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Niterói
2021
0
RENATA LOURIANE MOREIRA DA SILVA MENEZES CONSTANT
Orientador Acadêmico
Felipe da Costa Trotta
Niterói
2021/1
1
2
RENATA LOURIANE MOREIRA DA SILVA MENEZES CONSTANT
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Felipe da Costa Trotta (Orientador Acadêmico)
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Ana Lúcia da Silva Enne
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________
Ma. Juliana Mara Lima das Neves
3
Este trabalho é dedicado a todos e
todas que, por necessidade, sonho
ou ousadia se tornaram migrantes.
4
AGRADECIMENTOS
Ao corpo docente da graduação em Estudos de Mídia, pelas trocas em salas de aula que
enriqueceram meu repertório. Um agradecimento especial ao professor Antônio Júnior,
cujas aulas serviram como incentivo para trilhar o caminho da pesquisa desde o
primeiro semestre;
À professora Ana Lúcia Enne, que me apresentou aos Estudos Culturais e tanto me
incentiva na vida acadêmica, com palavras de encorajamento e aulas fundamentais para
o desenvolvimento deste trabalho. Agradeço também pela participação na banca
avaliadora;
À Juliana Neves, por aceitar o convite para participar da banca avaliadora e partilhar
suas impressões sobre este trabalho;
Aos meus sobrinhos, Maya, Sofia, Vanine e Vicente, que trazem a pureza da resposta
das crianças para os meus dias;
Aos meus amigos Ademir, Augusta, Diogo, Eduardo, Gaspar, Mariana e Pedro, que, nas
conversas cotidianas, tantas vezes me ajudaram a aliviar o peso da vida acadêmica;
A Ana Amorim e Fred Cabala, pela amizade e pela recepção carinhosa em Niterói;
5
A Victor Verçosa, pelos longos áudios trocados discutindo temas relacionados (ou não)
a este trabalho, que me ajudaram a burilar ideias e desenvolver argumentos;
À minha família, em especial ao meu pai, Ruy, e às minhas mães, Graça e Fátima, meus
primeiros incentivadores, que seguem acreditando nos meus projetos e me dando
impulso para executá-los;
6
Com seus pássaros
ou a lembrança de seus pássaros,
com seus filhos
ou a lembrança de seus filhos,
com seu povo
ou a lembrança de seu povo,
todos emigram.
7
RESUMO
Palavras-chave
8
ABSTRACT
Located in Rio de Janeiro, the Feira de São Cristóvão (São Cristóvão Market) is a space
created by migrants who came from the northeastern region of Brazil to share elements
of their regional culture, in particular its’ gastronomy and music. Open since the
nineteen-forties, it was the target of controversy and numerous attempts at regulation,
and today has consolidated its’ place as cultural equipment of the city of Rio de Janeiro.
This monograph means to observe how music is inserted in such a space to help create
an environment understood to be typical of northeastern Brazil, considering sonorities
as well as tensions involved in the musical attractions the Feira offers. To reach this
objective, visits were made to the market with the intent of observing the dynamics
created around the concert spaces, and a bibliographic review was conducted to
comprehend the processes involved in the creation of an idealized notion of
“nordestinidade” (northeastern Brazilian identity). Relevant themes such as the
migratory flux observed from the Brazilian northeast to the south and southwestern
regions, cultural elements and political and economical disputes involved in the
construction of “nordestinidade” were considered as well.
Keywords
9
SUMÁRIO
RESUMO 8
ABSTRACT 9
SUMÁRIO 10
INTRODUÇÃO 11
CONSIDERAÇÕES FINAIS 57
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 59
REFERÊNCIAS MUSICAIS 61
10
INTRODUÇÃO
1
Aqui trazido como metáfora, os caminhões conhecidos como “paus de arara” se tornaram um dos
principais modais utilizados pelos migrantes para chegar ao Sudeste. Segundo Marco Antonio Villa
(2017), o negócio de transporte de passageiros para o Sudeste se tornou tão lucrativo que inúmeros
caminhões de carga foram adaptados para levar pessoas: “Na carroceria eram colocados bancos de
madeira no sentido vertical. Ganhavam uma cobertura de lona. Transportavam, em média, de setenta a
cem passageiros, entre adultos e crianças. Na boleia, ia o motorista, um ajudante e, eventualmente, um
passageiro mais aquinhoado” (VILLA, 2017, p. 54).
2
É possível encontrar relatos sobre o desembarque de nordestinos no Rio de Janeiro em diversos jornais. Na edição
2002 da Tribuna da Imprensa, de 31 de julho de 1956, uma matéria diz: “uma feira tipicamente nordestina instalou-se
no Campo de São Cristóvão, com modas de viola, o jogo denominado ‘caipira’ e venda de bainhas para ‘peixeiras’.
Funciona do outro lado da feira-livre do Campo e fica perto da rua Senador Alencar, onde costumam desembarcar
(quando vêm de caminhão) os nordestinos que chegam fugidos da sêca [sic]”.
11
se ouviam ritmos regionais. Em meio aos quilos de farinha, charque, fuba de milho,
artigos de couro, redes e até mesmo mariscos, os retirantes se reuniam para
confraternizar ao som de sanfonas, rabecas e repentes, dando origem a um espaço
festivo onde tentavam se aproximar, ainda que momentaneamente, da experiência de
estar em casa.
Ao longo das décadas, essa feira sofreu diversas transformações, especialmente
a partir de intervenções realizadas pelo poder público no intuito de regulamentar e
organizar o espaço. De toda sorte, ainda hoje se mantém como equipamento de
preservação da cultura dos migrantes nordestinos no Rio e, além disso, estabeleceu-se
como espaço de lazer também para os cariocas.
Desde 2003, a Feira deixou de ser realizada ao ar livre e ganhou como casa o
Pavilhão de São Cristóvão, onde recebeu o nome oficial de Centro Luiz Gonzaga de
Tradições Nordestinas. O espaço une diversos elementos culturais que são tidos como
símbolo de nordestinidade, como a culinária sertaneja e elementos cenográficos que
remetem ao Sertão. Mas o carro-chefe do espaço com certeza é a programação musical,
a principal atração local, que leva milhares de pessoas a visitarem o espaço todas as
semanas.
Por isso, neste trabalho, o foco da análise está na construção sonora da Feira,
ainda que os outros elementos também ganhem espaço, por serem importantes para a
apresentação do local. Dessa forma, a música é trazida à luz para compreender de que
maneira a noção de identidade nordestina se formata em torno de ritmos e danças. Para
tanto, avalio a programação semanal da Feira de São Cristóvão para identificar quais
ritmos são contemplados e de que forma eles se relacionam com o que se entende por
cultura nordestina. Além disso, levo em consideração também a dinâmica dos palcos,
não somente em relação às atrações musicais, mas também as formas de interação do
público, o que foi possível após visitas realizadas aos finais de semana, durante o ano de
2018.
Com o objetivo de observar o contexto em que a feira se forma, o Capítulo 1 é
dedicado a compreender como as migrações se desenrolaram durante o século XX no
Brasil, dando origem a espaços de sociabilidade entre os migrantes que se organizavam
em comunidades para o compartilhamento de símbolos. Esse apanhado histórico é
fundamental para compreender o lugar que os migrantes nordestinos ocupavam nos
12
grandes centros urbanos para onde se dirigiam. Além disso, também ajuda a observar as
dinâmicas sociais que se estabeleciam. Por um lado, dentro das comunidades que eles
próprios formavam para compartilhamento de símbolos, como é o caso da Feira de São
Cristóvão. Por outro, em relação à sociedade carioca ou paulista, que os colocavam em
um lugar de subalternidade.
