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JO SÉ DE FARIA COSTA / M ARIA ELISABETE RAMOS

O CRIME DE ABUSO
DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA
(INSIDER TRADING)

A INFORMAÇÃO ENQUANTO PROBLEMA JURÍDICO-PENAL

A» * 4 9 JDQWtfS

C o im b ra E d ito ra

2006
om posição e im pressão
C oimbra Editora, Limitada

ISBN 978-972-32-1408-3

Depósito Legal n.° 241 174/2006

Maio de 2006
PALAVRAS EVENTUALMENTE NECESSÁRIAS

Sempre defendí que o direito podia (o que não significa que, em


todas as circunstâncias, também devesse) ser estudado não na solitude
da pessoalidade, ainda que fecunda ou mesmo única e talentosa, mas antes
na complementaridade de duas ou mais sensibilidades que procuram
atribuir significado jurídico à própria investigação jurídica.
O que se dá agora à estampa é o resultado daquela defesa e do
propósito que lhe vai implícito.
E qual a razão destas palavras, quando é certo que vão assinadas só
por um dos autores? Tentemos mostrar aquilo que é uma evidência e que,
por isso mesmo, talvez não devesse sequer merecer consideração alguma.
O tema “insider trading” é, precisamente, um daqueles que exigem
conhecimento, seguramente, do direito penal mas também e de forma indis­
cutível do direito dos valores mobiliários. Por isso, quando propus o trata­
mento deste tema à Senhora Dr.a Elisabete Ramos, precisamente uma docente
com Mestrado na área do Direito Comercial que, como é fácil de ver, tem
fortes atinências com o direito dos valores mobiliários, recebi dela o mais
vivo e empenhado assentimento. Logo, explicada está a co-autoria em razão
da matéria. Falta só dizer por que só assina um dos autores estas palavras.
Razão simples também aqui. A gentileza e a nobreza de carácter
de Elisabete Ramos impuseram que fosse só eu a deixar ó meu nome
debaixo destas linhas. Obedeci.
Mas obedeci para poder reafirmar que este é, sem resto, um autêntico
trabalho de co-autoria, com tudo o que isso implica, é óbvio, de bom e de
menos bom. Esperemos, pois, que o lado bom seja infinitamente superior
às pequenas mazelas e às ligeiras rugas que este estudo eventualmente tenha.

Paço das Escolas, com o ligeiro rumor da “Via Latina” em fundo.

José de Faria Costa


í

V:

F
1. REFLEXÕES A PROPÓSITO DA INTROMISSÃO DO
DIREITO PENAL NO MERCADO DE VALORES MOBI­
LIÁRIOS

1.1. Notas esparsas em torno da emergência e da regulação


do mercado de valores mobiliários nacional

A disseminação setecentista de valores mobiliários, ocorrida na


sequência dos modernos empréstimos públicos e da emissão das acções
das companhias pombalinas f1), promoveu a introdução de novos «pro­
dutos» no mercado e impulsionou a emergência de novas práticas comer­
ciais (2). Convidam-se ou mesmo incentivam-se os aforradores a cana­
lizarem as suas poupanças para os empréstimos públicos ou para o
capital social das companhias coloniais. Embora sendo operações finan­
ceiras distintas — uma destinada a suprir as insuficiências de fundos do
tesouro e outra vocacionada para reunir os «cabedais» necessários às
companhias de comércio — é certo que em ambas se desvenda o móbil
lucrativo de quem investe. Ao adquirente de um padrão de juro era
atribuído o direito a uma prestação anual — o juro — e aos accionis-
tas que entravam com «cabedais» era, por um lado, garantida a limita­
ção da responsabilidade e, por outro, instilada a expectativa de ganho
decorrente de futura distribuição de dividendos. As acções apresenta­

(*) As companhias portuguesas de comércio são anteriores ao século XVIII.


Contudo, é nesta centúria, durante o consulado pombalino, que as companhias, como
forma de organização de comércio, atingem o seu apogeu. Para o tratamento desen­
volvido, v. Rui M anuel de F igueiredo M arcos, A s companhias pombalinas. Contri­
buto para a história das sociedades por acções em Portugal, Coimbra: Almedina, 1997,
págs. 111 e segs.
(2) Cfr. D avid J ustino , História da Bolsa de Lisboa, Lisboa: Bolsa de Valores
de Lisboa, 1994, págs. 61 e segs.
8 0 Crime de Abuso de Informação Privilegiada

vam a vantagem de permitir ao seu titular participar nos benefícios do


comércio — pela percepção dos dividendos — limitando os riscos ao
valor investido. Percebe-se, pois, que no século XVIII Henri-François
D’Aguesseau afirmasse: «Si le papier consiste en une action qui puisse
produire des fruits ou un bénéfice, il n’est pas stérile comme 1’argent
que l’on garde. II travaille dans le porte-feuille (...)» (3). Além deste,
um outro benefício deve ser referido. Aos sócios das companhias era
reconhecida a faculdade de transmissão das acções. Como se diz no
Alvará de 30 de Outubro de 1756, que visou «reanimar as entradas na
Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão» (4): «Porém para que as
pessoas, que entrarem com seus cabedaes se possão valer delles, pode­
rão vendellos em todo, ou em parte, como se fossem padrões de juro,
pelos preços em que se ajustarem» (5). Em companhias destinadas a per­
manecer no tempo, compreende-se que se permitisse aos sócios aban­
doná-las. Acresce que não havia entraves à entrada de estranhos, tendo
em conta, por um lado, a irrelevância da pessoa dos sócios e, por outro,
a dispensa de consentimento da companhia para o ingresso de sócios
estranhos. Mais do que a mudança no elenco dos sócios e a contem­
porânea permanência da instituição, o que nos interessa relevar — ainda
que de forma esparsa e epidérmica — é a criação de condições que
vão suscitar a emergência de um novo mercado: o mercado de valores
mobiliários.

(3) H enri-F rançois D ’A guesseau, «Mémoire sur le commerce des actions de Ia


Compagnie des Indes». Rivisia delle Socieià, 1960, pág. 158.
(4) V. Rui M anuel de F igueiredo M arcos, ob. cit.. págs. 470 e segs.
(s) Apud D avid J ustino , ob. cit., pág. 64. A transmissibilidade referida no
texto seria incrementada se os títulos fossem ao portador. Segundo J osé A lberto
dos R eis, Dos titulos ao portador, Coimbra: França Amado, 1899, pág. 76, «Quanto
aos titulos de divida publica consolidada, na primeira epocha, que vae até 1796, é
positivo que não revestiam a forma ao portador. (...) Em 1796 começa á segunda epo­
cha da divida publica consolidada. Aos padrões substituem-se as apólices, transmis­
síveis por simples indosso e até por tradição manual, visto que algumas tinham a
natureza de verdadeiro papel moeda. É, pois. somente n’esta altura que os titulos de
divida publica assumem a forma ao portador». Segundo o mesmo autor, não é seguro
que fossem ao portador as acções das companhias formadas para explorar o comércio
com o Brasil e com a índia.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 9

A «mobilização da riqueza» (6) — a manifestar a assunção do cres­


cente relevo patrimonial dos valores mobiliários na composição das for­
tunas — refere não só o caracter móvel de tais bens como ainda a sua
vocação circulatória. Em um certo sentido, os valores mobiliários são
bens com mobilidade (7). Os valores mobiliários, ao contrário dos bens
imobiliários, entram e saem do patrimônio com dessolenizada faci­
lidade. Basta uma ordem de bolsa e o valor é, num curto espaço
de tempo, comprado e vendido. E a operação inversa é, a qualquer
momento, possível. Assim se compreendem as palavras de Ripert, rela­
tivas à gestão das fortunas compostas por valores mobiliários: «Bien
gérer sa fortune consiste à acheter ou à vendre au moment opportun» (8).
O secular desprezo pela riqueza fundada em bens móveis, expresso no
adágio «res mobilis, res vilis», vai-se estilhaçando no processo histó­
rico que, promovendo a recomposição das fortunas, conduz ao predomínio
capitalista da riqueza mobiliária. É certo que a Idade Média já conhe­
cia a representação de direitos em títulos (de que é exemplo a criação mer­
cantil da letra de câmbio). É de frisar, também, que a subscrição de títu­
los de dívida pública e de acções das companhias não determinou, de
imediato, a diluição da importância e do peso da riqueza imobiliária na
composição das fortunas (9). O que queremos significar é que a aber­
tura do capital das companhias de comércio à subscrição pública (,0)

(*>) R uy E nnes U lrich, Da bolsa e suas operações, Coimbra: Imprensa da Uni­


versidade, 1906, págs. 34 e segs.
(7) Escreve G eorges R ipert, Aspects juridiques du capitalisme moderne. Paris:
Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1946, pãg. 143: «Valeurs mobilières,
1’expression est bien choisie. Cette richesse nouvelle ne consiste pas dans une propriété
stable, c’est une valeur essentiellement mobile».
(E) G eorges R ipert, ob. cit., pág. 144.
(9) A emergência de «diferentes combinações de riqueza» (C esare V ivante,
Tratado de derecho mercantil, versión espanola de la quinta edición italiana, Volume 111
(traducido por Miguel Cabeza Y Anido), primera edición, Madrid: Editorial Reus, 1936,
pág. 136) não equivale, como mostra G eorges R ipert, ob. cit., pág. 126, à imediata e
abrupta diluição do relevo da riqueza imobiliária.
(10) Escreve Rui M anuel de F igueiredo Marcos, ob. cit., pág. 361: «As Com­
panhias pombalinas eram sociedades abertas. Franqueavam as suas portas a quaisquer
interessados, sem curar do esplendor da origem de cada um».
10 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

ou a disseminação das apólices dos empréstimos públicos permitiram que


comerciantes e não comerciantes, estratos vários da população, pudes­
sem ser atraídos por esta nova forma de riqueza.
À bolsa — instituição que, entre nós, repousa em uma longeva tra­
dição (u ) — é reservado um lugar central na organização das economias
modernas, tendo em conta ás relevantes funções que desempenha. Reu­
nião da oferta e da procura, celeridade das operações, desformalização,
acesso facilitado a informações e consequente formação da opinião comer­
cial, publicidade das operações, eis alguns dos benefícios que a doutrina
do século XIX associa à bolsa (l2). A bolsa, por um lado, vive da infor­
mação^— «Á bolsadaffluem todas as noticias que podem interessar o
mundo commercial e nella promptamente se djffundem» (13) — e, por
outro, é ela própria geradora de fluxos informacionais, porquanto as ope­
rações são públicas (realizadas em voz alta) e são publicitadas as cotações
atingidas. Assim, quem está a transaccionar na bolsa tem acesso facili­
tado a um vasto acervo informacional. dispensado-o, por isso, dos custos
necessários a averiguações, seja sobre a reputação dos demais interve-
nientes, seja sobre as entidades emitentes dos valores transaccionados.
(5 que facilita a conecta colocação dos capitais por parte dos particulares.
A legislação nacional do século XIX vai dedicar especial atenção à
bolsa e aos agentes intermediários que nela actuavam (14). Determi­
nava o artigo 6." do Regulamento sobre o Officio dos Corretores de 28
de Fevereiro de 1825 que «A intervenção dos Corretores, em toda e*&

(,l) Cfr. R uy E nnes U lrich . ob. cit., págs. 71 e segs.; A driano A nthero ,
Comentário ao Codigo Commercial Portuguez. Volume 1, Porto: Typographia «Artes
& Lettras», 1913, págs. 154 e segs.
(12) Dioco P ereira Forjaz de S ampaio P imentel, Annotações ao Livro Pri­
meiro da Parte Primeira do Codigo de Conunercio Portuguez, que se inscreve das pes­
soas do commercio, Coimbra: Imprensa da Universidade,. 1857, pág. 68. Sobre as van­
tagens da bolsa, já à luz do Código Comercial de 1888, v. R uy E nnes U lrich , ob. cit.,
págs. 14 e segs.
(13) *Rüy^Ennes ‘UErichtioí». cit., pág. 18. Afirmação, em parte, reproduzida
por A driano A nthero, ob. cit., pág. 154.
(14) Sobre a evolução oitocentista e posterior das regras alemãs relativas à bolsa,
v. E berhaRD Schwark, Borsengesetz. Kommentar zuni Bõrsengesetz und den borsen-
rechtlichen Nebenbestimmungen, 2. neubearbeitete Auflage, München: C. H. Beck’sche
Vertagsbuchhandlung, 1994, págs. 31 e segs.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 11

qualquer negociação, será livre aos Negociantes, os quaes se valerão


delles nas negociações, que bem lhes parecer; e pelas negociações, em
que intervierem, haverão o direito, oü prêmio da corretagem, em que se
ajustarem,, que será paga em partes iguaes pelas pessoas, que intervie­
rem no contracto (...)»• Mas serão as codificações comerciais oito-
centistas que contribuirão, de modo significativo, para o enquadramento
normativo da bolsa. Em 1833, o Código Comercial de Ferreira Borges
definia legislativamente a bolsa — «Praça de commercio, ou bolsa, é não
só o local, mas a reunião dos commerciantes, capitães e mestres de
navios, corretores, e mais pessoas empregadas no commercio. Este
local e reunião é sugeito á policia e auctoridade designada na lei» ( l5*) —
e regulava o modo de obter «o curso do cambio, das mercadorias, dos
seguros, dos fretes, do preço dos transportes de terra e agoa, dos fundos
públicos nacionais e estrangeiros, e d’outros papéis, cujo curso é sus­
ceptível de ser cotado. (...)». É ainda enquadrada legislativamente a
intermediação profissionalizada desenvolvida pelos corretores. O Código
Comercial de 1833 não só define as funções próprias destes profissio­
nais, como estabelece os requisitos de acesso à profissão e os deveres
a cumprir no exercício desta (I<5). Destacamos que «os corretores não
poderão fazer operação alguma mercantil por conta própria: — nem
nela tomar parte, acção, nem interesse: — nem contrahir sociedade ou
parceria de qualquer denominação ou classe: — nem interessar-se em
navios mercantes, ou suas cargas: — tudo debaixo da pena de perdimento
do officio, nullidade e inefficacia do contracto» (l7). Como também se

(15) Cfr. artigo 9 7 “ do Código Comercial de 1833. Reproduzimos a grafia usada


por D iogo P ereira Forjaz de S ampaio P imentel, ob. cit., pág. 68. Mais tarde, à luz
já do artigo 82.° do Código Comercial de 1888, A driano A nthero , ob. cit., pág. 153,
definia as bolsas como «os locacs em que os homens de negocio se reunem todos os dias,
a horas combinadas, nos grandes centros commerciaes, para comprarem ou venderem os
objectos negociáveis que ahi dão logar a transacções de sufficiente importância».
(,6) Cfr. artigos 103“ a 140." do Código Comercial de 1833. Sobre a evolução
histórica do governo das bolsas em Portugal, v. Paulo C âmara , «O governo das bol­
sas», AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume VI, Coimbra: Coimbra Editora,
2006, págs. 191 e segs.
C*7) Cfr. artigo 127.° do Código Comercial de 1833. Sobre as razões que fun­
dam esta proibição, v. D iogo P ereira F orjaz de S ampaio P imentel, ob. cit., pág. 81.
12 0 Crime de Abusa de Informação Privilegiada

impõe que «É dever do' corretor guardar inteiro segredo de tudo quanto
respeita às negociações, de que se encarrega» (artigo 115.°). Em 1837,
é publicado o Regulamento para as Praças Commerciaes do Reino e o
Regulamento da Corporação dos Corretores. É instituída a Câmara dos
Corretores — entidade responsável pela administração e funcionamento
da bolsa — , prevista a obrigatoriedade de registo das cotações (18)t
regulada a forma de arrecadação e escrituração das receitas e destacados
os corretores especializados em operações do mercado de valores (19).
Surpreendem-se, assim, notas que ainda hoje as bolsas mantêm: a inter­
mediação profissionalizada e a disciplina das cotações.
O Código Comercial de 1888 — de que aindá são mantidas algu­
mas disposições em vigor — dedicou, no Livro I, o Título VII à disci­
plina dos corretores, e integrava as bolsas no Título VIII, dedicado aos
«lugares destinados ao comércio». No elenco dos actos de comércio
objectivos surgiam as operações de bolsa, reguladas nos artigos 351.°
a 361.° do Código Comercial (20).
Pese embora os avanços que esta regulação incorpora, a bolsa con­
tinua a ser um mercado indiferenciaclo que congrega valores, serviços e
mercadorias (21). Pouco mais de um ano após a publicação do Código

('*) Determinava o artigo 11.° do Regulamento da Corporação dos Corretores que


«A Camara posto que encarregada de verificar, e cotar o curso dos effeitos públicos, não
garante o seu valor, nem a solvabilidade do devedor; he todavia responsável pela exac-
tidão dos preços cotados».
(I9) Alguns comentários escritos à margem do registo das cotações dos câmbios
dão-nos conta do estado do mercado e revelam-nos o jogo de expectativas que um
paquete vindo de Londres poderá provocar entre compradores e vendedores de letras de
câmbio. O registo encontra-se reproduzido em D avid J ustino, ob. cit., pág. 88.
(30) Sobre este regime, v. Luiz da C unha G onçalves. Comentário ao Código
Comercial Português, Volume U, Lisboa: Empresa Editora José Bastos, 1916, págs. 358
e segs. As normas relativas aos corretores, bolsa e operações de bolsa, inscritas no
Código Comercial de 1888, foram revogadas pelo artigo 24." do Decreto-Lei n.° 142-A/91,
de 10 de Abril, que aprovou o Código do Mercado dos Valores Mobiliários (CódMVM).
(2I) Segundo D avid J ustino, ob. cit., pág. 65, desde o século XV que existe
mercado de valores em Portugal, alimentado pela negociação generalizada de letras de
câmbio, a que se seguem os títulos de dívida correspondentes às dívidas pública flu­
tuante e consolidada. No século XVIII. outros papéis de crédito são objecto de transacção,
desde os escritos da Casa da Moeda até aos escritos das Alfândegas, a que se juntarão
as acções das companhias pombal inas.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 13

Comercial de 1888, é aprovado o Regulamento das Bolsas, pelo Decreto


de 8 de Outubro de 1889. Estipula-se que a tutela da Bolsa cabe ao
Governo, através do Ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria,
a administração à Associação Comercial sediada na localidade. A admis­
são à cotação dos títulos de dívida pública é automática, reservando-se
o Governo a faculdade de autorizar a admissão à cotação de fundos
públicos estrangeiros. Quanto aos restantes valores, essa admissão é
da responsabilidade da Câmara de Corretores. Em 1891, é instituída a
Bolsa do Porto. Embora haja tentativas anteriores no sentido da seg­
mentação do mercado com a autonomização do mercado de fundos
públicos (22)t do ponto de vista legislativo, só em 1901, por intermédio
do Decreto de 10 de Outubro — que aprovou o Regimento do Officio
de Corretor e o Regulamento do Serviço e Operações das Bolsas de
Fundos Públicos e Particulares e Outros Papéis de Credito —, é admi­
tida a especificidade do mercado de valores. É também este Regimento
que estabelece a intermediação obrigatória quando no artigo 3.° prevê que
«A intervenção dos corretores é obrigatória para todas as operações que
se effectuarem na bolsa, nos termos do art. 351.° e seguintes do codigo
commercial, e bem assim para as transacções que forem ordenadas pelas
auctoridades judiciaes a que se refere o art. 66.° e seu § unico do mesmo
codigo».
Co-natural à existência das bolsas é o «jogo» (^).ten denteia .apro­
veitar as oscilações das cotações, com^a-jntuito de, por esse meio,..obter
lücTos^Q iimailo^ucrativo, sendo um aspecto"físTológÍco da economia
de mercado, foi, no século XIX, erigido em um dos critérios unitários
para a compreensão dos actos objectivos de comércio, de que as ope­
rações de bolsa são um exemplo (24). E se, durante muito tempo, os

F 2) A autonomização dos diferentes segmentos da bolsa já se havia afirmado no


último terço do século XIX. Cfr. D avid J ustino, ob. cit., pág. 132.
t23) Não é de hoje esta expressão. Já no século XVII, na Bolsa de Amesterdão,
transformada em grande mercado de valores, o «jogo da bolsa» referia uma prática de
negociar que conjugava «valores, prazos e riscos» (cfr. D avid J ustino, ob. cit., pág. 39).
í24) A título de exemplo, leia-se JOSÉ B enevides, Contractos commerciaes, Lis­
boa: Ferin, 1862, pág. 69, que definia actos de comércio como «actos de mediação
entre productor e consumidor, que realisam ou auxiliam a circulação das riquezas e
praticados com o fim directo de lucro». Defendendo a impossibilidade de um conceito
14 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

•comerciantes tinham a possibilidade de especular porque dispunham de


^mercadorias suficientes para aproveitar as diferenças entre a.compra ^e
_a venda^é certo que a disseminação de valores mobiliários permitiu
que outras pessoas sentissem a atracção da especulação. É este o registo
do conhecido texto de D’Aguesseau que, no século XVIII, opondo-se às
opções de John Law, narra a transmissão de títulos e censura o benefí­
cio que este «commerce sans travail» segrega. Graças à bolsa, todos os
investidores são informados diariamente sobre o valor da respectiva car­
teira de títulos. Podem, na posse de tal informação, comprar ou vender
— numa palavra: especular — e, por isso, dedicar-se ao «commerce
sans travail» que irritava D’Aguesseau (25).
Contudo, a história das bolsas documenta artifícios vários dos espe­
culadores tendentes a perturbar artificiosamente as cotações de harmo­
nia com as suas conveniências. Além disso, as condições da bolsa não
só favorecem o aparecimento de elementos perturbadores, como ainda
contribuem para amplificar os seus efeitos. ,A rapidez propiciada .pela
bolsa permite que transacções em massa sejam realizadas em um
momento, o que não .deixa de ser projectado nas cotações atingidas.
A história da bolsa documenta, especialmente ..em França e na Ingla­
terra de oitocentos, agressivos ataques especulativos sobre determinados
títulos. É na sequência de tais ataques que em Inglaterra se firma o
"«Bubble Act» e em França_se^encerram as bolsas (2(?).
Entre nós, no sécuío^XVIII^o poder público percebeu que as mano­
bras fraudulentas, os artifícios, os ataques especulativos relativamente às
acções — que, todavia, não conheceram a intensidade verificada em
França ou em Inglaterra C27) — e as oscilações de cotação punham em

unitário de acto de comércio, v. J, M. C outinho DE A breu, Curso de direito comercial,


Volume I, Introdução, actos de comércio, empresas, sinais distintivos, 5.* edição, Alme-
dina: Coimbra, 2004, págs. 40 e segs.
(25) G eorges R ipert, ob. cit., pág. 161.
(26) Cfr. J ean H ilaire, Introduction historique au droit commercial. Paris: Pres-
ses Universitaires de France, 1986, págs. 207 e segs. Sobre a «Bubble crisis» e a
«gambling mania» que lhe é contemporânea, cfr. Paul L. Davies, Gower’s principies o f
modem company law, sixth edition (with a contribution from D. D. Prentice), London:
Sweet & Maxwell, 1997, págs. 24 e segs.
í27) Cfr. Rui M anuel de Figueiredo M arcos, ob. cit., pág. 644.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 15

causa «a confiança da opinião pública nas apólices, as quais não acha­


riam facilmente procura, colocando em risco a transmissibilidade con­
creta dos títulos» (28). Neste contexto, a intervenção do poder público
nacional foi no sentido de assegurar uma «certa estabilidade imperativa
ao preço de mercado das acções» (29).
No século XX, o mercado português de valores mobiliários conhe­
ceu vicissitudes várias entre a estagnação, o crescimento e o impulso
motivado pela adesão às comunidades europeias. O edifício normativo
regulador, apesar dos diplomas que foram sendo editados, continuava a
contar com as disposições do oitocentista Código Comercial de Veiga Bei-
rão. JSm 1986 é.publicado o açtual Código das Sociedades Comerciais
que integra, como se sabe, o contributo da doutrina e da jurisprudência
nacionais e a adaptação da ordem jurídica às direçtivas comunitárias
sobre sociedades. (30). Aquele diploma regula os principais agentes econô­
micos — as sociedades comerciais e civis sob a forma comercial —, é
pioneiro na proibição do abuso de informações privilegiadas, mas, como
facilmente se entende, não intenciona regular os mercados de valores
mobiliários.
Por intermédio do Decreto-Lei n.° 142-A/91, de 10 de Abril, foi
aprovado o Código do Mercado de Valores Mobiliários (CódMVM).
Destacamos, por um lado, a desestatização, desgovemamentalização e
liberalização dos mercados e o reforço dos meios de supervisão e con­
trolo e, por outro, a regulação das qualidades que a informação ao inves­
tidor deve cumprir. Uma das medidas foi, justamente, entregar a ges­
tão da bolsa a associações de bolsa, constituídas sob a forma de
associações de direito privado sem fins lucrativos. Contemporanea-
mente, e atendendo j Lnecessidade .desprotegero interesse público de
defesa do mercado e de protecçãojlqs investidores, foi criada a Comis-
^são do Mercado, de Valores Mobiliários (CMVM) que, de modo profis;
sional e autônomo, foi encarregada de fiscalizar, supervisionar e regu­

(*8) Cfr. Rui M anuel de F igueiredo M arcos, ob. cit., pág. 646.
í29) Cfr. Rui M anuel de F igueiredo M arcos, ob. cit., pág. 646.
(30) r0 CSC ToT recèntemcnte-alterado -pelos JíecretosTLeis n.°.s. 52/2006, de 15
^ de Março, e 76-A/2006, de 29 de-Marçó.- liste' ultimo diploma republica em anexo o CSC.
16 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

lar os mercados primário e secundário. A CMVM veio assumir funções


anteriormente entregues ao Ministro das Finanças e veio .substituir o
anterior Auditor-Geral 1do Mercado de Títulos, que
----- • ■ " 1 havia,sido criado
' '

^ em 1987» e ao qual já haviam sido atribuídas» entre outras, as funções


(também antes entregues ao Ministro das Finanças) de garantir uma
efectiya inspecção e supervisão.do mercado. ,Na linha da defesa^do
investidor e da regularidade, transparência e funcionamento do mercado,
é dado especial relevo à informação.. Já não a informação enquanto
direito societário do accionista — vertente que o Código das Sociedades
Comerciais tinha regulado — mas sim enquanto regulação que visa pro­
teger o investidor, habilitando-o a tomar decisões. E recebido na ordem
jurídica nacional o princípio da fidl disclosure, previsto desde 1933 na
legislação norte-americana.
Em .1999, é^publicado o -vigente Código dos Valores Mobiliários
(CVM), aprovado pelo Decreto-Lei n.° 48Ç/99, de 13 de Novembro s o ­
pese embora o nome escolhido, este código, tal como o anterior, con­
templa normas fundamentais sobre os mercados de valores mobiliários
e introduz nesta matéria importantes modificações. Entre muitos outrps
aspectos, é acolhida a distinção entre mercados regulamentados e não
regufamentádps, e dedicada particular atenção à informação aos inves­
tidores e são agrupados os crimes de abuso de informação e de mani-
‘ pulação de mercado em uma secção dedicada aos «crimes contra o mer­
cado»^ Na sequência do CVM, ét reformulado o Estatuto da CMVM (32).
É esta entidade reguladora caracterizada como uma «pessoa colectiva de
direito público dotada de autonomia administrativa e financeira e de
patrimônio próprio», estando sujeita à tutela do Ministro das Finanças.

(31) M iguel N uno P edrosa M achado , «A entrada em vigor das incriminações


de abuso de informação e de manipulação do mercado do Código do Mercado de Valo­
res Mobiliários», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 4 (1991), págs. 620 e segs.,
denuncia erros de técnica legislativa que, na opinião do autor, tiveram como conse­
quência a descriminaiização de alguns crimes de abuso de informação e de manipula­
ção do mercado.
(31) Veja-se o Decreto-Lei n.° 473/99, de 8 de Novembro, com as alterações
introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 232/2000, de 25 de Setembro, e pelo Decreto-Lei
n.° 183/2003, de 19 de Agosto. •'
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 17

A reforma do sector do mercado de valores mobiliários abrangeu


também o regime de organização e gestão de tais mercados. Actual-
mente, a gestão dos mercados de valores mobiliários está a cargo de
sociedades privadas. O legislador português foi ao encontro de solu­
ções consagradas em outros mercados e alinha a ordem jurídica por­
tuguesa com experiências internacionais. Yerificada a ,,«desmutua li -
zação dos mercados» — as entidades gestoras deixam de ser associações
para passarem a ser sociedades anônimas com fins lucrativos (33) —,
abre-se caminho ao processo de integração internacional dos merca­
dos (34).
São, ainda, os objectivos de fomento da internacionalização e da_
competitividade do mercado português que, em 2004, detenninaram o
abandono do princípio da taxatividade dos valores mobiliários — e, por-
conseguinte, alterações no CVM (?5) —, reconhecendo-se actualmente.a
liberdade de emissão de novos valores mobiliários (36).

(33) Esta matéria encontra-se regulada pelo Decreto-Lei n.° 394/99, de 13 de Outu­
bro, alterado pelo Decreto-Lei n.° 8-D/2002, de 15 de Janeiro. As antigas Associação
da Bolsa de Valores de Lisboa e Associação da Bolsa de Derivados do Porto foram
substituídas pela BVLP, S.A. — hoje designada Euronext Lisbon — , e a Interbolsa,
Associação para a Prestação de Serviços à Bolsa de Valores foi substituída pela Inter-
botsa, S.A.
(34) Cfr. J oão S oares da S ilva, «Euronext — alguns aspectos de enquadra­
mento e estrutura jurídica», AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume IV, Coim­
bra: Coimbra Editora, 2003, págs. 347 e segs.
(35) Veja-se o Decreto-Lei n.° 66/2004, de 24 de Março.
(3S) Sobre a tipicidade dos valores mobiliários, v. J osé de O liveira A scensão ,
«O actual conceito de valor mobiliário», AAVV, Direito dos Valores Mobiliários,
Volume III, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, págs. 54 e segs. Sobre as alterações
introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 66/2004, de 24 de Março, e o conceito de valor mobi­
liário, v. J osé de O liveira A scensão , «O novíssimo conceito de valor mobiliário»,
AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume VI, Coimbra: Coimbra Editora, 2006,
págs. 139 e segs. Sobre o sentido da atipicidade dos valores mobiliários, v. J oaquim de
S ousa R ibeiro , «Autonomia privada e atipicidade dos valores mobiliários», AAVV,
Direito dos Valores Mobiliários, Volume VI, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, págs. 299
e segs. A liberdade de criação de valores mobiliários levanta o problema da sua desig­
nação identificativa. A CMVM, atenta ao relevo informativo desta matéria, emitiu a
Recomendação sobre Designação Identificativa de Valores Mobiliários. O texto desta
Recomendação encontra-se disponível em www.cmvm.pt.
2
18 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

1.2. À gênese da repressão do insider trading. Caminhos e


controvérsias

Ecos vindos do século XVIII já põem em destaque, por um lado,


os benefícios obtidos por um grupo restrito de «iniciados» que negoceia
as suas acções na posse de informações reservadas e, por outro lado, o
prejuízo sofrido pelo público investidor que não dispõe de tais infor­
mações C37). Mais do que a narrativa sobre a negociação das acções, é
o tom de denúncia que se surpreende em tais relatos. Denuncia-se o
comportamento de accionistas que, beneficiando de informações não
públicas e sensíveis, se apressam a projectar tais informações em deci­
sões negociais sobre as acções. Provocando, deste modo. o enriqueci­
mento próprio e o empobrecimento alheio.
É no século XX que de modo reiterado e insistente se expõe e
denuncia a prática que é internacional mente conhecida como insider
trading ou insider dealing. Conceito que, numa primeira aproximação,
refere a negociação de valores mobiliários dispondo de informação reser­
vada e sensível e, mais especificamente, traduz de modo paradigmático
a apropriação de informação privilegiada por pessoas que mantêm rela­
ções de especial proximidade com a entidade emitente de valores mobi­
liários (38). Matéria, portanto, que se situa na zona de confluência entre
as entidades emitentes de valores mobiliários, a transmissão e negocia­
ção de tais valores e, de modo não menos importante, os mercados onde
tais valores são transaccionados. Embora pressuponha as referidas cone­
xões, podemos desde já avançar que actualmente a disciplina relativa ao
insider trading liga-se intrínseca e essencialmente à tutela dos próprios
mercados de valores mobiliários.

