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O CRIME DE ABUSO
DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA
(INSIDER TRADING)
A» * 4 9 JDQWtfS
C o im b ra E d ito ra
2006
om posição e im pressão
C oimbra Editora, Limitada
ISBN 978-972-32-1408-3
Maio de 2006
PALAVRAS EVENTUALMENTE NECESSÁRIAS
V:
F
1. REFLEXÕES A PROPÓSITO DA INTROMISSÃO DO
DIREITO PENAL NO MERCADO DE VALORES MOBI
LIÁRIOS
(,l) Cfr. R uy E nnes U lrich . ob. cit., págs. 71 e segs.; A driano A nthero ,
Comentário ao Codigo Commercial Portuguez. Volume 1, Porto: Typographia «Artes
& Lettras», 1913, págs. 154 e segs.
(12) Dioco P ereira Forjaz de S ampaio P imentel, Annotações ao Livro Pri
meiro da Parte Primeira do Codigo de Conunercio Portuguez, que se inscreve das pes
soas do commercio, Coimbra: Imprensa da Universidade,. 1857, pág. 68. Sobre as van
tagens da bolsa, já à luz do Código Comercial de 1888, v. R uy E nnes U lrich , ob. cit.,
págs. 14 e segs.
(13) *Rüy^Ennes ‘UErichtioí». cit., pág. 18. Afirmação, em parte, reproduzida
por A driano A nthero, ob. cit., pág. 154.
(14) Sobre a evolução oitocentista e posterior das regras alemãs relativas à bolsa,
v. E berhaRD Schwark, Borsengesetz. Kommentar zuni Bõrsengesetz und den borsen-
rechtlichen Nebenbestimmungen, 2. neubearbeitete Auflage, München: C. H. Beck’sche
Vertagsbuchhandlung, 1994, págs. 31 e segs.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 11
impõe que «É dever do' corretor guardar inteiro segredo de tudo quanto
respeita às negociações, de que se encarrega» (artigo 115.°). Em 1837,
é publicado o Regulamento para as Praças Commerciaes do Reino e o
Regulamento da Corporação dos Corretores. É instituída a Câmara dos
Corretores — entidade responsável pela administração e funcionamento
da bolsa — , prevista a obrigatoriedade de registo das cotações (18)t
regulada a forma de arrecadação e escrituração das receitas e destacados
os corretores especializados em operações do mercado de valores (19).
Surpreendem-se, assim, notas que ainda hoje as bolsas mantêm: a inter
mediação profissionalizada e a disciplina das cotações.
O Código Comercial de 1888 — de que aindá são mantidas algu
mas disposições em vigor — dedicou, no Livro I, o Título VII à disci
plina dos corretores, e integrava as bolsas no Título VIII, dedicado aos
«lugares destinados ao comércio». No elenco dos actos de comércio
objectivos surgiam as operações de bolsa, reguladas nos artigos 351.°
a 361.° do Código Comercial (20).
Pese embora os avanços que esta regulação incorpora, a bolsa con
tinua a ser um mercado indiferenciaclo que congrega valores, serviços e
mercadorias (21). Pouco mais de um ano após a publicação do Código
(*8) Cfr. Rui M anuel de F igueiredo M arcos, ob. cit., pág. 646.
í29) Cfr. Rui M anuel de F igueiredo M arcos, ob. cit., pág. 646.
(30) r0 CSC ToT recèntemcnte-alterado -pelos JíecretosTLeis n.°.s. 52/2006, de 15
^ de Março, e 76-A/2006, de 29 de-Marçó.- liste' ultimo diploma republica em anexo o CSC.
16 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
(33) Esta matéria encontra-se regulada pelo Decreto-Lei n.° 394/99, de 13 de Outu
bro, alterado pelo Decreto-Lei n.° 8-D/2002, de 15 de Janeiro. As antigas Associação
da Bolsa de Valores de Lisboa e Associação da Bolsa de Derivados do Porto foram
substituídas pela BVLP, S.A. — hoje designada Euronext Lisbon — , e a Interbolsa,
Associação para a Prestação de Serviços à Bolsa de Valores foi substituída pela Inter-
botsa, S.A.
(34) Cfr. J oão S oares da S ilva, «Euronext — alguns aspectos de enquadra
mento e estrutura jurídica», AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume IV, Coim
bra: Coimbra Editora, 2003, págs. 347 e segs.
(35) Veja-se o Decreto-Lei n.° 66/2004, de 24 de Março.
(3S) Sobre a tipicidade dos valores mobiliários, v. J osé de O liveira A scensão ,
«O actual conceito de valor mobiliário», AAVV, Direito dos Valores Mobiliários,
Volume III, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, págs. 54 e segs. Sobre as alterações
introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 66/2004, de 24 de Março, e o conceito de valor mobi
liário, v. J osé de O liveira A scensão , «O novíssimo conceito de valor mobiliário»,
AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume VI, Coimbra: Coimbra Editora, 2006,
págs. 139 e segs. Sobre o sentido da atipicidade dos valores mobiliários, v. J oaquim de
S ousa R ibeiro , «Autonomia privada e atipicidade dos valores mobiliários», AAVV,
Direito dos Valores Mobiliários, Volume VI, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, págs. 299
e segs. A liberdade de criação de valores mobiliários levanta o problema da sua desig
nação identificativa. A CMVM, atenta ao relevo informativo desta matéria, emitiu a
Recomendação sobre Designação Identificativa de Valores Mobiliários. O texto desta
Recomendação encontra-se disponível em www.cmvm.pt.
2
18 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
(37) Cfr. K laus J. Hoft , «Norme etiche e.norme giuridiche nel diritto delfeco-
nomia: uno studio sulfautodisciplina tedesca degli insiders», Rivista delle Società, 1974,
pág. 1046. K laus J. H oft, «The european insider dealing directive», Common Market
Law Review, 27 (1990), pág. 51, refere que, em Inglaterra, no tempo do South Sea
Bubble, foram reportados casos de insider dealing.
(3B) Na doutrina anglo-saxónica, vejam-se, por todos, R obert C harles C lark ,
Corporate law, Boston/Toronto; Little, Brown and Company, 1986, pág. 264; Paul L.
D avies, ob. cit., pág, 443.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 19
de 1934 (43). Ao abrigo dos poderes de regulação que lhe são reconhe
cidos, a Securities Exchange Commission (SEÇ) (44) emitiu, em 1942,
a Rule 10b-5 que, entre outros aspectos, considera «unlawful» «to
make any untrue statement of a material fact or to omit to State a
material fact» (45) em conexão com a compra ou venda de «securi
ties» (46). A verdade é que o carácter abrangente da linguagem utili
zada na Rule 10b-5 (47) permitiu que sob as suas disposições fossem
acolhidas realidades diversas, mas no que nos interessa mais directa-
mente, a doutrina refere que esta disposição teve um papel importan
tíssimo no combate ao insider trading, ao ponto de se dizer que a
maior parte da jurisprudência que ao abrigo dela se profere é sobre
aquela prática (48).