Esse primeiro capítulo se encerra, então, com a apresentação da história da Feira
de São Cristóvão, expondo as disputas e negociações que se desenrolaram desde a sua
fundação até a atual configuração para observar um panorama de suas tensões, entre
conflitos com o poder político e com a população carioca. Com isso, tento compreender
a importância desse espaço enquanto local de confraternização entre nordestinos, mas
também como as formatações podem ser importantes para compreender o que é e o que
faz ser nordestino. Para tanto, servem como base os escritos das pesquisadoras Sylvia
Nemer (2011, 2016), e Juliana Neves (2015), que registraram eventos importantes para
a história da feira, e também de teóricos como Benedict Anderson (2008), Pierre
Bourdieu (2012), Eric Hobsbawm (2018) e Nestor Canclini (2003), os quais ajudam a
refletir sobre a importância do espaço para a formação de uma identidade migrante no
Rio de Janeiro.
A partir do segundo capítulo, debruço-me sobre a questão musical, visando a
entender, ao final, como a programação musical da feira é importante para dar sustento
à ideia de nordestinidade. Para fazer a análise teórica da música enquanto formadora de
identidades, baseio-me em trabalhos de escritores como Durval de Albuquerque Junior
(2011), Maura Penna (1992), Jack Draper III (2014) e Felipe Trotta (2014), entre outros,
que se voltaram a compreender questões como quais são os elementos formadores da
nordestinidade hegemônica, como se deu esse processo de formação e como a música se
relaciona com ele, entre outros temas tangentes ao nosso problema. Nesse sentido,
observo um panorama da formação da música tradicional nordestina a partir do exemplo
de Luiz Gonzaga e indo até o surgimento das bandas de forró elétrico.
No terceiro e último capítulo, é apresentada a análise sobre a música da Feira
propriamente dita. A partir das discussões desenroladas nos primeiros capítulos e da
observação das dinâmicas presentes no Pavilhão, minha proposta é investigar como as
sonoridades que se distribuem pelos palcos e corredores do Pavilhão contribuem para a
formação de uma ideia de nordestinidade. Para tanto, observo não somente seus pontos
13
de contato, mas também as tensões que se apresentam, ora em busca de uma
autenticidade, ora fugindo completamente da proposta. O último capítulo é dedicado,
pois, à análise de contradições e entrelaçamentos, já que entendo se promove o encontro
entre o moderno e o tradicional na mesma medida em que eles disputam o direito de
representar a identidade nordestina.
Assim, este trabalho tem como principal contribuição a exposição de um
processo complexo de significação. A partir do exemplo da música na Feira de São
Cristóvão, é possível ver na prática como as identidades não chegam a uma forma final,
já que estão sempre no centro de disputas entre diferentes atores. De dentro para fora ou
de fora para dentro, os elementos que podem (ou não) ser representativos estão em
constante processo de negociação, como pretendo demonstrar nas páginas a seguir.
14
1. AS MIGRAÇÕES BRASILEIRAS E A FORMAÇÃO DA FEIRA DE SÃO
CRISTÓVÃO
15
1.1 Terra de arribação: a diáspora nordestina no século XX
3
“Arribação” é o termo que descreve o movimento periódico de alguns animais, principalmente aves,
que, em determinadas épocas do ano, migram para encontrar condições climáticas mais favoráveis. O
termo é usado como metáfora para caracterizar os nordestinos que, assim como as aves, deixavam seus
locais de origem em busca de melhores condições.
16
responsável, inclusive, por estereótipos e expressões de xenofobia. Os fatores
responsáveis para essa migração em massa são diversos:
17
dos sertanejos para o sul. Se, como vimos, em 1950, 85% dos
migrantes chegaram a São Paulo pela ferrovia, no ano seguinte esse
número caiu para 80%, e nos dois primeiros meses de 1952 foi para
58%, e a tendência de queda continuou até o trem ser superado pelo
pau de arara, meio de transporte cujo uso se intensificou ainda mais
devido à entrega da Via Dutra (VILLA, 2017, p. 52).
Apesar de ter início em 1930 e, desde então, registrar números que chamam a
atenção, os fluxos mais numerosos começaram a ser verificados no pós-II Guerra, a
partir de 1950. Essa época, segundo Ojima e Fusco (2009) foi marcada pela expansão
do desenvolvimento econômico-industrial em São Paulo, em especial graças à política
desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek, que atraiu capital estrangeiro para
a instalação de indústrias de base no Sudeste.
Esse processo de industrialização, crescente urbanização e suas consequências
(êxodo rural e diáspora nordestina) ficaram registrados em diferentes expressões
artísticas. Nas artes plásticas, por exemplo, temos o quadro “Os Retirantes” (1944), de
Cândido Portinari. Com tons sombrios, a tela retrata uma família miserável durante a
saída de sua terra natal. Na literatura, inúmeras são as personagens que, direta ou
indiretamente, contam sobre a experiência da migração: Macabéa4, de Clarice Lispector,
Sinhá Vitória e Fabiano5, de Graciliano Ramos, e Severino6, de João Cabral de Melo
Neto. Na música, a canção “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, se
tornou um hino da migração. Também podemos citar outros artistas, como Jackson do
Pandeiro, que explorou o cotidiano migrante em canções como “Forró na Gafieira”, ou
Tom Zé, que expõe os anseios do migrante em se tornar parte da sociedade de consumo
em “Menina Jesus”.
O alto fluxo migratório permaneceu até a crise dos anos 1980, que provocou
uma recessão econômica e a consequente diminuição da oferta de trabalho. Além disso,
esse momento foi acompanhado por uma descentralização das atividades industriais, já
que as empresas pretendiam melhorar a integração com o resto do país. Com isso,
verificou-se um êxodo na direção inversa: muitos migrantes começaram a retornar às
4
Em “A Hora da Estrela”, de 1977, a alagoana Macabéa parte para o Rio de Janeiro depois de perder sua
tia, única familiar que tinha.
5
O casal Fabiano e Sinhá Vitória protagoniza “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, lançado em 1938. No
romance, Fabiano, Sinhá Vitória e seus dois filhos (sem nome) precisam migrar periodicamente para fugir
da seca.
6
Severino é o protagonista de “Morte e Vida Severina”, poema de João Cabral de Melo Neto que narra a
viagem do migrante saindo do Sertão em direção ao litoral.
18
suas terras natais. Esse retorno, porém, não apaga as marcas produzidas pela presença
desse grande contingente “estrangeiro” nas terras do Sul/Sudeste. A identidade
nordestina, por exemplo, ficou fortemente marcada pela narrativa da migração, que
atinge até mesmo aqueles que permaneceram em seus locais de origem. De forma mais
objetiva, podemos observar espaços como o Centro de Tradição Nordestina de São
Paulo e a Feira de São Cristóvão (objeto de estudo deste trabalho), que permanecem
como espaços de preservação e celebração da cultura dos migrantes em estados do
Sudeste.
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Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
Essa contraposição entre a cidade grande e a terra natal é capaz de revelar mais
do que diferenças objetivas entre os espaços do Sudeste e do Nordeste. Nas canções e
folhetos de cordel, por exemplo, é possível observar como a saudade se torna um
elemento presente e estruturante dessa cultura migrante. De acordo com Albuquerque Jr
(2011), as narrativas produzidas por esses migrantes tendem a romantizar o passado,
tratando as experiências da infância ou das relações sociais do Nordeste como algo que
se perdeu, mas que eles querem recuperar.
Por outro lado, essa saudade também se tornou algo compartilhado entre os
migrantes nordestinos, independentemente dos seus estados de origem. Por isso, durante
essas décadas, marcadas pelo que podemos chamar de “diáspora nordestina”, ela foi
capaz de motivar o surgimento de comunidades com sociabilidades próprias nos
espaços em que esses migrantes chegavam.