(37) Cfr. K laus J. Hoft , «Norme etiche e.norme giuridiche nel diritto delfeco-
nomia: uno studio sulfautodisciplina tedesca degli insiders», Rivista delle Società, 1974,
pág. 1046. K laus J. H oft, «The european insider dealing directive», Common Market
Law Review, 27 (1990), pág. 51, refere que, em Inglaterra, no tempo do South Sea
Bubble, foram reportados casos de insider dealing.
(3B) Na doutrina anglo-saxónica, vejam-se, por todos, R obert C harles C lark ,
Corporate law, Boston/Toronto; Little, Brown and Company, 1986, pág. 264; Paul L.
D avies, ob. cit., pág, 443.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 19

É recente a proibição do insider trading. Até vingar esta proibição,


o aproveitamento por um grupo de líttle few de um acervo informacio-
nal reservado e relevante era aceite cómo expressão do privilégio dos
mais bem informados (39). Primeiro nos EUA e, mais tarde, na Europa,
intensificam-se durante o século XX a exposição e a denúncia insis­
tente desta prática — tarefa em que os mass media de vocação econô­
mica tiveram um papel importante — operando-se, por consequência,
mudanças no juízo valorativo que lhe é dispensado. Percebamos, em tra­
gos largos, a_génese da repressãomos^EUA.
Na sequência do crash da bolsa em 1929, surge nos anos trinta a
regulação federal sobre os mercados de valores mobiliários. O Securi-
ties Act de 1933 e o Securities Exchange Act de 1934 foram adoptados
para regular a negociação e os mercados de valores mobiliários em
geral. Pontuam nesta disciplina interesses que não estavam presentes nas
regras relativas às «corporations laws». Se estas se preocupavam com
problemas como a protecção dos accionistas, as leis relativas aos valo­
res mobiliários centram a sua disciplina na protecção do investidor (40)
que passa, de forma decisiva, pelo princípio da full disclosure. Espe-
cificamente, com relevo para a matéria do insider trading, assinalem-se
a Section 10 b) (41) e a Section 16 b) (42) do Securities Exchange Act

(39) E dwaRD S. H erman, Corporate control, 'corporate power. A twentieth cen-


tury fitnd study, Cambridge: Cambridge University Press, 1981, pág. 116, recorda que
durante o século XIX era prática comum que os dirigentes das sociedades aproveitas­
sem a informação privilegiada em benefício próprio.
í40) J ames D. Cox / T homas L ee H azen , Cox & Hazen on Corporations,
Volume II, second edition, New York: Aspen Publishers, 2003, pág. 657.
(4!) A Section 10 intitula-se «Regulation of the use of manipulative and decep-
tive devices».
(42) A Section 16 b) — a Section 16 surge com o título «Directors, officers
and principal stockholders» — visa prevenir o uso ilegítimo de informação obtida em
razão da relação com o emitente. Aquela disposição abrange os chamados «short-swing
profits» que são proventos resultantes do «in-and-out trading» em acções do emitente.
A disposição determina que certos emitentes possam recuperar os lucros realizados
por específicos insiders decorrentes de compras e vendas ou vendas e compras de
valores mobiliários do emitente no prazo de seis meses. Interessa salientar que para
a responsabilidade do statutory insider não interessa que tipo de informação ele deti­
nha, nem as intenções que o moviam, nem se o resultado no referido período de seis
20 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

de 1934 (43). Ao abrigo dos poderes de regulação que lhe são reconhe­
cidos, a Securities Exchange Commission (SEÇ) (44) emitiu, em 1942,
a Rule 10b-5 que, entre outros aspectos, considera «unlawful» «to
make any untrue statement of a material fact or to omit to State a
material fact» (45) em conexão com a compra ou venda de «securi­
ties» (46). A verdade é que o carácter abrangente da linguagem utili­
zada na Rule 10b-5 (47) permitiu que sob as suas disposições fossem
acolhidas realidades diversas, mas no que nos interessa mais directa-
mente, a doutrina refere que esta disposição teve um papel importan­
tíssimo no combate ao insider trading, ao ponto de se dizer que a
maior parte da jurisprudência que ao abrigo dela se profere é sobre
aquela prática (48).
A partir de 1942, a SEC começou por sustentar, com base na

meses foi lucrativo ou não. Por isso, os tribunais, quando se referem a esta disposi­
ção, designam-na como «flat», «arbitrary», «strict» «prophylatic». Sobre as ambigui­
dades que esta disciplina, apesar de tudo, apresenta, cfr. R obert C harles C lark , ob.
cit., págs. 293 e segs.
(43) O texto integral das leis relativas à «securities industry» está disponível no
sítio oficial da SEC (www.sec.gov.). Nos anos 80, o Congresso norte-americano adop-
tou o Insider Trading Sancüons Act (1984) e o Insider Trading and Securities Fraud
Enforcement Act (1988) que reconhecem o carácter ilegal do insider trading. Para a des­
crição destas medidas, cfr. R obert W. H amilton, The law o f corporauons in a nutshell,
St. Paul: West Group, 2000, págs. 509 e segs. Sobre a eficácia daqueles instrumentos
normativos, cfr. J ames D. Cox / T homas L ee H azen , ob. cit., págs. 699 e segs.
t44) Sobre esta entidade, v. Louts Loss / J oel S eligman, Fundamentais o f secu­
rities regulation, third edition, Boston/New York/Toronto/London: Little, Brown and
Company, 1995, págs. 50 e segs.
(45) Sobre a gênese desta disposição, cfr. Louis Loss / J oel S eligman, ob. cit.,
págs. 777 e segs. e 850 e segs. Em Agosto de 2000, a SEC adoptou o Rule 10b)5-l
e o Rule 10b)5-2 sobre Selective Disclosure and Insider Trading.
(46) Sobre a noção de security, v. a Section■3 (10) do Securities Exchange Act
de 1934, e Louis Loss / J oel S eligman, ob. cit., págs. 169 e segs.
(47) Sobre as alterações introduzidas pelo «Sarbanes-Oxley Act of 2002», v.
J ames D. Cox í T homas L ee H azen , ob. cit., pág. 660.
(48) Refere R obert W. H amilton, ob. cit., págs. 505 e segs., que a disciplina
do insider trading foi formatada pelos contributos de quatro importantes decisões
do Supreme Court o f United States. São elas: Chiarella v. United States (1980);
Dirks v. SEC (1983); Carpenter v. United States (1987); e United States v. 0 ‘Hagan
(1997).
1. Reflexões a propósito cia intromissão do direito penal no mercado... 21

Rule 10b-5, a «disclose or abstain theory» (49), de acordo com a qual


quem estivesse na posse de informação privilegiada podia, aparente­
mente, seguir uma de duas alternativas: ou divulgava a informação pri­
vilegiada ou abstinha-se de negociar. Esta doutrina faz radicar o
dever de revelar ao mercado a informação privilegiada na relação de
confiança que, simultaneamente, delimita também o possível círculo
de agentes de infracção. Quem se encontra numa relação de con­
fiança com os accionistas é um potencial insider. Além de outras
fragilidades, há que referir que a construção parece mais adequada a
um mercado em que haja uma negociação face-to-face (em que é
legítimo exigir o dever de esclarecer a contraparte) do que em mer­
cados de valores mobiliários em que, como veremos, a negociação é
impessoal e até anônima (50).
A prática mostrou que poderia haver um aproveitamento ilegítimo
de informação por parte de pessoas colocadas em circuitos importantes
sem que elas actuassem no contexto de uma relação fíduciária (entre essas
pessoas e os accionistas a quem a informação dizia respeito). Perante
esta dificuldade, a reflexão evolui em dois sentidos: a) reconstrução

(49) Sobre esta retórica argumentativa — que na sua gênese visava «insiders or
the Corporation itself trading on inside information about corporate assets or pros-
pects» — e os alargamentos que tem conhecido, veja-se V ictor B rudney , «Insiders,
outsiders, and informational advantages under the federal securities Iaws», Harvard Law
Review, 93 (1979-1980), págs. 323 e segs. Conclui B rudney , ob. cit., pág. 376,
«that the rule forbids exploiting unerodable informational advantages that one trader
has over another».
(i0) Como refere R obert C harles C lark, ob. cit., pág. 352, òs membros de
administração de sociedades com capital social disperso (public held corporations) são
pessoas completamente estranhas aos investidores que os demandam por violação da dis­
ciplina antí-insider trading. Acrescenta que os tribunais têm condenado os primeiros,
não porque os investidores tenham depositado alguma confiança neles como indiví­
duos, mas pela natureza, papel ou status que eles ocupam num sistema desenvolvido de
relações que caracteriza a moderna sociedade e os mercados de capitais. «The direc-
tors, officers, and controlling shareholders of public corporations occupy standardized roles:
Much of what they do is determined not by specific contrats but by law or custom — by
“implicit form contracts”». Na doutrina portuguesa, para a discussão das lacunas da
disclose or abstain theory, v. F rederico de Lacerda da C osta P into , O novo regime
dos crimes e contra-ordenações no Código dos Valores Mobiliários, Coimbra: Almedina,
2000, págs. 47 e segs.
22 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

dos quadros da disclose or abstain theory, de modo a alargá-la até às rela­


ções de «quase confiança» e b) procura de um diferente fundamento
de proibição da insider trading que irá ser encontrado na tutela da pro­
priedade da informação. Surge, por esta última via, a misappropria-
tion theory, a significar que aquele que se apropria de informação pri­
vilegiada comete um acto de ilegítima apropriação de tal informação
em relação ao proprietário. Aqui a vítima é a pessoa que confiou ao insi­
der a informação privilegiada, nomeadamente a empresa para quem ele
trabalha (51)-
No entanto, é preciso não esquecer que há uma linha de argumen­
tação que, opondo-se radicaímente à proibição ou incriminação, incor­
pora os benefícios do insider trading na remuneração devida aos cor-
porate insiders e, por essa via, reputa como legítima e lícita tal prática.
A reflexão teórica levada a cabo nos anos sessenta do século passado por
Manne veio defender, com argumentos vários, a licitude e a valia intrín­
seca que o insider trading representa para o funcionamento do mercado
de valores mobiliários em geral (52). Segundo Manne, «without insider
trading, the corporate system might not survive» (53), porquanto esta
seria a forma de remunerar devidamente os administradores das socie­
dades (verdadeiros entrepreneurs) que, pelas suas excepcionais quali­
dades de liderança e de inovação, eram o motor de criação da riqueza.
Sem a possibilidade de se remunerarem pelo uso de insider trading, a

(51) Na decisão do Supreme Court de 25 de Junho de 1997, no caso United


States v. 0'Hagan. foi acolhida a misappropriation theory. O texto da decisão encon­
tra-se publicado na íntegra em Giurisprudenza Commerciale, II (Novembre-Dicem-
bre), 1998, págs. 703 a 712, com a anotação de Stefano G alli, «Insider trading:
1’accoglimento da parte delia Supreme Court federale statunitense delia misappropria­
tion theory. Alcune consequenti riflessioni sulla condotta di ‘trading’ vietata, como defi-
nita nel cosiddetto ‘Testo Unico Draghi’», Giurisprudenza Commerciale, II (Novem-
bre-Dicembre), 1998, págs. 712-735. Sobre as diversas teorias desenvolvidas nos EUA
para fundar a proibição, do insider trading, v. Klaus J. H opt, «Europãisches und deuts-
ches Insiderrecht», Zeitschrift fü r Unternehmens- und Gesellschaftsrecht, I (1991),
págs. 27 e 28.
(52) Sobre o relevo da obra de Manne e a quebra do consenso sobre a razoabi-
lidade da disciplina relativa ao insider trading, v. K laus J. H opt , «Europãisches und
deutsches Insiderrecht», cit., págs. 22 e segs.
(53) Apud R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 277.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 23

actividade de gestão deixaria de cativar estas pessoas com o conse­


quente prejuízo para todo o sistema.
Não se desconhece que o reforço legislativo das responsabilidades
dos administradores e as gravosas consequências pessoais e patrimo­
niais que daí eventualmente advenham podem significar que as sociedades
experimentem dificuldades em recrutar administradores altamente qua­
lificados. E se nos ficarmos estritamente pelo argumento da remune­
ração dos administradores — matéria sensível e presente na actual e
intensa reflexão em tomo de corporate govemance (54) — é certo que
a prática conhece instrumentos de remuneração dos administradores que
sè ligam ao desempenho da sociedade e que podem ser adoptados com
transparência. Vejam-se, por exemplo, os stock options plans ou os
stock options bonus. Há ainda que considerar que a admissão do insi­
der trading propiciaria que os administradores beneficiassem não só
com o bom desempenho como com o mau desempenho, porque os habi­
litaria a vender as acções nas vésperas de divulgação de más notí­
cias (55). Mais. Em circunstâncias em que há uma expectativa de des­
valorização das acções, a técnica do «short sale» (5Ó) permitir-lhes-ia, além
de evitar prejuízos, acumular proventos resultantes da diferença entre o

(54) Veja-se, entre nós, o relevo que o Regulamento da CMVM n.° 7/2001 — com
as alterações introduzidas pelos Regulamentos da CMVM n.os 11/2003 e 10/2005 — sobre
o govemo das sociedades cotadas atribui às informações sobre a remuneração dos admi­
nistradores. O texto consolidado do Regulamento n.° 7/2001 encontra-se disponível
em www.cmvm.pt. Sobre a remuneração dos administradores, v. infra.
(55) O que conduziría ao fenômeno conhecido por «moral hazard». Sobre este
aspecto, v. K laus J. H opt , «The european insider dealing directive», cit., pág. 53.
(56) «Short sale» significa que o investidor vende acções de que ainda não dis­
põe (normalmente emprestadas por um intermediário financeiro) e que as acções empres­
tadas serão substituídas por outras compradas mais tarde. Uma vez que a venda pre­
cede a compra, o investidor que faz uso desta técnica beneficiará com a queda do preço
entre a venda e a compra. Cfr. R obert C harles C lark ob: cit., pág. 278. Entre nós,
defendendo a legitimidade do «short sale», v. C arlos C osta P ina, Instituições e mer­
cados financeiros, Coimbra: Almedina, 2005, pág. 348, embora não deixe de assinalar
a forte natureza especulativa e o perigo de se criar uma «espiral de desvalorizações».
Sobre o tema, v., ainda, C élia R eis / R ita D uarte Sousa / Isabel V idal / P edro W il-
ton , «Operações de short selling», Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, 12
(2001), págs. 159 e segs.
24 0 Crime de Abuso de Informação Privilegiada

preço de venda (mais alto) e o preço de compra (mais baixo). Por fim,
em sociedades de grandes dimensões, surge atenuada a influência do
comportamento individual (quer este seja benéfico quer seja nefasto)
nos resultados fmais. Em sociedades dotadas de múltiplos departa­
mentos, com uma complexa estrutura organizatória, será difícil conseguir
individualizar e aferir o contributo de cada um para o resultado final. Na
verdade, também é preciso referi-lo, o problema de tentar atribuir o
valor criado a uma determinada participação individual em organiza­
ções que dispõem de centenas de managers também afecta as socieda­
des que praticam esquemas explícitos de compensação (57). Contudo,
esquemas transparentes de compensação propiciam maior controlabilidade
e, por isso, mostram-se mais adequados (58).
A reflexão crítica que acabámos de desenvolver centrou o insider tra-
ding na relação entre os corpo rate insiders e a instituição administrada.
E, pese embora o relevo e a atenção que o pensamento de Manne tem
recebido, a realidade normativa norte-americana e europeia consolidou o
caracter ilícito do insider trading e, por isso, este não pode ser integrado
no rol dos benefícios legítimos a atribuir aos administradores das socie­
dades. Estabilizada a necessidade de repressão do insider trading, o que
urge questionar é se tal repressão se impõe em razão de interesses privados
e, por isso, disponíveis (os interesses da sociedade administrada e dos seus
accionistas em uma correcta gestão). É que se forem estes os interesses
lesados pelo insider trading, sempre se poderá perguntar — como per­
guntaram algumas vozes na doutrina norte-americana — por que razão '
os contratos que enquadram a actividade dos administradores normal­
mente não proíbem tal prática (59). Questiona-se: se o insider trading é
tão nefasto, por que razão as sociedades, em regra, não adoptam medi­
das que expressamente proíbam os administradores de se apropriarem ;
dos benefícios que lhe são inerentes? Desta evidência — de que a regu- V
lação privada, em regra, não prevê expressamente a proibição do insider
trading — pretende-se sustentar a não ofensividade de tal conduta.

C57) Cfr. R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 279.


(5S) A proposta desregulamentadora de Manne apresenta, ainda, outros riscos,
como mostra R obert C harles C lark, ob. cit., pág. 277.
(í9) Cfr. Robert C harles C lark , ob. cit., pág. 275.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 25

Este modo de pensar levanta múltiplas perplexidades. O silêncio


contratual quanto à proibição do insider trading não pode ser tido como
um sinal ou indício de que tal comportamento é lícito ou legítimo.
Importava saber se é de conformação exclusivamente contratual o vín­
culo que liga os administradores à sociedade administrada. Não discu­
tiremos, de momento, este aspecto. O que, neste passo da nossa inves­
tigação, é essencial discutir é se a opção sobre a repressão ou não do
insider trading há-de depender de interesses privados e individualizados
— interesses esses susceptíveis de ser compostos através de uma con-
tratualização própria da regulação privada — ou se são outros os inte­
resses, os bens jurídicos que hão-de nortear esta incriminação.
É o que veremos a seguir, convocando a ordem jurídica nacional.

1.3. O crime de abuso de informação como uma expressão da


intromissão do direito penal no mercado de valores mobi­
liários

Da opacidade do comportamento à sua visibijidade je „subsequen te


regulação/proíbiçao,.encontramos..caminhos que certamente,são especí-
ficos de cada ordem J urídica, mas que hoje tendem^a.conyergir.na ,yalo-
ração dejjue o abuso d e j nformação privilegiada é ilícito e merecedor^
de reacções ou sanções^ Foram vários os instrumentos de reacção ensaia­
dos em ordens jurídicas estrangeiras: a auto-disciplina constituída por um
determinado grupo profissional (disciplina portanto não estadual (60)), o
código de conduta com caracter de recomendação não cogente (6I), a
hetero-tutela pública que lança mão de sanções jurídico-çívis (v. g. a

f60) Exemplo da auto-disciplina é a experiência alemã que começou por organi­


zar uma disciplina não jurídica. Sobre o conteúdo e os limites desta, cfr, Klaus J. H opt,
«Norme etiche e norme giuridiche nel diritto delI’economia: uno studio sulPautodisci-
plina tedesca degli insiders», cit,, págs. 1051 e segs.
(61) Veja-se, por exemplo, «Le Code de Conduite Européen Concemant les Tran-
sactions Relatives aux Valeurs Mobilières», contemplado na Recomendação da Comis­
são de 25 de Julho de 1977, que constituiu um dos antecedentes da Directiva de 1989.
Sobre os trabalhos de preparação da Directiva de 1989 e o debate que lhe foi contem­
porâneo, cfr. G iuseppe C arcano, «La direttiva CEE suIP ‘insider trading’», Rivista delle
Società, 1989, págs. 1026 e segs.
26 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

responsabilidade civil, a destituição dos membros do órgão de admi­


nistração que, com base em informação privilegiada, compram ou ven­
dem títulos da sociedade que administram) ou, ainda, as sanções admi­
nistrativas (aplicadas, por exemplo, pela entidade a quem compete
supervisionar o mercado).
O actual momento histórico mostra a consolidação do caracter
cito do abuso de informação. E mostra também que o fenômeno em
causa — como outros incindívelmente ligados à actividade econômica —
assume dimensões internacionais em razão da globalização dos merca­
dos (62). O que reclama a harmonização, se não a uniformização, das
legislações^ No espaço comunitário, a Directiva 89/592/CEÊ, de 13 de
Novembro de 1989, relativa à coordenação das regulamentações res-
peitantes às operações de iniciados (63), veio impor a aproximação das
legislações dos Estados-Membros na repressão do insider trading J^*).
Esta directiva identifica as operações de iniciados como um dos facto-
res que podem pôr em causa o bom funcionamento dos mercados.
Aquele instrumento de direito comunitário derivado sublinha o «papel-fün-
damental» que «o mercado secundário do_s valores mobiliários desem­
penha no financiamento dos agentes econômicos» e evidencia a ligação

(62) Refira-se, a título de exemplo, um episódio ocorrido nas relações entre a Suíça
e os EUA. Nos anos 80 do século passado, a ausência de disciplina penal suíça que
punisse, o insider trading motivou alguns conflitos entre autoridades suíças e norte-ame­
ricanas. Em 1981, a SEC pediu informações a vários bancos suíços sobre operações efec-
tuadas em bolsas norte-americanas. As entidades suíças interpeladas, refugiando-se no
segredo bancário, recusaram prestar as informações pedidas. Depois de intensas nego­
ciações, Suíça e EUA subscreveram, em 1982, o «Memorandum of Understanding».
Sobre esta questão, cfr. P eter Forstmoser, «Disciplina penale deli’insider trading (La
nuova norma penale svizzcra contro le operazioni di insider trading)». Rivista delle
Società, 1989, págs. 90 e segs.
(w) Entretanto revogada pelo artigo 20.° da Directiva 2003/6/CE do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2003, relativa ao abuso de informação
privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado), JO L 96 de 12 de Abril
de 2003,,: ■
-:i_ (-) —Sobre a gênese e alcance desta directiva, cfr. Klaus J. H opt, «The european
insider dealing directive», cit., págs. 51 e segs.; M anning G ilbert W arren III, Euro­
pean securities regulaiion, The Hague/London/New York: Kluwer Law International,
2003, págs. 137 e segs.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 27

intrínseca entre o bom funcionamento dos mercados e a confiança dos


investidores — assenta esta última na garantia de que os investidores
estão colocados num plano de igualdade e que serão protegidos contra
a utilização ilícita da informação privilegiada (ó5). De modo a preser­
var estes bens — o correcto funcionamento do mercado e a confiança
dos investidores — a directiva impõe a repressão/proibição de deter­
minadas condutas e devolve aos Estados:Membros a opção sobre as
sanções a estabelecer. ^Tão-só se exige no artigo 13.° da,Directiva que
«essas sanções devem ser suficientes para incitar ao respeito» pelas
«disposições adoptadas em execução da presente directiva» (66). O que
nos remete, definitiva e inapelavelmente, para a ordem jurídica nacional
e para as opções punitivas que, nesta matéria, foram consagradas.
A Directiva 89/592/CE foi transposta para a ordem jurídica nacio­
nal por intermédio do Decreto-Lei n.° 142-A/91, de 10 de Abril (67).
No entanto, desde os anos oitenta que a ordem jurídica nacional proibia
o abuso de informações privilegiadas. A natureza ilícita do abuso de
informação começou por resultar dos artigos 449.° e 450.° do Código das
Sociedades Comerciais (daqui em diante CSC) — diploma que, como se
sabe, entrou em vigor em Novembro de 1986 — que contemplam san­
ções não penais (obrigação de indemnizar os lesados, destituição judi­
cial dos agentes responsáveis e inquérito judicial) (68). Mais tarde, por
força do Decreto-Lei n.° 184/87, de 21 de Abril — diploma que veio
acrescentar ao CSC o Título VII dedicado a «disposições penais e de
mera ordenação social» —, o artigo 524.° do CSC tipificou o crime
de «abuso de informações». Segundo a explicação que se colhe no

t63) Para a discussão do pensamento que subjaz a esta directiva, v. Manning


G ilbbrt Warren III, ob. cit., págs. 150 e segs.
t66) Sobre esta disposição e a «S anktionenproblematik». v. K laus J. H opt, «Euro-
páisches und deutsches Insiderrecht», cit., págs. 55 e segs.
(67) Diploma que aprovou o CódMVM.
(68) Disposições que se mantêm em vigor. O artigo 450.° do CSC foi alterado
pelo Decreto-Lei n.° 76-A/2006, de 29 de Março. Sobre o regime jurídico-societário do
abuso de informações, v. A na M icaela P edrosa A ugusto, «Insider trading: Perspec­
tiva sobre o enquadramento jurídico-societário no ordenamento português», O Direito,
V (2004), págs. 1018 e segs.
28 0 Crime de Abuso de Informação Privilegiada

Preâmbulo do Decreto-Lei n.° 184/87, de 21 de Abril, a novidade desta


incriminação (e de outras) aconselhou que se estabelecesse «uma liga­
ção global à estrutura das incriminações clássicas, de modo que o labor
da jurisprudência encontre ainda orientação e suporte bastantes no sis­
tema dos conceitos e princípios do direito penal comum». Assina-’
lava-se, também, «uma intencionalidade pedagógica», pretendendo-se
«contribuir para a consolidação na vida econômica de regras.e hábitos
de correcção e de ética empresarial». Desvendado este enfoque na ética
empresarial, não surpreende, por isso, que o crime de abuso de infor­
mações comece por surgir inserido no diploma destinado a regular des­
tacados actores econômicos — sociedades comerciais (e sociedades civis
em forma comercial) — e que tenha como destinatários os membros
do órgão de administração e de fiscalização das sociedades anônimas ou
quem revelar ilicitamente a outrem informações obtidas em razão de
serviço permanente ou temporário prestado à sociedade.' A conduta
proibida por este tipo de crime traduzia-se em revelar ilicitamente a
outrem factos relativos à sociedade aos quais não tenha sido dada pre­
viamente publicidade (artigo 524”, n.° 1, do CSC) ou factos relativos à
fusão da sociedade (artigo 524.”, n.° 2, do CSC) e que fossem suscep­
tíveis de influir no valor dos títulos da sociedade anônima ou das socie­
dades participantes na fusão. Esta disposição viria a ser revogada
em 1991, pelo Decreto-Lei n.° 142-A/91, de 10 de Abril.
O artigo 666.” do CódMVM inseriu sistematicamente o crime de
abuso, de informação no universo dos mercados de valores mobiliários.
Mudança de inserção sistemática que não deixa de ser relevante e signi­
ficativa porquanto, sob o ponto de vista do sistema, expressa a ligação entre
o crime de abuso de informação e o mercado dos valores mobiliários (69).

(69) A afirmação proferida não significa, de todo, que o complexo normativo


incriminador do abuso de informação não tenha impactos sobre as sociedades (espe­
cialmente aquelas cujas acções se encontram cotadas em mercado organizado). Não será
de excluir que as normas sobre insider trading tenham impacto «on corporate conduct,
corporate organization, and corporate govemance». Cfr. H einz-D ieter A ssmann , «The
impact of insider trading niles on Company Law», AAW , Capital Markets and Com-
pany Law, edited by Klaus J. Hopt / Eddy' Wymeersch, Oxford: Oxford University
Press, 2003, pág. 547.

i
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 29

Em 1999, o actual Código dos Valores Mobiliários (daqui em diante


CVM) arruma este crime sob o artigo 378."
A evolução histórica não se sustém. Bem pelo contrário. Em 18
de Novembro de 2005, foi publicada a Lei n.° 55/2005 que autoriza o
Governo a regular os crimes de abuso de informação e de manipulação
do mercado no âmbito do mercado de valores mobiliários. Estavam
criadas as condições para que fosse transposta para a ordem jurídica
nacional í70) a Directiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Con­
selho, de 28 de Janeiro de 2003, relativa ao abuso de informação pri­
vilegiada e à manipulação do mercado (abuso de mercado). Esta direc­
tiva consagra os «“princípios-quadro” de carácter geral» (71) no combate

(70) Segundo o artigo 18.° da Directiva 2003/6/CE, o processo de transposição deve­


ria ter sido concluído até 12 de Outubro de 2004. Em Itália, a Directiva 2003/6/CE foi
transposta para a ordem jurídica interna por intermédio da «Legge 18 aprile 2005, n. 62»
(a dita «legge comunitária 2004»), Este diploma introduziu várias alterações no «Testo
Único delle Disposizioni in Matéria di Intermediazione Finanziaria» (decreto legislativo
24 febbraio 1998, n. 58), designadamente nas disposições incriminadoras do abuso de infor­
mação. Sobre a nova disciplina do crime de abuso de informação, v. R enato R ordorf,
«Ruolo e poteri delia Consob nella nuova disciplina dei market abuse», Le Società, 7 (2005),
págs. 813 e segs. Na Alemanha, sobre a transposição desta directiva e as alterações
introduzidas na Wertpapierhandelsgesetz (WpHG), v. T im O liver B randi / R ainer
S üP mann, «Neue Insiderregeln und Ad-hoc-Publizitát — Folgen für Ablauf und Gestal-
tung von M&A-Tansaktionen», Die Akúengesellscha.fi, 12 (2004), págs. 642 e segs.
í71) A Directiva 2003/6/CE foi gizada de acordo com o enquadramento meto­
dológico proposto pelo Relatório Lamfalussy que estrutura o processo regulatório em qua­
tro níveis. Esta Directiva — documento de nível I — estabelece os princípios gerais
que necessitarão de densificação e concretização. Por conseguinte, ela é acompanhada
de vários instrumentos normativos sobre as modalidades de aplicação. A Directiva
2003/124/CE da Comissão, de 22 de Dezembro de 2003, estabelece as modalidades de
aplicação no que diz respeito à definição e divulgação pública de informação privilegiada
e à definição de manipulação de mercado; a Directiva 2003/125/CE, de 22 de Dezem­
bro de 2003, prevê as modalidades de aplicação no que diz respeito à apresentação
imparcial de recomendações de investimento e à divulgação de conflitos de interesses,
e o Regulamento (CE) n.® 2273/2003 da Comissão, de 22 de Dezembro de 2003, dis­
põe sobre as medidas de aplicação no que diz respeito às derrogações para os progra­
mas de recompra e para as operações de estabilização de instrumentos financeiros.
Sobre a metodologia Lamfalussy e a Directiva 2003/6/CE, v. J osé B rito N unes, «Notas
pessoais sobre o processo Lamfalussy», Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários,
18 (2004), págs. 48 e segs.
30 O Crinte de Abuso de informação Privilegiada

ao abuso de informação privilegiada e manipulação do mercado f72). Vendo


mais de perto a Lei n.° 55/2005 — circunscrevendo-nos, neste momento,
tão-só ao sentido e extensão da autorização legislativa quanto ao regime penal
do abuso de informação — surpreende-se uma linha de expansão das mar­
gens de punibilidade. É alargado o conceito de informação privilegiada, de
modo a nele incluir informação que diga indirectamente respeito a um emi­
tente ou a valores mobiliários ou outros instrumentos Financeiros t73) e é intro­
duzido o conceito de informação privilegiada em relação aos instrumentos
derivados sobre mercadorias (JA). Acresce que a referida expansão também
se manifesta quando se autoriza que no tipo do artigo 378.°, n.° 1, do CVM
passem a ser previstas situações em que «a informação privilegiada tenha
sido obtida; por qualquer forma, através de um facto ilícito ou que suponha
a prática de um facto ilícito». Por fim, a autorizada reformulação do
artigo 378.°, n.° 3, do CVM — que passa a exigir tão-só o «conhecimento
de uma informação privilegiada», independentemente do canal por que o
agente obteve tal conhecimento (75) — está, também ela, em sintonia com
a expansão na repressão do crime de abuso de informação C76).

Ç2) Para o confronto entre a Directiva 89/592/CEE e a Directiva 2003/6/CE,


v. H elena B olina, «A manipulação de mercado e o abuso de informação privilegiada
na nova directiva sobre abuso de mercado (2003/6/CE)», Cadernos do Mercado de
Valores Mobiliários, 18 (2004), págs. 62 e segs.
(73) Se os valores mobiliários são instrumentos financeiros, nem todos os ins­
trumentos financeiros são valores mobiliários. São instrumentos financeiros e não valo­
res mobiliários, por exemplo, os swaps. Sobre este instrumento financeiro, v. M aria
C lara C alheiros, O contraio de swap, Coimbra: Coimbra Editora, 2000. O artigo 2.°,
n.° 4, do CVM, opera, em princípio, a extensão dos Títulos I e IV a VIII aos instrumentos
financeiros derivados que não sejam valores mobiliários. Sobre o processo de inovação
financeira e os novos «produtos financeiros», v. A. J. Avelãs N unes, Economia, II,
O crédito, Coimbra: Serviços de Acção Social da U. C., 1998, págs. 162 e segs., J osé
M anuel Q uelhas, «Sobre a evolução recente do sistema financeiro (novos “produtos
financeiros”)», Boletim de Ciências Econômicas, XL (1997), págs. 215 e segs.
C4) Cfr. artigo 8", alíneas a) e b), da Lei n.® 55/2005, de 18 de Novembro.
í75) Cfr. artigo 8.®, alínea d), da Lei n.® 55/2005, de 18 de Novembro.
C76) Parece-nos que a exclusão do âmbito de aplicação do regime do abuso de
informação de «transacções sobre acções próprias efectuadas no âmbito do programa de
recompra realizado nas condições legalmente permitidas» (artigo 8.°, alínea e), da Lei
n.° 55/2005, de 18 de Novembro) não é de molde a infimnar a linha de análise que
acabámos de desenvolver no texto.
1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado... 31

O Decreto-Lei n.° 52/2006, de 15 de Março, entre outros aspec­


tos, transpôs para o ordenamento jurídico interno a Directiva 2003/6/CE.
A nova redacção do artigo 378 n.° 1, do CVM opera o alargamento dos
sujeitos típicos punindo, ao abrigo da alínea d), «quem disponha de
informação privilegiada que, por qualquer forma, tenha sido obtida atra­
vés de um facto ilícito ou que suponha a prática de um facto ilícito». Por
outro lado, a neutralidade da fonte que se surpreende no artigo 378.°,
n.° 2, do CVM — o tipo prescinde da fonte por intermédio da qual o
agente tomou conhecimento da informação privilegiada — dilata as
margens de punibilidade do crime de abuso de informação. Inovadora­
mente, o artigo 378.°, n.° 4, do CVM apresenta a definição de informação
privilegiada relativa a instrumentos derivados sobre mercadorias.
Considerada a natureza censurável e ilícita do abuso de informação,
outro passo foi dado: o de que tal comportamento devia ascender à dig­
nidade de conduta jurídico-criminalmente relevante. Embora a expe­
riência de várias ordens jurídicas — designadamente a nossa (77) —
mostre que tanto a reacção ao abuso de informação como a tutela dos
investidores pode passar por mecanismos ou instrumentos não penais, é
certo que a tutela penal tem sido considerada como necessária e impres­
cindível (7S). A intervenção do direito penal no universo dos mercados
de valores mobiliários justifica-se, tendo em conta a inoperatividade de
sanções civis quando referidas a transacções efectuadas em mercados de
anônimos e a insuficiência da disciplina não penal para combater as
condutas próprias do insider trading (79). Independentemente da valia,
do papel e da íntencionalidade próprios de outros mecanismos de
tutela — questão que não trataremos —, é certo que a opção legislativa

C77) Entre nós, continuam em vigor os artigos 449.° e 450.° do CSC que con­
templam sanções não penais para o abuso de informação. E a protecção dos investidores
— não curando, de momento, da sua refracção penal — encontrou acolhimento legal no
CVM, por intermédio de medidas não penais. Sobre esta questão, v. Sofia N asci­
mento R odrigues, A protecção dos investidores em valores mobiliários, Coimbra: Alme-
dina, 2001, págs. 37 e segs.
í78) Defende K laus J. H opt, «The european insider dealing directive», cit.,
pág. 76, que não é sensato confiar exclusivamente nas sanções penais.
C79) Cfr. A rmando B artulli, «Profili penali deli’ "insider trading”», Rivista
delle Società, 1989, pág. 991.
32 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

de criminalização da conduta de abuso de informação é um dado parti­


lhado por várias ordens jurídicas. Outro dado relevante é a «voraci-
-- dade» (so) do direito penal econômico que avocou o insider trading
para a sua área de incriminação. O mercado de valores mobiliários,
zona particularmente sensível e importante para a economia de mer­
cado, mormente nestes tempos de globalização, potenciou o valor da
informação transparente para níveis extraordinários, o que faz com que
aquele — um qualquer operador de mercado — que detenha uma infor­
mação privilegiada a não possa utilizar de forma indiscriminada ou a seu
belo prazer (8Í). E, deste modo, o aparelho repressivo e sancionatório
próprio do direito penal é posto ao serviço da tutela dos bens jurídicos
protegidos pela incriminação do abuso de informação privilegiada.