A partir de 1942, a SEC começou por sustentar, com base na
meses foi lucrativo ou não. Por isso, os tribunais, quando se referem a esta disposi
ção, designam-na como «flat», «arbitrary», «strict» «prophylatic». Sobre as ambigui
dades que esta disciplina, apesar de tudo, apresenta, cfr. R obert C harles C lark , ob.
cit., págs. 293 e segs.
(43) O texto integral das leis relativas à «securities industry» está disponível no
sítio oficial da SEC (www.sec.gov.). Nos anos 80, o Congresso norte-americano adop-
tou o Insider Trading Sancüons Act (1984) e o Insider Trading and Securities Fraud
Enforcement Act (1988) que reconhecem o carácter ilegal do insider trading. Para a des
crição destas medidas, cfr. R obert W. H amilton, The law o f corporauons in a nutshell,
St. Paul: West Group, 2000, págs. 509 e segs. Sobre a eficácia daqueles instrumentos
normativos, cfr. J ames D. Cox / T homas L ee H azen , ob. cit., págs. 699 e segs.
t44) Sobre esta entidade, v. Louts Loss / J oel S eligman, Fundamentais o f secu
rities regulation, third edition, Boston/New York/Toronto/London: Little, Brown and
Company, 1995, págs. 50 e segs.
(45) Sobre a gênese desta disposição, cfr. Louis Loss / J oel S eligman, ob. cit.,
págs. 777 e segs. e 850 e segs. Em Agosto de 2000, a SEC adoptou o Rule 10b)5-l
e o Rule 10b)5-2 sobre Selective Disclosure and Insider Trading.
(46) Sobre a noção de security, v. a Section■3 (10) do Securities Exchange Act
de 1934, e Louis Loss / J oel S eligman, ob. cit., págs. 169 e segs.
(47) Sobre as alterações introduzidas pelo «Sarbanes-Oxley Act of 2002», v.
J ames D. Cox í T homas L ee H azen , ob. cit., pág. 660.
(48) Refere R obert W. H amilton, ob. cit., págs. 505 e segs., que a disciplina
do insider trading foi formatada pelos contributos de quatro importantes decisões
do Supreme Court o f United States. São elas: Chiarella v. United States (1980);
Dirks v. SEC (1983); Carpenter v. United States (1987); e United States v. 0 ‘Hagan
(1997).
1. Reflexões a propósito cia intromissão do direito penal no mercado... 21
(49) Sobre esta retórica argumentativa — que na sua gênese visava «insiders or
the Corporation itself trading on inside information about corporate assets or pros-
pects» — e os alargamentos que tem conhecido, veja-se V ictor B rudney , «Insiders,
outsiders, and informational advantages under the federal securities Iaws», Harvard Law
Review, 93 (1979-1980), págs. 323 e segs. Conclui B rudney , ob. cit., pág. 376,
«that the rule forbids exploiting unerodable informational advantages that one trader
has over another».
(i0) Como refere R obert C harles C lark, ob. cit., pág. 352, òs membros de
administração de sociedades com capital social disperso (public held corporations) são
pessoas completamente estranhas aos investidores que os demandam por violação da dis
ciplina antí-insider trading. Acrescenta que os tribunais têm condenado os primeiros,
não porque os investidores tenham depositado alguma confiança neles como indiví
duos, mas pela natureza, papel ou status que eles ocupam num sistema desenvolvido de
relações que caracteriza a moderna sociedade e os mercados de capitais. «The direc-
tors, officers, and controlling shareholders of public corporations occupy standardized roles:
Much of what they do is determined not by specific contrats but by law or custom — by
“implicit form contracts”». Na doutrina portuguesa, para a discussão das lacunas da
disclose or abstain theory, v. F rederico de Lacerda da C osta P into , O novo regime
dos crimes e contra-ordenações no Código dos Valores Mobiliários, Coimbra: Almedina,
2000, págs. 47 e segs.
22 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
(54) Veja-se, entre nós, o relevo que o Regulamento da CMVM n.° 7/2001 — com
as alterações introduzidas pelos Regulamentos da CMVM n.os 11/2003 e 10/2005 — sobre
o govemo das sociedades cotadas atribui às informações sobre a remuneração dos admi
nistradores. O texto consolidado do Regulamento n.° 7/2001 encontra-se disponível
em www.cmvm.pt. Sobre a remuneração dos administradores, v. infra.
(55) O que conduziría ao fenômeno conhecido por «moral hazard». Sobre este
aspecto, v. K laus J. H opt , «The european insider dealing directive», cit., pág. 53.
(56) «Short sale» significa que o investidor vende acções de que ainda não dis
põe (normalmente emprestadas por um intermediário financeiro) e que as acções empres
tadas serão substituídas por outras compradas mais tarde. Uma vez que a venda pre
cede a compra, o investidor que faz uso desta técnica beneficiará com a queda do preço
entre a venda e a compra. Cfr. R obert C harles C lark ob: cit., pág. 278. Entre nós,
defendendo a legitimidade do «short sale», v. C arlos C osta P ina, Instituições e mer
cados financeiros, Coimbra: Almedina, 2005, pág. 348, embora não deixe de assinalar
a forte natureza especulativa e o perigo de se criar uma «espiral de desvalorizações».
Sobre o tema, v., ainda, C élia R eis / R ita D uarte Sousa / Isabel V idal / P edro W il-
ton , «Operações de short selling», Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, 12
(2001), págs. 159 e segs.
24 0 Crime de Abuso de Informação Privilegiada
preço de venda (mais alto) e o preço de compra (mais baixo). Por fim,
em sociedades de grandes dimensões, surge atenuada a influência do
comportamento individual (quer este seja benéfico quer seja nefasto)
nos resultados fmais. Em sociedades dotadas de múltiplos departa
mentos, com uma complexa estrutura organizatória, será difícil conseguir
individualizar e aferir o contributo de cada um para o resultado final. Na
verdade, também é preciso referi-lo, o problema de tentar atribuir o
valor criado a uma determinada participação individual em organiza
ções que dispõem de centenas de managers também afecta as socieda
des que praticam esquemas explícitos de compensação (57). Contudo,
esquemas transparentes de compensação propiciam maior controlabilidade
e, por isso, mostram-se mais adequados (58).
A reflexão crítica que acabámos de desenvolver centrou o insider tra-
ding na relação entre os corpo rate insiders e a instituição administrada.
E, pese embora o relevo e a atenção que o pensamento de Manne tem
recebido, a realidade normativa norte-americana e europeia consolidou o
caracter ilícito do insider trading e, por isso, este não pode ser integrado
no rol dos benefícios legítimos a atribuir aos administradores das socie
dades. Estabilizada a necessidade de repressão do insider trading, o que
urge questionar é se tal repressão se impõe em razão de interesses privados
e, por isso, disponíveis (os interesses da sociedade administrada e dos seus
accionistas em uma correcta gestão). É que se forem estes os interesses
lesados pelo insider trading, sempre se poderá perguntar — como per
guntaram algumas vozes na doutrina norte-americana — por que razão '
os contratos que enquadram a actividade dos administradores normal
mente não proíbem tal prática (59). Questiona-se: se o insider trading é
tão nefasto, por que razão as sociedades, em regra, não adoptam medi
das que expressamente proíbam os administradores de se apropriarem ;
dos benefícios que lhe são inerentes? Desta evidência — de que a regu- V
lação privada, em regra, não prevê expressamente a proibição do insider
trading — pretende-se sustentar a não ofensividade de tal conduta.