20
No Rio de Janeiro, o Campo de São Cristóvão, que era o ponto de chegada dos
retirantes, tornou-se um espaço de convivência e se transformou em uma feira informal
na qual se comercializavam artigos de couro, artesanato em barro, fumo de rolo, redes e
alimentos, como queijo coalho, charque, cachaça e mariscos. Vindas do Nordeste, as
mercadorias eram vendidas em tabuleiros improvisados, caixotes empilhados ou até
mesmo no chão, o que ressalta o caráter coloquial e espontâneo do comércio. É válido
destacar que também faziam parte da dinâmica do local alguns repentistas, cordelistas e
violeiros, que davam o tom da poesia e da música regional.
7
Em um artigo publicado na Revista Veja em 1987, intitulado “Vamos nos separar do Sul”, o então vereador de
Recife Marcelo Pessoa diz: “Todo pernambucano é baiano, apesar dos 839 quilômetros que separam Salvador do
Recife. E até um paraense, que é do Norte, vira paraibano, numa afronta aos seus valores regionais. Ai de nós,
nordestinos, se chamarmos um fluminense de paulista ou vice-versa. (...) Com os nordestinos não há problemas.
Somos todos iguais na cabeça dos sulistas”.
8
Ambas as nomenclaturas são utilizadas até hoje pela população carioca
21
A projeção simbólica do nordeste, a partir desse espaço diaspórico,
acompanha os moldes das feiras do nordeste, mas com o adendo de
saudade e resistência. As relações estabelecidas naquele espaço o
caracterizam como um espaço de fuga da cidade que não acolhia o
migrante para além do trabalho, um território fortemente guetificado
com fronteiras bem demarcadas, no qual o migrante transpunha ou
convergia a vivência de sua nordestinidade (NEVES, 2015, p. 43).
Por causa disso, a realização da feira se tornou uma tradição. Primeiro para os
migrantes, que, como já disse, encontraram naquele espaço um refúgio. Bem mais tarde,
para parte da população carioca, que passou a frequentar o espaço nos seus momentos
de lazer. Dessa forma, religiosamente, todos os domingos os feirantes levavam suas
mercadorias e montavam suas barracas; músicos executavam suas canções e repentistas
desafiavam o público em versos.
Pela sua natureza informal e a ausência de documentos registrando o início das
atividades, é difícil cruzar as informações sobre sua fundação e determinar com precisão
uma data de origem da feira, como demonstra a pesquisadora Sylvia Nemer (2011, p.
36). As narrativas sobre a fundação da feira são construídas pela história oral, por meio
de memórias de seus fundadores. No entanto, convencionou-se tratar como data de
origem o mês de setembro de 1945:
9
Na edição de 12 de julho de 1967, o Jornal A Luta Democrática apresenta registro de uma reclamação feita em um
outro periódico, que reclamava pelo fato de os feirantes não pagarem impostos nem serem legalizados.
22
impulsionado pelo programa desenvolvimentista, pela propaganda
ufanista disseminada pela mídia e, sobretudo, pela força de trabalho
do migrante nordestino que não apenas constituía a peça central da
engrenagem de construção da moderna metrópole carioca, mas
também um constrangimento para seus habitantes que, inebriados
pelos ares de modernidade e cosmopolitismo soprados sobre a Cidade
Maravilhosa, viam com maus olhos os recém-chegados, reveladores
do atraso em que permanecia mergulhada a maior parte do país
(NEMER, 2016, p. 30).
23
mais acirrada e ainda envolveria a intervenção da prefeitura, como mostrarei mais
adiante.
Nos anos 80, a Feira ampliou seu horário de funcionamento e passou a ter início
no fim da tarde dos sábados, aumentando o desgosto dos vizinhos. Multiplicam-se,
assim, as reclamações sobre a desorganização da feira, que não cessam nem mesmo
após a sua oficialização, em 1982.
Para dar corpo à discussão sobre essas disputas culturais entre a população
carioca, os organizadores e frequentadores da Feira de São Cristóvão, primeiramente é
preciso entender que a forma de socialização que ali se desenrolava era totalmente
alheia às práticas locais. Sylvia Nemer mostra, por exemplo, que o formato da Feira de
São Cristóvão subvertia o que até então os cariocas entendiam por uma “feira”:
É necessário destacar, nesse sentido, que essas reclamações ainda tinham como
pano de fundo uma reação xenofóbica10 à presença dos nordestinos, que eram tidos
como pouco civilizados, mal-educados, rudes, entre outros adjetivos negativos. Essas
10
Essa visão xenofóbica sobre a população migrante nordestina não era uma exclusividade carioca. Sobre
a migração em São Paulo, Villa conta: “o aumento da migração trouxe a discriminação local conta os
‘baianos’. Os jornais, quando noticiavam um crime, somente citavam o estado de origem do acusado
quando ele era nordestino, fortalecendo o estereótipo de que o migrante era violento, brigão e pouco
sociável” (2017, p. 137).
24
ideias, por sua vez, não nasciam necessariamente da convivência entre as comunidades.
Como mostra Durval Albuquerque Jr (2011), havia um esforço midiático e político no
sentido de desvalorização do nordestino e da região Nordeste, que era associada ao
atraso, à violência, à ignorância, à rejeição da modernidade, entre outras coisas. Em
outras palavras, os cariocas já estavam carregados de preconceitos socialmente
construídos, no sentido literal da palavra. Morando no Rio de Janeiro, a escritora
cearense Rachel de Queiroz escreve:
Sendo assim, o que se pode observar a partir disso é que existia uma disputa
pelo território do Campo de São Cristóvão que era atravessada um processo simbólico,
no qual migrantes e a vizinhança carioca competiam entre si. Reiteram-se, então, as
ideias de Bourdieu sobre as relações entre espaço físico e social, segundo as quais é
necessário compreender os processos simbólicos que se inscrevem no espaço natural. O
que está em jogo não é uma mera questão espacial, sobre ocupação de território, mas
uma disputa sobre quais práticas podem ser desenvolvidas nele.
A intermediação entre os interesses dos feirantes e da vizinhança foi feita pelo
poder público, nesse caso, a Prefeitura do Rio de Janeiro. Diante da resistência dos
migrantes em deixar o Campo de São Cristóvão e das incessantes queixas por parte dos
moradores do bairro, intervenções foram realizadas como tentativas de organizar o
funcionamento. A partir dessas intervenções, porém, surgem outras controvérsias, entre
disputas internas e brigas por autenticidade.
25
1.3 A ação do poder público na Feira de São Cristóvão: de evento controverso a
ponto turístico do Rio de Janeiro
11
Segundo relatos em jornais, nessa época, uma feira de artigos roubados se agregou à Feira de São
Cristóvão, tumultuando ainda mais a sua realização.
12
Nordestinos ficam sem cachaça. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 de julho. 1984. 1º Caderno, p. 7.
26
Ainda foram especificados os vegetais que poderiam ser comercializados, que deveriam
ser típicos do Nordeste para não descaracterizar a regionalidade da feira.
Assim, observa-se um processo de seleção de elementos que seriam
representativos da tradição nordestina, bem como a exclusão de outros que seriam
responsáveis pela descaracterização da feira. Dessa forma, é possível observar como as
tradições que deveriam estar presentes na feira são moldadas ao longo do tempo,
aliando ações espontâneas à formatação por parte do poder público, seguindo processos
que Hobsbawm (2018) descreve. Segundo Canclini, “a história dos movimentos
identitários revela uma série de operações de seleção de elementos de diferentes épocas
articulados pelos grupos hegemônicos em um relato que lhes dá coerência,
dramaticidade e eloquência” (CANCLINI, 2003, p. 23).