2. CONVOCAÇÃO E EXPLICITAÇÃO DO BEM JURÍDICO


PROTEGIDO PELO CRIM E DE ABUSO DE INFOR­
MAÇÃO

2.1. O crime de abuso de informação entre a pertença ao


direito penal econômico e a natureza supra-individual do
bem jurídico protegido

A função primacial do direito penal é a de proteger bens jurídicos


que revistam dignidade penal. O bem jurídico assume uma importân­
cia primordial para o correcto enquadramento de uma qualquer área
incriminadora. Isto é: a qualificação do bem jurídico que a norma
incriminadora quer tutelar vai determinar, de certa maneira, a própria
norma incriminadora. E aqui intromete-se a ideia da contínua mutação
do direito penal (82). Na verdade, as formas rigorosas de compreensão
da criminalização ou da descriminalização estão indisisoluvelmente liga­

(80) J osé de Faria C osta, Direito penal econômico, Coimbra: Quarteto, 2003,
pág. 33.
(81) José de Faria C osta, ob. cit., págs. 36 e 37.
(82) J osé de Faria C osta, O perigo em direito penal (contributo para a sua fun­
damentação e compreensão dogmáticas), Coimbra: Coimbra Editora, 1992, págs. 182 e segs.
2. Convocação e explicitação do bem jurídico protegido... 33

das à própria noção de bem jurídico que, como se sabe, só ganha auto­
nomia nos princípios do século XIX enquanto eco ou consequência do
pensamento iluminista. Não foi, contudo, a noção de bem jurídico que
veio mostrar o sentido evolutivo dos ordenamentos penais. Muito antes,
é evidente, daquela elaboração, se aperceberam os autores de que o
fluir das transformações ético-sociais se reflectia indiscutivelmente no
próprio sentido material dos ordenamentos penais. O que a noção de
bem jurídico trouxe à dogmática penal foi. entre outras coisas, a pos­
sibilidade de se compreender mais clara e profundamente o que mudava
e o que permanecia. E aqui o que importa é saber se o ordenamento
jurídico, efectivamente, lhe concede ou não dignidade jurídico-penal.
Mas também é relevante o modo de proteger o núcleo essencial do pró­
prio bem jurídico.
No entanto, compreender ou equacionar o problema deste jeito não
deve implicar uma equiparação entre tipo legal de crime e o próprio
bem jurídico. O tipo legal de crime não deve confundir-se com o seu
substratum, o objecto de protecção. Por isso, é imperioso que se con­
tinue a estabelecer uma diferenciação entre bem jurídico e tipo legal
de crime, conquanto se não esqueçam os elementos enriquecedores car­
reados pela doutrina penal. O que é fundamental prende-se, não com a
específica situação determinada no tipo legal de crime, mas antes com
a relação da pessoa com o próprio objecto de valoração. O que faz
com que o objecto da violação ou com que o objecto do perigo da vio­
lação do bem jurídico resida exclusivamente naquela relacionação. A rela­
tividade pressuposta está, não nos valores em si, mas na forma de os des­
cobrir, sentir ou por eles sermos iluminados. É, justamente, aqui que
podemos detectar o fluir da historicidade com que os bens jurídico-penais
são apreendidos e se reflectem matricialmente nos ordenamentos jurí­
dico-penais. A vida, a integridade física, a dignidade, a honra ou o
patrimônio, enquanto bens jurídico-penais, expressam-se na relação do
«eu» com o objecto da valoração que, como se acaba de demonstrar, não
é o próprio valor mas o valor do bem ou da coisa. De sorte que a
mutabilidade operada, não só no valor do bem como, do mesmo modo,
na própria relacionação entre si, estabeleça com que, em cada momento
e ém cada época, aquelas conexões se estruturem em tipos legais de
crimes bem cristalizados.
34 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

Os bens jurídicos historicamente protegidos pelo direito penal


são o resultado da decisão e da valoração do legislador. Designada­
mente, é jurídico-penalmente consistente permitir que o legislador
ordinário eleve à categoria de bem jurídico-penal bens ou valores que
em princípio não estariam directamente protegidos pelo direito cons­
titucional. E, assim, é certo que o direito penal, a ordem penal,
nomeadamente através do direito penal econômico, pode responder
autonomamente à necessidade de protecção que novos bens jurídicos
reivindicam. Pese embora as diferenças entre o direito penal e o
direito penal secundário (de que faz parte o direito penal econômico),
beneficiam ambos de um comum fundamento ético (83). Ambos pro­
tegem bens jurídicos.
Dito isto — ou seja, afirmados os essenciais pontos de contacto
entre o direito penal clássico e o direito penal econômico —, devem, tam­
bém, ser referidas diferenças que se estruturam na apreensão formal
dos seus discursos, mas também, e sobretudo, nas determinantes dog­
máticas da sua estrita regulamentação jurídico-positiva. E, assim, quanto
ao primeiro aspecto, atente-se que o tratamento dogmático das catego­
rias que animam o chamado direito penal secundário faz-se ou pode
fazer-se com um maior espaço de manobra, se esse campo normativo não
estiver integrado no «código penal». Deste modo se compreende a
decisão político-criminal de um tratamento formalmente autônomo do
direito penal econômico. Por outro lado, tal como a doutrina salienta,
há zonas do chamado direito penal secundário, mormente do direito
penal econômico, cuja regulação ou tratamento dogmático não deve
nem tem que coincidir com a estrutura muito mais densificada da dog­
mática prevista na parte geral do código penal. Pensemos, justamente,
na maior plasticidade na definição dos comportamentos típicos que
podemos surpreender no direito penal econômico. O que, por si, não
encerra qualquer validade. Na verdade, como se reafirma de vários
ângulos; a definição técnico-legislativa dos comportamentos proibidos só

(s3) Afirmação que surge na linha seguida, e defendida por J orge de F iguei­
redo D ias , «Para uma dogmática do direito penal secundário», Revista de Legislação
e de Jurisprudência, 116 (1983-4/1984-5), págs. 263 e segs.
2. Convocação e explicitação do bem jurídico protegido... 35

tem como limite formal a não desconformidade com o princípio da tipi-


cidade constitucionalmente definido (84).
Particularmente relevante para o estudo do crime de abuso de infor­
mação é, sem dúvida, a caracterização geral dos bens jurídicos protegi­
dos pelo direito penal econômico. Enquanto o clássico direito penal
patrimonial se desenvolve em um nível de ordenação dominial ligado ao
indivíduo e ao gozo das utilidades que a ordenação dominial lhe potên­
cia, o direito penal econômico intenciona proteger bens jurídicos de
dimensão supra-individual (85), ou seja, uma categoria do pensamento
jurídico-penal que tem como finalidade proposicional acolher no seu
seio uma rede de valorações complexas cujo suporte não pode ser o
imediato e concreto sujeito individual (86). Assim, quando se diz que o
bem jurídico tem uma natureza supra-individual, quer-se mostrar a linha
vertical, quer sublinhar-se o carácter de supra-infra ordenação. Ou seja,
a categoria operatória para o direito penal é aquela que se estrutura no
eixo vertical da compreensão dos bens jurídicos a partir do indivíduo.
Como sabemos, para lá da tutela penal patrimonial, a economia, vista
como jogo e função de ordenação dominial que visa o aumento dos
bens e pressupõe, qualquer que ela seja, uma regra de distribuição daque­
les precisos bens, não pode ser olhada exclusivamente a partir do átimo
da protecção patrimonial dos bens. Tem de ser olhada de um outro
ângulo. Na verdade, face ao grau de complexidade dos mecanismos
econômicos e financeiros, mas não só, a protecção penal não se pode que­
dar nos clássicos crimes de furto, abuso de confiança e burla. Com­
portamentos há que, não obstante não prejudicarem ou ofenderem direc-
tamente uma concreta pessoa, lesam indiscriminadamente todos os
membros da comunidade econômica. É, justamente, o que acontece
com o crime de abuso de informação. Vejamos mais de perto.
A expressão supra-individual, querendo ser uma superação do indi­
vidual, deixa bem nítida a matriz donde arranca: os bens jurídicos são

(*4) J osé de Faria C osta , O perigo em direito penal, cit., págs. 450 e segs.
(!S) Desenvolvidamente, v. J osé de Faria C osta, Direito penal econômico, cit.,
págs. 38 e segs.
(a6) J osé de F aria C osta, O perigo em direito penal, cit., pág. 335.
36 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada-

vistos a partir do indivíduo. Ferguntar-se-á, justamente, se o abuso de


informação privilegiada — expresso, por exemplo, na compra ou venda
de acções na posse de informação privilegiada — não afectará negati­
vamente posições individuais como a da contraparte do insider ou a da
sociedade emitente das acções transaccionadas. Poder-se-á equacionar
o prejuízo do investidor que, tendo participado na transacção impulsio­
nada pelo insider, estava em desvantagem porque não pôde incorporar
na sua decisão os elementos informativos a que o insider teve, de modo
privilegiado, acesso. Poder-se-á, ainda, questionar, se a sociedade envol­
vida (emitente das acções que foram objecto de transacção) foi afectada
no seu prestígio — «reputational harm», nas palavras de Clark — e até
no seu patrimônio. A falta de confiança dos investidores — gera-se a
suspeita de que aquele título é alvo de insider irading — pode conduzir
à depreciação do seu valor de mercado. Não é de afastar, ainda, que
a entidade emitente sofra prejuízos porque os administradores estão
motivados para capturar os ganhos próprios do insider trading, em
vez de se empenharem na missão de diligente e construtiva gestão da
sociedade.
Ainda que restemos neste patamar de reflexão centrado em interesses
individuais — assunção jurídico-penalmente não fundada do crime de
abuso de informação — somos de imediato confrontados com as difi­
culdades que tal caminho apresenta. O abuso de informação liga-se
directa ou indirectamente à negociação de valores mobiliários ou ins­
trumentos financeiros, ocorrida em mercados organizados, anônimos e
massificados. Em tais circunstâncias, as «faceless transactions» difi­
cultam,, se não impedem, a identificação da contraparte do insider.
Como ainda, é incerta a consistência de um «reputational harm» ou a
exacta influência do insider trading no cumprimento dos deveres dos
administradores para com a sociedade.
Ilustram os exemplos acabados de referir que o abuso de informa­
ção é susceptível de afectar posições individuais. E que, por conse­
guinte, a afirmação da natureza supra-individual do bem jurídico prote­
gido por este crime não equivale a uma qualquer intocabilidade de
posições individuais. É bem outro o sentido que emprestamos à natu­
reza supra-individual deste bem jurídico. O que se pretende salientar é
que a incriminação do abuso de informação não visa proteger posições
2. Convocação e explicitação do bem jurídico protegido... 37

individuais, seja dos investidores lesados, seja dos emitentes envolvidos.


O que está em causa é, justamente, a existência do próprio mercado de
valores mobiliários enquanto «connected system» (87) e não o mercado
enquanto justaposição de posições individuais. É neste ponto que se inte­
gra a tutela penal do crime de abuso de informação que, como veremos,
protege um bem jurídico complexo e poliédrico.

2.2. O crime de abuso de informação protege um bem jurídico


complexo e poliédrico que não se esgota na igualdade dos
investidores

Quando é cometido o crime de abuso de informação privilegiada,


é possível que uma ou várias pessoas possam ter sido lesadas. É mesmo
natural que tudo se desenvolva a partir de uma queixa de tais pessoas.
Todavia, a infracção existe não para proteger o direito daquela concreta
pessoa a comprar os bens a um preço justo e não especulativo, mas
antes para proteger o bem jurídico supra-individual expresso no valor que
a livre concorrência de mercado representa. As pessoas atingidas por
uma transacção bolsista baseada em informação privilegiada não são
só, nem de perto nem de longe, os accionistas da empresa sobre a qual
gira a questão, mas antes todo o universo de investidores, efectivo e
potencial, que procura o mercado de valores mobiliários.
A percepção de que o bem jurídico protegido pela norma incrimi-
nadora do abuso de informação é uma realidade polifacetacla ou polié-
drica impõe-se em resultado da que julgamos ser, em princípio, a atitude
analítica mais curial. E se-lo-á, não só porque, sob o ponto de vista meto­
dológico, é aquela que apresenta a ductibilidade ou flexibilidade capaz
de nos permitir legítimas inflexões compreensivas, como também por­
que pensamos haver em tal juízo uma límpida adequação à realidade.
A incriminação do abuso de informação pretende, por um lado, tutelar
a confiança dos investidores no correcto funcionamento do mercado e,
por outro, proteger a decisão econômica individual no sentido de que esta
seja tomada em situação de igualdade de informação para todos os

(!7) Cfr. R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 356.


38 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

potenciais intervenientes no mercado. Criando-se, assim, as condições


de livre concorrência entre os investidores.
A norma incriminadora do abuso de informação visa tutelar um
bem jurídico mais do que poliédrico, heterogêneo. Heterogeneidade
que ressalta da sua diferenciada composição: confiança e igualdade dos
investidores (88). Não obstante esta diversidade, ainda é possível divi­
sar um denominador comum, um cimento agregador. O núcleo do bem
jurídico que se quer defender prende-se, de modo inescapável, com a ídeia
de que a proibição penal do insider trading visa garantir que o mercado
de valores mobiliários se paute pelas regras de mercado.
A punição dos comportamentos delituosos próprios do abuso de
informação não se confina, por isso, na tutela da igualdade dos inves­
tidores em termos informativos, no «equal footing». Direccionar
o crime de abuso de informação no sentido da tutela exclusiva da

(®8) Donald C. Langevookt, «Rereading Cady, Roberts: The ideology and pra-
tice of insider trading regulation», Columbia Law Review, 99 (1999), págs. 1320 e segs.,
desenvolve a linha argumentativa do «myth o f investor confidence». Escreve Lange-
voort: «The possíbtlity I want to pursue, in all seriousness, is the connection between the
insider trading prohibition and investor confídence as a myth. I am using.the word
"myth" carefully, not in its common sense where it equates with falsity, but in the more
formal sense of a social belief that is useful as an expression, explanation, or justifica-
tion regardless of its truth or falsity» (cfr. ob. cit„ pág. 1328). Segundo este autor, a agres­
siva repressão do insider trading prende-se com o controlo do poder econômico (atra­
vés do autodomínio e responsabilidade) e constitui uma forma de garantir à SEC «both
visibility and support for its mission». Acrescenta Langevoort: «Insider trading stories
are wonderful drama: When they involve the rich and famous (...) they tap into images
of power, greed, and hubris; when they deal with the smaller traders, they conjure up ima­
ges of Everyman with luck and far too little self-restraint» (ob. cit.t pág. 1329). Já
V ictor Brudney, ob. cit., pág. 335, refere que, após o colapso de 1929, mostrou-se
necessário restaurar a confiança dos investidores. Independentemente do diagnóstico
sobre os verdadeiros motivos da regulação norte-americana do insider trading — regu­
lação que, como sublinha Langevoort, não definiu com suficiente rigor «the standarts for
insider liability» e que leva Louis Loss / J oel Seligman a questionarem «should “insi­
der trading" be defined?» —, a confiança dos investidores é, no espaço comunitário, um
dos valores que fundara a repressão do abuso de informação. Essa intrínseca e directa
ligação entre a repressão do abuso de informação e a confiança do público investidor está
patente nos considerandos da Directiva 89/592/CEE e, mais recentemente, surge desta­
cada no considerado (2) da Directiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho,
de 28 de Janeiro de 2003.
2. Convocação e explicitação do bem jurídico protegido... 39

igualdade entre os investidores ignoraria que a disparidade informa­


tiva entre os agentes que procuram o mercado de valores mobiliários
constitui uma característica ineliminável deste universo e, além disso,
um pressuposto da sua própria eficiência (89). Uma compreensão
que exaspere a igualdade informativa entre os investidores potência
efeitos contraproducentes, porquanto — além de não permitir uma jurí-
dico-penalmente adequada assunção normativa do crime de abuso de
informação — desencoraja ou inibe a procura e a investigação profis­
sional de informações. Enfatize-se, aliás, que tendo em conta as par­
ticulares características da bolsa de valores, o que é reprovável não é
o plns de informação detida, mas antes o facto de tal superioridade ser
conseguida à custa de uma ligação directa ou indirecta com a entidade
emitente (90). Perspectivar o crime de abuso de informação a partir da
igualdade de informação entre investidores, em vez de promover um
mercado eficiente e atractivo, levaria a que se inibisse indiscriminada­
mente o uso de qualquer assimetria informativa. Mais. Essa com­
preensão, além de não aderir à realidade dos mercados de valores mobi­
liários, não teria a ductilidade suficiente para conseguir o adequado
enquadramento de concretas situações em que o plus informacional de
que o agente beneficia não se encontra abrangido pelas margens de
punibilidade próprias do crime de abuso de informação.

3. A DEFINIÇÃO JURÍDICO-PENAL DE INFORMAÇÃO


PRIVILEGIADA

3.1. A informação e transparência

Se a coesão e, por isso, a sobrevivência dos grupos passa pela


obtenção e armazenamento de informação disponível, no universo cons­
tituído pelos mercados de valores mobiliários esta necessidade ampli­

(w) Aspecto que é salientado por vários autores. Na doutrina italiana, cfr.
A ndréa B artalena , «Insider trading», Trattato deite società per azioni [diretto da
G, E. Colombo e G. B. Portale], 10*, Società per azioni e mercato mobiliare, Torino:
Utet, 1993, pág. 230. Na doutrina anglo-saxónica, v. Paul L. D avies, ob. cit., pág. 460.
C90) A ndréa B artalena, ob. cit., pág. 233.
40 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

fica-se exponencialmente. Que razões explicam tal demanda de infor­


mação disponível? De modo a ensaiar a resposta a esta pergunta, jul­
gamos ser de toda a conveniência reflectir sobre alguns aspectos essen­
ciais daquilo que se deve entender por informação. Numa aproximação
pragmática — apreensão que interessa precisamente ao mundo da nor-
matividade — , Karl Steinbuch desenvolve uma formulação que se apre­
senta através da positividade: «Informação é a matéria a partir da qual
se podem tomar decisões». Caminho que vai precisamente levar Klaus
Haefher a dar uma particular relevância pragmática à informação quando
a define como «uma notícia que tem significado para o destinatário» e
em que, para além disso, «através da sua recepção o destinatário é, em
todas as circunstâncias, influenciado». Damo-nos, assim, conta de que
a informação, de uma certa forma, é uma categoria substantivável Por
outras palavras: pode-se apreender e, neste sentido, também armaze­
nar informação (9!). Uma biblioteca, a informação contida em uma
disquete de computador representam, independentemente de estarem a ser
lidos alguns livros ou a ser descodificada a informação contida na dis­
quete, o armazenamento de informação, ou seja, a substantivação de
uma «coisa» que não é matéria nem energia (92).
A informação armazenada pode, de algum modo, permanecer reser­
vada, afastada, guardada, qual biblioteca de livros proibidos e proscritos.
E, portanto, não restam dúvidas de que também os fluxos informacionais
que interessem a todos podem ficar pertença de só um ou de só alguns.
Não é, todavia, a informação mantida em segredo — esta expressão na
sua raiz mais longínqua significa aquilo que, justamente, se pôs de lado,
o que se separou — que satisfaz o mercado de valores mobiliários.
Bem pelo contrário. O mercado de valores mobiliários, zona parti­
cularmente sensível e importante para a economia de mercado, mor­
mente nestes tempos de globalização, potenciou o valor da informação
transparente para níveis extraordinários. Os investidores, inexoravelmente
mergulhados neste ambiente de múltiplos riscos, reclamam, para a pro-

(9l) J osé de Faria C osta, Direito penal da comunicação. Sumário e alguns


tópicos, l.° Semestre [1997-98] (em curso de publicação), págs. 10 e segs.
t92) J osé de Faria C osta, Direito penal da comunicação, cit., pág. 11.
3. A definição jurídico-penal de informação privilegiada

tecção dos seus interesses, o acesso a informação adequada (93). Infor­


mação essa que poderá motivar as decisões e, da forma o mais eficaz pos­
sível, propiciará a gestão dos riscos inerentes ao investimento no mer­
cado de valores mobiliários. Daí que seja facilmente perceptível que o
princípio da publicidade ou da informação (94) seja um dos perfis estru-
turantes do direito dos valores mobiliários, não só porque visa a pro­
tecção dos investidores, mas porque, além disso — é necessário enfati­
zá-lo —, intenciona a protecção do próprio mercado (95). Daí o relevo
normativo posto na definição dos deveres de informação, nas qualida­
des que esta deve revestir e na tutela que lhe é dispensada.
Como veremos em seguida, uma das características que normati­
vamente contradistingue a informação privilegiada é, justamente, o carác-
ter não público. A circunstância de o mercado de valores mobiliários ter
elevado a informação transparente a níveis extraordinários faz com que
aquele que detenha uma informação privilegiada a não possa utilizar
de forma indiscriminada ou a seu belo prazer____

3.2.-W A definição legal de informação privilegiada x


^____ _____ .. ......--
Segundo o artigo'378"°Tn.° 3, do CVM, «Entende-se por informação
privilegiada toda a informação não tornada pública que, sendo precisa*73

(9J) Enfatiza este aspecto C arlos O sório de C astro . «A informação no direito


do mercado dos valores mobiliários», AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa:
Lex, 1997, pág. 333.
(94) Distingue-se a informação no mercado dos valores mobiliários da informa­
ção enquanto direito societário. Sobre o direito dos sócios à informação; C arlos M aria
P inheiro T orres, O direito ã informação nas sociedades comerciais, Coimbra: Alme-
dina, 1988; e, mais recentemente, J. M. C outinho de A breu , Curso de direito comer­
cial, Volume II, Das sociedades, Coimbra: Almedina, 2002, págs. 251 e segs.; A le ­
xandre S overal M artins / M aria E lisabete R amos , «A s participações sociais»,
AAVV, Estudos de direito das sociedades (coordenação de J. M. C outinho de A breu ),
73 edição, Coimbra: Almedina, 2005, págs. 109 e segs. Sobre as diferentes intencio­
nal idades que animam o direito dos sócios à informação nas sociedades comerciais e a
informação no contexto dos mercados de valores mobiliários, v. E duardo Paz F er ­
reira , «A informação no mercado de valores mobiliários», AAVV, Direito dos Valores
Mobiliários, Volume III, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, págs. 139 e segs.
(95) Sobre o nexo entre a informação e a protecção do mercado, cfr. C arlos
O sório de C astro , ob. cit., págs. 333 e segs.
42 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

e dizendo respeito, directa ou indirectamente, a qualquer emitente ou


a valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros, seria idônea,
se lhe fosse dada publicidade, para influenciar de maneira sensível o seu
preço no mercado» (96). O artigo 378.°, n.° 4, do CVM formula a defi­
nição de abuso de informação privilegiada relativa aos instrumentos deri­
vados sobre mercadorias (97). Segundo este preceito, «entende-se por
informação privilegiada toda a informação com caracter preciso que não
tenha sido tomada pública e respeite, directa ou indirectamente, a um ou
mais desses instrumentos derivados e que os utilizadores dos mercados em
que aqueles são negociados esperariam receber ou teriam direito a rece­
ber em conformidade, respectivamente, com as práticas de mercado acei­
tes ou com o regime de divulgação de informação nesses mercados».
Compreende-se a preocupação legal em definir estes conceitos «juri­
dicamente naturalizadofs]» (98). Estamos perante um domínio sobre o

(56) Por força do Decreto-Lei n.° 52/2006, de 15 de Março, foi introduzida no


CVM a definição legai de informação privilegiada em dupla via. Para além do relevo
jurídico-penal da informação privilegiada (artigo 378.°, n.os 3 e 4, do CVM), este con­
ceito projecta-se, actualmente, em deveres dirigidos aos emitentes. O actual artigo 248.°,
n.° 1, alínea a), do CVM impõe que os emitentes que tenham valores mobiliários admi­
tidos à negociação em mercado regulamentado ou requerido a respectiva admissão a um
mercado dessa natureza divulgam imediatamente «Toda a informação que lhes diga
directamente respeito ou aos valores mobiliários por si emitidos, que tenha carácter
preciso, que não tenha sido tomada pública e que, se lhe fosse dada publicidade, seria
idônea para influenciar de maneira sensível o preço desses valores mobiliários ou dos
instrumentos subjacentes ou derivados com estes relacionados». O artigo 248.°, n.° 2,
do CVM delimita o alcance que, neste contexto, o conceito de informação privilegiada
assume. A violação do dever prescrito no artigo 248.°, n.° 1, do CVM constitui uma con-
tra-ordenação muito grave, conforme resulta do artigo 394.°, n.M , alínea i), do CVM.
Às contra-ordenações muito graves é aplicável a coima definida no artigo 388.°, n.° 1,
alínea a), do CVM. Por sua vez, o artigo 420.°, n.° 2, do CVM regula o concurso da
contra-ordenação prevista no artigo 394.°, n.° 1, alínea i), do CVM e do crime de abuso
de informação privilegiada.
í97) V. o artigo 1.° da Directiva 2003/6/CE e o artigo 4.° da Directiva 2004/72/CE.
Sobre instrumentos derivados em geral, v. J osé de O liveira A scensão , «Derivados»,
AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume IV, Coimbra: Coimbra Editora, 2003,
págs. 41 e segs.; C arlos C osta Pina , ob. cit., págs. 454 e segs.
(9S) Desenvolvidamente, J osé de Faria C osta, «As definições legais de dolo e
de negligência enquanto problema de aplicação e interpretação das normas definitórias
em direito penal», Boletim da Faculdade de Direito, 69 (1993), págs. 361 e segs.
3. A definição jurídico-penal de informação privilegiada 43

qual ainda se sente uma significativa flutuação conceituai que a definição


legal pode, de alguma maneira, ajudar a estabilizar. Contudo, a existên­
cia e a consequente estabilização do conceito de «informação privile­
giada» não pode, em caso algum, equivaler a um juízo de dispensabilidade
da tarefa explicitadora e integradora desenvolvida pela dogmática penal.
Sobre este conceito irá ser exercido um esforço, designadamente pela
doutrina, que, interpelada pela riqueza da vida e pela singularidade dos
casos reais, tentará determinar a densidade própria de cada um dos carac­
teres em que assenta a informação privilegiada (").
A definição legal de informação privilegiada apresentada pelo
artigo 378.°, n.° 3, do CVM, repousa em quatro requisitos típicos:
caracter não público;^) *‘precisão;ícTsi'eferência a entidades emitentes
*5Ç
de valores mobiliários ou a valores mobiliários; 3). influência sensível
sobre o preço. A norma avança as características típicas que a infor­
mação privilegiada reveste, mas nada diz sobre o sentido jurídico-penal
e o alcance que estas apresentam. Porosidade, abertura e indeterminação
que só através do esforço hermenêutico poderão ser adequadamente
superadas.

3.2.1.^ Caracter não público da informação

Numa primeira aproximação, podemos começar por dizer que é


pública uma informação que, interessando a todos, fica disponível para
todos — é susceptível de ser conhecida por todos. Não há dúvida
que, tendo sido disseminada pelo público certa informação (por exem­
plo, em jornal de divulgação nacional, o emitente informa o público em
geral sobre determinado facto relevante), cessa o carácter privilegiado
da informação e, por conseguinte, não alcançam relevo jurídico-penal
as condutas que incorporem essa informação nas decisões de investi­
mento ou de desinvestimento. Contudo, como já vimos atrás, os flu­
xos informacionais são susceptíveis de serem cortados, não chegando,

(") Acentua este aspecto Valerio S anciovanni, «Uattuazione delia Direttiva


suir/íir/cfer trading nel diritto tedesco», Banca, Borsa e Títoli di Credito, 4, Parte Prima
(2000), pág. 545.
44 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

por essa razão, a atingir a divulgação geral. O fluxo informacional que


se quer acessível a todos pode, decrescentemente, ser apropriado por
um, partilhado por alguns, ou divulgado por um grupo restrito. Entre a
divulgação pública da informação e o caracter não público são pensáveis
gradações várias, o que suscita a questão de saber qual a divulgação
relevante para fazer cessar a índole não pública da informação (10°).
Como se percebe, a resposta a esta pergunta é de decisiva importân­
cia: na verdade, se quem compra ou vende valores mobiliários demons­
tra que o fez com base em notícias não reservadas, a sua conduta não
poderá ser integrada no crime de abuso de informação privilegiada.
Em outros ordenamentos jurídicos, estabeleceu-se que uma deter­
minada informação pode ser considerada como pública quando um número
indeterminado de pessoas tem possibilidade de tomar conhecimento dessa
informação. O que, parece, não exige a divulgação pelos mass media.
Uma notícia pode considerar-se de domínio público ainda que seja tão-só
do conhecimento do público do sector. Segundo este ponto de vista, é
suficiente que sejam informados os investidores institucionais (I01). Logo
que estes adquirem conhecimento da notícia, realizarão as operações de
modo a adequar o curso dos valores mobiliários à nova situação. E, deste
modo, cessa o caracter privilegiado da informação.
Entre nós, o artigo 367.°, n.° 1, do CVM determina que «A CMVM
organiza um sistema informático de difusão de informação acessível ao
público que pode integrar (...) designadamente informação privilegiada
nos termos do artigo 248.°». Segundo o artigo i.° do Regulamento da
CMVM n.° 4/2004, relativo aos deveres de informação (102), são meios

(I0°) M anning G ilbert Warren III, ob. cit., pág. 158, refere que o Parlamento
Europeu aceitou a recomendação do Relatório Hoon no sentido de que a publicação
deveria significar «the effective disclosure of inside Information in such a manner suf-
ficient to ensure its availability to the investing public». O Conselho, contudo, rejeitou
esta formulação que, segundo o autor citado, apresenta consideráveis semelhanças com
um segmento da decisão judicial SEC v. Texas Gulf Sulphur Co.
(101) Cfr. Valerio S angiovanni, ob. cit., pág. 552.
(102) O Regulamento da CMVM n.° 4/2004, relativo aos deveres de informação,
encontra-se publicado no Diário da República, II Série, de II de Junho de 2004, e no
Boletim da CMVM, n.° 133, Maio de 2004, Veja-se, ainda, a Instrução n ° XX/2004, rela­
tiva aos deveres de informação dos emitentes à CMVM, que define as «condições a que
3. A definição jurídico-penaí de informação privilegiada 45

gerais de divulgação de informação, a) o sistema de difusão de informação


da CMVM (103), b) meio electrónico de divulgação de informação, seguro
e de fácil acesso pelos investidores, disponibilizado pela entidade gestora
do mercado onde se encontrem .admitidos os valores mobiliários ou bole­
tim do mercado regulamentado, c) jornal de grande circulação nacional.
O cumprimento do dever de, por exemplo, comunicar factos relevantes
à CMVM e a subsequente divulgação realizada por esta entidade de
supervisão faz cessar o caracter não público da informação (,04).
Já a chamada «selective disclosure», em que o emitente revela
selectivamente informações sensíveis a pessoas determinadas (v. g. a
um grupo de analistas financeiros) parece que não satisfaz o nível de
divulgação exigido pelo requisito da publicidade. Embora tenha existido
uma partilha de informações, não houve a divulgação que propicie que
o mercado em geral, de um ponto de vista pragmático, tome decisões a
partir desses dados ( ,05).
Um dos problemas que o requisito da publicidade levanta é o de
saber se a incriminação do abuso de informação toma puníveis as condutas

devem obedecer a entrega e o processamento, sobretudo no domínio de extranet


da CMVM, dos elementos que integram a informação a prestar à CMVM pelos emitentes
de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado».
(,03) Em cumprimento deste dever, a CMVM disponibiliza a informação no seu
sítio oficial na Internet (www.cmvm.pt).
(1M) O artigo 244.° do CVM regula os deveres de informação em caso de admis­
são simultânea em bolsa doméstica e estrangeira («dual» ou «multi-listing»).
(«*) De modo a combater a selective disclosure, a SEC adoptou, em Agosto
de 2000 (com entrada em vigor em Outubro de 2000), a «Regulation Fair Disclosure».
Salienta esta entidade reguladora que a selective disclosure mina a confiança dos inves­
tidores na integridade do mercado, assemelhando-se, aliás, ao tipping, porquanto permite
que os destinatários da selective disclosure possam explorar «unerodable informational
advantages» — invoca, aqui, a SEC, o pensamento de V ictor B rudney , ob. cit.,
págs. 322 e 376. Outro efeito nefasto da selective disclosure é mencionado: o perigo
de que informação relevante seja tratada pela administração dos emitentes como uma
«commodity», a ser usada para obter ou manter os favores de determinados analistas ou
investidores. Refere, ainda, a SEC que são similares os efeitos econômicos da selective
.disclosure e do tipping, mas desencadeiam reacções distintas. Enquanto o tipping e o
insider trading são sevéramente punidos pelas «antifraud provisions», a selective disclosure
tinha um estatuto menos claro. As razões que motivaram a intervenção da SEC e o texto
completo da «Regulation Fair Disclosure» estão disponíveis em www.sec.gov/rules/final.
46 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

de agentes que, de modo profissional, recolhem e produzem informação


destinada, designadamente, à gestão de investimentos, de patrimônios ou
ao aconselhamento financeiro (,06). Interroga-se, pois, se o analista finan­
ceiro está autorizado a fruir uma informação que pode revestir carácter não
público e versar sobre determinado valor mobiliário ou certo emitente (l07*)
ou se, pelo contrário, a incriminação do abuso de informação abrange as
informações «produzidas» por esta actividade profissional. A questão é
tanto mais importante quanto se tem reconhecido que a divulgação pública
de recomendações de investimento «tem, em média, um efeito estatisti­
camente não nulo no preço das acções» ( l0S). Sensível a este aspecto, o
Considerando 31 da Directiva 2003/6/CE esclarece que «Os estudos e as
estimativas elaborados com base em dados do domínio público não deve­
rão ser considerados informações privilegiadas e, por conseguinte, as ope­
rações efectuadas com base nesse tipo de estudos ou estimativas não
deverão ser consideradas por si só, na acepção da presente directiva, um
abuso de informação privilegiada» (109).

(1M) Segundo o Código de Conduta da Associação Portuguesa de Analistas


Financeiros, a análise financeira abrange «toda a actividade que, a título profissional,
envolva a produção, avaliação ou utilização de informação econômica, financeira, esta­
tística ou outra, tendo em vista a gestão de investimentos ou patrimônios, a gestão de
carteiras, o aconselhamento financeiro ou o exercício de outras actividades afins». Sobre
este ponto, cfr. M anuel A lves M onteiro , «A ética na análise financeira», AAVV,
Direito dos Valores Mobiliários, Volume IV, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, págs. 147
e segs. Sobre a actividade de research em Portugal, cfr. M iguel C oelho, «Analistas
financeiros e recomendações de investimento», Cadernos do Mercado de Valores Mobi­
liários, 12 (2001), págs. 126 e segs.; e, mais recentemente, «A actividade de research
em Portugal, as recomendações de investimento e os conflitos de interesses», Cadernos
do Mercado de Valores Mobiliários, 16 (2003), págs. 9 e segs.
(107) Resulta da análise de inquéritos dirigidos às instituições financeiras que é
prática comum proceder à divulgação pública dos relatórios de research apenas após a
utilização privada dos mesmos (seja pela própria ,instituição financeira seja pelos seus
clientes). Cfr. M iguel C oelho, «A actividade de research em Portugal, as recomendações
de investimento e os conflitos de interesses», cit., págs. 21 e 22.
(108) M iguel C oelho , «A actividade de research em Portugal, as recomenda­
ções de investimento e os conflitos de interesses», cit., pág. 22.
(109) A apresentação de recomendações de investimento suscita outras questões
relevantes que. neste ponto, tão-só afloramos. Os artigos 12.°-A a 12.“-E do CVM ope­
ram a transposição para a ordem jurídica interna de um conjunto extenso de regras rela-
3. A definição jurídico-penai de informação privilegiada 47

Regressemos à actual redacção do artigo 378 n.° 3, do CVM.


