnadas? Sempre que alguém se considere lesado e
imagine que não lhe foi feita justiça, poderá resistir-lhes?
Agir desta forma será perturbar e derrubar todo e qual-
quer regime político, e, em vez de um governo e de ordem
social, tais práticas não produzirão mais do que anarquia e
confusão.

§. 204. Perante estas preocupações afirmo que só se


deve recorrer à força para conter a força injusta e ilegítima.
Todo aquele que a utilizar noutras circunstâncias, chama a
si a justa condenação, de Deus e dos homens. Assim, não
há que temer tais perigos e confusões, como se sugere com
frequência, pelas razões que passo a identificar.

[216]
§. 205. Em primeiro lugar, em alguns países, a pessoa
do príncipe é, por lei, sagrada. Independentemente da-
quilo que ordenar ou fizer, a sua pessoa estará sempre livre
de violência, não se encontrando sujeita à força, nem a
nenhuma censura ou condenação judicial. Não obstante,
é legítimo que se resista aos actos ilegais de qualquer fun-
cionário ou agente subalterno, ou dos seus delegados. A
não ser que o príncipe se coloque num estado de guerra
perante o seu povo, proceda à dissolução do governo
e atire para cada um a responsabilidade de se defender,
tal como se verifica num estado de natureza. Nestas cir-
cunstâncias, quem poderá prever como se desenrolarão
os acontecimentos? E, a este respeito, um reino vizinho
ofereceu já ao mundo um exemplo bastante singular. Em
todas as outras circunstâncias, o carácter sagrado da pessoa
do príncipe liberta-o de todos os inconvenientes, colocando-o
a salvo de qualquer violência ou injúria enquanto se
mantiver à frente do governo. Não há princípio mais
sábio do que este. Não é provável que um príncipe
possa, pessoalmente, perpetrar o mal com frequência,
nem alastrá-lo sobre o seu reino. Por si só, não tem força
suficiente para subverter as leis, nem para oprimir o seu
povo. E mesmo que um príncipe fosse de natureza tão
débil e tão depravada ao ponto de o querer fazer, os in-
convenientes decorrentes de uma tal velhacaria, que, de
tempos a tempos pode ser cometida, mormente quando
um príncipe arrebatado alcança o trono, são amplamente
recompensadas pela paz social e pela segurança oferecida
pelo governo na pessoa do seu primeiro magistrado que,
ao ascender ao trono, se coloca fora de todo o perigo. A
segurança da comunidade está mais bem servida quando
alguns dos seus membros correm, por vezes, o risco de
sofrer algum mal, do que quando a cabeça politica da
república pode ser exposta com facilidade e pela menor
trivialidade.

[217]
§. 206. Em segundo lugar, na medida em que se trate
de um privilégio exclusivo da pessoa do rei, nada obsta a
que se questione, e se ofereça resistência a quem recorrer
injustamente à força, mesmo que possua um mandato real
para o fazer, coisa que a lei não autoriza. É manifestamente
este o caso do agente que possui um mandato de captura
assinado pelo rei para prender um homem. Apesar do man-
dato não conter quaisquer excepções, isso não lhe dá o di-
reito de arrombar a casa de um homem, nem de o executar
em determinados dias ou em determinados lugares. A pró-
pria lei fixa estes e outros limites, que não podem ser trans-
gredidos, nem mesmo por um mandato real. A autoridade
do rei advém, exclusivamente, da lei. Por esta razão, não é
permitido ao monarca conceder a ninguém poderes para
agir ilegalmente, nem para justificar o comportamento ilegal
de quem quer que seja, independentemente de agir em seu
nome. Sempre que ultrapassarem as suas competências, os
mandatos, tal como as ordens de qualquer agente de autoridade,
são tão nulos e insignificantes como os de qualquer particular.
A diferença que separa um agente de autoridade de um
particular é precisamente a seguinte. O primeiro, possui
uma série de competências, com o fim de atingir objectivos
específicos. Coisa que o segundo não tem. Não é o mandato,
mas a competência, que atribui ao agente de autoridade o
direito de agir. Ora, ninguém pode ter competência para a,eir
contra a lei. Em todo o caso, e não obstante este direito de
resistência, a pessoa e a autoridade do rei encontram-se
perfeitamente salvaguardadas, razão pela qual nenhum perigo
poderá advir, seja para o governante, seja para o <
eoverno.

§. 207. Em terceiro lugar, imaginemos um governo


em cujo quadro não é atribuído à pessoa do seu principal
magistrado um carácter sagrado como este. Esta doutrina
da legitimidade de oferecer resistência a todo o exercício
ilegítimo do poder de um monarca de modo algu111 o porá em

[218]
perigo ou perturbará o seu governo, por qualquer trivialidade.
Na medida em que aquele que tiver sido prejudicado por
uma atitude ilegal do governo se puder socorrer da lei para
ser ressarcido pelos danos sofridos, de modo algum lhe
será permitido que recorra à força. O recurso à força só é
legítimo naqueles casos em que um homem se encontrar
impedido de se socorrer da lei. Aliás, é apenas na medida
em que não permite o remédio de um tal recurso à lei, que
a força exercida sobre um homem se reveste de um carácter
hostil. E é apenas esta força que atira para um estado de guerra
quem a ela recorre, tornando legítimo que se lhe resista.
Um homem atravessa-se no meu caminho, de espada em
punho, e exige a minha carteira, na qual tenho, talvez,
algumas moedas. Eu tenho o direito de o matar, se neces-
sário. A outro homem, eu entrego cem libras, para que mas
guarde, enquanto me apeio de uma carruagem. Quando
lhe peço que me devolva o dinheiro, suponhamos que se
recusa, e que saca da sua espada para defender este seu
novo bem, caso eu pretenda recorrer à força para o reaver.
O prejuízo que este homem me causa é cem, ou talvez mil
vezes maior do que aquele que me havia sido imposto pelo
primeiro, que me pretendia roubar alguns cêntimos, e que
eu matei antes que me assaltasse. Contudo, a lei permite-
-me que mate o primeiro, mas não me permite que moleste
o segundo. A explicação disto é simples. O primeiro usou
a força, ameaçando-me a vida, não me deixando tempo para
recorrer à protecção da lei. E quando se fosse embora, seria
tarde demais. A lei não poderia ressuscitar o meu cadáver.
A perda teria sido irreparável. E foi precisamente para
impedir que assim acontecesse, que a lei da natureza me
concedeu o direito de destruir quem se havia colocado num
estado de guerra para comigo, e ameaçado a minha vida.
Já no segundo caso, a minha vida não se encontrava em
perigo e eu continuava a ter a possibilidade de recorrer à lei
para reaver as minhas cem libras.

[219]
§. 208. Em quarto lugar, suponhamos que um gover-
nante utiliza o seu poder para agir ilegalmente, bem como
para bloquear a solução de que a lei dispõe nestas circuns-
tâncias. Ainda assim, até mesmo perante tais actos mani-
festos de tirania, o direito de resistência não perturbará o governo
da comunidade de um momento para o outro, nem por
trivialidades. Se as ilegalidades cometidas pelo monarca
afectarem apenas os interesses privados, então estes homens
terão o direito de se defender e de recuperar pela força, se
necessário, aquilo que pela força ilegítima lhes havia sido
arrebatado. Contudo, não será por terem um tal direito que
estes homens se lançarão de ânimo leve numa contenda em
que seguramente perderão a vida. Um só ou um pequeno
grupo de homens oprimidos não será capaz de perturbar o
governo de uma comunidade, se o corpo social não se
interessar pelo assunto. Do mesmo modo que um louco
em fúria ou um descontente impetuoso não será capaz de
derrubar um governo bem estabelecido. O povo não estará
disposto a segui-lo, como não esteve disposto a seguir o
pnme1ro.

§. 209. Porém, quer estes actos ilegais atinjam a


maioria da população, quer os maleficios e a opressão deles
decorrentes recaiam apenas sobre alguns, se a maioria os
entender como constituindo um precedente e se sentir
ameaçada pelas consequências de um tal comportamento,
e se, para além disso, se convencer, no seu íntimo, que as
suas leis, e com elas as suas propriedades, as suas liberdades
e as suas vidas se encontram em perigo, e com elas também
a sua religião, não consigo descortinar como se poderá
impedir que resista à força ilegal que é usada contra ela?
Confesso que se trata de um grande inconveniente a que
todos os ,rzovernos estão suj eitos, sempre que os governantes se
tornam suspeitos aos olhos do povo, e da condição mais
perigosa em que se podem encontrar. Em todo o caso, não

[220]
se deve ter grande pena dos governantes que se deixarem
atirar para um tal estado, uma vez que o poderiam ter
evitado com facilidade. Na verdade, qualquer governante
que de facto paute a sua actuação pelo bem do seu povo e
pela preservação dos seus bens e das suas leis, sentirá tanta
dificuldade em transmitir estes seus propósitos aos seus
súbditos, como aquela que um pai sente em transmitir aos
seus filhos que os ama e que cuida deles.