No livro “O que faz ser nordestino”, a pesquisadora Maura Penna investiga
como se construiu a noção de nordestinidade. Para tanto, dedica seu segundo capítulo a
uma revisão bibliográfica sobre as relações entre identidade e representação,
considerando esta como produtora de sentido que fornecem interpretações sobre o
mundo. No início dessa discussão, Penna (1992, p. 56) afirma que as identidades não
podem ser cristalizadas, já que são construídas historicamente, ou seja, estão
diretamente relacionadas aos seus contextos. Nesse sentido, ainda mostra que “toda
representação é construída através de um processo de seleção e esquematização”
(PENNA, 1992, p. 60), dando origem a um ponto de vista que reduz a realidade. Temos,
então, que o processo de seleção e exclusão de elementos que poderiam estar presentes
na feira serve como um mecanismo que age nessa direção, de fazer um recorte na
realidade para construir uma representação única. No entanto,
27
A partir disso, é possível afirmar que essa padronização é uma faca de dois
gumes. Por um lado, ela foi importante no processo de pacificação das disputas em
torno da realização da feira. É nítido, que, a partir desse momento, começou a se
consolidar o reconhecimento dela como um fenômeno cultural importante, tanto para a
comunidade migrante quanto para a cidade do Rio. Por outro, coloca definitivamente
em xeque o caráter espontâneo da feira, posto que os feirantes deveriam se adequar às
determinações da Prefeitura caso quisessem continuar atuando no local. Assim, como
mostra a citação de Penna, à medida que se tenta formatar o que é autêntico por meio de
determinações institucionalizadas, desafia-se o curso “natural” da formação identitária.
Nessa tentativa de cristalização, então, corre-se o risco de desembocar na fetichização,
como é denunciado por alguns feirantes descontentes com o processo nos anos que se
sucedem.
Olhando de fora, porém, o retorno sobre os investimentos da Riotur pode ser
percebido na quantidade de matérias positivas veiculadas durante o período,
contrariando as narrativas anteriores, que eram escritas no sentido de marcar
negativamente a realização da feira.
O Jornal do Brasil é um exemplo de periódico que passou a elogiar a Feira e
convidar seus leitores para visitá-la, representando-a como um “pedaço do Nordeste no
Rio de Janeiro” e como um “point alternativo” para quem buscava novas programações
na cidade. Apesar desses aspectos positivos, as disputas internas não cessam. Pelo
contrário, começam a se intensificar, principalmente com a chegada das bandas de forró
elétrico na programação cultural do espaço.
Para os jornais, elas representavam uma nova roupagem a ser valorizada:
28
Para os cordelistas, repentistas e trios forrozeiros, porém, representavam uma
ameaça não somente ao seu trabalho, mas à tradição nordestina como um todo.
Apegados ao ideal de tradição que se desenvolveu desde o início do século XX, eles
entendiam a inserção de instrumentação elétrica e de temas urbanos e atualizados como
uma afronta à autenticidade. Essa discussão será apresentada e analisada a partir do
capítulo seguinte.
Além das questões internas, os conflitos com os moradores do entorno
continuaram sendo um problema que só teria solução com a mudança do local da feira,
na virada dos anos 2000.
Sendo assim, é possível afirmar que a história da Feira de São Cristóvão durante
suas cinco primeiras décadas pode ser considerada, antes de qualquer coisa, uma
história de resistência cultural. Durante esse período os feirantes travaram batalhas –
tanto com as autoridades quanto com a população moradora do bairro – e viveram sob
as ameaças de extinção ou de sua transferência para outros locais fora da sua rota
original. Nesse tempo, foi necessário travar disputas e aceitar negociações, cedendo em
alguns pontos para a manutenção do funcionamento da feira em seu local de direito até
chegar a um acordo definitivo sobre sua realização, com a transferência para um espaço
próprio e sua consolidação como equipamento cultural do Rio de Janeiro. No entanto, a
regularização e transformação da feira em um espaço turístico não apagou as tensões,
mas sim deu origem a novas.
A partir de 2003, a Feira deixou de ser realizada nas ruas e ganhou como espaço
permanente o Pavilhão de São Cristóvão, cedido pela Empresa de Turismo do Rio de
Janeiro (Riotur), a atual responsável pela sua gestão. Dessa maneira, tem fim a disputa
entre os comerciantes e os moradores do bairro, bem como alguns conflitos internos,
nos quais os feirantes se organizavam em associações para tentar determinar como
deveria funcionar a feira.
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Figura 1: Mapa do Pavilhão de São Cristóvão
Levar a feira para dentro do pavilhão, dessa forma, parece por um fim definitivo
na espontaneidade da feira e de suas práticas culturais. Para alguns feirantes, então, se
encerra o processo descrito acima na citação de Maura Penna, com a criação de um
espaço de nordestinidade feito para carioca ver e, supostamente, não mais para a
confraternização entre os migrantes nordestinos.
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Em compensação, esse momento coincide com um novo13 momento de
popularização da cultura nordestina no Sudeste, com o surgimento de grupos musicais
forrozeiros como o Falamansa, em São Paulo, e o Boitatá, formado por estudantes da
PUC-Rio. Essa tendência, pois, colocou a feira na rota da juventude do Rio de Janeiro,
que buscava consumir itens da cultura nordestina como uma forma de se conectar à
moda.
A despeito das críticas e tensões, é inegável que o início dos anos 2000
transformou a Feira de São Cristóvão em um sucesso de público. Se antes a opinião
pública já vinha se tornando mais positiva, nesse momento, a feira se consolida de
forma definitiva como ponto turístico da cidade do Rio, processo que vinha sendo
trabalhado pela prefeitura desde o fim dos anos 80. Seu horário de funcionamento passa
a ser de terça a domingo e, segundo o site institucional14, uma média de 300 mil pessoas
15
transita pelo espaço todos os meses.
O período de maior movimentação é sempre aos fins de semana, quando a feira
funciona sem parar das 10h da sexta-feira até às 20h do domingo e são realizados
diversos shows nos sete palcos16 que compõem o espaço. É importante ressaltar que
essas apresentações musicais são a principal atração do local e levam pessoas de todas
as idades a dançar no ritmo do forró e gêneros afins, como o baião, o xote e até mesmo
o brega.
Além de ser a grande responsável por atrair o público, por seu caráter de lazer, a
programação musical também é um elemento fundamental para a construção da noção
de nordestinidade no espaço, já que a música é uma ferramenta identitária importante
para a comunidade nordestina. Dessa forma, assim como houve uma seleção de objetos
ou alimentos que poderiam ser comercializados nos limites da feira, os sons e ritmos
que ecoam pelo espaço também passam por um filtro para determinar quais podem (ou
não) ser incluídos nos palcos do pavilhão. A distribuição das atrações por esses palcos,
por sua vez, também é um fenômeno que nos revela indícios de como essa
13
Nas décadas de 1940 e 1950, a música nordestina ganhou as rádios nacionais com a popularização de
Luiz Gonzaga, responsável por apresentar ritmos regionais para todo o Brasil. No entanto, a partir dos
anos 1960, sua música começou a perder público para outros gêneros.
14
<https://www.feiradesaocristovao.org.br/>. Acesso em 13 de abril de 2018.
15
Dado coletado em 2018. De acordo com Valverde (2011), a Prefeitura do Rio falava em uma circulação
de 70 mil pessoas por semana em 2011.
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Três palcos principais, onde se concentram as principais atrações, e quatro palcos menores, localizados
em pequenas praças.
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nordestinidade se constrói atualmente, aliando tradição, mercado e hibridismos
culturais.
Para entender como se configuram e se relacionam os artistas que se apresentam
lá, foram realizadas visitas para observar a dinâmica dos palcos e do público que assiste
às apresentações. Nos capítulos seguintes, apresento essas observações e uma revisão
bibliográfica sobre música e nordestinidade. A partir disso, foi possível compreender de
que maneira a paisagem musical da Feira de São Cristóvão desempenha seu papel no
sentido de construir, em conjunto com outros elementos, a nordestinidade do local.
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2. MÚSICA E PRODUÇÃO DE IDENTIDADE REGIONAL
De acordo com Bourdieu, antes mesmo de ser geográfica, uma região é uma
determinação simbólica atravessada pelo poder. O autor mostra que a própria palavra já
deixa marcada em si esse poder determinante, posto que vem de “regium”, que tem a
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ver com a realeza. Nessa delimitação, são determinados os sujeitos que estão dentro ou
fora da região, que fazem parte ou não daquela comunidade imaginada. Assim,
determinam-se “nós” e “eles” por meio do compartilhamento simbólico. É por isso, por
exemplo, que um carioca enxerga um paulista como “o outro” e vice-versa.