Convocado o recorte típico do crime de abuso de informação privilegiada,
concluímos que não assume o carácter de informação privilegiada a que
resulta de análise de dados tomados públicos e, por isso, acessíveis e dis­
poníveis (n0). A mais-valia que esta análise introduz prende-se com a
particular competência técnica e profissional para recolher, tratar e ana­
lisar informação que habilita este grupo profissional a emitir recomen­
dações. Diversa será a solução se o consultor ou analista receber a
informação de um dos agentes típicos referidos no artigo 378.°, n.° 1,
alíneas a) a d), do CVM e, com base nela, recomendar ou aconselhar a
negociação em títulos. Em situações deste tipo, a «selective disclosure»
não é de molde a fazer cessar o carácter não público da informação que
o analista recebeu. Incorre na punição pela prática do crime de abuso
de informação o analista que, em contacto com os membros do órgão de
gestão de um emitente, obtém informação reservada e sensível e opta por
a incorporar em recomendações que fornece aos seus clientes.

3.2.2.^ Carácter preciso da informação

Numa delimitação negativa, dir-se-á que é não precisa — e deste


modo o seu uso não releva para os efeitos do crime em análise — a
informação que resulta de referências vagas, rumores, notícias difu­
sas (ni). Faz parte da actividade negociai e do risco que lhe inere a con­
sideração de suspeitas sobre a verificação de eventos futuros. Quem, com

tivas à elaboração e divulgação de informação contendo recomendações de investimento.


Razões de imparcialidade e transparência — vincadas na Directiva 2003/125/CE —
impõem que seja regulado o conteúdo das recomendações de investimento (artigo 12.°-B
do CVM) e que seja exigida a divulgação de conflitos de interesses (artigo 12.°-C do CVM).
(ll°) Dispõe o Código de Conduta dos Analistas Financeiros que estes profissionais
podem utilizar, sem ter conhecimento directo, informação factual, informação publicada
por serviços informativos, financeiros e estatísticos dignos de confiança, ou por outras fon­
tes semelhantes, desde que seja feita a devida remissão para as fontes de informação.
Sobre este aspecto, v. M anuel A lves Montsro , ob. cit., pág. 155. O artigo 12.°-E do CVM
regula a divulgação através de remissão.
(m ) Escreve K laus J. H oft, «The european insider dealing directive», cit.,
pág. 59, que: «Without rumours and speculations the market is not alive».
48 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

base em rumores, suspeitas, negociar em títulos de determinado emitente,


não se apropria de informação precisa e, por isso, não é retido nas
malhas do crime de abuso de informação. Idêntica valoração de atipi-
cidade é reservada para o agente que actua suportado por juízos pessoais
ou valorações. Contudo, a questão não deixa de ser complexa, por­
quanto se tem sublinhado que o simples parecer — que, portanto, ainda
se encontra no patamar do juízo ou valoração — expresso por sujeitos
particularmente qualificados é susceptível de causar variação sensível na
cotação de valores mobiliários.
O requisito da precisão envolve problenias de significativa impor­
tância prática. Em que momento, no decurso de um processo negociai,
a informação atinge o patamar da precisão? Iniciado o processo nego­
ciai em que intervém emitentes de valores mobiliários cotados, em que
momento de tal processo a informação que daí inevitavelmente resulta
se configura como informação precisa? A resposta a esta pergunta não.
pode, de modo algum, ignorar que a prática negociai tanto conhece negó­
cios em que são ausentes quaisquer contactos preliminares, como se mul­
tiplicam processos negociais mergulhados em uma extrema complexidade
que exigem um longo, demorado e intenso período dedicado a contactos
preliminares em que há estudos, entrevistas, trocas de informações, trocas
de documentos. Pense-se, por exemplo, nos processos de fusão de socie­
dades que, entre os contactos preliminares mantidos pelas administrações
das sociedades envolvidas e a conclusão do processo, conhecem um con­
junto alargado de diligências que, em momentos diversos, envolvem a
estrutura organizatória da sociedade e, além disso, em determinadas cir­
cunstâncias, a intervenção de entidades públicas, como acontece na fusão
de instituições de crédito e sociedades financeiras (112).

(U2) Sobre o processo de fusão de sociedades, cfr. R aúl V entura, Fusão, cisão,
transformação de sociedades, Coimbra: Almedina, 1990. Refira-se, a título de exem­
plo, que a fusão de instituições de crédito e sociedades financeiras exige a prévia auto­
rização do Banco de Portugal (artigos 35.® e 183.® do Decreto-Lei n.® 298/92, de 31
de Dezembro, que institui o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades
Financeiras) e, ainda, a intervenção da CMVM, quando o objecto da instituição de cré­
dito compreender alguma actividade de intermediação de valores mobiliários (artigo 29.®-A
do Decreto-Lei n.® 298/92, de 31 de Dezembro).
3. A definição jurídico-penat de informação privilegiada 49

Não cabe, certamente, ao direito penal e à doutrina penal a carac­


terização das fases pré-contratuais. Mas impõe-se que, sendo o pro­
cesso negociai um caldo de cultura infofmacional. o direito penal não se
demita de apresentar um critério de sinalização do momento a partir do
qual a informação se deve considerar privilegiada porque precisa. De
modo a respondermos à perplexidade que acabámos de evidenciar, pen­
samos que será frutuoso convocar o relevante e esclarecido contributo
da doutrina civilística. Convocação que facilmente se explica, por­
quanto esta área do saber jurídico tem estudado com particular empenho
as fases pré-contratuais, designadamente motivada pelo propósito de
esclarecer o tema da responsabilidade pré-negocial. Do labor desta
investigação resulta que a fase preliminar (pré-contratual) compreende
uma fase negociatória e uma fase decisória (113). Integram a primeira
fase os actos preparatórios realizados sem intenção vinculante, desde
os contactos iniciais das partes até à formação da proposta contratual defi­
nitiva — fase que a doutrina europeia trata sob os enunciados de «trat-
tative», «pourparlers», «Verhandlungen». Mostra a prática negociai que
a iniciativa das negociações corresponde, ainda, a um estádio muito
embrionário da vontade, que pode, por isso, ser sucedido de arrependi­
mentos, reformulações ou consolidações (ll4). À fase negociatória
segue-se a fase decisória em que as partes emitem a proposta e/ou a acei­
tação. Este importante contributo da doutrina civilística vem mostrar, por
um lado, a heterogeneidade dos contactos (diferente natureza, profundidade,
intensidade) que integram a fase negociatória como, por outro, o carácter
não cristalizado, não consolidado do produto desses mesmos contactos.
Não nos oferece dúvidas que o acordo entre as partes representa um
grau de consolidação e de «cristalização» que permite, em sede de infor­
mação privilegiada, afirmar que o conhecimento de tal acordo constitui
informação precisa (l15). Contudo, pensamos que a intencionalidade do

( 113) M ário J úlio de A lmeida C osta, Direito das obrigações, 9* edição, Coim­
bra: Almedina, 2003, págs. 267 e segs.
(114) Sobre este ponto, A na P rata, Notas sobre a responsabilidade pré-contra-
tual, Lisboa, 1991, págs. 45 e 46,
(lls) Posição defendida por Fátima G omes, ínsider trading, Valadares: APDMC,
1996, pág. 89.
50 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

crime de abuso de informação autoriza-nos a sustentar que, no decurso de


um processo negociai, a informação atinge o grau de consolidação ou
sjcristalização tipicamente relevante para efeitos de crime de abuso de infor­
mação quando a probabilidade de o acordo não se fechar for ínfima ou
irrisória. Este critério encontra-se bem fundado jurídico-penalmente, por­
quanto, por um lado, permite o desenvolvimento do mercado de valores
mobiliários, como, por outro lado, pune as condutas dos agentes que estão
numa situação de efectiva vantagem porque podem efectuar «operações sem
risco» [Bartulli] (116). Exigir o mencionado grau de consolidação ou de
«cristalização» do processo negociai para que a informação que dele exala
se constitua como informação precisa é a forma de tutelar o correcto fun­
cionamento do mercado, de punir as condutas efectivamente lesivas da
confiança dos investidores e. em simultâneo, de circunscrever as margens
de punibilidade, tendo em conta que estamos a trabalhar um tipo legal de
crime que ocorre no universo do mercado de valores mobiliários em que
a concorrência e a assimetria são elementos presentes e inelimináveis.
-7 '

3.2.3. Referência a valores mobiliários ou a entidades em i-’


%4entes . •-

O artigo 378.°, n.° 3, do CVM determina que a informação é pri­


vilegiada se, directa ou indirectamente, disser respeito a qualquer emi­
tente ou a valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros. A lei
exige a ligação entre a informação e certas realidades e, neste sentido,
a informação privilegiada, além de precisa, deve ser específica, por­
quanto a informação em causa deve referir-se a determinado emitente —
aqui estão seguramente abrangidos os factos internos do emitente —
ou a determinados valores mobiliários ou outros instrumentos financei­
ros. A interrogação que emerge centra-se no problema de saber se a mar-
ket Information (117) apresenta ligação suficiente com a sociedade para

(U6) Na doutrina italiana sublinha este aspecto, R affaele L ener, «La diffusione
delle informazioni ‘price sensitive’ fra informazione societária e informazione reser-
vata», Le Società, 2 (1999), pág. 144.
(U7) Para a definição de market Information, cfr. ViCTOR B rudney , ob. cit.,
pág. 329: «Market information concems transactions in a corporation’s securities that will
3. A definição jurídico-penal de informação privilegiada 51

poder ser considerada abrangida pelo crime de abuso de informação,


tendo em conta que ela refere notícias sobre as condições dos mercados
ou sobre os próprios mercados que têm uma ligação tão-só indirecta
com a vida do emitente (118). Questiona-se se o aproveitamento de tal
informação — que não versa directamente sobre emitentes ou valores
mobiliários — pode ou não configurar aproveitamento de informação pri­
vilegiada. A questão que tratamos tem de ser considerada à luz da nova
redacção do artigo 378.°, n.° 3, do CVM. Este preceito alarga o conceito
de informação privilegiada a informações que digam respeito, «directa
ou indirectamente, a qualquer emitente ou a valores mobiliários ou
outros instrumentos financeiros». Esta alteração no conceito de infor­
mação privilegiada implica que também a market Information possa,
em certas circunstâncias, constituir informação privilegiada.
Há condutas que, referindo-se ao mercado de valores mobiliários,
simultaneamente versam determinado valor mobiliário. Imagine-se que
um banco foi encarregado de comprar um determinado valor mobiliário
em quantidades relevantes, sendo possível que a execução de tal órdem
determine uma variação sensível do preço do título em causa. Um fun­
cionário da referida instituição de crédito, conhecendo o conteúdo de tal
ordem, adquire esse mesmo título antes de ter sido dada a execução
por parte do banco onde trabalha. Será que o trabalhador em causa
viola a proibição de negociar na posse de informação privilegiada?
O exemplo que acabámos de referir traduz a prática do chamado
front-running. O front-runner. aproveitando uma informação produzida
por terceiros, realiza negócios prévios ou paralelos às operações ordenadas
por clientes, designadamente àquelas que sejam susceptíveis de ter
impacto no mercado ( l19). Não restam dúvidas que o funcionário em

have an impact on their future price quite apart from expected changes in the Corpora­
tion^ eam ings or assets». M anning G ilbert Warren III, ob. cit., pág. 160, considera
que «market information, unlike classic inside Information, is source neutral» e defende
que a Directiva 89/592/CEE elim inou a distinção entre inside information e market
information.
(m ) Valerio S angiovanni, ob. cit., pág. 553, citando Assmann.
(U9) Distinguindo-se do front-running, o scalping apresenta ligação às activida-
des dos consultores de investimento e analistas. O consultor de investimento ou ana­
lista financeiro adquire valores mobiliários previamente à formulação de recomenda-
52 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

causa se aproveitou de uma informação alheia; que essa informação foi


obtida no exercício da sua actividade profissional na instituição financeira
que deve executar a ordem; que tal ordem versa valores mobiliários
específicos e que, sendo não pública, é idônea para influenciar de maneira
sensível o seu preço no mercado. A questão que de momento nos inte­
ressa é apurar se o front-running é abrangido pelas margens de punibi-
lidade do crime de abuso de informação (,20). O funcionário em causa
aproveitou um dado do mercado, mas que mantém uma ligação parti­
cularmente intensa com um determinado valor mobiliário do emitente.
Ou seja: a dimensão de market information que esta informação apre­
senta não é de molde a apagar ou sequer a diluir a particular conexão
que ela mantém com o específico valor mobiliário. Estando preenchi­
dos os restantes elementos típicos do crime de abuso de informação,
tendemos a aceitar que a conduta descrita revela o ilícito e jurídico-penal-

ções de compra, com o conhecimento de que a recomendação, uma vez efectuada, fará
valorizar o título em questão, permitindo, assim, a posterior venda vantajosa. Sobre
esta caracterização, cfr. C arlos C osta P ina, ob. cit., pág. 339. «Self-fulfilling pro-
phet» — a expressão pertence a R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 348 — é como
é caracterizado o scalper que negoceia acções com base em informação não pública
— ele não revela o seu interesse nos valores mobiliários em causa nem a pretensão de
beneficiar com as previstas reacções dos seus leitores — , mas non inside (não foi obtida
em razão de uma ligação especial ou qualificada com a entidade emitente). Ele, ao fim
e ao cabo, utiliza informação sobre a sua própria actividade de negociação. O que acon­
tece- é que o analista financeiro, antes de formular as suas recomendações de investimento
— por exemplo, por intermédio de uma coluna em um jornal —, compra acções da socie­
dade X e, depois, aconselha vivamente a aquisição de tais acções aos seus leitores.
O scalping constitui uma forma de manipulação do mercado — também é esta a opi­
nião de R obert C harles C lark , ob. cit., loc. cit., que considera que o scalping cons­
titui «a form of stock manipulation, and manipul ative as well as deceptive pratices are
outlawed by Section 10 (b)» do Securities Exchange Act de 1934. Sobre o relevo penal
do scalping na ordem jurídica alemã, veja-se a sentença do BGH de 6 de Janeiro de 2003
comentada em «Strafrechtliche Beurteilung des sog. ‘Scalping’», Die Aktiengesellschaft,
3 (2004), págs. 144 e segs. Na doutrina nacional, sobre a relevância penal do scalping,
cfr. F rederico de L acerda da C osta P into , ob. cit., pág. 89, e A lexandre B randAo
da V eiga , Crime de manipulação, defesa e criação de mercado, Coimbra: Almedina,
2001, pág. 98.
(l2°) Um dos propósitos da Directiva 2003/6/CE é o de que os Estados-Membros
impeçam o front-running — incluindo o front-running em instrumentos derivados sobre
mercadorias — sempre que tal prática constituir um abuso de mercado.
3. A definição jnrtdico-penal de informação privilegiada 53

mente proibido aproveitamento de uma situação de assimetria informa­


tiva ( 121)-

3.2.4. Idoneidade para influenciar de maneira sensível o preço


dos valores mobiliários

A ultima exigência formulada pelo artigo 378.°. n.° 3. do CVM,


centra-se na idoneidade de determinada informação para influenciar, de
maneira sensível, o preço do valor mobiliário no mercado.
O requisito relativo à idoneidade levanta particulares dificuldades
para o intérprete/aplicador da lei. Não é tanto a dificuldade de avaliar
uma conduta passada — ao fim e ao cabo circunstância comum a todo
o julgamento institucionalizado — mas antes a «volatilidade» dos valo­
res mobiliários a implicar diversas variações na cotação dos títulos.
Como pode o juiz, imerso em uma outra circunstância histórica, apurar
se determinada informação, se publicada, era idônea para influenciar,
de maneira sensível, o preço do valor mobiliário no mercado? Tem
sido salientado que a valoração da idoneidade deverá ser feita por inter­
médio de um juizo^ex ante, ou seja, deve tal juízo reportar-se a momento
anterior ao da publicação da informação privilegiada. Dito de outro
modo: «Se tal informação quando publicitada fosse, num juízo de pre­
visibilidade reportado ao momento ex ante da operação, susceptível de
gerar apetência pela compra ou venda dos activos, tal informação revela
idoneidade para influenciar a evolução da cotação» (122).
Ao intérprete é, ainda, pedido que supere a porosidade própria do seg­
mento «influência sensível sobre o preço no mercado» (123). A norma

C121) Sobre a proibição do front-running à luz das disposições da WpHG,


v. C arsten P. C laussen / U lrich F lorian, «Der Emittentenleitfaden», Die Aktienge-
sellschaft, 20 (2005), pág. 749.
(122) F rederico de L acerda da C osta P into, ob. cit., pág. 78.
(123) M anning G ilbert Warren III, ob. cit., pág. 161, sustenta que o «price
sensivity» — uma influência do britânico Company Securiiies (Insider Deaiing) Act,
1985 — distingue-se de «materiality», usado, este ultimo, na legislação norte-ameri­
cana. Enquanto a «materiality» se centra na decisão individual, o «price sensivity»
desloca o relevo da informação para o provável impacto desta no mercado das acções.
54 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

parece afastar da incriminação a informação que, se tivesse sido publicada,


implicasse tão-só variações ínfimas ou irrisórias. Esta delimitação nega­
tiva ainda é insuficiente. Será necessário ir mais longe. Discute-se, a este
propósito, se será adequado fixar uma percentagem que, uma vez ultra­
passada, pudesse dar como preenchido o requisito da sensibilidade exigido
pela tipificação do abuso de informação. Como se percebe, este critério
quantitativo reduziría as dificuldades interpretativas e podería contribuir para
a certeza e segurança jurídicas. Porém, as fragilidades de tal caminho den-
sificador têm sido expostas e denunciadas, tendo em conta, designada­
mente, a «volatilidade» dos valores mobiliários negociados em mercados
particulaimente reactivos. Daí a preferência por critérios flexíveis e de natu­
reza qualitativa. O teor literal da norma — que, não sendo o único fac-
tor hermenêutico atendível, é certamente um momento relevante na ines-
capável tarefa interpretativa — invoca uma alteração qualitativa do preço
dos valores mobiliários no mercado. Seguindo a procura de um critério
qualitativo, uma das propostas sugere que se opte por um «juízo de prog-
nose relativamente aos efeitos da revelação da informação reservada» (124).
No desenvolvimento deste critério, é proposto um juízo de comparação
entre o uso da informação reservada e os efeitos previsíveis da reacção do
mercado à publicidade conferida a tal informação.

3.2.5. O sentido jurídico-penal de mercado no crime de abuso


de informação

O cabal esclarecimento sobre o alcance do âmbito de protecção da


norma incriminadora do abuso de informação impõe que nos debruce­
mos sobre o problema de saber que mercados são abrangidos pela norma
do artigo 378.° do CVM. Lembramos que o artigo 378.°, n.° 3, do CVM
exige, como requisito constitutivo da noção de informação privilegiada,
que a informação seja idônea, se lhe tivesse sido dada publicidade, para
influenciar de maneira sensível o preço no mercado. Há, pois, que ave­
riguar se o crime de abuso de informação intenciona punir o uso de infor-

(124) Densificação sustentada por F rederico de Lacerda da C osta P into, ob. cit.,
pág. 78.
3. A definição jurídico-penal de informação privilegiada 55

mação privilegiada em qualquer transacção efectuada no mercado em


geral — entendido este em sentido amplo enquanto encontro entre a oferta
e a procura — ou se, pelo contrário, é uma noção mais restrita aquela que
é pressuposta pela teleologia da norma incriminadora. Socoiramo-nos
de dois exemplos. Exemplo 1: A, membro do conselho de administração
da sociedade X, sabendo que as contas dá sociedade vão manifestar per­
das, vende directamente a B, antes da publicação das contas, as acções da
sociedade X de que é titular, evitando, assim, os prejuízos inerentes à
futura e previsível depreciação do valor daquelas. Exemplo 2: C, mem­
bro do conselho de administração da sociedade Y cujas acções estão cota­
das em bolsa, sabendo que as contas vão manifestar as perdas sofridas, ante­
cipa-se à publicação dos resultados e à previsível queda de cotação e dá
ordem de venda em bolsa das acções da sociedade Y de que era titular.
Em ambos os casos os membros do conselho de administração
transaccionam valores mobiliários beneficiando de informações não dis­
poníveis para a contraparte adquirente das acções. Em ambos os casos,
a posterior publicação dos resultados da sociedade terá, previsivelmente,
uma influência sensível no valor das acções transaccionadas. Por fim,
em ambos os exemplos, é no mercado (desde que se entenda este em sen­
tido amplo enquanto encontro entre oferta e procura) que se efectua a
operação sobre os valores mobiliários. Contudo, os dois exemplos apre^
sentam uma_diferença .assinalável que não pode, de modo algum, ser
j^gligenciadaj?u*esquecjda. No exemplo 1, os contraentes negoceiam
directamente e realizam uma transacção cujos termos, procedimentos e
condições acordam. No^xem pla 2, as acções são oferecidas em mer­
cado anônimo, espaço ou organização a que o vendedor e comprador só
acedem indirectamente através de intermediários financeiros e que fun­
ciona de acordo com regras e procedimentos de negociação pré-estabe-
lecidos ( 125). Estabelecido, em termos simplificados, o contraste factual

( ,25) Entre outras particularidades dos mercados de valores mobiliários organizados


(em geral) pontua a circunstância de os agentes econômicos não participarem neles
directamente nem negociarem directamente entre si. Antes, vigora a regra da interme­
diação obrigatória que é realizada por entidades que exercem tal actividade de modo pro­
fissional (artigo 2 0 3 “ do CVM). Exemplos de intermediários financeiros são as socie­
dades corretoras {brokers) e as sociedades financeiras de corretagem (dealers). O regime
56 0 Crime de Abuso de Informação Privilegiada

entre estas duas situações, é tempo de apurar qual o âmbito de protec­


ção da norma que tipifica o crime de abuso de informação.
O artigo 378.° do CVM surge inserido na Secção I, intitulada «Cri­
mes contra o mercado» (126). E é o mesmo Código que, no artigo 198.°,
adopta uma noção restrita de mercado de valores mobiliários quando o
define como «qualquer espaço ou organização em que se admite a nego­
ciação de valores mobiliários por um conjunto indeterminado de pessoas
actuando por conta própria ou através de mandatário». O CVM apre­
senta tão-só a disciplina dos mercados organizados — expressão que
designa os espaços que apresentam regras de funcionamento sobre a
transacção dos valores e que oferecem a padronização dos procedi­
mentos através dos quais as ofertas são transmitidas. Manifesta-se tal
organização em uma tripla dimensão: a) submissão a regras que disci­
plinam a transacção dos valores com padronização dos procedimentos;
b) infra-estrutura de funcionamento que abrange os sistemas de nego­
ciação, liquidação e de registo e controlo; c) exploração por entidades
gestoras constituídas para o efeito (127).
Sob a designação genérica de mercados organizados encontramos
os mercados regulamentados e os não regulamentados (,28). Na anterior

jurídico das sociedades corretoras e das sociedades financeiras de corretagem encontra-se


previsto no Decreto-Lei n.° 262/2001, de 28 de Setembro. Sobre os intermediários
financeiros, v. C onceição N unes , «Intermediários financeiros», AAVV, Direito dos
Valores Mobiliários, Volume II, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, págs. 91 e segs.
(l2á) A existência de uma Secção dedicada aos «crimes contra o mercado» é
uma novidade do actual CVM. No revogado CódMVM, o crime de abuso de informação
surgia inserido no Título VI epigrafado «Das infracções e sanções».
(I27) Desenvol vidamente, C arlos C osta P ina, ob. cit., págs. 484 e segs.
( I2S) É comum a distinção entre mercado primário e mercados secundários,
sendo que o primeiro corresponde ao mercado das emissões/subscrições de valores
mobiliários e os segundos referem o espaço onde os valores são objecto de transac-
ções subsequentes. O CVM não apresenta a definição de mercado primário — ela
constava do artigo 3.°, n.° 1, alínea c), do CódMVM — e o Título IV do CVM refere
os mercados secundários (neste sentido, v. C arlos C osta Pina , ob. cit., pág. 485).
Embora a distinção entre mercado primário e secundário continue a apresentar algum
relevo — pense-se nos requisitos a exigir a determinadas instituições emitentes que
desejem proceder à oferta de novos valores mobiliários no mercado — , não é seguro que
a distinção entre aquelas duas realidades equivalha à distinção civil entre aquisições
originárias e derivadas. Na verdade, há quem sustente que a aquisição efectuada em mer-
3. A definição jurídico-penal de informação privilegiada 57

versão do CVM, o mercado de bolsa destacava-se no elenco dos mercados


regulamentados. Era o que resulta va da redacção do artigo 199.°, n.° 1,
do CVM e da disciplina reservada às bolsas. O Decreto-Lei n.° 52/2006,
de 15 de Março, centra o regime legal dos mercados no conceito de
mercado regulamentado e não no de mercado de bolsa. O legislador
considera que esta é «a opção mais adequada ao tecido normativo comu­
nitário (...) mas também aquela que melhor contribui para a necessária
modernização do título IV do Código e a que mais se ajusta ao regime
jurídico das entidades gestoras de mercados e prestadoras de serviços
relacionados com a gestão (...) que ignora o conceito de bolsa» ( l29).
Os mercados regulamentados encontram-se previstos no artigo 199.°,
n.° 1, alínea a), do CVM e caracterizados no artigo 200.°, n.° 1, do
CVM. Por sua vez, os mercados não regulamentados são, nos termos do
artigo, 199.°, n.° 1, alínea b), do CVM, os «mercados organizados de
acordo com regras livremente estabelecidas pela respectiva entidade
gestora». Uns e outros «estão sujeitos a registo na CMVM e só podem
ser geridos por entidades que preencham os requisitos fixados em lei
especial» (artigo 199.°, n.° 2, do CVM) ( l3°). Os mercados não regu­
lamentados têm âmbitos e funções diversas das dos mercados regula­
mentados e daí poderem funcionar de acordo com regras menos exigen­
tes em matéria de prestação de informação ou de condições gerais de
negociação (131)-
Do que se escreveu já se intui que o nível de complexidade e de
sofisticação do funcionamento do mercado de valores mobiliários exige

cado secundário configura, do ponto de vista jurídico-civil, uma aquisição originária.


Neste sentido (ainda à luz do CMVM), cfr. J osé de O uveira A scensão, «A celebração
de negócios em bolsa», AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume I, Coimbra:
Coimbra Editora, 1999, págs. 193 e segs.
(125) Preâmbulo do Decreto-Lei n " 52/2006, de 15 de Março.
(130) Veja-se o Decreto-Lei n.D394/99, de 13 de Outubro (alterado pelo Decreto-
-Lei n.° 8-D/2002, de 15 de Janeiro), que prevê o regime jurídico das entidades gesto­
ras de mercados de valores mobiliários e serviços conexos.
(131) O Governo está obrigado a definir anualmente, através de Portaria, os mer­
cados regulamentados que funcionam em Portugal, comunicando a respectiva lista à
Comissão Européia. A lista actualizada consta da Portaria n.° 556/2005, de 27 de Junho.
Sobre os mercados não regulamentados e respectivas regras, v. www.cmvm.pt.
58 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

que nele intervenham pessoas especialmente habilitadas, profissionais


qualificados que conheçam e dominem as leges artis deste específico sec-
tor. E assim é. Se o impulso para o início do processo de transacção
de valores mobiliários está no ordenante (132), a negociação é, nos mer­
cados organizados, necessariamente intermediada através dos membros
do mercado (artigo 203.°, n.° 1, do CVM). A ausência de negociação
directa entre a oferta e a procura propicia que aquele seja um «mercado
de anônimos» (133) — característica intensificada pela circunstância de os
intermediários financeiros estarem sujeitos ao dever de segredo profis­
sional, nos termos previstos para o segredo bancário (artigo 304,°, n.° 4,
do CVM) —, e o volume de operações que nele se realizam justifica que
ele seja tido como um mercado massificado ( 134). Note-se, contudo, que
o facto de determinados valores mobiliários se encontrarem cotados em
mercados organizados não impede que aqueles sejam transaccionados
fora de mercado organizado (13s). Em tais circunstâncias, exige-se que
a transacção realizada seja comunicada à entidade gestora respectiva (,36).
Realizado este breve excurso em tomo da caracterização dos mer­
cados de valores mobiliários, podemos ensaiar a resposta à pergunta

(132) Sobre a distinção entre ordem c oferta, cfr. A lexandre Brandão da V eiga,
«As fases de negociação e de liquidação e compensação de operações de bolsa a con­
tado», AAW, Direito dos Valores Mobiliários, Volume 1, Coimbra: Coimbra Editora, 1999,
pág. 203, e C arlos C osta P ina. ob. cit., pág. 532.
( 133) Escreve J osé de O liveira A scensão, «A celebração de negócios em bolsa»,
cit., pág. 198: «A bolsa é um mercado de anônimos: e mesmo nas hipóteses raras em
que se pode chegar ao conhecimento de quem age em contraponto a um investidor,
esse conhecimento é juridicamente irrelevante».
(134) O «open market context» toma complexa a reparação civil dos investido­
res lesados. Justamente sobre o problema da tutela dos direitos individuais dos inves­
tidores afectados por insider trading, cfr. J ames D. C ox / T homas L ee H azen, ob. cit.,
págs. 700 e segs.
(135) Salientando este aspecto, cfr. A ntônio S oares, «Mercados regulamenta­
dos e mercados não regulamentados», Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, 7
(2000), pág. 283; Isabel Vidal, «Da (ir)re!evância da forma de representação para efei­
tos de transmissão de valores mobiliários», Cadernos do Mercado de Valores Mobiliá­
rios, 15 (2002), pág. 304.
( l3S) Vejam-se as normas dos artigos 210.“, n.° 2, 220.“, n,° 3, e 330.“, n.“ 4,
todos do CVM.
3. A definição jurídico-penal de informação privilegiada 59

que formulámos. Interrogávamo-nos, há momentos, sobre o âmbito de


protecção da norma incrimínadora do abuso de informação e, mais espe­
cificamente, sobre os mercados por ela abrangidos. Entendemos que a
resposta a esta questão passa pelo pensamento, hoje praticamente con­
sensual, de que a norma penal só deve intervir para protecção de um
determinado bem jurídico como ultima ratio. O que arrasta, por força
da necessidade subjacente, a consequência de que um preciso bem jurí­
dico, muito embora se possa pôr em causa a sua ilicitude material (a esta
luz ainda não tipificada), só deve ser protegido pela norma penal, e
como tal merecedora de pena a conduta que violou ou pôs em perigo,
se as sanções dos outros ramos do direito se não mostrarem suficien­
tes (I37). E, devemos vincá-lo, também o direito penal econômico,
ainda que envolto nas suas especificidades, continua, em nosso entender,
a comungar deste carácter subsidiário (138). Razão que explica que con­
voquemos, para a reflexão em tomo do crime de abuso de informação,
a linha argumentativa assente no carácter subsidiário do direito penal.
A tutela penal conferida pela incriminação do abuso de informação
revela-se necessária e imprescindível para a protecção da confiança dos
investidores que, nos mercados organizados, são confrontados com a
massificação, anonimato, indiferenciação pessoal e real (139) e, além
disso, têm de negociar através dos intermediários. Não se pense, con­
tudo, que, nestas condições, a incriminação penal tutela a singular tran­
sacção ou a posição do investidor individual. Como já referimos, a
tutela penal conferida pelo crime de abuso de informação protege um bem
jurídico supra-individual. Deste modo. a infracção existe não para pro­
teger o direito daquela concreta pessoa a que a transacção bolsista seja
realizada em condições de mercado, mas sim para proteger a confiança
e a igualdade entre os investidores. Percebe-se, assim, que as pessoas

C137) J osé de Faria C osta, Tentativa e dolo eventual (ou da relevância da nega­
ção em direito penal), Separata do número especial do Botelim da Faculdade de Direito
de Coimbra, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, 1984, Coim­
bra, 1987, págs. 17 e 18.
(138) J osé de Faria C osta, Direito penal econômico, cit., págs. 25 e 26.
C139) Paula C osta e S ilva, «Compra, venda e troca de valores, mobiliários»,
AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa: Lex, 1997, pág. 246.
60 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

atingidas por uma transacção bolsista baseada em informação privilegiada


não são só. nem de longe nem de perto, os accionistas da empresa sobre
a qual gira a questão, mas antes todo o universo de accionistas efectivo
e potencial, que está inserido no mercado de valores mobiliários. Deste
modo, a tutela penal do crime de abuso de informação visa, de certo
modo, tutelar ou proteger a decisão econômica — a decisão econômica
individual — que se baseie no máximo de informação; mas informação
igual para todos os potenciais intervenientes. Ora, o crime de abuso de
informação «lesa» todos os que real ou potencialmente estão no mercado
de valores mobiliários (14°). Daí que a natureza supra-individual do
bem jurídico protegido pelo crime de abuso de informação signifique a
impossibilidade de se «determinar» a concreta vítima.
As transacções realizadas em circunstâncias em que falham os espar­
tilhos próprios dos mercados organizados — «face-to-face transaction», na
expressão da doutrina anglo-saxónica (141), por oposição às «faceless tran-
sactions» (l42) próprias do mercado de valores mobiliários — não neces­
sitam da tutela penal que garanta o correcto funcionamento do mercado.
e a igualdade dos investidores. Como, por outro lado, essas mesmas
s ? transacções podem, de_forma„eficaz, convocar a tutela oferecida por outros
ramos de direito contra o erro, o engano, a violação dos deveres contra­
tuais. Pensemos nos remédios previstos no direito civil contra o erro, o
dolo ou a violação da boa fé na fase pré-contratual. Em síntese: por
intervenção do princípio da necessidade ou da ultima ratio, são excluídas
do âmbito de protecção da norma de abuso de informação as transacções
de valores mobiliários ocorridas fora dos mercados organizados.
Avancemos no sentido da conclusão. A individualização do bem
jurídico protegido pela norma penal co-determina o sentido hermenêu­
tico que o intérprete confere a tal norma. O crime de abuso de infor­
mação tutela o bem jurídico supra-individual de caracter poliédrico e hete­
rogêneo que na sua complexidade congênita agrega a igualdade entre os
investidores e a confiança destes em que o mercado funciona de acordo

(,4°) J oséde Faria C osta , Direito penal econômico, cit., págs. 55 e segs.
(141) Cfr., por todos, J ames D. Cox / T homas L ee H azen , ob. cit., pág. 770;
Paul L. D avies, ob. cit., pág. 444.
(142) Cfr. R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 311.
3. A deftniçõo jitrídico-penal de informação privilegiada 61

com as regras de mercado. A necessidade de tal tutela manifesta-se, em


nosso entender, nos referidos mercados organizados (143) em que se
«admite a negociação de valores mobiliários por um conjunto indeter­
minado de pessoas» (144), porquanto nestas circunstâncias as regras de
outros ramos de direito são inoperatórias ou insuficientes.