§. 210. No entanto, quando se observa por toda a


parte uma discrepância muito grande entre o que se diz e
o que se faz; quando se recorre aos mais variados artificias
para iludir a lei e se abusa da prerrogativa (que mais não é
do que um poder arbitrário sobre certas matérias prede-
terminadas, atribuído ao monarca para agir em proveito
do povo, e nunca para o molestar), exercendo-a de forma
contrária aos objectivos para os quais havia sido insti-
tuída; quando o povo se vê confrontado com o facto de os
ministros e os agentes administrativos subalternos, que
deveriam ser seleccionados pela sua capacidade de promo-
ver o bem público, serem favorecidos ou destituídos em
função da sua disponibilidade para cometerem tais abusos;
quando se registam tentativas sucessivas de recurso a um
poder arbitrário e de favorecimento desleal da religião
que se afigura mais disponível para pactuar com este tipo
de comportamento, apesar de publicamente se proclamar
o contrário; quando se oferece aos dirigentes religiosos
que assim se comportam todo o apoio possível , e, na
eventualidade de não se lhes poder atribuir grande apoio,
mesmo assim o seu comportamento é aprovado e esti-
mado; quando uma longa cadeia de acções mostra que todos os
órgãos da comunidade se comportam desta maneira - como
poderá alguém deixar de perceber, com toda a clareza, o
rumo que os acontecimentos estão a tomar, e não procurar
pôr-se a salvo? Do mesmo modo que qualquer pessoa

[221]
também o faria, se verificasse que o capitão do navio em
que viajava a estava a levar para um mercado de escravos, a
ela e a todos os seus companheiros, mantendo sempre o
mesmo rumo, apesar de os ventos cruzados, as fendas
no casco ou a falta de homens ou de provisões por vezes
forçarem o comandante a arrepiar caminho, por alguns
instantes apenas, já que retomava o rumo africano, logo
que os ventos, o tempo ou as demais circunstâncias o
permitiam.

[222]
Capítulo XIX

DA DISSOLUÇÃO DO GOVERNO

§. 211. Todo aquele que quiser falar com alguma


clareza do tema da dissolução do governo, deverá começar por
estabelecer a distinção entre a dissolução da sociedade e a
dissolução do governo. O fundamento de uma comunidade,
aquilo que leva um homem do estado dissoluto de natureza
para uma sociedade política, consiste no consentimento que
um homem oferece aos demais para com eles se incorporar
numa comunidade política distinta das outras, passando
todos a agir como um só corpo. A invasão e conquista por
parte de uma força estrangeira é a maneira mais frequente
de dissolver esta união, para não dizer a única possível.
Numa tal circunstância, os membros da comunidade não
são capazes de se manter nem de se sustentar como um
corpo inteiro e independente. A unidade desse corpo terá
necessariamente que desaparecer. E todos aqueles que o
integravam ver-se-ão remetidos para o estado em que se
encontravam antes da sua constituição, passando cada um a
gozar da liberdade de se arranjar e de procurar segurança
noutra sociedade qualquer, como bem entender. Sem-
pre que uma sociedade é dissolvida, é manifesto que o seu
governo de modo algum se poderá sustentar. Por esta
razão, as espadas dos conquistadores costumam cortar pela
raiz os governos daqueles que conquistam, desfazendo as
sociedades em pedaços, dispersando a multidão conquis-
tada e afastando-a da dependência e da protecção daquela
sociedade que a deveria ter protegido da violência. O
mundo encontra-se suficientemente instruído nesta forma

[223]
de dissolução de governos e suficientemente avançado
para a permitir, não se justificando, portanto, que nos
detenhamos mais sobre esta matéria. Para além disso, não
são necessários muitos argumentos para que fique de-
monstrado que em face da dissolução da sociedade nenhum
governo se poderá manter. A sobrevivência de um tal
governo seria tão impossível quanto o seria a subsistência
da estrutura de uma casa, cujas portas, janelas e demais
componentes lhe tivessem sido arrancadas e dispersas por
um furacão , ou reduzidas a escombros por um terramoto.

§. 212. Para além de poderem ser destruídos desta


forma, a partir do exterior, os governos podem também ser
dissolvidos a partir do interior.
Em primeiro lugar, quando o le<qislativo é alterado. É ao
legislativo que cumpre a tarefa de reunir e de consolidar
todos os membros de uma comunidade política num só
corpo vivo. Daí que uma sociedade civil se defina pelo
facto de consubstanciar um estado de paz para aqueles
que a integram, ficando o estado de guerra excluído pela
arbitragem proporcionada pelo legislativo na resolu ção dos
diferendos que porventura suijam entre qualquer um dos
seus membros. Ele é a alma que enforma e que imprime vida e
unidade a uma comunidade política . É ele que possibilita as
relações sociais, permitindo que os vários membros de uma
comunidade se influenciem mutuamente e não fiquem
indiferentes uns aos outros. Por isso, a ruptura ou a disso-
lução do legislativo acarreta sempre a dissolução e a morte da
comunidade a que se reporta. Na medida em que a essência
e o factor de união de uma sociedade residem no facto de
possuir uma vontade, é ao legislativo, uma vez estabelecido
pela maioria, que cumpre a declaração e a defesa dessa
vontade. A primeira tarefa de qualquer sociedade, e a mais
fundamental , é a constituição do seu legislativo. Através dele, a
sociedade assegura a continuidade da sua união, sob a direc-

[22-t]
ção das pessoas e os vínculos das leis adoptadas por
aqueles a quem uma tal tarefa foi confiada pelo consenti-
mento e nomeação popular. Sem esse consentimento e
sem essa nomeação nenhum dos membros de uma socie-
dade poderá reivindicar a autoridade que lhe permita
adoptar leis vinculativas sobre os demais. Sempre que qual-
quer homem, ou grupo de homens, se propuser legislar,
sem ter sido encarregado dessa tarefa pelo povo, as leis que
adoptar carecerão de autoridade e, por isso, o povo não terá
nenhuma obrigação de lhes obedecer. Numa tal circuns-
tância, permanecerá livre de qualquer sujeição. Por isso
mesmo, poderá adoptar um legislativo novo, como melhor
entender. E terá plena liberdade para resistir à força de
todos aqueles que, sem qualquer autoridade, lhes preten-
derem impor o que quer que seja. Na medida em que
aqueles a quem a sociedade tiver confiado a tarefa de decla-
ração da vontade pública forem impedidos de a desem-
penhar, e o seu lugar for usurpado por outros, sem, con-
tudo, contarem com qualquer autoridade ou delegação
popular para o efeito, então cada um dos membros dessa
sociedade reassumirá a sua vontade própria.

§. 213. Trata-se de uma situação habitualmente


provocada pelos membros da comunidade que dão mau
uso ao poder que têm. Não é fácil identificar correc-
tamente quando é que um abuso do poder desta natureza
se verifica, ou a quem o atribuir, quando se desconhece a
forma de governo em que se opera. Suponhamos, pois,
que o poder legislativo é atribuído a uma das três pessoas
ou grupos seguintes.
1. Uma única pessoa hereditária que detenha per-
manentemente o poder executivo supremo, e com
capacidade, seja para convocar, seja para dissolver,
os outros dois poderes da comunidade, dentro
de certos prazos .

[225]
2. Uma assembleia constituída pela nobreza here-
ditária.
3. Uma assembleia integrando os representantes da
comunidade, eleitos pelo povo pro tempore.
Identificadas estas três formas de governo, torna-se
evidente o seguinte:

§. 214. Em primeiro lugar, que o legislativo é alterado


quando uma tal pessoa singular ou um príncipe substitui as
leis que traduzem a vontade da sociedade, declarada pelo
legislativo, pela sua vontade arbitrária. Com efeito, é ao
legislativo que cumpre a tarefa de fixar as leis e as regras
que deverão ser executadas e obedecidas universalmente.
Assim, sempre que forem estabelecidas e implementadas
normas e regras distintas daquelas que haviam sido adop-
tadas pelo legislativo, legitimamente constituído pela socie-
dade, estaremos, evidentemente, perante uma alteração do
legislativo. Todo aquele que introduzir novas leis numa
sociedade, ou subverter as que já existiam, sem que essa
sociedade para isso o tenha autorizado, nomeando-o para
o efeito, estará a renegar e a derrubar o poder respon-
sável pela produção legislativa, e, por isso, a estabelecer um
legislativo novo.