(62) Refira-se, a título de exemplo, um episódio ocorrido nas relações entre a Suíça
e os EUA. Nos anos 80 do século passado, a ausência de disciplina penal suíça que
punisse, o insider trading motivou alguns conflitos entre autoridades suíças e norte-ame
ricanas. Em 1981, a SEC pediu informações a vários bancos suíços sobre operações efec-
tuadas em bolsas norte-americanas. As entidades suíças interpeladas, refugiando-se no
segredo bancário, recusaram prestar as informações pedidas. Depois de intensas nego
ciações, Suíça e EUA subscreveram, em 1982, o «Memorandum of Understanding».
Sobre esta questão, cfr. P eter Forstmoser, «Disciplina penale deli’insider trading (La
nuova norma penale svizzcra contro le operazioni di insider trading)». Rivista delle
Società, 1989, págs. 90 e segs.
(w) Entretanto revogada pelo artigo 20.° da Directiva 2003/6/CE do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2003, relativa ao abuso de informação
privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado), JO L 96 de 12 de Abril
de 2003,,: ■
-:i_ (-) —Sobre a gênese e alcance desta directiva, cfr. Klaus J. H opt, «The european
insider dealing directive», cit., págs. 51 e segs.; M anning G ilbert W arren III, Euro
pean securities regulaiion, The Hague/London/New York: Kluwer Law International,
2003, págs. 137 e segs.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 27
i
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 29
C77) Entre nós, continuam em vigor os artigos 449.° e 450.° do CSC que con
templam sanções não penais para o abuso de informação. E a protecção dos investidores
— não curando, de momento, da sua refracção penal — encontrou acolhimento legal no
CVM, por intermédio de medidas não penais. Sobre esta questão, v. Sofia N asci
mento R odrigues, A protecção dos investidores em valores mobiliários, Coimbra: Alme-
dina, 2001, págs. 37 e segs.
í78) Defende K laus J. H opt, «The european insider dealing directive», cit.,
pág. 76, que não é sensato confiar exclusivamente nas sanções penais.
C79) Cfr. A rmando B artulli, «Profili penali deli’ "insider trading”», Rivista
delle Società, 1989, pág. 991.
32 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
(80) J osé de Faria C osta, Direito penal econômico, Coimbra: Quarteto, 2003,
pág. 33.
(81) José de Faria C osta, ob. cit., págs. 36 e 37.
(82) J osé de Faria C osta, O perigo em direito penal (contributo para a sua fun
damentação e compreensão dogmáticas), Coimbra: Coimbra Editora, 1992, págs. 182 e segs.
2. Convocação e explicitação do bem jurídico protegido... 33
das à própria noção de bem jurídico que, como se sabe, só ganha auto
nomia nos princípios do século XIX enquanto eco ou consequência do
pensamento iluminista. Não foi, contudo, a noção de bem jurídico que
veio mostrar o sentido evolutivo dos ordenamentos penais. Muito antes,
é evidente, daquela elaboração, se aperceberam os autores de que o
fluir das transformações ético-sociais se reflectia indiscutivelmente no
próprio sentido material dos ordenamentos penais. O que a noção de
bem jurídico trouxe à dogmática penal foi. entre outras coisas, a pos
sibilidade de se compreender mais clara e profundamente o que mudava
e o que permanecia. E aqui o que importa é saber se o ordenamento
jurídico, efectivamente, lhe concede ou não dignidade jurídico-penal.
Mas também é relevante o modo de proteger o núcleo essencial do pró
prio bem jurídico.
No entanto, compreender ou equacionar o problema deste jeito não
deve implicar uma equiparação entre tipo legal de crime e o próprio
bem jurídico. O tipo legal de crime não deve confundir-se com o seu
substratum, o objecto de protecção. Por isso, é imperioso que se con
tinue a estabelecer uma diferenciação entre bem jurídico e tipo legal
de crime, conquanto se não esqueçam os elementos enriquecedores car
reados pela doutrina penal. O que é fundamental prende-se, não com a
específica situação determinada no tipo legal de crime, mas antes com
a relação da pessoa com o próprio objecto de valoração. O que faz
com que o objecto da violação ou com que o objecto do perigo da vio
lação do bem jurídico resida exclusivamente naquela relacionação. A rela
tividade pressuposta está, não nos valores em si, mas na forma de os des
cobrir, sentir ou por eles sermos iluminados. É, justamente, aqui que
podemos detectar o fluir da historicidade com que os bens jurídico-penais
são apreendidos e se reflectem matricialmente nos ordenamentos jurí
dico-penais. A vida, a integridade física, a dignidade, a honra ou o
patrimônio, enquanto bens jurídico-penais, expressam-se na relação do
«eu» com o objecto da valoração que, como se acaba de demonstrar, não
é o próprio valor mas o valor do bem ou da coisa. De sorte que a
mutabilidade operada, não só no valor do bem como, do mesmo modo,
na própria relacionação entre si, estabeleça com que, em cada momento
e ém cada época, aquelas conexões se estruturem em tipos legais de
crimes bem cristalizados.
34 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
(s3) Afirmação que surge na linha seguida, e defendida por J orge de F iguei
redo D ias , «Para uma dogmática do direito penal secundário», Revista de Legislação
e de Jurisprudência, 116 (1983-4/1984-5), págs. 263 e segs.
2. Convocação e explicitação do bem jurídico protegido... 35
(*4) J osé de Faria C osta , O perigo em direito penal, cit., págs. 450 e segs.
(!S) Desenvolvidamente, v. J osé de Faria C osta, Direito penal econômico, cit.,
págs. 38 e segs.
(a6) J osé de F aria C osta, O perigo em direito penal, cit., pág. 335.
36 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada-
(®8) Donald C. Langevookt, «Rereading Cady, Roberts: The ideology and pra-
tice of insider trading regulation», Columbia Law Review, 99 (1999), págs. 1320 e segs.,
desenvolve a linha argumentativa do «myth o f investor confidence». Escreve Lange-
voort: «The possíbtlity I want to pursue, in all seriousness, is the connection between the
insider trading prohibition and investor confídence as a myth. I am using.the word
"myth" carefully, not in its common sense where it equates with falsity, but in the more
formal sense of a social belief that is useful as an expression, explanation, or justifica-
tion regardless of its truth or falsity» (cfr. ob. cit„ pág. 1328). Segundo este autor, a agres
siva repressão do insider trading prende-se com o controlo do poder econômico (atra
vés do autodomínio e responsabilidade) e constitui uma forma de garantir à SEC «both
visibility and support for its mission». Acrescenta Langevoort: «Insider trading stories
are wonderful drama: When they involve the rich and famous (...) they tap into images
of power, greed, and hubris; when they deal with the smaller traders, they conjure up ima
ges of Everyman with luck and far too little self-restraint» (ob. cit.t pág. 1329). Já
V ictor Brudney, ob. cit., pág. 335, refere que, após o colapso de 1929, mostrou-se
necessário restaurar a confiança dos investidores. Independentemente do diagnóstico
sobre os verdadeiros motivos da regulação norte-americana do insider trading — regu
lação que, como sublinha Langevoort, não definiu com suficiente rigor «the standarts for
insider liability» e que leva Louis Loss / J oel Seligman a questionarem «should “insi
der trading" be defined?» —, a confiança dos investidores é, no espaço comunitário, um
dos valores que fundara a repressão do abuso de informação. Essa intrínseca e directa
ligação entre a repressão do abuso de informação e a confiança do público investidor está
patente nos considerandos da Directiva 89/592/CEE e, mais recentemente, surge desta
cada no considerado (2) da Directiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho,
de 28 de Janeiro de 2003.