4. O RELEVO DA LIGAÇÃO INSTITUCIONAL AO EMI­


TENTE NA CARACTERIZAÇÃO TÍPICA DOS AGENTES

4.1. Uma primeira aproximação ao elenco dos agentes típicos

O preenchimento do crime de abuso de informação exige que os


agentes revistam as características definidas na lei. Acompanhando a
delimitação legal, são agentes do crime de abuso de informação; a) titu­
lares do órgão de administração ou de fiscalização de um emitente; b) titu­
lar de uma participação no capital social de um emitente; c) prestador de
trabalho ou serviço, com caracter permanente ou ocasional, a um emitente
ou a outra entidade; d) pessoas que exerçam função pública; e) quem dis­
ponha de informação privilegiada que, por qualquer forma, tenha sido
obtida através de um facto ilícito ou que suponha a prática de um facto
ilícito; f) qualquer pessoa não abrangida pelo n.° 1 do artigo 378.° do CVM
que tenha conhecimento de informação privilegiada. Seguindo a tipolo­
gia que a casuística norte-americana organizou, o artigo 378.°, n.° 1, alí­
nea a), do CVM, pune os corporate insiders (ou seja, titulares de órgãos
de administração ou de fiscalização de um emitente ou titular de parti­
cipação no respectivo capital) (145), as alíneas b) e c) alargam esta incri-

(143) A doutrina britânica, à luz do Criminal Justice Act de 1993, considera que a
incriminação do insider trading não significa uma proibição absoluta de negociar com base
em informação privilegiada, porquanto esta incriminação só abrange condutas ocorridas em
mercados regulamentados e, por conseguinte, já não contempla, por exemplo, a negocia­
ção ocorrida em outros contextos, por exemplo, transacções que envolvam acções de
«closely held shares». Cfr. Brian R. C heffins, Company law: theory, structure and ope-
ration, Oxford: Clarendon Press, 1997, pág. 145; Paul L. D avies, ob. cit., pág. 455.
(144) Segmento normativo do artigo 198.® do CVM.
(145) R obert C harles C lark, ob. cit., pág. 355, identifica o grupo dos structu-
ral insiders (por oposição aos corporate ou market insiders). Os structural insiders são
62 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

minação até aos temporary insiders e insiders não institucionais (pes­


soas com um vínculo profissional, permanente ou temporário, a um emi­
tente ou, ainda, pessoas que exercem profissão ou função pública),
enquanto o n.° 2 pune, em determinadas circunstâncias, os outsiders (ou
tippies) (146). Estes últimos são pessoas que, não revestindo as qualida­
des previstas pelos anteriores preceitos, têm conhecimento de uma infor­
mação privilegiada que depois utilizam.

4.2, Estrutura organizatôria das sociedades anônimas e segre­


gação de fluxos informacionais

4.2.1. Os modelos alternativos de administração e de fiscali­


zação da sociedade anônima

A qualidade de «titular de um órgão de administração.ou de fisca­


lização de um emitente» — trataremos mais tarde a qualidade de titu­
lar de uma participação no capital social — faz ingressar estas pessoas
no universo dos candidatos positivos a agentes do crime de abuso de
informação. Subjacente a esta incriminação está, sem dúvida, a per­
cepção de que os emitentes constituem fonte de fluxos informacionais

pessoas que, não sendo corpo rate insiders ou market insiders, têm, em virtude das
suas funções ou profissões, acesso a informações não públicas (funcionários da SEC,
contabilistas, editores financeiros). Também estes sujeitos devem ser impedidos de
capturar o valor econômico de tal informação; é razoável que lhes seja exigido que se
abstenham de negociar com base em informação privilegiada obtida em razão do exer­
cício profissional. Entre nós, contabilistas que prestem serviços ao emitente ou fun­
cionários da CMVM são, respectivamente, por força do artigo 378.°, n.° 1, alíneas a)
e b), agentes típicos do crime de abuso de informação. O artigo 31.° do Estatuto da
CMVM (aprovado pelo Decreto-Lei n.° 473/99, de 8 de Novembro, e alterado pelos
Òecretos-Leis n.os 232/2000, de 25 de Setembro, e 183/2003, de 19 de Agosto) proíbe
que os trabalhadores da CMVM realizem «por conta própria ou por conta de outrem,
directa ou indirectamente (...) quaisquer operações sobre valores mobiliários». Ainda
que o conselho directivo possa conceder autorização para realização de operações sobre
valores mobiliários, essa autorização «apenas será concedida se as operações (...) não
resultarem da utilização de informação confidencial a que o trabalhador tenha tido
acesso em virtude do exercício das suas funções (...)».
(146) A expressão foi primeiramente usada por Louis Loss da Harvard Law
School, cfr. Paul L. D avies, ob. cit., pág. 466.
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 63

relevantes para o mercado — pensemos, a título de exemplo, nas con­


tas anuais, projectos de fusão, distribuição de dividendos, operações de
saída do mercado — e que os titulares do órgão de administração ou de
fiscalização, porque integram a estrutura organizatôria, beneficiam de
um acesso prioritário e privilegiado à informação. Aprofundemos um
pouco este aspecto, tomando como referente as sociedades anônimas.
Tida como uma das manifestações do princípio da tipictdade ou
taxatividade (147), a estrutura organizatôria das sociedades anônimas
está cristalizada em figurinos legalmente definidos ( I48). Ultrapassa
abundantemente os propósitos do nosso trabalho examinar com porme­
nor cada um dos problemas em que se desdobra o complexo tema da
estrutura organizatôria das sociedades anônimas. Pretendemos tão-só
conhecer as razões que explicam que os membros do órgão de admi­
nistração e de fiscalização sejam eleitos como agentes típicos do crime
de abuso de informação. As sociedades, enquanto real construído que
são, intervém no mundo jurídico através de órgãos (ou de representan-,
tes) e, por essa razão, sãò sempre relatio in altero (149)- Os órgãos a
quem compete formar e/ou exprimir vontade juridicamente imputável à ■
sociedade (15°) produzem inevitavelmente acervos informacionais, alguns
dos quais portadores das características próprias de informação privile­
giada. Mais. O funcionamento da sociedade não só envolve a produ­
ção de fluxos informacionais como exige a circulação de tal informação.

(,47) Usa esta formulação J. M. C outinho de A breu, Curso de direito comercial.


Volume II, Das sociedades, Coimbra: Al medi na, 2002, pág. 72. Há quem prefira falar
em princípio da tipicidade. Para esta última formulação, cfr. Pedro M aia, «Tipos de
sociedades comerciais», AAVV, Estudos de direito das sociedades (coordenação de J. M.
C outinho de A breu), 7.* edição, Coimbra: Almedina, 2005, págs. 7 e segs.
(,48) O Decreto-Lei n." 76-A/2006, de 29 de Março, entre muitas outras altera­
ções, introduz importantes modificações nas estruturas de administração e de fiscaliza­
ção das sociedades anônimas.
(l49) J osé de Faria C osta, «A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos
seus órgãos (ou uma reflexão sobre a alteridade nas pessoas colectivas, à luz do direito
penal)», AAVV, Direito penal econômico e europeu: textos doutrinários, Volume I, Pro­
blemas gerais, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pág. 515.
(15°) J. M. C outinho de A breu , Curso de direito comercial, Volume II, cit.,
pág. 57.
64 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

O que, como veremos mais tarde, pode suscitar uma tensão entre, por
um lado, a necessidade empresarial de circulação de informação e, por
outro, as proibições impostas pelo crime de abuso de informação. De
momento, conheçamos, com mais proximidade, a estrutura de adminis­
tração e de fiscalização da sociedade anônima.
A orientação oitocentista que via os administradores de sociedades
como mandatários — enquadramento hoje superado (151*) e que estava
em sintonia com o entendimento de que a assembléia constituía o órgão
supremo ( ,52) — segue-se, durante o século XX, a tendência no sentido
do reforço dos poderes próprios e exclusivos do órgão de administra­
ção (153). A dispersão do capital, o desinteresse dos accionistas, a cres­
cente complexidade dos problemas relacionados com a gestão societá­
ria, a assunção de outros interesses para além dos interesses dos
accionistas, a emergência das teses institucionalistas sobre o papel e
função das sociedades anônimas, eis alguns dos factores que convergi­
ram no sentido da concentração dos poderes no órgão de administração.
O contrato de mandato tornou-se inoperatório quando, por exemplo, é
confrontado com o âmbito de competência originária e autônoma dos

(l5‘) A. F errer C orreia , Lições de direito comercial, Volume II, Sociedades


comerciais. Doutrina geral. com a colaboração de Vasco Lobo Xavier, Manuel Henri­
que Mesquita, José Manuel Sampaio Cabral e Antônio A. Caeiro, Coimbra: João Abran-
tes, 1968, pág. 325.
(!52) Sobre a concepção clássica das relações entre o órgão de administração e
a assembléia geral, no direito português, cfr. V isconde de C arnaxide, Sociedades
anonymas. Estudo theorico e pratico de direito interno e comparado, Coimbra: França
Amado, 1913, págs. 146 e segs.; J osé T avares, Sociedades e empresas comerciais,
2.* edição, Coimbra: Coimbra Editora, 1924. À concepção clássica, contrapõe-se a
designada concepção moderna, segundo, a qual a competência de cada órgão limita a
do órgão superior. Cfr. Vasco L obo X avier, Anulação de deliberação social e deli­
berações conexas, Coimbra: Atlântida, 1976 (reimpressão, Coimbra: Almedina, 1998),
pág. 351, nota.
(153) Vejam-se os artigos 405.°, 406.® e 431.® do CSC sobre os poderes de gestão
e'de representação do conselho de administração e do Conselho de administração executivo.
Na doutrina alemã, sobre os poderes de gestão do Vorstand (§ 76 AktG) caracterizado como
«Leitungsorgan», ver, por todos, U we H üffer, Akliengesetz, 5. Auflage, München: Ver-
lag C. H. Beck, 2002, págs. 365 e segs. Escreve este autor, ob. cit., pág. 366, rdn 10,
que o Vorstand «is nicht an Weisungen andere Gesellschaftsorgane gebunden und auch
nicht an Weisungen von (GrofS-) Aktionãren»,
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 65

membros do órgão de administração (154). Tomando por referência o


CSC, verifica-se que o estatuto dos administradores encontra-se enqua­
drado, de forma significativa, por deveres de fonte legal que, de modo
algum, o mandato consegue absorver. Todavia, a insuficiência ou até ino-
peratividade do mandato não equivale ao abandono das teses contra tua-
listas. Na verdade, a doutrina portuguesa — ainda que com divergên­
cia de pontos de vista sobre a concreta configuração — tem procurado
perceber a relação de administração a partir de elementos contratuais: o
contrato de administração ou outro similar (I55).
Ainda que seja relevante o esforço dogmático de enquadramento da
relação jurídica — através dele explicita-se e desenvolve-se o sistema jurí­
dico —, é certo que no que tange a tipicidade dos agentes do crime de
abuso de informação o que releva é a ligação institucional à sociedade
emitente. Para efeitos do artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM, assume
a qualidade de agente típico do crime de abuso de informação quem
for «titular de um órgão de administração ou de fiscalização de um
emitente». Seja qual for o modo de ingresso dos administradores no
órgão de administração — eleição pela maioria, designação no contrato
de sociedade, nomeação pelo Estado, nomeação judicial, cooptação e
sucessiva confirmação pela assembléia — e sejam quais forem as liga-

( 154) A lexandre Soveral M artins, Os poderes de representação dos adminis­


tradores de sociedades anônimas, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pág. 14, e, na dou­
trina italiana, V incenzo C alandra B uonaura , Gestione dell‘impresa e competenze
delVassemblea nella società per azioni, Mi lano: Giuffrè, 1985, págs. 2 e segs.
(155) Orientação rejeitada por A ntônio M enezes C ordeiro , Da responsabili­
dade civil dos administradores das sociedades comerciais, Lisboa: Lex, 1997, págs. 394
e segs. A tese contratual foi vigorosamente reconstruída por Minervini que, já em
pleno século XX, admitindo «la natura contrattuale delia fattispecie costitutiva dei rap-
porto di amministrazione», entendia interceder entre a sociedade anônima e os admi­
nistradores um «contratto di un tipo a sè stante», cfr. G ustavo M inervini, Gli ammi-
r.istratorí di società per azioni, Milano: Giuffrè, 1956, págs. 59 e 71. Sobre o debate
doutrinai em tomo da natureza jurídica da relação entre os administradores e a sociedade,
v., por todos, Luís B rito C orreia, Os administradores de sociedades anônimas, Coim­
bra: Livraria Almedina, 1991, págs. 293 e segs.; A ntônio M enezes C ordeiro , ob. cit.,
págs. 335 e segs. Na jurisprudência, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12
de Dezembro de 1994, Colectânea de Jurisprudência, 5 (1994), pág. 229, fala em con­
trato sui generis, assente nas eleição e aceitação.
s
66 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

ções à maioria ou minorias — administradores eleitos pela maioria,


\ ■ administradores designados pela minoria, administradores independentes
K
ou não independentes (l56) — a qualidade formal de membros do órgão
W; de administração integra-os, de imediato, no rol dos agentes típicos do
W' crime de abuso de informação, previsto e punido pelo artigo 378.°, n.° 1,
alínea a), do CVM.
Segundo o artigo 278.°, n.° 1, do CSC (na redacção introduzida
pelo Decreto-Lei n.° 76-A/2006, de 29 de Março), a administração e a
fiscalização da sociedade anônima podem ser estruturadas segundo uma
das três modalidades: «a) Conselho de administração e conselho fiscal;
b) Conselho de administração, compreendendo uma comissão de audi­
fel; toria, e revisor oficial de contas; c) Conselho de administração exe­
cutivo, conselho geral e de supervisão e revisor oficial de contas». Esta
nova redacção do artigo 278.°, n.° 1, do CSC surge na sequência do
documento da CMVM, «Governo das sociedades anônimas: propostas de
alteração ao Código das Sociedades Comerciais». É alargado o rol dos
modelos de governo de sociedades anônimas que, sob a alínea b) do n.°
1, passa a contemplar o chamado modelo anglo-saxónico. São mantidos
os modelos anteriormente previstos (alíneas a) e c) do n.° 1), embora enri­
quecidos com importantes alterações. Não é propósito do presente tra­
balho estabelecer o cotejo crítico entre o actual e o anterior regime de
K administração e de fiscalização das sociedades anônimas. Pretendemos,
¥ i tão-só, deixar aqui umas sumárias notas sobre o mais recente regime de
►i govemo das sociedades anônimas.
O conselho de administração, enquanto órgão de gestão e de repre­
to i
sentação da sociedade anônima (artigo 405.° do CSC), é dotado de
* ; extensos poderes decisórios. Tal amplitude decisória assenta normati­
> vamente no artigo 406.° do CSC quando este determina que «Compete
[ ao conselho de administração deliberar sobre qualquer assunto de admi­
n
l 7 nistração da sociedade». A esta norma segue-se, distribuída em várias
9 ’

( l56) A CMVM, através do Regulamento n.° 7/2001, relativo ao govemo das


sociedades cotadas, delimita no artigo l.°, n.° 2, os administradores que «não são con­
siderados administradores não executivos independentes» (redacção dada pelo Regula­
mento da CMVM n.° 10/2005).
4. O relevo da ligaçao institucional ao emitente na caracterização... 67

alíneas, a enumeração exemplificativa dos poderes de gestão que com­


petem ao conselho de administração.
No modelo latino, a fiscalização da gestão da sociedade é, por um
lado, competência dos órgãos dedicadamente fiscalizadores — conselho
fiscal e revisor oficial de contas — e, por outro, integra uma das funções
da colectividade de sócios (157). Seguindo o modelo latino de adminis­
tração e de fiscalização das sociedades anônimas, consideremos, agora,
a fiscalização das sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos
à negociação em mercado regulamentado. Segundo o artigo 413.°, n.° 1,
alínea b), e n.° 2, do CSC, para tais sociedades é obrigatório que a fis­
calização seja cometida a um «conselho fiscal e a um revisor oficial
de contas ou uma sociedade de revisores oficiais de contas que não seja
membro daquele órgão». Por intermédio destas normas, é imposto a estas
sociedades anônimas que adoptem o chamado «modelo latino refor­
çado» (,58) em que coexistem separadamente conselho de administração,
conselho fiscal e revisor oficial de contas.
Quanto à composição qualitativa, o artigo 414.°, n.° 6, do CSC
determina que «Em sociedades emitentes de acções admitidas à nego­
ciação em mercado regulamentado, o conselho fiscal deve ser composto
por uma maioria de membros independentes», sendo que o n.° 5 do
mesmo preceito delimita o conceito de independência relevante neste
contexto.
Ao conselho fiscal de qualquer sociedade anônima compete de
forma principal controlar a administração, como resulta do artigo 420.°
do CSC. Acresce que, segundo o n.° 2 do artigo 420.° do CSC, ao
conselho fiscal de sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos
à negociação em mercado regulamentado compete: «a) fiscalizar o pro­
cesso de preparação e de divulgação de informação financeira; b) pro­
por à assembléia geral a nomeação do revisor oficial de contas; c) fis­

( !57) Segundo o artigo 376.°, n.° j, alínea c), do CSC, uma das competências da
assembléia geral anual é «proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da
sociedade».
( l5S) V. CMVM, Govemo das sociedades anônimas: propostas de alteração ao
Código das Sociedades Comerciais. Processo de consulta pública n.° 1/2006, CMVM:
www.cmvm.pt, Janeiro 2006, § 10", ponto 22.
68 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada .

calizar a revisão de contas aos documentos de prestação de contas da


sociedade; d) fiscalizar a independência do revisor oficial de contas,
designadamente no tocante à prestação de serviços adicionais». Ao
revisor oficial de contas, de acordo com o artigo 420.°, n.° 4, do CSC,
incumbe «o dever de proceder a todos os exames e verificações neces­
sários à revisão e certificação legais das contas». Se consultarmos os
poderes dos membros do conselho fiscal e do revisor oficial de contas, veri­
ficamos que são reconhecidos instrumentos que lhes permitem obter infor­
mações sobre a sociedade. Por exemplo, e de acordo com o artigo 421.
n.° 1, alínea b), do CSC, o revisor oficial de contas ou os membros do con­
selho fiscal (conjunta ou separadamente) podem «obter da administração
ou de qualquer dos administradores informações ou esclarecimentos sobre
o curso das operações ou actividades da sociedade ou sobre qualquer
dos seus negócios» ou, ainda, «assistir às reuniões da administração, sem­
pre que o entendam conveniente» (artigo 421.°, n.° 1, alínea d)). Não sur­
preende, pois, que, no exercício da sua actividade de fiscalização, o revi­
sor oficial de contas ou o conselho fiscal possam dispor de informações
relevantes e reservadas como sejam, por exemplo, segredos comerciais ou
industriais. Por ser assim, justamente, recai sobre os membros do óigão
de fiscalização o dever de güardar segredo dos factos e informações de
que tiverem conhecimento em razão das suas funções, sem prejuízo do
dever de participar ao Ministério Público os factos delituosos de que
tenham conhecimento e que constituam crimes públicos (artigo 422.°,
n.° 1, alínea c), e n.° 3, do CSC).
Da vigilância, fiscalização, verificações, investigações, inspecções
e outros actos fiscalizadores resulta, como é fácil de prever, um impor­
tante e, eventualmente, sensível acervo informacional que, em alguns
casos, deve merecer uma «selective disclosure» no sentido de que a lei
impõe ao órgão de fiscalização o dever de transmissão interna a certas pes­
soas (por exemplo, o dever de o revisor oficial de contas comunicar ao
presidente do conselho de administração factos que revelem graves difi­
culdades na prossecução do objecto social, previsto no artigo 420.°-A
do CSC) ou até comunicação externa a certas entidades (por exemplo,
dever de participar ao Ministério Público certos factos delituosos).
Na anterior redacção, o artigo 278.°, n.° 1, alínea b), do CSC, apre­
sentava um modelo de incrementada complexidade, destinado à grande
4. O relevo da ligaçao institucional ao emitente na caracterizaçao... 69

sociedade anônima, que contemplava o conselho geral, direcção e revi­


sor oficial de contas. Nesta estrutura de influência marcadamente
germânica (,59), a gestão da sociedade competia à direcção. Os direc-
tores eram nomeados, não pela assembléia geraj, como sucede com os
membros do conselho de administração, mas pelo conselho geral, e
desempenhavam as tarefas de gerir as actividades da sociedade e de
a representar (artigo 431.°, n.° 1, do CSC). Já o conselho geral — cujos
membros deviam ser accionistas — além das funções de fiscalização
das actividades da direcção, tinha também competências para designar
e destituir o presidente e membros deste último órgão. O conselho
geral não tinha poderes de gestão, mas a lei, o contrato de sociedade e
o próprio conselho podiam estabelecer que a direcção devesse obter
prévio consentimento do conselho geral para a prática de determinadas
categorias de actos (artigo 442.°, n.° 1, do CSC).
São importantes as alterações introduzidas neste modelo de admi­
nistração e de fiscalização das sociedades anônimas. Sob o artigo 278.°,
n.° 1, alínea c), do CSC, é apresentado o chamado «modelo dualista
(germânico)» que, na nova designação, é composto por «Conselho de
administração executivo, conselho geral e de supervisão e revisor oficial
de contas». Centremo-nos nos aspectos que mais directamente nos inte­
ressam. Designado nos estatutos, pelo conselho geral e de supervisão
ou pela assembléia geral (neste último caso, se os estatutos o determi­
narem), compete ao «conselho de administração executivo gerir as acti­
vidades da sociedade» (artigo 431.°, n.° 1, do CSC) e são-lhe atribuídos
«plenos poderes de representação da sociedade perante terceiros».
O conselho geral e de supervisão tem, entre outras, competência de fis­
calização da gestão levada a cabo pelo conselho de administração executivo,
como resulta expressamente do artigo 441.°, alínea d), do CSC.

(!59) Na literatura alemã, salientamos na vastíssima bibliografia sobre os órgãos


Vorstand e Aufsichtsrat, H ans-Joachim M erTENS, in Kólner Kommentar zum Aktien-
gesetz (Herausgcgeben von Wolfgang Züllner), Band 2, 1. Lieferung §§ 76-94,
2. Auflage, Kõln/Berlin/Bonn/München: Carl Heymanns Verlag KG, 1992; K arsten
Schmidt, Gesellschafisrecht, 4., võllig neu bearbeitete und erweiterte Auflage, Kõln/Ber-
lin/Bonn/Miinchen: Carl Heymanns Verlag KG, 2002, págs. 804 e segs.; U we H üffer,
ob. cit., págs. 363 e segs. e 466 e segs.
70 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada .

Interessa-nos particularmente o regime que, neste modelo de gestão


e de fiscalização, enquadra as sociedades emitentes de valores mobiliá­
rios admitidos à negociação em mercado regulamentado. Em tais socie­
dades, o artigo 444.°, n.° 2, do CSC impõe que «o conselho geral e de
supervisão deve constituir uma comissão para as matérias financeiras,
especificamente dedicada ao exercício das funções referidas nas alí­
neas f) a o) do artigo 441.°» (n.° 2). Especificamente quanto a sociedades
H emitentes de acções admitidas à negociação em mercado regulamen­
H; tado, os membros da comissão para as matérias financeiras devem, na
sua maioria, ser independentes (artigo 444.°, n.° 6, do CSC). Regra
M-
que também vale para a composição qualitativa do conselho geral e de
supervisão que, em sociedades com acções admitidas à negociação em
mercado regulamentado, deve ser composto por uma maioria de mem­
bros independentes (artigos 434.°, n.° 4, e 414.°, n.° 6, do CSC).
O modelo de fiscalização completa-se com o revisor oficial de contas.
No contexto das relações entre o conselho de administração exe­
cutivo com o conselho geral e de supervisão, a lei obriga o primeiro a
comunicar ao segundo um relevante elenco de informações. Destacamos
que, segundo o artigo 432.°, n.° 2, do CSC, «O conselho de administração
executivo deve informar o presidente do conselho geral e de supervisão
sobre qualquer negócio que possa ter influência significativa na renta­
bilidade ou liquidez da sociedade e, de modo geral, sobre qualquer situa­
ção anormal ou por outro motivo importante». Estas e outras informa­
ções devem ser transmitidas a outros membros do conselho geral e de
supervisão, acautelando-se, assim, a circulação de informação pelos
membros deste órgão.
A reform a do direito societário operada pelo D ecreto-Lei
n.° 76-A/2006, de 29 de Março, consagra entre nós o designado «modelo
i
anglo-saxónico» de administração e de fiscalização da sociedade. Pre­
visto sob o artigo 278.°, n.° 1, alínea b), do CSC, integra os «Conselho
de administração, compreendendo uma comissão de auditoria, e revi­
sor oficial de contas». Característico deste modelo, por cotejo com o
modelo latino clássico e com o modelo dualista (germânico) é a cir­
cunstância de a fiscalização da gestão da sociedade estar a cargo de
membros de pleno direito do órgão de administração. As vantagens
apontadas a este «auto controlo» são, por um lado, «uma fiscalização tem­
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 71

poral mente mais próxima dos actos fiscalizados» (l6°) e, por outro, a pos­
sibilidade de serem evitadas determinadas medidas de gestão, A CMVM
não deixa de mencionar os potenciais riscos que este modelo envolve,
porquanto a fiscalização da sociedade é entregue a quem tem o «poder
de determinar ou, pelo menos, [de] influenciar de modo directo, as deci­
sões de gestão» (161). Neste modelo, a independência dos membros da
comissão de auditoria ganha lugar central.
Vejamos, ainda que de forma breve, a estruturação e funções da
comissão de auditora, previstas nos aditados artigos 423.°-B a 423.°-H
do CSC. Em matéria de composição da comissão de auditoria, o
artigo 423.°-B do CSC contempla normas específicas aplicáveis às
sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação
em mercados regulamentados. De acordo com o n.° 4 deste preceito,
nestas sociedades a comissão de auditoria «deve incluir pelo menos
um membro que tenha curso superior adequado ao exercício das suas
funções e conhecimentos em auditoria ou contabilidade e que, nos ter­
mos do n.° 5 do artigo 414.°, seja independente». Especificamente
quanto às sociedades emitentes de acções admitidas à negociação em
mercado regulamentado, «os membro da comissão de auditoria devem,
na sua maioria, ser independentes» (artigo 423.°, n.° 5, do CSC). À
comissão de auditoria compete fiscalizar a gestão realizada pelo conselho
de administração e «a independência do revisor oficial de contas, desig­
nadamente no tocante à prestação de serviços adicionais» (artigo 423.°-F,
alínea o)t do CSC).
Na comissão de auditoria converge um importante acervo de infor­
mação sobre a sociedade. Na verdade, no exercício das suas funções,
os membros da comissão de auditoria estão vinculados a deveres que, jus­
tamente, permitem o acompanhamento próximo do curso da sociedade.
Destacamos que entre os deveres dos membros da comissão de audito­
ria contam-se os de participação nas reuniões do conselho de adminis­
tração, da assembléia geral e nas da comissão executiva onde se apre­
ciem as contas do exercício. Acresce que é à comissão de auditoria

(l6°) CMVM, ob. cit., § 11.°, ponto 27.


(161) CMVM, ob. cit., § 11.“, ponto 27. Interpolação nossa.
72 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

que incumbe «receber as comunicações de irregularidades apresentadas


por accionistas, colaboradores da sociedade ou outros».
É tempo de encerrar este ponto. Com estas brevíssimas conside­
rações em tomo da recente reforma dos modelos de administração e de
fiscalização da sociedade anônima quisemos contribuir para a caracte­
rização dos sujeitos típicos referidos no artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do
CVM. Na sequência da reforma incorporada no CSC, perguntar-se-á
quem são os corporate insiders abrangidos pelo artigo 378.°, n.° 1, alí­
nea a), do CVM. Relembramos que este preceito considera agente
típico do crime de abuso de informação o «titular de um óigão de admi­
nistração ou de fiscalização de um emitente», independentemente do
nomen que designe .o cargo exercido. Estabelecida a conexão entre os
modelos de administração e de fiscalização da sociedade anônima e o
crime de abuso de informação, resulta que são agentes típicos do crime
de abuso de informação: a) os membros do conselho de administração
(ou administrador único); b) os membros do conselho fiscal (ou fiscal
único); c) os membros da comissão de auditoria; d) os membros do
conselho de administração executivo (ou administrador único); e) os
membros do conselho geral e de supervisão; t f ) o revisor oficial de
contas.
Resta-nos considerar a delegação de poderes de gestão. É o que
faremos de imediato.

4.2.2. Á delegação de poderes de gestão

Segundo o artigo 407.°, n.° 1, do CSC, «A não ser que o contrato


da sociedade o proíba, pode o conselho encarregar especialmente algum
ou alguns administradores de se ocuparem de certas matérias de admi­
nistração». Este encargo especial — «delegação imprópria» (l62) —
não exclui a competência normal dos outros administradores ou do
conselho, ou sequer a responsabilidade daqueles. Já o artigo 407.°,
n.° 3, do CSC, estatui que «O contrato de sociedade pode autorizar o

(lfi2) P edro Maia, Função e funcionamento do conselho de administração da


sociedade anônima, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, págs. 248 e segs.
4. O relevo da ligaçao institucional ao emitente na caracterização... 73

conselho de administração a delegar num ou mais administradores ou


numa comissão executiva a gestão corrente da sociedade» (,ó3). A cria­
ção deste novo órgão ( l64) (necessariamente composto por administra­
dores) implica alterações no estatuto dos administradores não delega­
dos (165) porque, por um lado, determina a exclusão da responsabilidade
destes por actos abrangidos na delegação e, por outro, impõe-lhes os
deveres de vigilância e de intervenção. É o que resulta do artigo 407.°,
n.° 8, 2.a parte, do CSC, ao estabelecer que «os outros administradores
são responsáveis, nos termos da lei, pela vigilância geral da actuação do
administrador ou administradores-delegados ou da comissão executiva e,
bem assim, pelos prejuízos causados por actos ou omissões destes,
quando, tendo conhecimento de tais actos ou omissões ou do propósito
de os praticar, não provoquem a intervenção do conselho para tomar
as medidas adequadas».
Mais do que os problemas de índole jurídico-societária que estas dis­
posições despertam ( lfiõ), o que pretendemos salientar é a articulação
entre a delegação de poderes de gestão e as margens de punibilidade do
crime de abuso de informação privilegiada. A primeira nota serve para
referir que a inserção do órgão delegado na concreta estrutura societá­

(,63) O Regulamento da CMVM n.° 7/2001 relativo ao governo das sociedades


cotadas impõe que o relatório sobre o governo das sociedades preste informação sobre o
órgão de administração, designadamente, remuneração e qualificação dos administradores.
(164) M. N ogueira S erens, Notas sobre a sociedade anônima, 2 / edição, Coim­
bra: Coimbra Editora, 1997, pág. 78, citando doutrina italiana. Na doutrina italiana, por
todos, vejam-se F anelu , La delega di polere amministrativo nelte società per azioni.
Mi lano: Giuffrè, 1952, págs. 21 e segs.; Francesco G algano, I! nuovo diritto societário.
Pado va: Cedam, 2003, pág. 263.
(165) Na doutrina italiana, salienta este aspecto, F rancesco G algano, ob. cit.,
págs. 264 e 265.
(!«) p ^ a a análise dos problemas juridico-societários suscitados pela delegação
de poderes, v., por todos, A lexandre Soveral M artins, Os administradores delegados
das sociedades anônimas, Coimbra: Fora do Texto, 1998; I dem , «A responsabilidade dos
membros do conselho de administração por actos ou omissões dos administradores dele­
gados ou dos membros da comissão executiva», Boletim da Faculdade de Direito, 78
(2002), págs. 365 e segs.; I sabel M ousinho de Figueiredo , «O administrador dele­
gado (A delegação de poderes de gestão no direito das sociedades)», O Direito, 137
(2005), III, págs. 561 e segs.
74 0 Crime de Abuso de Informação Privilegiada

ria de uma sociedade anônima não significa, em si mesma, um alarga­


mento do elenco dos agentes típicos mencionados no artigo 378.°, n.° 1,
do CVM, porquanto os administradores delegados são recrutados entre
os membros do órgão de administração (artigo 407.° do CSC). Os
administradores delegados integram a categoria dos corporate insiders,
pois, de acordo com a disciplina jurídico-societária, só pode aceder ao
cargo de administrador delegado quem assumir a qualidade de admi­
nistrador.
A segunda nota toca as alterações introduzidas pela delegação de
poderes de gestão no modo como são tomadas as decisões. As deci­
sões sobre matérias incluídas na delegação deixam de ser tomadas
colegialmente no seio do conselho de administração. O novo centro
de decisão irá ser objecto de controlo e de fiscalização por parte
dos administradores não delegados. É o que resulta do artigo 407.°,
n.° 8, do CSC, quando este preceitua que «os outros administradores
são responsáveis, nos termos da lei, pela vigilância geral da actuação
do administrador ou administradores-delegados». Seguramente que
a actividade de fiscalização e o dever de intervenção — este último
a cargo do conselho de administração — pressupõem a circulação de
fluxos informacionais entre o órgão delegado e os administradores não
delegados. Existindo ã delegação da gestão corrente da sociedade, é
nevrálgico o papel dos fluxos informativos que entre estes dois pata­
mares de decisão se estabeleçam (,67). A recente reforma do direito
societário acolheu formal mente a figura do presidente da comissão

(167) A doutrina italiana, anterior à reforma de 2003 do Códice Civile, reconhe­


cia que, existindo delegação de funções de gestão, os não delegados tinham poderes de
inspecção e de informação. C fr, por todos, O reste C agnasso , Gli organi delegati
nella società per azioni. Profili funzionali, Torino: G. Giappichelli Editore, 1976,
págs. 100 e segs.; A lessandro Borgioli, L'amminisirazione delegata, Firenze: Nar-
dini Editore, 1982, págs. 267 e segs. Permaneciam, todavia, dúvidas sobre a delimita­
ção do núcleo da informação necessária e suficiente: cfr. Paolo M ontalenti, Persona
giuridica, gruppi di società, corporate governance, Pado va: Cedam, 1999, págs. 192
e segs. A reforma de 2003 (d.lgs. 17 gennaio 2003, n. 6) introduziu alterações no
artigo 2381 do Códice Civile e este passou a prever expressamente que «Gli amminis-
tratori sono tenuti ad agire in modo informato; ciascun amministratore può chiedere
agli organi delegati che in consiglio siano fomlte informazioni relative alia gestione
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterizaçao... 75

executiva. Com esta solução, deu-se um passo no sentido de impul­


sionar a circulação informativa entre o órgão delegado e o conselho
de administração. Ao presidente da comissão executiva compete,
entre outras funções, «assegurar que seja prestada toda a informação
aos demais membros do conselho de administração relativamente à
actividade e às deliberações da comissão executiva» (artigo 407.°,
n.° 6, do CSC). O que, como se percebe, é relevante para o exer­
cício dos deveres de vigilância e de intervenção previstos no
artigo 407.°, n.° 8, do CSC. Continua a não existir, todavia, a den-
sificação legal dos poderes que permitem a «vigilância geral da actua-
ção do administrador ou administradores-delegados ou da comissão
executiva» (168).
Interpõe-se, por último, a terceira nota. As alterações introduzi­
das pela delegação de poderes de gestão na organização da sociedade anô­
nima, se não implicam o alargamento dos sujeitos puníveis ao abrigo do
artigo 378.°, n.° 1, do CVM, incrementam a complexidade na tensão
entre, por um lado, imposições legais e de funcionamento da sociedade
a exigirem a circulação de informação e, por outro, a proibição penal de
os insiders transmitirem selectivamente informação privilegiada. A deli­
mitação das condutas típicas proíbe que os titulares do órgão de admi­
nistração transmitam a informação privilegiada ,a outrem. Se, por um
lado, esta proibição, à luz dos valores protegidos pelo crime de abuso de
informação, é sustentada porque visa deter a propagação, gerida selecti­
vamente, da informação privilegiada, por outro lado, se ela for exaspe­
rada, manifestar-se-á contraproducente e nefasta para o desenvolvimento
da actividade da entidade emitente. Várias normas da disciplina jurí-
dico-societária relativa à administração e fiscalização da sociedade
impõem que órgãos ou membros de órgãos alimentem fluxos informa-

della società». Sobre esta disciplina, cfr. C armine R omano, «Articolo 2381», AAVV,
La riforma delle società, Società per azioni. Società in accomandita per azioni, Tomo
I — Aitt. 2325-2422 cod. civ., a cura di Michele Sandulli e Vittorio Santoro, Torino:
G. Giapichelli, 2003, págs. 403 e segs.
(i6S) v. Defendendo, a este propósito, a aplicação analógica dos artigos 420.", n.° 2,
e 421.°, n.° 1, do CSC (na redacção anterior à reforma de 2006), v. Pedro Maia, Fun­
ção e funcionamento do conselho de administração da sociedade anônima, cit., pág. 270.
76 0 Crime de Abuso de Informação Privilegiada

donais, transmitindo informações a outros órgãos societários ou até a enti­


dades alheias à sociedade. Importa ajuizar em que medida tal disci­
plina se articula com a incriminação do abuso de informação que, entre
outras condutas, proíbe que titulares do órgão de administração e de
fiscalização transmitam a outrem informação privilegiada. Em outro
passo do nosso estudo, retomaremos esta questão aqui tão-só aflorada.