§. 215. Em segundo lugar, que o legislativo é alterado


quando o príncipe impede que se reúna a seu devido
tempo, ou que legisle livremente, na prossecução dos
objectivos para que havia sido constituído. Não, um legis-
lativo não consiste apenas num grupo de homens, nem da
sua reunião. Torna-se necessário que estes homens tenham
igualmente a liberdade e a oportunidade de debater e de
aperfeiçoar tudo o que, no seu entender, concorre para o
bem da sociedade. Tanto assim é que o legislatil;o é na
verdade alterado, sempre que lhe forem retiradas, ou adulte-
radas, a liberdade e a possibilidade concreta de legislar, e a

(226]
sociedade se vir privada do exerClclO do seu poder. Os
governos não são constituídos por meros nomes, mas pelo
uso e pelo exercício dos poderes que lhes foram cometidos.
Por esta razão, todo aquele que retirar ou que beliscar a
liberdade de acção do legislativo devidamente reunido em
período de legislatura, estará, com efeito, a deitar-lhe a mão
e a pôr um fim ao governo.

§. 216. Em terceiro lugar, que o legislativo é igualmente


alterado quando, sem o consentimento e ao arrepio do
interesse comum do povo, o príncipe exerce um poder
arbitrário para alterar o colégio de eleitores ou o sistema
eleitoral. Se forem outros os eleitores, e não aqueles que a
sociedade autorizou para o efeito, ou se a eleição decorrer
de forma distinta da que havia sido prescrita pela sociedade,
os que vierem a ser eleitos de modo algum poderão
constituir um órgão legislativo nomeado pelo povo.

§. 217 . Em quarto lugar, que entregar um povo à


sujeição de uma potência estrangeira, seja pelo príncipe,
seja pelo legislativo, comporta obviamente uma alteração
{!islativo, e, portanto, uma dissolução do governo. É com
do le<
o objectivo de salvaguardarem a sua integridade, numa
comunidade livre e independente, e regida pelas suas pró-
prias leis, que os homens se reúnem em sociedade, o
que se perde sempre que um povo é entregue ao poder de
outros.

§. 218 . Em circunstâncias como aquelas que têm


vindo a ser apresentadas, a dissolução do governo deve, obvia-
mente, ser imputada ao príncipe. Ele detém a força , o
tesouro e os agentes do Estado à sua disposição, chegando,
por vezes, a deixar-se persuadir, por si mesmo ou por
certos aduladores, de que, enquanto supremo magistrado,
se encontra para além de qualquer controlo. Ele é o único

[227]
capaz de promover tais alterações sob a capa da sua auto-
ridade legal, ao mesmo tempo que possui os instrumentos
que lhe permitiriam aterrorizar e suprimir todos aqueles
que se lhe opusessem, tratando-os como facciosos, sedi-
ciosos e inimigos do governo. E nenhuma outra parcela do
legislativo, ou do povo, é capaz, só por si, de tentar sequer
alterar o legislativo fora de um contexto de clara e mani-
festa rebelião, que seria prontamente identificada. Em todo
o caso, sempre que uma tal rebelião for bem sucedida, os
seus efeitos não serão muito diferentes daqueles decor-
rentes de uma invasão estrangeira. Para além disso, nestas
formas de governo, o príncipe detém o poder de dissolver
as demais partes do legislativo, transformando, assim, todos
os outros que o integram em meras pessoas privadas . Por
esta razão, com a sua oposição, ou sem o seu consenti-
mento, ninguém poderá alterar o legislativo através da
aprovação de uma lei, uma vez que o consentimento do
monarca é necessário para que os decretos do legislativo
possam ser sancionados como leis . Porém, na medida em
que as outras partes do legislativo participem de algum
modo num atentado contra o governo, promovendo-o, ou
permitindo-o, sem nada fazer para o impedir, estarão a
ser culpadas e a partilhar deste que é certamente o maior
dos crimes que os homens podem cometer uns contra os
outros.

§. 219. Existe ainda outra mane1ra de dissolver um


governo, a saber, quando aquele que tem à sua conta o
poder executivo supremo negligenciar e abandonar o seu
cargo, e as leis, apesar de terem sido devidamente adop-
tadas, deixarem de ser executadas. Manifestamente, isto
equivaleria a atirar a sociedade para a anarquia mais com-
pleta, e à dissolução, de facto, do governo. As leis não são
adoptadas por capricho, mas para, uma vez implementadas,
constituírem os laços da sociedade, capazes de manter cada

[228]
membro do corpo político no lugar e nas funções que lhe
são próprios. Quando tal deixar de se verificar por com-
pleto, então, o próprio governo ter-se-á extinto e o povo
transformar-se-á numa multidão confusa, sem ordem nem
unidade. Onde a justiça deixar de ser administrada para a
garantia dos direitos dos homens, nem sobrar um poder
dentro da comunidade capaz de dirigir a força pública ou
assegurar as necessidades dos membros da comunidade,
seguramente não restará qualquer governo. Onde as leis não
puderem ser aplicadas, é como se não existissem quaisquer
leis. E um governo sem leis será, presumo, um autêntico
mistério político, inconcebível para as capacidades do
homem, e incompatível com as sociedades humanas.

§. 220. Nestes, como em todos os outros casos,


quando se dissolve o governo, as pessoas ficam livres para cui-
darem de si próprias e para adoptarem um novo legislativo,
diferente do anterior, quer quanto às pessoas que o
integram, quer quanto à forma de que se reveste, ou de
ambos, do modo como entenderem ser mais conveniente
para o seu bem e para a sua segurança. Uma sociedade
nunca poderá perder, por culpa de outros, o direito inato e
originário de assegurar a sua existência, que só garantirá
através do estabelecimento de um poder legislativo e da
execução justa e imparcial das leis que ele promulgar. Para
além disso, a condição humana não pode ser tão miserável
ao ponto de só ser permitido o recurso a este remédio
quando for já tarde demais. Dizer que o povo pode cuidar
de si próprio e substituir o legislativo, apenas a partir do
momento em que a opressão ou as artimanhas dos seus
governantes, ou a invasão de uma potência estrangeira ,
tiverem dado cabo do seu legislativo anterior, equivalerá a
dizer que só se poderá libertar quando for demasiado tarde,
e o mal já não tiver cura. Com efeito, seria o mesmo que
pedir-lhes para primeiro se deixarem escravizar, antes de se

[229]
tentarem libertar, e que esperassem que lhes fossem pos-
tos os grilhões para poderem agir como homens livres.
Quem adoptar este comportamento, e permanecer nele,
será objecto de escárnio, pois libertação é coisa que jamais
encontrará. Os homens nunca estarão a salvo da tirania, se
só lhe puderem escapar a partir do momento em que se
encontrarem complemente sob o seu jugo. É por isso que
o povo não só tem o direito de escapar à tirania, como
também tem o direito de a impedir.

§. 221. Quer isto dizer, em segundo lugar, que um


governo se dissolve, ainda noutro momento, a saber, quando
o legislativo, ou o príncipe, actua ao arrepio do encargo
que lhe foi confiado.
Em primeiro lugar, o legislativo atraiçoa a confiança nele
depositada, quando se propõe invadir a propriedade dos
seus súbditos, ou elevar-se, a si, ou a quaisquer outros
membros da comunidade, à condição de donos e senhores
arbitrários das liberdades ou dos bens do povo.

§. 222. A razão pela qual os homens se reúnem


em sociedades, não é outra senão a preservação das suas
propriedades. E o objectivo que os leva a escolher e a
atribuir poder a um legislativo decorre da necessidade de se
erguerem leis e regras, quais guardiões e muralhas de pro-
tec ção das propriedades de todos os membros da sociedade
e, bem assim, para limitar o poder e moderar a capacidade
de domínio de cada um dos seus membros. Na verdade,
jamais se poderá supor que a vontade da comunidade
aponte para a atribuição ao legislativo de um poder que lhe
permita destruir precisamente aquilo que todos procura-
ram salvaguardar, quando se reuniram em sociedade civil.
Aliás, foi para isso que, uma vez juntos em sociedade,
os homens se submeteram ao legislativo por eles criado.
Por isso, os legisladores que tentarem violar ou assenhorear-se