2. Convocação e explicitação do bem jurídico protegido... 39
(w) Aspecto que é salientado por vários autores. Na doutrina italiana, cfr.
A ndréa B artalena , «Insider trading», Trattato deite società per azioni [diretto da
G, E. Colombo e G. B. Portale], 10*, Società per azioni e mercato mobiliare, Torino:
Utet, 1993, pág. 230. Na doutrina anglo-saxónica, v. Paul L. D avies, ob. cit., pág. 460.
C90) A ndréa B artalena, ob. cit., pág. 233.
40 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
(I0°) M anning G ilbert Warren III, ob. cit., pág. 158, refere que o Parlamento
Europeu aceitou a recomendação do Relatório Hoon no sentido de que a publicação
deveria significar «the effective disclosure of inside Information in such a manner suf-
ficient to ensure its availability to the investing public». O Conselho, contudo, rejeitou
esta formulação que, segundo o autor citado, apresenta consideráveis semelhanças com
um segmento da decisão judicial SEC v. Texas Gulf Sulphur Co.
(101) Cfr. Valerio S angiovanni, ob. cit., pág. 552.
(102) O Regulamento da CMVM n.° 4/2004, relativo aos deveres de informação,
encontra-se publicado no Diário da República, II Série, de II de Junho de 2004, e no
Boletim da CMVM, n.° 133, Maio de 2004, Veja-se, ainda, a Instrução n ° XX/2004, rela
tiva aos deveres de informação dos emitentes à CMVM, que define as «condições a que
3. A definição jurídico-penaí de informação privilegiada 45
(U2) Sobre o processo de fusão de sociedades, cfr. R aúl V entura, Fusão, cisão,
transformação de sociedades, Coimbra: Almedina, 1990. Refira-se, a título de exem
plo, que a fusão de instituições de crédito e sociedades financeiras exige a prévia auto
rização do Banco de Portugal (artigos 35.® e 183.® do Decreto-Lei n.® 298/92, de 31
de Dezembro, que institui o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades
Financeiras) e, ainda, a intervenção da CMVM, quando o objecto da instituição de cré
dito compreender alguma actividade de intermediação de valores mobiliários (artigo 29.®-A
do Decreto-Lei n.® 298/92, de 31 de Dezembro).
3. A definição jurídico-penat de informação privilegiada 49
( 113) M ário J úlio de A lmeida C osta, Direito das obrigações, 9* edição, Coim
bra: Almedina, 2003, págs. 267 e segs.
(114) Sobre este ponto, A na P rata, Notas sobre a responsabilidade pré-contra-
tual, Lisboa, 1991, págs. 45 e 46,
(lls) Posição defendida por Fátima G omes, ínsider trading, Valadares: APDMC,
1996, pág. 89.
50 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
(U6) Na doutrina italiana sublinha este aspecto, R affaele L ener, «La diffusione
delle informazioni ‘price sensitive’ fra informazione societária e informazione reser-
vata», Le Società, 2 (1999), pág. 144.
(U7) Para a definição de market Information, cfr. ViCTOR B rudney , ob. cit.,
pág. 329: «Market information concems transactions in a corporation’s securities that will
3. A definição jurídico-penal de informação privilegiada 51
have an impact on their future price quite apart from expected changes in the Corpora
tion^ eam ings or assets». M anning G ilbert Warren III, ob. cit., pág. 160, considera
que «market information, unlike classic inside Information, is source neutral» e defende
que a Directiva 89/592/CEE elim inou a distinção entre inside information e market
information.
(m ) Valerio S angiovanni, ob. cit., pág. 553, citando Assmann.
(U9) Distinguindo-se do front-running, o scalping apresenta ligação às activida-
des dos consultores de investimento e analistas. O consultor de investimento ou ana
lista financeiro adquire valores mobiliários previamente à formulação de recomenda-
52 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
ções de compra, com o conhecimento de que a recomendação, uma vez efectuada, fará
valorizar o título em questão, permitindo, assim, a posterior venda vantajosa. Sobre
esta caracterização, cfr. C arlos C osta P ina, ob. cit., pág. 339. «Self-fulfilling pro-
phet» — a expressão pertence a R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 348 — é como
é caracterizado o scalper que negoceia acções com base em informação não pública
— ele não revela o seu interesse nos valores mobiliários em causa nem a pretensão de
beneficiar com as previstas reacções dos seus leitores — , mas non inside (não foi obtida
em razão de uma ligação especial ou qualificada com a entidade emitente). Ele, ao fim
e ao cabo, utiliza informação sobre a sua própria actividade de negociação. O que acon
tece- é que o analista financeiro, antes de formular as suas recomendações de investimento
— por exemplo, por intermédio de uma coluna em um jornal —, compra acções da socie
dade X e, depois, aconselha vivamente a aquisição de tais acções aos seus leitores.
O scalping constitui uma forma de manipulação do mercado — também é esta a opi
nião de R obert C harles C lark , ob. cit., loc. cit., que considera que o scalping cons
titui «a form of stock manipulation, and manipul ative as well as deceptive pratices are
outlawed by Section 10 (b)» do Securities Exchange Act de 1934. Sobre o relevo penal
do scalping na ordem jurídica alemã, veja-se a sentença do BGH de 6 de Janeiro de 2003
comentada em «Strafrechtliche Beurteilung des sog. ‘Scalping’», Die Aktiengesellschaft,
3 (2004), págs. 144 e segs. Na doutrina nacional, sobre a relevância penal do scalping,
cfr. F rederico de L acerda da C osta P into , ob. cit., pág. 89, e A lexandre B randAo
da V eiga , Crime de manipulação, defesa e criação de mercado, Coimbra: Almedina,
2001, pág. 98.
(l2°) Um dos propósitos da Directiva 2003/6/CE é o de que os Estados-Membros
impeçam o front-running — incluindo o front-running em instrumentos derivados sobre
mercadorias — sempre que tal prática constituir um abuso de mercado.
3. A definição jnrtdico-penal de informação privilegiada 53
(124) Densificação sustentada por F rederico de Lacerda da C osta P into, ob. cit.,
pág. 78.