34
tem mais poder nas mãos tem o direito de determinar os símbolos compartilhados,
assim como tem o direito à proibição de símbolos específicos. As tentativas de
padronização da Feira por parte do poder público, por exemplo, são atravessadas por
processos de seleção e exclusão de elementos que podem ou não ser comercializados no
espaço a partir de determinações impositivas. O mesmo ocorre com a música, nosso
objeto de estudo, já que a programação oficial da feira inclui apenas ritmos entendidos
como típicos da região, apostando no que Albuquerque Júnior chama de “práticas e
discursos nordestinizadores” (2011, p. 79).
Assim, chegamos a Bakhtin (1995), que mostra que toda determinação simbólica
(ou seja, os signos) é, também, ideológica. As diferentes formas artísticas, nesse
sentido, surgem como objetos simbólicos de reforço ou de negação das representações
que dão origem à identidade. Nesse processo, podem colocar em tensão a ideia de
autenticidade e dar origens a outras representações. Afinal, se há diferentes formas de
pensar e os símbolos - que podem, inclusive, ser contrários entre si -, como identificar o
que há de mais autêntico?
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Nas seções que compõem este segundo capítulo, pois, procuro apresentar um
panorama sobre a construção da música tradicional nordestina, passando por Luiz
Gonzaga e a formação dos trios forrozeiros e uma tentativa de compreender como essa
sonoridade consegue materializar identidades. Em seguida, trago à tona o forró elétrico,
que atualiza o ritmo tradicional e entra em cena tensionando o ideal de autenticidade.
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O repertório com base nordestina só passou a ser executado na década de 1940,
após um desafio de um grupo de estudantes cearenses que frequentava o bar em que
Gonzaga tocava. Apesar da resistência, por não confiar na vendabilidade dos ritmos
regionais, o sanfoneiro aceitou o desafio e tocou canções que aprendera com o pai. O
sucesso da noite foi um divisor de águas na vida do pernambucano, que dali em diante
passou a investir na sonoridade tradicional de sua terra e, como ele mesmo dizia, “cantar
o Nordeste”.
As canções executadas por Luiz Gonzaga têm como plano de fundo o Sertão
nordestino, um espaço árido, em que os sujeitos precisam lidar com contratempos
decorrentes da falta de água e do clima, condições que tornam o solo difícil de ser
cultivado. Em suas letras, por um lado, reforça-se o lugar de subalternidade do
nordestino e a migração é apresentada como um processo inevitável para quem quer
sobreviver, reforçando uma narrativa que estava presente na mídia da época. Por outro,
o Nordeste é apresentado como um espaço idílico, principalmente quando comparado
com as cidades grandes do Sudeste. Gonzaga dialogava, então, diretamente com a
população migrante, justamente na época de maior intensidade do fluxo migratório,
como já visto no capítulo anterior. Nesse sentido:
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para os grandes centros urbanos do Sudeste. Assim Gonzaga interpreta na canção “No
Ceará não tem disso não”, de 1950:
Além disso, ele ainda fala sobre o planejamento de suas vestimentas, que
previam realmente a criação de um personagem. Na biografia, o próprio artista conta
que as vestimentas que utilizava foram escolhidas de forma estratégica, pensando em
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apresentar para seu público um personagem formado por elementos sertanejos e do
cangaço. Segundo ele, “o baiano tinha o chapéu de palha, o sulista era aquela roupa do
Pedro [Raimundo]. Mas e o nordestino? Eu tinha a oportunidade de criar sua
característica e a única coisa que me vinha à cabeça era Lampião” (GONZAGA, in:
DREYFUS, 2012, p. 134).
Nesse sentido, é importante considerar que, segundo Orlandi (2015, p. 62), ao
usar a Análise do Discurso como referencial teórico-metodológico, não devemos nos
limitar apenas aos textos, mas incluir também outras práticas discursivas de diferentes
naturezas, como sons e imagens. Partindo para a Etnomusicologia, o mesmo argumento
pode ser explicando quando uma música não se encerra nos seus aspectos auditivos, já
que ela é acompanhada de elementos extramusicais, como define Juan Pablo González
(2013)17. No caso de Gonzaga são suas vestimentas e os cenários utilizados em suas
apresentações.
Dessa forma, podemos ir além das letras das canções de Luiz Gonzaga e partir
para a análise da sonoridade e de elementos extramusicais, com o objetivo de entender
de que maneira ele recorre ao tradicionalismo para construir seu repertório e estabelecer
uma imagem para o migrante.
Por ter sido pioneiro no sentido de levar a música nordestina às paradas de rádio
e ter se consagrado como um mestre, Luiz Gonzaga influenciou artistas que lhe
sucederam, seja nas temáticas exploradas nas canções ou mesmo na sonoridade, já que
ele foi o responsável por consagrar o trio nordestino (triângulo, zabumba e sanfona)
como formação tradicional da música regional.
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Refletindo sobre os modos de tratar a música enquanto objeto de pesquisa, o pesquisador chileno
apresenta a interdisciplinaridade como uma proposta para abordar o objeto de forma mais ampla. Sendo
assim, os elementos extramusicais são aqueles que se desenrolam tangencialmente aos produtos musicais,
mas que ajudam a construí-los e servem como informação sobre eles. Afinal, a música é um produto
histórico, que se desenvolve em relação com seu contexto temporal, local e material.
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A partir do exemplo de Luiz Gonzaga, podemos observar que no início da
diáspora nordestina (década de 40 e início de 50) o migrante era retratado na música
como aquele “matuto” sertanejo que deixava sua terra natal por força das circunstâncias,
mas aguardava com esperanças uma oportunidade de retornar. A seguir, analiso como
essa produção musical se relacionou com a formação da identidade nordestina.
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que a música é um campo de estudo que dá abertura para novas perspectivas teóricas em
questões de materialidade, mediação e afeto.
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Texto original: “In most human cultures, in the absence of a denotative or literal level of meaning,
musical sound engenders a profusion of extra-musical connotations of various kinds – visual, sensual,
emotional and intellectual”.
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“estas são comunidades musicalmente imaginadas que (...)
podem reproduzir ou memorizar formações de identidade
existentes, gerar identificações puramente fantasiosas ou
prefigurar formações de identidade emergentes forjando novas
alianças sociais” (BORN, 2011, p. 381, tradução minha)19;
Como visto na seção anterior, a produção musical de Gonzaga tem uma relação
circular com a identidade migrante nordestina. Ao mesmo tempo em que ela se estrutura
a partir da experiência da migração para o Sudeste, abordando temas como a saudade de
casa e o estranhamento com a cidade grande, ela também serve como elemento
estruturador, já que cria representações e ajuda a cristalizá-las.
3. A música é atravessada por formações mais amplas de identidade social,
ou seja, ela absorve em si as relações hierárquicas e estratificadas de
classe, idade, raça, etnia, gênero e sexualidade;
Como produto histórico, a música de Gonzaga recebe influência de seu contexto
e isso pode ser observado em diferentes recortes. A regionalidade é, com certeza, o mais
evidente deles, já que ele pretendia ressaltá-la. Com ela, porém, surgem também
questões de classe que colocam o nordestino em um lugar de subalternidade e questões
de gênero que põem o feminino em uma posição passiva, em consonância com os ideais
da época.
4. A música está diretamente relacionada às estruturas sociais e
institucionais que permitem sua produção, reprodução e transformação.
Essas podem ser desde o patrocínio de elites religiosas, o mercado, as
instituições culturais públicas, entre outras que são, em suma, as
condições materiais de existência.