[230]
da propriedade do povo, ou reduzi-lo à escravidão sob um
poder arbitrário, estarão a colocar-se num estado de guerra
perante toda a comunidade. E, numa tal circunstância, o
povo fica dispensado de qualquer dever de obediência,
restando-lhe o refúgio comum que Deus concedeu a todos
os homens contra a força e a violência. Assim, sempre
que o legislativo transgredir esta regra fundamental da
sociedade, e levado pela ambição, pelo medo, pela loucura
ou pela corrupção, procurar obter, para si próprio ou para outros,
um poder absoluto sobre as vidas, as liberdades e as pro-
priedades do povo, estará a violar o mandato que lhe foi
confiado. Ao agir deste modo, o legislativo estará a come-
ter um abuso de confiança, perdendo, por isso, todo o
direito ao poder que lhe havia sido atribuído pelo povo
para que o exercesse para fins perfeitamente distintos
daqueles para os quais o estava a exercer. Deste modo, o
poder é transferido de novo para o povo, que passa, em
consequência, a deter o direito de reassumir a sua liber-
dade original, e, correlativamente, de estabelecer um novo
legislativo (como bem entender) de modo a assegurar a
sua protecção e a sua defesa - objectivo, aliás, que levou os
homens a integrarem-se em sociedades. O que aqui ficou
dito em relação ao legislativo em geral aplica-se, igual-
mente, ao executor supremo, a quem foi confiado o duplo
encargo de participar no legislativo e de garantir, em
última instância, a execução da lei. Ora, na medida em que
se propuser impor a sua vontade arbitrária como lei da
sociedade, o príncipe estará a violar este duplo encargo que lhe
fora confiado. E o mesmo se passará quando recorrer à força,
às finanças ou aos agentes da sociedade para corromper
os representantes do povo e conquistá-los para os seus pro-
pósitos. Ou quando abertamente comprometer os eleitores
e procurar obrigá-los a eleger aqueles que havia já conquis-
tado para os seus desígnios através de pedidos, ameaças,
promessas ou do que quer que seja. Ou ainda, quando se

[231]
servir dos eleitores para fazer eleger deputados que se
haviam já comprometido com ele, sobre o que votar e
que legislação adoptar. Assim, como apelidar estes propó-
sitos de controlar candidatos e eleitores e alterar o processo
eleitoral, senão de outras tantas tentativas de cortar o go-
verno pela raiz e de envenenar a própria fonte da segurança
pública? O povo reservou para si a escolha dos seus repre-
sentantes para que constituíssem outros tantos muros de
protecção das suas propriedades. De modo algum, por-
tanto, poderia permitir que os seus representantes não fos-
sem eleitos livremente, para, uma vez assim eleitos, serem
livres de agir e de decidir, conforme o que, após um exame
e um debate apurados, concluam ser exigido pelo bem
público ou para a salvaguarda das necessidades da comu-
nidade. E esta é uma tarefa que de modo algum poderá
ser assegurada por quem tenha decidido o seu voto, sem
antes ter participado nos debates e ponderado as razões
apresentadas por todos os lados. Procurar manipular
desta maneira uma assembleia e substituir os verdadeiros
representantes do povo e legisladores da sociedade, por
cúmplices declarados dos seus propósitos arbitrários, cons-
titui, com toda a certeza, um abuso de confiança flagrante, e
a declaração mais evidente de um propósito de subver-
são do governo. Se quaisquer dúvidas restarem sobre
esta matéria, elas desaparecerão por completo a partir do
momento em que se tiver igualmente em conta as recom-
pensas e os castigos que costumam ser adoptados para
a prossecução de tais objectivos, bem como as artima-
nhas a que se recorre para a perversão da lei, ou para a
destruição de tudo e de todos os que se atravessem no
caminho de tais desideratos, não consentindo nem se
curvando perante a traição das liberdades do seu país. Não
é dificil determinar qual é o poder que, na sociedade,
deverá ser atribuído aos que o utilizam para fins contrários
àqueles para os quais este poder lhes havia sido confiado

[232]
em primeiro lugar. E como todos seguramente concor-
darão, quem tentar algo do género, de modo algum voltará
a merecer confiança.

§. 223. Contra argumentar-se-á, talvez, que alicerçar


os governos no povo, ignorante e sempre insatisfeito, na
sua opinião inconstante e nos seus humores incertos,
equivaleria a expô-lo à ruína. E poderá dizer-se ainda que
nenhum governo será capaz de subsistir por muito tempo, se o
povo puder estabelecer um legislativo novo, sempre que se
sinta molestado pelo anterior. Tal, contudo, não corres-
ponde à verdade; muito pelo contrário. Contrariamente
àquilo que alguns parecem sugerir, as pessoas não aban-
donam as suas velhas formas de governo com facilidade.
É já com bastante dificuldade que se deixam convencer da
necessidade de se corrigir as falhas que reconhecem na-
quelas a que já estão habituados. Se, por acaso, forem
detectadas imperfeições na constituição, seja de origem,
seja adventícias, introduzidas com o decorrer do tempo ou
pela corrupção dos governantes, não será fácil alterá-las,
nem mesmo quando se reconhece universalmente existir
uma oportunidade de o fazer. Este reino tem testemu-
nhado inúmeras revoluções, tanto no presente, como no
passado. Através de todas elas tem sido esta lentidão e a
aversão que o povo evidencia, quando se trata de aban-
donar a sua velha constituição, que nos tem mantido uni-
dos, ou que, após alguns intervalos em que se levaram a
cabo tentativas infrutíferas em contrário, nos tem trazido
de volta ao nosso velho legislativo, composto por rei,
lordes e comuns. E pese embora o facto de certas provo-
cações conduzirem a que alguns dos nossos reis perdessem
as suas coroas, o povo nunca chegou ao extremo de ins-
taurar uma nova dinastia.

§. 224 . Dir-se-á, porém, que este argumento mais não

[233]
faz do que lançar um fermento para rebeliões frequentes. Ao
que responderei o seguinte:
Em primeiro lugar, que este argumento não é mais
sedicioso do que qualquer outro. Os governantes podem
proclamar tantas vezes e tão alto como lhes aprouver, que
são sagrados e divinos, filhos de Júpiter, que desceram dos
céus, ou que deles receberam o poder que detêm; poder-
-se-ão fazer passar por aquilo que quiserem. Quando o
povo se vir atirado para a miséria e exposto aos abusos do poder
arbitrário, o resultado será sempre o mesmo. O povo que for
habitualmente mal governado e de forma contrária a todo o
direito, não hesitará em se desembaraçar de um fardo que
lhe pesa, e muito, logo que tenha a oportunidade de o
fazer. Desejará e procurará uma tal oportunidade, que, nas
constantes mutabilidade, debilidade e contingência que
caracterizam as coisas humanas, não tardará a apresentar-se.
Só quem tiver vivido muito pouco tempo neste mundo
poderá ter alguma dificuldade em encontrar entre os seus
contemporâneos exemplos do que afirmo. E só quem tiver
lido muito pouco é que não será capaz de encontrar
exemplos disto em todos os governos da terra.

§. 225. Em segundo lugar, há que sublinhar que


as revoluções não resultam de qualquer desgoverno menor
que se produza na gestão dos assuntos públicos. Os povos
suportam erros <~raves dos seus dirigentes, muitas leis iníquas
e inconvenientes, bem como todos os deslizes de que a
fragilidade humana é capaz, sem motim, nem murmúrio.
Mas, se uma cadeia longa de abusos, prevaricações e
artificias, apontando todos para uma mesma direcção,
tornar os propósitos dos governantes evidentes para o
povo, e ninguém puder ignorar a circunstância em que se
encontra e para onde está a se r empurrado, ninguém se
poderá espantar que o povo se levante e procure entregar o
poder a mãos mais seguras, que o exerçam na concre-

[234]
tização dos fins para os quais os governos foram on-
ginalmente estabelecidos. Quando o poder é utilizado
para outros fins, os nomes antigos e as formas solenes de
governo de nada valem, já que o povo, em vez de ver a sua
situação melhorada, estará muito pior do que quando vivia
num estado de natureza, ou de anarquia pura. Os incon-
venientes são tão grandes e tão imediatos como o eram no
estado de natureza, mas bem mais dificeis, e as possibili-
dades de remédio encontram-se mais distantes.

§. 226. E , em terceiro lugar, é de sublinhar que esta


doutrina , segundo a qual o povo detém o poder de procurar
continuamente a sua própria segurança, dotando-se de um
novo legislativo sempre que os seus legisladores violarem a
confiança neles depositada e invadirem as suas proprie-
dades, constitui a melhor defesa contra a rebelião e a maneira
mais provável de a impedir. A rebelião não é uma oposição
a pessoas, mas sim à autoridade, que se situa exclusiva-
mente na constituição e nas leis de um governo. Por isso é
que rebeldes, em sentido estrito, sejam eles quem forem, são
aqueles que recorrem à força para abrir caminho e para
justificar as suas violações da constituição e das leis de um
governo. No momento em que os homens se integraram
numa sociedade e num governo civil, passaram a assegurar
a preservação das suas propriedades, da paz e da união
entre todos, abdicando da força e recorrendo às leis. Assim,
rebeldes são aqueles que recorrem de novo à força para a
opor às leis, e que reintroduzem os homens num estado de
guerra. Ora, são os poderosos aqueles que mais facilmente
assim agirão, sob a capa da autoridade de que se encontram
investidos, da tentação da força de que dispõem e da adula-
ção dos que os rodeiam. E a maneira mais apropriada
de prevenir o mal é mostrar aos que se possam encontrar
mais tentados de o praticar, quanto é injusto e os perigos
em que incorrem se cederem à tentação de o fazer.