3. A definição jurídico-penal de informação privilegiada 55
(132) Sobre a distinção entre ordem c oferta, cfr. A lexandre Brandão da V eiga,
«As fases de negociação e de liquidação e compensação de operações de bolsa a con
tado», AAW, Direito dos Valores Mobiliários, Volume 1, Coimbra: Coimbra Editora, 1999,
pág. 203, e C arlos C osta P ina. ob. cit., pág. 532.
( 133) Escreve J osé de O liveira A scensão, «A celebração de negócios em bolsa»,
cit., pág. 198: «A bolsa é um mercado de anônimos: e mesmo nas hipóteses raras em
que se pode chegar ao conhecimento de quem age em contraponto a um investidor,
esse conhecimento é juridicamente irrelevante».
(134) O «open market context» toma complexa a reparação civil dos investido
res lesados. Justamente sobre o problema da tutela dos direitos individuais dos inves
tidores afectados por insider trading, cfr. J ames D. C ox / T homas L ee H azen, ob. cit.,
págs. 700 e segs.
(135) Salientando este aspecto, cfr. A ntônio S oares, «Mercados regulamenta
dos e mercados não regulamentados», Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, 7
(2000), pág. 283; Isabel Vidal, «Da (ir)re!evância da forma de representação para efei
tos de transmissão de valores mobiliários», Cadernos do Mercado de Valores Mobiliá
rios, 15 (2002), pág. 304.
( l3S) Vejam-se as normas dos artigos 210.“, n.° 2, 220.“, n,° 3, e 330.“, n.“ 4,
todos do CVM.
3. A definição jurídico-penal de informação privilegiada 59
C137) J osé de Faria C osta, Tentativa e dolo eventual (ou da relevância da nega
ção em direito penal), Separata do número especial do Botelim da Faculdade de Direito
de Coimbra, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, 1984, Coim
bra, 1987, págs. 17 e 18.
(138) J osé de Faria C osta, Direito penal econômico, cit., págs. 25 e 26.
C139) Paula C osta e S ilva, «Compra, venda e troca de valores, mobiliários»,
AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa: Lex, 1997, pág. 246.
60 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
(,4°) J oséde Faria C osta , Direito penal econômico, cit., págs. 55 e segs.
(141) Cfr., por todos, J ames D. Cox / T homas L ee H azen , ob. cit., pág. 770;
Paul L. D avies, ob. cit., pág. 444.
(142) Cfr. R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 311.
3. A deftniçõo jitrídico-penal de informação privilegiada 61
(143) A doutrina britânica, à luz do Criminal Justice Act de 1993, considera que a
incriminação do insider trading não significa uma proibição absoluta de negociar com base
em informação privilegiada, porquanto esta incriminação só abrange condutas ocorridas em
mercados regulamentados e, por conseguinte, já não contempla, por exemplo, a negocia
ção ocorrida em outros contextos, por exemplo, transacções que envolvam acções de
«closely held shares». Cfr. Brian R. C heffins, Company law: theory, structure and ope-
ration, Oxford: Clarendon Press, 1997, pág. 145; Paul L. D avies, ob. cit., pág. 455.
(144) Segmento normativo do artigo 198.® do CVM.
(145) R obert C harles C lark, ob. cit., pág. 355, identifica o grupo dos structu-
ral insiders (por oposição aos corporate ou market insiders). Os structural insiders são
62 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
pessoas que, não sendo corpo rate insiders ou market insiders, têm, em virtude das
suas funções ou profissões, acesso a informações não públicas (funcionários da SEC,
contabilistas, editores financeiros). Também estes sujeitos devem ser impedidos de
capturar o valor econômico de tal informação; é razoável que lhes seja exigido que se
abstenham de negociar com base em informação privilegiada obtida em razão do exer
cício profissional. Entre nós, contabilistas que prestem serviços ao emitente ou fun
cionários da CMVM são, respectivamente, por força do artigo 378.°, n.° 1, alíneas a)
e b), agentes típicos do crime de abuso de informação. O artigo 31.° do Estatuto da
CMVM (aprovado pelo Decreto-Lei n.° 473/99, de 8 de Novembro, e alterado pelos
Òecretos-Leis n.os 232/2000, de 25 de Setembro, e 183/2003, de 19 de Agosto) proíbe
que os trabalhadores da CMVM realizem «por conta própria ou por conta de outrem,
directa ou indirectamente (...) quaisquer operações sobre valores mobiliários». Ainda
que o conselho directivo possa conceder autorização para realização de operações sobre
valores mobiliários, essa autorização «apenas será concedida se as operações (...) não
resultarem da utilização de informação confidencial a que o trabalhador tenha tido
acesso em virtude do exercício das suas funções (...)».
(146) A expressão foi primeiramente usada por Louis Loss da Harvard Law
School, cfr. Paul L. D avies, ob. cit., pág. 466.
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 63
O que, como veremos mais tarde, pode suscitar uma tensão entre, por
um lado, a necessidade empresarial de circulação de informação e, por
outro, as proibições impostas pelo crime de abuso de informação. De
momento, conheçamos, com mais proximidade, a estrutura de adminis
tração e de fiscalização da sociedade anônima.
A orientação oitocentista que via os administradores de sociedades
como mandatários — enquadramento hoje superado (151*) e que estava
em sintonia com o entendimento de que a assembléia constituía o órgão
supremo ( ,52) — segue-se, durante o século XX, a tendência no sentido
do reforço dos poderes próprios e exclusivos do órgão de administra
ção (153). A dispersão do capital, o desinteresse dos accionistas, a cres
cente complexidade dos problemas relacionados com a gestão societá
ria, a assunção de outros interesses para além dos interesses dos
accionistas, a emergência das teses institucionalistas sobre o papel e
função das sociedades anônimas, eis alguns dos factores que convergi
ram no sentido da concentração dos poderes no órgão de administração.
O contrato de mandato tornou-se inoperatório quando, por exemplo, é
confrontado com o âmbito de competência originária e autônoma dos
( !57) Segundo o artigo 376.°, n.° j, alínea c), do CSC, uma das competências da
assembléia geral anual é «proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da
sociedade».
( l5S) V. CMVM, Govemo das sociedades anônimas: propostas de alteração ao
Código das Sociedades Comerciais. Processo de consulta pública n.° 1/2006, CMVM:
www.cmvm.pt, Janeiro 2006, § 10", ponto 22.
68 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada .
poral mente mais próxima dos actos fiscalizados» (l6°) e, por outro, a pos
sibilidade de serem evitadas determinadas medidas de gestão, A CMVM
não deixa de mencionar os potenciais riscos que este modelo envolve,
porquanto a fiscalização da sociedade é entregue a quem tem o «poder
de determinar ou, pelo menos, [de] influenciar de modo directo, as deci
sões de gestão» (161). Neste modelo, a independência dos membros da
comissão de auditoria ganha lugar central.