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Texto original: “These are musically imagined communities that, as I have shown elsewhere, may
reproduce or memorialize extant identity formations, generate purely fantasized identifications, or
prefigure emergent identity formations by forging novel social alliances”.
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Dessa forma, é possível ver a partir da divisão de Born que os primeiros dois
planos remontam às sociabilidades engendradas pela prática e pela experiência musical,
enquanto os dois últimos remontam às condições sociais e institucionais que permitem
certos tipos de prática musical. É possível entender, assim, que os dois primeiros são
planos criados de dentro da música para fora, pois são as características próprias da
produção musical que têm consequências no social. Os dois últimos, por sua vez,
seguem a lógica inversa (de fora para dentro), já que é o social que influencia a
produção musical.
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Como já foi discutido até aqui neste trabalho, devemos ressaltar que essas
canções tiveram um papel protagonista na consolidação da identidade regional, tanto
para os próprios nordestinos se reconhecerem como também para que o “outro” pudesse
categorizá-los e compreender quem eles são. Sendo assim, “os repertórios musicais
[nordestinos] projetam no espaço sonoro imaginários de alteridade, funcionando como
símbolos de grupos sociais identificados como ‘eles’” (TROTTA, 2014, p. 32). Da
mesma maneira, esse repertório serve como forma de compartilhamento entre os
nordestinos:
Nesse processo, a música atua de forma particularmente efetiva no
estabelecimento de laços identitários e na imaginação de
pertencimento compartilhado. Os hinos, cantos e repertórios de um
“lugar” povoam afetivamente esse espaço com vivências individuais e
coletivas que inculcam nos indivíduos um sentimento de coletividade
e de pertencimento (TROTTA, 2014, p. 31).
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expressões culturais que ajudassem a apaziguar esse sentimento e organizar sua
identidade.
O cenário muda a partir dos anos 1960, quando a procura pela música de
Gonzaga começa a declinar. Nesse momento, o mercado fonográfico investia na
produção de uma música nacional e o forró era regionalizado demais para ser
representante da cultura brasileira como um todo.
É preciso lembrar que, na segunda metade dos anos 1950, o governo de
Juscelino Kubitschek tinha como filosofia política o desenvolvimentismo, com
incentivo à industrialização e às culturas urbanas e tendo como meta a criação de um
Brasil tipo exportação. Isso exigia também um esforço cultural, é claro, já que
expressões regionais eram folclóricas demais para servirem como representantes desse
novo país. E foi nesse cenário que surgiu a Bossa Nova, que, como mostra Christopher
Dunn (2009), estava longe de ser uma unanimidade entre os críticos e artistas, mas
acabou cativando a opinião pública pela sua capacidade de oferecer um produto
refinado e representante da elite econômica.
Uma década depois, foi a vez da consolidação da MPB enquanto gênero, graças
aos festivais de música da televisão, que serviram como vitrine para artistas hoje
consagrados, como Caetano Veloso, Edu Lobo, Chico Buarque, entre outros. Nesse
momento, aliás, como mostra Dunn, foi possível trazer novas experimentações para a
música brasileira, como a incorporação da guitarra elétrica.
Em um cenário que priorizava a produção de uma música nacional, então,
Gonzaga ficou restrito aos circuitos regionais. Sua música já não dialogava com a
população urbana, que estava ocupada batendo palmas ou vaiando artistas nos
programas de auditório.
Como mostra Draper III, esse declínio da música tradicional exigiu uma
reinvenção, que surgiu por meio de uma alegoria, possível por meio da combinação de
fragmentos do passado para fazer surgir uma nova estrutura que não reconstrói o estado
anterior, mas supera o estado de destruição (DRAPER III, 2014, p. 52). Foi assim,
então, que surgiu uma nova leva de forrozeiros ou artistas que evocavam as referências
do forró, agora dialogando tanto com o passado tradicionalista quanto com a produção
nacional. Alguns exemplos que podem ser citados são Elba Ramalho, Alceu Valença e
Zé Ramalho. No entanto, até mesmo Raul Seixas, categorizado como roqueiro,
45
contribuiu para esse novo momento do forró, já que incorporava referências do ritmo
entre suas guitarras e baixos elétricos.
Nos anos 1990, surge um novo subproduto do forró, que Draper III chama de
“forró universitário”. De acordo com o autor:
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elétrico rompe com essa cristalização. Os representantes do novo subgênero estão
constantemente se atualizando e se reinventando, mesclando sonoridades de outros
ritmos e apostando em temas atuais em suas canções, que já não se preocupam tanto em
conversas com um coletivo, mas sim com experiências individuais.
Essa mudança foi, com certeza, um sucesso de mercado, o que se prova pela alta
popularidade que as bandas de forró elétrico mantêm até hoje. A banda Calcinha Preta,
por exemplo, que foi criada em 1995, registra hoje 921.56620 ouvintes mensais na
plataforma de streaming Spotify. Já o cantor Wesley Safadão, que começou sua carreira
em 2003 como vocalista da banda Garota Safada, registra mais de 8 milhões e meio de
ouvintes mensais na mesma plataforma.
Em contrapartida a esse sucesso de público, porém, as bandas de forró elétrico
são alvo de críticas devido à sonoridade e entram no centro de discussões sobre a
autenticidade da cultura nordestina. Essa discussão será ilustrada no próximo capítulo, a
partir da observação da sonoridade na Feira de São Cristóvão.
20
Dado coletado no dia 08 de setembro de 2021.
47
3. OS LUGARES DA MÚSICA NA FEIRA DE SÃO CRISTÓVÃO
Quem pensa em sair para dançar no Rio de Janeiro a princípio pode se lembrar
do samba de gafieira ou do funk carioca. Ambos os ritmos são fortemente associados à
cidade e fazem parte da identidade local. Mas Jackson do Pandeiro não estava errado
quando previu que o forró podia fazer parte da programação local e cair no gosto dos
moradores da Cidade Maravilhosa. Na Feira de São Cristóvão, o ritmo e seus derivados
dão o tom das noites, quando milhares de pessoas se dirigem ao Pavilhão para assistir às
bandas e trios forrozeiros e arriscar alguns passos da dança, sozinhas ou acompanhadas.
Como já foi dito na seção 1.3, os shows realizados nos palcos da Feira de São
Cristóvão são o principal atrativo para o público, que lota o espaço principalmente
durante os fins de semana, quando a Feira funciona sem parar de sexta até a noite de
domingo. Nesses dias, a programação costuma trazer bandas de projeção nacional, em
especial aquelas vinculadas ao forró elétrico, mas também inclui apresentações de
grupos e artistas tradicionais, como trios forrozeiros e repentistas.
A existência dos palcos é algo que merece destaque quando se trata da
transferência para o Pavilhão. Enquanto a Feira era realizada nas ruas no entorno do
Campo de São Cristóvão, já era comum a apresentação de trios forrozeiros e grupos de
gêneros afins em meio às barracas. Nesses casos, os próprios feirantes contratavam os
artistas como estratégia para atrair clientela, que degustava os sabores regionais
enquanto cantava e dançava ao som das músicas entendidas como típicas.
Com a mudança de local, as atrações musicais ganharam maior destaque e
passaram a ser agendadas por uma programação oficial. Hoje em dia, elas se apresentam
em sete palcos diferentes, sendo três palcos principais e quatro menores. O palco
central, localizado na Praça dos Repentistas, é exclusivo para a apresentação de
sanfoneiros e repentistas que produzem música à moda antiga. Nos outros, a
distribuição das atrações se dá a depender do porte dos shows, como explicarei adiante.
Além dos palcos com programação oficial, ainda destaco a presença dos bares com
karaokê, que extraoficialmente também fazem parte da paisagem sonora da Feira de São
Cristóvão e colocam mais um elemento de tensão na construção da realidade.