[235]
§. 227 . Tanto no primeiro caso acima mencio-
nado, em que o legislativo é alterado, como no segundo,
em que os legisladores actuam de forma contrária aos
objectivos para que foram empossados, os responsáveis por
tais eventos serão culpados de rebelião . Quem recorrer à
força para derrubar o legislativo de uma sociedade e as leis
que tiver adoptado no cumprimento da missão que lhe
fora confiada, estará a dar cabo da arbitragem que havia
sido estabelecida por todos os membros da comunidade
para a resolução pacífica de todas as suas controvérsias,
e como barreira para que não recaíssem num estado de
guerra. Na medida em que alguém destruir, ou alterar, o
legislativo de uma sociedade, estará a apropriar-se deste
poder decisivo, que ninguém poderá possuir a não
ser por nomeação e por consentimento do povo. Todo
aquele que, deste modo, destruir a autoridade criada pelo
povo, que mais ninguém poderá estabelecer, e introduzir
em sua substituição um poder novo, ao arrepio da von-
tade popular, estará na verdade a criar um estado de guerra,
que corresponde precisamente ao exercício da força sem
autoridade. Suprimindo o legislativo estabelecido pela
sociedade (cujas decisões constituíam instrumento de uni-
dade e eram acatadas tal como se decorressem da própria
vontade popular) estará a desfazer o nó que a constitui e
a expor o povo a um novo estado de guerra. E se, no quadro
do primeiro caso referido, aqueles que se apropriam do
legislativo pela força são rebeldes, os próprios legisladores, no
quadro do segundo, e tal como ficou demonstrado, não
podem ser apelidados de outra coisa. Quando aqueles
que foram empossados para assegurar a protecção e a
preservação do povo, das suas liberdades e das suas pro-
priedades, recorrem à força para as invadir e para se
apropriarem delas, colocando-se, assim, num estado de
guerra perante aqueles que os haviam eleito para serem os
protectores e os guardiões da sua paz, transformam-se,

[236]
verdadeiramente, e com as mawres agravantes, em
rebellantes, em rebeldes.

§. 228. Dir-se-á que esta doutrina estabelece um quadro


de legitimação da rebelião . Que ela é destrutiva da paz no
mundo, e que, por isso, não pode ser permitida. Dizer ao
povo, argumentar-se-á, que fica dispensado de qualquer
obrigação de obediência, sempre que os seus governantes
atentarem contra as suas liberdades e as suas propriedades,
e que poderá oferecer resistência à violência ilegítima que
vier a ser perpetrada por aqueles que abusarem da con-
fiança neles depositada, invadindo as propriedades alheias,
constitui um convite para guerras civis e para lutas in-
testinas. Porém, quem assim pensar deverá igualmente, e
pelas mesmas razões, defender que nenhum homem ho-
nesto poderá resistir aos ladrões ou aos piratas, na medida
em que se o fizer poderá ocasionar desordens e derra-
mamentos de sangue. A verdade é que, nestas circuns-
tâncias, os danos resultantes da resistência ao invasor de
modo algum poderão ser imputados àquele que defende os
seus direitos, mas àquele que invadir o seu vizinho. Se, ao
homem honesto e inocente, se exigir, em nome da paz,
que entregue em silêncio tudo o que possui a quem se
propuser roubá-lo violentamente, importa reflectir sobre o
tipo de paz que passará a vigorar na terra: uma paz assente
sobre a violência e a rapinagem e mantida para o beneficio
exclusivo de ladrões e de opressores. Quem louvaria a paz
admirável que se estabeleceria entre os poderosos e os
humildes, por virtude de o cordeiro, sem a menor resis-
tência, oferecer a garganta ao lobo todo poderoso para
que a despedaçasse? O covil de Polifemo oferecer-nos-ia um
modelo perfeito deste tipo de paz e deste tipo de governo,
se a Ulisses e aos seus companheiros mais não restasse
do que resignarem-se a serem devorados. E sem dúvida
Ulisses, que era um homem prudente, optaria então pela

[237]
obediência passiva e exortaria os seus companheiros a que se
submetessem em silêncio, explicando-lhes a importância
da paz para a humanidade, e mostrando-lhes os inconve-
nientes que poderiam decorrer de uma eventual resistência
a Polifemo, que então detinha grande poder sobre eles.

§. 229. A finalidade do governo é o bem da huma-


nidade. E o que será melhor para a humanidade? Que o povo
se encontre exposto à vontade sem limites da tirania?
Ou que os governantes, por vezes, encontrem oposição,
quando se tornam exorbitantes no uso do seu poder, e, em
vez de procurarem a preservação das propriedades do seu
povo, o utilizam para as destruir?

§. 230. E tão pouco se poderá criticar esta doutrina


dizendo que dela decorrerão grandes males, tantos quantos
os que serão provocados se se permitir a actuação de
qualquer cabeça leviana ou espírito turbulento que se pro-
ponha alterar o governo. Estes, é certo, procurarão agitar a
sociedade e provocar a rebelião sempre que entenderem,
com isso, no entanto, estarão a ditar a sua justa ruína e
perdição. O povo é mais disposto a sofrer do que a fazer
justiça, resistindo aos seus governantes. Não se agitará
contra eles, portanto, até que os males causados atinjam a
generalidade da sociedade e os seus propósitos mal inten-
cionados se tornem visíveis aos olhos de todos, ou até que
as consequências das suas actuações venham a ser sentidas
pela maioria da população. O povo não se deixa comover
por exemplos particulares de injustiça ou de opressão que
se verifiquem aqui e ali, contra um ou outro desgraçado.
Porém, quem deverá ser culpabilizado se, por acaso, se
formar um consenso, consubstanciado em provas con-
cretas, da ocorrência de atentados contra as suas liberdades,
e o curso geral dos acontecimentos lhe suscitar fortes
suspeitas das intenções maléficas dos seus governantes? Será

(238]
legítimo censurar o povo por agir como as criaturas racio-
nais e por não poder pensar nas coisas a não ser como de
facto as vê e as percebe? Não deverá a culpa ser atribuída,
antes, àqueles que conduzem as coisas ao ponto de o povo
as não poder ignorar? Reconheço que o orgulho, a am-
bição e as desordens de certos homens particulares causa-
ram, por vezes, grandes desordens em certas comunidades
e que o facciosismo tem sido fatal para repúblicas e para
reinos. Só a história, na sua imparcialidade, nos poderá
mostrar a origem verdadeira das desordens que afectam as
comunidades políticas. Só ela nos poderá esclarecer se os
males decorrem, com maior frequência, da libertinagem dos
povos e de um desejo de derrubarem a autoridade legítima
dos seus governantes, ou da insolência dos governantes e das
suas tentativas para adquirirem e exercerem um poder arbi-
trário sobre o povo. Ou, então, por outras palavras, se é
a opressão, ou a desobediência , que conduz à desordem.
Uma coisa, no entanto, é certa. Todo aquele qu e, sendo
súbdito ou governante, se propuser invadir os direitos de
um príncipe ou de um povo, e lançar as bases para derrubar
a constituição e o aparelho de qualquer governo justo, será
culpado do maior crime de que um homem é capaz, e terá
de responder por todos os maleficios que o desmembra-
mento de um governo acarreta para um país, em termos
de sangue, de rapina e de desolação. Quem o fizer será
justamente considerado praga e inimigo comum da huma-
nidade, e deverá ser tratado como tal.

§. 231. Todos concordam na legitimidade de se recorrer


à força contra os súbditos e os estrangeiros que atentem, pela
força , contra as propriedades de qualquer povo. Já quando
é um governante a fazê-lo, ultimamente tem-se vindo a
questionar se alguém detém um tal direito de lhe resistir,
como se aqueles a quem a lei atribui maiores privilégios,
possuíssem também o poder de violar exactamente as leis

[239]
que os atiraram para um posto superior ao dos seus irmãos.
Na verdade, a sua dignidade superior torna a ofensa ainda
mais grave. O governante que atentar contra as proprie-
dades dos seus súbditos estará a agir como um ingrato, pois
a lei já o favorece com um maior quinhão de poder e de
benefícios, e estará igualmente a faltar ao encargo que lhe
fora confiado pelos seus irmãos.