Vejamos, ainda que de forma breve, a estruturação e funções da
comissão de auditora, previstas nos aditados artigos 423.°-B a 423.°-H
do CSC. Em matéria de composição da comissão de auditoria, o
artigo 423.°-B do CSC contempla normas específicas aplicáveis às
sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação
em mercados regulamentados. De acordo com o n.° 4 deste preceito,
nestas sociedades a comissão de auditoria «deve incluir pelo menos
um membro que tenha curso superior adequado ao exercício das suas
funções e conhecimentos em auditoria ou contabilidade e que, nos ter
mos do n.° 5 do artigo 414.°, seja independente». Especificamente
quanto às sociedades emitentes de acções admitidas à negociação em
mercado regulamentado, «os membro da comissão de auditoria devem,
na sua maioria, ser independentes» (artigo 423.°, n.° 5, do CSC). À
comissão de auditoria compete fiscalizar a gestão realizada pelo conselho
de administração e «a independência do revisor oficial de contas, desig
nadamente no tocante à prestação de serviços adicionais» (artigo 423.°-F,
alínea o)t do CSC).
Na comissão de auditoria converge um importante acervo de infor
mação sobre a sociedade. Na verdade, no exercício das suas funções,
os membros da comissão de auditoria estão vinculados a deveres que, jus
tamente, permitem o acompanhamento próximo do curso da sociedade.
Destacamos que entre os deveres dos membros da comissão de audito
ria contam-se os de participação nas reuniões do conselho de adminis
tração, da assembléia geral e nas da comissão executiva onde se apre
ciem as contas do exercício. Acresce que é à comissão de auditoria
della società». Sobre esta disciplina, cfr. C armine R omano, «Articolo 2381», AAVV,
La riforma delle società, Società per azioni. Società in accomandita per azioni, Tomo
I — Aitt. 2325-2422 cod. civ., a cura di Michele Sandulli e Vittorio Santoro, Torino:
G. Giapichelli, 2003, págs. 403 e segs.
(i6S) v. Defendendo, a este propósito, a aplicação analógica dos artigos 420.", n.° 2,
e 421.°, n.° 1, do CSC (na redacção anterior à reforma de 2006), v. Pedro Maia, Fun
ção e funcionamento do conselho de administração da sociedade anônima, cit., pág. 270.
76 0 Crime de Abuso de Informação Privilegiada
Prevê o artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM que quem seja titu
lar de participação no capital social do emitente assume a qualidade de
agente típico para efeitos do crime de abuso de informação (,69). Numa
primeira aproximação, é irrelevante a fracção do capital social detido pelo
sócio. Na verdade, o tipo não faz menção a qualquer percentagem (por
exemplo, 5% ou 10%) de capital social (como acontece em várias nor
mas jurídico-societárias que regulam o estatuto dos sócios das socieda
des anônimas) (I7°). Considerado o teor literal do artigo 379.°, n.° 1, alí
nea a), do CVM, seja qual for a percentagem do capital social detida pelo
sócio, este adquire a qualidade de agente típico do crime de abuso de
informação. Introduzamos aqui alguns afinamentos analíticos.
A plutocracia subjacente ao princípio «uma acção um voto» ( l71)
determina que o governo da sociedade — ou talvez mais correctamente,
b
(,75) As diferenças entre sócios minoritários e maioritários aconselham, segundo
Bartalena. a eliminação de qualquer referência formal aos sócios e a punição do accio
nista maioritário como íippee ou como administrador de facto. Esta proposta — avan
çada, ainda, à luz da legge de 17 de Maio de 1991, n. 157 — assenta no pensamento
de que só se justifica a qualificação como insiders quanto aos accionistas que assu
mem uma posição de controlo ou de relevo no interior da sociedade, porque estes man
têm uma ligação constante, quase institucional, com os administradores, por força da qual
se estabelece um fluxo de informações privilegiadas dos segundos para os primeiros. Cfr.
A ndréa B artalena, ob. ciu, pág. 294. O artigo 184 ° do Testo Unico delia Finanza
(decreto legislativo 24 febbraio 1998, n. 58), relativo ao crime de «Abuso di informa-
zioni privilegiate» (na redacção introduzida pela Legge 18 aprile 2005, n. 62, que trans
pôs para a ordem jurídica italiana a Directiva 2003/6/CE), continua a referir a «parte-
cipazione al capitale deli’emitente» sem fazer qualquer destrinça quanto à dimensão ou
n; ■' consistência de tal participação.
(’76) A locução é usada por S érgio S eminara, «Articolo 180. Abuso di infor-
mazionj privilegiate», Testo Unico delia Finanza (d.lgs. 24 febbraio 1998, n. 58), Com-
mentario diretto da Gian Franco Campobasso, Torino: Utet, 2002, pág. 1454.
f
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 79
( l77) Salienta Hopt que sócios com menos de 10% do capital social raramente
terão acesso, em razão da sua participação social, a informação privilegiada. Cfr. K laus
J. H opt, «The european insider deaiing directive», cit., pág. 63.
(17S) M N ogueira S erens, ob. cit., pág. 7.
(*-79) Sobre este tema, à luz da anterior redacção do artigo 30." do CVM, cfr. José
de O liveira A scensão , «A protecção do investidor», AAVV, Direito dos Valores Mobi
liários, Volume IV, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, págs. 13 e segs.; Isabel A le
xandre , «Investidor institucional, não institucional equiparado e investidor comum»,
AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume V, Coimbra: Coimbra Editora, 2004,
págs. 9 e segs,
(!80) a ijSta dos investidores qualificados (anteriormente designados «investido
res institucionais») foi substancialmente dilatada seja pelo alargamento das entidades direc-
tamente previstas no artigo 30.° do CVM seja pela qualificação facultativa dependente
de regulamento da CMVM.
80 O Crime de Abuso de informação Privilegiada
(I92) É o que resulta do artigo 302.°, n.° 1, do CSC: «Podem ser diversos, nomea-
damente quanto à atribuição de dividendos e quanto à partilha do activo resultante da
liquidação, os direitos inerentes às acções emitidas pela mesma sociedade». Vejam-se
ainda os artigos 302.°, n." 2, e 272.°, alínea c), do CSC e artigo 45.° do CVM.
(!M) Sobre as acções preferenciais sem voto, vejam-se os artigos 341.“ a 344."
do CSC.
(!W) J. M. C olftinho DE A breu , Curso de direito comercial, Volume II, cií.,
pág. 205.
4. O relevo da ligaçao institucional ao emitente na caracterização... 85
(195) V. artigo 31", n.° 2, alínea a), iii), do Decreto-Lei n.° 252/2003, de 17 de
Outubro.
( 196) Se os organismos de investimento colectivo fossem geridos pelas socieda
des de investimento mobiliário — que no direito comparado têm recebido o nome de
«sociedades de investimento de capital variável» — os investidores assumiríam, cumu
lativamente, o estatuto de participantes e de accionistas. Ao abrigo da qualidade de accio
nistas, os investidores deteriam uma participação social e poderíam exercer os direitos
inerentes. Estes são dados recolhidos no direito comparado. Entre nós, ainda não foi
publicada a legislação especial sobre as sociedades de investimento mobiliário (v. o
artigo 4." do Decreto-Lei n.° 252/2003, de 17 de Outubro).
86 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
mos não pode ser resolvido à luz do princípio societas delinquere non
potest. Porquanto é, justamente, do âmbito do direito penal econômico —
área de incriminação em que o abuso de informação se insere — que tem
saído um contributo relevante para a sustentação da responsabilidade penal
das pessoas colectivas. O problema da responsabilidade penal das pessoas
colectivas é hoje um dado para o direito penal dos nossos dias (205).