4.3. Á titularidade de uma participação no capital social do


emitente

Prevê o artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM que quem seja titu­
lar de participação no capital social do emitente assume a qualidade de
agente típico para efeitos do crime de abuso de informação (,69). Numa
primeira aproximação, é irrelevante a fracção do capital social detido pelo
sócio. Na verdade, o tipo não faz menção a qualquer percentagem (por
exemplo, 5% ou 10%) de capital social (como acontece em várias nor­
mas jurídico-societárias que regulam o estatuto dos sócios das socieda­
des anônimas) (I7°). Considerado o teor literal do artigo 379.°, n.° 1, alí­
nea a), do CVM, seja qual for a percentagem do capital social detida pelo
sócio, este adquire a qualidade de agente típico do crime de abuso de
informação. Introduzamos aqui alguns afinamentos analíticos.
A plutocracia subjacente ao princípio «uma acção um voto» ( l71)
determina que o governo da sociedade — ou talvez mais correctamente,

(ifií) para a anátise desenvolvida das diversas concepções de socialidade (feixe


de direitos, complexo de direitos, status ou posição jurídica pressuposto do surgimento
de direitos), veja-se, por todos, V. G. L obo X avier, ob. cit., págs. 176 e segs., nota 76.*
Na doutrina alemã, por todos, v. K arsten Schmidt , ob. c it, págs. 547 e segs.
(no) Veja-se, a título de exemplo, o direito dos sócios aos lucros. O artigo 21°,
n,° 1. alínea aj, do CSC contempla o direito de todo o sócio quinhoafnos lucros. Essa
participação é, na falta de disposição especial ou de convenção,em contrário, calculada
por referência ao valor nominal das participação no capital social. Sobre a actual dis­
ciplina societária do direito aos lucros e os problemas que ela levanta, cfr., por todos,
F ilipe C assiano dos S antos, «O direito aos lucros no Código das Sociedades Comer­
ciais (à luz de 15 anos de vigência)», AAVV, Problemas do direito das sociedades,
Coimbra: Almedina, 2002, págs. 185 e segs.
(,71) Artigo 384.°, n.° I, do CSC.
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 77

o controlo da sociedade — pertença aos sócios que detêm a maior frac-


Ção do capital social, ou seja, o maior número de acções. Como tem sido
vincado pela doutrina, a distinção entre a maioria e a minoria é de
índole quantitativa e qualitativa, porquanto, além de expressar as dife­
rentes percentagens de capital social detidas, refere as díspares funções
assumidas por sócios maioritários e sócios minoritários. Revela-se,
assim, a separação entre sócios empresários, sócios de controlo (os que
detêm a maioria ou, apesar de não a possuírem, obtêm o controlo da
sociedade) e sócios investidores (os que almejam aplicar as suas pou­
panças e colher os rendimentos) (172). A subscrição de acções ou a
aquisição sucessiva é, no primeiro caso, uma operação empresarial que,
de algum modo, pretende controlar ou concorrer no controlo. No
segundo caso, é uma alternativa de investimento ( 173): a acção é rendi­
mento potencial, seja este a percepção de dividendos, seja o aproveita­
mento das oscilações do preço que permitem obter o ganho resultante da
diferença entre o valor da aquisição e o da venda (174).
Aparentemente, o artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM não atri­
bui relevância imediata e directa à diversa posição que diferentes par­
ticipações no capital social conferem e, consequentemente, são acomo­
dados em uma mesma disciplina incriminadora titulares de participações
sociais quantitativa e qualitativamente díspares. O sócio maioritário e
aquele que detém uma participação relevante (cuja composição pode
variar de acordo com vários factos, por exemplo, se o capital social se
encontra muito disperso ou, ao invés, concentrado em poucos accionis-
tas) têm inegavelmente a possibilidade (pelo menos de facto) de conhe­
cer antecipadamente, designadamente através de contactos informais

(m ) FRANCESCO G algano, ob. cit., págs. 27 e segs. Entre nós, v. J. M. C outinho


de A breu, Da empresarialidade. As empresas no direito, Coimbra:. Almedina, 1996,
pág. 239; M. N ogueira S erens, ob. cit., págs. 7 e segs.
(173) Sobre o papel dos pequenos accionistas de grandes sociedades alemãs,
v. G ünter H. R oth , Handeis- und Gesellschafisrecht mit Grundzügen des Wertpapier-
rechts, 6. Auflage, München: Verlag Fianz Vahlen, 2001, págs. 253 e 254, rdn. 482.
(174) Sobre a ligação entre, por um lado, direitos e deveres dos accionistas e, por
outro, o interesse destes enquanto investidores nos mercados financeiros, v. K arsten
Schmidt, ob. cit., pág. 15.
*f

78 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada


"\C A U ■.!

com o órgão de administração, informações ainda não divulgadas e idô­


neas a influenciar o curso dos títulos. Já os pequenos accionistas — espe­
cialmente em grandes sociedades anônimas, com o capital disperso —
estão afastados dos círculos de controlo da sociedade e, consequente­
mente, é mais remoto o acesso a informação privilegiada (,75).
Contudo, para que se equacione a punição do sócio há-de mos­
trar-se que a informação privilegiada foi obtida devido à sua qualidade
de titular de uma participação no capital social do emitente. Exige-se,
*S- assim, um nexo causai entre a titularidade da participação social e a
obtenção da informação privilegiada. A mera «contextualidade crono­
lógica» (,76) entre a posse da informação e as operações realizadas pelo
sócio no mercado não é uma ligação por si só suficiente para a punição
i| :■ do sócio. Dito de outro modo: não basta o conhecimento de informa­
ção privilegiada — que pode ocorrer de uma forma casual e desligada
da qualidade de participante no capital social — e a contemporânea
negociação em bolsa. É necessário verificar-se o requerido nexo cau­
sai entre a posse da informação e a qualidade de accionista da sociedade
f'S l
anônima. A análise mais aprofundada vem mostrar que a consistência
I "‘ da participação social — embora não seja requisito expresso nem da
regulamentação comunitária nem da disciplina nacional — apresenta,

b
(,75) As diferenças entre sócios minoritários e maioritários aconselham, segundo
Bartalena. a eliminação de qualquer referência formal aos sócios e a punição do accio­
nista maioritário como íippee ou como administrador de facto. Esta proposta — avan­
çada, ainda, à luz da legge de 17 de Maio de 1991, n. 157 — assenta no pensamento
de que só se justifica a qualificação como insiders quanto aos accionistas que assu­
mem uma posição de controlo ou de relevo no interior da sociedade, porque estes man­
têm uma ligação constante, quase institucional, com os administradores, por força da qual
se estabelece um fluxo de informações privilegiadas dos segundos para os primeiros. Cfr.
A ndréa B artalena, ob. ciu, pág. 294. O artigo 184 ° do Testo Unico delia Finanza
(decreto legislativo 24 febbraio 1998, n. 58), relativo ao crime de «Abuso di informa-
zioni privilegiate» (na redacção introduzida pela Legge 18 aprile 2005, n. 62, que trans­
pôs para a ordem jurídica italiana a Directiva 2003/6/CE), continua a referir a «parte-
cipazione al capitale deli’emitente» sem fazer qualquer destrinça quanto à dimensão ou
n; ■' consistência de tal participação.
(’76) A locução é usada por S érgio S eminara, «Articolo 180. Abuso di infor-
mazionj privilegiate», Testo Unico delia Finanza (d.lgs. 24 febbraio 1998, n. 58), Com-
mentario diretto da Gian Franco Campobasso, Torino: Utet, 2002, pág. 1454.

f
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 79

de forma mediata, relevo na fabricação do crime de abuso de informa­


ção (177).

4.3.1. O relevo típico da distinção entre unidades de partici­


pação em organismos de investimento colectivo e par­
ticipações sociais

É dado indesmentível que emerge uma nova «classe empresa­


rial» (178), integrada nos chamados investidores qualificados (,79). Ins­
tituições de crédito, empresas de investimento, empresas de seguros ou
instituições de investimento colectivo e respectivas sociedades gestoras
integram, além de outras, a lista de entidades (t8°) cuja actividade é,
de uma maneira geral, a captação do aforro dos particulares para, de
modo profissionalizado e especializado, o investir. E, justamente, um dos
destinos dos recursos obtidos pela captação do aforro público é a subs­
crição de acções em sociedades anônimas. Estes investidores qualificados,
dotados de um profundo conhecimento dos mercados financeiros, res­
pondem ao interesse dos aforradores em que a aplicação das suas pou­
panças seja objecto de decisões acertadas. Organizada e portadora de
interesses próprios, a actividade dos investidores qualificados alimenta-se
da informação sobre a sociedade anônima que permita traçar uma pros-
pectiva sobre a evolução da empresa e as potencialidades do investimento
realizado. Não se estranha, por isso, que o artigo 392.°, n.° 8, do CSC

( l77) Salienta Hopt que sócios com menos de 10% do capital social raramente
terão acesso, em razão da sua participação social, a informação privilegiada. Cfr. K laus
J. H opt, «The european insider deaiing directive», cit., pág. 63.
(17S) M N ogueira S erens, ob. cit., pág. 7.
(*-79) Sobre este tema, à luz da anterior redacção do artigo 30." do CVM, cfr. José
de O liveira A scensão , «A protecção do investidor», AAVV, Direito dos Valores Mobi­
liários, Volume IV, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, págs. 13 e segs.; Isabel A le ­
xandre , «Investidor institucional, não institucional equiparado e investidor comum»,
AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume V, Coimbra: Coimbra Editora, 2004,
págs. 9 e segs,
(!80) a ijSta dos investidores qualificados (anteriormente designados «investido­
res institucionais») foi substancialmente dilatada seja pelo alargamento das entidades direc-
tamente previstas no artigo 30.° do CVM seja pela qualificação facultativa dependente
de regulamento da CMVM.
80 O Crime de Abuso de informação Privilegiada

imponha que nas sociedades com subscrição pública seja obrigatória a


inclusão no contrato de sociedade de regras especiais de eleição (181) que
garantam a representação de minorias no conselho de administração (182).
Ainda que, deste modo, a minoria não tenha poder para controlar o
conselho de administração, tem, seguramente, o poder de acompanhar,
a partir do interior do órgão de administração, a gestão da sociedade em
que foram efectuados investimentos (183).
Do riquíssimo universo do investimento qualificado, destacamos
dois aspectos. Umas vezes, a actuação dos investidores qualificados
está suportada na titularidade das participações sociais — o investidor
toma-se accionista de sociedades anônimas e exerce os direitos societários
conferidos por tais participações sociais. Será, por exemplo, o caso em
que uma sociedade financeira de corretagem («dealer») adquire acções
para a sua carteira própria e, em razão de tal titularidade, exerce os
inerentes direitos societários Do ponto de vista da incriminação do abuso
de informação, o que em geral há que questionar é se as pessoas colec-
tivas que integram os órgãos de administração e de fiscalização ou que
são titulares de participações sociais são agentes típicos deste crime.
A interrogação em torno das pessoas colectivas é um nódulo proble­
mático que, embora tocando o problema da titularidade de participa­
ções sociais, é mais vasto e merece, portanto, o tratamento unitário que
lhe dedicamos em outro passo do nosso estudo.
Há, ainda, instrumentos legais de enquadramento do investimento
institucional que operam «ia piú completa “dissociazione fra proprietà e
controllo delia ricchezza”» (184) e, nestes moldes, o exercício dos direi­

(m ) Sobre as regras especiais de eleição contempladas no artigo 392“ do CSC,


v. R aúl V entura , Estudos vários sobre sociedades anônimas, Coimbra: Almedina,
1992, págs. 515 e segs.
(182) Defendendo que este regime vai ao encontro dos interesses dos investido­
res institucionais (investidores qualificados na nova designação), v. P edro M aia, Fun­
ção e funcionamento do conselho de administração, cit., págs, 304 e segs,
(183) Veja-se, para outras manifestações da actuação dos investidores institucio­
nais, G audencio E steban V elasco , «Una nueva manera de entender e impulsar la
evolución dei sistema de gobiemo de las sociedades cotizadas?», Revista de Derecho de
Sociedades, 1998, pág. 30.
(1B4) F rancesco G algano, ob. cit., pág. 48.
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 81

tos societários inerentes a participações sociais não se encontra susten­


tado na titularidade. Mais. Os titulares das participações sociais estão
legalmente privados do direito de exercer os direitos societários que
elas conferem — encabeçam, nas palavras de Galgano, «una proprietà
dei tutto inerte» (,85) — ou de influenciar a gestão de tais bens. E o que
acontece, justamente, com as acções que integram os fundos de inves­
timento hetero-geridos por sociedades gestoras de fundos de investi­
mento mobiliário. Como resulta expressamente da lei, «Os fundos de
investimento são patrimônios autônomos, pertencentes aos participantes
no regime especial de comunhão regulado no presente diploma» (artigo 4.°,
n.° 2, do Decreto-Lei n.° 252/2002, de 17 de Outubro, que aprova o
regime jurídico dos organismos de investimento colectivo) (186). As
sociedades gestoras dos fundos de investimento exercem os direitos
societários correspondentes às acções que integram o fundo, mas não são
titulares de tais participações sociais. Do ponto de vista do crime de
abuso de informação, importa questionar se os participantes nos fun­
dos de investimento mobiliário — por serem titulares de unidades de par­
ticipação — são agentes típicos para efeitos do crime de abuso de infor­
mação previsto e punido pelo artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM. É o
que procuraremos apurar de imediato, por intermédio do confronto dog­
mático entre participação social em instituições societárias e unidades de
participação em fundos de investimento.
Ligadas geneticamente aos fundos de investimento, as unidades de
participação conferem ao seu titular — designado participante, como
resulta do artigo 9.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 252/2003, de 17 de Outu­
bro — , entre outros, o direito ao recebimento do resgate, do reembolso

(l8i) F rancesco G algano, ob. cit., pág. 48.


(18fi) Está separada a regulação dos fundos de investimento em valores mobiliá­
rios e fundos de investimento imobiliários. Os primeiros encontram-se regulados pelo
Decreto-Lei n,“ 252/2003, de 17 de Outubro, e os segundos pelo Decreto-Lei n.° 60/2002,
de 20 de Março. São estruturas de investimento similares, separadas pelo diferente
objecto. Também neste sentido, v. C arlos C osta P ina, ob. cit., pág. 423. Sobre os fun­
dos de titularização de créditos e as unidades de titularização, no contexto do com­
plexo processo de titularização ou securitização de créditos, v. J oão C alvâo da S ilva,
Titulfarizjação de créditos. Securitization, 2.“ edição, Coimbra: Almedina, 2005, págs. 51
e segs. e 123 e segs.
6
82 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

ou do produto da liquidação das unidades de participação (artigo 10.°


do Decreto-Lei n.° 252/2003) (187). Vejamos mais de perto esta realidade.
Segundo a definição legal, são organismos de investimento colectivo
— de que os fundos de investimento são uma expressão (l88) — «as
instituições, dotadas ou não de personalidade jurídica, que têm como
fim o investimento colectivo de capitais obtidos junto do público, cujo fun­
cionamento se encontra sujeito a um princípio de divisão de riscos e à
prossecução do exclusivo interesse dos participantes» (artigo l.°, n.° 2, do
Decreto-Lei n.° 252/2003). Da perspectiva do aforrador/participante, as
vantagens de canalizar o seu aforro para os fundos de investimento são, por
um lado, a referida divisão dos riscos, e, por outro, o acesso a mercados
financeiros onde o investidor individual teria dificuldade em operar. Bene­
ficia, ainda, o aforrador/investidor de uma gestão profissionalizada, dotada
de expertise e competência, remunerada a custos suportáveis, das suas
poupanças. Enfrentará, contudo, a desvantagem de não poder interferir na
gestão dos fundos. Os fundos de investimento são «patrimônios autôno­
mos, pertencentes aos participantes no regime especial de comunhão (...)»
(artigo 4.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 252/2003). Tal patrimônio é «repre­
sentado por partes sem valor nominal, que se designam por unidades de

(,S7) Nos fundos de titularização de créditos não é conferido o direito ao resgate.


No entanto, segundo o artigo 33.° do Decreto-Lei n.° 453/99, de 5 de Novembro, o
regulamento de gestão pode prever o reembolso antecipado parcial ou integral de uni­
dades de titularização, observada que se encontre a igualdade de tratamento dos deten­
tores de unidades da mesma categoria. Defende J oão C alvão da S ilva, ob. cit.,
pág. 131, que o reembolso antecipado de unidades de titularização pode ser aproxi­
mado a um «sucedâneo do direito de resgate».
(18S) A noção.de organismos de investimento colectivo é mais ampla do que a
de fundos de investimento. Da primeira fazem parte as sociedades de investimento e
os fundos de investimento (artigo 4.°, n.“ 1, do Decreto-Lei n.° 252/2003). O artigo 4.°,
n.° 3, do mesmo diploma remete a regulação das sociedades de investimento mobiliá­
rio para legislação especial. E, justamente, enquanto não for publicada a legislação sobre
estas sociedades, na prática, o regime jurídico continua a contemplar, exclusivamente,
os fundos de investimento. Sobre alguns dos aspectos característicos das sociedades
de investimento de capital variável, v. R enato G onçalves, «Breves notas justificativas
da introdução de sociedades de investimento de capital variável no ordenamento jurí­
dico português», Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, 17 (2003), págs. 169
e segs.
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 83

participação» (artigo 7.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 252/2003). Cada uni­


dade de participação em fundos de investimento consubstancia a posição
jurídica do participante (,89), globalmente considerada; é essa posição
assim entendida que surge representada em certificados ou assume forma
escriturai (artigo 7.° do Decreto-Lei n.° 252/2003). Impõe a lei que o
fundo de investimento seja hetero-gerido por uma entidade gestora.
O regime jurídico dos fundos de investimento opera a separação entre a
propriedade e a gestão, dissociação que se manifesta, designadamente, na
proibição de emissão de instruções à entidade gestora. Os participantes no
fundo do investimento — que não podem interferir na autonomia que é
reconhecida à entidade gestora — têm, todavia, o amparo da lei quando
esta impõe que a gestão do fundo se paute pela tutela do interesse daque­
les. A autonomia da entidade gestora manifesta-se na selecção dos acti-
vos que integram o fimdo de investimento, na gestão de tais activos e
ainda no exercício dos direitos relacionados com a carteira de que o fundo
dispõe (artigo 31.° do Decreto-Lei n.° 252/2003).
As unidades de participação em fundo de investimento não são
participações sociais. Embora a afirmação anterior — tendo em conta
o propósito de recortar os agentes típicos do crime de abuso de infor­
mação — vinque a distinção entre estas duas realidades, é claro que o
confronto entre elas não deixa de desvendar pontos de contacto, espe­
cialmente se o cotejo visar, por um lado, as unidades de participação e,
por outro, as acções de sociedades anônimas. Ambas são valores mobi­
liários (190) (artigo l.°, alíneas a) e d), do CVM), susceptíveis de serem
admitidas à cotação (I91) e representativas de direitos dos seus titulares.
A titularidade de unidades de participação confere direitos ao seu titu­

(1B9) C arlos O sório de C astro , Valores mobiliários. Conceito e espécies,


2* edição, Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1998, pág. 207.
(I90) Sobre as unidades de participação enquanto valores mobiliários (à luz, con­
tudo, do direito pretérito), cfr. C arlos O sório de C astro , Valores mobiliários, cit.,
págs. 204 e segs.; A lexandre B randão da Veiga , Fundos de investimento mobiliário
e imobiliário (regime jurídico), Coimbra: Almedina, 1999, págs. 307 e segs.
(m ) V. o Regulamento da CMVM n.° 15/2003, publicado no Diário da República,
II Série, de 21 de Janeiro de 2004, e no Boletim da CMVM, n.° 128, Dezembro de
2003. Também disponível em www.cmvm.pt.
84 0 Críme de Abuso de Informação Privilegiada

lar, como sejam o direito à informação e ,o direito ao recebimento do res­


gate, do reembolso ou do produto de liquidação das unidades de parti­
cipação (artigo 10.°, n.° 2. do Decreto-Lei n.° 252/2003). Já as acções
conferem direitos — lembre-se que os direitos inerentes às acções da
mesma sociedade não têm de ser necessariamente todos iguais (192) —
que permitem, pelo menos teoricamente, intervir nos destinos da socie­
dade, seja pela participação nas deliberações sociais e exercício do
direito de voto, seja pelo direito de ser designado para os órgãos de
administração e de fiscalização da sociedade. Para os accionistas inves­
tidores, as acções representam essencialmente um investimento que espe­
ram que seja compensado, seja pela percepção dos dividendos, seja pela
transmissão em mercado ( l93). E, portanto, poder-se-ia dizer que, em
alguns aspectos, a atitude dos accionistas investidores se aproxima da dos
participantes nos fundos de investimento, porque o estímulo que os
impulsiona é a percepção dos rendimentos que as acções ou as unida­
des de participação potencialmente conferem.
Se este é um diagnóstico que reputamos correcto, não pode ele, sob
pena de subverter a distinção que a lei acolhe, apagar ou esquecer a dis­
tinção entre unidades de participação e participações sociais. Distin­
ção que é jurídico-penalmente relevante para efeitos da delimitação
típica dos agentes do crime de abuso de informação. A participação
social pode ser definida como «o conjunto unitário de direitos e obri­
gações actuais ou potenciais do sócio (enquanto tal)» (I94). A uni­
dade de participáção representa uma parte do patrimônio autônomo
pertencente aos participantes em regime de comunhão. Ainda que a qua­
lidade de participante no fundo de investimento envolva a titularidade
de certos direitos, é seguro que os participantes não gozam do direito

(I92) É o que resulta do artigo 302.°, n.° 1, do CSC: «Podem ser diversos, nomea-
damente quanto à atribuição de dividendos e quanto à partilha do activo resultante da
liquidação, os direitos inerentes às acções emitidas pela mesma sociedade». Vejam-se
ainda os artigos 302.°, n." 2, e 272.°, alínea c), do CSC e artigo 45.° do CVM.
(!M) Sobre as acções preferenciais sem voto, vejam-se os artigos 341.“ a 344."
do CSC.
(!W) J. M. C olftinho DE A breu , Curso de direito comercial, Volume II, cií.,
pág. 205.
4. O relevo da ligaçao institucional ao emitente na caracterização... 85

de gerir ou de determinar ou condicionar a gestão dos activos que


compõem o fundo de investimento (195). Ora, a titularidade de acções
determina que o accionista possa decidir sobre o exercício dos direitos
que elas conferem. Por outro lado, os fundos de investimento são
organismos de investimento colectivo não personalizados — são patri­
mônios autônomos —, enquanto as sociedades anônimas «gozam de per­
sonalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo
definitivo do contrato pelo qual se constituem» (artigo 5.° do CSC).
A esta distinção material, assente na diferente natureza das entidades
e no diferente conteúdo das posições jurídicas, acresce ainda um argu­
mento formal. Prende-se ele com a distinção formal que o CVM, no
contexto do rol dos valores mobiliários, faz entre acções (artigo l.°, alí­
nea a), do CVM) e unidades de participação em instituições de inves­
timento colectivo (artigo l.°, alínea d), do CVM). Separação formal que
expressa a diferente natureza e conteúdo das unidades de participação
e acções (190).
Da distinção entre unidade de participação e participação social
(acções) resulta que os titulares das primeiras não integram o elenco dos
agentes típicos do crime de abuso de informação, previsto no artigo 378.°,
n.° 1, alínea a), do CVM. Não são titulares de um órgão de adminis­
tração ou de fiscalização nem são titulares de uma participação social.
Os participantes nos fundos de investimento são titulares de unidades de
participação. Deste modo, se em razão da sua qualidade de partici­
pantes em um fundo de investimento obtiverem informações privile­
giadas sobre determinado valor mobiliário ou instrumento financeiro,
não se lhes aplica a incriminação típica prevista no artigo 378.°, n.° 1,

(195) V. artigo 31", n.° 2, alínea a), iii), do Decreto-Lei n.° 252/2003, de 17 de
Outubro.
( 196) Se os organismos de investimento colectivo fossem geridos pelas socieda­
des de investimento mobiliário — que no direito comparado têm recebido o nome de
«sociedades de investimento de capital variável» — os investidores assumiríam, cumu­
lativamente, o estatuto de participantes e de accionistas. Ao abrigo da qualidade de accio­
nistas, os investidores deteriam uma participação social e poderíam exercer os direitos
inerentes. Estes são dados recolhidos no direito comparado. Entre nós, ainda não foi
publicada a legislação especial sobre as sociedades de investimento mobiliário (v. o
artigo 4." do Decreto-Lei n.° 252/2003, de 17 de Outubro).
86 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

alínea a), do CVM. Já os administradores da sociedade gestora dos


fundos de investimento ou os administradores da entidade depositária que,
em razão das suas funções, obtiverem informações privilegiadas sobre
determinado valor mobiliário — pense-se, por exemplo, em informações
obtidas em reuniões informais entre administradores da sociedade ges­
tora do fundo de investimento e membros do conselho de administração
ou da direcção de determinada sociedade anônima — estarão, em prin­
cípio, abrangidos pelas proibições do crime de abuso de informação.
Repare-se que não é inverosímil.que o administrador da sociedade ges­
tora de fundos de investimento obtenha informações privilegiadas tendo
em conta, por exemplo, que em sociedades abertas a lei impõe, em
matéria de eleição de administradores, a adopção de regras especiais
que estão vocacionadas para a formação de uma «administração plura­
lista» (,97). Imposição que vai ao encontro dos interesses dos investi­
dores qualificados que, ainda que minoritários, estão organizados na
defesa dos seus interesses.

4.4. A questão da punibilidade dos administradores de facto

Em diversos domínios, a figura do administrador de facto vem


adquirindo visibilidade legal. E tal visibilidade já chegou também ao
direito penal (198). Veja-se, a título de exemplo, no capítulo relativo
aos crimes contra direitos patrimoniais, a punição de «quem tiver exer­
cido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva», pela prática dos
crimes de insolvência dolosa (artigo 221.°, n.° 3, do Código Penal),

(197) M. N ogueira S erens, ob. cit., pág. 10.


(m ) A doutrina italiana assinala que a expressão administrador de facto surgiu,
precisamente, no contexto da jurisprudência penalística para sancionar como culpados
pelo crime de «bancarrotta» os sujeitos que, não sendo formalmente administradores, de
facto exerciam poderes de gestão. Esta orientação jurisprudencial foi consolidada em
Itáliá ao ponto de, especi ficamente quanto ao crime de «bancarrotta», se ter atingido a
equiparação entre administrador de facto e de direito. Sobre este ponto, na doutrina
italiana, v. F ranco B onelli, «La responsabilità degli amministratori», Trattato delle
società per azioni (Diretto da G. E. Colombo e G. B. Portale), 4, Torino: Utet, 1991,
págs. 399 e segs.
4. O relevo da ligação institucional ao emitenie na caracterização... 87

frustração de créditos (artigo 227.°-A do Código Penal), insolvencia


negligente (artigo 228.° do Código Penal) e favorecimento de credores
(artigo 229.° do Código Penal).
A circunstância de, como tem sido reconhecido, o administra­
dor de facto desempenhar funções de administração com o grau de
autonomia comparável à dos administradores de direito (199) implica
que se questione se, para efeitos do crime de abuso de informação,
os referidos administradores de facto adquirem a qualidade de agen­
tes típicos. Parece não suscitar dúvidas que o artigo 378.°, n.° 1,
alínea a), do CVM, ao referir a «qualidade de titular de um órgão de
administração», contempla, justamente, os que beneficiam de um
título que juridicamente suporta o ingresso no órgão de administra­
ção e ao abrigo do qual são exercidas as suas funções. Os adminis­
tradores de facto, embora desempenhando materialmente funções de
gestão da sociedade, não têm título ou não têm título bastante para
o fazer. Do ponto de vista jurídico-penal, há que questionar se os
administradores de facto são abrangidos pela incriminação prevista no
artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM. Ou se, pelo contrário, a equi­
paração que acabámos de equacionar (e, consequentemente, o alar­
gamento das margens de punibilídade do crime de abuso de infor­
mação) está vedada pelo princípio da legalidade criminal, mais
propriamente, pela proibição da analogia in malam partem. O prin­
cípio de garantia inscrito na proibição de analogia impõe, sem mar­
gem para dúvidas, que se repudie o alargamento do crime previsto no
artigo 378.°, n.° 1, alínea a), a pessoas que exerçam de facto a acti-
vidade de administração da sociedade. Só deste modo se dá cum­
primento às imposições constitucionais e jurídico-penais de garantia
dos cidadãos contra arbitrárias ou discricionárias limitações dos direi­
tos fundamentais (200).