§. 232. Aqueles que usarem da força sem terem o direito


de o fazer, como é o caso de todos os membros de uma
sociedade que a ela recorrem sem se encontrarem devida-
mente habilitados para o efeito pelas leis, colocam-se num
estado de guerra relativamente àqueles contra quem o fazem.
Numa tal circunstância, todos os laços sociais se dissolvem,
todos os direitos se desintegram, e cada homem passa a
deter o direito de se defender a si próprio e de resistir ao
agressor. Isto é tão evidente que até o próprio Barclay, o
grande defensor do poder e do carácter sagrado dos reis, se
vê forçado a confessar que, nalguns casos, o povo pode
legitimamente resistir ao seu rei, inclusive num capítulo em
que pretende demonstrar que a lei divina retira ao povo
qualquer possibilidade de rebelião. Torna-se, portanto,
evidente que, até mesmo pela sua própria doutrina, e na
medida em que o povo pode, por vezes, legitimamente
resistir ao seu rei, nem sempre a resistência é rebelião. As suas
palavras são as seguintes: Quod siquis dicat, Ergone populus
tyrannicae crudelitati et furori jugulum semper praebebit? Ergone
multitudo civitates suas famae ferro, et jlammâ vastari, seque,
conjuges, et /iberos fortunae ludibrio et tyranni libidini exponi,
inque omnia vitae pericula omnesque miserias et mo/estias à Rege
deduci patientur? Num ii/is quod omni animamtium generi est à
naturâ tributum , denegari debet, ut se. Vim vi repellant, seseq; ab
injuriá tueantur? Huic brevitur responsum sit, Populo universo
non negari difensionem, quae juris natura/is est, neque ultionem
quae praeter naturam est adversus regem concedi debere.

[240]
Quapropter si Rex non in singularis tantum personas aliquot
privatum odium exerceat, sed corpus etiam Reipublicae, cujus ipse
caput est, i.e. totum populum, vel insignem aliquam ejus partem
immani et intolerandá saevitiá seu tyrannide divexet; populo,
quidem hoc casu resistendi ac tuendi se ab injuriá potestas competit,
sed tuendi se tatum, non enim in principem invadendi: et resti-
tuendae injuriae illatae, non recedendi à debitá reverentiá propter
acceptam injuriam. Praesentem denique impetum propulsandi non
vim praeteritam ulciscendijus habet. Horum enim alterum à naturá
est, ut vitam scilicet corpusque tueamur. Alterum vero contra natu-
ram, ut inferior de superiori supplicium sumat. Quod itaque popu-
lus malum, antequam factum sit, impedire potest, ne fiat, id post-
quam Jactum est, in Regem authorem sceleris vindicare non potest:
populum igitur hoc amplius quam privatus quisquam habet: Quod
/mie, vel ipsis adversariis judiei bus, excepto Buchanano, nullum nisi
in patientia remedium superest. Cum ille si intolerabilis tyrannis est
(modicum enim ferre omnino debet) resistire cum reverentiá possit.
(Barclay, contra Monarchom. Livro 3, capítulo 8).
Em português:

§. 233. No entanto, a questão que se coloca é a seguinte:


terá o povo de se submeter, sempre, à crueldade e à ira da tirania?
Terá de ver as suas cidades serem pilhadas e reduzidas a cinzas,
as suas mulheres e os seus filhos expostos à luxúria e à fúria do
tirano, as suas famílias, e, com elas, também eles, reduzidos pelo
seu rei à ruína e a todas as misérias da indigência e da opressão,
e, no entanto, permanecer quieto e calado? Será que o homem é o
único ser que não tem o direito de se proteger de injúrias e de à
força opor a força, privilégio comum concedido generosamente pela
natureza a todos os outros seres? Respondo lembrando que a
autodifesa integra o direito 11atural, não podendo ser negada a
uma comunidade, até mesmo contra o seu próprio rei . No entanto,
ninguém poderá procurar vingar-se do seu rei. A lei da natureza
não o permite. Assim, se o monarca se provar odioso, não apenas
para algumas pessoas particulares, mas para com todo o corpo da

[241]
comunidade de que ele é a cabeça, e se com propósitos iníquos e
intoleráveis tiranizar cruelmente o conjunto ou uma parte consi-
derável do povo, numa tal circunstância, o povo tem o direito de
lhe ciferecer resistência e de se difender das injúrias que lhe são
perpetradas. Mas tem de o fazer com cuidado. O povo tem o
direito de se difender, mas não tem o direito de atacar o seu rei.
Pode procurar reparar os danos que llze tiverem sido infligidos, mas
em caso algum ceder a provocações e exceder os limites do dever de
reverência e de respeito. Pode repelir as tentativas de opressão de
que estiver a ser alvo, mas não procurar vingança por violências
passadas. É natural que d~fendamos a nossa vida e o nosso corpo.
Mas é contra a natureza que um inferior castigue o seu superior.
O povo pode impedir o monarca de o maltratar. Quando o mal
estiverJeito, no entanto, não pode vingar-se do seu rei, mesmo que
tenha sido ele o autor da pat[faria . É este o privilégio do povo,
em geral, superior àquele que qualquer pessoa privada poderá
possuir. Assim, até mesmo os nossos adversários (com a excepção
de Buclzanan) difertdem que, perante o seu rei e os seus eventuais
desmandos, aos prir;ados não resta outro remédio para além da
paciência . O povo, no entanto, possui o direito de, respeitosa-
mente, oferecer resistência à tirania intolerável, embora a deva
suportar, quando for apenas moderada .

§. 234. Até este limite, o grande defensor do poder


monárquico admite a resistência.

§. 235. É certo que lhe adicionou duas limitações, se


bem que inconsequentes.
Em primeiro lu<~ar, esclarece que tem de ser feita com
reverenCia.
Em sej?undo luj?ar, tem de ser sem retribuição, nem
castigo. A explicação oferecida é que um inferior não pode
cast(~ar um superior.
Ora, explicar como se poderá resistir à força sem atacar,
ou atacar com rer;erência é tarefa que exige grande habilidade.

[242]
Todo aquele que se opuser a um ataque armado apenas
com um escudo para travar os golpes que lhe forem
dirigidos, ou então adoptando uma postura ainda mais
respeitosa, não agarrar numa espada para enfraquecer a
ousadia e a força do assaltante, esgotará rapidamente a sua
capacidade de resistência, e constatará que uma tal defesa
serve apenas para atrair abusos ainda maiores. É um tipo de
resistência tão ridículo quanto o modo de combate citado
por Juvenal: ubi tu pulsas, ego valupo tantumll _ E o desfecho
de um tal combate será inevitavelmente igual àquele que
juvenal nos descreve:

- Libertas pauperis haec est:


pulsatus rogat, et pugnis concisus, adorat,
ut liceal paucis cum dentibus inde reverti12 .

Será sempre este o desfecho de uma tal resistência


imaginária, no quadro da qual não é permitido a um
homem devolver os ataques que lhe forem dirigidos. Por
isso, todo aquele que tiver o direito de resistir, terá igualmente de
ter o direito de lutar. De resto, a partir daqui, o nosso autor,
ou seja lá quem for, poderá levar pancadas na cabeça ou
estocadas no rosto, com toda a reverência e com todo o
respeito que entender. No fundo, e ao que creio, quem for
capaz de reconciliar pancadas com reverência merecerá
uma boa tareia, civilizada e respeitosa, sempre que sUija a
oportunidade de lha administrar.
Por outro lado, a segunda limitação que nos é pro-
posta, nos termos da qual um iY!ferior não pode cast(ear um
superior, está inequivocamente correcta em termos gerais e

li "Quanto mais go lpes me diriges, mais recebo ". N . T.


l2 " Esta é a liberdade do pobre. Quanto mais golp es recebe mais
implora c ao ca ir, durante o co mbate, prostra-se para que possa ao menos
preservar os seus poucos dentes". N. T.

[243]
sempre que se verifique, de facto, uma tal relação de supe-
rioridade entre as partes em contenda. No entanto, resistir
à força com a força, pressupõe, à partida, um estado de
guerra que nivela as partes em contenda, eliminando todas as
relações anteriores de reverência, de respeito e de superio-
ridade. Neste contexto, apenas subsiste uma desigualdade
entre os beligerantes, já que aquele que resistir a um agres-
sor injusto tem uma vantagem sobre ele, uma vez que, se o
vencer, terá o direito de o punir, quer pela violação da
paz, quer por todos os maleficios daí advenientes. Daí que
o próprio Barclay, noutra parte de seu texto, e de forma
mais coerente com o seu próprio pensamento, negue que
alguma vez se possa legitimamente resistir a um rei. No
entanto, não deixa de assinalar duas circunstâncias em
que se pode retirar um rei do trono. Estas são as suas
palavras:
Quid ergo nulline casus incidire possunt quibus populo sese
erigire atque in Regem impotentius dominarem arma capere et
invadere jure suo suâque authoritate liceat? Nu/li certe quamdiu
Rex manet. Semper enim ex divinis id obsta!, Regem hono-
rificato; et qui potes ta ti resistit, Dei ordinationi resistit: non
aliàs igitur in eum populo potestatas est quam si id committat
propter quod ipso jure rex esse desinat. Tunc enim se ipse
principatu exuit atque in privatis constituit liber: Hoc modo
populus et superior dficitur, reverso ad eum se. jure i/lo quod ante
regem inauguratum in interregno habuit. At sunt paucorum
generum commissa ejusmodi quae hunc lffectum pariunt. At
ego cum plurima animo perlustrem, duo tantum invenio, duos,
inquam, casus quibus rex ipso facto ex Rege non regem se facit
et omni lzonore et dignitate rega/i atque in subditos potestate
destituir; quorum etiam meminit Winzerus. Horum unus est, Si
regnum [et rempublicam evertere conetur, hoc est, si id ei propo-
situm, eaque intentio fuerit ut] disperdat, quemadmodum de
Nerone fertur, quod is nempe senatum populumque Romanum,
atque adeo urbem ipsam ferro jlammaque vastare, ac novas sibi

[244]
sedes quaerere decrevisset. Et de Caligula, quod palam denun-
ciarit se neque civem neque principem senatui amplius fore, inque
animo habuerit, interempto utrisque ordinis Electissimo quoque
Alexandriam commigrare, ac ut poppulum uno ictu interimeret,
unam ei cervicem optavit. Ta/ia cum rex aliquis meditatur et
molitur serio, omnem regnandi curam et animum illico abjicit, ac
proinde imperium in subditos amittit, ut dominus servi pro
derelicto habiti, dominium .