Fica, assim, completamente inviabilizada a resposta que assentasse
na tradicionalmente aceite irresponsabilidade penal das pessoas colecti
vas. Outro caminho deverá ser procurado. Sabendo que as pessoas
colectivas são susceptíveis de serem centros de imputação penal — já
vimos que essa responsabilidade é uma realidade entre nós desde os
anos oitenta —, há que avançar no sentido de apurar se as pessoas
colectivas são agentes do crime de abuso de informação, tal como ele
se encontra tipificado pelo artigo 378.° do CVM. Esta norma incrimi-
nadora, na caracterização dos agentes típicos, não apresenta uma restri
ção expressa às pessoas singulares nem o alargamento explícito das
margens de punibilidade até às pessoas colectivas. A resolução do pro
blema que suscitámos passa pela convocação da conexão sistemática
com o artigo 1L.° do Código Penal. Preceitua esta disposição que «Salvo
disposição em contrário, só as pessoas singulares são susceptíveis de
responsabilidade penal». Inexistindo uma disposição que alargue a puni
ção por crime de abuso de informação às pessoas colectivas, só as pes
soas singulares são susceptíveis de responsabilização penal pela prática
deste crime (206). Resta-nos, pois, concluir que a não punição das pes
resulta do artigo 446.°-B do CSC. Não está, de todo, afastada a possibilidade de, por
motivo das suas funções, obter informação privilegiada. Se o secretário da socie
dade, com base nessa informação, praticar alguma das condutas recortadas no
artigo 378.° do CVM, será punido ao abrigo da alínea a) do n.° 1? Parece que não,
porque o secretário da sociedade não reúne as características típicas previstas nessa dis
posição. Contudo, poderá ser punido ao abrigo do artigo 378.° do CVM.
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 93
í210) Cfr. J orge de F igueiredo D ias , Direito penal. Parte Geral, Tomo I, Ques
tões Jundamentais. A doutrina geral do crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, pág. 174.
f211) No Acórdão n.° 494/03, de 22 de Outubro de 2003 (Relator: Gil Galvão),
o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de que a incriminação do abuso de
informação e as penas que lhe correspondem não contrariam os princípios da necessi
dade e da proporcionalidade.
r
>
S,
94 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
i,T
mecanismo de divulgação das decisões sancionatórias aplicadas pela
V: CMVM (artigo 422.° do CVM).
'í'" Em todas as manifestações do crime de abuso de informação é
y proibido que os agentes transmitam a informação, negoceiem, aconselhem
alguém a negociar em valores mobiliários, ordenem a sua subscrição,
[K, aquisição, venda ou troca, directa ou indirectamente, para si ou para
f- outrem (artigo 378.°, n.os 1 e 2, do CVM). Esta matéria remete-nos
C-1
f;1 para o universo das condutas proibidas.
S,
!.ír
5. O RECORTE TÍPICO DAS CONDUTAS PROIBIDAS
í
t
5. O recorte típico das condutas proibidas 95
(2n) Por vezes, a extrema complexidade dos planos de remuneração dos admi
nistradores é, ela própria, um factor de não transparência, porque toma difícil a avalia
ção dos montantes envolvidos, designadamente para os accionistas. Sobre este aspecto,
cfr. R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 201.
í218) Muito divulgada é a caracterização de corporate govemance como «the
system by which companies are directed and controlled». Cfr. J onathan R ickford, «Do
good govemance recommendations change the rales for the board?», AAVV, Capital Mar-
kets and Company Law, edited by Klaus J. Hopt / Eddy.Wymeersch, Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2003, pág. 462.
(2I9) Entretanto ocorreu a reformulação e a modificação de sistematização do
texto das recomendações (a actual versão data de Novembro de 2005) e a elevação de
algumas delas a verdadeiros deveres prescritos pelo Regulamento da CMVM n.° 7/2001,
relativo ao governo das sociedades cotadas. Para um quadro geral sobre os códigos de
govemo das sociedades, cifr. Paulo C âmara, «Códigos de governo das sociedades»,
Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, 15 (2002), págs. 74 e segs., e, do mesmo
autor, «O govemo das sociedades em Portugal: uma introdução», Cadernos do Mercado
de Valores Mobiliários, 12 (2002), págs. 45 e segs.
5. O recorte típico d a s condutas p roibidas 99
Mais uma vez estamos a lidar com realidades complexas que ger
minaram e se expandiram no mundo anglo-saxónico — como, aliás, é
(223) Nos EUA. é reconhecido que a disciplina de insider trading constitui um dos
entraves à adopção de stock options pians, levando as sociedades e os administradores
a procurar outras alternativas, como, por exemplo, os «phantom stock pians». Sobre estes
aspectos, cfr. R obert C harles C lark , ob. cit., págs. 207 e segs.
f224) Cfr. H einz-D ieter A ssmann , ob. cit., pág. 542. Entre nós, A ntônio Fer
nandes DE O liveira , ob. cit., pág. 41, evidencia que para evitar a manipulação de
ganhos no exercício dos direitos de aquisição de acções, propiciada em parte pelas van
tagens informativas dos administradores, «“basta” que se desenhem as opções de forma
a que os resultados (ou parte deles) Fiquem congelados por um período X (...) para efei
tos de eventuais rectificações, para menos, em função da evolução da cotação, no
período pós-exercício (...)».
5. O recorte típico d a s co ndutas pro ib id a s 101
f225) R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 500. Sobre o sentido da expressão
buyout, v. Paolo M ontalenti, ob. cit., pág. 58, para quem a expressão «buyout» se liga
ao fenômeno conhecido como «going private» (tomado este como a saída das acções do
mercado por falta de difusão pelo público).
(226) A ntônio M enezes C ordeiro , «Da tomada de sociedades (takeover): efec-
tivação, valoração e técnicas de defesa», Revista da Ordem dos Advogados, 54 (1994,
III), pág. 769. R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 500, refere, quanto à realidade
norte-americana, que os fundos necessários são conseguidos juntos de consórcio de
investidores institucionais reunido por instituições bancárias especializadas neste tipo
de operações. Os fundos disponibilizados serão, depois, pagos pelas forças da socie
dade adquirida. Sobre este tema, veja-se, ainda, Paolo M ontalenti, ob. cit., págs. 57
e segs.
102 O C rim e de A buso de Inform ação Privilegiada
Valores Mobiliários», AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume II, Coimbra:
Coimbra Editora, 2000, págs. 233 e segs.; A lexandre Soveral M artins, Valores mobi
liários, cit., págs. 57 e segs.
(23ij Na doutrina portuguesa, salientam este risco de o MBO envolver a utiliza
ção de informação privilegiada, A ntônio M enezes C ordeiro, «Da tomada de socieda
des (takeover): efectivação, valoração e técnicas de defesa», cit., pág. 771; J osé D iogo
H orta O sório , ob. cit., pág. 17.