( '" ) Sobre esta questão, v. J. M. Coutinho de A breu / E lisabete Ramos, «Res­


ponsabilidade civil de administradores e de sócios controladores», Miscelâneas, n.° 3,
Coimbra: IDET/Almedina, 2004, págs. 40 e segs.
í200) Permanece, todavia, a legitimidade de punir este agente ao abrigo do
artigo 378.°, n.° 2, do CVM.
88 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

4 .5 . A interrogação em torno da punibilidade das pessoas


colectivas titulares de participações sociais, designadas
administradores ou que integrem o órgão de fiscalização

Pode acontecer que pessoas colectivas integrem os órgãos de admi­


nistração e de fiscalização e, não raras vezes, são titulares de participa­
ções sociais no capital social de emitentes (201). Uma pessoa colectiva
pode ser designada administrador de uma sociedade (artigo 390.°, n.° 4,
do CSC) (202); uma sociedade de revisores oficiais de contas (pessoa
colectiva, portanto) pode integrar o órgão de fiscalização das sociedades
anônimas (artigos 413.° e 414.°, n.os 1 e 2, do CSC) (203). As pessoas
colectivas podem ser designadas membros do conselho de administração
executivo (artigo 425.°, n.° 8, do CSC) e podem integrar o conselho
geral e de supervisão (artigo 434.°, n.° 3, do CSC). Urge questionar se
as pessoas colectivas que tenham as características exigidas pelos tipos
são agentes típicos do crime de abuso de informação. Esta questão
toca, de modo directo, a complexa teia de interrogações em tomo da res­
ponsabilidade penal das pessoas colectivas. Vejamos mais de perto.
Se o direito penal manifestou reservas em aceitar que as pessoas
colectivas pudessem ser responsabilizadas criminalmente, nos últimos anos,
é através do horizonte do direito penal econômico que se tem teorizado de
maneira consequente a responsabilidade penal das pessoas colectivas. Do
ponto de vista jurídico-positivo, essa responsabilidade penal existe no
campo do direito penal econômico, desde os princípios dos anos oitenta f204).
Por conseguinte, como é fácil de ver, o problema que antes equacionára­

í201) As pessoas colectivas privadas e públicas podem participar no acto consti­


tuinte de sociedades (tomando-se, desse modo, sócias), v. J. M. C outinho DE A breu,
Curso de direito comercial, Volume II, cit., págs. 94 e segs. Também acontece que, em
momento posterior ao da constituição da sociedade, pessoas colectivas privadas e públi­
cas se tomem titulares de participações sociais.
í202) Sobre o problema de saber se as pessoas colectivas designadas administra­
dores de sociedades anônimas adquirem a qualidade de administradores, v. M. N ogueira
S erens, ob. cit., págs. 55 e segs.
f203) Sobre as sociedades de revisores oficiais de contas, v. o Decreto-Lei
n.° 487/99, de 16 de Novembro (artigos 94° a 122").
í20*) Veja-se o Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro,
4. O relevo da ligaçao institucional ao emitente na caracterização... 89

mos não pode ser resolvido à luz do princípio societas delinquere non
potest. Porquanto é, justamente, do âmbito do direito penal econômico —
área de incriminação em que o abuso de informação se insere — que tem
saído um contributo relevante para a sustentação da responsabilidade penal
das pessoas colectivas. O problema da responsabilidade penal das pessoas
colectivas é hoje um dado para o direito penal dos nossos dias (205).
Fica, assim, completamente inviabilizada a resposta que assentasse
na tradicionalmente aceite irresponsabilidade penal das pessoas colecti­
vas. Outro caminho deverá ser procurado. Sabendo que as pessoas
colectivas são susceptíveis de serem centros de imputação penal — já
vimos que essa responsabilidade é uma realidade entre nós desde os
anos oitenta —, há que avançar no sentido de apurar se as pessoas
colectivas são agentes do crime de abuso de informação, tal como ele
se encontra tipificado pelo artigo 378.° do CVM. Esta norma incrimi-
nadora, na caracterização dos agentes típicos, não apresenta uma restri­
ção expressa às pessoas singulares nem o alargamento explícito das
margens de punibilidade até às pessoas colectivas. A resolução do pro­
blema que suscitámos passa pela convocação da conexão sistemática
com o artigo 1L.° do Código Penal. Preceitua esta disposição que «Salvo
disposição em contrário, só as pessoas singulares são susceptíveis de
responsabilidade penal». Inexistindo uma disposição que alargue a puni­
ção por crime de abuso de informação às pessoas colectivas, só as pes­
soas singulares são susceptíveis de responsabilização penal pela prática
deste crime (206). Resta-nos, pois, concluir que a não punição das pes­

(203) Para a fundamentação da responsabilidade penal das pessoas colectivas,


veja-se, desenvolví damente, J osé de Faria C osta, Direito penal econômico, cit., pág. 51.
e, ainda, o estudo especialmente dedicado a esta matéria intitulado «A responsabilidade
jurídico-penal da empresa e dos seus óigãos (ou uma reflexão sobre a aíteridade nas pes­
soas colectivas, à luz do direito penal)», cit., págs. 501 e segs.
í206) Entre nós, a norma incriminadora do abuso de informação cinge-se a con­
dutas dolosas praticadas por pessoas singulares. As novas exigências de tutela da Direc-
tiva 2Q03/6/CE foram cumpridas por intermédio das contra-ordenações. Assim, emitentes
que violem a proibição de transmissão e do uso de informação privilegiada fora do
âmbito normal de funções, com dolo ou negligência, serão objecto de responsabilidade
contra-ordenacional (artigos 248.°, n.° 4, e 394.°, n.° 1, alínea i). do CVM). Admite-se,
ainda, que as pessoas colectivas sejam demandadas civilmente em processo penal, para
90 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

soas colectivas pelo crime de abuso de informação constitui uma opção


político-criminal que poderá, em outra conjuntura, sofrer alterações.
Em conclusão: a) para efeitos do crime de abuso de informação, só
as pessoas singulares são sujeitos de punição criminal; b) as pessoas
colectivas poderão, no entanto, ser responsabilizadas pela prática de
contra-ordenações quando o facto relevante for um ilícito de mera orde­
nação social (207).

4.6. O artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM e a irrelevância


jurídico-penal de certas ligações institucionais ao emitente

A ligação institucional à sociedade, facultada pelo exercício de outros


cargos — que não a qualidade de órgão de administração ou de fiscalização
da sociedade — pode, também ela, propiciar a obtenção de informação pri­
vilegiada. Levanta-se aqui, do ponto de vista do crime de abuso de infor­
mação, o problema de saber se o presidente da mesa da assembléia geral
pode ser considerado como corporate insider e, em consequência, punido
ao abrigo do artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM. O exercício do
cargo de presidente da mesa da assembléia geral integra este agente na
estrutura organizatória da sociedade anônima, faculta-lhe o acesso pró­
ximo a fluxos informacioiiais relativos à sociedade e confere-lhe compe­
tências relevantes como sejam a convocação da assembléia geral e o
poder de zelar pelo regular funcionamento da reunião de sócios,
O presidente da mesa da assembléia geral não integra o rol dos
agentes típicos previstos pelo artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM f208).

efeitos dc apreensao de vantagens do crime e reparação de danos, na exacta medida em


que a sua carteira de activos esteja envolvida nos factos criminosos (artigo 378.°, n.° 7,
do CVM).
(207) É o que resulta do artigo 401.° do CVM, relativo à responsabilidade pelas
contra-ordenações. De acordo com o n.° 1 do artigo.401.°, «Pela prática das contra-orde­
nações previstas neste Código podem ser responsabilizadas pessoas singulares, pessoas
colectivas, independentemente da regularidade da sua constituição, sociedades e asso­
ciações sem personalidade jurídica».
(208) Defendendo que o presidente da assembléia geral constitui um órgão distinto
do órgão de administração e de fiscalização da sociedade, v. Pedro Maia, «O presidente
das assembléias de sócios», AAVV, Problemas do direito das sociedades, Coimbra;
IDET/Almedina, 2002, págs. 424 e 425.
4. O relevo da ligaçao institucional ao emitente na caracterização... 91

Deste modo, pese embora a sua ligação institucional à sociedade, falham,


quanto ao presidente da mesa da assembléia geral, as qualidades típicas
exigidas pelo artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM. O princípio da lega­
lidade criminal — que, entre outros perfis, proíbe a aplicação analó­
gica das normas legais que tipificam crimes e prevêem penas — impede
que se alargue a incriminação a titulares de outros órgãos que não os
que se encontram referidos na lei. Esse alargamento das margens de
punibilidade violaria o princípio da legalidade criminal, consagrado no
artigo 29.° da Constituição da República Portuguesa e no artigo l.° do
Código Penal. Por estas razões, a norma incriminadora do artigo 378.°,
n.° 1, alínea a), do CVM não pode ser alargada de modo a nela fazer
incluir o presidente da mesa da assembléia geral da sociedade anônima.
Na sequência da afirmação anterior, perguntar-se-á: que relevo penal
assume a conduta do presidente da mesa da assembléia geral que usa
informação privilegiada que, em razão do exercício do cargo, obteve
junto dos membros do órgão de administração ou de fiscalização? É tal
conduta atípica para efeitos do crime de abuso de informação? Vejamos.
A circunstância de o caigo de presidente da mesa da assembléia geral não
integrar o elenco dos corporate insiders não significa, de imediato, que
lhe seja jurídico-penalmente permitido mercadejar as informações reser­
vadas e sensíveis que, no exercício do seu cargo, obtenha junto dos
agentes típicos previstos no artigo 378.°, n.° i, alínea a), do CVM.
Só que a previsão que incrimina esse comportamento já não é o
artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM — norma que recorta os corpo­
rate insiders — mas sim a norma do artigo 378.°, n.° 2, do CVM.
Este juízo de tipicidade da referida conduta do presidente da mesa da
assembléia geral encerra importantes consequências prático-jurídicas,
porquanto a moldura penal do artigo 378.°, n.° 2, é menos severa do que
a que resulta do artigo 378.°, n.° 1, do CVM (209).

í2®) Antes de avançar, uma brevíssima nota sobre o secretário da sociedade.


As sociedades emitentes de acções destinadas à negociação em mercado regulamen­
tado devem designar um secretário da sociedade e um suplente (artigo 446,°-A do
CSC), sendo que o secretário é responsável civil e criminalmente pelos actos que
praticar no exercício das suas funções (artigo 446.°-F do CSC). É certo que as fun­
ções do secretário da sociedade são de carácter burocrático-administrativo, como
92 0 Crime de Abuso de Informação Privilegiada

4.7. Outros agentes do crime de abuso de informação

O estudo dos agentes típicos do crime de abuso de informação não


pode ser encerrado sem que antes sejam analisados os sujeitos referidos
no artigo 378.°, n.° 1, alíneas b), c) e d), e n.° 2, do CVM, Se no ponto
anterior tratámos os agentes que mantêm ligações institucionais (integram
a estrutura organizatória do emitente) com o emitente, neste passo do
nosso trabalho curaremos dos agentes cuja ligação com o emitente é
temporária ou esporádica ou que, de todo o modo, são remetidos para
a categoria dos outsiders (em que não releva a ligação institucional).
O artigo 378.°, n.° 1, alíneas b) e c), do CVM contempla os tem-
porary insiders e insiders não institucionais, ou seja, sujeitos que, em
razão do trabalho ou serviço que prestem, com caracter permanente ou
ocasional, ou em virtude de profissão ou função pública, dispõem de
informação privilegiada. Estes sujeitos, como se capta no artigo 378.°,
n.° 1, do CVM, são punidos com pena idêntica àquela em que incorrem
os corporate insiders, embora, em alguns casos, mantenham uma liga­
ção perfeitamente ocasional ou esporádica com a entidade emitente
(como é o caso dos temporary insiders). Na sequência da Directiva
2003/6/CE, foi alargado o elenco dos agentes típicos do crime de abuso
de informação. O artigo 378.°, n.° 1, alínea d), do CVM incrimina
«Quem disponha de informação privilegiada que, por qualquer forma,
tenha sido obtida através de um facto ilícito ou que suponha a prática
de um facto ilícito». Urge avaliar esta recente intervenção penal à luz
do princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo 29,° da Cons­
tituição da República Portuguesa. Uma das vertentes fulcrais deste prin­
cípio constitucional é, precisamente, a exigência de determinabilidade dos
elementos do tipo legal de crime. Para que o cidadão possa apreender
e captar as prescrições penais, é imprescindível que sejam «objectivamente

resulta do artigo 446.°-B do CSC. Não está, de todo, afastada a possibilidade de, por
motivo das suas funções, obter informação privilegiada. Se o secretário da socie­
dade, com base nessa informação, praticar alguma das condutas recortadas no
artigo 378.° do CVM, será punido ao abrigo da alínea a) do n.° 1? Parece que não,
porque o secretário da sociedade não reúne as características típicas previstas nessa dis­
posição. Contudo, poderá ser punido ao abrigo do artigo 378.° do CVM.
4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização... 93

determináveis os comportamentos proibidos e sancionados» (210). É a


necessária determinabilidade do tipo legal — exigência constitucional con­
sagrada no artigo 29.° da CRP — que não está cumprida na parte final
do artigo 378.°, n.° 1, alínea d), do CVM. Submeter ao crime de abuso
de informação «quem disponha de informação privilegiada que (...)
suponha a prática de um facto ilícito» viola o principio da legalidade cri­
minal, por não cumprir a determinabilidade dos elementos do tipo. Por
conseguinte, afigura-se-nos inconstitucional a última parte do artigo 378.°,
n.° 1, alínea d), do CVM.
Consideremos, agora, os agentes referidos no artigo 378.°, n.° 2,
do CVM. De modo a surpreender o sentido da evolução legislativa
neste matéria, convoque-se o elemento histórico da interpretação e esta­
beleça-se o cotejo entre a actual redacção do artigo 378.°, n.° 2, do
CVM e a do n.° 3 da anterior versão do artigo 378.° do CVM. Ao
abrigo do pretérito n.° 3, do artigo 378.° do CVM, a punição do tippee
exigia que este tivesse obtido informação junto de certas fontes: as pes­
soas indicadas nos n.os 1 e 2. O actual artigo 378.°, n.° 2, do CVM
repousa na neutralidade das fontes e pune «Qualquer pessoa não abran­
gida pelo número anterior que, tendo conhecimento de uma informa­
ção privilegiada» pratique uma das condutas típicas recortadas na norma
incriminadora. O que, como facilmente se compreende, constitui um alar­
gamento dos agentes púniveis.
Duas notas sobre as medidas sancionatórias. Foram mantidas as
molduras penais anteriorm ente definidas. O crime previsto no
artigo 378.°, n.° 1, do CVM é punido com pena de prisão até 3 anos ou
com pena de multa e o artigo 378.°, n.° 2, do CVM prevê pena de pri­
são até 2 anos ou pena de multa até 240 dias (211). O rol das medidas
sancionatórias foi completado com uma previsão sobre a apreensão das
vantagens do crime (artigo 380.°-A do CVM) e com a instituição do

í210) Cfr. J orge de F igueiredo D ias , Direito penal. Parte Geral, Tomo I, Ques­
tões Jundamentais. A doutrina geral do crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, pág. 174.
f211) No Acórdão n.° 494/03, de 22 de Outubro de 2003 (Relator: Gil Galvão),
o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de que a incriminação do abuso de
informação e as penas que lhe correspondem não contrariam os princípios da necessi­
dade e da proporcionalidade.
r
>
S,
94 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada
i,T
mecanismo de divulgação das decisões sancionatórias aplicadas pela
V: CMVM (artigo 422.° do CVM).
'í'" Em todas as manifestações do crime de abuso de informação é
y proibido que os agentes transmitam a informação, negoceiem, aconselhem
alguém a negociar em valores mobiliários, ordenem a sua subscrição,
[K, aquisição, venda ou troca, directa ou indirectamente, para si ou para
f- outrem (artigo 378.°, n.os 1 e 2, do CVM). Esta matéria remete-nos
C-1
f;1 para o universo das condutas proibidas.

S,
!.ír
5. O RECORTE TÍPICO DAS CONDUTAS PROIBIDAS

5.1. Introdução às condutas típicas

Como é sabido, a tutela penal é fragmentária. A ordem jurí-


dico-penal não protege, não quer proteger todos os bens jurídicos. Só
certos e determinados bens, os que ascendem à dignidade penal, vão
beneficiar da protecção que o direito penal lhes confere. De uma
forma complementar, há que perceber que a essa função primacial se
agrega, além de outras, a função de garantia. Através do direito penal
definem-se rigorosamente òs comportamentos penalmente relevantes.
E esta actividade legiferante constitui uma garantia. O cidadão tem de
conhecer, antecipadamente, as condutas que lhe estão penalmente veda­
das praticar, o que lhe permite, em processo de intelecção inversa,
conhecer o universo dos comportamentos irrelevantes para o direito
penal. Conhecer, assim, os comportamentos que não entram na dis-
cursividade jurídico-penal. E, deste modo, constitui-se uma barreira,
uma defesa à tendência centrípeta de esmagamento que o poder do
Estado sempre desenvolve em face dos direitos fundamentais da pes­
I!
soa humana. Exigência que não se dilui ou apouca no direito penal
econômico. Embora o direito penal econômico conheça alguma plas­
.i ticidade na definição dos comportamentos penalmente relevantes, é
V1
certo que, de modo algum, abdica da dimensão garantística que essa
definição concretiza.
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Tendo o agente típico obtido informação privilegiada, a norma incri-
minadora proíbe que ele: a) a transmita a outrem ou, b) com base nela,
.'f; 1

í
t
5. O recorte típico das condutas proibidas 95

negoceie ou aconselhe alguém a negociar em valores mobiliários ou


outros instrumentos financeiros ou c) ordene a sua subscrição, aquisição,
venda ou troca, para si ou para outrem.
Começa o tipo por proibir a transmissão da informação privile­
giada a outrem. A transmissão de informação — que não é ainda a divul­
gação pública que faz cessar o caracter privilegiado da informação —
incrementa o número de sujeitos em posição de vantagem. Como se
compreende, o risco de se verificarem compras e vendas de títulos abu­
sando de informação privilegiada aumenta exponencialmente se houver
uma transmissão selectiva de tal informação.
Quem dos agentes típicos disponha de informação privilegiada está
jurídico-penalmente proibido de, com base nela, negociar ou aconse­
lhar alguém a negociar. Situando-nos no contexto dos casos em que um
agente pratica um dos típicos comportamentos negociais (ou seja, nego-
ceia, dá ordens de subscrição, de venda ou de troca), é necessário, para
o preenchimento do crime, que subsista uma relação entre a conduta proi­
bida e a informação privilegiada. Além de outros requisitos impres­
cindíveis para o preenchimento do crime de abuso de informação, é
necessário que a negociação, aquisição, venda ou troca tenha sido feita
com base na informação privilegiada. O estrito e rigoroso cumpri­
mento do princípio da legalidade impõe que, inexistindo tal relação, o
comportamento seja considerado atípico.
Os agentes típicos que disponham de informação privilegiada estão
também proibidos de ordenar a subscrição, aquisição, venda ou troca
de valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros. Subjaz a
esta proibição a regra de que nos mercados organizados não há, em
regra, negociação directa entre a oferta e a procura. Antes a negocia­
ção é intermediada através dos membros do mercado, como resulta do
artigo 203.°, n.° 1, do CVM (212). E assim, o investidor, não tendo, em
regra, acesso ao mercado, está proibido de emitir ordens de subscrição,
aquisição, venda ou troca de valores mobiliários, enquanto a informa­

(2!2) para 0 quadro geral da transmissão de acções em mercado, v. A lexandre


S overal M artins , Valores mobiliários (acções), Coimbra: IDET/AImedina, 2003,
págs. 36 e segs.
96 0 Crime de Abuso de Informação Privilegiada

ção de que dispõe se configurar jurídico-penalmente como informação


privilegiada (213).

5.2. Instrumentos de remuneração dos administradores e a


incriminação do abuso de informação: zonas de poten­
cial intersecção

Zona particularmente sensível na delimitação das condutas proibi­


das pelo crime de abuso de informação é constituída por figuras que
supõem que os administradores de determinado emitente negoceiem
acções deste último. Estamos a pensar, por um lado, nos planos de
atribuição de acções ou de opções de aquisição de acções e, por outro,
nos «management buyouts». Embora distintos — como teremos opor­
tunidade de perceber daqui a pouco — estes dois instrumentos conver­
gem na circunstância de suporem a aquisição, por parte dos adminis­
tradores, de acções da sociedade administrada. Por conseguinte, quando
vistos à luz do abuso de informação, sobressai a permeabilidade de tais
instrumentos a práticas de apropriação de informação relevante e não
pública. De momento interessa questionar se a tipificação das condu­
tas abrangidas pelo crime de abuso de informação implicará a proibição
dos planos de aquisição de acções ou se ainda restará espaço para tais
instrumentos remuneratórios.
Com o propósito de fidelizar os administradores e de fazer alinhar
os seus interesses com os interesses dos accionistas, a remuneração da
equipa de gestão das sociedades anônimas (214) pode contemplar pla­

t213) O artigo 382.° do CVM impõe aos intermediários financeiros o dever de


denúncia à CMVM de transacções que suspeitem constituir abuso de informação ou
manipulação de mercado.
í214) Cfr. os artigos 399.° e 429.° do CSC relativos à remuneração dos adminis­
tradores e dos membros do conselho executivo e de supervisão. A remuneração dos mem­
bros da comissão de auditoria está prevista no artigo 423.°-D do CSC. As intervenções
em matéria de remuneração de administradores consideraram a Recomendação da Comis­
são n.° 2GQ4/913/CE, de 14 de Dezembro, relativa à instituição de um regime adequado
de remuneração dos administradores de sociedades cotadas. A remuneração com base
em acções encontra-se contemplada na Secção IV, exigindo-se que os sistemas de remu­
neração com base em acções sejam previamente aprovados pelos accionistas.
5. O recorte típico das condutas proibidas 97

nos de aquisição de acções. Matéria que tem sido intensamente abor­


dada, foram estes planos vistos como a forma de conseguir a sinto­
nia entre os interesses dos administradores — que gerem um patri­
mônio alheio — e os interesses dos accionistas. Afastamento entre
«propriedade» e «gestão» que, potenciado pela configuração da pró­
pria sociedade anônima, é hoje ampliado, seja pela dispersão do capi­
tal, seja ainda pela intermediação exercida pelos fundos de investimento
e fundos de pensões. Neste ambiente de assimetria informativa entre
administradores e accionistas — que o direito à informação destes
últimos permite atenuar, mas não eliminar — os planos de aquisição
de acções apresentavam-se como o incentivo adequado e eficaz para
conseguir o alinhamento dos interesses dos administradores com os dos
accionistas. Nos últimos anos, os planos de aquisição de acções têm
sofrido ataques que põem em crise a eficácia destes instrumentos de
remuneração dos administradores. Do ângulo da govemação das
sociedades não faltou quem defendesse que a atribuição de tais bene­
fícios aos administradores era ineficaz para o alinhamento dos inte­
resses destes com os administradores ou até perversamente inefi­
caz (215). Vejamos porquê.
Seguramente que os administradores dispõem, em razão das funções
exercidas, de informação privada (designadamente spbre os resultados
futuros) que, entre outros aspectos, pode sustentar o exercício das opções
de aquisição de acções. Contudo, da análise das decisões de exercício
de opções de aquisição de acções resulta uma névoa de suspeita de
que os administradores, no exercício de uma certa discricionaridade na
periodização de receitas e de despesas, concentrariam num dado período
tudo o que pudesse influenciar positivamente os resultados (impulsionando
a ,subida de cotação), sendo anormalmente baixos os resultados no
período pós-exercício dessas opções (2I6).

C215) A ntônio F ernandes de O liveira, «Remuneração de administradores e pla­


nos de aquisição de acções», Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, 19 (2004),
edição exclusivamente on-line: www.cmvm.pt/publicacoes/cademos/cademol9.asp, pág. 40.
(2I6) Cfr. A ntônio F ernandes de O liveira, ob. cit., pág. 41, citando o estudo de
Eli Bartov e Partha Mohanram intitulado «Private information, eamings manipulation,
and executive stock options exercise».
98 O Crime de Abuso de Informação Privilegiada

Não surpreende que o complexo e central tema da remuneração dos


administradores seja perpassado pelas preocupações de justeza (a remu­
neração adequada), transparência (combate a benefícios secretos ou não
divulgados) (2l7) e de prevenção dos conflitos de interesses (protecção dos
investidores). A mera existência de uma comissão de remunerações não
afasta completamente o risco de conflitos de interesses, porque se ela
for integrada por pessoas ligadas ao órgão de administração ou por este
influenciadas (ao fim e ao cabo, pessoas ligadas ao núcleo que elegeu todo
o conselho ou a maioria dos membros), então perpetua-se o risco de
conflito de interesses entre o órgão de administração e os accionistas.
A CMVM, sensível a este e outros problemas relacionados com o
governo das sociedades (corpo rate govemance (21S)), aprovou em 1999
as «Recomendações da CMVM sobre o governo das sociedades cota­
das» (219). A Recomendação n.° 8 propõe que «a remuneração dos
membros do órgão de administração deve ser estruturada por forma a per­
mitir o alinhamento dos interesses daqueles com os interesses da socie­
dade e deve ser objecto de divulgação anual em termos individuais».
A CMVM recomenda ainda que «Os membros da comissão de remu­
nerações ou equivalente devem ser independentes relativamente aos
membros do órgão de administração». No universo das sociedades cota-

(2n) Por vezes, a extrema complexidade dos planos de remuneração dos admi­
nistradores é, ela própria, um factor de não transparência, porque toma difícil a avalia­
ção dos montantes envolvidos, designadamente para os accionistas. Sobre este aspecto,
cfr. R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 201.
í218) Muito divulgada é a caracterização de corporate govemance como «the
system by which companies are directed and controlled». Cfr. J onathan R ickford, «Do
good govemance recommendations change the rales for the board?», AAVV, Capital Mar-
kets and Company Law, edited by Klaus J. Hopt / Eddy.Wymeersch, Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2003, pág. 462.
(2I9) Entretanto ocorreu a reformulação e a modificação de sistematização do
texto das recomendações (a actual versão data de Novembro de 2005) e a elevação de
algumas delas a verdadeiros deveres prescritos pelo Regulamento da CMVM n.° 7/2001,
relativo ao governo das sociedades cotadas. Para um quadro geral sobre os códigos de
govemo das sociedades, cifr. Paulo C âmara, «Códigos de governo das sociedades»,
Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, 15 (2002), págs. 74 e segs., e, do mesmo
autor, «O govemo das sociedades em Portugal: uma introdução», Cadernos do Mercado
de Valores Mobiliários, 12 (2002), págs. 45 e segs.
5. O recorte típico d a s condutas p roibidas 99

das, a recomendação da CMVM é no sentido de que «Deve ser submetida


à assembléia geral a proposta relativa à aprovação de planos de atribui­
ção de acções, e/ou de opções de aquisição de acções (...) a membros
do órgão de administração e/ou trabalhadores. A proposta deve conter
todos os elementos necessários para uma avaliação correcta do plano».
E o Regulamento da CMVM n.° 7/2001, sobre o govemo das socieda­
des cotadas, determina que «as sociedades emitentes de acções admiti­
das à negociação em mercado regulamentado enviam à CMVM infor­
mação relativa a planos de atribuição de acções e ou de opções de
aquisição de acções (...) a membros do órgão de administração, nos
sete dias úteis posteriores à respectiva aprovação» (220).
Justeza, transparência e profilaxia dos conflitos de interesses são
preocupações que perpassam a matéria da remuneração dos administra­
dores (221) (não só das sociedades cotadas, mas especialmente nestas)
seja qual for a concreta composição daquela. Não é, por isso, específico
dos modelos de remuneração que integram stock options plans. Nem
sequer a novidade está na circunstância de os administradores serem titu­
lares de participações sociais. Historicamente são conhecidas soluções em
que o recrutamento dos administradores era feito entre titulares de acções,
entendendo-se que o cumprimento desta condição representava uma
«garantia» — expressão que usamos em sentido não técnico — do cor­
recto desempenho das funções de administração (222).
A disciplina do insider trading não implica, em si mesma, a proibi­
ção de planos de atribuição de acções e/ou opções de aquisição de acções.
Estes são instrumentos lícitos de remuneração dos administradores (de
sociedades cotadas ou de sociedades não cotadas). Ao invés, a exploração
de informação privilegiada — também por alguns entendida como um ins­
trumento remuneratório — é jurídico-penalmente típica e, por conseguinte,

f220) Artigo 2 ° do Regulamento da CMVM n.° 7/2001.


(221) Sobre a atribuição de gratificações aos administradores e gerentes e a vio­
lação do direito dos sócios ao lucro, cfr. Filipe C assiano dos Santos, ob. cit., pág. 196.
(222j Foi revogado o n.° 2 do artigo 434.° do CSC que exigia que os membros
do conselho geral fossem accionistas titulares de acções nominativas ou ao portador
registadas ou depositadas, em número fixado no contrato de sociedade, não inferior ao
necessário para conferir um voto na assembléia geral.
100 O C rim e de A b u so d e Inform ação P rivilegiada

uma forma ilícita de remuneração. Contudo, é manifesto que os admi­


nistradores, no exercício dos direitos de aquisição de acções, podem ser ten­
tados a orientar as suas decisões de acordo com informação privilegiada de
que disponham em virtude das funções exercidas. Em razão desta even­
tual contaminação das decisões dos administradores por informação privi­
legiada (de que os mercados não dispõem), é inegável que a proibição do
insider trading pode constituir um entrave à adopção destes planos, por
implicar a proibição de negociação de acções com base na informação
privilegiada f223). Como exemplo de boa prática — tendente a evitar seja
a captura da informação privilegiada pelos membros do órgão de admi­
nistração, seja o manto de suspeita sobre a lealdade é lisura das decisões
dos administradores — surge a recomendação de um «waiting period»,
que deve ser observado pelos membros do órgão de administração, antes
do exercício da sua opção (224). Entre nós, o artigo 248.°-B do CVM
impõe que os «dirigentes de um emitente de valores mobiliários admitidos
à negociação em mercado regulamentado ou de sociedade que o domine»
informem a CMVM sobre «todas as transacções efectuadas por conta pró­
pria, de terceiros ou por estes por conta daqueles, relativas às acções
daquele emitente ou aos instrumentos financeiros com estas relacionados».

5.3. A aquisição de acções em operações de m anagem ent


buyout e a intromissão do crime de abuso de informação

Mais uma vez estamos a lidar com realidades complexas que ger­
minaram e se expandiram no mundo anglo-saxónico — como, aliás, é

(223) Nos EUA. é reconhecido que a disciplina de insider trading constitui um dos
entraves à adopção de stock options pians, levando as sociedades e os administradores
a procurar outras alternativas, como, por exemplo, os «phantom stock pians». Sobre estes
aspectos, cfr. R obert C harles C lark , ob. cit., págs. 207 e segs.
f224) Cfr. H einz-D ieter A ssmann , ob. cit., pág. 542. Entre nós, A ntônio Fer­
nandes DE O liveira , ob. cit., pág. 41, evidencia que para evitar a manipulação de
ganhos no exercício dos direitos de aquisição de acções, propiciada em parte pelas van­
tagens informativas dos administradores, «“basta” que se desenhem as opções de forma
a que os resultados (ou parte deles) Fiquem congelados por um período X (...) para efei­
tos de eventuais rectificações, para menos, em função da evolução da cotação, no
período pós-exercício (...)».
5. O recorte típico d a s co ndutas pro ib id a s 101

denunciado pelo nomen que as referencia — e que entretanto conhece­


ram divulgação geral. Management buyout refere transacções de acções
em que os administradores adquirem a totalidade do capital social ou uma
percentagem que lhes garanta o controlo da sociedade que eles admi­
nistram (225). Algumas destas operações ocorrem quando um grupo de
administradores que trabalha num conglomerado compra uma subsidiá­
ria que este quer vender. Ora, a tomada de uma sociedade devidamente
organizada envolve, seguramente, quantias elevadas, e quando se pretenda
uma sociedade cotada em bolsa, será, em regra, necessário recorrer a uma
operação pública de aquisição, na qual se ofereça por acção um preço
superior ao da cotação. E, assim, surgem duas alternativas principais:
o recurso a fundos próprios ou o recurso a outras formas de financia­
mento. Pois bem, no universo da aquisição do controlo da sociedade,
há o recurso a esquemas complexos. O management buyout (MBO)
recorre, em regra, às técnicas sofisticadas de leveraged buyout (LBO),
que, em termos simples, consistem em assegurar o financiamento da
compra da empresa, essencialmente, com capital alheio obtido à custa da
própria empresa que se pretenda adquirir (226). Estamos, pois, no uni­
verso da aquisição indirecta de empresas, «através da aquisição de par­
ticipações sociais na sociedade a tomar (target), de forma a obter o seu
controlo, ou o seu domínio, isto é, o poder de determinar a sua actividade,
ou o poder de exercer sobre a sociedade uma influência dominante, quer
porque se detém a maioria da participação no capital social, quer porque
se dispõe de mais de metade dos votos, quer ainda porque se goza da

f225) R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 500. Sobre o sentido da expressão
buyout, v. Paolo M ontalenti, ob. cit., pág. 58, para quem a expressão «buyout» se liga
ao fenômeno conhecido como «going private» (tomado este como a saída das acções do
mercado por falta de difusão pelo público).
(226) A ntônio M enezes C ordeiro , «Da tomada de sociedades (takeover): efec-
tivação, valoração e técnicas de defesa», Revista da Ordem dos Advogados, 54 (1994,
III), pág. 769. R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 500, refere, quanto à realidade
norte-americana, que os fundos necessários são conseguidos juntos de consórcio de
investidores institucionais reunido por instituições bancárias especializadas neste tipo
de operações. Os fundos disponibilizados serão, depois, pagos pelas forças da socie­
dade adquirida. Sobre este tema, veja-se, ainda, Paolo M ontalenti, ob. cit., págs. 57
e segs.
102 O C rim e de A buso de Inform ação Privilegiada

faculdade de eleger mais de metade dos membros do órgão de admi­


nistração» (227). Nestas operações, são, em regra, constituídas pelos
administradores ou gestores da sociedade visada (target) uma ou mais
sociedades — as designadas new form ed companies (abreviadamente,
newco) — que adquirem, designadamente, as acções da sociedade visada
(target ou oldco) (228). Esta última tanto pode configurar uma sociedade
aberta cujo capital se encontra disseminado pelo público (public held Cor­
poration) ou ser uma sociedade cujas participações sociais são detidas
por grupos determinados. No caso de um MBO de uma empresa detida,
por exemplo, por uma família, o negócio desenvolve-se todo ele no
interior da própria sociedade — os intervenientes não procuram os mer­
cados de valores mobiliários — e, neste caso, a eventual utilização de
informação privilegiada não se encontra abrangida pelo crime de abuso
de informação. Já nas sociedades abertas (229), a operação de MBO é
substancialmente afectada pelas normas que regem o mercado de valo­
res mobiliários, designadamente as que versam a tomada de controlo
da sociedade — permitindo que os accionistas minoritários partilhem
o prêmio de controlo —, os deveres de informação ao investidor e a proi­
bição do insider trading (230).