§. 236. Alter casus est, Si rex in alicujus clientelam se


contulit, ac regnum quod liberum à majoribus et populo traditum
accepit, alienae ditioni mancipavit. Nam tunc quamvis forte non
eâ mente id agit populo plane ut incommodet: Tamen quia quod
praecipuum est regiae dignitatis amisit, ut summus scilicet in regno
secundum Deum sit, et solo Deo inferior, atque populum etiam
totum ignorantem vel invictum, cujus libertatem sartam et tectam
conservare debuit, in alterius gentis ditionem et potestatem
debidit ; hâc velut quadam regni ab alienatione rffecit, ut nec quod
ipse in regno imperium habuit retineat, nec in eum cui coi/atum
voluit, juris quicquam traniferat; atque i ta eo Jacto liberum jam et
suae potestatis populum relinquit, cujus rei exemplum unum
annales Scotici suppeditant (Barclay, Contra Monarchom, livro 3,
cap. 16).
O que, em português, se traduz assim:

§. 237. Não existirá, então, caso algum em que o povo


possa legitimamente e por sua própria autoridade recorrer às armas
e lançar-se contra o rei que exerça sobre ele um poder arrogante e
tirânico? Absolutamente nenhum, enquanto o rei permanecer no
trono. Honrai o vosso rei e aquele que resistir ao seu poder
resiste a um mandamento de Deus, são oráculos divinos que
nunca o permitirão. Nestes termos, o povo jamais poderá adquirir
poder sobre ele, a não ser que o monarca faça algo que lhe retire a
sua condição real. Então, na medida em que se deifaz da sua coroa
e da sua dignidade, o rei regressa à condição de homem privado,

[245]
e o povo não só se liberta dele como passa a ser o seu superior. O
povo readquire o poder que detivera no interregno, antes de o
coroar como seu rei. São escassas, no entanto, as ocasiões que
podem desencadear um tal estado de coisas. Depois de ponderar
com cuidado este assunto, não encontro mais do que duas. Por isso
afirmo que existem duas circunstâncias, também identificadas
por Winzerus, em que o rei deixa de ser rei, perdendo, ipso
facto, todo o poder e toda a autoridade real que detinha sobre o
seu povo.
Primeiro, sempre que o rei procurar derrubar o governo, isto
é, sempre que albergar o propósito e o intento de destruir o reino
e a comunidade, tal como o registo histórico nos diz ter-se veri-
ficado com Nero, que resolveu destruir o senado e o povo de
Roma, devastar a cidade pelo Jogo e pela espada e, de seguida,
procurar um novo lugar. Temos ainda o caso de Calígula, que
declarou abertamente não querer continuar a ser a cabeça do povo
e do Senado, que tinha a intenção de eliminar os melhores homens
de um e de outro, antes de se retirar para Alexandria, e que o seu
desejo era que o povo tivesse apenas um pescoço, para o poder
eliminar de um só golpe. Ao alber,_'<ar no seu Íntimo des(Rnios como
estes e ao empenhar-se na sua promoção, qualquer rei abandona
por inteiro todos os cuidados que deveria dedicar à comunidade.
Consequentemente, perde todo o direito ao poder de governar os
seus súbditos, do mesmo modo que, ao abandonar os seus escravos,
um senhor perde o direito de domínio que detinha sobre eles.

§. 238. E, em segundo lugar, quando um rei se torna


dependente de outro, submetendo o seu reino, que lhe havia sido
legado pelos seus antepassados, e o seu povo, que havia recebido
livre, ao domínio de outro. É possível que não tenha a intenção de
prejudicar o povo. No entanto, aquele que assim agir perde a parte
principal da dignidade real, a saber, a de ser o govemante supremo
do seu povo, imediatamente a seguir a Deus. Isto porque estará
igualmente a atraiçoar ou a forçar o seu povo, cuja liberdade
deveria ter procurado preservar escrupulosamente, e a entregá-lo ao

[246]
poder e ao domínio de uma nação estrangeira. Por um tal acto de
alienação do seu reino, por assim dizer, o rei perde o poder que nele
detinha até então, sem, no entanto, traniferir para aqueles a quem
entregou o reino a menor parcela do direito que detinha sobre
ele. E assim, agindo deste modo, liberta o povo, permitindo que
disponha de si próprio. Podemos encontrar um exemplo disto nos
anais escoceses.

§. 239. E assim, Barclay, o grande defensor da


monarquia absoluta vê-se forçado a admitir que se pode
resistir ao rei em diversos casos, circunstância em que perdem
o direito ao trono . Para não os multiplicarmos desneces-
sariamente, poderão ser resumidos nos dois seguintes. Em
primeiro lugar, um homem não poderá ser rei em matérias
sobre as quais não detiver qualquer autoridade. Por esta razão,
será legítimo resistir-lhe se nelas se propuser penetrar. E, por
outro lado, onde quer que a autoridade termine, aí também o
monarca perderá a sua condição real, convertendo-se num
homem, como os demais, sem qualquer autoridade. Ora,
estes dois casos invocados por Barclay pouco diferem da-
queles que havíamos identificado como sendo destrutivas
dos governos. A não ser pelo facto de ele omitir o princí-
pio subjacente a esta sua doutrina, a saber, a quebra de
confiança, decorrente do facto de o rei, no primeiro caso,
não assegurar a preservação da forma de governo acordada,
e, no segundo, não nortear a sua actuação pela finalidade
do próprio governo, designadamente o bem público e a
preservação da propriedade. O que é que poderá impedir
o povo de processar um rei que se destronou a si próprio e
se colocou num estado de guerra perante ele, do mesmo
modo que o faria a qualquer outro homem que se colo-
casse em idêntica situação? Barclay não tem qualquer
resposta para nos oferecer, nem os seus seguidores. Para
além disso, convirá igualmente atentar no seguinte aspecto
do seu argumento. O povo, argumenta, pode evitar os ma/e-

[247]
ficios que estiverem a ser planeados contra ele, antes que lhe sejam
infligidos. Ora, daqui se deduz que permite a resistência,
enquanto a tirania não passar de um desígnio. Ao albergar no
seu íntimo desígnios como estes, escreve ainda, e ao se empenhar
na sua promoção, qualquer rei abandona por inteiro todos os
cuidados que deveria dedicar à comunidade. Quer isto dizer que,
de acordo com Barclay, o facto de o monarca negligenciar
o bem público deve ser tomado como sendo indicativo de
possuir tais desígnios, sendo, no mínimo, causa suficiente de
resistência. E oferece-nos a justificação de tudo isto com
estas palavras: porque estará a atraiçoar ou a forçar o seu povo,
cuja liberdade deveria ter procurado preservar escrupulosamente.
A cláusula que adiciona, ao poder e ao domínio de uma nação
estrangeira, nada acrescenta ao que já havia fixado. A falha e
a perda de direito decorrem da perda de liberdade que o rei
deveria ter preservado, e não de qualquer diferença entre
aqueles a cujo domínio o monarca submete o seu povo. Os
direitos de um povo são igualmente invadidos e as suas
liberdades são igualmente perdidas, quer ele seja entregue
como escravo a qualquer um dos seus membros, ou a uma
nação estrangeira. É nisto que reside a injúria, e é apenas
isto que concede ao povo o direito de se defender. E em
todos os países encontramos exemplos que demonstram
que não é a mudança de nacionalidade dos governantes,
mas a mudança do governo, que constitui o delito. No seu
tratado intitulado A sujeição cristã, Bílson, um bispo da nossa
igreja e um grande defensor do poder e da prerrogativa dos
príncipes, reconhece, se não me engano, que os príncipes
podem perder o seu poder e o título que detêm de obediência
dos seus súbditos. E se fosse necessário recorrer ao argu-
mento de autoridade, num caso como este em que a justi-
ficação é tão evidente, poderíamos remeter os leitores para
Bracton, para Fortescue, para o autor do Espelho, e para tantos
outros. Todos eles autores que de modo algum poderão ser
suspeitos de desconhecerem o nosso governo ou de serem

[248)
inimigos dele. Pensámos que Hooker pudesse ser suficiente
para satisfazer todos os que recorrem a ele para fundamen-
tarem a política eclesiástica que preconizam. No entanto,
estes homens são levados por uma estranha fatalidade a
negar os princípios sobre os quais ele havia alicerçado todo
o seu pensamento. Daí que fosse prudente, da sua parte,
averiguar se não estarão a ser instrumentalizados por outros
operários mais astutos, para deitaram abaixo o próprio
edificio que se propõem erguer. Uma coisa é certa, a polí-
tica civil que advogam é tão nova, tão perigosa e tão des-
trutiva, tanto dos governantes como do povo, que no
passado jamais se permitiu que fosse mencionada sequer. De
igual modo, espera-se que, libertos das imposturas daqueles
subencarregados de obras egípcios, os vindouros detestarão
a memória destes aduladores servis que, enquanto lhes
pareceu ser útil para os seus interesses, reduziram todo o
governo à tirania absoluta e todos os homens àquilo
para que as suas almas mesquinhas os talhavam, a escravidão.