Durante as visitações realizadas, foram selecionados dois palcos específicos para
a observação: o Palco Jackson do Pandeiro e o palco da Praça Frei Damião (ver a figura
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1 para identificar a localização). A escolha se deu porque ambos apresentam
programações e dinâmicas interessantes para observar como a Feira opera com base em
hibridismos, já que ambos são contraditórios entre si. Enquanto o primeiro privilegia
ritmos modernos (como o forró elétrico e o brega), o segundo recorre à tradição, mas os
dois sempre apelam para uma suposta essência cultural nordestina.
Nos tópicos a seguir, faço uma descrição das dinâmicas dos palcos nos dias de
visitação, levando em consideração a sonoridade das bandas, os temas abordados nas
letras das canções e também as formas de sociabilidade que se desenrolam na plateia,
considerando as diferentes formas de dançar e até mesmo de organização do público
diante do palco. A partir dessa descrição, é possível fazer a análise sobre como ambos
os palcos, apesar de distintos e tensos entre si, fazem parte da construção de uma ideia
de nordestinidade.
21
GONZAGA, Luiz. Forró no Escuro. In: O Rei do Baião. RCA Victor, 1957.
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A poucos metros dali, os espectadores do Palco Jackson do Pandeiro assistiam a
uma apresentação de uma banda de forró elétrico, que executava covers de sucessos
atuais, de bandas como Garota Safada e Aviões do Forró. A instrumentação da banda
trazia a sanfona, protagonista da sonoridade forrozeira, mas ela estava acompanhada
também de guitarra e baixos elétricos e de uma percussão feita por baterista, além de um
naipe de metais.
Em contraponto ao outro, o Palco Jackson do Pandeiro se encontrava iluminado
e se valia de holofotes e outros efeitos de iluminação para compor a cenografia. Na
plateia, crianças, casais e pessoas sozinhas se distribuíam de forma desorganizada no
ambiente e não havia uma separação clara entre aqueles que dançavam e os que apenas
assistiam ao show. Além disso, as coreografias do público iam muito além dos passos
básicos do forró tradicional, com direito a rodopios dignos de uma apresentação
ginástica rítmica. Dessa forma, os jovens casais investiam em performances mais
extravagantes e a distribuição dos pares na plateia não apresentava uma organização
clara, ao contrário do palco anterior.
Vê-se, então, que há em ambos os casos uma sensualidade implícita na maneira
de dançar, mas o segundo caso leva essa sensualidade a um nível mais arrojado. Nas
palavras de Cláudia Matos:
50
serviu como elemento de coesão para reunir os retirantes em torno da mesma ideia e
fortalecer uma noção de pertencimento a um mesmo local, ainda que fizessem parte de
cidades ou até mesmo Estados diferentes. Sobre a produção de Luiz Gonzaga, precursor
do ritmo, Albuquerque Jr. diz que:
Já o forró elétrico é uma vertente que está diretamente relacionada à vida jovem
e urbana, com a abordagem de temas como relacionamentos amorosos, bebedeira,
traição e festas. Segundo Felipe Trotta, “o forró contemporâneo é uma música
nordestina nacional, que [...] constrói uma nordestinidade inclusiva, feliz com seu
pertencimento regional, mas querendo falar outras línguas” (2014, pp. 160-161). Nesse
caso, podemos entender que a nordestinidade se faz presente no forró elétrico
principalmente a partir da sonoridade, tendo em vista que a sanfona, que se consolidou
como elemento representante da cultura nordestina, faz parte da instrumentação, assim
como, eventualmente, triângulo e zabumba. Complementando a citação de Trotta:
Como visto na seção 2.3, essas inovações que o forró elétrico incorpora são
justamente o ponto de tensão entre o gênero e o forró tradicional. Os trios forrozeiros
arrogam para si a missão de manter uma cultura que estaria ameaçada e, para tanto,
precisaria ser preservada a partir da reprodução fiel do que era feito décadas e décadas
no passado. Assim, seu formato se cristalizou, não somente na composição do grupo
(triângulo - sanfona - zabumba), mas também nos temas abordados nas canções. Os
51
elementos extramusicais, aliás, também servem para observar como a estética visual
também permanece: é comum ver os músicos vestidos a caráter, com camisas de chita e
chapéu de couro. Nesse mesmo caminho estão os repentistas e cordelistas, que também
se fazem presentes na Feira.
Em um ambiente que pretende ser o relicário da cultura nordestina, então, esses
músicos tradicionais, bem como os cordelistas, questionam a presença das bandas de
forró elétrico. Em versos, o cordelista Raimundo Santa Helena expôs o
descontentamento:
Como se vê nesses versos, o forró elétrico é associado até mesmo a uma cultura
estrangeira, o que remonta às discussões sobre a incorporação da guitarra elétrica na
MPB22, que seria uma ameaça à autenticidade nacional, mas foi desafiado pelos músicos
da Tropicália23. Estes, por sua vez, conseguiram se fazer ouvir e criaram um ponto de
inflexão na música popular brasileira, que deu início a um novo capítulo depois dos
festivais de televisão do fim dos anos 1960.
Assim como os tropicalistas há 60 anos, experimentando novas instrumentações
e se afiliando a uma cultura urbana, os grupos de forró elétrico são acusados de não se
importar com a manutenção das tradições e de tirar o brilho daqueles que ainda tentam
preservá-la. Muitas acusações trazem o argumento da preocupação com o mercado: o
forró elétrico se “venderia” em nome de dinheiro. O fato é que, em seu modo de
produção, eles atualizam o forró incorporando sons, temáticas e até uma estética urbana
22
Em julho de 1967, foi realizada uma passeata contra a guitarra elétrica em São Paulo, sob o pretexto de
defender a música nacional da influência estrangeira.
23
Inspirados no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, que defendia a incorporação de
elementos da cultura estrangeira para fortalecimento da cultura nacional, os músicos tropicalistas
apostaram em uma miscelânea de referências na sonoridade, nas letras e nas suas apresentações visuais.
Para mais informações, ver Dunn (2009).
52
e deixam para trás o saudosismo das canções antigas. Mas por que isso não poderia ser
uma reinvenção da identidade nordestina?
Como visto na seção anterior, os dois tipos de forró presentes nos palcos da Feira
de São Cristóvão estão em constante tensão, mas essa discussão não se limita à feira. No
primeiro capítulo do livro “No Ceará não tem disso não” (2014, pp. 23 – 45), Trotta traz
como exemplo a polêmica que envolveu o então Secretário de Cultura da Paraíba, o
cantor Chico César, quando este se recusou a contratar bandas de forró elétrico para os
festejos juninos de 2011. Na ocasião, o Secretário se referiu ao ritmo das bandas como
“forró de plástico” e afirmou que elas nada tinham a ver com a “herança tradicional
nordestina”.
Em contrapartida às tensões, Jack Draper III nos mostra que é possível traçar
uma linha do tempo contínua entre o desenvolvimento do Baião de Luiz Gonzaga e a
explosão do forró elétrico. Para o autor, o surgimento deste último só foi possível com a
transformação do ritmo tradicional em uma expressão alegórica, que foi o que permitiu
o ressurgimento do forró no mercado fonográfico nacional após a queda de
popularidade dos ritmos tradicionais.
Sendo assim, segundo o autor, o forró elétrico seria responsável pela redenção
do forró tradicional, possível graças a um processo de recorte e colagem de aspectos
essenciais a uma nova linguagem e estética, como a união dos instrumentos tradicionais
a sonoridades eletrônicas. Nas palavras do autor, a alegoria “implica vasculhar as ruínas
do passado para combinar fragmentos em uma nova estrutura que não nos une em um
todo, mas antes excede as harmonias remotas em seu estado de destruição ou arruinado”
(DRAPER III, 2014, p. 52). De acordo com Canclini, “a análise empírica desses
processos, articulados com estratégias de reconversão, demonstra que a hibridação
interessa tanto aos setores hegemônicos como aos populares que querem apropriar-se
dos benefícios da modernidade” (2003, p. 22).