(227) c fí. J osé D iogo Horta O sório . Da tomada do controlo de sociedades


(Takeovers) por Leveraged Buy-Out e sua harmonização com o direito português, Coim­
bra: Almedina, 2001, págs. 14 e 15.
t228) J osé D iogo H orta O sório , ob. cit., pág. 80.
í229) Cfr. artigo 13.“ do CVM. Não se confunda sociedade aberta (artigo 13"
do CVM) com sociedade cotada. As sociedades emitentes de acções que estejam admi­
tidas à negociação em mercado regulamentado são directamente qualificadas como
sociedades abertas, no artigo 13.°, n.° 1, alínea c), do CVM. Outras sociedades aber­
tas, porque com o capital aberto ao investimento público, não têm as suas acções nego­
ciadas em mercado regulamentado. Sobre as sociedades abertas, v. A ntônio P ereira
de A lmeida, «Sociedades abertas», AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume VI,
Coimbra: Coimbra Editora, 2006, págs. 9 e segs.
f230) Atingidas as fasquias previstas no artigo 187.® do CVM (um terço ou metade
dos direitos de voto correspondentes ao capital social), impõe-se ao comprador o dever
«de lançar oferta pública de aquisição sobre a totalidade das acções e de outros valo­
res mobiliários emitidos por essa sociedade que confiram direito à sua subscrição ou aqui­
sição». Sobre a justificação e articulação de tais fasquias percentuais, cfr. Paulo
C âmara, «O dever de lançamento de oferta pública de aquisição no novo Código dos
5. O recorte típico das condutas pro ib id a s 103

O MBO é uma operação que, para além de outros aspectos que a


sua estrutura complexa e sofisticada envolve, apresenta-se particular­
mente sensível e delicada quando se convoca a disciplina jurídico-penal
incriminadora do abuso de informação. Ao ponto de se poder questio­
nar se, ao fim e ao cabo, esta incriminação não compromete definitiva­
mente este tipo de operações. Destacamos três «pedaços de vida» sus­
ceptíveis de criar condições propícias a condutas de abuso de informação
privilegiada (231): o) a aquisição de acções da sociedade emitente pelos
seus administradores; b) a aquisição, em momento anterior à oferta
pública de aquisição obrigatória, de acções da sociedade target, para as
vender na operação pública de aquisição lançada para conseguir o con­
trolo desta; c) a saída do mercado.
A disciplina de insider írading proíbe que os administradores adqui­
ram acções em posse de informação privilegiada que obtiveram em
razão do exercício das suas funções. Ora, se os administradores pre­
tendem «comprar a sociedade» que administram, é plausível que bene­
ficiem de um conhecimento avantajado sobre a situação actual da socie­
dade e poderão, com menor incerteza, traçar quadros de prospectiva.
Configurará essa vantagem informativa sempre e inevitavelmente a den­
sidade típica da informação privilegiada ou serão pensáveis situações
em que tal plus informativo ainda não é abrangido pelo crime de infor­
mação privilegiada? Embora admitindo que nos movemos em uma
zona cinzenta em que se podem experimentar algumas dificuldades no
desenho da linha de fronteira — e, por isso, em respeito do princípio da
legalidade criminal, talvez não nos devamos demitir de ensaiar o recorte
típico do crime de abuso de informação —, parece-nos que será impor­
tante sublinhar que nem todas as vantagens informativas obtidas pelos
membros do órgão de administração configuram informação privile­

Valores Mobiliários», AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, Volume II, Coimbra:
Coimbra Editora, 2000, págs. 233 e segs.; A lexandre Soveral M artins, Valores mobi­
liários, cit., págs. 57 e segs.
(23ij Na doutrina portuguesa, salientam este risco de o MBO envolver a utiliza­
ção de informação privilegiada, A ntônio M enezes C ordeiro, «Da tomada de socieda­
des (takeover): efectivação, valoração e técnicas de defesa», cit., pág. 771; J osé D iogo
H orta O sório , ob. cit., pág. 17.
104 O C rim e d e A buso de Inform ação Privilegiada

giada. E que a exploração das vantagens informativas que não configurem


abuso de informação é atípica para efeitos do crime de abuso de infor­
mação. Os corpo rate insiders, melhor do que o mercado que recebe as
informações, estão em condições de fazer juízos prospectivos sobre o
futuro da sociedade que administraram, sem que isso configure necessa­
riamente uma posição de vantagem jurídico-penalmente ilícita. Estes
insiders adquirem, por força do exercício das suas funções, informação
que, não tendo importância suficiente «to be labelled material» (232), os
coloca em vantagem. Como refere Langevoort, «Materiality is a fluid con-
cept: Insiders at almost all times have the advantage of superior insight
and a sense of which way things are going even if they do not possess
a fact that a court would call material and nonpublic» (233).
Sejamos claros. Não pretendemos significar que as operações
de MBO não envolvem condutas relevantes para o crime de abuso de
informação. Eventualmente, poder-se-á supor que a compra da empresa
(adquirida por intermédio da aquisição de participações sociais) pressupõe
um conhecimento reservado por parte dos adquirentes de informações
relevantes sobre os valores mobiliários objecto da operação e que, se fosse
revelado ao público — leia-se público investidor — influenciaria de
forma sensível as cotações ou o preço dos valores mobiliários. Se, por
exemplo, os administradores conhecem factos que alterarão no futuro
o valor intrínseco da empresa — e portanto dos valores emitidos por
esta — e negoceiam com base nessa informação privilegiada, estarão
numa situação de vantagem que foi usada de modo reprovável e puní­
vel pelo crime de abuso de informação. Este potencial abuso de infor­
mação reservada é de facto o problema jurídico mais relevante no MBO.
Por isso, a doutrina vem defendendo ou a proibição ou a existência de
estritas regras para o MBO para além da publicidade ad hoc (arti­
gos 248.° e 248.°-B do CVM), tais como deveres de publicidade e comu­
nicação específicos para o MBO, adequadas regras de avaliação dos

C232) Robert C harles C lark, ob. cit., pág. 508.


C233) D onald C. L angevoort, ob, cit., pág. 1335. Segundo alguns, há necessi­
dade de uma reorientação da regulação do insider trading para lidar, pelo menos em parte,
com a vantagem informativa que os insiders têm relativamente à «“sub-material” infor-
mation».
STTR
5. O recorte típico d a s condutas proibidas 105

valores mobiliários, em ordem a garantir uma justa contrapartida, ou


um leilão competitivo quando os insiders quisessem comprar a sua
sociedade, abrindo assim a possibilidade de haver competição e fixação
de uma justa contrapartida pelos valores mobiliários adquiridos (234).
O que não podemos — regressando à discursividade jurídico-penal — é,
no actual recorte típico do crime de abuso de informação, alargar as mar­
gens de punibilidade deste até aos domínios da «sub-material information»
de modo a combater a exploração de qualquer vantagem informativa.
Essa interpretação, além de ilegal (porque violadora do princípio da lega­
lidade criminal) também é nefasta para o funcionamento do mercado.
Concluindo, portanto, o raciocínio relativamente a este ponto do
nosso discurso. A incriminação do abuso de informação não impossi­
bilita que os administradores adquiram acções da sociedade por eles
administrada. O artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM proíbe que tal
negociação seja realizada na posse de informação privilegiada obtida
em razão das funções exercidas. Com esta proibição pretende-se servir
a igualdade e concorrência entre os investidores e assegurar que o fun­
cionamento do mercado de valores mobiliários se paute pelas regras do
mercado. Vantagens informativas que não atinjam a densidade típica da
informação privilegiada já não se encontram abrangidas pelo crime de
abuso de informação e, neste sentido, é jurídico-penalmente atípica a deci­
são que incorpore tal plus informativo.
Concentremo-nos em outro ponto. Se, em regra, o comprador
de acções é livre de lançar uma oferta pública de aquisição «dirigida, no
todo ou em parte, a destinatários indeterminados» (artigo 109.°, n.° 1,
do CVM), sendo visada uma sociedade aberta* a lei impõe, em deter­
minadas circunstâncias, o dever de lançamento de oferta pública de
aquisição (artigo 187.° do CVM) (235). Na ausência de regras tenden­
tes a proteger os accionistas minoritários, abria-se a porta a situações em
que o interessado no controlo limitava-se a adquirir a percentagem do

í234) Cfr. J osé D iogo H orta O sório , ob. cit., pág. 255.
C35) A Directiva 2004/25/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21
de Abril de 2004, relativa às ofertas públicas de aquisição, deverá ser transposta até 20
de Maio de 2006.
B
106 O C rim e de A b u so de Inform ação P rivilegiada

capital social que lho garantisse, remunerando favoravelmente o alienante


com o prêmio de controlo e desinteressando-se dos restantes accionís-
tas (que, assim, teriam dificuldades acrescidas de alienação das suas
acções) (236). É, justamente, para impedir esta consequência perversa,
e por um imperativo ético-jurídico de tratamento não discriminatório
entre os investidores, que se institui o regime das ofertas públicas obri­
gatórias, dando uma igual oportunidade aos accionistas de permanece-
rem/saírem da sociedade face a alterações da respectiva estrutura de
domínio (237). Mais. A tutela da igualdade dos accionistas maioritá-
rios e minoritários impôs a previsão de uma contrapartida mínima
(artigo 188.° do CVM), garantindo que uns e outros tenham a possibi­
lidade de sair da sociedade pelo mesmo preço. Matéria que, em parte,
é retirada da alçada da autonomia privada, porquanto a lei impõe nor­
mas imperativas, retomando-se a autonomia privada quando se permite
que o oferente apresente um preço superior ao que resulta do critério legal
prescrito no artigo 188.° do CVM.
A disciplina legal das operações públicas de aquisição está estruturada
em tomo de alguns princípios: intermediação obrigatória (artigo 113.°
do CVM), igualdade de tratamento dos destinatários (artigo 112.° do
CVM), registo prévio obrigatório (artigos 114.° e segs. do CVM) e exi­
gência de informação «completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e
lícita», cumprida através do anúncio preliminar e do conteúdo do pros-
pecto (artigos 176.° e 135 e segs. do CVM) (238). Essencial ao regime

C236) Na doutrina alemã, sobre a ligação entre as mudanças de controlo das socie­
dades e o regime do Insiderrecht, v. C hristoph von B ülow, in Kõlner Kommentar
zum WpÜG, Kõln/Berlin/Bonn/München: Carl Heymanns Verlag KG, 2003, págs. 1069
e 1070, rdn. 176.
í237) C arlos da C osta Pina, ob. cit., pág. 366, fala, a propósito deste regime da
oferta pública de aquisição obrigatória, de «um certo cunho solidarista entre os diver­
sos accionistas», em que parecem prevalecer os interesses dos accionistas/investidores
(abordagem anglo-saxónica) desvalorizando outros interesses pública, econômica e
socialmente relevantes na órbita empresarial (perspectiva alemã). Sobre esta dualidade
de modelos, cfr. JoAo C unha Vaz, A s opa na União Européia f a c e ao novo Código dos
Valores Mobiliários, Coimbra: Almedina, 2000, págs. 197 e segs.
ps») o Decreto-Lei n.° 52/2006, de 15 de Março, transpôs para o ordenamento
jurídico interno a Directiva n.° 2003/71/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de
4 de Novembro, relativa ao prospecto a publicar em caso de oferta pública de valores
5. O recorte típ ico d a s co n d u ta s pro ib id a s 107

das ofertas públicas é ainda o dever de segredo sobre a preparação da


oferta até à publicação do anúncio preliminar (artigo 174.° do CVM).
Pretende-se com esta imposição impedir que, por divulgação geral ante­
cipada da mera possibilidade de lançamento de uma operação pública de
aquisição ou por divulgação restrita do seu lançamento, se propicie a
especulação sobre os valores mobiliários que dela seriam objecto ou se
propicie a aquisição baseada em informação privilegiada. Um investi­
dor racional com conhecimento de que um terceiro se encontra a preparar
uma oferta pública de aquisição sobre determinada sociedade será levado
a adquirir as respectivas acções por forma a poder aliená-las no âmbito
da projectada operação, se com isso obtiver ganhos. Decidida a oferta,
«o oferente deve enviar anúncio preliminar à CMVM, à sociedade visada
e às entidades gestoras dos mercados regulamentados em que os valo­
res mobiliários que são objecto da oferta ou que integrem a contrapar­
tida a propor estejam admitidos à negociação, procedendo de imediato
à respectiva publicação» (artigo 175.°, n.° 1, do CVM).
Entende-se agora que tenhamos convocado as operações públicas
de aquisição obrigatórias. Na verdade, se a operação de MBO visa
tomar o controlo de uma sociedade aberta, o(s) adquirente(s) estarão obri­
gados a lançar uma operação pública de aquisição das acções de tal
sociedade. Ora, é verosímil que administradores da sociedade visada
tenham acesso reservado ao conhecimento dos contornos da operação
antes de ser divulgado o anúncio público de oferta pública de aquisi­
ção. Nesta situação, o crime de abuso de informação impede-os de
explorarem esta assimetria informativa, designadamente através da
negociação de acções da sociedade visada (ou seja, comprando acções
enquanto permanece não pública a informação sobre a futura oferta
pública de aquisição e vendendo no contexto desta). E, por isso, se vê
que esta é, sem dúvida, uma situação que, por envolver ganhos apre-

mobiliários ou da sua admissão à negociação. Sobre esta Directiva e o confronto com


o direito português então vigente, v. Paulo C âmara, «A Directiva dos Prospectos: con­
texto, conteúdo e confronto com o direito positivo nacional», AAVV, Estudos em Memó­
ria do Professor Doutor Antônio Marques dos Santos, Volume I, Coimbra: Almedina,
2005, págs. 1083 e segs.
108 O C rim e de A b u so de Inform ação P rivilegiada

ciáveis, pode tornar-se permeável a condutas próprias do crime de


abuso de informação. Especialmente quando estamos a falar de ope-
- rações impulsionadas pelos próprios administradores da sociedade visada
que constituem uma sociedade que irá lançar a oferta pública de aqui­
sição. Há, portanto, que enfatizar que se os administradores da socie­
dade visada adquirirem acções desta e as negociarem ao abrigo de
informação privilegiada a sua conduta é susceptível de integrar o crime
de abuso de informação.
Subsequentemente a uma operação pública de aquisição pode ocor­
rer a saída do mercado regulamentado dos valores mobiliários em
causa (239) («going into private transactions» C240)). O que nos inte­
ressa salientar é que as operações de saída do mercado (241) podem sus­
citar situações típicas para efeitos do crime de abuso de informação.
São operações em que, durante um período considerável de tempo, um
grupo restrito de pessoas detém o conhecimento dos factos e que, para
além disso, o anúncio de tal decisão é, normalmente, price sensitive (242).
A interferência da disciplina do insider trading intensifica-se parti­
cularmente quando haja uma operação de saída que envolva um processo
de aquisição. Na verdade, o respectivo anúncio pode provocar altera­
ções nas cotações dos valores visados.' Ora, justamente, neste contexto,
os agentes típicos estão jurídico-penalmente proibidos de, por exemplo,
adquirir ou ordenar a aquisição de lotes de acções visadas para, na
sequência do anúncio, ordenar a sua venda, capturando os ganhos daí
resultantes.

(239) Este procedimento não impede que essas acções se negoceiem num mercado
não regulamentado ou fora de mercado. Também não fica prejudicada a aquisição da
qualidade de sociedade aberta por outro motivo que não a admissão a mercado regula­
mentado: por exemplo, através da realização de oferta pública de distribuição de acções
ou de fusão por incorporação com uma sociedade aberta (artigo 13.°, n.° 1, alíneas a),
b) e e), do CVM). Neste sentido, v. Paulo C âmara. «A s operações de saída do mer­
cado», Miscelâneas, n.° 2, Coimbra: Almedina, 2004, pág. 111.
(24°) Sobre este conceito, v. R obert C harles C lark , ob. cit., pág. 500.
(241) Sobre as várias operações de saída do mercado, cfr. Paulo C âmara, «A s
operações de saída do mercado», cit., págs. 89 e segs.
í242) Cfr. Paulo C âmara , «A s operações de saída do mercado», cit., pág. 89;
R obert C harles C lark, ob. cit., pág. 507.
5. O recorte típico d a s condutas p roibidas 109

5.4. Os comportamentos jurídico-penalmente atípicos

No contexto do estudo sobre o crime de abuso de informação, afi-


gura-se-nos relevante que, na sequência do recorte das condutas proibi­
das, se interpele a norma de modo a surpreender as zonas de atipici-
dacle (243). Ou seja: condutas que, lidando com informação privilegiada,
não se encontram abrangidas pelo telos da norma incriminadora do
abuso de informação. Concentremo-nos, agora, na investigação dos
comportamentos que, por referência ao crime de abuso de informação,
são penalmente tolerados (244).
Da análise do tipo legal de crime de abuso de informação resulta
o carácter jurídico-penalmente irrelevante da simples posse de informa­
ção privilegiada. O recorte das condutas proibidas exige que o agente
utilize a informação privilegiada que obteve, seja porque a transmite a
alguém fora do âmbito normal das suas funções, seja porque, com base
nela, negoceia, aconselha a negociar, ordena a subscrição, aquisição,
venda ou troca de valores mobiliários. Há que considerar um segundo
grupo de situações atípicas que a doutrina agrupa sob a designação
genérica de non trading com base na informação privilegiada. Revela-se
atípica a conduta do agente que, estando na posse de informação que ele

(243) Como se sabe, afirmar uma conduta como juridico-penalmente atípica não
equivale necessariamente a introduzi-la no lote dos comportamentos lícitos. Significa
tão-só que essa conduta não é atraída pelas margens de punibilidade definidas pelo
crime em questão.
t244) No sistema jurídico norte-americano, a repressão do insider trading é
contemporânea de «espaços» em que é permitida a utilização de informação que,
entre nós, designaríamos como informação privilegiada. Estamos a referir-nos aos
«safe harbors». Sobre o «safe harbor» previsto pelo Ride 10b5-l, cfr. J ames D. Cox /
/ T homas Lee H azen , ob. cit., púg. 698. Esta expressão é também usada nos países
de civil law. Na doutrina alemã, B ernd S inghof / C hristian W eber , «Neue kapi-
talmarktrechtliche Rahmenbedingungen für den Erwerb eígener Aktien», Die Aktien-
geseüschaft, 15 (2005), págs. 554 e segs., analisam o regime do «safe harbop> no
contexto dos §§ 14, Abs. 2, 20a, Abs. 3, WpHG, e do Regulamento (CE) n,° 2273/2003
da Comissão, de 22 de Dezembro de 2003. Este Regulamento contempla, como já refe­
rimos, as medidas de aplicação da directiva sobre abuso de mercado no que diz res­
peito às derrogações para os programas de recompra e para as operações de estabili­
zação de instrumentos financeiros.
110 O C rim e de A buso de Inform ação P rivilegiada

avalia como privilegiada, deixa de negociar, trocar, vender ou subscre­


ver (ainda que essa abstenção implique um benefício) (245). E com­
preende-se que assim seja. Para além dos evidentes problemas de prova
que estas situações apresentam, elas não põem em perigo o bom fun­
cionamento dos mercados de valores mobiliários, porquanto a informa­
ção privilegiada não suporta qualquer input negociai no mercado.
Por outro lado, sendo doloso o crime de abuso de informação
(artigo 13.° do Código Penal), fácil é de perceber que a ausência de
dolo significa que o comportamento não adquirirá relevância penal.
Especificamente quanto à conduta da transmissão da informação
privilegiada, o texto-norma do n.° 1 do artigo 378.° do CVM apresenta
um segmento normativo cujo sentido jurídico-penal importa apurar.
Proíbe-se que os agentes típicos transmitam a informação privilegiada a
alguém «fora do âmbito normal das suas funções» (246). O que, numa
primeira aproximação, parece significar que o tipo autoriza que o agente
transmita a outrem informação privilegiada, desde que o faça no «âmbito
normal das suas funções». A vida empresarial e o cumprimento dos
deveres funcionais do aparelho institucional dos emitentes exige, em
circunstâncias várias, a transmissão e a circulação de informação, desig­
nadamente de informação privilegiada. Uma proibição legal cega e
irrestrita de transmissão de toda e qualquer informação privilegiada seria
excessiva e desproporcionada por não atender às exigências que outros
ramos de direito impõem, por exemplo, ao órgão de administração que,
em momentos vários, está vinculado a endereçar informação ao órgão de
fiscalização. Existem, assim, razões jurídicas e empresariais (247) que,
no quadro legal do exercício de determinados cargos, suportam e justi­
ficam a transmissão de informações privilegiadas. O que não pode sig­
nificar o franquear as portas a uma indiscriminada e indiferenciada trans­
missão de informação, antes impõe que a estrutura empresarial seja
organizada de modo a que se garanta o acesso adequado e criterioso a

t245) Neste sentido, cfr. Valerio S angiovanni, ob. cit., pág, 558.
(246) Segmento normativo que não está presente no n° 2 do artigo 378“ do CVM
porque neste tipo o agente não é caracterizado em razão das funções exercidas.
f147) Cfr. Valerio S angiovanni, ob. cit., pág. 559.
5. O recorte típ ico d a s condutas proibidas 111

informações sensíveis e relevantes (248). Por conseguinte, tendemos a acei­


tar que, para efeitos do crime de abuso de informação, é atípica a con­
duta de um agente típico que, «no âmbito normal das suas funções»,
transmita a informação a outrem t249).
O recorte típico do crime de abuso de informação leva-nos a questionar
a relevância penal das condutas.que usam informação própria, especialmente
quando esta pertence a uma sociedade que, por intermédio dos membros
do órgão de administração, a incorpora em decisões de investimento em
valores mobiliários. Significa, neste caso, que o membro do órgão de
administração que, nestas circunstâncias, adquirir valores mobiliários para
a sociedade administrada, incorre no crime de abuso de informação?

5.5. A interrogação em torno do relevo penal das condutas de


uso de informação privilegiada própria

O membro do órgão de administração ou de fiscalização que, devido


à sua qualidade profissional, obtém informação privilegiada sobre emi­
tente ou sobre valores mobiliários, encontra-se jurídico-penalmente ini­
bido de a utilizar em decisões de investimento. É manifestamente típica
a conduta do membro do conselho de administração que, sabendo que
a sociedade que administra vai lançar uma oferta pública de aquisição
das acções da sociedade Y, se apressa a adquirir tais títulos que, mais
tarde, venderá na operação pública de aquisição. Situação diversa é
aquela em que a sociedade encomenda e promove estudos de investi­
mento e, realizados estes, decide seguir as recomendações que o estudo
avança. Suponhamos que na concretização de tal decisão o administrador,
ao abrigo das informações não públicas contidas em tal estudo, ordena
a aquisição de tais títulos para a sociedade. Tal conduta do administrador
estará abrangida pelo crime de abuso de informação?

(248) O artigo 248.°, n.° 6, do CVM prescreve o dever de os emitentes elabora­


rem e manterem uma lista actualizada dos trabalhadores e colaboradores que têm acesso
regular ou ocasional a informação privilegiada.
(2«) fâtima G omes , ob. cit., pág. 81, considera «lícita a transmissão de infor­
mação efectuada no âmbito do normal desempenho de cargo, trabalho, serviço, profis­
são ou função pública de que o insider seja titular».
112 O C rim e de A buso de Inform ação P rivilegiada

Pensamos que neste caso a resposta há-de ser negativa porque o


acervo informacional utilizado pelo administrador não assume as carac­
terísticas próprias da informação privilegiada, Embora os resultados do
estudo sejam não públicos, sendo públicos os dados em que ele se baseia,
a informação que se obtém não reveste a natureza jurídico-penal de infor­
mação privilegiada. E, por isso, é jurídico-penalmente lícito incorporar
tais informações em decisões de investimento ou de desinvestimento.
O que urge questionar é se se encontram abrangidos pelo crime de
abuso de informação factos relativos à própria sociedade, precisos, não
públicos e price sensitive. Pense-se, por exemplo, no ingresso de um
administrador de prestígio ou num importante projecto de joint venture em
que a sociedade emitente participa. Relativamente a casos deste tipo,
Galgano escreve que «non è propriamente una informazione, la conoscenza
che ciascuno ha degli eventi che lo concemono o dei propositi che ha in
animo di attuare» f250). Faz assentar o crime de insider trading na alte-
ridade subjectiva entre o criador do evento objecto da informação e o
receptor de tal informação. Invoca, entre outros argumentos, o pensamento
de que o criador do evento é «proprietário da informação» e, seguindo a
doutrina suíça, defende que ninguém pode ser insider de si mesmo.
Por fim, socorre-se do tipo legal que em Itália incrimina o abuso de
informação que exigia que a informação fosse «obtida». O que expres­
sava, segundo Galgano, que deveria ser alheia a fonte de informação (251).
Certamente que a utilização de informação própria relevante coloca
o seu titular em posição de vantagem informativa. Radicar e centrar a
tutela do crime de abuso de informação na paridade de condições de
todos os investidores tem levado a considerar como insider a pessoa
que beneficia do conhecimento de eventos próprios ou de propósitos
próprios.
A solução do problema que nos ocupa há-de ser procurada pela
mediação do tipo legal de crime de abuso de informação. A actual fabri­
cação legal deste tipo de ilícito veio perturbar o entendimento de que a
matriz que lhe subjaz centra-se no aproveitamento ilícito de informação
alheia. Consideremos, a este propósito, o artigo 378,°, n.° 2, do CVM.

(zso) Francesco G algano , ob. cit., pág. 536.


í251) Cfr. Francesco G algano , ob. cit., págs. 536 e 537.
5. O recorte típ ico das condutas p roibidas 113

Como já dissemos, este tipo assenta em uma neutralidade da fonte: o


preenchimento do tipo não exige actualmente que a informação privile­
giada tenha sido obtida junto de determinada fonte. A eliminação do
relevo jurídico-penal da fonte por que é obtida a informação propicia
que o tipo legal seja deslocado para o conhecimento de informação pri­
vilegiada. É punida ao abrigo do artigo 378.°, n.° 2, do CVM: «Qualquer
pessoa não abrangida pelo número anterior que, tendo conhecimento de
uma informação privilegiada, a transmita a outrem ou, com base nessa
informação, negoceie ou aconselhe alguém a negociar em valores mobi­
liários ou outros instrumentos financeiros ou ordene a sua subscrição,
aquisição, venda ou troca, directa ou indirectamente, para si ou para
outrem». Em face desta tipificação legal, é de questionar se o crime de
abuso de informação pune a utilização de informação privilegiada própria.

5.6. O nódulo problemático relativo à transacção de acções


próprias na posse de informação privilegiada

O problema que se discute não é seguramente o de saber se a socie­


dade pode ou não adquirir acções próprias — questão resolvida na
Segunda Directiva sobre sociedades (252) e, entre nós, no CSC — mas
o de apurar se é jurídíco-penalmente punível o comportamento dos
administradores de uma sociedade que, em posse de informação privi­
legiada, negoceiam acções próprias (253). Ainda que rodeada de certas

O252) Rcferimo-nos à Segunda Directiva do Conselho de 13 de Dezembro de 1976,


publicada no JO L 26 de 30 de Janeiro de 1977. Sobre o processo de revisão desta direc­
tiva, veja-se «Proposta di modifica delia Seconda direttiva CE in matéria societária pre-
sentata dalla Commissione europea», Rivista delle Società, 2004, págs. 1588 e segs.
Em 28 de Fevereiro de 2006, o Parlamento Europeu aprovou em 1 * leitura as alterações
à Segunda Directiva. Na doutrina alemã, v. E rnst-A ugust Baldamus, Reform der
Kapitalricfitlinie, Kõln/Berlin/Bonn/München: Carl Heymanns Verlag KG, 2002, págs. 91 e
segs., que aprecia as propostas relativas à simplificação da Segunda Directiva das socie­
dades, apresentadas pelo grupo de trabalho encarregado da simplificação do direito das
sociedades, no contexto da iniciativa SL1M.
C53) Dizem-se próprias as acções emitidas por determinada sociedade e pela mesma
adquiridas. Cfr. M aria V ictória R odrigues Vaz Ferreira da R ocha . Aquisição de
acções próprias no Código das Sociedades Comerciais, Coimbra: Almedina, 1994, pág. 11;
J. M. C outinho DE A breu, Curso de direito comercial, Volume II, cit., pág. 382.
114 O C rim e de A b u so de Inform ação Privilegiada

cautelas, tendo em conta os perigos que envolve í254), a lei recorta casos
de aquisição lícita de acções próprias (255). Um dos objectivos que ani­
mam tal aquisição de acções próprias — esclareça-se que está total­
mente proibida a subscrição de acções próprias (artigo 316.° do CSC) —,
é justamente a prossecução das finalidades de mercado. As transac-
ções sobre acções próprias podem constituir uma forma de a sociedade
influenciar as relações de oferta e de procura das suas acções. Neste sen­
tido, a aquisição de acções próprias pode influir na cotação dos títulos,
pode criar ou até alimentar uma corrente de procura das participações
sociais. Se a cotaçãp das acções está demasiado baixa, tendo em conta
a consistência patrimonial da sociedade e as perspectivas de rendimento,
a sociedade poderá, dentro dos limites da lei, equacionar a aquisição
de acções próprias como um dos mecanismos de reacção à baixa cota­
ção (aumentando a procura, a cotação tenderá a subir) (256).
Interessa-nos questionar as margens de punibilidade do crime de
abuso de informação, de modo a perceber se este abrange as compras e
vendas de acções próprias realizadas ao abrigo de informação privilegiada
relativa à sociedade emitente das acções ou se, ao invés, esta conduta é
jurídico-penalmente atípica. Tendo em conta a opção político-criminal
de não punição das pessoas colectivas, rigorosamente o que se ques­
tiona é o problema de saber se a proibição de insider trading abrange
também a conduta dos administradores ou directores que, na posse de
informação privilegiada relativa à sociedade emitente, realizam operações
sobre acções próprias dessa mesma sociedade (portanto, compram ou ven­
dem acções da sociedade para a sociedade e não para si) (257). Será que
esta conduta dos administradores é punida a título de insider tradingl

f254) Para uma síntese dos perigos e vantagens que a aquisição de acções próprias
envolve, v. J. M. C outinho de A breu , Curso de direito comercial, Volume II, cit.,
págs. 383 e 384.
(255) V. o artigo 317.° do CSC.
f256) Vantagem também sublinhada por J. M. C outinho de A breu, Curso de
direito comercial. Volume II, cit., pág. 384.
(2S7) Segundo Loss, citado por F rancesco Carbonetti, «Acquisto di azioni proprie
e ‘insider trading’», Rivista delle Società, 1989, pág. 1011, referindo-se ao sistema norte-ame­
ricano, «the typical pattem is a purchase by a corporate insider, or by the issuer itself».
5. O recorte típ ico d a s condutas proibidas 115

Tomando como referente as regras da Directiva 89/592/CEE, a dou­


trina estrangeira dividiu-se entre os que consideravam que a negociação
de acções próprias não se encontrava abningida pela disciplina anti-insi-
der trading e os que defenderam que a mesma Directiva encerra argu­
mentos no sentido da proibição de negociação em acções próprias com
base em informação privilegiada (258). A linha argumentativa defen­
sora da tipicidade da conduta de negociação em acções próprias com base
em informação privilegiada passa, justamente, por centrar a tutela do
crime de abuso de informação na defesa exasperada da igualdade entre
os investidores. Perfilhando-se este entendimento, abrem-se as portas à
integração da conduta dos administradores que adquirem acções pró­
prias para a sociedade na zona de incriminação do abuso de informação.
O artigo 378.°, n.° 5, do CVM é expresso em determinar a inaplica-
bilidade da disciplina incriminadora do abuso de informação «às transac-
ções sobre acções próprias efectuadas no âmbito de programas de recom-
pra realizados nas condições legalmente permitidas». Com esta previsão
é dado cumprimento ao artigo 8.° da Directiva 2003/6/CE, complementado
pelo Regulamento (CE) n.° 2273/2003 da Comissão, de 22 de Dezembro
de 2003, relativo às derrogações para os programas de recompra e para as
operações de estabilização de instrumentos financeiros f259).

e 58) É precisado no considerando 33 da Directiva 2003/6/CE do Parlamento


Europeu e do Conselho que «em determinadas circunstâncias (...) as operações sobre
acções próprias efectuadas no âmbito de programas de ‘recompra’ podem justificar-se por
razões econômicas, não devendo, por conseguinte, ser consideradas por si só abuso de
mercado». O artigo 8." da mesma Directiva determina que «As proibições impostas na
presente directiva não se aplicam às operações sobre acções próprias efectuadas no
âmbito de programas de ‘recompra’, nem às medidas de estabilização de um instru­
mento financeiro, desde que essas operações se efectuem em conformidade com as
medidas de execução adoptadas nos termos do n.° 2 do artigo 17.°».
t259) Impõe o artigo 11.°, n.° 2, do Regulamento da CMVM n.° 4/2004, que os
emitentes devem comunicar imediatamente à entidade gestora do mercado e à CMVM
transacções sobre acções próprias que, na mesma sessão do mercado de bolsa a contado,
por si só ou somadas às já realizadas, perfaçam ou ultrapassem 0,05% da quantidade
admitida à negociação.
ÍNDICE
Pígs.
Palavras eventual mente necessárias.......................................................................... 5

1. Reflexões a propósito da intromissão do direito penal no mercado de valo*


res mobiliários.................................................................................................... 7

1.1. Notas esparsas em tomo da emergência e da regulação do mercado


de valores mobiliários nacional............................................................. 7
1.2. A gênese da repressão do insider trading. Caminhos e controvérsias 18
1.3. O crime de abuso de informação como uma expressão da intromis­
são do direito penal no mercado de valores mobiliários................... 25

2. Convocação e explicitação do bem jurídico protegido pelo crime de abuso


de informação..................................................................................................... 32

2.1. O crime de abuso de informação entre a pertença ao direito penal


econômico e a natureza supra-individual do bem jurídico protegido... 32
2.2. O crime de abuso de informação protege um bem jurídico complexo
e poliédrico que não se esgota na igualdade dos investidores... 37

3. A definição jurídico-penal de informação privilegiada................................ 39

3.1. A informação e transparência................................................................ 39


3.2. A definição legal de informação privilegiada...................................... 41

3.2.1. Carácter não público da informação........................................ 43


3.2.2. Carácter preciso da informação................................................ 47
3.2.3. Referência a valores mobiliários ou a entidades emitentes... 50
3.2.4. Idoneidade para influenciar de maneira sensível o preço dos
valores mobiliários..................................................................... 53
3.2.5. O sentido jurídico-penal de mercado no crime de abuso de
informação................................................................................... 54

4. O relevo da ligação institucional ao emitente na caracterização típica dos


agentes................................................................................................................ 61

4.1. Uma primeira aproximação ao elenco dos agentes típicos............... 61


118 O Crime de A biiso d e Inform ação P rivilegiada

Págs.
4.2. Estrutura organizatóría das sociedades anônimas e segregação de
fluxos informacionais............................................................................. 62

4.2.1. Os modelos alternativos de administração e de fiscalização da


sociedade anônima..................................................................... 62
4.2.2. A delegação de poderes de gestão........................................ :. 72

4.3. A titularidade de uma participação no capital social do emitente.... 76

4.3.1. O relevo típico da distinção entre unidades de participação em


organismos de investimento colectivo e participações sociais... 79

4.4. A questão da punibil idade dos administradores de facto................... 86


4.5. A interrogação em tomo da punibilidade das pessoas colectivas titu­
lares de participações sociais, designadas administradores ou que
integrem o órgão de fiscalização.......................................................... 88
4.6. O artigo 378.°, n.° 1, alínea a), do CVM e a irrelevância jurídico-penal
de certas ligações institucionais ao emitente....................................... 90
4.7. Outros agentes do crime de abuso de informação............................. 92

5. O recorte típico das condutas proibidas......................................................... 94

5.1. Introdução às condutas típicas.............................................................. 94


5.2. Instrumentos de remuneração dos administradores e a incriminação
do abuso de informação: zonas de potencial intersecção.................. 96
5.3. A aquisição de acções em operações de management buyouí e a
intromissão do crime de abuso de informação.................................... 100
5.4. Os comportamentos jurídico-penalmente atípicos...................... 109
5.5. A interrogação em tomo do relevo penal das condutas de uso de
informação privilegiada própria.......................................................... 111
5.6. O nódulo problemático relativo à transacção de acções próprias na
posse de informação privilegiada......................................................... 113
EXECUÇÃO GRÁFICA
COIMBRA EDITORA, LDA.
Rua do Arnado
COIMBRA

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