104 O C rim e d e A buso de Inform ação Privilegiada
í234) Cfr. J osé D iogo H orta O sório , ob. cit., pág. 255.
C35) A Directiva 2004/25/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21
de Abril de 2004, relativa às ofertas públicas de aquisição, deverá ser transposta até 20
de Maio de 2006.
B
106 O C rim e de A b u so de Inform ação P rivilegiada
C236) Na doutrina alemã, sobre a ligação entre as mudanças de controlo das socie
dades e o regime do Insiderrecht, v. C hristoph von B ülow, in Kõlner Kommentar
zum WpÜG, Kõln/Berlin/Bonn/München: Carl Heymanns Verlag KG, 2003, págs. 1069
e 1070, rdn. 176.
í237) C arlos da C osta Pina, ob. cit., pág. 366, fala, a propósito deste regime da
oferta pública de aquisição obrigatória, de «um certo cunho solidarista entre os diver
sos accionistas», em que parecem prevalecer os interesses dos accionistas/investidores
(abordagem anglo-saxónica) desvalorizando outros interesses pública, econômica e
socialmente relevantes na órbita empresarial (perspectiva alemã). Sobre esta dualidade
de modelos, cfr. JoAo C unha Vaz, A s opa na União Européia f a c e ao novo Código dos
Valores Mobiliários, Coimbra: Almedina, 2000, págs. 197 e segs.
ps») o Decreto-Lei n.° 52/2006, de 15 de Março, transpôs para o ordenamento
jurídico interno a Directiva n.° 2003/71/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de
4 de Novembro, relativa ao prospecto a publicar em caso de oferta pública de valores
5. O recorte típ ico d a s co n d u ta s pro ib id a s 107
(239) Este procedimento não impede que essas acções se negoceiem num mercado
não regulamentado ou fora de mercado. Também não fica prejudicada a aquisição da
qualidade de sociedade aberta por outro motivo que não a admissão a mercado regula
mentado: por exemplo, através da realização de oferta pública de distribuição de acções
ou de fusão por incorporação com uma sociedade aberta (artigo 13.°, n.° 1, alíneas a),
b) e e), do CVM). Neste sentido, v. Paulo C âmara. «A s operações de saída do mer
cado», Miscelâneas, n.° 2, Coimbra: Almedina, 2004, pág. 111.
(24°) Sobre este conceito, v. R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 500.
(241) Sobre as várias operações de saída do mercado, cfr. Paulo C âmara, «A s
operações de saída do mercado», cit., págs. 89 e segs.
í242) Cfr. Paulo C âmara , «A s operações de saída do mercado», cit., pág. 89;
R obert C harles C lark, ob. cit., pág. 507.
5. O recorte típico d a s condutas p roibidas 109
(243) Como se sabe, afirmar uma conduta como juridico-penalmente atípica não
equivale necessariamente a introduzi-la no lote dos comportamentos lícitos. Significa
tão-só que essa conduta não é atraída pelas margens de punibilidade definidas pelo
crime em questão.
t244) No sistema jurídico norte-americano, a repressão do insider trading é
contemporânea de «espaços» em que é permitida a utilização de informação que,
entre nós, designaríamos como informação privilegiada. Estamos a referir-nos aos
«safe harbors». Sobre o «safe harbor» previsto pelo Ride 10b5-l, cfr. J ames D. Cox /
/ T homas Lee H azen , ob. cit., púg. 698. Esta expressão é também usada nos países
de civil law. Na doutrina alemã, B ernd S inghof / C hristian W eber , «Neue kapi-
talmarktrechtliche Rahmenbedingungen für den Erwerb eígener Aktien», Die Aktien-
geseüschaft, 15 (2005), págs. 554 e segs., analisam o regime do «safe harbop> no
contexto dos §§ 14, Abs. 2, 20a, Abs. 3, WpHG, e do Regulamento (CE) n,° 2273/2003
da Comissão, de 22 de Dezembro de 2003. Este Regulamento contempla, como já refe
rimos, as medidas de aplicação da directiva sobre abuso de mercado no que diz res
peito às derrogações para os programas de recompra e para as operações de estabili
zação de instrumentos financeiros.
110 O C rim e de A buso de Inform ação P rivilegiada
t245) Neste sentido, cfr. Valerio S angiovanni, ob. cit., pág, 558.
(246) Segmento normativo que não está presente no n° 2 do artigo 378“ do CVM
porque neste tipo o agente não é caracterizado em razão das funções exercidas.
f147) Cfr. Valerio S angiovanni, ob. cit., pág. 559.
5. O recorte típ ico d a s condutas proibidas 111
cautelas, tendo em conta os perigos que envolve í254), a lei recorta casos
de aquisição lícita de acções próprias (255). Um dos objectivos que ani
mam tal aquisição de acções próprias — esclareça-se que está total
mente proibida a subscrição de acções próprias (artigo 316.° do CSC) —,
é justamente a prossecução das finalidades de mercado. As transac-
ções sobre acções próprias podem constituir uma forma de a sociedade
influenciar as relações de oferta e de procura das suas acções. Neste sen
tido, a aquisição de acções próprias pode influir na cotação dos títulos,
pode criar ou até alimentar uma corrente de procura das participações
sociais. Se a cotaçãp das acções está demasiado baixa, tendo em conta
a consistência patrimonial da sociedade e as perspectivas de rendimento,
a sociedade poderá, dentro dos limites da lei, equacionar a aquisição
de acções próprias como um dos mecanismos de reacção à baixa cota
ção (aumentando a procura, a cotação tenderá a subir) (256).
Interessa-nos questionar as margens de punibilidade do crime de
abuso de informação, de modo a perceber se este abrange as compras e
vendas de acções próprias realizadas ao abrigo de informação privilegiada
relativa à sociedade emitente das acções ou se, ao invés, esta conduta é
jurídico-penalmente atípica. Tendo em conta a opção político-criminal
de não punição das pessoas colectivas, rigorosamente o que se ques
tiona é o problema de saber se a proibição de insider trading abrange
também a conduta dos administradores ou directores que, na posse de
informação privilegiada relativa à sociedade emitente, realizam operações
sobre acções próprias dessa mesma sociedade (portanto, compram ou ven
dem acções da sociedade para a sociedade e não para si) (257). Será que
esta conduta dos administradores é punida a título de insider tradingl
f254) Para uma síntese dos perigos e vantagens que a aquisição de acções próprias
envolve, v. J. M. C outinho de A breu , Curso de direito comercial, Volume II, cit.,
págs. 383 e 384.
(255) V. o artigo 317.° do CSC.
f256) Vantagem também sublinhada por J. M. C outinho de A breu, Curso de
direito comercial. Volume II, cit., pág. 384.
(2S7) Segundo Loss, citado por F rancesco Carbonetti, «Acquisto di azioni proprie
e ‘insider trading’», Rivista delle Società, 1989, pág. 1011, referindo-se ao sistema norte-ame
ricano, «the typical pattem is a purchase by a corporate insider, or by the issuer itself».
5. O recorte típ ico d a s condutas proibidas 115
Págs.
4.2. Estrutura organizatóría das sociedades anônimas e segregação de
fluxos informacionais............................................................................. 62