53
É importante ressaltar, no entanto, que não são apenas as bandas de forró que
têm lugar na programação. Os forrós tradicional e elétrico se configuram como principal
atrativo, especialmente para o público migrante, mas há também outros ritmos regionais
que fazem parte da construção sonora da Feira, como o brega ou até mesmo o calipso,
oriundo da Região Norte.
Além das bandas ao vivo, ainda existem diversos bares com karaokês nas vielas
do Pavilhão, que também contribuem para a construção de uma paisagem sonora na
Feira de São Cristóvão. Eles chamam a atenção e merecem ser mencionados aqui
porque rompem completamente com qualquer noção de regionalidade e sua trilha
musical depende muito mais do perfil dos clientes que aparecem a cada noite do que de
regras pré-estabelecidas pela administração local.
Dessa forma, enquanto os palcos trazem artistas que investem em sonoridades
representativas da identidade nordestina - ainda que haja controvérsias entre eles - as
ruas internas com seus karaokês são território livre para a reprodução de qualquer
gênero musical. Durante as visitas, por exemplo, era comum ouvir cantorias desafinadas
de versões de canções internacionais, que nada têm a ver com a história dos migrantes
que deram início à história da Feira. Fora dos palcos, basta caminhar pelas pequenas
ruas para ver as brechas que permitem fugir completamente do ideal de autenticidade
nordestina.
A construção da sonoridade da Feira pode ser entendida, então, como uma
operação formada por hibridismos, “processos socioculturais nos quais estruturas ou
práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas
estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2003, p. 19). As expressões que a compõem
confundem as fronteiras entre o urbano e o sertanejo, entre o tradicional e o elétrico, e, a
partir dessas controvérsias e de seus pontos de contato, tentam criar um ambiente
regional nordestino no meio do Rio de Janeiro.
A mesma lógica se observa na cenografia local, que apela principalmente a
elementos do Sertão e tem como resultado uma estética que remete às paisagens áridas e
à cultura desses locais, com o uso de bandeirinhas de São João, toalhas de mesa de
chita, esculturas de barro e representações de cactos. Apesar disso, a cenografia também
inclui imagens de praias famosas e do cotidiano litorâneo, como as jangadas que saem
para pescar e coqueiros, presentes nas paredes dos restaurantes ou em banners no local.
54
Draper III atenta para o mesmo fenômeno presente na Feira de São Cristóvão
quando avalia o Centro de Tradições Nordestinas de São Paulo (CTN-SP) e um evento
chamado São João do Nordeste de São Paulo, realizado em 2004. Segundo o autor,
ambos os ambientes tentavam emular a paisagem nordestina, com cenografias que
remetem às vilas sertanejas, e tinham como principal objetivo ser um espaço para matar
as saudades da terra natal, oferecendo produtos e comidas regionais, tal qual acontece
na Feira de São Cristóvão.
O autor dá maior destaque, no entanto, à programação musical de ambos os
eventos. De acordo com ele, os palcos principais estavam reservados para bandas de
forró elétrico, compostas especialmente por músicos jovens, enquanto “os músicos mais
velhos, tocando forró tradicional e outras músicas nordestinas como pífano e cantoria,
podiam ser encontrados no espaço mais inspirador da saudade, localizado atrás das
arquibancadas” (DRAPER III, 2014, p. 79).
Dessa forma, para compreender a formação da nordestinidade no ambiente da
Feira de São Cristóvão (e a mesma afirmativa seria válida para o estudo levantado por
Draper III), é preciso levar em consideração o trabalho de duas autoras, Maura Penna e
Kathryn Woordward.
Segundo Maura Penna, que se dedicou à compreensão da formação da
identidade nordestina, quando traços e práticas culturais são selecionados como
símbolos de uma identidade, ainda que a escolha seja feita por sujeitos exteriores a ela,
como é o caso da Prefeitura do Rio, eles buscam reproduzir o autêntico e o tradicional
(PENNA, 1992, p. 77).
Já segundo Kathryn Woodward (2014), a identidade é construída em um
processo relacional. Em outras palavras, ser parte de um grupo específico implica não
ser parte de um outro grupo. Ou seja, ser nordestino só faz sentido pois existem outras
identidades regionais, com seus próprios traços que se diferenciam.
Dessa forma, o forró, seja elétrico ou tradicional, bem como os outros ritmos que
compõem a programação da Feira, funcionam como elementos demarcadores da
identidade nordestina, na medida que servem como instrumento de identificação entre
os nordestinos migrantes que frequentam o espaço. Na mesma medida, eles funcionam
como elementos de diferenciação, ocupando o lugar do “outro”, já que a sua sonoridade
não faz parte da cultura local do Rio de Janeiro.
55
Em um ambiente, aliás, que permite que haja brechas para a presença de
performances musicais que em nada dialogam com a cultura nordestina, como é o caso
dos karaokês, percebe-se que a questão da autenticidade se tornou uma preocupação à
parte para a administração. Depois de inúmeras negociações para tornar a Feira de São
Cristóvão a manifestação mais típica da cultura nordestina, hoje em dia é possível
observar que esses regulamentos estão afrouxando e dando espaço para outras
expressões. As disputas, então, são muito mais internas, entre os personagens que
constroem a feira na prática e tentam provar que suas formas são as mais autênticas e
representativas do migrante nordestino.
Para além das controvérsias sobre o valor dos ritmos que constroem a sonoridade
da Feira, o que sabemos é que o forró, independentemente de sua roupagem, é parte do
imaginário sobre o Nordeste e se coloca na programação da Feira de São Cristóvão
enquanto elemento essencial à nordestinidade. “O forró é um marco identitário, um
símbolo de pertencimento, uma chave de compartilhamento de ideias, um ambiente de
interação festiva e um eixo de negociações culturais” (TROTTA, 2014, p. 17). O que se
pode tirar de tudo isso, então, é que a história da Feira de São Cristóvão ainda está
sendo escrita, mas algo parece fácil de afirmar: o forró vai continuar!
56
CONSIDERAÇÕES FINAIS
57
temas abordados e até mesmo à sociabilidade que se forma ao redor de cada um deles –,
a disparidade das bandas que se apresentam nesses palcos é o que nos chama a atenção.
Enquanto os trios forrozeiros arrogam para si a tarefa de proteger e resgatar uma
essência nordestina, o forró elétrico se coloca como uma versão atualizada, que, de
forma alegórica, faz uma colagem de traços tradicionais com uma linguagem urbanizada
e moderna.
Apesar das dissonâncias e até mesmo das disputas que os artistas travam entre si
para defender a autenticidade nordestina, vimos que a versão modernizada é produto
direto do forró tradicional e pode, inclusive, ser considerada como a responsável por
manter o gênero forró dentro do mercado fonográfico. Isso porque foi graças à
atualização da sonoridade e de seus temas que o ritmo foi resgatado, após um período
de decadência entre as décadas de 1950 e 1970, como é demonstrado por Draper III.
Pensando especificamente na produção da nordestinidade da Feira de São
Cristóvão, tanto o forró elétrico quanto o tradicional se posicionam como elementos
fundamentais na construção da sonoridade. Inseridos na Feira, os dois ocupam,
inclusive, posições invertidas em relação ao senso comum, já que o forró tradicional
está resumido a um pequeno palco, que pode ser definido nas palavras de Draper III
como o “espaço da saudade”.
Vemos, então, que, na construção de uma sonoridade nordestina para a Feira
atualmente, ficam de fora as discussões sobre quais ritmos merecem mais ou menos
valorização, quais seriam mais ou menos tradicionais, quais representariam melhor a
cultura do Nordeste. Em vez disso, a programação investe em uma hibridização, a partir
da qual sintetiza em seu interior duas vertentes que são importantes na formação
cultural da Região Nordeste, seja por questões mercadológicas, de sociabilidade ou
saudosismo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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