§. 240. Chegados a este ponto, deparamo-nos com a


questão habitual de saber quem será o juiz? Quem poderá
determinar se o príncipe ou o legislativo ae;em de forma
contrária à missão que lhes foi confiada? E possível que
gente facciosa e de má disposição propague entre o povo
que assim esteja a acontecer, mesmo quando o príncipe
se limita a exercer a prerrogativa que lhe é devida. A isto
responderemos, o povo será o juiz. Pois, quem mais poderá
determinar se o seu mandatário ou o seu deputado age
bem e de acordo com a missão que lhe foi confiada, se não
aquele que o mandatou e o elegeu, e tendo-o feito, con-
serva o poder de destituir o que falhar na sua missão?
Se isto é razoável relativamente aos assuntos privados de
homens particulares, não vejo como não o possa ser no
mais importante de todos, em que está em jogo o bem-
-estar de milhões, mas também onde os perigos, se não

[249]
forem evitados, são muito maiores, e as reparações são
muito mais difíceis, dispendiosas e arriscadas.

§. 241. Para além disso, esta questão, quem será o juiz,


não pode ser entendida como querendo dizer que não
existe nenhum juiz. Pois, quando não existir um magistrado
na terra para dirimir as controvérsias que possam surgir
entre os homens, Deus, nos céus, será sempre juiz. E, na
verdade, ele é o único juiz de direito. Porém, e como em
todos os outros casos, também aqui, cada homem é juiz por
si próprio, capaz de julgar quando é que outro se coloca
num estado de guerra perante ele, bem como se deverá
recorrer ao Juiz Supremo, tal como ]ifté fez.

§. 242. Surgindo, por acaso, uma disputa entre o


príncipe e alguém do povo acerca de uma matéria de
grande importância, sobre a qual a lei não se pronuncie,
ou o faça de forma pouco clara, estamos em crer que o
árbitro apropriado para a dirimir é o próprio povo, enquanto
corpo. O povo confiou certas matérias ao seu príncipe,
para que se encarregasse delas, sem ter de se submeter às
normas ordinárias da lei. Nestes casos, se alguém se sentir
prejudicado pelo comportamento do príncipe ou consi-
derar que este violou ou ultrapassou os termos do encargo
que lhe fora confiado, que juiz mais apropriado poderá
existir para julgar esta questão do que o povo, enquanto
corpo. Foi o povo que, em primeiro lugar, confiou esse
encargo ao príncipe, por essa razão, ninguém melhor do
que ele poderá julgar quais os seus limites. Contudo, se o
príncipe, ou quem quer que se encontre na administração,
recusar este tipo de arbitragem, então não restará qual-
quer outra possibilidade de recurso para além dos céus. O
recurso à força entre pessoas que não conhecem superior
na terra ou que não têm possibilidade de recurso a um juiz
terrestre, consubstancia em sentido estrito um estado de

[250]
guerra, em que apenas se pode recorrer aos céus. E , num
tal estado, aquele que se sentir prejudicado terá de julgar por si
mesmo qual o momento mais apropriado para recorrer a
este tipo de remédio e entregar-se a ele.

§. 243. Em conclusão, o poder que cada indivíduo


entregou à sociedade no momento em que a ela aderiu, jamais
poderá reverter, de novo, em favor de pessoas individuais,
enquanto essa sociedade subsistir. Esse poder permanecerá
para sempre na comunidade, pois, de outro modo, nenhuma
comunidade poderia existir, o que seria contrário à razão de
ser do acordo original. Assim também, quando a socie-
dade atribui o poder legislativo a uma assembleia, para ser
exercido por aqueles que a integram e, depois, pelos seus
sucessores, e indica, com clareza, o modo como a sucessão
se deverá processar, esse poder legislativo jamais poderá reverter
para o povo, enquanto o governo perdurar. Na medida em
que atribuiu ao legislativo a capacidade de permanecer
continuamente em sessão, a sociedade entregou-lhe todo o
poder político de que dispunha , não o podendo reaver. A
sociedade pode, no entanto, estabelecer limites à duração
do poder legislativo, ou então atribuir este poder supremo
a uma pessoa ou a uma assembleia, mas apenas tempo-
rariamente. Além disso, os desmandos daqueles a quem
a sociedade atribuiu a autoridade podem fazer com que
percam o direito ao poder que lhes havia sido confiado.
N estas circunstâncias, terminado o prazo estabelecido, ou
verificando-se a perda de direito por parte daqueles a quem
ele fora atribuído, o poder reverte de novo para a sociedade.
O povo readquire o poder supremo e o direito de dar con-
tinuidade ao legislativo, seja assumindo-o directamente,
seja através da configuração de uma nova forma de governo,
seja mantendo a forma anterior e atribuindo-o a outras
pessoas, conforme considere mais conveniente.
FIN IS

[251]
[252)
ÍNDICE

Introdução . .. . .. .. . .. .. . .. .. .. . . ... . .. .. . .. .. .. .. . .. .. . .. .. .. . .. .. . .. .. .. .. . .. .. . .. .. 5

Capa do Original de 1698 dos Dois tratados do governo.......... 25

Prefacio dos Dois tratados do governo......... .... ........ .. .. ......... 27

Capítulo I. .. . .. .. . ... . .. ... .. ... .. .. .. . .. .. .. .. . .. .. . ... . .. .... ... . ... . ... . .. .. . .. .. 33

Capítulo II. Sobre o Estado de Natureza.............................. 35

Capítulo III. Do Estado de Guerra...... .. ....... ........ .......... ...... 45

Capítulo IV Da Escravidão.. .... .. .. ...... .. .... ...... ...... .. .... .. .... .. ... 51

Capítulo V Da Propriedade .. .. .. ............ .. .. .. .. ............. .. ........ 55

Capítulo VI. Do Poder Paternal ................ .... .......... ............. 77

Capítulo VII. Da Sociedade Política ou Civil .. .. .. .. .. ............ . 99

Capítulo VIII . Da Origem das Sociedades Políticas...... ...... .. 117

Capítulo IX. Dos Fins da Sociedade Política e do Governo.. 143

Capítulo X. Das Formas de uma Comunidade Política......... 149

Capítulo XI. Do Alcance do Poder Legislativo..................... 151

Capítulo XII. Dos Poderes Legislativo, Executivo e Federa-


tivo da Comunidade Política.. ............ ...................... .. ...... . 163

[253]
Capítulo XIII. Da Subordinação dos Poderes de uma Comu-
nidade Política..... ....... ........ .......... ... ..... ........... ... ........ ...... 167

Capítulo XIV Da Prerrogativa . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. .. . .. . .. . .. .. . . .. .. . .. . . 179

Capítulo XV Dos Poderes Paternal, Político e Despótico, Con-


siderados em Conjunto ............ ...... ... ...... .... .. ........ .... .. .... .. 187

Capítulo XVI. Da Conquista . .. . ...... .. .. . .. . .. . .. .. . ... .. .. . .. . .. ....... . 193

Capítulo XVII. Da Usurpação....... ..... .... .. ..... ........ ... ... .... ... . 211

Capítulo XVIII. Da Tirania.... ..... ........................ ... ... ....... .... 213

Capítulo XIX . Da Dissolução do Governo .... .. ..... .. .... ...... .... 223

[25 4]
Esta edição de "SEGUNDO T RATADO DO Govm. No ",
foi composta, impressa e encadernada para a
Frmdaçào Calo11ste Gulbenkia11 ,
nas ofi cinas da G.C. -Gráfica de Coimbra, Lda.
A tiragem é de I 000 exemplares
M ês de Se tem bro de 2007
Depósito Legal n. 0 2652 17/ 97
ISBN 972-3 1- 11 97- 2

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